desenvolvendo projetos de leitura e escrita nas aulas de língua materna em colaboração com...

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1 DESENVOLVENDO PROJETOS DE LEITURA E ESCRITA NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNA EM COLABORAÇÃO COM PROFESSORES Lisiane Raupp da Costa 1 UNISINOS/RS RESUMO Esse trabalho se insere num projeto maior denominado “Por uma formação continuada cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual escrita no Ensino Fundamental”, do Programa Observatório da Educação/Capes, coordenado por Ana Maria Mattos Guimarães, do PPGLA Unisinos, que visa a cooperação dos professores na construção do próprio conhecimento e na reflexão de suas práticas de ensino. Percebe-se que, apesar de todos os cursos de formação que se seguiram à publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais pelo MEC em 1997, os princípios ali discutidos ainda não estão disseminados nas escolas. Percebe-se ainda uma lacuna existente entre o que a academia produz, o que recomendam os documentos oficiais, e o que efetivamente o professor faz na sala de aula. Sendo assim, acompanha-se o trabalho de dois professores de Novo Hamburgo/RS, na elaboração colaborativa e aplicação de projetos de ensino, que têm os gêneros textuais como articuladores das atividades, analisando como esses professores articulam as ideias desenvolvidas na academia à sua prática de sala de aula, após participarem de grupos de discussão das bases teóricas para um trabalho dessa natureza. Por meio de observação participante, o desenvolvimento dos projetos com os alunos foi gravado em áudio e vídeo e foram realizadas entrevistas semi-padronizadas com os professores. Palavras chave: prática, gêneros, projetos, formação, letramento. ABSTRACT 1 Mestranda em Linguística Aplicada da Unisinos, especialista em Alfabetização e Letramento pelo IERGS, graduada em Letras/Português pela ULBRA/Gravataí, professora de Língua Portuguesa e Inglesa. [email protected]

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DESENVOLVENDO PROJETOS DE LEITURA E ESCRITA NAS AUL AS DE

LÍNGUA MATERNA EM COLABORAÇÃO COM PROFESSORES

Lisiane Raupp da Costa1

UNISINOS/RS

RESUMO

Esse trabalho se insere num projeto maior denominado “Por uma formação continuada

cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual

escrita no Ensino Fundamental”, do Programa Observatório da Educação/Capes, coordenado

por Ana Maria Mattos Guimarães, do PPGLA Unisinos, que visa a cooperação dos

professores na construção do próprio conhecimento e na reflexão de suas práticas de ensino.

Percebe-se que, apesar de todos os cursos de formação que se seguiram à publicação dos

Parâmetros Curriculares Nacionais pelo MEC em 1997, os princípios ali discutidos ainda não

estão disseminados nas escolas. Percebe-se ainda uma lacuna existente entre o que a academia

produz, o que recomendam os documentos oficiais, e o que efetivamente o professor faz na

sala de aula. Sendo assim, acompanha-se o trabalho de dois professores de Novo

Hamburgo/RS, na elaboração colaborativa e aplicação de projetos de ensino, que têm os

gêneros textuais como articuladores das atividades, analisando como esses professores

articulam as ideias desenvolvidas na academia à sua prática de sala de aula, após participarem

de grupos de discussão das bases teóricas para um trabalho dessa natureza. Por meio de

observação participante, o desenvolvimento dos projetos com os alunos foi gravado em áudio

e vídeo e foram realizadas entrevistas semi-padronizadas com os professores.

Palavras chave: prática, gêneros, projetos, formação, letramento.

ABSTRACT

1 Mestranda em Linguística Aplicada da Unisinos, especialista em Alfabetização e Letramento pelo IERGS, graduada em Letras/Português pela ULBRA/Gravataí, professora de Língua Portuguesa e Inglesa. [email protected]

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This work is part of a larger project called "For a continuing cooperative education for the

development of the educational process of reading and writing textual production in

elementary school" of Program of Observatory Education / CAPES, coordinated by Ana

Maria Mattos Guimarães, PPGLA Unisinos, it aims to cooperation in the construction of

teachers' own knowledge and reflection on their teaching practices. It is clear that, despite all

the training courses that followed the publication of the National Curriculum by the MEC in

1997, the principles discussed here are not yet widespread in schools. We can also observe a

gap between what the academy does, what the official documents recommending, and that

effectively makes the teacher in the classroom. Thus, the work is accompanied by two

teachers from Novo Hamburgo/ RS, in the development and implementation of collaborative

teaching projects, which have the text genres as articulators of activities, analyzing how these

teachers articulate the ideas developed in academia to their practice classroom, after

participating in discussion groups of a theoretical basis for such work. Through participant

observation, the development of projects with the students was recorded on audio and video

interviews were conducted with semi-standard teachers.

Keywords: practice, genres, projects, training, literacy.

1- INTRODUÇÃO

Em tempos de tantas exigências pedagógicas feitas aos professores, por conta da

necessidade de adequar cada vez mais o que se ensina e se aprende na escola à realidade

social, por meio dos documentos oficiais como Parâmetros Curriculares Nacionais,

Referenciais Curriculares do RS e avaliações governamentais como SAEB, SAERGS,

ENEM, pensa-se mais e mais em como e o quê ensinar em todas as disciplinas,

especialmente, no nosso caso, na de Língua Portuguesa. Por isso, nos preocupamos em

apresentar e discutir, neste trabalho, alguns resultados parciais obtidos por meio de uma

pesquisa colaborativa, com desenvolvimento iniciado no ano de 2011, e ainda em andamento,

em duas turmas de 6ª série, a partir da percepção dos dois professores dessas turmas, e

mostrar que projetos de gêneros textuais, quando construídos de forma crítica, podem

desenvolver a educação linguística por meio de práticas variadas de letramento

promovendo a aprendizagem tanto de professores quanto de alunos.

