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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES DESENHO, EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA Uma Proposta a partir do lugar da Cova da Moura Maria Taborda de Sousa Pires Trabalho de projeto Mestrado em Desenho Trabalho de projeto orientado pelo Prof. Doutor Américo Marcelino 2017

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Page 1: DESENHO, EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA · III DECLARAÇÃO DE AUTORIA Eu, Maria Taborda de Sousa Pires, declaro que o presente Trabalho de Projeto de mestrado intitulado “Desenho, Experiência

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

DESENHO, EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA

Uma Proposta a partir do lugar da Cova da Moura

Maria Taborda de Sousa Pires

Trabalho de projeto

Mestrado em Desenho

Trabalho de projeto orientado pelo Prof. Doutor Américo Marcelino

2017

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Maria Taborda de Sousa Pires, declaro que o presente Trabalho de Projeto de

mestrado intitulado “Desenho, Experiência E Memória: Uma Proposta a partir do lugar da Cova da

Moura”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e

todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens

de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao

longo do trabalho segundo as normas académicas.

A Candidata

Lisboa, 28 de Dezembro de 2017

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IV

Resumo

Este projeto surge da vontade de explorar contextos socioculturais urbanos

marginalizados, geograficamente próximos, mas na realidade muito afastados pela ausência

quase total de uma interação biunívoca com os tecidos envolventes. Materializou-se através

da vivência de um desses lugares, o bairro da Cova da Moura, ao longo de um ano, numa

interação direta e assídua com as suas especificidades culturais, sociais, pessoais, políticas,

históricas e sensitivas. O objetivo é comunicar este processo de descoberta através do

desenho, assumindo toda a subjetividade de uma interação necessariamente muito pessoal.

O contacto com este lugar, através da relação do eu com as várias particularidades que o

caracterizam, é aliado ao papel da memória e da imaginação na criação de um novo lugar

pelo desenho.

O projeto artístico consiste em criar várias séries de desenhos, construídos a partir a

nossa experiência na Cova da Moura. Feitos a posteriori, exploram as interações entre a

memória e a imaginação, na procura de um novo lugar, e remetem para a relação com o

outro, que o vive e ocupa, e cuja presença permitiu a nossa interpretação da sua realidade.

PALAVRAS-CHAVE

Lugar; memória; experiência; desenho; Cova da Moura.

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V

Abstract

This project arises from the will to explore marginalized, urban sociocultural contexts,

that are geographically close but in reality far removed by the almost total absence of a one-

to-one interaction with their urban surroundings. For a year we experienced a direct and

assiduous interaction with this place, Cova da Moura, and its cultural, social, personal,

political, historical and sensitive specificities. The goal is to communicate this process of

discovery through drawing, assuming all the subjectivities involved in a necessarily very

personal interaction. The experimentation of this place, through the interaction of the self

with it’s various particularities, is allied with the role of memory and imagination in creating

a new place for drawing.

The artistic project consists of creating several series of drawings, built from our

experience in the place of Cova da Moura. These drawings, made some time after our

contact, explore the interactions between memory and imagination in search of a new place,

and they refer to our relationship with the people who live and occupy it, and who, by their

presence, allow our understanding of its reality.

KEY WORDS

Place; memory; experience; drawing; Cova da Moura.

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Agradecimentos

Ao meu orientador, Américo Marcelino, por ter tido a vontade e a disponibilidade

para me ajudar a recomeçar e a desenvolver este trabalho de projeto.

Agradeço à minha família por me terem apoiado sempre. Agradeço especialmente à

minha mãe, por insistir sempre e por me ajudar a não desistir nos momentos de maior

dúvida.

Agradeço também a todos os que me ajudaram neste longo percurso e a todos os que

participaram neste projeto artístico. Quero agradecer em particular ao Rui Simões, pelos

seus conselhos, e à Patrícia, ao Bino, à Filó, ao Tiago, à Domingas, à Clementina, ao Rui, ao

Sr. Teodoro, à D. Lucinda, ao Sr. Leandro, à Jú, à Niche e ao Flávio por me terem dado um

cheirinho das suas histórias.

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“ (…) Dirijo-me para as planícies e os vastos palácios da memória, onde estão

tesouros de inumeráveis imagens veiculadas por toda a espécie de coisas que se sentiram.

Aí está escondido também tudo aquilo que pensamos, quer aumentando, quer diminuindo,

quer variando de qualquer modo que seja as coisas que os sentidos atingiram, e ainda tudo

aquilo que lhe tenha sido confiado, e nela depositado, e que o esquecimento ainda não

absorveu nem sepultou.”

Santo Agostinho, Confissões, Livro X.

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Índice

Resumo __________________________________________________________________ IV

Introdução _________________________________________________________________ 1

1. O desenho – um enquadramento ______________________________________________ 7

1.1 Uma visão antropológica ________________________________________________ 7

1.2 A visão do eu ________________________________________________________ 10

2. Desenhar o lugar da experiência do eu e do outro _______________________________ 13

2.1 O Bairro da Cova da Moura _____________________________________________ 13

2.2 Observação: relato da experiencia do lugar _________________________________ 17

2.3 Proposta artística ______________________________________________________ 21

3. O lugar - a sua experiência no desenho ________________________________________ 25

3.1 Sense of Place – a experiência do lugar ____________________________________ 26

3.2 Fenomenologia - uma forma de experienciar pelo desenho _____________________ 28

3.3 O desenho da experiência - o corpo como forma de representação _______________ 29

4. A narrativa da memória ___________________________________________________ 33

4.1 A memória e a experiência do lugar _______________________________________ 35

4.2 Imaginação – a narrativa da memória ______________________________________ 37

5. Contexto histórico e artístico do lugar e da memória _____________________________ 41

5.1 William Kentridge ____________________________________________________ 47

5.2 Marlene Dumas _______________________________________________________ 50

5.3 Louise Bourgeois – trabalhar sobre e com a memória _________________________ 53

5.4 Maria Magdalena Campos-Pons __________________________________________ 57

6. Projeto Artístico _________________________________________________________ 63

Desenho, experiência e memória ____________________________________________ 66

7. Conclusão ______________________________________________________________ 77

Bibliografia _______________________________________________________________ 79

Webgrafia ________________________________________________________________ 87

Lista de Imagens ___________________________________________________________ 89

ANEXO I - Séries - Desenhos ________________________________________________ 93

Série 1. ________________________________________________________________ 94

Série 2. ________________________________________________________________ 99

Série 3. _______________________________________________________________ 112

Série 4. _______________________________________________________________ 133

Série 5. _______________________________________________________________ 142

ANEXO II — Desenhos complementares ______________________________________ 149

ANEXO III — Filme “Retratos a Preto e Branco” _______________________________ 159

ANEXO IV — Transcrição das entrevistas realizadas na Cova da Moura ______________ 161

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1

Introdução

Este trabalho tem como objetivo primordial expressar, através do desenho, o conjunto

de impressões resultantes de um processo de exploração, descoberta e “apropriação” de um

lugar específico – Bairro da Cova da Moura – localizado na periferia de Lisboa. Antes de

passar a descrever a forma como este projeto se desenvolveu e materializou, parece-nos

importante enquadrá-lo, explicando a sua origem e motivações.

Em primeiro lugar surge de um interesse pessoal no entendimento das questões sociais

em geral. Este interesse levou-nos, quase inevitavelmente, à descoberta de alguns bairros

periféricos de Lisboa; estes lugares, afinal comuns à maior parte das grandes cidades

modernas, surgiram bastante recentemente como resultado de processos rápidos de evolução

global e a sua “guetização” traduz um conjunto complexo de questões de índoles

socioeconómica e cultural. São, em geral, lugares recentes e reúnem pessoas de origens

diversas, que são forçadas a coexistir e sobreviver em condições, habitualmente, adversas,

mas seguramente muito distintas daquelas existentes nos seus locais de origem.

Neste âmbito, não pretendemos nem tão pouco nos sentimos habilitados ou

vocacionados para fazer qualquer tipo de análise política, sociológica ou antropológica. O

nosso objetivo reside apenas em, reconhecendo a existência destas situações fraturantes do

ponto de vista urbano e sociocultural, passar para o lado de lá, interagir e apropriar-nos de

um lugar que nos é distante, e expressar esse processo através do desenho.

São impressões complexas, feitas de reflexões ideológicas inevitáveis, mas também de

processos interativos e emocionais; não havendo, à partida um plano específico de

abordagem, a construção destas plataformas de comunicação é essencialmente intuitiva,

passando essencialmente pelo estabelecimento de relacionamentos pessoais. O seu resultado

é absolutamente subjetivo, mas corresponde à interpenetração exata da pessoa que somos e

do lugar que pretendemos desvendar.

Usando como ferramenta e como meio o desenho, introduzimos o tempo como um

fator de distanciamento e sedimentação do relacionamento com o lugar. Ou seja, todos os

desenhos foram realizados a posteriori. Uma vez que decorreu perto de um ano entre as

duas fases do processo – presença e realização - pretende-se que a memória funcione como

um filtro, mais uma vez pessoal e subjetivo, das impressões vividas.

