devido processo legal substancial -...

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PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON Rua José Maria Lisboa, n.860, 13º andar, cjs. 131-132, CEP 01423-001, Jardim Paulista, São Paulo, SP, Tel/fax: (011) 3889-9111 [email protected] 1 Devido processo legal substancial e efetividade do processo Paulo Henrique dos Santos Lucon Advogado. Mestre e Doutor em direito processual na FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Professor Doutor de direito processual civil na FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Especializou-se em direito processual civil na Universidade Estatal de Milão, com o Prof. GIUSEPPE TARZIA, sucessor do Prof. ENRICO TULLIO LIEBMAN na cátedra. Diretor do INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PROCESSUAL - IBDP. Membro do INSTITUTO IBERO- AMERICANO DE DIREITO PROCESSUAL IIDP. Membro da INTERNATIONAL ASSOCIATION OF PROCEDURAL LAW. Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. [email protected] Sumário: 1. Princípios constitucionais 2. Significado do devido processo legal: a) premissas; b) devido processo legal na sua acepção tradicional: procedural due process – devido processo legal processual; c) devido processo legal substancial. 3. Due process of law: convergência de todos os princípios, garantias e exigências do processo civil. 4. Projeções do devido processo legal substancial – do abstrato ao concreto: I) limitação ao poder legislativo: controle difuso e concentrado de constitucionalidade II) limitação ao poder administrativo: controle dos atos administrativos III) limitação ao poder jurisdicional: a) motivação das decisões; b) violação do direito à prova; c) repeito à competência;

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PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON

R u a J o s é M a r i a L i s b o a , n . 8 6 0 , 1 3 º a n d a r , c j s . 1 3 1 - 1 3 2 , C E P 0 1 4 2 3 - 0 0 1 , J a r d i m P a u l i s t a ,

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1

Devido processo legal substancial e efetividade do processo

Paulo Henrique dos Santos Lucon

Advogado. Mestre e Doutor em direito processual na FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Professor Doutor de direito processual civil na FACULDADE DE

DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Especializou-se em direito processual civil na Universidade Estatal de Milão, com o Prof. GIUSEPPE TARZIA, sucessor do Prof. ENRICO TULLIO

LIEBMAN na cátedra. Diretor do INSTITUTO BRASILEIRO DE

DIREITO PROCESSUAL - IBDP. Membro do INSTITUTO IBERO-AMERICANO DE DIREITO PROCESSUAL – IIDP. Membro da INTERNATIONAL ASSOCIATION OF PROCEDURAL LAW. Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. [email protected]

Sumário: 1. Princípios constitucionais 2. Significado do devido processo legal: a) premissas; b) devido processo legal na sua acepção tradicional: procedural due

process – devido processo legal processual; c) devido processo legal substancial. 3. Due process of law: convergência de todos os princípios, garantias e exigências do processo civil. 4. Projeções do devido processo legal substancial – do abstrato ao concreto: I) limitação ao poder legislativo: controle difuso e concentrado de constitucionalidade II) limitação ao poder administrativo: controle dos atos administrativos

III) limitação ao poder jurisdicional: a) motivação das decisões; b) violação do direito à prova; c) repeito à competência;

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d) relativização da coisa julgada (o parágrafo único do art. 741 e o § 1º do art. 475-N); IV) igualdade substancial: a) assistência judiciária b) inversão do ônus da prova 5. Conclusão 1. Princípios constitucionais

A questão que se coloca hoje é saber como os

princípios e as garantias constitucionais do processo civil podem garantir

uma efetiva tutela jurisdicional aos direitos substanciais deduzidos

diariamente. Ou seja, não mais interessa apenas justificar esses princípios

e garantias no campo doutrinário. O importante hoje é a realização dos

direitos fundamentais e não o reconhecimento desses ou de outros

direitos.

Os princípios têm a função de organizar o

sistema jurídico, atuando como elo responsável por demonstrar os

resultados escolhidos pela nação, sendo inegável seu caráter

prevalentemente axiológico. Daí a razão pela qual os valores atuais de

uma nação determinam a real extensão e interpretação dos princípios.

Por outro lado, estão os princípios

consubstanciados, de algum modo, em normas, porque se não estiverem

assim dispostos não têm qualquer relevância ou importância para o

direito.

Como normas, os princípios orientam a correta

aplicação das regras hierarquicamente inferiores, exercendo uma função

criativa na exata medida em que impõem ao legislador a necessidade de

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criação de novas regras que venham a complementar o sistema ou o

microssistema em que estão insertos. Nessa linha de raciocínio, os

princípios são “normas fundamentais ou generalíssimas do sistemas, as

normas mais gerais”.1 A garantia tem outra dimensão, já que consiste na

“instituição criada a favor do indivíduo, para que, armado com ela, possa

ter ao seu alcance imediato o meio de fazer efetivo qualquer dos direitos

individuais que constituem em conjunto a liberdade civil e política”.2 As

garantias aproximam-se de um meio de defesa por meio dos quais se

assegura a fruição de direitos fundamentais e por essa razão, são elas

acessórias dos direitos fundamentais.3

Portanto, os princípios são o ponto de partida ou

a regra-mestra para a correta interpretação do sistema jurídico.

Com relação à prevalência de um princípio sobre

outro, sob o ponto de vista estritamente normativo, pois princípio jurídico

é norma, é importante observar que os órgãos jurisdicionais podem

desprezar limites meramente textuais da norma ou mesmo restringir o

sentido ordinário de um dispositivo, já que a relação entre norma e valor

não depende propriamente da norma ou mesmo dos atributos que dela

emergem; essa relação depende das razões utilizadas pelo intérprete, bem

como das circunstâncias fáticas examinadas por ocasião do processo de

aplicação. A dimensão axiológica não decorre propriamente da norma,

mas do exame feito pelo intérprete diante do caso que lhe é submetido. É

evidente que a dimensão axiológica leva em conta o enfoque adotado pelo

intérprete em relação aos fatos que lhe são apresentados. Por isso, uma

1 - BOBBIO, Teoria do ordenamento jurídico, p. 158. 2 - BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 483. 3 - V. BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 484.

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dada norma ser ou não ser relevante para uma decisão. Sendo relevante,

caberá ao intérprete delimitar a medida exata de tal relevância.4

A discricionariedade do julgador é fruto da

interpretação a que se chega a partir de um certo contexto, mas que pode

ser modificado em razão de alteração das coordenadas da situação

hermenêutica.5 Caso contrário, a jurisprudência seria algo absolutamente

estático, o que não é verdade. Compreensão, interpretação e aplicação dos

modelos jurídicos são aspectos dinâmicos e formam um todo

correspondente à unidade dialética do processo hermenêutico.6

Em relação à Constituição Federal, o julgador

está vinculado à ordem jurídica dentro de limites instransponíveis.

Portanto, a sua discricionariedade encontra limites a partir do espectro de

soluções possíveis para o caso e nesse espectro, deve eleger aquela que se

afigurar mais justa. Para se chegar à decisão mais justa, é inevitável a

subjetividade. Na interpretação das normas constitucionais, a

discricionariedade é mais ampla, porque se deve levar em conta os

interesses em jogo e os valores a serem preservados. Assim é que devem

ser considerados os possíveis resultados concretos da decisão e eleger

aquele mais aderente aos ideais de justiça de toda a nação.7

2. Significado do devido processo legal

4 - Como observado por HUMBERTO ÁVILA, “a consideração ou não de circunstâncias

específicas não está predeterminada pela estrutura da norma, mas depende do uso que dela se faz” (Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 53).

5 - V. INOCÊNCIO MARTIRES COELHO, Interpretação constitucional, p. 96. 6 - Cfr. ainda, INOCÊNCIO MARTIRES COELHO, Interpretação constitucional, p. 96. 7 - Nessa linha, DANIEL SARMENTO, A ponderação de interesses na Constituição

Federal, pp. 108-109.

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a) premissas

É grande a dificuldade em conceituar o devido

processo legal e estabelecer sua real extensão e aplicação. Por isso, é uma

expressão um tanto vaga e muito difícil de determinar.

Na experiência jurisprudencial norte-americana

verifica-se que não há interesse de se estabelecer uma definição precisa ao

devido processo legal; percebe-se que, hoje, o importante não é delimitá-

lo com uma precisão cartesiana (que não é própria da ciência jurídica,

muito menos do direito positivo), mas é saber que o devido processo legal

influi decisivamente na vida das pessoas e nos seus direitos.