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Nos focamos no ensino da língua escrita, assim como Tinoco (2009, p. 152), com o

intento “de contribuir com o trabalho docente e, especificamente, no tocante ao complexo

processo de ensinar cidadãos a ler e a escrever para agir sobre o mundo”. Sendo assim, os

projetos aqui analisados, mostram tentativas, ainda que iniciais, de aplicar os conhecimentos

adquiridos na formação continuada e construção, em parceria, de projetos de ensino de Língua

Portuguesa tendo os gêneros textuais que desenvolvam habilidades voltadas para a prática

social como foco, ou seja, que possibilitam esse agir no mundo, de que fala Tinoco e tantos

outros autores como Kleiman (1995, 2000), Soares (1999) e Street (1984).

Esses projetos foram construídos a partir dos estudos realizados num projeto maior,

denominado “Por uma formação continuada cooperativa: para o desenvolvimento do processo

educativo de leitura e produção textual escrita no ensino fundamental”, coordenado pela

professora doutora Ana Maria Mattos Guimarães, com o apoio da Capes/Observatório da

Educação, em parceria entre os professores da rede municipal de Novo Hamburgo/RS,

graduandos, mestrandos e doutorandos - bolsistas de iniciação científica - e professoras da

Unisinos, e aplicados em turmas de 6ª série.

Esperamos com esses projetos, aproximar as pesquisas realizadas na universidade às

práticas de sala de aula, visando mudanças efetivas no ensino, voltadas ao crescimento

docente e discente.

Para deixarmos claro nossa perspectiva de ensino, faz-se necessário, na primeira parte

do trabalho, contextualizar, através da conceituação de alguns termos usados no

desenvolvimento das práticas realizadas no processo desse projeto, como letramento,

educação linguística, sequência didática, gênero textual e as orientações dos documentos

oficiais para o ensino de língua portuguesa. Na segunda parte, explica-se a metodologia usada

na geração de dados e o contexto em que se encontra esse estudo. Na terceira parte são

apresentados e discutidos os resultados e na quarta parte, fazem-se algumas considerações

finais.

2- “ONDE EU USO ISSO?” - (RE)CONSTRUINDO CONCEITOS

Entendendo que a leitura e a escrita não podem ser pensadas como meio de salvação

humana, como se elas por si só libertassem as pessoas de todo mal, acredito que, do mesmo

modo que Britto (2003), a leitura e escrita possam servir como instrumento para o exercício

da cidadania se forem realizadas criticamente e não só para se dizer “letrado”. A questão é se

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constituir letrado, vinculando aí, a leitura e escrita como práticas sociais, que podem levar o

sujeito a quebrar as correntes da submissão, impostas pelas ideologias2 dominantes. A

partir da premissa do senso crítico, então sim, creio que a leitura pode servir para libertar,

como aponta Freire (1970). Sendo assim, este trabalho procura identificar práticas escolares

que desenvolvem atividades de leitura e escrita através de projetos construídos em parceria,

embasados na noção de gêneros (Schneuwly e Dolz, 2004) e ampliando o modelo de

sequência didática da Escola de Genebra3, aliado aos estudos de letramento, que

compreendem a leitura e a escrita como práticas sociais, como necessárias para agir no

mundo.

Os gêneros textuais, de acordo com Schneuwly e Dolz (2004), são instrumentos para

agir em situações de linguagem e são pensados como caracterização dos diferentes discursos

veiculados na sociedade, já estipulados pelo uso social, para que não tenhamos que construir

cada um de nossos enunciados, facilitando assim, a comunicação, conforme a concepção

bakhtiniana exposta por Schneuwly e Dolz (2004), já que, um gênero, como explica Oliveira

(2010), “ é, em suma, um modo próprio de dizer que revela quem fala e de que lugar fala”, ou

seja, são originados das atividades de linguagem e não o contrário, constituindo-se um ponto

de referência concreto para os alunos, um meio para que atinjam a aprendizagem social.

Podemos também considerar os gêneros uma forma de aplicarmos o que a Declaração

Universal dos Direitos Linguísticos propõe como direito linguístico o de “ter conhecimento

profundo do patrimônio cultural” de sua comunidade linguística (art.28), entendendo a língua

como “expressão de uma identidade” (art.7), por entendermos que os gêneros textuais são

uma forma de cultura social que se baseia no uso que o grupo linguístico faz das suas

enunciações e que perpassa as funções da escola.

A princípio, como explicam Schneuwly e Dolz (2004, p. 76), a escola sempre trabalhou

com gêneros, num primeiro momento, criando gêneros especificamente escolares, sem

vínculo com a realidade, de forma fictícia, só para avaliação; depois passaram a ser

naturalizados como se surgissem na situação escolar, sem estudá-los na sua forma, sem

vinculá-los com os exteriores à escola usando em seguida, textos tirados da realidade como

pretexto para atividades tradicionais e em tempos mais atuais, começou-se a pensar nos

2 Ideologias, segundo Chauí (1991), são as explicações dadas para criar a ideia de que todo fenômeno que acontece no mundo é natural, sem razões lógicas, usadas para favorecer a quem está no poder de alguma situação, por mascarar a realidade social. 3 A Escola de Genebra é a Universidade onde se desenvolvem as pesquisas de Schneuwly e Dolz sobre o uso de gêneros didáticos no ensino de línguas, no caso deles, o Francês.