Este trabalho desenvolve-se como uma justificação teórica das ideias exploradas na

experimentação pelo desenho, fazendo uma reunião de conceitos e ideias que analisam o

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desenho como forma de percecionar o lugar, mediado pela experiência, pela memória e pela

imaginação inerentes nesse processo. O desenho, enquanto tradução e expressão do

pensamento humano, apela a tudo o que nos envolve: seja o sentir, imaginar, pensar, criar,

tudo o que racional ou sensitivamente definiu a nossa identidade. Neste sentido, o desenho

não depende da semelhança da representação; antes valoriza no registo de cada experiência,

a construção de um sentido de lugar, na envolvência da totalidade dos sentidos, na relação e

na reflexão sobre o mundo à nossa volta. O desenho, como lugar da memória e imaginação,

é determinado pelo espírito do autor, pelas suas intenções e aspirações, pela sua identidade e

pela sua história. Manifesta a sua vida, falando também da história dos outros, no lugar que

partilham, através dos vestígios da sua presença e da sua participação. Elabora uma tradução

da atividade humana, não apenas como representação da realidade, mas como construção do

visível (enquanto produto de uma tradução simbólica). A flexibilidade do seu processo

permite que diferentes representações possam ser desenvolvidas e incorporadas. A sua

transparência, por outro lado, torna presente tanto o seu autor como o conhecimento que

transmite. Em parte, a clareza do seu processo advém da possibilidade de visualizarmos o

caminho que é percorrido durante a construção do desenho. Este espaço torna visível e

assume a passagem do tempo e do gesto.

Explorando o espaço entre dois mundos, o exterior e o interior, o desenho constrói

momentos partilháveis, através da memória e da imaginação. O lugar, constituído por

camadas visíveis e zonas de penumbra, pelo coletivo e pelo pessoal, é representado como a

fusão do que observamos com o que intuímos, como resultado do processamento das

memórias da sua experiência no nosso imaginário.

Ao construirmos o nosso próprio olhar sobre o mundo, procuramos perceber como é

que nos movemos no vasto campo de possibilidades de representação, como é que esta

exploração é posta em prática através de processos experimentais e como é que

materializamos, através do desenho, este olhar sobre o que nos rodeia.

Apresentamos uma proposta gráfica que explora a nossa experiencia deste lugar,

evidenciando a forma como o observamos, sentimos e compreendemos. Usado como

comunicação entre o homem e o mundo, o desenho funciona como ferramenta de

transformação e de investigação, apto a realizar e transferir ideias e conceitos, através da sua

criatividade e intenção. O objeto e o sujeito que o observa passam a partilhar o limite que os

separa, eliminando o intervalo que distingue o observado do observador. A realidade visível

é encaixada pelo artista, que olha o mundo por uma janela. Essa abertura encaixilhada

funciona, de certa forma, como uma metáfora da operação exercida no desenho (que

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organiza visualmente o conhecimento e a experiência que temos da realidade). Esta

prevalência do eu na forma como olhamos, pensamos e transformamos o mundo é aquilo

que completa a nossa relação com as coisas. Este narcisismo faz-nos estar vivos, num tempo

e num espaço. Acompanhando Merleau-Ponty (1992), neste ‘estar aqui’ acontece um

cruzamento entre o que se sente e o que é sentido, estabelecendo nesta relação o sistema de

trocas entre o corpo, que recebe a luz, a cor, as formas, etc. do mundo, e o desenho (arte)

que os transforma. Propõe-se assim pensar no desenho como um corpo que transforma o

lugar e a sua memória num outro lugar, o nosso lugar. De forma a conseguirmos explorar os

limites destes conceitos e de que forma interagem, foi necessário repensar algumas ideias

acerca do lugar, da sua experiência e da memória através de uma metodologia e estrutura de

abordagem adequada.

1. Assim, no primeiro capítulo fazemos uma pequena introdução sobre o

desenvolvimento do trabalho, referindo alguns dos pilares da nossa experimentação pelo

desenho. Referimos também como exploramos a sua relação com o lugar, a memória e a

imaginação. Ainda neste capítulo fazemos uma breve abordagem à autoetnografia, como

território que relaciona o desenho como uma forma alternativa de refletir e entender um

determinado lugar ou espaço cultural. Contrariamente aos métodos convencionais da

etnografia, segundo Manuel João Ramos, o desenho pode ser uma parte integrante da

investigação. Referimos também o trabalho desenvolvido por Filipa Pontes Lança,

DiccionáriosDeArtista, que pesquisa o desenho autoetnográfico e a experiência do lugar.

2. No segundo capítulo desenvolvemos um enquadramento sobre o bairro da Cova da

Moura, lugar central do nosso projeto artístico e neste sentido, também uma breve reflexão

histórica sobre os bairros clandestinos e sobre a ocupação deste lugar em particular. De

seguida descrevemos o nosso encontro com a Cova da Moura e a relação de cerca de dois

anos e meio que desenvolvemos com o bairro.

3. Nos capítulos que se seguem procedemos a uma análise dos conceitos centrais da

nossa pesquisa: a ideia de lugar, da sua experiência e da memória. Assim, no terceiro

capítulo começamos por explorar o conceito de lugar como um espaço onde diferentes

elementos se conectam e se influenciam, onde existe uma partilha física e afetiva que

compreende em si os vários componentes que o caracterizam. Relaciona-se a identidade

cultural com o lugar, como espaço que influencia as identidades coletivas e individuais.

Referindo o conceito de sense of place (do sentido do lugar) desenvolvido por Lucy

Lippard, analisamos o lugar tendo como base a sua experimentação. Abre-se ainda caminho

para a discussão da experiência vivida como uma experiência sensorial, que implica

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necessariamente a presença. Entrando no campo da fenomenologia, propomos uma reflexão

acerca dos seus conceitos primordiais desenvolvidos por Husserl e Merleau-Ponty e a sua

relação com o desenho do lugar e da sua experiência. Considerando que investigação

fenomenológica tem como intuito essencial a descrição baseada na subjetividade da

experiência pessoal, podemos argumentar que o desenho, pela sua ambiguidade, oferece

múltiplos resultados visuais sobre a mesma experiência subjetiva. Merleau-Ponty

acrescenta, à teoria fenomenológica desenvolvida por Husserl, um novo elemento que

considera essencial: a presença do corpo. Admitindo que o lugar existe como uma

continuação do corpo, este revela-se como o elemento onde a relação entre o interior e o

exterior se desenvolve, capaz de englobar em si histórias e memórias tanto pessoais como

coletivas, relaciona-se com o desenho pela sua ação. Examinando o porquê e o como do

desenho, acrescentamos a hipótese de que o conhecimento advém da compreensão daquilo

que vemos e experienciamos numa dimensão que não é apenas visual.

4. No quarto capítulo desenvolvemos uma reflexão sobre a memória, relacionada com

a questão da experiência e do lugar, e impulsionadora do processo de criação pela

imaginação. Sendo considerada como a base da aprendizagem, a sua relevância é partilhada

por diversos campos de investigação. Quando relacionada com a produção artística a

memória atua tanto pela sua função de lembrar o passado e de o reinterpretar face a novas

experiências e informação, como motor da memória em relação ao sujeito, acrescentando e

admitindo os pormenores mais íntimos e detalhados na nossa memória do mundo e da

experiência. Walter Benjamin faz uma relação entre o desenho como meio para explorar a

memória e o ato de escavar em arqueologia. O desenho é explorado enquanto processo que

refaz uma interpretação da memória, reconstruindo-a através dos fragmentos armazenados e

reorganizando-a por entre a confusão de imagens que guardamos no nosso arquivo

memorial. O desenho é também explorado como um meio de reapropriação e recriação da

memória que temos do lugar. Esta memória depende da própria memória do lugar, coletiva

e pessoal, dependendo igualmente da memória de todos os lugares que nos trouxeram até

aqui de todas as memórias que os preservam no nosso imaginário. É na interação entre o eu

e o outro, das nossas memórias com as memórias dos outros, do lugar, que criamos um novo

lugar. Como conclusão deste capítulo, referimos a imaginação como criadora da narrativa

da memória. A forma como se desenvolve o processo de criação, na qual podemos perceber

o universo sensorial, experimental, dos comportamentos e das intenções, mostra como

relacionamos estes estímulos (mentais e físicos) com aquilo que guardamos na nossa

memória. Assim, a nossa capacidade de ficcionar novos paradigmas e novas realidades a

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partir dos estímulos e das experiências que temos do mundo depende do nosso imaginário e

da nossa capacidade de imaginar.

A imaginação, jogando com as informações e os dados da memória, promove

associações entre pensamentos e sentimentos que, nas suas infinitas combinações e

possibilidades, proporcionam uma experiência individual. A legibilidade das imagens do

mundo criadas pela imaginação depende, segundo Walter Benjamin, da própria visibilidade

das coisas, criando entendimento e compreensão sobre o seu sentido. O desenho aqui utiliza

como recursos o gesto e a memória, combinando a experiência do visível com a nossa

capacidade de armazenar e recuperar informações. A experiência é um elemento que, no

processo de desenho-memória, estabelece uma ponte entre o espaço e o tempo com o

universo interno daquele que observa e perceciona esse caos.

5. O capítulo seguinte faz um pequeno enquadramento histórico sobre as práticas

artísticas que se desenvolvem em torno da memória e da necessidade intrínseca de

comunicar e de conhecer o que é diferente e desconhecido. Neste sentido, começamos por

traçar um caminho do olhar sobre o outro, referindo especificamente o caso de Albrecht

Dürer como exemplo desta curiosidade pelo exótico. Já no século XX mencionamos um

outro contacto com o desconhecido, com o fascínio do outro que está distante, referindo a

exposição Primitivisms, realizada no MoMA em 1984. De seguida procedemos a uma

reflexão sobre o trabalho artístico de William Kentridge, Marlene Dumas, Louise Bourgeois

e Maria Magdalena Campos-Pons.

