o “etnocídio” na literatura brasileira: uma introdução · resumo pretendeu-se com ......

21
O “etnocídio” na literatura brasileira: uma introdução 1 Ellen dos Santos OLIVEIRA 2 Resumo Pretendeu-se com esta pesquisa analisar a representação da prática etnocida na literatura brasileira. Para o que é proposto, focar-se-á: nos Sermões do Padre Antônio Vieira, cuja produção denota a intenção etnocida; e O Guarani e Iracema, de José de Alencar, obras que evidenciam o “etnocídio” sofrido pelos seus heróis em nome da construção nacional. Trata-se, portanto, de um trabalho introdutório sobre a representação do “etnocídio” na Literatura Brasileira. Palavras-chave: “Etnocídio”. Literatura brasileira. Padre Antônio Vieira. José de Alencar. Abstract It was intended with this research analyze the representation of ethnocide practice in Brazilian literature. For what is proposed, it will also focus: the Father Antonio Vieira Sermons, whose production denotes the ethnocide intention; and The Guarani and Iracema, José de Alencar, works that show ethnocide suffered by their heroes in the name of national construction. It is, therefore, an introductory work on the representation of ethnic cleansing in Brazilian Literature. 1 Com algumas alterações, este artigo foi elaborado como um dos requisitos de avaliação para a obtenção do grau de especialista em Cultura e Literatura pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto SP, sob a orientação da profa. Dra. Rosemary Conceição dos Santos. 2 Graduada em Letras Português e suas respectivas Literaturas pela Faculdade São Luís de França (FSLF- SE). Especialista em Cultura e Literatura pelo Centro Universitário Barão de Mauá (CUBM-SP). Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), na área de estudos Literários e linha de pesquisa Literatura e Cultura. Membro do CIMEEP - Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos da Universidade Federal do Sergipe. Membro fundadora do NEC - Núcleo de Estudos de Cultura da UFS (grupo de pesquisa). É poetisa, contista e Escritora. É autora dos trabalhos literários: O despertar de um domingo (conto); Rabiscos Poéticos (Poesias); Coleção Poesias que gritam: “Não ao Racismo”, “Não à violência”; (poesias); Memórias de Infância, parte 1 (contos); Memórias de Infância, parte 2 (contos); Poesias Nuas (poesia); É tempo de Amar, vol.01 (poesias); É tempo de Amar, vol. 02 (poesias); O instante (contos). Essas obras estão disponíveis para leitura no site: http://www.bookess.com/profile/ellen_oliveira/books/# Também já publicou em várias Antologias pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores, recebendo o certificado de “Qualidade Literária” por seus trabalhos. CEP: 49075-100, Aracaju-Sergipe. E-mail: [email protected].

Upload: truongthuy

Post on 03-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O “etnocídio” na literatura brasileira: uma introdução1

Ellen dos Santos OLIVEIRA2

Resumo

Pretendeu-se com esta pesquisa analisar a representação da prática etnocida na literatura

brasileira. Para o que é proposto, focar-se-á: nos Sermões do Padre Antônio Vieira, cuja

produção denota a intenção etnocida; e O Guarani e Iracema, de José de Alencar, obras

que evidenciam o “etnocídio” sofrido pelos seus heróis em nome da construção

nacional. Trata-se, portanto, de um trabalho introdutório sobre a representação do

“etnocídio” na Literatura Brasileira.

Palavras-chave: “Etnocídio”. Literatura brasileira. Padre Antônio Vieira. José de

Alencar.

Abstract

It was intended with this research analyze the representation of ethnocide practice in

Brazilian literature. For what is proposed, it will also focus: the Father Antonio Vieira

Sermons, whose production denotes the ethnocide intention; and The Guarani and

Iracema, José de Alencar, works that show ethnocide suffered by their heroes in the

name of national construction. It is, therefore, an introductory work on the

representation of ethnic cleansing in Brazilian Literature.

1 Com algumas alterações, este artigo foi elaborado como um dos requisitos de avaliação para a obtenção

do grau de especialista em Cultura e Literatura pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto

– SP, sob a orientação da profa. Dra. Rosemary Conceição dos Santos.

2 Graduada em Letras Português e suas respectivas Literaturas pela Faculdade São Luís de França (FSLF-

SE). Especialista em Cultura e Literatura pelo Centro Universitário Barão de Mauá (CUBM-SP).

Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), na área de estudos Literários e linha de

pesquisa Literatura e Cultura. Membro do CIMEEP - Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos

Épicos da Universidade Federal do Sergipe. Membro fundadora do NEC - Núcleo de Estudos de Cultura

da UFS (grupo de pesquisa). É poetisa, contista e Escritora. É autora dos trabalhos literários: O despertar

de um domingo (conto); Rabiscos Poéticos (Poesias); Coleção Poesias que gritam: “Não ao Racismo”,

“Não à violência”; (poesias); Memórias de Infância, parte 1 (contos); Memórias de Infância, parte 2

(contos); Poesias Nuas (poesia); É tempo de Amar, vol.01 (poesias); É tempo de Amar, vol. 02 (poesias);

O instante (contos). Essas obras estão disponíveis para leitura no site:

http://www.bookess.com/profile/ellen_oliveira/books/# Também já publicou em várias Antologias pela

Câmara Brasileira de Jovens Escritores, recebendo o certificado de “Qualidade Literária” por seus

trabalhos. CEP: 49075-100, Aracaju-Sergipe. E-mail: [email protected].

Keywords: ethnocide. Brazilian literature. Father Antonio Vieira. José de Alencar.

1. Introdução

Persiste o vício de algumas sociedades tentarem impor sua cultura, considerada

superior, a outras sociedades consideradas incultas e bárbaras. Tal prática configura o

que trataremos como prática etnocida, que consiste numa espécie de violência cultural

da qual vitimou índios e escravos colonizados.

Diferentemente do “genocídio”, em que o genocida tem consciência de estar

fazendo mal ao outro, violentando-o ao tirar-lhe a vida, no “etnocídio” seus agentes

acreditam estar praticando o bem ao insistir na mudança do modo de vida daquele que é

violentado culturalmente. Para esses agentes, trata-se de uma mudança positiva. Uma

vez que irá elevá-lo de sua condição de inferioridade cultural.