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gêneros textuais usados na sociedade como foco do ensino na escola, facilitando o domínio de

meios reais para práticas sociais efetivas, refletindo o seu funcionamento, estrutura, questões

linguísticas pertinentes e, principalmente, utilidade social.

Para desenvolver os gêneros na prática de sala de aula, Schneuwly e Dolz (2004)

desenvolveram a ideia de sequência didática, que é um módulo de ensino do gênero textual

que parte de uma apresentação da situação para uma produção inicial e oficinas que propiciam

a aprendizagem das diferentes características do gênero estudado, partindo da escrita dos

próprios alunos na primeira produção, com o intuito de saber as suas dificuldades e

instrumentalizá-los, a fim de atingir o objetivo de produzirem o gênero de texto escolhido

para satisfazer as necessidades sociais da turma, como explica Guimarães (2005). Por isso,

quando planejava seu projeto, a professora Clara4 pensou em qual seria a necessidade social

de seus alunos e, na entrevista, quando perguntada sobre a motivação para a escolha do tema,

diz que o escolheu porque seus alunos “adoram contar tragédias”, na tentativa de “ talvez

fazer com que eles leiam as narrativas de detetive e vejam a realidade deles de uma forma

mais lúdica(...)” . O professor Francisco5 escolheu trabalhar com o tema “alimentação

saudável”, pois já haviam abordado esse assunto e sentiu necessidade de aprofundar o

conhecimento dos alunos sobre isso. Percebendo as práticas sociais dos alunos de olharem

muito televisão e prestarem atenção em propagandas, identificou o gênero a ser trabalhado

como forma de colocarem em prática o que vivenciavam com as propagandas.

Em cada etapa dos projetos desenvolvidos, propõe-se construir práticas de letramento,

que, segundo Soares (2003, apud Freitas 2006), são os comportamentos exercidos num evento

de letramento, ou seja, atividades que envolvem leitura e escrita, que levam os professores e

alunos a praticarem a leitura e escrita, aprendendo a lidar com diferentes situações, já que,

segundo Soares (1999, p. 18), o letramento “é o resultado da ação de ensinar ou de aprender a

ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como

consequência de ter-se apropriado da escrita.” Além disso, nesse processo de construção de

projetos didático de gêneros, procuramos a interação de professores e alunos com o mundo

4 A professora, aqui denominada “Clara”, tem 26 anos, é graduada em Letras Português/Inglês, pela Unisinos, há 3 anos e meio, é professora da rede municipal de Novo Hamburgo e participa do projeto de pesquisa “Por uma formação continuada cooperativa: o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual escrita no ensino fundamental”. 5 O professor, a quem denominamos neste trabalho de “Francisco”, tem 43 anos, é graduado em Letras pela Unisinos, tem Mestrado em Literatura Portuguesa e Africana pela UFRGS e é doutorando em Literatura Africana pela UFRGS, é professor da rede de Novo Hamburgo e participa do projeto de pesquisa coordenado pela Professora Doutora Ana Maria Mattos Guimarães.

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real, pois de acordo com a mesma autora (p.44), “letramento é o estado ou condição de quem

se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita.” Entendo,

conforme a definição de Kleiman (1995), que o letramento tem como um dos seus sentidos o

que Paulo Freire atribui à alfabetização: capaz de levar o analfabeto a organizar

reflexivamente seu pensamento.

Levando em conta também os estudos de Street (1984), temos que as práticas de

letramento são social e culturalmente determinadas e, como tal, os significados específicos

que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela

foi adquirida, assim não temos o, mas os letramentos. E no caso da escola, de acordo

com Tinoco (2009, p. 155), “os projetos de letramentos requerem, portanto, textos de

circulação real, trazidos para a sala de aula, para subsidiar ações que serão realizadas fora do

ambiente escolar, e não textos didatizados em função de um conteúdo pré-selecionado para

determinada série.” para que possam realmente contribuir com uma educação linguística que

faça sentido, pois, segundo Travaglia (2007), a educação linguística “é o conjunto de

atividades de ensino/aprendizagem, formais ou informais para tornar-nos bons usuários da

língua, usando os recursos disponíveis para atingir o objetivo comunicativo para interação em

determinada situação”. Será a educação linguística toda e qualquer forma de

ensino/aprendizagem, dentro e fora da escola, como explicam Bagno e Rangel (2005, p.1):

Entendemos por educação linguística o conjunto de fatores socioculturais que, durante toda a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e ampliar o conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre outras línguas, sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre todos os demais sistemas semióticos (...) crenças, superstições, representações, mitos e preconceitos que circulam na sociedade em torno da língua/linguagem (...) o aprendizado das normas de comportamento linguístico que regem a vida dos diversos grupos sociais cada vez mais amplos e variados, em que o indivíduo vai ser chamado a se inserir.