6. Por fim, no último capítulo compomos uma descrição do processo do

desenvolvimento dos desenhos, aliando às séries que propomos como apresentação final dos

vários desenhos que criamos, excertos de escritos, de reflexões pessoais, que fomos

escrevendo à medida que desenhávamos. Estes pequenos textos constituem uma memória

descritiva do nosso trabalho artístico, refletindo sobre as dúvidas, as questões e as

componentes mais íntimas da sua concretização.

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1. O desenho – um enquadramento

O desenho revela modos de ver, de comunicar e de registar; de processar um contexto,

um contacto. Fornece um olhar interior e exterior simultaneamente, aproximando e

afastando. O caminho que é percorrido e que é desvendado pela transparência do desenho

deixa espreitar o seu interior. Podemos, por baixo dessa superfície, tentar perceber a

realidade tangível do olhar desse desenho. Neste sentido o desenho é um ver que quer

compreender. O que exploramos aqui é a transição que o desenho faz entre o lugar e o

interno, e o lugar e quem o habita. Propõe-se uma descodificação da experiência desse lugar

através do desenho, desenvolvendo-se através da memória pessoal o entendimento do

conjunto de marcas, gestos, atividades, características e fronteiras do lugar.

Remetendo para o processo de pensar, da conjunção de estímulos exteriores e

impulsos interiores, e segundo a conceção de Joseph Beuys, os pensamentos são formados

ao desenhar, sendo que a sua contínua metamorfose é responsável por manter presente no

desenho a expressão do ser fugidio, momentâneo (Beuys, 1994). Na tentativa de entender

quem somos em relação ao outro e o que somos num determinado lugar, o seu processo

leva-nos a uma reflexão sobre a presença. Convocando o visível procuramos capturar a

presença essencial do lugar, expressando aquilo que os olhos sozinhos não captam. A

criação, refletindo sobre a diversidade sensível que existe no mundo, dá corpo àquilo que

pertence ao pensamento e torna visível o que é do universo do sonho e da imaginação. O

desenho, assim, acolhe em simultâneo a compreensão e a descontinuidade, admitindo em si

múltiplas experiências e existências. Possibilita, pela sua incerteza, a procura de uma

verdade, para lá da sua idealização.

O gesto que se inscreve no desenho materializa a tensão que existe entre a superfície e

a linha, sendo nesta relação que o artista inscreve a sua presença. Estas marcas mostram-nos

o caminho inscrito no desenho e deixam escapar algo sobre a sua criação. Para Walter

Benjamin o desenho existe nesta emergência entre suporte e instrumento/traço, que desafia a

sua realidade física (Benjamin, 1990).

1.1 Uma visão antropológica

A natureza do nosso trabalho, embora se centre na prática artística do desenho, como

forma de compreender e significar o lugar e as suas memórias, recorre a conceitos da

pesquisa antropológica para o desenvolver. A investigação antropológica trata, no presente,

a questão do ‘outro’. Cuida de todas as dimensões que podemos inserir nesta categoria, seja:

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o outro exótico; o outro étnico e cultural, que se refere a um outro coletivo que se identifica

enquanto unidade cultural e identitária, muitas vezes condensado a uma nomenclatura

étnica; o outro social, cujas categorizações se definem em questões de género, de família,

etc.; ou um outro íntimo que, por fim, embora integrado num contexto social, depende de

todos os sistemas de pensamento que influenciam a categorização de uma individualidade

que, no fundo, nunca está separada de categorias universais (como a hereditariedade, a

herança, a filiação, a semelhança, a influência, entre outras) (Augé, 2005).

Ao relacionarmos o desenho com a experiência do lugar, na tentativa de explorar uma

forma alternativa de refletir e de compreender um determinado espaço cultural, entramos no

território da autoetnografia1 e, consequentemente, da etnografia. Relacionando a prática do

desenho com o processo da autoetnografia sugere-se também uma significação subjetiva de

um determinado lugar e de uma determinada cultura, que reflete, que sente e que raciocina

acerca das particularidades desse espaço através da experiência do lugar. Neste sentido,

procurando uma relação entre a identidade pessoal e a identidade coletiva/cultural

procuramos perceber que relações têm com o próprio lugar do desenho. Este, sendo um

meio visual capaz de conferir uma imagem à interação entre a experiência pessoal e a

cultural, torna-se a linguagem que nos permite relacionar a exploração visual e pessoal de

um lugar com os processos ligados à autoetnografia.

Aquilo que é alvo de investigação é abordado segundo diversos processos de análise

teórica, tendo em conta as suas dimensões políticas, sociais e culturais, e articulando a

relação afetiva entre o autor e o que é estudado. Na segunda metade do século XX é

possível observar uma tendência para o recurso do testemunho oral e escrito como

instrumento de reconstrução de memórias em estudos de ciências sociais. Contrariamente

aos métodos tradicionais de investigação social, estes registos combinam depoimentos

autobiográficos com a análise teórica (Santos: 2017).

De forma similar, a nossa pesquisa aborda a questão do desenho como sendo um meio

capaz de reconstruir e criar imagens tendo como base os testemunhos orais e outros

vestígios dispersos e de recolher informação das experiências e processos que o ato de

recordar agiliza. O desenho, bem como as narrativas que representa e constrói, são

ferramentas presentes no processo de investigação. Assim, procuramos também perceber o

1 A autoetnografia é “uma forma de etnografia que propõe uma visão mais subjetiva e emotiva na forma

como é abordado o objeto de estudo” (Ellis & Bochner, 2000). Faz uma conjunção do processo da

investigação etnográfica com o processo subjetivo da experiência individual. É um método de trabalho

antropológico que, analisando fenómenos culturais e sociais, se baseia na experiência pessoal do seu autor no

contexto do grupo e cultura em questão. (Lança, 2016). Funde a narrativa pessoal com a exploração

sociocultural e promove o uso de memórias individuais e relaciona-as com as experiências culturais para

mostrar uma cultura, um lugar, uma comunidade, ao mundo.

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lugar do desenho como forma de construir este discurso que nos liga à memória individual e

coletiva, colocando-nos entre a realidade e a ficção.

Para Manuel João Ramos, antropólogo que alia frequentemente o desenho à sua

prática de investigação, desenhar torna-se parte do processo antropológico, potenciando

uma aproximação entre observado e observador (Afonso e Ramos, 2004). O desenho é,

neste sentido, um meio que consegue conceder significado ao espaço inatingível pela

linguagem. O seu processo cria significados pela tradução e interpretação da experiência: os

passos que constroem o desenho graficamente, as decisões e indecisões, os erros e as

emendas gráficas, todos podem ser interpretados.

Ramos tem, recentemente, conseguido conciliar a sua investigação em antropologia

com as suas capacidades artísticas, resgatando de certo modo a tradição do desenho

etnográfico. Recorrendo à ilustração e ao desenho como forma de documentar as suas

viagens, como é exemplo o registo que fez da sua viagem pela Etiópia2, onde interliga

comentários e anotações escritas que ajudam o espectador a criar um contexto imaginado no

qual os nativos lhe contam as suas histórias. Como Ramos declara, o desenho é explorado

como catalisador da observação, como um caminho para a reflexão e um elemento essencial

para promover a interação social (Ramos 2010: 9). Transgredindo os limites da

representação textual, o desenho permite incorporar comentários detalhados sobre as

memórias das pessoas que relatam as suas experiências. O desenho é mencionado por Ana

Isabel Afonso como forma de despoletar memórias sociais, criando uma ponte entre o

esquecimento e a recordação, ativando o envolvimento com a experiência de relembrar.

(Afonso e Ramos, 2004).

Questionamos ainda se o desenho antropológico não será também uma forma de

ganhar uma consciência mais alargada de nós próprios. Ao desenharmos estamos, de certa

forma, a materializar algo na tentativa de percebermos como essa realidade ou pessoa afeta

o nosso comportamento interno. Neste sentido, pode ser visto como “um meio para se

estabelecer um processo de autoconhecimento e autorreconhecimento e também um método

para construir uma relação de afeto com o outro” (Silva, 2015: 82).

Ao relacionarmos o desenho com a experiência do lugar é importante também referir

o trabalho desenvolvido por Filipa Pontes Lança no projeto DicionáriosDeArtista: Desenho

como Experiência do Lugar. O seu trabalho de investigação em curso reflete primariamente

sobre as necessidades e as razões que levam ao surgimento da autoetnografia. Lança explica

que as ideias concretas e objetivas da etnografia, as suas práticas de trabalho de campo e os

2 RAMOS, Manuel João (2010). Histórias Etiopes. Lisboa: Tinta da China.

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seus modelos representativos começam a ser postas em causa por volta dos anos 60 do

século XX. Esta tendência é contemporânea de uma expansão da arte a campos de pesquisa

social, com o crescimento do conceptualismo, do site-specific, da construção horizontal.