Sobre as dificuldades de definir a cláusula do

devido processo legal e traçar-lhe contornos, é conhecida a manifestação

do Juiz FRANKFURTER da Suprema Corte Norte Americana, onde se lê

essa passagem: "due process não pode ser aprisionado dentro dos

traiçoeiros limites de uma fórmula... due process é produto da história, da

razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força

da fé democrática que professamos. Due process não é um instrumento

mecânico. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de

adaptação que inevitavelmente envolve o exercício de julgamento por

aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo".8

Como todo e qualquer princípio, a experiência

acerca da aplicação da cláusula do devido processo legal demonstra a sua

8 - Voto no caso Anti-Facist Committee v. Mc Grath, 341 US 123, 95 L. Ed. 817

(1951), apud ANTONIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA, Direito constitucional tributário e due process of law, n. 12, p. 33. V. também FELIX FRANKFURTER, “O Governo da Lei”, pp. 68-75 e CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, O

devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, p. 56.

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sujeição às variantes histórico-culturais de cada tempo e lugar.9

Gradativamente, nessa experiência, tal cláusula passa a assegurar

igualdade de tratamento frente a qualquer autoridade.10 Por isso, a

garantia do tratamento paritário das partes no processo ou da paridade de

armas diz respeito à igualdade substancial e ao devido processo legal

substancial.11

Em termos gerais, a garantia do devido processo

legal diz respeito aos princípios da igualdade, da legalidade e da

supremacia da Constituição, que são inerentes à democracia moderna.12

b) devido processo legal na sua acepção

tradicional: procedural due process – devido processo legal processual

Tradicionalmente não havia e não há dúvida

acerca do nítido caráter processual da cláusula do devido processo legal.

9 - Nessa linha, ADA PELLEGRINI GRINOVER observa que “justiça, irrepreensibilidade,

‘due process of law’ são conceitos históricos e relativos, cujo conteúdo pode variar de acordo com a evolução da consciência jurídica e política de um pais” (As garantias constitucionais do direito de ação, p. 34). Para ÁVILA, o devido processo legal seria um postulado normativo, pois se trata de uma norma que estabelece critérios de aplicação dos princípios e das regras, isto é, estrutura a aplicação de outras normas (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, pp. 87 e ss.). Na verdade, a partir do sentido etmológico da palavra “princípio” (v. item 1 supra), o devido processo legal é o único e verdadeiro princípio.

10 - V. CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, p. 58; JOSÉ ALFREDO

BARACHO, Processo e Constituição: o devido processo legal, p. 90. 11 - V. TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituição de 1988 e Processo, n. 4, p. 16. Sobre a

expressão paridade de armas, cfr. TARZIA, “Parità delle armi tra le parti e poteri del giudice nel processo civile”, pp. 353 e ss..

12 - Como bem observado por LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “o princípio da legalidade está, pois, atrelado ao devido processo legal, em sua faceta substancial e não apenas formal. Em sua faceta substancial – igualdade substancial – não basta que todos os administrados sejam tratados da mesma forma. Na verdade, deve-se buscar a meta da igualdade na própria lei, no ordenamento jurídico e em seus princípios” (“O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do planejamento”, n. 2.1, p. 93).

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Aliás, traduzida a partir de seus elementos mais simples essa garantia se

resumia a um processo ordenado (orderly proceeding).13

Foi assim que essa garantia vigorou na antiga

Inglaterra, por imposição da Magna Carta, e mais tarde ingressou nas

Cartas coloniais da América do Norte e depois, finalmente, na 5a e 14a

Emendas da Constituição dos Estados Unidos. “Os primeiros julgados da

Suprema Corte americana, que deram aplicação ao preceito do devido

processo legal, fizeram-no, portanto, sob um enfoque estritamente

processualístico (procedural due process), descartando, até mesmo por

expresso, as tentativas de se emprestar a essa garantia constitucional um

sentido substantivo. Essa vertente de entendimento sufragava a tese de

que a 14a Emenda buscava estender a todas as pessoas nascidas nos

Estados Unidos, independentemente de cor ou origem, os direitos e

imunidades (privileges and immunities) concernentes à condição de

cidadão, dentre eles a plenitude da capacidade civil e a investidura para

requerer em Juízo, além, é claro, do direito a um processo regular e justo

(orderly proceeding)”.14

No Brasil, no campo específico do direito

processual, a regra do inc. LIV, do art. 5o, da Constituição Federal tem o

valor supremo de demonstrar a indispensabilidade de todas as garantias e

exigências inerentes ao processo, de modo que ninguém poderá ser

atingido por atos sem a realização de mecanismos previamente definidos

na lei.15

13 - Cfr. ANTONIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA, Direito constitucional tributário e due

process of law, n. 5, pp. 12-14. 14 - CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a

razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, n. 3, p. 49. 15 - V., entre outros, sobre o devido processo legal em seu aspecto formal, REIS

FRIEDE, “A garantia constitucional do devido processo legal”, pp. 71-77; HOYOS, “La garantia constitucional del devido processo legal”, n. 1, pp. 43-45;

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c) devido processo legal substancial

Em termos substanciais, a doutrina brasileira é

também contrária a confinamentos conceitos do devido processo legal.

Nesse sentido, confira-se, a propósito, as palavras do tributarista

ANTONIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA: “o conteúdo substantivo de due

process é, pois, e deve continuar, insuscetível de confinamentos

conceituais”.16

A noção de devido processo legal substancial

originou-se a partir de um caso concreto submetido à apreciação da

Suprema Corte norte-americana no fim do século XVIII no qual foi

examinada a questão dos limites do poder governamental.17

Modernamente concebe-se o devido processo

legal substancial como uma garantia que estabelece uma legítima

limitação ao poder estatal,18 de modo a censurar a própria legislação e

declarar a ilegitimidade de leis que violem as grandes colunas ou os

THEODORO JÚNIOR, “Princípios gerais do direito processual civil”, p. 179; WAMBIER, “Anotações sobre o devido processo legal”, esp. n. 1, p. 33.

CALMON DE PASSOS observa que para a efetivação do devido processo legal, três condições devem estar presentes: a) um juiz imparcial e independente; b) acesso ao Judiciário; c) contraditório (O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição, p. 86). Como se verá, essas três condições têm um vínculo não apenas com os aspectos formais da cláusula do devido processo legal, mas também com seus aspectos substanciais, já que fundadas em garantias fundamentais do indivíduo.

16 - Direito constitucional tributário e due process of law, n. 12, esp. p. 33. 17 - Cfr. NELSON NERY JR. (Princípios do processo civil na Constituição Federal, n.

6, p. 38), com arrimo em LOCKHART, KAMISAR, CHOPER e SHIFFRIN (The american Constitucion, pp. 246 e ss.), relata o caso Calder v. Bull, de 1798, que constitui o marco inicial da doutrina do judicial review, no qual a Suprema Corte norte-americana entendeu que os atos normativos, sejam eles legislativos ou administrativos, que violarem direitos fundamentais, ofendem o devido processo legal e estão sujeitos à declaração de nulidade pelo Poder Judiciário. V. também, CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, n. 3, p. 51.

18 - HOYOS, “La garantia constitucional del debido proceso legal”, p. 45.

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landmarks do regime democrático. Significa “proclamar a autolimitação

do Estado no exercício da própria jurisdição, no sentido de que a

promessa de exercê-la será cumprida com as limitações contidas nas

demais garantias e exigências, sempre segundo os padrões democráticos

da República brasileira”.19

Em apertada síntese, o devido processo legal

substancial diz respeito à limitação ao exercício do poder e autoriza ao

julgador questionar a razoabilidade de determinada lei e a justiça das

decisões estatais, estabelecendo o controle material da

constitucionalidade e da proporcionalidade.20 No direito inglês, aliás, há

muito tempo e ao longo de uma lenta evolução se verifica a possibilidade

de controle judicial para garantir a efetividade das normas protetoras dos

direitos fundamentais, que têm supremacia sobre as demais.21 No nosso

sistema, o Supremo Tribunal Federal, em muito menos tempo, passou a

reconhecer no princípio do devido processo legal um mecanismo por

meio do qual é possível ao Poder Judiciário controlar a razoabilidade das

leis e atos normativos, ou seja, a sua conformidade substancial e não

somente formal com a ordem jurídica consagrada pela Constituição

Federal.22

A fundamentação do princípio da

proporcionalidade é realizada pelo princípio constitucional expresso do

19 - DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, n. 94. 20 - Cfr. TUCCI e CRUZ E TUCCI, Constituição de 1988 e processo, p. 15; SUZANA DE

TOLEDO BARROS, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, pp. 209-15, esp. p. 210. A autora utiliza o termo razoabilidade como sinônimo de proporcionalidade, citando decisões do Supremo Tribunal Federal que foi utilizado o devido processo legal substancial como meio de controle de constitucionalidade (op. cit., p. 125 e ss.).

21 - V. CAPPELLETTI, “Necesidad y legitimidad de la justicia constitucional”, p. 59. 22 - Cfr. YOSHIKAWA, Origem e evolução do devido processo legal substantivo, pp.