Os autores também afirmam que a educação linguística de cada indivíduo começa logo

no início de sua vida, assim, sabemos que quando chegam à escola, todos os alunos já

desenvolveram muito da sua educação linguística e continuam, paralelamente,

desenvolvendo-a fora da escola, porque todas as nossas interações linguísticas propiciam o

desenvolvimento da linguagem. Porém, a parte da educação linguística aprimorada na escola

com mais ênfase, é o letramento, ou seja, as práticas de leitura e escrita, já que este é o foco

da escolaridade, que também não acontecem só na escola. E os professores precisam ter a

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sensibilidade de entender que quando chega na escola, a criança precisa primeiro gostar do

que está fazendo. As que ainda não tiveram bons eventos de letramento em casa, precisarão

de tempo para se acostumar, e se as experiências e exemplos se distanciam de sua realidade,

tanto menos elas se sentirão à vontade na escola. Assim também com jovens e adultos.

No projeto da professora Clara6, em que usou de um tema do qual eles falavam muito, a

professora percebeu essa necessidade e conseguiu com que os eventos de letramento da sua

turma tivessem um pouco mais de proximidade com a realidade dos alunos e expressa isso

dizendo: “eles gostaram, porque é uma prática que eles já acompanham, até por eles

acompanharem as notícias da violência que tem na comunidade que eles olham na tv, vêem às

vezes no jornal (...)”. Assim também o professor Francisco procurou incluir na sala de aula

um gênero textual que muitos alunos já conheciam, para que trabalhassem a partir da sua

realidade.

Pensamos que tanto mais rica será a aula se, aproveitando-se da situação da própria

turma, criam-se as atividades para que façam sentido aos alunos, para que, a partir da suas

experiências possam aprimorar a linguagem, e assim fazer bom uso da educação linguística

que estão recebendo. E seguindo o exemplo de Flecha (2006): “Em vez de transformar o

contexto para provocar um desenvolvimento cognitivo igualitário, pretende adaptar o

currículo ao contexto dado”, já que as atividades desconexas da realidade levam os aprendizes

a não associarem a escrita como outra maneira de se comunicar.

Sabemos que, cada vez mais, é salutar uma reflexão mais aguçada dos alunos sobre sua

condição social para que sejam protagonistas da sua realidade, como propõe o projeto de

Lívia Suassuna, Iran F. Melo e Wanderley Elias Coelho (2007), denominado Construções do

real em discursos literários e documentais, em que nos mostra que um bom projeto de estudo

da Língua Portuguesa inclui a reflexão prática sobre a análise linguística, levando em conta as

condições de produção dos discursos analisados: quem anuncia, para quem, sobre o quê, com

que objetivo e em que situação, mostrando que o uso real do texto do aluno e, não mais o

fazer por fazer, é que gerará o desenvolvimento crítico do aluno, como se dá conta o professor

Francisco a partir de suas experiências no projeto de pesquisa: “realmente o aluno tá

produzindo um texto muito artificial, (...) tá ali fazendo uma narração, uma dissertação, uma

descrição... tá, (e o aluno pode pensar) ‘mas, e no dia a dia, onde eu uso isso?’, então é esse

olhar que agora tá diferente.”

6 Os nomes aqui usados são fictícios pra preservar a identidade dos envolvidos.

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A partir da mudança do olhar de professor sobre a aprendizagem do aluno,

desenvolvem-se novas atitudes frente às possibilidades de ensino. Embora tenhamos

consciência das dificuldades de nos adaptarmos ou nos darmos conta da necessidade de uma

renovação no ensino de língua portuguesa, principalmente quando isolados em nosso trabalho

de sala de aula, a partir do primeiro passo, já podemos ter novas percepções de nós mesmos,

como afirma a professora Clara: “é na troca que eu percebo que muitas vezes eu sou aquela

pessoa/aquele professor que eu critico entendeu? Só que, pra tu te dar conta que tu é aquilo

que tu criticas, às vezes é difícil (...)”, difícil, mas como vemos em nossas próprias

experiências, não é impossível nos darmos conta do que somos e do que podemos ser, ou de

como somos e como podemos ser, dando continuidade ao desenvolvimento da nossa educação

linguística.

3- CONTEXTO DA PESQUISA

No projeto de pesquisa “Por uma formação continuada cooperativa: o desenvolvimento

do processo educativo de leitura e produção textual escrita no ensino fundamental”, a partir do

qual tiramos os dados para a realização deste trabalho, foram realizados encontros semanais,

desde fevereiro de 2011, onde os envolvidos na pesquisa puderam estudar textos que

subsidiaram o trabalho desenvolvido, tais como: PCN’s (1997, pág.17-44), Cerqueira (2010),

Camillo (2007), Travaglia (2007), Gregolin (2007) sobre ensino de Língua Portuguesa; Bagno

e Rangel (2005), sobre educação linguística; Lopes (2007), D’aligna (2007), Beyer (2005),

sobre inclusão; Oliveira (2010), Guimarães (2005), Schneuwly e Dolz (2004), Referenciais

Curriculares do RS (2009, p. 92-102) e Bunzen (2007) sobre gêneros textuais. A partir das

reflexões dessas leituras discutidas, passamos a denominar os projetos desenvolvidos com

gêneros textuais, da forma como o fizemos, de Projeto Didático de Gênero, pois não

poderíamos mais situá-lo como sequência didática, já que é mais flexível e pode abranger até

dois gêneros textuais intercalados.