Assim, a etnografia vira-se para os campos artísticos na tentativa de colmatar as suas falhas,

considerando pela primeira vez a hipótese de descrever uma cultura a partir do eu e de

estudar problemáticas culturais a partir de relatos de vida pessoais. Filipa Pontes Lança,

elaborando um trabalho autoetnográfico, centraliza a sua investigação na pesquisa do

desenho e não na pesquisa etnográfica. Como Lança escreve, este é um projeto que “utiliza

o desenho como linguagem plástica, a autoetnografia como processo de pesquisa conceptual

e gráfico e o livro como forma, para mostrar uma visão criativa, crítica e autorreflexiva

sobre diferentes lugares do mundo.”.3

A ideia de fundo de Lança é propor, refletir, pensar e questionar pelo desenho. Os

seus DicionáriosDeArtista, livros de artista, são construídos com base num espaço

específico e no seu contexto cultural através da sua experiência pessoal do lugar. É um

projeto que começa por desenvolver nas suas viagens, sendo que até agora já realizou estes

dicionários em Barcelona, Maputo, Alte, Caldas da Rainha e Xangai. A sua atenção sobre o

lugar é repartida entre os contornos superficiais e exteriores da realidade e os conteúdos das

conversas, aos tons de voz, aos cheiros, às formas de falar. Esta experiência do lugar, que

reflete sobre aquilo que queremos dizer acerca do que vimos é uma reflexão visual sobre a

dimensão social, política, cultural e pessoal do lugar. Assim, como referido por Lança, o

desenho quando explora esta experiência multissensorial é especialmente performativo;

envolve o corpo no lugar à memória que tempos já presente. A sua proposta é, portanto, a

prática de desenho que parte do interesse de pesquisa cultural e social (antropologia),

enquadrado em site-specific num lugar (etnografia) a partir de uma reflexão autorreferencial

(autoetnografia). O olhar do desenho funciona como um olhar atento e mediador entre o eu

e a cultura do lugar que ocupa. Trabalhando a compreensão e o contraste, a proposta é uma

autorreflexão e um repensar as memórias e o lugar.

1.2 A visão do eu

No nosso caso, o desenho que propomos, tal como no trabalho de Filipa Pontes, é

elaborado depois do contacto com o lugar. Pode funcionar enquanto memória e, usando o

sonho e a imaginação, como consciência da reflexão pessoal. Este desenho a que nos

3 Esta citação foi retirada de um documento de apresentação preliminar do projeto de Doutoramento

“DicionáriosDeArtista: Desenho como Experiência do Lugar”, que Filipa Pontes Lança está a desenvolver.

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referimos como a representação da experiência pessoal, física e emocional do lugar, é

possível pela articulação com a memória e a imaginação que, por sua vez, permitem criar

continuamente novas ligações com novos lugares e novos desenhos. O ritmo inscrito na

imagem gráfica é mais uma vez esta transcrição; o traço, as marcas, não derivam apenas dos

estímulos que recebemos do exterior, da natureza, mas projetam o pensamento e a

experiência humana. Todos estes estímulos confluem e configuram a nossa memória,

determinando as ferramentas pelas quais comunicamos e criamos, de forma a

compreendermos as coisas que nos rodeiam. Esta compreensão deriva, assim, de uma

espécie de concentração e compressão que, ainda que sumária, preserva o detalhe e cada

minuciosidade. Este processo, que está presente no ato de desenhar, executa um movimento

de exteriorização do invisível. Neste decurso a imaginação gera a combinação de ideias,

estímulos, imagens, sinais, decifrando e metamorfoseando a morfologia do mundo. Assim,

este desenho não se desenvolve na reprodução formal da representação do mundo e das suas

formas, mas traduz esses símbolos e sua perceção segundo uma estrutura própria (do autor).

A representação que o autor faz do que o rodeia depende da sua sensibilidade e da clareza

com que observa e se relaciona com as mesmas. O resultado desta relação homem-mundo é

estimulado e percebido pelo corpo sensível (sensorial, dos sentidos) e pela sua dimensão

intelectual (do pensamento). A força plena do desenho fixa-se dos seus indícios, gestos e

marcas - “o Desenho já convertido em desenho” (Pinheiro, 2001: 115).

O desenho, enquanto processo de reconstrução memorial, potencia uma relação

privilegiada entre o seu autor e aquele que lhe conta a sua história. Referindo novamente

Ana Isabel Afonso, as representações pictóricas servem como dispositivo mnemónico,

ajudando a tornar visíveis certos detalhes significativos abstraídos pelas entrevistas (Afonso

e Ramos, 2004). Permitir, por outro lado, a participação direta destas pessoas que relatam as

suas memórias e experiências envolve-os na construção do discurso e na reinterpretação das

suas memórias. Além disso, os desenhos podem ser destacados das condições naturais nas

quais os seus motivos estão ligados; conseguem isolar, separar, descontextualizar;

conseguem transportar os seus sujeitos/assuntos para ambientes diferentes; podem adotar

pontos de vista imaginários. Isto torna o desenho capaz de criar idealização e abstração

conceptual; de representação visual simbólica; de representar a realidade para além do

realismo; de transcender (Oppitz, 2002: 122, apud Afonso e Ramos, 2004: 88)4.

4 Tradução livre do autor (“Drawings, moreover, can be detached from natural conditions in which their

motifs are bound; they can isolate, single out, decontextualize; they can transport their subjects into different

surroundings; they can take imaginary viewpoints. This makes drawings capable of conceptual idealization

and abstraction; of visually presenting symbolical significance; of depicting reality beyond realism; of

transcending.”).

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Neste sentido utilizamos o desenho como a linguagem que tenta expressar e refletir

como este lugar nos invade, como o interpretamos, sentimos e interagimos com ele e com as

várias componentes que o constituem. Pensar naquilo que aí observamos e experienciamos é

um exercício de memória, à qual acedemos para recriar esse percurso. O desenho é

explorado como meio de aproximação e compreensão do outro; como forma de perceber

que existem diferentes pontos que nos ligam enquanto seres humanos. Permite, assim, criar

uma ligação entre o observador e o observado, levando-nos a utiliza-lo como meio para

explorar o desconhecido. Enquanto processo que evidencia a presença do artista vai de

encontro ao sentido que Alberto Carneiro lhe confere: “O desenho, como prática gráfica e

plástica, como meio de realização artística e vivência estética, unifica pessoa e universo,

cria imagens que figuram sentidos para a vida. O desenho é na pessoa o projeto do desenho

do ser.” (Carneiro, 2007: 165).5

Indissociável do olhar, da imaginação do seu autor, John Berger “reafirma a

centralidade do sujeito e da sua singularidade na produção do desenho: uma árvore

desenhada não é uma árvore, é uma “árvore desenhada por alguém” (Berger, 2005: 71, apud

Kuschnir, 2016: 9).

Uma vez esclarecidas alguns dos conceitos que relacionam o desenho com a

autoetnografia e com o lugar, bem como uma introdução à utilização do desenho na nossa

investigação, passamos a fazer um enquadramento do lugar sobre o qual se desenvolve o

nosso projeto artístico.

5 Consultado na Tese de Doutoramento em Belas Artes na especialidade de Desenho (FBAUL) de Ana

Rita S. G. Vieira (2016), O Quotidiano Deslocalizado: O Desenho Como Mapa.

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2. Desenhar o lugar da experiência do eu e do outro

Numa perspetiva de ‘geografia pessoal’ relacionamos a nossa existência com o nosso

posicionamento no lugar (ou em relação a ele). Existe algo nesta noção de geografia que,

como a memória, funciona por associações. Associamos referências a identidade, a

reconhecimento, a lembranças, cruzando a memória pessoal com a permanência e a pertença

a um lugar - identificamo-nos com ele. Assentando a nossa proposta na pesquisa deste

espaço e na sua experimentação e reinterpretação pelo desenho, decidimos que no centro do

nosso projeto artístico estaria o bairro da Cova da Moura. O nosso interesse pessoal sobre

bairros e zonas da periferia urbana, bem como um interesse pela cultura e história das

antigas colónias e as suas ligações com a cultura portuguesa são as primeiras razões que

chamaram a nossa atenção para este lugar.

Num primeiro momento, no nosso imaginário viviam apenas ideias soltas,

incompletas e na sua maioria distorcidas, mas havia uma grande curiosidade sobre estes

lugares estigmatizados, vontade de tentar compreender o porquê destes preconceitos

generalistas, de conhecer as pessoas que habitam e fazem estes bairros. Queríamos saber

quais eram as suas ocupações, os seus prazeres; queríamos compreender as razões que os

levaram a construir uma casa na Cova da Moura, quando é que foram para lá viver, de onde

vinham e como se sentem neste lugar - ouvir falar do bairro por pessoas que de facto são do

bairro. A nossa vontade era conhecer este lugar percorrendo as suas ruas, compreender a sua

fisicalidade e a sua sensibilidade. Queríamos compreender como é que tudo isto se

manifestava em nós.

Para contextualizar a proposta artística que desenvolvemos sobre o lugar da Cova da

Moura, começamos por referir alguns dados históricos da sua construção e do seu

desenvolvimento. De seguida, fazemos um breve enquadramento às ideias iniciais do

projeto e descrevemos, de uma maneira geral, aquilo que observámos e experienciámos no

lugar.

2.1 O Bairro da Cova da Moura

Na segunda metade do século XX, havendo uma crescente monopolização do negócio

da habitação e, simultaneamente, um aumento da migração e da imigração em Portugal para

áreas urbanas como Lisboa, o acesso regular à habitação estava limitado. A cidade evoluiu

no sentido da fragmentação e da compartimentação espacial e social, introduzindo fortes

diferenças na apropriação do espaço. Como consequência dos processos urbanísticos que

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promovem a desigualdade de oportunidades, surge o fenómeno das urbanizações

clandestinas, como resultado do crescimento urbano do modelo capitalista (Soares, 1984).