Pouco se tem discutido sobre a representação do “etnocídio” na Literatura, até

porque o “etnocídio” é apontado por Pierre Clastres (2006) como um termo criado

recentemente para cumprir uma necessidade terminológica, uma vez que o termo

“genocídio”, de uso difundido, tem sido ineficaz para explicar o tipo de violência, que

consiste na imposição cultural de uma raça sobre outra.

Acreditando ser o “etnocídio” uma violência sublime de dominação cultural que

merece ser analisada e discutida nos estudos contemporâneos, pretende-se com este

trabalho apresentar uma proposta metodológica que sirva de orientação para análise da

representação desse tipo de violência na literatura. Tal proposta apresenta um caráter

interdisciplinar e transita pelo viés do comparativismo, uma vez que essa discussão gira

em torno de conceitos de cultura, etnografia e literatura.

Nessa proposta, a princípio, foi apresentado e discutido o conceito “etnocídio”,

bem como sua origem e seu desenvolvimento, de modo a compreender a diferença entre

os termos “etnocídio” e “genocídio”, e a aplicabilidade de cada um. Na sequência foi

feito um mapeamento dos principais estudos, disponíveis, sobre o “etnocídio”. Na

segunda parte, foi feita uma análise do “etnocídio” em algumas obras coloniais da

literatura brasileira. Tais obras são: os Sermões do Padre Antônio Vieira, cuja produção

denota a intenção etnocida; e O Guarani e Iracema, de José de Alencar, obras que

evidenciam o “etnocídio” sofrido pelos seus heróis em nome da construção nacional.

Este trabalho se insere no âmbito dos Estudos de cultura, especificamente os

estudos literários, e pretende com ele contribuir com os estudos contemporâneos acerca

de cultura e identidade. Vale ressaltar, que o conceito de cultura adotado nesse estudo

refere-se ao defendido por Geertz em seu livro A interpretação das culturas:

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios

abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando,

como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de

significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas

teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em

busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do

significado (GEERTZ, 2008, p.04).

Assim, entende-se por cultura as várias teias de significado produzidas pelo

homem, sendo que tais teias o amarram. Ao propor um estudo sobre tal cultura, propõe-

se um estudo interpretativo à procura de significados sobre o próprio homem e sobre

sua cultura. A obra literária integra um sistema de comunicação, onde ela produz

significados. Ou seja, o texto literário é entendido como uma prática discursiva, tendo e

vista o que Foucault afirmou, sobre discurso, em seu livro A Ordem do discurso: “o

discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,

mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar

(FOUCAULT, 1996, p.10)”.

2. Sobre o “etnocídio”

Pierre Clastres (2004), em Arqueologia da violência, situa o “etnocídio” como

sendo um termo surgido recentemente para “satisfazer uma necessidade de precisão

terminológica”, porém, a “utilização da palavra ultrapassou ampla e rapidamente seu

lugar de origem, a etnologia, para cair de certo modo no domínio público.” Segundo o

autor, esta nova palavra estava destinada a traduzir uma realidade que nenhum outro

termo exprimia. Justificando que o “genocídio, palavra de uso difundido há muito mais

tempo, já era considerada inadequada ou imprópria a cumprir essa nova exigência”

(CLASTRES, 2004, p.55).

Desde 1946, quando criado o conceito jurídico de “genocídio”, no processo de

Nuremberg, para punir um tipo de criminalidade até então desconhecida e que

configura-se no extermínio dos judeus europeus pelos nazistas alemãs, que o

“genocídio” nasceu enraizado no racismo e foi praticado nas guerras coloniais a partir

de 1945 até os dias atuais. Apesar do “genocídio” antissemita dos nazistas ter sido,

legalmente, o primeiro a ser jugado ele não foi o primeiro a ser praticado, embora tenha

sido essa violência que mais tenha despertado a atenção devido o seu grande rastro

destruidor de povos indígenas desde o descobrimento da América em 1942 até hoje. No

entanto, o “genocídio” nasce enraizado no “etnocídio”. Ambas as violências tem como

base o preconceito à raça e à cultura do outro, considerado inculto, ou inferior em

termos de cultura.

Foi partindo da experiência sobre esse tipo de violência, ocorrida no Continente

Americano, que vários etnólogos e especificamente Robert Jaulin começaram a pensar o

conceito de “etnocídio”. Assim, formulado primeiramente pelo etnólogo Robert Jaulin

em sua obra La Paix Blanche: introduction à l’ethnocide, o “etnocídio” a principio foi

criado para tratar de uma terrível realidade indígena na América do Sul, quando os

índios eram impedidos de praticarem sua língua, sua crença religiosa, em suma, sua

cultura.

Partindo da definição de Jaulin, Clastres diferencia o “etnocídio” do “genocídio”

afirmando que:

Se o termo genocídio remete à idéia de "raça" e à vontade de

extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a

destruição física dos homens (caso em que se permaneceria na

situação genocida), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio,

portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento

de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em

suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os

mata em seu espírito (CLASTRES, 2004, p.56).

O “genocídio” e o “etnocídio” têm em comum visão idêntica de olhar

negativamente para o outro. Ou seja, o outro é a diferença, mas é acima de tudo é a má

diferença. Para Clastres, essas duas atitudes, a “genocida” e a “etnocida”, distinguem-se

pela natureza do tratamento reservado à diferença. Isto é, o espírito “genocida” quer

pura e simplesmente negar a diferença, exterminando os outros porque eles são

considerados maus. Já o espírito “etnocida” admite a relatividade do mal na diferença.

O “etnocida” julga que os outros são maus, mas é possível melhorá-los. Por isso o

“etnocida”, ao visualizar a diferença no outro, obriga-os a se transformarem até que eles

se tornem idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto. Essa negação

etnocida do outro conduz a uma identificação a si (CLASTRES, 2004, p.56).