Para este trabalho, foram escolhidos, aleatoriamente, dois dos cinco primeiros7

professores participantes, com os quais, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas,

gravadas em áudio e transcritas por mim. Além das entrevistas, foram analisados os projetos

7 Na primeira etapa do projeto de pesquisa , na qual nos encontrávamos até julho de 2011, participavam apenas 5 professores da rede municipal de Novo Hamburgo, que serão os multiplicadores, nas formações realizadas com outros professores na rede, na segunda etapa.

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construídos e aplicados nas respectivas turmas e a aplicação das atividades foram observadas

por mim e pelos bolsistas da graduação e gravadas em vídeo, onde pudemos constatar o ritmo

da aplicação, as reações dos alunos, as estratégias dos professores e o desenvolvimento das

práticas de letramento propostas.

As escolas dos dois professores escolhidos para este trabalho são escolas grandes,

ambas situadas na periferia da cidade cuja secretaria de educação participa do projeto, com o

índice do IDEB abaixo da meta esperada em 2009, uma com média de 4,2 entre 2005, 2007 e

2009 e outra com média de 3,6. As duas escolas são compostas de alunos com famílias

constituídas, em grande número, pelo menos em uma das escolas, de forma não tradicional,

em que uns vivem só com o pai ou só com a mãe ou com avós, outros tem padastro ou

madrasta e a maioria que trabalha tem profissões pouco remuneradas. As duas escolas têm

suas dependências amplas, porém pouco conservadas. Nelas, há espaço para a realização de

atividades extraclasse e de integração, porém, ou são mal-conservados ou não há profissionais

habilitados ou designados para a atividade.

A turma do professor Francisco, conta com 22 alunos, as da professora Clara, tem em

média 30 alunos, porém muitos faltam à aula aleatoriamente, conforme a fala da própria

professora:

“uma coisa negativa é que, como eles (...) não são muito assíduos, alguns eu percebo a dificuldade assim, numa aula que a gente leu tal trecho do livro, o aluno x, y e z, e lá o alfabeto inteiro, (...) esses alunos não vieram na escola, e daí na aula seguinte eles tem que ler aquele trecho e ler o outro, então compromete bastante na continuidade”.

Essa é uma das dificuldades encontradas nas escolas para o bom desenvolvimento dos

alunos, já que estes, em muitas comunidades, faltam bastante, principalmente quando suas

famílias têm poucas condições financeiras. Trabalhar assim fica complicado, pois os

professores são cobrados pela aprendizagem de todos os alunos e, em muitos casos, mesmo a

aula sendo agradável, o aluno não vem e não aprende como poderia, o que pode ser um dos

fatores que desanimam os professores, como aponta a professora Clara: “eu penso bastante –

até quando eu vou continuar sendo professora, porque... às vezes o desafio tá ali e tu não

consegue superar .. e isso é muito frustrante.. pra mim.. assim.. eu.. não imaginava encontrar

tudo isso que eu encontrei.” Mas os professores continuam acreditando no seu trabalho, como

afirma o professor Francisco: “Eu gosto muito dessa interação com o aluno, dessas conversas

(...). Gratificante assim, quando o aluno, chega e conversa contigo ‘bah, professor,.. gostei

muito da tua aula’, entende? isso é o melhor de tudo. Tu sabe do carinho que eles têm por ti

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(...).” Estamos convencidos de que, para o aluno gostar da aula, gostar do professor, não basta

fazer só o que o aluno quer na aula, mas o que ele precisa aprender para agir no mundo,

quando as coisas fazem sentido tanto para o professor, quanto para o aluno.

Por isso, muitos têm procurado estudar mais para vencer os desafios que se apresentam.

O professor Francisco, por exemplo, em suas respostas, mostrou-se bastante motivado em

buscar mais conhecimento no projeto: “Eu estou no Observatório por realmente uma grande

curiosidade, é... como eu sou da área da literatura e eu sempre... em sala de aula a gente

sempre trabalha muito com questões linguísticas, e eu queria uma atualização em

linguística.”, já a professora Clara diz estar em conflito com a realidade da escola e na busca

de um sentido pra sua prática de sala de aula: “Bom (...) Eu aceitei o convite... porque quando

eu cheguei na escola eu me choquei bastante com a realidade... a princípio não fiquei

satisfeita, fiquei muito chocada, né.” Esse choque de realidade, o qual muitos professores

vivenciam, faz toda a sociedade entrar em conflito de crenças sobre as causas e consequências

das dificuldades da educação.

Toda essa estrutura educacional, exposta de forma deliberadamente deturpada na mídia,

através de programas de TV preocupados em atestar a própria tese às quais antecipadamente

já haviam determinado causas e consequências dos baixos índices do IDEB, é, em verdade, a

face da educação mundial, onde há muitos déficits: de investimento em estrutura física das

escolas, de motivação, remuneração e formação dos professores, de estrutura familiar e

psicológica dos alunos, além de outros tantos problemas escolares, adquiridos pelos ranços

políticos e sociais. Porém, a intenção desse projeto, é mostrar a busca de soluções a partir da

formação continuada dos professores, pois acredito que é preciso que haja uma leitura crítica

e atenta dos documentos nacionais e regionais de referência (PCN’s, Referenciais curriculares

do RS, LDB 9394/96...) pelos professores, para haver uma real reflexão e conscientização do

processo ensino/aprendizagem, pois, além daqueles que não lêem e continuam ensinando da

forma tradicional, há aqueles que lêem e também continuam a ensinar assim, ou porque não

entendem as propostas, ou porque realmente acreditam que o certo é assim. Sinceramente,

neste último caso eu tenho muitas dúvidas se acontece. Porque, por mais trabalho que dê

mudar de atitude, de postura, quando há uma reflexão crítica e consciente sobre o processo

ensino/aprendizagem, dá-se conta de que a forma tradicional não dá conta de cumprir com o

papel principal da escola que é a transformação social, como exposto na fala da professora

Clara: “Ahm, claro que vai vir uma mudança, eu vou tentar mudar e talvez mude pra melhor”,

muitos profissionais, ao investirem no processo de formação, apostam numa mudança, a partir

das reflexões teóricas que fazem.