André Carmo, quando explora os conceitos de cidade e cidadania, refere que:

“Os processos de urbanização capitalista geram múltiplas segregações sócio

espaciais e que algumas delas, sobretudo quando vistas a partir da habitação, dos

espaços de existir e do ser, das residências e dos bairros, parecem

corresponder à inscrição espacial da opressão, da desigualdade e da diferença

(discriminatória) da marginalização e da estigmatização, da pobreza e da

exclusão, em suma, da injustiça” (Carmo, 2014: 19).

Cresce assim a necessidade destas famílias construírem a sua própria casa fora dos

parâmetros formais do mercado, passando a ser cada vez mais frequentes as aglomerações

de casas que se desenvolvem de forma clandestina e não planeada. A Cova da Moura é um

destes bairros que foi construído ilegalmente neste contexto. Fica situado entre duas

freguesias da Amadora, a Damaia e a Buraca (onde se encontra a maioria do território).

Como muitos outros bairros periféricos em Portugal, a Cova da Moura partilha o seu espaço

comum com outros aglomerados urbanos mais recentes, com os quais se relaciona muito

pouco. Existindo esta barreira ficcional entre o interior e o exterior do bairro e estando este

sentimento de isolamento bastante presente, o bairro e a sua comunidade desenvolveram

uma forte e vincada personalidade. A sua memória está profundamente ligada à memória do

seu espaço físico e da sua ocupação social e cultural.

De fora, o lugar da Cova da Moura parece exótico. Erigido num pequeno monte, o

bairro cresce como uma ilha no meio dos edifícios e das rodovias que o circundam. A

evolução da sua configuração geográfica é errática, conjugando uma amálgama de

construções recentes e construções antigas, tendo ainda algumas zonas onde os arruamentos

são de terra batida.

Antes de ser ocupado era um terreno agrícola, denominado como Quinta do Outeiro.

Os primeiros registos da ocupação do território remontam à década de 60, com gente

proveniente de diversas partes do país. Eram migrantes que vinham das zonas mais rurais do

país, que fugiam da pobreza das províncias e que construíam as suas próprias casas

utilizando materiais como chapa e madeira, continuando a fazer as suas hortas nos terrenos

circundantes. A partir da década de 70, nomeadamente depois do 25 de Abril de 1974,

regista-se um enorme aumento do fluxo habitacional, devido à chegada dos retornados das

antigas colónias. O custo de morar em Lisboa era demasiado elevado, o que levou muitas

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pessoas a procurarem habitação nas zonas periféricas da cidade (Godinho, 2010). No

período que se seguiu à descolonização e com a criação de oportunidades de trabalho para

imigrantes em cidades como Lisboa, há um aumento da presença de imigrantes PALOP

nestes terrenos. Na altura, a Amadora foi uma das zonas periféricas de Lisboa com maior

crescimento, maioritariamente constituído por estas urbanizações desqualificadas. Segundo

os relatos dos moradores que vivem na Cova da Moura desde essa altura, as casas eram

feitas com a ajuda daqueles que já lá moravam, conforme o lema Djunta Mó - juntar as

mãos. As casas eram construídas umas ao lado das outras, com os materiais que sobravam

de antigas construções, fazendo com que o desenvolvimento do bairro ocorresse de forma

casual e sem qualquer planeamento. Não tinha acesso ao saneamento básico, iluminação

pública nem água canalizada até perto do final dos anos 80. Apesar das várias tentativas de

demolição, o bairro foi continuando a crescer e a desenvolver-se, fruto dos esforços

conjuntos dos seus residentes. Com o desenvolvimento do bairro aumentou o número de

estabelecimentos comerciais e de serviços, havendo uma grande diversidade de cafés,

restaurantes, mercearias, talhos, cabeleireiros, que não só permitem a criação de empregos,

como constituem espaços de encontro e de convívio da população. O facto de existirem as

condições necessárias para uma sobrevivência local, faz com que muitos dos seus

moradores passem ai grande parte do tempo, proporcionando uma intensa vida social.

Caracterizado por uma vasta multiculturalidade, o bairro é um lugar com moradores

provenientes principalmente de Cabo Verde, mas também de Angola, Moçambique, São

Tomé e de alguns países de Leste. Hoje em dia tem cerca de 6 a 7 mil habitantes, com uma

população muito jovem quando comparada com os lugares envolventes. Há uma expressão

cultural cabo-verdiana dominante, o que contribuiu para a criação de atividade e de grupos

que preservaram as suas atividades e valores culturais. Ainda assim, sente-se uma união

entre os moradores de diferentes culturas, propiciando uma construção identitária que une

todas as diferentes influências culturais presentes no bairro. O sentido de comunidade e de

coesão social são das características mais marcantes da Cova da Moura, conferindo-lhe

valores de orgulho pelo bairro e uma intensa atividade coletiva e comunitária. Os fortes

laços de solidariedade e união parecem crescer como uma defesa coletiva à generalização

dos rótulos e das imagens sociais negativas a que o bairro é associado. Independentemente

dos esforços dos moradores, feitos no sentido de desmistificar estas ideias pré-concebidas, a

Cova da Moura continua a ser um lugar conotado com atividades violentas, associado ao

tráfico de droga e a uma elevada criminalidade, acentuando a sua imagem de marginalidade.

Esta marginalização é também evidenciada pela imagem que se desenvolveu sobre a

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degradação habitacional do bairro, que por sua vez reforça o isolamento e o preconceito em

relação ao espaço e à sua comunidade.

Em conjunto com os preconceitos criados sobre o próprio lugar, caracterizando-o

como um local violento e promotor de negócios ilícitos, os seus moradores são

automaticamente caracterizados como um grupo indefinido e generalizado de pessoas com

comportamentos de risco e à margem da sociedade. Há uma contaminação do todo pela

parte, disseminando-se o pensamento de que se pelo menos uma parte das pessoas que

vivem no bairro está envolvida em atividades criminosas e violentas então todos os seus

moradores serão violentos e criminosos.

Giddens faz uma distinção entre preconceito e discriminação, sendo que “por

preconceito entendemos as opiniões e as atitudes mantidas por membros de um grupo acerca

de outro, enquanto por discriminação nos referimos ao comportamento real face a ele”

(Giddens, 1977: 313). O preconceito envolve a aceitação crítica de conjuntos de ideias pré-

formatadas acerca de um indivíduo ou de um grupo (baseadas muitas vezes no que se ouve

dizer); opiniões muitas vezes cristalizadas, que resistem à mudança mesmo quando

confrontadas com novas informações. Os preconceitos associados à Cova da Moura, muitas

vezes fomentados e perpetuados pela comunicação social, levam à consolidação da imagem

negativa do bairro que acaba por moldar a forma como olhamos para as localidades

periféricas e para as pessoas que as habitam. Estas imagens são normalmente formadas sem

existir qualquer contacto com as comunidades desses bairros. São ideias que se baseiam em

relatos alheios e não em experiências diretas e pessoais. A maioria das pessoas que falam do

bairro nunca o visitaram, nunca percorreram as suas ruas e nunca falaram com os seus

moradores.

Falando sobre discriminação, Giddens explica que diz respeito a atitudes que visam

isolar os membros de um grupo, vedando-lhes o acesso a oportunidades genericamente

abertas a outros. Muitas vezes as vítimas deste processo são minorias, “membros que estão

em desvantagem, em virtude de discriminação contra eles feita por outros.” (Giddens, 1977:

311). Neste sentido, existe discriminação quando direitos e oportunidades disponíveis para

um conjunto de pessoas são negadas a outro grupo. Existem diversas formas de promover

este comportamento discriminatório, muitas vezes exacerbado quando associado a questões

raciais. Na origem desta atitude existe desrespeito pelo espaço e pela dignidade dos outros, e

as suas decisões têm como base um pensamento racista e generalista, que enquadra os

moradores de bairros como o da Cova da Moura num estereótipo: negro, violento,

criminoso, delinquente. Outra forma de discriminação que afeta os moradores do bairro é a

influência direta nas oportunidades de entrar no mercado de habitação e de trabalho.

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Embora a população reaja a este comportamento discriminatório, é difícil fazer com que as

suas acusações sejam comprovadas ou sequer ouvidas. O Moinho da Juventude, projeto

comunitário que existe no bairro há mais de 30 anos, tem desenvolvido um trabalho social

na tentativa de revelar e de denunciar estas atitudes discriminatórias contra os moradores.

Para além da Associação Paroquial e da Associação de Solidariedade do Alto da Cova da

Moura, a Associação Cultural Moinho da Juventude é a estrutura central do bairro,

responsável por grande parte da sua organização sociocultural. Criada pelos moradores da

Cova da Moura em 1984, começou por criar uma biblioteca informal para crianças e a por

reunir um grupo de mulheres que lutavam por melhores condições de trabalho e condições

sanitárias. Esta Associação é o principal promotor do desenvolvimento do bairro,

assumindo-se agora como um projeto comunitário. A associação é, ainda hoje, constituída

essencialmente por colaboradores que moram ou já moraram no bairro. Estende os seus

serviços a vários setores da comunidade: com ações de ajuda comunitária, nomeadamente

de aconselhamento financeiro; de acompanhamento social; com atividade de tempos livres;

possui um jardim-de infância, uma creche, uma cantina comunitária; organiza atividades

diversas para jovens e idosos. É, no fundo, a força central que faz girar o moinho da Cova

da Moura. Lutam por melhorar as condições de vida do bairro, ajudam com a documentação

da imigração, promovem a reintegração de ex-presidiários e intervêm como agentes de

prevenção de violência (doméstica e no bairro). Têm também o projeto SABURA, que faz

visitas guiadas pelo bairro, ajudando a promover uma nova imagem da Cova da Moura,

criaram grupos culturais de música e dança de Cabo verde, o Kola S. Jon e o Grupo de

Batuque Finka Pé, fizeram uma biblioteca oficial do bairro, um estúdio de gravação e o

GAS, Gabinete de Serviço Social.