Depois de um crescente número de denúncias em foros internacionais sobre a

prática do “etnocídio”, como uma perda de identidade cultural na América Latina, que

foi celebrado pela UNESCO, em dezembro de 1981 em Costa Rica, o documento que

tratou expressamente sobre o “etnocídio”, a “Declaração de San José”. O documento

relata que o caso de “etnocídio” é um processo complexo, pois possui raízes históricas,

sociais, políticas e econômicas. Logo, tal documento assim define essa violência

cultural:

El etnocidio significa que a un grupo étnico, colectiva o

individualmente, se le niega su derecho de disfrutar, desarrollar y

transmitir su própria cultura y su própria lengua. Esto implica una

forma extrema de violación masiva de los derechos humanos,

particularmente del derecho de los grupos étnicos al respecto de su

identidad cultural, tal como lo establecen numerosas declaraciones,

pactos y convênios de las Naciones Unidas y sus organismos

especializados, así como diversos organismos regionales

intergubiernamentales y numerosas organizaciones no

gubiernamentales (BONFIN, Guillermo; IBARRA, Mario; VARESE,

Stefano; Et al., 1982, p.23).

Os primeiros a praticarem o “etnocídio” foram os missionários, na América

Latina e em outras regiões. Como propagadores militantes da fé cristã, eles se esforçam

para substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente. As viagens dos

missioneiros, primeiros “etnocidas”, para exploração de continentes e aventuras, embora

que sem intenções capitalistas, adquiriu, de certa forma, uma grande dimensão

econômica. Uma vez que, como afirma Hobsbawm (1977), em A Era do Capital,

Explorar significava não apenas conhecer, mas desenvolver, trazer o

desconhecido e, por definição, os bárbaros e atrasados para a luz da

civilização e do progresso; vestir a imoralidade da nudez selvagem

com camisas e calças, com uma providencial e beneficente manufatura

de Bolton e Roubaix, levar as mercadorias de Birmingham que

inevitavelmente arrastavam a civilização para onde quer que fossem

(HOBSBAWM, 1977, p.66).

A expansão do evangelho, através dos missioneiros, acabou sendo uma prática

lucrativa e favorável ao comércio, e até comprometeu o interesse do Estado, sendo uma

prática beneficente para a relação Igreja-Estado. A imposição da religião Ocidental foi

uma forma de moldar o cidadão aos interesses dessa aliança, em nome da civilização. A

imposição do evangelho foi uma forma de tirar a selvageria do índio e transformá-lo em

um cidadão cristão. Segundo Clastres (2004):

A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a

diferença — o paganismo — é inaceitável e deve ser recusada; a

seguir, que o mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo

abolido. É nisto que a atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro,

mau no ponto de partida, é suposto perfectível, reconhecem-lhe os

meios de se alçar, por identificação, à perfeição que o cristianismo

representa. Eliminar a força da crença pagã é destruir a substância

mesma da sociedade. Aliás, é esse o resultado visado: conduzir o

indígena, pelo caminho da verdadeira fé, da selvageria à civilização. O

etnocídio é praticado para o bem do selvagem. [...] A espiritualidade

do etnocídio é a ética do humanismo (CLASTRES, 2004, p. 57).

O espaço no qual se destacam o espírito e a prática “etnocidas” é determinado

segundo duas sentenças: a primeira proclama a hierarquia das culturas, há as que são

inferiores e as que são superiores; e a segunda endossa a superioridade absoluta da

cultura ocidental, em que a cultura dominante só pode manter com as outras e, em

particular, com as culturas primitivas, uma relação de negação. Para o “etnocida”, trata-

se de uma negação positiva, no sentido de que ela intenciona suprimir o inferior

enquanto inferior para içá-lo ao nível do superior (CLASTRES, 2004, p.57).

A prática do “etnocídio” parte de uma visão etnocêntrica, já que avalia e julga as

diferenças culturais a partir de um modelo de cultura. Por isso Clastres afirma que o

“Ocidente seria etnocida porque é etnocêntrico, porque se pensa e se quer a civilização”.

A sociedade ocidental é considerada a mais etnocida de todas as outras porque ela

constitui uma sociedade com Estado, diferentemente da sociedade bárbara, por

exemplo, já que o “etnocídio” resulta na “dissolução do múltiplo no um”. A nação é

constituída, ou o Estado é detentor do poder, quando as pessoas, sobre as quais se

exerce a autoridade do Estado, falam a mesma língua. E nesse processo ocorre a

supressão das diferenças culturais (CLASTRES, 2004, p.59).

A nação é construída a partir de um sentimento coletivo de nacionalismo. Um

nacionalismo que tem como regra o compromisso de dever político de seu povo à

organização política que abrange e representa a sua nação, de maneira que tal

compromisso supera as outras obrigações públicas e qualquer outro tipo de obrigação. A

nação é uma invenção. As nações criadas para classificar os homens como um destino

político acabam se constituindo como um mito, uma vez que em nome de nacionalismo,

ocorre a supervalorização de uma cultura sobre outra e, às vezes, ao adotar culturas

preexistentes e transforma em nações, algumas vezes as inventa e frequentemente

suprimi outras culturas preexistentes(GELLNER apud HOBSBAWM, 1917, p. 18).

Nesse contexto, o “etnocídio”, supressão das diferenças sócio-culturais, insere-se

na natureza e no funcionamento do Estado, a fim de uniformizar a relação que os

indivíduos mantêm com este. Ou seja, a violência “etnocida” pertence essencialmente

ao Estado. Logo, toda organização estatal é “etnocida”, uma vez que o “etnocídio” é o

modo normal de existência do Estado. Há, portanto certa universalidade do “etnocídio”,

no sentido de ser característico não apenas de um vago "mundo branco" indeterminado,

mas de todo um conjunto de sociedades que são as sociedades com Estado. A reflexão

sobre o “etnocídio” passa por uma análise do Estado (CLASTRES, 2004, p.61).

A violência “etnocida” se dá em uma disputa hegemônica de poder, em que a

construção das identidades do sujeito colonizador, ou dominador, o “etnocida”, e o

sujeito colonizado, ou dominado, aquele que é vítima do “etnocídio”, se dá a partir da

relação ao desejo de existir para o outro, onde: de um lado o dominador não quer perder

o lugar para o dominado, e ver o “etnocídio” como uma solução de manter-se no poder

e fazer o outro submeter-se a ele; e do outro lado, o dominado anseia alcançar a posição

ou o nível cultural do colonizador e aceita o “etnocídio” vendo nele uma forma de

realizar esse desejo. No final acaba não sendo nem o primeiro (o colonizador), e nem

mais o segundo (o colonizado), mas sim um terceiro, isto é, um sujeito híbrido. Logo, a

submissão ao outro se dá a partir do objeto de desejo, que é a cultura do outro, e não

como um destino sofrido do exterior.