227-228.

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devido processo legal. Importa aqui a sua ênfase substantiva, em que há

a preocupação com a igual proteção dos direitos do homem e os

interesses da comunidade quando confrontados.23

A razoabilidade, que em direito civil é

representada pelos valores do homem médio, está ligada à congruência

lógica entre as situações concretas e as decisões administrativas e

judiciais, ou seja, deve haver uma relação de adequação entre o fato e a

atuação concreta da Administração e dos órgãos jurisdicionais (daí estar

a razoabilidade ao lado da proporcionalidade); a razoabilidade atrela-se

às necessidades da coletividade, à legitimidade, à legalidade, à

economicidade. Aliás, toda a produção do Direito deve estar fundada na

noção do razoável (logos do razonable - LUIS RECASÉNS SICHES),24 que

tem uma inegável dimensão axiológica fixada pelas circunstâncias do

espaço e do tempo.

As noções de proporcionalidade e razoabilidade

sempre caminharam juntas. Para quem as diferencia, a proporcionalidade

diz respeito a uma comparação entre duas variáveis: meio e fim; já a

razoabilidade não tem como requisito uma relação entre dois ou mais

elementos, mas representa um padrão de avaliação geral.25

A proporcionalidade expressa não somente a

busca pela “justa medida” em um caso concreto, determinada por

condições de espaço, tempo e cultura, mas também traz em si as noções

de eqüidade, adequação, suficiência, ausência de abuso ou excesso,

23 - RAQUEL DENIZE STUMM, Princípio da proporcionalidade no Direito

Constitucional brasileiro, p. 173. 24 - V. Experiencia jurídica, naturaleza de la cosa y lógica “razonable”, pp. 535-

536. 25 - MARIA ROSYNETE OLIVEIRA LIMA, Devido processo legal, p. 280-287, esp. p.

282, com arrimo em NICHOLAS EMILIOU, The principle of proporcionality in european law, p. 39.

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equilíbrio de conduta e idoneidade26. Assim é que a proporcionalidade

tem aplicação mais ampla que a razoabilidade, pois não apenas impede

atos estatais arbitrários, como ainda resguarda a “materialização da

melhor medida possível dos direitos constitucionais fundamentais”.27

O direito é a disciplina da convivência. As

decisões judiciais não podem fugir dessa diretiva. Ou seja: é preciso

visualizar o processo (e isso vale para todo e qualquer processo, como

método de solução de conflitos, inclusive o administrativo) a partir dos

seus resultados e como instrumento apto a proporcionar decisões justas,

razoáveis e proporcionais com a realidade.

Com o princípio da proporcionalidade, de nítido

caráter geral, o magistrado deve fixar as premissas, determinar quais são

os interesses conflitantes e estabelecer em que medida um princípio de

caráter específico prevalece sobre outro.

Já o adjetivo “devido” refere-se à adequação de

todos os atos de poder, sejam eles legislativos, jurisdicionais ou

26 - “Proporcionalidade encerra, assim, a orientação deontológica de se buscar o meio

mais idôneo, mais eqüitativo e menos excessivo nas variadas formulações do Direito, seja na via da legislação ou positivação das normas jurídicas, da administração pública dos interesses sociais, da aplicação judicial dos comandos normativos e, ainda, no campo das relações privadas, a fim de que o reconhecimento ou o sacrifício de um bem da vida não vá além do necessário ou, ao menos, do justo e aceitável em face de outro bem da vida ou de interesses contrapostos” (v. SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, p. 199). Sobre devido processo legal e processo civil, v. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade”, in Dos direitos humanos aos direitos fundamentais, Porto Alegre, Livraria do Advogado Ed., 1997. E ainda três trabalhos recentes, frutos de pesquisas acadêmicas: GISELE

GOÉS, Princípio da proporcionalidade no processo civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça, São Paulo: Saraiva, 2004; RICARDO

DONIZETE GUINALZ, Princípio da proporcionalidade e o processo penal, Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2002; e RAPHAEL AUGUSTO SOFIATI DE QUEIROZ, Os princípios da

razoabilidade e proporcionalidade das normas e sua repercussão no processo civil brasileiro, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2000.

27 - V., nessa linha, GOÉS, Princípio da proporcionalidade no processo civil, p. 62.

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administrativos, com as expectativas mínimas do Estado Democrático de

Direito.28

A cláusula do devido processo legal, no seu

sentido substancial, nada mais que é um “mecanismo de controle

axiológico da atuação do Estado e de seus agentes”.29 Por isso constitui

um instrumento típico do Estado democrático de direito, de modo a

impedir toda restrição ilegítima aos direitos de qualquer homem sem um

processo previamente estabelecido e com possibilidade de ampla

participação.

Por esse novo prisma, a cláusula do devido

processo legal atinge não só a forma, mas a substância do ato, pois existe

a preocupação de se conceder a tutela jurisdicional adequada que satisfaça

os órgãos jurisdicionais e, mais ainda, a própria sociedade. Essa

representa a convergência de todos os demais princípios e garantias,

atingindo não só os atos dos órgãos jurisdicionais, mas também os atos

legislativos e da administração; refere-se, portanto, ao controle da

razoabilidade dos atos estatais. Não é por outra razão que constitui um

“amálgama entre o princípio da ‘legalidade’ (rule of law) e o da

‘razoabilidade’ (rule of reasonableness) para o controle da validade dos

atos normativos e da generalidade das decisões estatais”.30

28 - Cfr. SAN TIAGO DANTAS, “Igualdade perante a Lei e due process of law –

Contribuição ao estudo da limitação do Poder Legislativo”, p. 362. V. ainda, em sentido semelhante e no âmbito específico do direito administrativo, LÚCIA

VALLE FIGUEIREDO, “O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do planejamento”, n. 10.1, p. 102; EGON BOCKMAN

MOREIRA, Processo administrativo – Princípios constitucionais e a Lei 9.784/99, p. 216.

29 - CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, n. 3, p. 50.

30 - CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, n. 3, p. 77.

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Daí a concepção extremamente vaga do devido

processo legal substancial, que desde o início veda a violação a direitos

relativos à vida, liberdade e propriedade. Nas palavras do já citado

tributarista ANTONIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA, ao traçar o perfil

evolutivo do conceito substantivo do due process of law na experiência

norte-americana, “a cláusula em apreço vinha a talhe de foice para se

constituir em instrumento hábil a amparar a expansão das limitações

constitucionais ao exercício do poder legislativo federal e estadual”.31

A partir desse conjunto reiterado de decisões

emanadas pela Justiça norte-americana, construiu-se o axioma segundo o

qual “uma lei não pode ser considerada uma law of the land, ou

consentânea com o due process of law, quando incorrer na falta de

‘razoabilidade’ ou de ‘racionalidade’, ou seja, em suma, quando for

arbitrária”.32

Historicamente, o devido processo legal

substancial está, como destacado, ligado ao controle dos atos emanados

pelo legislativo. Não obstante o controle seja sempre feito pelos órgãos

jurisdicionais, o devido processo legal substancial, na sua configuração

moderna, está muito ligado com a razoabilidade não só dos atos

normativos, mas também daqueles administrativos e judiciários.33 Como

enfatizado por CALMON DE PASSOS, o devido processo legal substancial

“carece de significação, se o Estado não reconhece ao indivíduo direitos

31 - Direito constitucional tributário e due process of law, n. 11, p. 30. 32 - CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade

das leis na nova Constituição do Brasil, p. 57. 33 - V. EDUARDO ARRUDA ALVIM, “Devido processo legal – enfoque tributário do

princípio”, esp. n. 5, pp. 77-78; EGON BOCKMAN MOREIRA, Processo administrativo – princípios constitucionais e a Lei 9.784/99, p. 214.

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que a ele mesmo, Estado, sejam oponíveis, funcionando como limites ao

seu arbítrio de detentor dos instrumentos de coerção social”.34

O devido processo legal processual e substancial

representa, por todo o exposto, o núcleo central não da relativização

(KAZUO WATANABE), mas da integração do binômio direito e processo

e procura dar o máximo de eficácia às normas constitucionais para a

efetivação do controle dos atos de poder e da igualdade substancial das

partes no processo.

3. Due process of law: convergência de todos os princípios, garantias e exigências do processo civil

A observância dos preceitos previamente

estabelecidos na Constituição Federal e na lei significa respeitar o devido

processo legal.

Isso significa que oferecer decisões motivadas, o

contraditório, a ampla defesa, a publicidade, é respeitar o devido processo

legal. Há, portanto, uma superposição do devido processo legal sobre os

demais princípios, garantias e regras constantes no ordenamento jurídico.