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Podemos constatar que, a partir de uma formação continuada, onde se discute com os

professores as formas de trabalho, e não só os enche de teorias, pode levá-los a um

aprendizado significativo, como demonstra o professor Carlos: “eu acho que eu aprendi a ser

mais crítico, né, aprendi a ser mais crítico, não, mas eu comecei a olhar de outra forma... a

aula, as questões de gramática, assim, digamos, né”, ou pelo menos pode deixá-los mais

abertos a mudanças, como vemos na fala da professora Clara: “o observatório me deixou

assim, meio... me questionando, eu fiquei com muitas dúvidas, porque às vezes tu tem tanta

certeza do que tu faz e daqui a pouco tu não...será que eu faço isso mesmo?” e se as

formações servirem para, deixar os professores com algumas dúvidas a partir das teorias

discutidas, já podemos considerar um primeiro passo dado. O segundo será quando pudermos

ajudá-los a sanar algumas dessas dúvidas, em ações conjuntas.

4- PRA FAZER SENTIDO - ENTENDENDO OS PROJETOS

Os projetos desenvolvidos foram pensados a partir de temas que estavam na vida da

comunidade, na vida dos alunos, no momento de aplicação, assim, a professora Clara optou

pelo gênero narrativa de detetive, por abranger o tema “investigação policial”, recorrente nas

conversas dos alunos, e o professor Carlos optou por folder, para refletirem mais sobre

alimentação saudável, e poderem incentivar mais pessoas a se alimentarem melhor. Ambos

com o foco na leitura e escrita, trabalhando, conforme a necessidade da produção textual, em

cada oficina, um tema referente ao modo de produzir o gênero em questão. Para isso a

professora Clara usou de explicações orais, vídeos do Sherlock Holmes, leitura de um livro

em capítulos, em aula e em dupla, pelos alunos, atividades escritas, exercícios gramaticais,

para treinarem as questões demonstradas como dificuldades, na primeira produção dos alunos,

entrevista com um investigador de polícia e, por fim, a produção final, num total de 11

oficinas que ainda não haviam sido todas aplicadas no momento da escrita desse artigo.

A professora relata que teve dúvidas quanto à aplicação das atividades: “Quando eu

pensei em ler o livro eu pensei ‘será que vai dar certo?’(...) será que eles vão entender o que tá

acontecendo na história?”, porém, penso que a empolgação dos alunos durante o projeto a

tranquilizou: “quando é que vai ter a aula de detetive de novo?” eles perguntavam e,

provavelmente, por ser escolhido um tema do qual eles gostaram, houve uma adesão da

maioria dos alunos com o trabalho, o que fez a professora constatar que:

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“eles ficaram bastante empolgados com a primeira produção, e assim, eu vejo que nas atividades, às vezes eles reclamam de terem que fazer, mas um pouco de preguiça, né, mas a parte da leitura do livro eles tão gostando bastante, inclusive, às vezes tu tem que ficar ‘(...) é só até a página 20’ e eles querem ler mais,..eles estão, às vezes além da página que eu pedi pra eles lerem.”

Já o professor Francisco também usou de explicação oral, de definições encontradas na

internet e no dicionário, de recurso de recorte e colagem para a produção inicial, apresentação

e comparação entre materiais impressos, mostra de um esquema de montagem de folder em

um blog de uma gráfica, num total de 6 oficinas, já aplicadas totalmente no momento da

escrita deste artigo.

Esse professor explica que: “a aula de português geralmente é sentar, copiar alguma

coisa do quadro, ver alguma coisa do livro, ou uma leitura, e aí aquilo ali pra eles foi

diferente.”, pois acredito que o trabalho com gêneros textuais, mesmo que sejam aqueles mais

usados pelos alunos, podem trazer mais conhecimentos e vontade de aprender, se estiver

relacionado com a prática social do aluno, como demonstra a fala do professor Francisco:

“essa produção, que eles vêem que são coisas que eles usam no dia-a-dia, que eles tem contato no dia-a-dia, tanto é que eles mesmos vão respondendo, né, e vão dizendo onde é que encontram aquilo e eles verem isso sendo usado por outras pessoas, no sentido de, bom, o folder, vai ser distribuído, no princípio ele ia ser distribuído na escola, eles iam ver os colegas recebendo, agora vai ser distribuído aqui (na Unisinos)”

Além dos alunos e professores, todas as pessoas que convivem com a comunidade

escolar, fazem parte do processo ensino/aprendizagem, de acordo com a afirmação de Flecha

(2006) “Todo mundo influencia na aprendizagem e todo mundo deve planejá-lo

conjuntamente.”