Em síntese, pode-se dizer que, ao fazer a análise da representação do “etnocídio”

nas obras coloniais é preciso ter em mente que o “etnocídio” é uma violência com

intuito de dominação cultural, só que diferente do “genocídio”, o “etnocídio” é um

violência “disfarçada”, uma vez que o “etnocida” acredita estar fazendo o bem ao

exercê-lo. Tal prática justifica-se na supervalorização de umas culturas sobre outras.

Para o “etnocida” a sua cultura é a boa e a do outro é a má. Por isso, aquele que pratica

o “etnocídio” tenta mudar o outro acreditando está fazendo o bem ao impor sobre o

outro a sua cultura.

3. Perspectiva de análise do “etnocídio” na literatura brasileira

Análise o “etnocídio” na literatura brasileira é um desafio necessário para se

compreender a hegemonia cultural que ocorreu e ocorre até os dias atuais, e assim

entender como se constituiu o modelo cultural no qual se insere nossa sociedade cada

dia mais capitalista. A colonização indígena e africana se deu com base no “etnocídio”.

Se pretendermos analisar a representação do “etnocídio” na literatura brasileira,

temos várias obras colonialistas que podem servir de fonte para análise. Os Sermões do

Padre Antônio Vieira é um bom começo para compreender como se deu o “etnocídio”

praticado pelos primeiros missioneiros no Brasil colonial.

3.1 A intenção “etnocida” no “Sermão da sexagésima”, do Padre Antônio Vieira

O padre Antônio Vieira foi um missionário de destaque na Companhia de Jesus.

Ele é consensualmente considerado uma das personagens mais importantes da história

de Portugal e do Brasil no século XVII. Vieira, ao falar de sua vida, o faz

considerando-a como uma comédia irônica, ao afirmar que “Não há maior comédia que

a minha vida: e quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças a Deus ou

zombar do mundo, não tenho mais que olhar pra mim” (VIEIRA apud ABREU, 2009,

p.17).

O jesuíta, além de membro da companhia de Jesus, desempenhou vários ofícios:

foi pregador e mestre exímio da língua portuguesa, a ponto de ser reconhecido por

Fernando Pessoa como o “Imperador da Língua Portuguesa”; foi um diplomata da

restauração de Portugal, pois como jesuíta e homem do púlpito desempenhou o ofício

de embaixador itinerante ao serviço da causa da restauração da independência nacional;

foi considerado amigo de judeus e cristãos novos por defendê-los, pois percebia que

estes eram importantes na reorganização da atividade comercial e financeira de

Portugal, recém restaurado, e na consolidação de sua independência. Tanto na Europa

como nas colônias, Vieira foi um grande evangelizador e defensor dos índios, uma

missão que ele empenhou com grande esmero e dedicação; foi profeta do Quinto

Império, pois, em um país mergulhado nas ondas do sebastianismo, exortou em seu

sermão “Felicidades de Portugal, juízo dos anos que vêm” o retorno desse império; e

por fim, foi vítima do Santo Ofício, pois se os inquisidores viviam da fé, os jesuítas

morriam por ela (ABREU, 2009, p.17-25).

O estudo de sua obra é indispensável para compreender a sociedade brasileira no

século XVII e, principalmente, entender como se deu as primeiras práticas de

“etnocídio” que ocorreu pelos missionários aqui no Brasil nesse período. Já que foram

esses os jesuítas os propagadores militantes da fé cristã que se esforçaram para

substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente, isto é, pela fé

católica.

Pois, se os apóstolos hão de agradar a todas as criaturas, hão de pregar

também aos brutos? Hão de pregar também aos troncos? Hão de

pregar também às pedras? Também, diz Cristo: Omni Creaturae; não

porque houvessem os apóstolos de pregar às pedras, e aos troncos, e

aos brutos, mas porque haviam de pregar a todas as nações e

línguas bárbaras e incultas do mundo, entre as quais haviam de

achar homens tão irracionais como os brutos, e tão insensível como os

troncos, e tão duros e estúpidos como as pedras (VIEIRA, 2000-b,

p.420 – grifo meu).

Em seus Sermões é nítida a preocupação com os efeitos da pregação do

evangelho na vida social. Conforme ele mesmo prega, em seu conhecido Sermão da

Sexagésima, os sermões são ou devem ser um instrumento divino destinado à expansão

do cristianismo, à correção dos erros dos cristãos, à construção de uma sociedade

efetivamente católica, à salvação eterna. Em O sermão do décimo-quarto da série do

rosário, o missionário adverte que “ninguém pode subir ao céu, senão incorporando-se

com Cristo como todos nos incorporamos com ele, e nos fazemos membros do mesmo

Cristo por meio da fé e do Batismo [...]” ( VIEIRA, 2000-a, p. 645).

Assim, Vieira recomendava aos reticentes para que agissem conforme a palavra

de Deus, e via no batismo, que consiste na confirmação da conversão ao catolicismo, ou

seja, entrega total de corpo e espírito ao Deus do cristianismo. Demonstrando a

convicção de que somente agindo dessa forma poderiam herdar o prêmio da vida eterna.

O padre Antônio Vieira acreditava fielmente que era preciso converter o mundo.

Para ele, assim como qualquer pessoa que empreende o etnocídio, tal conversão seria

um bem que ele poderia fazer humanidade. Já que, na perspectiva de seus agentes, o

etnocídio é uma tarefa necessária para elevar o outro, considerado inferior, à mesma

condição cultural.

Nos sermões de Vieira percebe-se o desejo etnocida, uma vez que o padre adota

como missão o desejo de mudar a cultura do outro, ou seja, de que o evangelho alcance

todas as pessoas do mundo e as converta à religião Ocidental, ao cristianismo.

Tal missão justifica-se pela crença de que o único caminho para a salvação é

através da conversão à religião católica, e por isso o jesuíta tem como lema missionário

a “obrigação de pregar o evangelho a toda criatura”. A fim de cumprir tal missão

acabaram impondo violentamente o evangelho do cristianismo como uma forma de tirar

a selvageria do índio e transformá-lo em um cidadão cristão. Assim, o etnocídio se

realiza a partir de tal conversão.