A idéia de núcleo central é inerente ao princípio

constitucional do devido processo legal, que tem projeções no âmbito

processual e substancial.

O art. 5o, inc. LIV, da Constituição Federal, ao

dispor que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o

devido processo legal”, é verdadeiramente uma norma de encerramento,

34 - “Advocacia – O direito de recorrer à Justiça”, p. 38.

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que tem a importância de prestigiar a legalidade e controlar aquilo que

aparenta ser portador de ilegalidade.

No sistema norte-americano, são exemplos de

incidência do devido processo legal substancial: “a) a liberdade de

contratar, consubstanciada na ‘cláusula de contrato’, afirmada no caso

Fletcher v. Peck (1810) em voto de Marshall; b) a garantia do direito

adquirido (vested rights doctrine); c) a proibição de retroatividade da lei

penal; d) a garantia do comércio exterior e interestadual (commerce

clause), fiscalizados e regrados exclusivamente pela União (art. 22, n.

VIII, CF; art. 1o, Secção 8a, n. III, da Constituição norte-americana); e) os

princípios tributários da anualidade, da legalidade, da incidência única

(non bis in idem) etc.; f) proibição de preconceito racial; g) garantia dos

direitos fundamentais do cidadão”.35

No sistema jurídico brasileiro, pode-se afirmar

que o devido processo legal substancial está fundado na garantia dos

direitos fundamentais do cidadão, mas principalmente em duas vertentes

que serão postas em destaque no item a seguir. São elas: I) o controle dos

atos administrativos, legislativos e jurisdicionais; II) a garantia da

igualdade substancial das partes no processo.

Isso porque “a legítima limitação ao poder,

mediante o due process of law, visa a impedir que a desigualdade impere

no processo, tornando-o justo na exata medida em que assegure às partes

participação paritária e proporcione o resultado esperado pela

sociedade”.36

35 - NELSON NERY JÚNIOR, Princípios constitucionais do processo civil na

Constituição Federal, n. 6, pp. 38-39, com apoio nos exemplos de NOWAK, ROTUNDA e YOUNG, Constitucional law, p. 484.

36 - LUCON, “Garantia do tratamento paritário das partes”, n. 4, pp. 101-102.

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Nesse sentido, o devido processo legal, pelo

aspecto tradicional, procedimental, permite o exercício do controle das

decisões, pelo aspecto substancial, deseja que haja um controle com a

tomada de uma decisão materialmente justa.

Pelo aspecto procedimental, CALMON DE PASSOS

analisa o controle dos atos dos assim denominados três poderes e observa

que “eliminar qualquer tipo de controle da decisão é inquestionavelmente,

violar a garantia do devido processo legal. É da essência do Estado de

Direito existirem controles para os atos dos órgãos detentores de poder,

colocando-se os da Administração Pública sob o crivo da fiscalização do

Legislativo, do Judiciário e da opinião pública, mediante o processo

eleitoral, num sistema de representatividade e participação; também

submetido a controles políticos e jurisdicionais está o Poder Legislativo; o

Judiciário, entretanto, apresenta-se quase imune a controles políticos que

resultem do processo eleitoral e revelam-se bem frágeis os que sobre ele

são efetiváveis pelo Legislativo e pelo Executivo. Destarte, a existência,

no mínimo de controles internos ao próprio Judiciário se mostra como

indeclinável, sob pena de se desnaturar uma característica básica do

Estado de Direito, privilegiando-se, no seu bojo, agentes públicos que

pairam acima de qualquer espécie de fiscalização ou disciplina quanto a

atos concretos de exercício de poder por eles praticados”.37

4. Projeções do devido processo legal substancial – do abstrato ao concreto

I) limitação ao poder legislativo: controle

difuso e concentrado de constitucionalidade

37 - “O devido processo e o duplo grau de jurisdição”, p. 7.

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O devido processo legal substancial diz respeito

à possibilidade de “questionamento da substância ou do conteúdo dos atos

do Poder Público, em particular daqueles editados pelo Legislativo”.38

Na medida em que o devido processo legal

substancial erigiu-se como uma forma legítima de limitação do mérito das

normas jurídicas, o cumprimento dessa garantia também se realiza

mediante o controle difuso e concentrado de constitucionalidade das

normas. Aliás, o escopo de afastar leis inconciliáveis com os princípios de

Direito é uma tendência do direito público moderno, plenamente atingida

no sistema norte-americano por meio do controle de constitucionalidade

das leis, feito pelo Judiciário, e pelo seu exame a partir da cláusula do due

process of law.39

No sistema brasileiro, como é sabido, o controle

concentrado de constitucionalidade se realiza por meio da ação direta de

constitucionalidade e da ação direta de inconstitucionalidade.

Já o controle difuso é feito por todos órgãos

jurisdicionais quando, incidenter tantum, afasta-se a aplicação de regra

que viole os princípios e as garantias constitucionalmente erigidas. Assim,

por exemplo, quando o julgador afasta o art. 38 da lei n. 6.830, de 22 de

setembro de 1980, que disciplina a cobrança judicial ativa da Fazenda

Pública, está permitindo o acesso à ordem jurídica justa e observando o

devido processo legal substancial. Esse dispositivo impõe o depósito

preliminar como condição essencial à propositura de demanda e discussão

38 - CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade

das leis na nova Constituição do Brasil, p. 48. 39 - Nesse sentido, SAN TIAGO DANTAS, “Igualdade perante a Lei e due process of law

– Contribuição ao estudo da limitação do Poder Legislativo”, p. 362.

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de débito fiscal, havendo farta jurisprudência considerando-o

inconstitucional por meio do controle incidente de constitucionalidade.

Toda lei que não seja razoável viola a noção de

justo enquanto “lei da terra” e está infringindo o devido processo legal

substancial. Por isso, sua aplicação deve ser afastada por meio do controle

exercido pelos órgãos jurisdicionais.40

II) limitação ao poder administrativo:

controle dos atos administrativos

Mas esse controle não se restringe apenas a

normas infraconstitucionais: o princípio amplo e vago do due process of

law, pelo seu aspecto substancial, estará violado quando decisão

administrativa violar as bases do Estado liberal democrático. Como

decorrência natural, haverá violação da norma constitucional que tutela tal

princípio.

É importante destacar nesse contexto a

ampliação da garantia do controle jurisdicional no que concerne aos

limites da censurabilidade dos atos administrativos por parte dos órgãos

jurisdicionais. Embora a cláusula do devido processo legal e a garantia da

inafastabilidade da tutela jurisdicional estejam há tempos no direito

constitucional brasileiro, os juízes vêm colocando um ponto final nessa

divisão até então intocável entre os aspectos legais do ato administrativo

– que podem ser examinados pelo Poder Judiciário (Súmula 473 STF)41 –

e o mérito do ato – que a previsão constitucional da separação dos

40 - V. CYBELE OLIVEIRA, “Devido processo legal”, p. 187. 41 - Súmula 473: “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de

vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação judicial”.

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Poderes do Estado não autoriza esse exame. A tendência é clara de fazer

com que os órgãos jurisdicionais cheguem bem próximos ao mérito do ato

administrativo (p.ex., nova análise de toda a prova produzida no processo

administrativo), ampliando sensivelmente a sua órbita de controle. Isso

significa, em síntese, reduzir os conflitos até então não submetidos à

análise dos órgãos jurisdicionais, ampliando sua atuação.42

III) limitação ao poder jurisdicional

a) motivação das decisões

Nessa mesmíssima linha, a exigência da

motivação das decisões judiciais significa, em síntese, a possibilidade de

controle dos atos jurisdicionais pelos próprios órgãos do Poder

Jurisdicional. Por ser uma forma de controle de ato estatal que se afigura

ilegítimo, constitui projeção do devido processo legal substancial.

A exigência da motivação das decisões,

constante do art. 93, inc. IX, da Constituição Federal, e do art. 131 do

Código de Processo Civil, não constitui um princípio, porque não tem o

caráter de regra-mestra, de início ou ponto de partida.

Essa exigência tem relevância na medida em que

estabelece o perfil político-democrático do processo. Por isso, constitui

uma projeção do due process of law, este sim um verdadeiro princípio.

Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo

Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, decidiu: “a motivação das decisões

judiciais reclama do órgão julgador, sob pena de nulidade, explicitação

fundamentada quanto aos temas suscitados. Elevada a cânone

constitucional, apresenta-se como uma das características incisivas do

42 - V. DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, n. 96, p. 248.