2.2 Observação: relato da experiencia do lugar

Dadas as características do bairro, edificado em condições marginais e pouco

convencionais, deparamo-nos com a simples e primordial questão de comunicação, de

contacto. Sem nunca termos entrado na Cova da Moura, também não conhecíamos ninguém

que lá vivesse. Quando fomos a primeira vez ao bairro essa dificuldade parecia bastante

evidente: é um lugar onde nos destacamos imediatamente como alguém de fora, onde é

difícil passar despercebido, onde toda a gente se conhece e qualquer desconhecido é

evidenciado. Na entrada, encontramos pessoas sentadas à porta das casas. Cumprimentam-

nos mas mantém-se alerta; um pouco por todo o bairro esta atitude foi-se repetindo.

Percebemos que talvez fosse mais simples falar com alguém que tivesse conhecimentos no

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bairro e que nos fizesse uma espécie de apresentação. Fomos ao encontro de Rui Simões,

que realizou dois documentários sobre o bairro e sobre os seus moradores, o filme Ilha da

Cova da Moura (2010) e mais tarde o Kola San Jon (2011). O seu primeiro filme sobre a

Cova da Moura é desenvolvido segundo uma perspetiva que procura compreender o lado

positivo do bairro; mostra-nos a vida na Cova da Moura segundo um conjunto de recortes

do dia-a-dia das pessoas desta comunidade. Seguindo o quotidiano de mulheres e homens

do bairro, desde crianças a velhos, vai descobrindo as suas dobras e recantos, vai

encontrando vislumbres de Cabo Verde e vai descobrindo as várias realidades deste lugar.

Retrata cenas do dia e da noite, da festa e do trabalho, da rua e da casa, do bruto e do

carinhoso.

Apresentámos a ideia preambular para o nosso projeto a Rui Simões; pretendíamos

pesquisar o lugar e a sua relação com o desenho de forma bastante diferente daquela que

propomos agora. O objetivo era desenhar retratos de alguns moradores do bairro. Estes

desenhos eram articulados com a gravação das conversas que tínhamos com as pessoas

enquanto as desenhávamos. O desenho era explorado como meio de comunicar, e o intuito

do nosso trabalho passava também por tentar compreender como é que esse diálogo e o seu

conteúdo pessoal/íntimo poderiam influenciar o próprio processo de desenhar. O lugar e a

sua experiência também eram centrais, uma vez que o teor medular da conversação se

concentrava na relação dos moradores com a Cova da Moura e com as imagens

preconcebidas sobre o bairro. Depois de termos explicado a Rui Simões a nossa proposta,

surgiu a ideia de que esta ação específica, de desenhar no bairro retratos dos seus

moradores, fosse filmada e o projeto avançou sem grandes limitações. Por intermédio de

Simões, conhecemos Lieve Meersschaert, antiga diretora da Associação Moinho da

Juventude. Lieve, que vive no bairro quase desde o início da sua construção, foi uma das

moradoras que fundou a Associação e é uma das principais impulsionadoras da organização

e da promoção do bairro. A maioria das pessoas que conhecemos no bairro tem, de uma

maneira ou de outra, alguma ligação com a Associação do Moinho. Lieve, apresentando-nos

a alguns dos seus colaboradores e convidando-nos para algumas reuniões dos grupos

culturais, como o Kola S. Jon e o Grupo de Batuque Finka Pé, ajudou-nos a conhecer um

conjunto de pessoas que moram no bairro e que estavam interessadas em participar no nosso

projeto.

Antes de concretizarmos os retratos queríamos perceber melhor a dinâmica do lugar.

Percorremos as suas ruas, entrámos em lojas e cafés, almoçámos nos restaurantes,

brincámos com as crianças no Moinho, conhecemos alguns trabalhadores e colaboradores

da Associação. Fomos perguntando às pessoas se as podíamos desenhar. Com os contactos

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fornecidos por Lieve e através destas propostas mais aleatórias engendradas pelas ruas do

bairro, encontrámos um grupo de pessoas que se disponibilizou para nos contar as suas

histórias e as suas vivências no bairro, enquanto desenhávamos os seus retratos: a Patrícia,

A D. Domingas, a Nice, a D. Lucinda, a Filó, a Jú, a D. Clementina, o Sr. Leandro, o Flávio,

o Tiago, o Rui, o Sr. Teodoro e o Bino. Foi com base nestas conversas que a nossa ideia

sobre o bairro foi ganhando forma. Levou-nos a olhar para o lugar como um espaço feito de

histórias e de detalhes, de horários e de rotinas, de vontades e de obrigações. Embora este

caminho não tenha sido aquele que optamos explorar, os retratos foram concretizados e o

filme de Rui Simões também ficou finalizado. No fundo, este primeiro esforço concretizou-

se como uma recolha de material, indispensável para o trabalho que desenvolvemos de

seguida: explorar a nossa experiência e memória do lugar, pelo desenho.6

Na esperança de encontrarmos as narrativas deste espaço, percebemos que este lugar,

onde se vive de forma partilhada o quotidiano, é um eixo de coexistências congregadas no

tempo e no espaço. Harvey fala-nos da relação recíproca entre lugar e os sujeitos que,

habitando-o, lhe dão significado. A relação entre lugar e sujeito depende da influência que

ambos têm um no outro (Harvey, 1996). Esta identidade coletiva implica necessariamente a

existência de diversidade. O espaço ganha uma outra dimensão quando inserido na narrativa

de alguém. As vidas e as histórias das pessoas são também aquilo que molda e que

caracteriza o lugar. Este incorpora esta diversidade e reclama estas narrativas como a sua

narrativa. O espaço do bairro reflete precisamente a conjunção de histórias e memórias. A

Cova da Moura é um lugar particular porque há crianças que correm freneticamente pelas

suas ruas; porque há música e dança; por existirem grupos como o Batuque Finka Pé e o

Kola S. Jon que, para além de preservarem uma herança cultural, promovem a entreajuda e

a comunhão quase familiar dos seus membros. O sentimento de proximidade e de

solidariedade que se sente entre os moradores é algo fora do comum. Sente-se uma

familiaridade especial, visível desde o acompanhamento das crianças pelos vizinhos, à entre

ajuda, aos movimentos associativos que procuram melhorar a imagem social do bairro.

Acontece, por vezes, alguém perguntar de onde são. Será que omitem o facto de serem da

Cova da Moura? A D. Lucinda diz que às vezes o táxi se recusa a deixá-la ali, na sua casa.

Por vezes não especificam a sua morada quando concorrem a um emprego. É como se esse

lugar não existisse - entre a invisibilidade para quem não está e o silêncio de quem está.

Todas estas pressões e sentimentos estão presentes na estrutura do bairro, que é

alterada consoante as necessidades e hábitos de cada pessoa que o habita. As suas memórias

6 O filme realizado sobre o projeto tem o nome de Retratos a Preto e Branco e está, juntamente com a

transcrição das entrevistas, disponível para consulta como anexo.

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refletem a forma como transformaram este lugar na sua casa. No sentido mais íntimo, esta

casa reduz-se ao espaço que partilham com as suas famílias. As suas histórias, desde os mais

velhos que nos dão um contexto social da migração depois do 25 de Abril e nos podem

relatar a contínua transformação do lugar, aos mais novos que nos estabelecem uma relação

mais forte com o mundo fora desse lugar e nos providenciam uma comparação temporal

mais próxima, levam-nos a perceber uma realidade que desconhecemos, um espaço e um

tempo que não são nossos, fornecendo-nos com ferramentas para a compreensão desse

lugar.

O bairro tem cafés, pequenas lojas, talhos, mercearias, cabeleireiros, muitas barracas

que vendem fruta e outros víveres. Por entre os cafés encontramos também pequenas lojas

estabelecidas em pequenas caves. A D. Domingas todos os dias se encontra numa destas

garagens, fritando torresmos e vendendo bolos de coco. Há uma economia local, um

elevado número de pessoas que estabelece aí a sua atividade, providenciando a maioria dos

serviços necessários. Muitos, raramente saem do bairro e há bastante movimento nas ruas

com comércio. São todos estes pormenores que contêm a essência do lugar, aquela que

procuramos quando observamos o bairro na tentativa de perceber quem lhe pertence e o que

é que o identifica. A relação que estabelecemos com o lugar depende de como nos

posicionamos enquanto observadores e depende das relações que estabelecemos com os

sujeitos que o habitam. Com o tempo ficamos a conhecer o nome de algumas pessoas.

Conhecemos o seu território, percorremos as suas ruas. Comemos neste e naquele

restaurante. Alguém nos diz que a melhor cachupa é do sítio lá atrás na esquina. Vão-nos

contando algumas histórias, de mães solteiras, de lutas e conflitos injustificados com as

forças policiais, de jovens que resistem, que cantam e gravam as suas rimas no estúdio do

Moinho. Sabemos de presos por violência doméstica, mas sabemos também daqueles que

estudam na faculdade. Sabemos da comida da cantina que nunca falta a ninguém, das

crianças que correm pelos pátios da associação, dos mais idosos que exercitam os músculos

na terça-feira à tarde e o cérebro na quarta. Os sons, os risos, a animação do final da tarde.