Vieira sempre defendeu que a palavra falada ou escrita, tem o poder de intervir

na sociedade como força posta ao serviço da transformação dos costumes (ABREU,

2009, p.21). Segundo as palavras metafóricas do orador inaciano o Sermão é a palavra,

e esta é a semente que deve ser bem plantada e cuidada, para que venha a gerar frutos

nos corações daqueles que a ouve, conduzindo-os à conversão ao Cristianismo. E com

isso à efetivação da prática etnocida.

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um

de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou

da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão,

há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a

doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento,

percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um

homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e

luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se

tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz.

Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a

conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se

a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é

necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a

doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre

com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das

almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus,

do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta?

Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?

(Padre Antônio Vieira, em Sermão da Sexagésima, 1965).

Vieira pregava que apesar de no Brasil os missionários encontrar facilidade em

converter os índios, havia uma necessidade de trabalhos contínuos de evangelização

para que estes permanecessem convertidos, pois muitos desses nativos, recém-

convertidos à fé cristã, acabavam tendo uma recaída a sua cultura de origem. Assim,

conforme suas palavras, para Vieira

Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais

dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados;

resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com

a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande

trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que

receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de

mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações,

pelo contrário – e estas são as do Brasil – que recebem tudo que lhes

ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem

replicar, sem duvidar, sem resistir, mas são estátuas de murta que, em

levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura,

e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É

necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez,

que lhes cortem o que vicejam os olhos, para que creiam o que não

vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que

não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes

decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das

ações e costumes bárbaros e gentilidade. E só desta maneira,

trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se

pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura

dos ramos ( VIEIRA, 2000-b, p. 425).

Em O sermão da quinta-feira da quaresma, Vieira atribui à criação de Portugal

como uma obra divina que justificará a prática evangelizadora dos jesuítas portugueses

que se empenharam em suas missões por todo o mundo à conversão dos povos

considerados bárbaros que habitavam os continentes Asiático, Africano e Americano.

Os missionários dedicaram-se para que, através da evangelização, os idólatras aos falsos

Deuses fossem convertidos ao o único e verdadeiro Deus, o do cristianismo.

Para que fez Deus Portugal, e para que levantou no mundo esta

monarquia, senão para desfazer ídolos, para converter idólatras, para

desterrar idolatrias? Assim o fizemos e fazemos, com glória singular

do nome cristão, nas Ásias, nas Áfricas, nas Américas. Mas como se

os mesmos ídolos se vingaram de nós, derrubamos as suas estátuas, e

eles pegaram-nos as suas cegueiras. Cegos, e com os olhos abertos,

como ídolos: Oculos habent et non videbunt. Cegos, e com os olhos

abertos, como o povo de Israel: Populum caecum, et oculos habentem.

Cegos, e com olhos abertos, como Saulo: Apertis oculis, nihil videbat.

E cegos finalmente, e com os olhos abertos, como os escribas e

fariseus: Ut videntes caeci fiant (VIEIRA, p. 240).

Em Sermão da Rainha Santa Isabel, ele fala sobre o ato de converter como um

poder divino. Assim, o etnocídio será moldado e não visto como uma violência cultural,

mas algo superior à humanidade, um ato divino. Conforme diz o Padre Vieira:

Porque o domínio de um reino, e de muitos reinos, e de todos os

reinos, cabe na jurisdição de um homem rei; mas converter uma

substância em outra é poder mais que humano, é poder mais que real,

é poder divino. Tais foram neste caso os poderes daquela rainha, sobre

todos os reis e rainhas do mundo. Mas ainda não está ponderado o fino

da maravilha (VIEIRA, p. 435).

3.2 A prática “etnocida” em O Guarani e Iracema, de José de Alencar

Bosi (1992) aos analisar a trilogia indianista de Alencar, apresenta argumentos

coerentes para afirmar que a ficção romântica brasileira mais representativa não passou

de um “mito sacrificial”. O autor referia-se às obras O Guarani e Iracema. Para o autor,

o mais correto, no imaginário pós-colonial, é que o índio fosse retratado como um

selvagem rebelde diante do colonizador. Afinal, era o índio nativo por excelência em

face o invasor, o americano, mas não foi isso que se sucedeu, como enfatiza Bosi

(1992):

O índio de Alencar entra em intima comunhão com o colonizador.

Peri e, literal e voluntariamente, escravo de Ceci, a quem venera como

sua Iara, ' 'senhora'', e vassalo fidelíssimo de dom Antonio. No

desfecho do romance, em face da catástrofe iminente, o fidalgo batiza

o indígena, dando-lhe o seu próprio nome, condição que julga

necessária para conceder a um selvagem a honra de salvar a filha da

morte certa a que os aimorés tinham condenado os moradores do

solar: A conversão, acompanhada de mudança de nome, ocorre

igualmente com o índio Poti, de Iracema, batizado como Antonio

Felipe Camarão, o futuro herói da resistência aos holandeses (BOSI,

1992, p.177)

Tanto em Iracema como em O Guarani a entrega do índio ao branco

colonizador é incondicional e justificado pelo amor romântico. Por esse amor os índios

se entregam de corpo e alma, sacrificam suas vidas, abandonam sua família e traem sua

tribo de origem. É uma partida sem retorno.

3.2.1 O heroísmo na conversão ao cristianismo em “O Guarani”

Entendendo o “etnocídio” como uma forma de destruição dos modos de vida e

pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em O

Guarani, de José Alencar, o “etnocídio” consiste no processo de supressão da

indianidade tendo-se em vista a invenção do cidadão brasileiro, muito embora, na

perspectiva de seus agentes, o extermínio não seja assumido, propriamente, como

“etnocídio”. Trata-se, ao contrário, como afirma Pierre Clastres (2004) de uma tarefa

necessária, exigida pelo humanismo inscrito no núcleo da cultura ocidental. Assim, em

O Guarani a prática do “etnocídio” justifica-se pelo princípio do amor romântico,

traduzido na devoção quase religiosa que Peri sente pela virgem Cecilia.

Na narrativa heroica e romântica envolvendo Peri e Cecília, o índio irá assumir a

posição do servo amoroso das cantigas medievais. Tal como se idealizava na prática do

amor cortês, o protagonista passará a idolatrar a moça branca como se fosse a imagem

da virgem sagrada. Apresentando a face doce da dominação cultural, Ceci lhe ordenará,

em princípio, que o índio aceite como sua a casa de seus pais e, assim, abandone a

própria tribo. Uma vez, ao lado da família Portuguesa, vivendo em função de um amor

platônico, o índio se afastará, irreversível e gradativamente, de sua cultura original.