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processo contemporâneo calcado no ‘due process of law’, representando

uma garantia inerente ao Estado de Direito”.43

A motivação constitui exigência inarredável, que

atinge todos os graus de jurisdição e impõe ao julgador o dever de

analisar as razões recursais das partes se superados os óbices legítimos de

conhecimento que o sistema jurídico prevê.44

b) violação do direito à prova

As sentenças proferidas contrariamente a quem

tenha regularmente requerido provas violam as garantias constitucionais

da ampla defesa e do contraditório, que são projeções do devido processo

legal, também nesse caso violado. A celeridade processual não pode

servir de amparo para o indeferimento de provas legítimas e relevantes.

Processo efetivo é aquele que busca o equilíbrio entre os valores da

segurança jurídica e celeridade, bem como persegue o resultado

objetivado pelo direito material. De um lado, a demora na prestação

jurisdicional decorre, essencialmente, de elementos externos ao processo;

por outro, a morosidade excessiva não pode servir de desculpa para se

passar por cima de garantias processuais como o contraditório e a ampla

defesa.45

43 - REsp n. 493625/PA, 4ª T. do STJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.

26.6.2003, in DJ de 29.9.2003, p. 262. 44 - Nessa linha, merece crítica, por frontal violação ao art. 93, inc. IX, da Constituição

Federal, decisão proferida pelo TJSP nos autos da apelação n. 7087513-1, rel. Des. Luiz Sabbato, j. 20.9.2006, segundo a qual, sempre que for para ser mantida a decisão, estaria o órgão hierárquico superior dispensado de adentrar na demonstração do quanto se discutiu nos autos, apenas devendo relatar e expor a motivação quando ela for nova, ou seja, quando reforma a decisão atacada (v., a propósito, FORNACIARI, “a imprescindibilidade da fundamentação”, p. 561).

45 - BEDAQUE ressalta também os perigos da celeridade a todo o custo, com sacrifício das garantias constitucionais (v. Efetividade do Processo e Técnica Processual, p. 49).

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O devido processo legal substancial impõe ao

julgador que seja oferecida igualdade de oportunidades processuais. Essa

igualdade, no campo do direito à prova, revela-se na efetiva possibilidade

de participação aos litigantes e significa, para o julgador, o dever de fazer

observar a garantia do contraditório na exata medida em que autoriza às

partes a encartar aos autos todos os elementos de que dispõe para atuar

sobre seu convencimento.

c) respeito à competência

Uma das projeções do devido processo legal que

impõe limitações inerentes ao Estado-de-direito diz respeito à

impossibilidade de o juiz desrespeitar a competência constitucional ou

legal de outros juízes. Ainda que a lei autorize um avanço sobre a

competência de outro juiz, é também preciso verificar se outras garantias

constitucionalmente eleitas não estão sendo desrespeitadas.

Assim, por exemplo, para que seja respeitada a

igualdade entre as partes, afasta-se a cláusula de eleição de foro, quando

esta violar o acesso à justiça, tutelado pelo art. 5o, inc. XXXV, da

Constituição Federal.

Para o devido processo legal substancial, torna-

se imperativo afastar a aplicação do art. 111 do Código de Processo Civil,

impondo o respeito a uma garantia, hierarquicamente superior, que tutela

o acesso à justiça e a igualdade substancial entre as partes litigantes.

d) relativização da coisa julgada (o parágrafo

único do art. 741 e o § 1º do art. 475-N)46

46 - Sobre o recente e polêmico tema da coisa julgada inconstitucional, cfr. DELGADO,

“Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais”; DINAMARCO,

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Importante tema refere-se à

inconstitucionalidade da coisa julgada (também chamado de

relativização da coisa julgada).47

As expressões coisa julgada inconstitucional e

relativização da coisa julgada merecem ser criticadas pelos motivos a

seguir expostos: i) a coisa julgada é uma qualidade da sentença, não

podendo, por isso, ser constitucional ou inconstitucional; ii) a

inconstitucionalidade pode estar na sentença ou em qualquer ato de poder,

nunca na coisa julgada; iii) a sentença incompatível com a Constituição

Federal assim já é, antes mesmo do trânsito em julgado; iv) não se

“relativiza” a coisa julgada, quando muito há a “ampliação do terreno

‘relativizado’” ou “o alargamento dos limites da ‘relativização’”;48 v)

aliás, “não faz sentido que se pretenda ‘relativizar’ o que já é relativo”,49

uma vez que a lei não confere nem nunca conferiu valor absoluto à coisa

julgada material; vi) pelo contrário, a coisa julgada só prevalece dentro

dos limites dispostos expressamente pelo ordenamento jurídico.

“Relativizar a coisa julgada material”, pp. 11-32; THEODORO JÚNIOR, “A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos para seu controle”,

47 Ver sobre o tema, entre outros, ARAKEN DE ASSIS, “Eficácia da coisa julgada inconstitucional”, esp. pp. 25-26; OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, “Coisa julgada relativa?”, esp. p. 11; BARBOSA MOREIRA, “Considerações sobre a chamada ‘relativização’ da coisa julgada material”, pp. 43-61; DELGADO, “Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais”, pp. 77-122; DINAMARCO, “Relativizar a coisa julgada material”, pp. 33-76; HUMBERTO THEODORO

JÚNIOR, “A Reforma do processo de execução e o problema da coisa julgada inconstitucional”, pp. 65-100; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e JULIANA

CORDEIRO DE FARIA, “A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle”, pp. 123-161; MARINONI. “O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da coisa julgada material)”, esp. pp. 147-155; NASCIMENTO, “Coisa julgada inconstitucional”, pp. 1-32; Talamini, Coisa julgada e sua revisão, pp. 376-485; TERESA WAMBIER e MEDINA, O dogma da coisa julgada – hipóteses de relativização, esp. pp. 26-85.

48 - BARBOSA MOREIRA, “Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material”, p. 44.

49 - Idem, ibidem.

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A partir do momento em que está configurada a

coisa julgada material, não é possível – salvo se houver expressa previsão

legal – indagar-se acerca de uma situação anterior que já fora ou poderia

ter sido aduzida (voltamos ao deduzido ou deduzível referido por Proto

Pisani e Giovanni Verde).50

Fora dos limites do ordenamento jurídico, não é

possível se questionar a justiça do julgamento ainda que o juiz tenha se

distanciado do direito material, indeferido provas relevantes ou mesmo

apreciado mal aquelas encartadas aos autos. Não se pode, por isso, admitir

a “relativização” ainda que tenha havido grave injustiça. Isso porque

existe no sistema jurídico brasileiro “o direito público subjetivo de ser

exigido respeito à coisa julgada”.51 Não é à-toa que o próprio Código de

Processo Civil determina que o juiz reconheça de ofício a preliminar de

coisa julgada (art. 301, VI, § 4.º) ou extinga o processo sem o exame do

mérito ao verificar a ocorrência de coisa julgada (art. 267, V).

É importante lembrar ainda que as decisões

proferidas em ação direta de declaração de inconstitucionalidade ou em

ação declaratória de inconstitucionalidade não estão sujeitas à ação

rescisória (Lei 9.868, de 10.11.1999, art. 26, parte final). Assim é que está

claro ser impensável admitir-se uma ação fundada em “coisa julgada

inconstitucional” nesses casos. O contrário é exatamente o que se extrai

da norma: tamanho deve ser o respeito à coisa julgada e às decisões do

Supremo Tribunal Federal, que nem mesmo rescisória será admitida.52

O respeito à coisa julgada é elemento

característico do Estado Democrático de Direito e impede que o juiz

50 - Lezioni di diritto processuale civile, p. 65; Profili del processo civile, v. 2, pp.

333-336, respectivamente. 51 - Frederico Marques, Manual de direito processual civil, p. 227. 52 - Nesse sentido, BARBOSA MOREIRA, “Considerações sobre a chamada

‘relativização’ da coisa julgada material”, n. 10, p. 59.

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julgue novamente, seja qual for o teor da decisão. Admitir, sem limites

normativos, a impugnação à sentença inconstitucional significa eternizar

conflitos, já que ao sabor de cada momento histórico ou mesmo

governante, a coisa julgada poderia ser afastada. Inadmissível, portanto,

ingerência arbitrárias não contempladas no ordenamento jurídico. O

respeito à garantia constitucional da coisa julgada e à lei é, sem dúvida, o

melhor e mais razoável preço que o sistema como um todo paga como

contrapartida da preservação de outros valores.53

A denominada coisa julgada inconstitucional

necessita de uma correta e detalhada disciplina infra-constitucional, sob

pena de as primeiras boas intenções de abertura a respeito do tema

cumprirem um intento de autoritarismo e arbítrio.

Nesse sentido, dispõe o parágrafo único do art.

741 do CPC: “para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo,

considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato

normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal,

ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas

pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição

Federal”. No mesmo sentido é a redação do art. 475-L, § 1º, do CPC:

“para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se

também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo

declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado

em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo

Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”.