É nisso que insistem os estudiosos da linguística aplicada: o ensino tem que fazer

sentido. A leitura, a escrita e também a fala têm de ser usadas para a reflexão e ação na

sociedade, portanto, como isso é a base do ensino de língua materna, nada mais coerente do

que usá-los na prática, pois como afirma Ortega e Puigdellívol (2006) “A aprendizagem não

se concentra tanto em encher os alunos com um monte de informações, sem saber o que fazer

com elas”, então as atividades podem gerar um conhecimento mais coerente, como afirma o

professor Francisco:

“(se) um outro professor (disser), ‘agora vocês vão usar um verbo no imperativo’ eles vão dizer: ‘eu sei

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o que que é’ (...), mas se alguém disser assim, ‘bom, agora nós vamos fazer um folder’, eles também vão saber o que que é, então eles tem a aprendizagem, não é uma coisa só, não foi só um conteúdo de gramática que ele aprendeu(...)”

Também não podemos continuar agindo como se as coisas à nossa volta não

estivessem acontecendo, como se os alunos não vivenciassem a realidade e continuarmos

realizando atividades que servem só para avaliação escolar, pois quando vemos que o que

ensinamos aos alunos faz sentido pra eles, acaba fazendo sentido pra nós também, como

responde o professor Francisco ao ser questionado sobre o que ele observou de positivo no

projeto que ele realizou com a turma:

“ aquela produção não ficar ‘bom, eu vou fazer um texto pro professor ler’, (...) achei interessante justamente eles verem o produto, assim, não sendo só um texto, (...)mas verem um produto, todo, pronto, e que ali está... a escrita,a gramática, tudo o que eles aprenderam tá ali dentro, então eles vêem , ‘ah, agora tem sentido aquilo que eu aprendi’.”

Em muitos momentos desse projeto, surgiram muitas dúvidas, assim como imaginamos

que haja dúvidas na prática da maioria dos professores, até porque, nenhum dos dois

professores colaboradores deste trabalho havia trabalhado com este tipo de projeto ainda,

como a professora Clara relata: “Eu eu criava os meus projetos, assim, só que não com tanta

profundidade.”; e o professor Francisco confirma: “projetos(...) grande, assim como esse,

não.” Mas qual a diferença entre o que realizavam antes (e que a maioria dos professores que

trabalham com projetos faz) e o projeto que realizaram agora? A professora Clara diz que:

“talvez, criava projetos menores, acho que essa é a diferença e o embasamento teórico, (...) tu tem a troca que eu acho que (o que) realmente diferenciou é que agora tu tem/eu tenho essas pessoas com quem eu converso que dão sugestões, que a gente tem uma troca, que eu vejo o projeto dele e ‘ah, esse/isso deu certo, é legal no dele, eu vou tentar colocar um parecido no meu’.”

Já o professor Francisco relata que:

“às vezes a gente desenvolve projetos, por exemplo, no ano passado eu fiz um projeto junto com a professora de matemática, aí entrou a professora de artes também, e aí a gente desenvolveu um projeto sobre poesia (...)a gente procura/eu procuro sempre trabalhar junto com outro colega, pra não ficar aquela coisa muito isolada, não gosto muito. (...) mas sempre pequenos projetos.”

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Assim, as dúvidas vão surgindo e vão sendo sanadas em conjunto, colaborativamente,

cooperativamente, e vamos sempre aprendendo com a prática também, porque nada é pronto,

acabado, como foi expresso pela professora Clara: “na hora que tu tá fazendo, por mais que tu

pense, que tu te prepare (...), é o improviso que reina, (...) às vezes sai completamente fora do

que tu te preparou, do que tu imaginou que fosse a aula, e, às vezes a gente não se dá conta

que saiu fora”, mas de acordo com Britto, Santos e Abud (2005) “O especialista preocupado

com o ensino voltado para a educação linguística deve ter claro seu objetivo em cada aula,

sem lançar mão do improviso e da criatividade.” Assim os projetos podem ir melhorando,

tornando a prática escolar mais fácil de entender.

Trabalhar com gêneros textuais, como foi dito, não é transformar o texto em pretexto,

e nem pegar qualquer texto para “puxar um assunto” na aula. Para desenvolver o trabalho com

gêneros, é preciso primeiro pensar em qual situação real os alunos estão vivendo e que pode

servir de fundo para as aulas, de acordo com o interesse ou necessidade deles.

A partir daí, escolhe-se um ou mais gêneros textuais que poderão fazer o aluno pensar

sobre sua situação social e, paralelo a isso, desenvolver suas habilidades de leitura e escrita. A

princípio, pede-se uma produção textual inicial, sem explicação sobre o gênero aos alunos,

mas a partir do que eles sabem sobre o gênero, que servirá de base para as atividades que

desenvolverão o conhecimento linguístico sobre o gênero (estrutura, função, características e

tópicos gramaticais), preparando-os para a produção textual final que servirá de prática

social, conforme o combinado com a turma, ou o planejado pelo/a professor/a. Em seguida

são feitas aulas/oficinas com atividades variadas para ampliar as condições de escrita dos

alunos, desenvolvendo a leitura, interpretação, escrita e conhecimentos gramaticais da língua,

a partir de suas próprias dificuldades e considerando os conhecimentos prévios.

No caso dos projetos analisados, as produções finais das narrativas de detetive

construídas, servem como reflexão dos próprios alunos sobre sua realidades e que podem ser

melhor aproveitadas se forem publicadas em um mural, blog, livro da turma, ou outro meio de

comunicação; já os forders, vão ser entregues para a comunidade, pessoalmente pelos alunos,

para promover o conhecimento sobre a alimentação saudável. O importante é que o aluno

possa ver o resultado do seu trabalho em uma prática social real, para que veja sentido em ler

sobre o assunto, produzir, analisar e reescrever quantas vezes forem necessárias para que

fique de acordo com o objetivo proposto.