Assim, o amor de Peri por Ceci e a força sobre-humana que ela exerce sobre ele a

transformará em uma etnocida funcional.

Segundo Clastres (2004), o “etnocida” reconhece a relatividade do mal na

diferença, para ele os outros são maus. Em O Guarani o mal é representado pelo índio

em sua essência primitiva, isto é, aquele que vive e compartilha de sua cultura indígena,

e tem o colonizador como um inimigo. Na narrativa indianista, os maus são

representados pelos considerados selvagens e vingativos Aimorés, que colocavam em

risco a vida de Ceci e de sua família quando buscaram vingança pela morte de sua

princesa causada, acidentalmente, pelo irmão de Cecília.

Na visão do narrador, que se identifica ou, pelo menos, parece simpatizar com a

visão do colonizador, apesar de serem maus, os Aimorés poderiam vir a ser convertidos,

como aconteceu com Peri, mas para isso seria necessário algo que desencadeasse a

mudança. No caso de Peri, o amor incondicional é o grande estandarte da mudança

consentida. Em função desse amor, Peri está disposto a matar não somente a sua

cultura, como também o próprio corpo.

Em função desse amor exacerbado e idealizado será legitimado o etnocídio do

índio Peri. A prática etnocida, na narrativa, se constitui a partir de dois eventos, que

definem a destruição da identidade cultural de Peri: o abandono da tribo e a assimilação

linguística e cultural. Como afirma Antônio Candido, dentre outras coisas, José de

Alencar abordou a questão da identidade pelo aspecto fundamental da linguagem

(CANDIDO, 2004). Afinal, conduzir o colonizado a falar a mesma linguagem que o

colonizador era um fator importante e decisivo na construção da nação brasileira que se

pretendia formar.

Em O Guarani, a propósito, o processo “etnocida” começa quando ocorre a

supressão da fala original do índio, que aos poucos substituirá o dialeto indígena pelo

português. A propósito, já no primeiro contato entre Peri e a família de Cecília, ocorrido

quando a jovem é salva da morte por um ato heroico do índio, ressalta-se a alteridade

linguística do protagonista.

Por ordem da amada Cecília, Peri abandona a vida ao lado de seu povo, a sua

casa e a sua mãe, para viver uma vida de servidão e renúncia. Pela jovem o índio deixa

sua tribo para viver na casa do colonizador. A ordem dada, contudo, não é o resultado

de um amor correspondido, mas sim fruto da gratidão e do estranho prazer de ordenar,

tal como fica expresso. Ao amor incondicional de Peri, Cecília opõe, inicialmente,

repugnância, ingratidão e antipatia, sentimentos que serão superados após três meses de

convivência com o herói:

Passaram três meses.

Cecília que um momento conseguira vencer a repugnância que sentia

pelo selvagem, quando lhe ordenara que ficasse, não se lembrou da

ingratidão que cometia e não disfarçou mais a sua antipatia.

Quando o índio chegava-se a ela, soltava um grito de susto; ou fugia,

ou ordenava-lhe que se retirasse; Peri que já falava e entendia o

português, afastava-se triste e humilde (ALENCAR, 1999, p.77).

O primeiro olhar de Cecília para Peri é pelos olhos da diferença. Ao visualizar a

diferença no índio, Ceci é tomada por sentimentos de recusa. Não obstante, embora

tivesse incorporado os hábitos do cavalheiro português, Peri lembrava-se com certo

saudosismo de sua condição original, “de sua tribo, de seus irmãos que ele havia

abandonado há tanto tempo, e que talvez àquela hora fossem também vítimas dos

conquistadores de sua terra” (ALENCAR, 1999, p. 51). No entanto, as lembranças de

seu povo e de sua tribo não eram suficientes para fazê-lo retornar ao convívio de seu

povo, pois o único sentimento de “pertença” que lhe restava ligava-se ao seu vínculo

emocional com Cecília: “— Peri só ama o que a senhora ama; porque só ama a senhora

neste mundo: por ela deixou sua mãe, seus irmãos e a terra onde nasceu” (ALENCAR,

1999, p.85).

A propósito, vale observar o triângulo estabelecido entre o protagonista, sua

mãe, a personificação da cultura autóctone, a quem Peri abandona por Ceci, por sua vez,

a personificação da Virgem que o herói vira em meio a um combate contra a tribo

inimiga:

A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável;

sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa

Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia

personificado em Cecília.

Sentiu que ia perder o filho, orgulho de sua velhice, como Ararê tinha

sido o orgulho de sua mocidade. Uma lágrima deslizou pela sua face

cor de cobre.

— Mãe, toma o arco de Peri; enterra junto dos ossos de seu pai: e

queima a cabana de Ararê.

— Não; se algum dia Peri voltar, achará a cabana de seu pai, e sua

mãe para amá-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o

filho de Ararê ao campo onde nasceu.

Peri abanou a cabeça com tristeza:

— Peri não voltará! (ALENCAR, 1999, p.76)

Cumpre por fim ressaltar a relação entre colonização e cristianização tal como

esta se configura na narrativa de Alencar. Nesse caso, aculturar-se corresponde a

cristianizar-se, sendo uma coisa condição sine qua non da outra. Revive-se, assim, no

romance, o mesmo argumento que justificou a expansão ultramarina e o consequente

processo de colonização portuguesa, sendo, em O Guarani, a conversão à religião do

colonizador, o bem do amor com que Peri será recompensado. As boas intenções de

Ceci, no entanto, não deixam de expressar a atitude etnocida aí subjacente:

Educada no fervor religioso de sua mãe, embora sem os prejuízos que

a razão de D. Antônio corrigira no espírito de sua filha, Cecília tinha a

fé cristã em toda a pureza e santidade. Por isso se afligia com a idéia

de que Peri, a quem votava uma amizade profunda, não salvasse a sua

alma, e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia

suas preces. (ALENCAR, 1999, p.124)

E, na sequência:

Conhecia que a razão, por que sua mãe e os outros desprezavam o

índio, era o seu gentilismo; e a menina no seu reconhecimento queria

elevar o amigo e torná-lo digno da estima de todos. Eis a razão por

que ficara triste; era a gratidão por Peri, que defendera sua vida de

tantos perigos, e a quem ela queria retribuir salvando a sua alma.