Nada disto se esconde. Estas contemplações e registos soam, por vezes, a uma dramatização

do lugar. Mostram, ainda que parcamente, aquilo que queremos nomear. Este estar, ainda

que apenas por alguns momentos, altera a forma como nos relacionamos com todas as suas

partes, todos os elementos e pessoas que o compõem.

António Ramos Rosa escreve um apontamento que ilustra o procuramos expressar:

“Estou num lugar mágico da vida e sensibilidade. Isto é que é Portugal. Um

lugar mestiço. Faz-me lembrar as mantas de retalho que a minha mãe fazia. A

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nossa sociedade é isto e não apenas aquele quotidiano das pessoas esmagadas e

inexpressivas que vemos nos transportes públicos. A festa também faz parte da

vida e estas pessoas estão vivas. Isto é vida. O ser humano é divino”.7

2.3 Proposta artística

As questões que exploramos com este projeto partem de um interesse pelo outro;

aquele que está deslocado, marginalizado, que tem características culturais diferentes; que,

por uma razão ou outra, se encontra afastado do centro social e cultural. O deslocado e o

sentimento de deslocamento são integrados na exploração da ideia de que as imagens de

outras pessoas, sejam elas visuais ou literárias, servem como representação daquilo que

dizemos, sendo que as nossas referências gráficas fazem intrinsecamente parte do nosso

discurso. As pessoas com quem trabalhamos neste projeto são, de uma forma ou de outra,

pessoas deslocadas. É impossível pensar na ideia de deslocamento sem considerar o espaço,

o lugar, o território.

Sendo o bairro um lugar tão próximo de outros lugares (não só físicos como mentais),

há nele uma narrativa intricada nas memórias de um local de origem que é ali recordado e

repetido. Esta ideia de ‘casa fora de casa’ está relacionada com as representações que os

moradores do bairro desenvolvem sobre o lugar e sobre as noções de lar, casa e nação. Este

espaço, com uma forte relação à imigração e ao colonialismo, é um novo lugar. Como

Lippard (1997) esclarece, pode ser um refúgio entre culturas, que se identifica com um

limbo entre dois mundos (aquele de onde as pessoas vêm e este onde se fixam). Amalia

Mesa Bains chama-lhe “uma paisagem da saudade” (a landscape of longing), que provoca

uma possível alienação neste estar intermédio entre intimidade e distância, entre as tradições

originais e a aproximação a estes novos lares e lugares (Lippard, 1997: 62). Nós, enquanto

observadores, ocupamos também um espaço intermédio. Criamos ligações que procuram

compreender como nos transformamos, tanto pela interação com os outros como connosco

próprios, buscando a identidade do espaço da alteridade. No processo de autoperceção, o eu

transforma-se num outro. A sua assimilação implica a autoperceção num lugar onde não

pertencemos e que não nos pertence. É uma procura pelo peculiar, do pitoresco, do não-

experienciado, mas também uma procura pelo familiar, por aqueles elementos que, com

maior ou menos correspondência, os ligam a uma imagem ou referência conhecida.

A sua representação e a proposta artística que desenvolvemos, por ser feita

posteriormente ao contacto direto com o lugar, resulta de uma reflexão e de uma

7 António Ramos Rosa na inauguração do novo Centro de Formação/Biblioteca do Moinho da

Juventude em Janeiro de 2006.

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interpretação daquilo que experienciámos, daquilo que observámos e daquilo que agora

imaginamos. Ao mesmo tempo que nasce de um olhar exterior, produz um olhar

autorreflexivo e desenvolve-se segundo uma narrativa pessoal, providenciando-nos a

hipótese de descobrir novos mundos. É neste sentido que falamos de experiência do lugar.

Admitindo a difusão do individual dentro do coletivo, pesquisamos a memória cultural

do bairro, que nos dá acesso a um passado que depende e que se relaciona com os relatos e

as histórias provenientes de testemunhos orais, dos sons e cheiros do ambiente que os

envolve, das referências iconográficas que remetem no seu discurso. O nosso olhar sobre

esta comunidade e a sua cultura não procura encontrar a história efetiva/formal de um lugar,

mas as narrativas individuais construídas pela memória, aliadas à nossa construção pessoal

da narrativa do lugar, dos seus caminhos e mudanças, das suas criatividades e fantasias.

Ao estabelecermos uma relação corporal com o lugar procuramos tornar visível a

interação entre eu-lugar-desenho que surge do processo de criação. Explorando um

momento relacional o desenho amplia o mundo sem o limitar. Possibilita uma metamorfose

entre o espaço interior, que é exteriorizado, e o outro, o lugar externo, que é interiorizado.

Esta permuta entre interior e exterior, entre eu e outro, no lugar, permite não só redescobrir

o eu nesse espaço, como conhecer o outro, incorporando-o em nós como memória.

Existindo na memória, este lugar do outro é novamente experienciado e interpretado pela

nossa imaginação. Esta experiência pela memória está agora limpa do barulho da presença e

mostra-nos a relação entre os seus componentes. O desenho que resulta desta interação é

uma reinterpretação das experiências que relembramos. Os desenhos que fizemos acabam

por se desenvolver num sentido quase textural. Existindo como um todo (mais ou menos

coeso) vão-se construindo em série, produzindo camadas de marcas, vestígios, linhas e

traços que, na suspensão do momento capturado, os incorpora na experiência, memória e

imaginação. As narrativas deste lugar estão articuladas nas linhas que se formam no

desenho, oscilando entre a nossa história e as histórias que capturamos da realidade.

Ao experienciarmos o lugar da Cova da Moura reconhecemos também a necessidade

de contar uma história; de contar histórias de pessoas que desconhecemos, que se misturam

com as que existem no nosso imaginário, que vão sendo esquecidas e cujos meandros vão

desaparecendo nos acontecimentos que se vão multiplicando continuamente; histórias que

são muitas vezes aquilo que preenche o “espaço” de um lugar e que o caracteriza. Criando

imagens das narrativas que se multiplicam neste bairro, que por vezes desapareceram ou que

nunca chegam a existir, das narrativas que idealizamos e construímos a partir dos relatos

que ouvimos, permite-nos criar um vestígio de uma presença, construída pelos fragmentos

das pessoas que fomos conhecendo e que fomos transformando na nossa memória. Ao

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serem reinterpretadas, as suas histórias passam a transportar um novo universo, que estimula

a nossa imaginação, na tentativa de o compreender.

O processo reflexivo e cognitivo do desenho, sendo um processo de envolvimento

com o mundo, incorpora no seu universo o conhecimento relacional (que nasce da partilha

eu-outro). Este processo articulado permite que o desenho nos revele um outro mundo, uma

verdade subjetiva sobre o lugar. O desenho faz uma recriação desse lugar, incorporado na

memória e projetado numa realidade imaginada. Fazendo o registo da ocupação e do

preenchimento destes espaços, cria os seus próprios pontos de referência dentro do lugar,

evidenciando as suas marcas e os vestígios que constroem os contornos do mapa do

território. As marcas que referimos estão presentes tanto no lugar como no desenho,

funcionando como uma forma de captar e representar os detalhes do lugar, desenvolvendo-

se como o seu mapa pessoal. Este mapa faz, ao mesmo tempo, o reconhecimento das

experiências íntimas e coletivas da vida do lugar, relacionando-o com as suas vivências e as

memórias. Integramos, nesse mapa, a nossa organização mental e a nossa relação com

determinado espaço, transparecendo como nos pertence (ou não nos pertence) e como o

experienciamos.

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3. O lugar - a sua experiência no desenho

Um lugar, assumido como um local em camadas, repleto de histórias e memórias, tem

largura bem como profundidade. É temporal e espacial, pessoal e político.

Seguindo Lucy Lippard assumimos o lugar “como paisagem vista de dentro (...)

latitudinal e longitudinal dentro do mapa da vida de uma pessoa. Trata-se de conexões,

daquilo que o rodeia, que o formou, do que lá aconteceu, do que lá irá acontecer.” (Lippard,

1997: 7-8).8 Seguindo a mesma linha de pensamento, Lippard diz-nos que uma paisagem

que é habitada se transforma num lugar através da intimidade que nasce da exploração e da

experimentação desse espaço (caso seja apenas observado permanece simplesmente uma

paisagem). A complexidade do lugar não implica necessariamente uma dispersão dos seus

elementos. Na realidade possibilita uma união e uma interconectividade entre eles, de tal

forma que é na sua reunião que as suas diferenças e multiplicidades se preservam e revelam.

O lugar, sendo também o espaço onde os diferentes elementos que pertencem a

determinada sociedade se relacionam, é um espaço cultural partilhado. É, assim, um sítio de

partilha, física e afetiva, cuja estrutura funciona como uma referência do observador e com

uma identidade que se diferencia dos outros componentes que caracterizam esse lugar. A

comunidade que habita este lugar comunica e relaciona-se, tanto com a estrutura física do

espaço como com a sua componente relacional, através de códigos que lhe são particulares,

estando relacionados com as referências culturais que definem a sua identidade coletiva.