Em relação à gramática, sobre a qual muitos se questionam “Como ensinar gramática

quando trabalho com gêneros?” e da qual não podemos, como professores de língua(s)

esquecer, foi trabalhada a partir das necessidades geradas pela escrita dos próprios alunos para

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se adequarem ao gênero. A professora Clara, por exemplo, teve de lançar mão de explicações

e exercícios sobre pontuação, discurso direto e indireto, pronomes (para identificar o

narrador), adjetivos (para caracterizar os personagens), sujeito e predicado (para análise da

pontuação e estrutura das frases); já o professor Francisco, trabalhou o tópico gramatical

“verbos no imperativo”, conforme a sua própria fala:

“Bom, como a gente tava trabalhando verbos, aí então, eles (...) já sabiam que tinham que colocar ali um verbo no imperativo, né, (...) ‘ah, tá, de dar uma ordem’, (...) o que interessa nesse momento, ‘bom eu tenho uma palavra que dá uma ordem, que dá uma sugestão e eu sei o que colocar e eu sei que neste tipo de produção eu tenho que colocar, porque as pessoas vão ler e entender, se não vai ficar sem sentido’.”

O que acontece tradicionalmente, é que muitos professores realizam atividades com

um nome mais moderno, pra tentar mudar a cara da aula, mas nosso entendimento é de que,

assim como afirma Cerqueira (2010), não adianta mudar as atividades só no nome, pra dizer

que não é tradicional, tem que ser na prática, para efetivamente serem atividades que fazem

sentido na aprendizagem.

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os vários aspectos sobre o trabalho com gêneros textuais que tentamos expor aqui, já

são indícios de que pode ser muito produtivo, quando há vontade, tempo, disposição e/ou

incentivo, pois observamos que desde a leitura dos textos até o planejamento dos projetos,

apresentação aos colegas da pesquisa e aplicação nas turmas, o projeto “Por uma formação

continuada cooperativa: o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção

textual escrita no ensino fundamental” proporcionou até agora, aos próprios professores, a

leitura e escrita como fim social, fazendo-os refletirem sobre suas ações na prática escolar,

como afirma o professor Francisco: “é um tempo de pesquisa, de tu te inteirar, saber como é

que aquilo ali se estrutura, pra depois tu aplicar pro aluno, né, pra ti poder ter as respostas pro

aluno e, não que o aluno tenha que saber tudo aquilo, mas tu tem que saber.” o professor,

então, tem que adquirir postura de pesquisador, concordando com o que Tinoco (2010)

afirma.

Podemos observar, nas formações, que a maioria dos professores ficam felizes em poder

mostrar o que estão realizando em aula, em compartilhar suas dúvidas e anseios. Pensamos

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que as próprias escolas poderiam promover espaços assim, mas muitas fazem suas reuniões

rápidas, só pra dar recados administrativos e não dão chance para os professores conversarem

sobre seus projetos, suas pesquisas, enfim, ouvir suas vozes, como a escola espera que os

professores ouçam as vozes dos alunos.

As reflexões sobre os projetos aqui relatados, permitem que se conclua que o trabalho

com gêneros textuais, levando a realidade para dentro da escola, para que o que se produz na

escola reflita na realidade, numa troca contínua, tem condições de mudar a sociedade e fazer

com que a aula se torne muito mais interessante, através de atividades contextualizadas, como

a percepção da professora Clara: “eu tô vendo assim, uma adesão maior ao que tá sendo

trabalhado da parte deles, porque eles estão interessados, né, nas atividades, eles gostaram do

livro, eles querem ver os mistérios do livro.” e enquanto o currículo atual se preocupa em

subdividir a língua para ser ensinada em partes, esquecendo o mais importante que é a sua

constituição, as pesquisas feitas nas universidades provam que a língua é melhor entendida

quando estudada na sua integridade, contextualizada.

Sabemos também que a gramática tem papel importante, mas não primordial e nem

sozinha. Ela pode ser trabalhada através de atividades que desenvolvam habilidades para a

produção do gênero estudado, sem usar um texto como pretexto de atividades tradicionais,

mas constituí-lo como parte importante da aprendizagem. Assim, todos os sujeitos envolvidos

no processo ensino/aprendizagem aprendem, ensinam e desenvolvem sua prática social com

maior senso crítico.

6- REFERÊNCIAS

ABUD, Elisabete Francisco; SANTOS, Júlia Maria Correa Lino dos; BRITTO, Luiz Percival Leme. A educação linguística no ensino de língua portuguesa. IV SEMINÁRIO SOBRE ENSINO DE LÍNGUA E LITERATURA. COORDENAÇÃO: Luiz Antônio da Silva (USP), 2005. Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais15/seminarios12.htm, acesso em 01/08/2011. BAGNO, Marcos & RANGEL, Egon de Oliveira. Tarefa da Educação Linguística no Brasil, Revista Brasileira de Linguística Aplicada, 5 (1):63-81, 2005. BEYER, Hugo Otto – Inclusão e avaliação nos sistema escolar. In.: Inclusão e avaliação na escola de alunos com necessidades educacionais especiais. Porto Alegre, Mediação, 2005.

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