A exigibilidade está ligada a uma das condições

da ação executiva. Por esse prisma exclusivo, pode o executado

apresentar a defesa em sede de embargos à execução ou diretamente no

processo executivo.

53 Nessa linha, BARBOSA MOREIRA, idem, nn. 4 e 5, pp. 49-51.

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Certamente, no entanto, o legislador não

empregou linguagem técnica na redação do dispositivo em comento.54 A

desconstituição do título judicial em razão da inconstitucionalidade da

norma em que está amparado é matéria estritamente vinculada à

existência do direito material, estranha, por sua vez, às condições da ação

executiva. Dessa forma, a matéria em questão pode ser alegada por meio

de exceção apresentada diretamente na execução e provada por meio de

prova pré-constituída, como também por embargos à execução ou ação

cognitiva autônoma. Essas duas últimas parecem ser a via jurisdicional

mais adequada para a alegação de matérias relativas ao mérito.

A norma em questão contém a causa petendi ou

os fundamentos para a propositura de uma demanda, já que os embargos

são uma ação ou via processual em que o executado apresenta a sua

defesa.55 O fundamento constante do art. 741, parágrafo único do CPC

(bem como do art. 475-N, § 1º, também do CPC), constitui causa de pedir

autônoma e suficiente para dar ensejo à propositura de ação cognitiva

autônoma imprescritível. A inconstitucionalidade de uma lei ou ato

normativo, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal constitui

invalidade insanável e por isso, não pode estar restrita ao campo

exclusivo dos embargos. Por essa razão, essa causa petendi pode

viabilizar ação cognitiva autônoma com o escopo de desconstituir

sentença que se baseou exclusivamente em lei reconhecida como

inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal independentemente de

seu conteúdo, seja o ato de poder meramente declaratório, constitutivo,

condenatório ou mandamental.56 54 No mesmo sentido, ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS, As reformas de 2005 do Código

de Processo Civil, p. 105. 55 Sobre a natureza jurídica dos embargos à execução, v., mais amplamente, LUCON,

Embargos à execução, n. 38, p. 84. 56 - TALAMINI entende que não se aplica a regra em comento aos pronunciamentos

declaratórios e constitutivos, com fundamento no fato de que a sentença

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Além disso, o parágrafo único do art. 741 não

diz respeito exclusivamente ao controle de concentrado de

constitucionalidade, realizado pelo Supremo Tribunal Federal nas ações

diretas de inconstitucionalidade e constitucionalidade. Ao fazer menção à

hipótese de inexigibilidade do título executivo judicial fundado em (i)

norma (lei ou ato normativo) declarada inconstitucional pelo Supremo

Tribunal ou (ii) aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas

pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição

Federal, o dispositivo em tela permite a desconstituição do julgado pela

via jurisdicional dos embargos ou da impugnação ao cumprimento de

sentença mesmo nos casos de controle incidental de constitucionalidade.

O sistema pátrio de controle de

condenatória é uma “tutela incompleta” e que seria grave desconstituir uma sentença de mérito declaratória, constitutiva, mandamental e executiva. Coisa

julgada e sua revisão, pp. 482-485. Pelas razões expostas no texto, o argumento do autor não pode prevalecer. Aliás, se aprovado o Projeto de Cumprimento de Sentença, todas as sentenças serão, utilizando a sua linguagem, “executivas” ou mandamentais e portanto, não estariam, a prevalecer esse entendimento, sujeitos à regra do art. 741. Em outra passagem, Talamini aduz que “não é possível descartar por completo a desconstituição da coisa julgada em casos limites envolvendo os pronunciamentos que independem de posterior realização prática (declaratórios e constitutivos)” e sugere “a aplicação analógica do art. 741, parágrafo único (Coisa julgada e sua revisão, p. 484), Mais adiante sustenta a possibilidade de se desconstituir a coisa julgada fora das hipóteses do par. único do art. 741, mencionando “casos não-padronizados por vezes únicos no que tange à violação constitucional neles contida” (p. 484). Afirma ainda que pode haver situações em que a segurança jurídica seria gravemente afrontada com a desconstituição pelo art. 741, par. único, “mesmo não tendo havido a integral realização da tutela” (Coisa julgada e sua revisão, p. 485). As soluções apresentadas - com todo o respeito ao autor - são, no mínimo, inusitadas e demonstram a total falta de compromisso com o ordenamento jurídico. Ampliar as hipóteses de se afastar a sentença inconstitucional, fora dos casos previstos no sistema, com o argumento de se garantir a “segurança jurídica” ou o “interesse público” é um pouco assustador. Estaria aberto o campo para o arbítrio e o totalitarismo. Da mesma forma, admitir a tese da “coisa julgada inconstitucional” ou da “relativização da coisa julgada” toda a vez que houver a violação da Constituição Federal significa criar um processo que nem mesmo KAFKA conseguiria conceber, já que teríamos a possibilidade de sempre haver um julgador disposto a considerar a última decisão inconstitucional. O processo não é um fenômeno de trato continuativo e desenvolvimento cíclico (Giovanni VERDE, Profili del processo civile, v. 1, pp. 331-332.

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constitucionalidade por meio do qual os efeitos da apreciação incidenter

tantum da constitucionalidade produzem conseqüências exclusivamente

para o caso concreto, pode conduzir à conclusão diversa.

No entanto, a parte final do dispositivo conduz a

sua aplicação também a situações como a interpretação conforme a

Constituição e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de

texto, quando ocorram no seio do controle concentrado de

constitucionalidade, tendo inclusive eficácia contra todos e efeito

vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração

Pública federal, estadual e municipal (art. 28, parágrafo único, da Lei

9.868, de 10.11.1999).

É evidente que se o dispositivo em análise se

estender também para os casos em que o Supremo Tribunal Federal

exerce o controle incidental, os embargos e eventual ação cognitiva

autônoma terão um âmbito de aplicação mais amplo. No fundo, o que se

deseja é a supremacia da Constituição Federal, de acordo com o

entendimento expresso pelo Supremo Tribunal Federal, sobre todas as

decisões judiciais. Entendimento contrário, torna o dispositivo menos

eficaz, já que a sua aplicação será bem mais restrita.

Em síntese, as regras do art. 741, parágrafo

único, e do art. 475-N, § 1º, dizem respeito à possibilidade de se alegar

uma nulidade absoluta reconhecida por força de pronunciamento do

Supremo Tribunal Federal em caráter principaliter ou incidenter tantum.

Não se trata, pela via dos embargos à execução ou da impugnação ou

ainda por meio de ação cognitiva autônoma, de se reconhecer a ausência

de uma condição da ação (impossibilidade jurídica).57 Não se trata,

57 - TERESA WAMBIER e JOSÉ MEDINA falam de ação declaratória de inexistência por

ausência de uma das condição da ação, mais precisamente da impossibilidade jurídica do pedido (O dogma da coisa julgada– hipóteses de relativização, pp. 39 e ss.).

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igualmente, de se proclamar a inexistência do ato, já que a sentença

inconstitucional existe e é eficaz, pois tem clara aptidão de produzir

efeitos.58

Como a declaração de inconstitucionalidade pelo

Supremo Tribunal Federal pode ser realizada com eficácia ex tunc ou ex

nunc, ou ainda em momento ulterior a ser fixado pelo Pretório Excelso

(ex vi art. 27 da Lei 9.868, de 10.11.1999), por uma questão de lógica

apenas é possível a desconstituição do título caso no momento da

oposição dos embargos à execução a declaração já seja eficaz. Nesses

casos, o título executivo judicial será desconstituído por força de decisão

do Supremo Tribunal Federal, ainda que essa decisão seja superveniente à

formação do título, o que aparentemente colidiria com a garantia

constitucional da coisa julgada (CF/88, art. 5.º, XXXVI). No entanto, tal

garantia não constitui um bem ou valor intocável, já que a legislação

infra-constitucional pode regular as situações em que ela poderá ser

afastada (cfr., p. ex., os incisos do art. 485 do CPC). Conforme os ditames

da razoabilidade e da proporcionalidade, no entanto, nem toda declaração

de inconstitucionalidade autorizará a desconstituição do título. Enquanto

instrumento de efetivação do princípio da segurança jurídica, a coisa

julgada é fator de extrema relevância no alcance de escopo fundamental

do processo, a pacificação social com justiça. A desconstituição do título

apenas será possível caso, na ponderação entre o princípio da segurança

jurídica e aquele albergado quando da declaração da

inconstitucionalidade, esse último prevaleça no caso concreto.

58 - DINAMARCO parece negar nesses casos a existência da coisa julgada material

(“Relativizar a coisa julgada material”, p. 61. No entanto, o que não existe no processo não pode ser inconstitucional e se inexistência houvesse (!) não haveria nem ao menos a possibilidade de ação rescisória contra a sentença portadora de uma inconstitucionalidade. V., a propósito, BARBOSA MOREIRA, “Considerações sobre a chamada ‘relativização’ da coisa julgada material”, p. 45, texto e notas 4 e 5.