(ALENCAR, 1999, p.124)

Cecília encarna a atitude e o pensamento do colonizador, na medida em que

submete o objeto de sua apreciação afetiva à total negação cultural. Durante a narrativa,

Peri expressa bem a recusa de atender ao desejo “etnocida” de sua amada quando resiste

à conversão. No entanto, esta recusa tinha uma única razão: a de proteger a amada. O

cumprimento da promessa de conversão se dá no instante em que Cecília se vê

ameaçada de morte pelos guerreiros indígenas Aimorés. Elevando-se, assim, a

conversão de Peri ao cristianismo a um ato heroico. Dessa forma, o índio terá,

finalmente, não somente a alma de um cavalheiro português, como também o nome, isto

é, o nome que lhe dá por empréstimo o colonizador.

Logo, em O Guarani, o “etnocídio” se institui a partir de dois processos

estruturantes: a renúncia e a assimilação cultural. Tais eventos apontam para a perda do

sentimento de “pertencimento” cultural, que, no caso, é substituído pela condição cativa

do pertencimento espiritual ao outro que encarna a posição do dominador. Para Peri, a

negação cultural é um sacrifício necessário à prática do amor romântico, incondicional,

que ele nutre pelo seu outro espiritual. Para Ceci, em contrapartida, o etnocídio é um

meio positivo de elevar Peri à condição de igual perante a ideia de Deus cristã.

Conclui-se que o etnocídio observado em O Guarani, e do qual Peri é vítima,

acaba sendo elevado a um ato de heroísmo quando este aceita à religião Ocidental como

sua. A esse ato heroico foi concedido um prêmio ao herói Peri. O prêmio da salvação

eterna.

3.2.2 A virgem dos Lábios de Mel e a doce escravidão

Assim como em O Guarani, em Iracema, a heroína indígena também se

submete à cultura do outro. Por Martim, o estrangeiro, a virgem dos lábios de mel,

abandona sua pátria, a nação Tabajara, e a religião, da qual era virgem sacerdotisa, e

guardiã do segredo de jurema.

Em Iracema o “etnocídio” está relacionado à construção da nação brasileira.

Nessa obra, Alencar retoma a lenda do Ceará para narrar as origens do Brasil a partir da

união simbólica entre o branco colonizador e o índio. Ou seja, a união entre a cultura

Ocidental e a cultura indígena que, conforme a perspectiva do narrador, dará início à

cultura brasileira.

No entanto, é possível constatar que tal união se dá a partir da submissão e

renúncia da índia ao branco. A esse respeito, Machado de Assis comenta a respeito de

Iracema: “Não resiste, nem indaga: desde que os olhos de Martim se tocaram com os

seus, a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão” (apud BOSI, 1992, p.178).

Assim, a submissão da selvagem ao branco é retratada também como um ato heroico,

configurando um mito sacrificial.

Diante disso, seria um exagero pensar o etnocídio em Iracema, já que a índia

não se converte à religião cristã? Talvez não. Embora a origem do “etnocídio” esteja

relacionada a esse tipo de conversão, da cultura indígena à cultura cristã, não significa

que essa seja a única forma de imposição de uma cultura a partir da negação de outra.

Pois sendo o “etnocídio” entendido como a mudança de vida de um povo, na história da

virgem indiana há uma grande mudança cultural, principalmente, no que diz respeito ao

estilo de vida que a índia possuía na cabana de Araquém, antes da chegada do cristão

Martim. Na narrativa Iracema não era como as outras moças virgens de sua aldeia, e

logo Martim passa a conhecer o fato:

O pajé vibrou o maracá, e saiu da cabana, porém o estrangeiro não

ficou só.

Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de

Araquém, e os guerreiros vindos para obedecerlhe.

— Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante

a noite; e o Sol traga luz a teus olhos, alegria à tua alma.

E assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida a pálpebra.

— Tu me deixas? perguntou Martim.

— As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam.

— Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à

cabana do pajé.

— Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o

segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé

a bebida de Tupã.

O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.

A grande taba erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da

alegria. Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a

dança em trono a rude cadência. O pajé inspirado conduzia o agrado

tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã( ALENCAR,

1998, p. 21).

Iracema era identificada como alguém de uma grande representação cultural

para seu povo. Afinal, ela era a virgem sacerdotal, guardiã do segredo de Jurema e

protetora de seu povo, quase uma divindade. Através dela falava o Deus Tupã. Era

compartilhada a crença de que a índia possuía uma força sobrenatural. Ela reconhece

sua força quando disse a Martim, diante da ameaça de Arapuã, o chefe guerreiro

tabajara, que “A filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse

Iracema travando da inúbia. Ela tem aqui a voz de Tupã, que chama seu povo”

(ALENCAR, 1998, p.30).

Martim, protegido pela princesa indígena, passou a conhecer a força da moça e

também sua fraqueza. O inimigo Arapuã diz aquilo que o moço branco, encantado pela

índia, já temia: “Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela

morrerá; mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém lhe tocará, todos o servirão”

(ALENCAR, 1998, p. 46). Com a índia, Martim está protegido. Já Iracema, com branco,

está sujeita à morte.

Na narrativa alencariana é passada uma ideia de inocência do colonizador

português. Isso é bem visível no momento em que Iracema se entrega a Martim que

estava sonolento sem forças para resistir ao amor, pois havia bebido licor de jurema que

oferecido pela índia.

No decorrer da narrativa, ao se entregar ao amor por Martim e com isso trair sua

religião e sua tribo, Iracema será reduzida a uma condição naturalmente feminina.

Como mulher, a índia sofre silenciosamente por ser desprezada por Martim, que

nostálgico abandona a índia e, quando retorna, encontra-a em seus últimos suspiros

vitais, desfalecendo e morrendo pela dor da saudade. Dos braços da jovem índia Martim

recolhe seu filho Moacir, que, vale ressaltar, recebeu esse nome por ser filho do

sofrimento da índia.

Por Moacir, o filho mestiço, Iracema sofreu amamentando com o próprio

sangue. Moacir representa o povo brasileiro nascido da relação romântica da

Colonização. Metaforicamente, um povo alimentado com o sangue da cultura que o

gerou, considerando Iracema como a representação cultural indígena que, assim como

sua cultura, morre em nome dessa união que dará origem à nação brasileira.