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Para que a declaração de inconstitucionalidade

da norma determine a desconstituição do título executivo, é fundamental

que a decisão judicial tenha alicerce exclusivo nessa norma. Se houver

outro fundamento suficiente para lastrear a decisão, ela não pode ser

desconstituída. Ademais, se a decisão tiver mais de um capítulo e esses

capítulos forem autônomos, caso apenas um deles tenha fundamento em

norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, não é

possível a desconstituição do outro capítulo.

Os embargos à execução fundados no aludido

parágrafo atingem diretamente as razões que serviram de alicerce ao título

executivo judicial, abrindo nova possibilidade de discussão acerca de

matéria já decidida, só que agora com um fundamento adicional

consistente na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

O parágrafo único do art. 741 do CPC não retira

simplesmente a eficácia executiva do título. O julgador não estaria se

cingindo a aplicar uma sanção de ineficácia ao título com a declaração de

que tal ato estaria em contraste com o pronunciamento do Supremo

Tribunal Federal. Retirar a eficácia executiva significa apenas inviabilizar

essa modalidade de tutela; o parágrafo único além de permitir e viabilizar

uma nova modalidade de desconstituição do título judicial, autoriza a

declaração de que esse ato jurídico não está conforme a Constituição

Federal segundo o entendimento expressado pelo Supremo Tribunal

Federal. Esse dispositivo autoriza a declaração de inexistência do direito

material sobre o qual se funda o título executivo, pela via jurisdicional

dos embargos do executado ou por meio de ação cognitiva autônoma,

antes ou depois de decorrido o prazo de embargos.

Ocorrida a desconstituição do título executivo

por força da sentença proferida nos embargos à execução, para não ficar

sem solução o processo que deu origem ao título, poderá ser cumulado

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nos próprios embargos opostos o pedido de novo julgamento da causa,

ocorrendo assim a substituição da decisão proferida no processo

originário pela sentença dos embargos. Uma outra solução seria tornar

novamente pendente o processo originário para que outra decisão seja

proferida, tal como ocorre na hipótese do art. 741, I e do art. 475-N, I,

ambos do CPC. O importante, no entanto, é não ficar sem solução a

demanda postulada no processo no qual foi constituído o título.

O dispositivo em análise, por ter um atributo

rescisório, constitui um meio que o legislador encontrou para ampliar o

prazo para a desconstituição da sentença transitada em julgado, que na

ação rescisória, a teor do disposto no art. 495 do CPC, é de dois anos.

No que se refere ao direito intertemporal

referente à norma em questão, necessário considerar que ela apenas é

aplicável às sentenças transitadas em julgado após sua entrada em vigor.

Entendimento contrário significaria uma substancial alteração nos

contornos e alcance da coisa julgada após sua formação, importando

violação ao art. 5.º, XXXVI, da CF/88.59

É certo que o direito positivo não conhece todas

as situações aptas a desconsiderar a sentença transitada em julgado, mas

admitir a revisão do decisum já coberto pela autoridade da coisa julgada

material em situações não previstas no ordenamento jurídico, pelas razões

expostas, não pode ser aceita.

Por isso, de lege ferenda, é o caso de se ampliar

casos para a ação rescisória. No caso de descoberta científica apta a

demonstrar o erro na solução dada ao caso concreto quando era

impossível valer-se de determinada prova seria o caso de admitir a ação

59 Nesse sentido, LUCON, Código de Processo Civil interpretado, n. 9, pp. 2.167-

2.169; ARAKEN DE ASSIS, “Eficácia da coisa julgada inconstitucional”, n. 3.2, p. 26; TALAMINI, “Coisa julgada e sua revisão”, pp. 481-482.

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rescisória a partir do momento em que o interessado obtém o laudo, em

vez do trânsito em julgado da sentença rescindenda.60

Sem excluir a possibilidade de ação rescisória,61

o art. 741, parágrafo único, e o art. 475-N, § 1º, do CPC, viabilizam a

oposição de embargos à execução e a propositura de ação cognitiva

autônoma, vias obviamente não sujeitas ao prazo de dois anos da ação

rescisória, contra sentença inconstitucional, desde que tenha havido o

reconhecimento da inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal

da lei que serviu de fundamento para a sentença a ser atacada.

IV) igualdade substancial

a) assistência judiciária

Ao observar a igualdade das partes no processo,

caberá ao juiz compensar de modo adequado desigualdades econômicas e

culturais de modo a permitir a efetiva, correta e tempestiva defesa dos

direitos e interesses em juízo. “Tal é a igualdade real e proporcional, isto

é, o tratamento desigual deve ser dispensado aos substancialmente

desiguais na exata medida da desigualdade”.62

Não obstante esteja constitucionalmente prevista

a assistência jurídica integral aos necessitados (art. 5º, inc. LXXIV), ela

está muito longe de ser atingida. A assistência jurídica integral exige um

sistema de seguridade social, apto a auxiliar o jurisdicionado

preventivamente e em juízo.

60 O exemplo é de BARBOSA MOREIRA ver mais uma vez, “Considerações sobre a

chamada ‘relativização’ da coisa julgada material”, p. 61. 61 E a ação de querela nullitatis e os embargos fundados no art. 741, I, do CPC, ver

LUCON, Embargos à execução, n. 68, pp. 163-168; LUCON, Código de Processo Civil interprertado, n. 2, pp. 2.163-2.164.

62 - LUCON, “Garantia do tratamento paritário das partes”, n. 8, p. 111.

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32

A Lei de Assistência Judiciária (lei n. 1.060, de

5 de fevereiro de 1950) não foi e continua não sendo apta a solucionar

óbices ilegítimos ao acesso à justiça.

Problemas como custo do processo quando há a

necessidade de o beneficiário demonstrar suas alegações por meio de

prova pericial demonstram que muito necessita ser feito.63

Ainda sobre o custo do processo, o diferimento

do pagamento de custas processuais, como as custas iniciais e o preparo, é

meio eficaz para preservar a isonomia entre as partes litigantes.

Medida que também se afigura justa e permite o

acesso à justiça é a dispensa, aos beneficiários da assistência judiciária, de

efetuar o depósito prévio no valor de cinco por cento do valor da causa

para a propositura de ação rescisória (CPC, art. 488, par. ún.).

Outro ponto importante é a isenção do

pagamento de custas e das verbas de sucumbência ao autor da ação

popular (CF, art. 5o, inc. LXXIII) e a gratuidade das ações de habeas

corpus e de habeas data (CF, art. 5o, inc. LXXVII).

Grande avanço, nesse sentido, representou a lei

n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que instituiu os juizados especiais,

destinados a resolver causas cíveis de menor complexidade e causas

penais de menor potencial ofensivo. No entanto, em muitos Estados falta

a estruturação adequada dos juizados.

b) inversão do ônus da prova

63 - Felizmente, a jurisprudência, em importantes precedentes, tem se mostrado

sensível a tais problemas ao entender que a assistência judiciária abrange também os honorários do perito. Cfr. STJ, RT 688/198; RSTJ 57/275. Em sentido contrário: RJTJERGS 167/270. V. THEOTONIO NEGRÃO, Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, nota 7b ao art. 3º da lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1.950, p. 815.

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A denominada inversão do ônus da prova, na

realidade, nada inverte. Etmologicamente, inverter vem do latim invertere

e significa mudar a ordem de, dispor de maneira contrária ao normal.64

Portanto, quando se fala de inversão do ônus da prova quer o legislador

dizer que, em determinadas situações, há a dispensa da parte de fazer

prova de algum fato por ela alegado. Em tais circunstâncias, dispensa a lei

que o demandante faça prova do fato constitutivo de seu direito. Ou seja,

não basta ao demandado impugnar os fatos apenas alegados pela parte

contrária; tem ele o encargo, como imperativo de seu próprio interesse,65

de fazer prova de que aqueles fatos alegados pelo demandante não

ocorreram ou, admitindo-os, que não produziram as conseqüências

afirmadas na petição inicial (defesa direta) ou, ainda, apresentar fatos

impeditivos, modificativos ou extintivos daqueles integrantes da causa

petendi descrita na petição inicial (defesa indireta).

A inversão do ônus da prova está presente no

ordenamento jurídico brasileiro há muito tempo. Apesar da regra rígida

contida no art. 333 do Código de Processo Civil, pelo parágrafo único

desse dispositivo, é possível a inversão convencional do ônus de provar

quando a questão versar sobre direito disponível e não dificultar

excessivamente o exercício do direito de defesa.

O Código de Defesa do Consumidor representou

um grande avanço a partir do momento em que disciplinou a inversão do

ônus da prova por decisão judicial. Enquanto no sistema do Código de

Processo Civil admite-se a inversão convencional, com as ressalvas

64 - BUENO, Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, p.

1.978. 65 - Muito atual ainda é o ensinamento de GOLDSCHMIDT, segundo o qual o ônus,

considerado como imperativo do próprio interesse, tem estreita relação com a possibilidade processual, pois toda possibilidade impõe à parte o ônus de ser diligente (Derecho procesal civil, § 2º, n. 3, p. 8, e ainda, § 35, n. 3, p. 203).

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contidas nos dois incisos do parágrafo único do art. 333, no sistema do

Código de Defesa do Consumidor permite-se a inversão judicial do ônus

da prova (CDC, art. 6º, inc. VIII). Essa nova situação jurídica processual

tem estreita relação com o direito material, na medida em que a finalidade

específica da norma é pôr fim à vulnerabilidade das alegações do

consumidor no tocante à demonstração dos fatos constitutivos de seu

direito.66 Mas essa inversão não é incondicionada pois, para que ela

ocorra, os fatos devem ser verossímeis. Ao examinar a veromissilhança

dos fatos deduzidos pelo consumidor em juízo, deve o julgador “imbuir-

se do sentimento de que a realidade fática pode ser como a descreve o

autor”.67 Isso significa condicionar a inversão à verossimilhança das

alegações, que deve ser aferida segundo as regras ordinárias de

experiência subministradas pela observação do que comumente acontece

e ainda as regras de experiência técnica. A inversão judicial do Código

de Defesa do Consumidor está condicionada à verossimilhança a fim de

evitar uma absurda e impossível onerosidade ao produtor de bens ou

serviços. Sem incluir tal condicionamento, o dispositivo seria

inconstitucional, pois violaria de tal forma a paridade substancial das

partes no processo e a ampla defesa que impediria o acesso à ordem

jurídica justa (CF, art. 5º, caput, incs. XXXV e LIV). Estaria também

prestigiada a probatio diabolica e ignorada a possibilidade, da qual falou

GOLDSHMIDT, já que de nada adiantaria a parte ser diligente em torno de

um fato impossível.68

No Código de Defesa do Consumidor, o art. 6º,

inc. VIII, tem por fim aprimorar os mecanismos internos do processo e

preservar o tratamento paritário das partes, uma vez que não havendo

66 - MATOS, O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, p. 196. 67 - DINAMARCO, A Reforma do Código de Processo Civil, n. 106, p. 145. 68 - Derecho procesal civil, § 35, n. 3, p. 203.

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posições isonômicas dos sujeitos parciais do processo admite-se a

inversão judicial do ônus da prova,69 condicionada sempre à

verossimilhança das alegações aduzidas pelo consumidor em juízo.

Com isso, evitam-se desigualdades e preserva-se a igualdade substancial

das partes no processo.

5. Conclusão

As garantias constitucionais não precisam ser

reafirmadas pela cláusula genérica do devido processo legal. No entanto,

não resta dúvida de que essa cláusula realça e organiza o traço

democrático de como essas garantias e as demais exigências constantes do

ordenamento jurídico devem ser aplicadas. É, portanto, a matriz

constitucional de garantias superiores voltadas a tutelar os direitos e por

que não dizer, as pessoas.

Pode-se afirmar que a cláusula genérica do

devido processo legal tutela os direitos e as garantias típicas ou atípicas

que emergem da ordem jurídica, desde que fundadas nas colunas

democráticas eleitas pela nação e com o fim último de oferecer

oportunidades efetivas e equilibradas no processo. Aliás, essa salutar

atipicidade vem também corroborada pelo art. 5o, § 2o, da Constituição

Federal, que estabelece que “os direitos e garantias expressos nesta

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios

por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte”.

69 - Cfr. ARRUDA ALVIM, Código do Consumidor comentado, cit., esp. p. 71, em

comentário ao art. 6º.

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Por não estar sujeito a conceituações

apriorísticas, o devido processo legal revela-se na sua aplicação

casuística, de acordo com o método de “inclusão” e “exclusão”

característico do case system norte-americano cuja projeção já se vê na

experiência jurisprudencial pátria.70 Significa verificar in concreto se

determinado ato normativo ou decisão administrativa ou judicial está em

consonância com o devido processo legal.

O modelo internacionalmente aceito do processo

justo e équo está presente no sistema jurídico brasileiro e funda-se na

cláusula geral do devido processo legal.71 Por processo justo e équo deve-

se entender aquele processo regido por garantias mínimas de meios e de

resultado, com emprego de instrumental técnico-processual adequado e

conducente a uma tutela adequada e efetiva.72

Direito ao justo processo é direito ao processo

integral (tout court) em todas as suas fases – assegurado pelo princípio da

inafastabilidade da tutela jurisdicional que a Constituição Federal impõe

por meio da tradicional expressão “garantia da ação”. O mero ingresso em

juízo não proporciona a efetividade do processo e muito menos um justo

processo. É fundamental que o processo se realize com garantias

mínimas: I) de meios, pela observância dos princípios e garantias

estabelecidas; II) de resultados, por meio da oferta de julgamentos justos,

ou seja, portadores de tutela jurisdicional a quem efetivamente tenha

70 - Cfr. CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a

razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, pp. 55-56. 71 - V., a propósito, COMOGLIO, “Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’ (modelli a

confronto)”, n. 10, p. 148. 72 - Cfr. COMOGLIO, “Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’ (modelli a

confronto)”, n. 3, pp. 104-110; TROCKER, “Il nuovo articolo 111 della costituzione e il ‘giusto processo’ in materia civile: profili generali”, pp. 381 e ss..

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razão, com a aplicação correta do direito material. Os meios

adequadamente empregados constituem o melhor caminho para atingir

bons resultados. O que efetivamente importa não é apenas o emprego de

meios adequados; eles de nada adiantarão se o julgador vier a decidir mal

ou segundo seus próprios critérios de justiça, sem levar em conta os meios

ditados pela Constituição e pela lei. Segundo a experiência de séculos

expressa nas garantias constitucionais, é grande a probabilidade de erro

quando os meios adequados não são cumpridos. Daí surge a importância

do conceito e do conteúdo substancial da cláusula due process of law, que

mais se colhe pelos critérios de racionalidade e proporcionalidade.73

Respeitar as garantias mínimas de meios e de

resultados significa efetivar o devido processo legal substancial e ao

mesmo tempo fazer cumprir o objetivo central de todo o processo civil,

que é justamente o acesso à ordem jurídica justa.74 Eis o princípio-síntese

a ser atingido mediante o devido processo legal; com ele atinge-se o

processo justo, que é aquele portador de tutela jurisdicional a quem

efetivamente tem razão – meios justos, resultados justos.75

Em relação ao devido processo legal substancial

e o acesso à ordem jurídica justa, há uma verdadeira identidade, já que, de

um lado, representa verdadeira justiça substancial76 e de outro, constitui 73 - Em linha semelhante e certamente com arrimo em LUIGI PAOLO COMOGLIO, v.

DINAMARCO, Instituições de direito processual, n. 94, p. 246. 74 - A expressão “ordem jurídica justa” é atribuída ao processualista KAZUO

WATANABE (cfr. “Assistência Judiciária e o Juizado Especial de Pequenas Causas”, p. 161 e ss.). Para DINAMARCO, o “acesso à ordem jurídica justa” significa a “abertura de caminhos para obter soluções justas para conflitos e eliminação de estados de insatisfação — justas porque conformes com os padrões éticos e sociais da nação” (Superior Tribunal de Justiça e acesso à ordem jurídica justa, in Recursos no Superior Tribunal de Justiça, p. 251).

75 - V. DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, n. 95, p. 247. 76 - Vaughn v. State, 3 Tenn. Crim. App. 54, 456 S.W.2d 879, 883, in Black’s Law

Dictionary, p. 501.

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arrimo das liberdades e dos direitos fundamentais e projeta-se no processo

como um sistema legítimo de limitações ao poder do juiz e, por

conseqüência, de limites ao exercício da jurisdição na correta aplicação

do direito dotado de indispensável razoabilidade (fair and reasonable).

Em síntese, a essência do devido processo legal substancial é a proteção a

toda e qualquer ação arbitrária e não razoável.77

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77 - Jeffries v. Turkey Run Consolidated School Dist., C.A. Ind., 492 F.2d 1, 3, in

Black’s Law Dictionary, p. 1429. Como observado por CELSO MELLO, a cláusula do devido processo legal “destina-se a garantir a pessoa contra a ação arbitrária do Estado e colocá-la sob a imediata proteção da lei” (Constituição Federal anotada, p. 341).

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