Nesse contexto de simbolização, Iracema representa a cultura e o povo indígena,

este retratado, pela ideologia romântica, como o índio submisso ao estrangeiro e traidor

de suas origens nativas, que se comporta favoravelmente diante do outro colonizador.

Martim representa a cultura e o povo Ocidental, este enfeitiçado pela mitologia indígena

e seduzido pela beleza exótica das índias.

Apesar de Iracema não converter-se ao cristianismo, a intenção “etnocida” de

Martim é denunciada no último capítulo da narrativa quando o moço Cristão retorna ao

Ceará, conforme havia prometido a Poti, irmão de Iracema. Os guerreiros indígenas

aguardavam o retorno do branco, e a promessa logo é cumprida conforme demonstra o

trecho abaixo:

Poti com seus guerreiros esperava na margem do rio. O cristão lhe

prometera voltar. Todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia

os olhos ao mar a ver se branqueava ao longe a vela amiga.

Afinal volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade, e

são agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das

brancas areias, derramou-se por todo seu ser um fogo ardente, que lhe

requeimou o coração: era o fogo das recordações acesas.

A chama só aplacou quando ele tocou a terra onde dormia sua esposa;

porque nesse instante seu coração transudou, como o tronco do jataí

nos ardentes calores, e refrescou sua pena de lágrimas abundantes

(ALENCAR, 1998, p. 121).

De volta ao Ceará, Martins, na companhia dos índios, funda “o mairi dos

cristãos”, ou seja, a cidade cristã, conforme lê-se na narrativa:

Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para

fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua

religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.

Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria

ele que nada mais o separasse de seu irmão branco; por isso quis

tivessem ambos um só deus, como tinham um só coração.

Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei,

a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos.

Sua fama cresceu, e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele viu a luz

primeiro.

A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará,

medrou. A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e

o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá.

Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu

amigo branco; Camarão assentou a taba de seus guerreiros nas

margens da Mocejana.

Tempo depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos

guerreiros brancos, Martim e Camarão partiram para as margens do

Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia.

Em Iracema, narrativa mítica da fundação da nação brasileira, a prática

“etnocida” ocorre quando há a dissolução do múltiplo no um, ou seja quando há a

supressão das diferenças para que a nação venha ser constituída. Isso é uma

característica da sociedade Ocidental, que para deter o poder estatal busca suprimir as

diferenças culturais. Tal narrativa se fortalece como o mito do nacionalismo, pois

pretende explicar a história de um Brasil que, ao logo de sua história, supervalorizou a

cultura do Ocidente em relação à cultura indígena.

Na narrativa mítica de Alencar, o “etnocídio”, supressão das diferenças culturais,

insere-se na natureza e no funcionamento do Estado com o propósito político de

uniformizar a relação que os brasileiros mantêm com este, como se o nacionalismo

justificasse o etnocídio. Passando a ideia de que o sacrifício é preciso em nome da

construção da nação.

4. Considerações finais

Conclui-se “genocídio” e “etnocídio” têm em comum o sentido de destruição ou

morte. Contudo, no primeiro caso, trata-se da morte carnal ou física, e, no segundo, da

morte espiritual ou da cultura. Assim, etnocídio pode ser traduzido como destruição

sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que

empreendem essa destruição.

Nos Sermões do padre Antônio Vieira percebe-se a intenção etnocida no desejo

de conversão dos índios ao cristianismo. Em O Guarani e Iracema de José de Alencar,

o “etnocídio” consiste no processo de supressão da indianidade tendo-se em vista a

invenção do cidadão brasileiro, muito embora, na perspectiva de seus agentes, o

extermínio não seja assumido, propriamente, como “etnocídio”. Trata-se, ao contrário,

como afirma Clastres (idem) de uma tarefa necessária, exigida pelo humanismo inscrito

no núcleo da cultura ocidental.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Wlamyra. de; FRAGA FILHO Walter. Uma história do negro no

Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais;Brasília: Fundação Cultural

Palmares, 2006.

ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: Ateliê, 1999.

_______. Iracema. Rio de Janeiro: Recorde, 1998.

ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a

difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BANDEIRA, Manuel. Noções de história das literaturas. 5.ed. Rio de Janeiro: Fundo

de Cultura S.A., 1960.

_______. Sextilhas Românticas. In. Literatura comentada: seleção de textos, notas,

estudos biográficos, histórico e crítico por Selete de Almeida Cara. 2.ed. São Paulo:

Nova Cultural, 1988.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila et alli. Belo

Horizonte: UFMG, 1998.

BONFIN, Guillermo; IBARRA, Mario; VARESE, Stefano; Et al. Declaración de San

José sobre etnodesarrollo y etnocidio en America Latina. In. América Latina:

etnodesarollo y etnocidio. Edição: Flacso (Francisco Rojas Aravena). San José, C.R.

EUNDE, 1982, p. 21-27.

CANDIDO, Antonio. O Romantismo no Brasil. 2.ed. São Paulo : Humanitas /

FFLCH, 2004.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4.ed. ver.e ampliada. São

Paulo: Ática, 2006.

CLASTRES, Pierre. Do Etnocídio. In. Arqueologia da violência: pesquisas de

antropologia política. Cosac & Naify, 2004. Trad. de Paulo Neves.

FANON, Frantz. Pele negra e máscaras Brancas. Tradução de Renato Silveira.

Salvador: EDUFBA, 2008.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida

Sampaio. 3.ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra. In. Diáspora: identidades e

mediações culturais. LIV, Sovik (org.).1ª ed. Atual. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2009.

JAULIN, Robert. La Paz Blanca – Introdución al etnocídio. Buenos Aires: Tiempo

Contemporaneo, 1973.

NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 3ª. edição. São

Paulo: EdUSP, 2010.

VIEIRA, Antonio. Sermão do décimo-quarto da série do Rosário. In. Sermões. vol.I.

São Paulo: Hedra, 2000 – a.

_______. Sermão do Espírito Santo. In. Sermões. vol.I. São Paulo: Hedra, 2000 – b.

_______. Sermão da Sexagésima. In. Sermões escolhidos – vol. II, Edameris: São

Paulo, 1965.