Como espaço preenchido por referências importantes para o reconhecimento identitário

daqueles que o habitam, permite que aí se encontrem e criem relações familiares, sociais e

culturais. Este lugar possibilita uma integração participativa, de habitação e ocupação em

conjunto. Nas sociedades contemporâneas ocidentais há uma tendência para a perda dessa

pertença; as migrações evidenciam o desaparecimento da identificação cultural, surgindo,

em contrapartida, contextos cada vez mais amplos de território de desolação e de transição.

A investigação antropológica relaciona a questão de identidade de um grupo social ou de

uma comunidade à questão do lugar, propondo que a compreensão desse espaço passa pela

compreensão da sua identidade e organização enquanto grupo. A forma como uma

comunidade ocupa e habita um lugar depende e influencia os processos pelos quais se

organiza. Remetendo para o pensamento de Marc Augé (1994), o espaço é alterado pelas

8 Tradução livre do autor (“(...) place - a portion of land/town/cityscape seen from the inside (...) is

latitudinal and longitudinal within the map of a person’s life. Is is temporal and spatial, personal and political.

A layered location replete with human histories and memories, place has width as well as depth. It is about

connections, whats surrounds it, what formed it, what happened there, what will happen there.”)

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pessoas e as pessoas alteram o seu espaço; controlam os seus simbolismos e as suas

significações. O lugar existe, também, porque alguém lhe concede um significado, alguém o

insere nas suas trocas relacionais e quotidianas9.

Refletindo sobre a relação entre lugar, como espaço que influencia identidades, e as

identidades dos sujeitos, responsáveis por criarem o espírito desse lugar, referimos a

conceção do lugar compreendida quando Augé (2005) define aquilo que não é um lugar.

Estes espaços são despersonalizados e desvinculados das pessoas que os ocupam,

transformando o mundo num lugar que, sem pertencer a ninguém, é de toda a gente –

prevalece apena o individuo sozinho. Augé refere ainda a desenfreada substituição dos

lugares pelos não-lugares, provocando um crescente anonimato e uma separação com o

sentido de sociedade e de comunidade. A forma como lidamos com esta tendência é um

reflexo de transformações económicas, sociais e políticas.

Ainda assim, há algo que nos leva a permanecer num lugar, a criar relações e raízes

num espaço, inseridos num grupo. É uma necessidade humana de estabelecer relações, de

estar com os outros (Augé, 1994). A forma como experienciamos os lugares e

estabelecemos com eles uma qualquer relação de reciprocidade é o que determina a sua

experiência. O que é partilhado nesta relação eu-lugar está vinculada com a nossa memória.

3.1 Sense of Place – a experiência do lugar

Baseando parte da nossa pesquisa na experiência do lugar procuramos explorar aquilo

que desconhecemos, propondo algo que desafie as nossas próprias ideias, criações e

resultados. “O termo ‘experiência’ remete para uma ação, ou sistema de ações que não pode

ser totalmente controlado e cujo resultado não depende da intenção, mas de possibilidades e

fatores imprevisíveis. O desenho permite experiências, ou um contacto com matérias, ações

e processos, mas também limites performativos inerentes à agilidade e perceção. (...) ”

(Almeida, 2010: 57).

A distinção que Lippard aponta entre o visível/visto e o sensível/sentido remete-nos

para a diferença entre um lugar observado na sua superfície ou um lugar visto de dentro,

9 Uma vez que relacionamos identidade com cultura, é pertinente referir que a sua relação se alterou no

decurso da globalização que, na consequência de uma ‘homogeneização cultural’, acaba por encobrir as

identidades e a unidade das diferentes culturas. Ainda assim, Stuart Hall (1997) desenvolve a ideia de

homogeneização chamando a atenção para o crescimento de um interesse de mercado da alteridade e para o

incremento da exploração da etnia e da diversidade. Neste sentido, mesmo que o fenómeno de globalização

tenda a padronizar as comunidades, havendo interesse económico em setores étnicos, a sua homogeneização

não se cumpre na totalidade. Boaventura Sousa Santos fala-nos ainda da flexibilidade das identidades

culturais, uma vez que estão em permanente transmutação. Sendo sistemas efémeros de reconhecimento “As

identidades culturais não são rígidas nem imutáveis porque são sempre resultados transitórios de processos de

identificação e em constante processo de transformação, identidades são, pois, identificações em curso"

(Santos,1996: 135).

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desde o interior e com o interior. Exploramos a problemática desta pertença; quando

referimos a experiência do lugar não pensamos somente na sua fisicalidade (envolvência

física) mas em todas as camadas que se vão sobrepondo e reorganizando na nossa memória.

Embora a paisagem exterior, o seu envolvimento físico, nos providencie pistas sobre uma

cultura (a paisagem como autobiográfica), a paisagem interior cria uma ligação entre o

território (a terra) e as pessoas (que preenchem essa terra), transformando-se por fim numa

paisagem (multi)cultural, histórica, social, associada a um determinado lugar. Neste sentido,

quando observamos e experienciamos este “espaço” pensamos nas componentes sociais do

lugar, nos remoinhos onde as pessoas, as suas memórias e o espaço se conectam e se

transformam mutuamente. “Se o espaço é onde se vive a cultura, então lugar é o resultado

da sua união.” (Lippard, 1997: 10)10

.

Ao analisar as narrativas históricas e pessoais, Lippard (1977) sublinha a diferença

entre as experiências pessoais que se desenvolvem na permanência diária num lugar e as

imagens que são vinculadas ao mesmo lugar por alguém que se limita a uma observação

externa. Neste sentido, salienta o papel do olhar artístico sobre um lugar que, ao contrário

dos que apenas o contemplam sem o experienciarem e, ainda assim, não o vivem como

alguém que o habita diariamente, consegue desenvolver imagens do seu quotidiano segundo

o seu olhar particular. A imersão num lugar por parte de alguém que não tem qualquer

relação com esse sítio depende de um conjunto de ferramentas que nos permitem

conectarmos com a sua cultura. Esta imersão depende de uma “intimidade topográfica”,

sendo importante recorrermos a uma extensa pesquisa visual e histórica do lugar, de

passarmos tempo a andar pelo “território”, de contactarmos com a tradição oral e de um

conhecimento intenso da multiculturalidade local e da fronteira/limites dessa

multiculturalidade. Assim, a descrição e interpretação da experiência pelo desenho

contextualiza-se naquilo que referimos como experiência do lugar. O pensamento é

moldado pela mutualidade da experiência que, pelos lugares que atravessa e ocupa, forma as

nossas ideias e sensações. Bachelard, na sua obra A poética do espaço, propõe precisamente

que a estruturação do pensamento se forma nos e através dos lugares. O vínculo que se cria

entre a experiência e a memória, ou as memórias e o lugar, seja este privado ou partilhado, é

o elo que faz a união entre a experiência vivida e a sua interpretação no desenho.

Estas diretrizes, associadas às nossas memórias e ao nosso imaginário, permitem criar

uma relação com uma cultura, provocando aquilo que Lippard chama de sense of place.

10

Tradução livre do autor (“If space is where culture is lived, then place is the result of their union.”)

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Emergente dos sentidos, permite experienciar o lugar cenestesicamente: as suas texturas, os

seus aromas, os seus sons e ruídos.

3.2 Fenomenologia - uma forma de experienciar pelo desenho

O desenho, pela sua flexibilidade e mutabilidade, permite criar espaços subjetivos em

consonância com o lugar que exploram. Há, na sua ação, um movimento que liga a forma ao

sentido que o autor lhe dá, fazendo uma interação entre o físico e o psíquico, o exterior e o

interior, o mecânico e o sensitivo, revelando a capacidade dual do corpo e do pensamento

criativo. Se pensarmos no desenho como um mecanismo podemos olhar para a sua execução

gráfica como uma experiência.

Servimo-nos então do desenho como meio para interligar e orientar o conhecimento,

explorando como pode acrescentar ideias para uma compreensão multifacetada da

experiência vivida. Propomos que isto se torna evidente através de um movimento no

pensamento: do concreto ao imaginário. O desenho, como conhecimento da experiência, é

uma forma particular de conhecer o mundo, tanto filosoficamente como na sua

experimentação física, enquanto complexa rede de pensamentos, sentimentos e

consciências/compreensões, que contêm significado e valor pela sua subjetividade.

Explorar o espaço com o desenho tem uma ligação direta com a visão, relacionando o

entendimento do sensível com a fenomenologia e o entendimento racional. Entre aquilo que

é percecionado pela visão e aquilo que é materializado graficamente no desenho é

necessário que exista uma adaptação consoante a intenção e a construção do desenho.

Quando esta construção não depende apenas da visão, propondo realidades que não se

percebem de forma instantânea e uniforme, como é o caso da experimentação do lugar, o

espaço é explorado numa dimensão que não é apenas visual. O desenho permite explorar

esta liberdade e espontaneidade sem que a sua prática perca o seu caráter desenvolto.

Identificando a fenomenologia como um tipo de pensamento, uma forma de pensar

(Merleau-Ponty, 2006: x), podemos referir as suas preocupações primárias como sendo a

estruturação da consciência e dos fenómenos que dentro dela se desenvolvem, como objetos

de reflexão. Estas reflexões, capazes de dar significado ao mundo, podem-se definir como o

estudo da experimentação pessoal do que podemos chamar de essência da consciência

(Woodruff Smith, 2007: 1), percebendo como nós próprios damos significado e como

analisamos a nossa experiência. A fenomenologia volta-se diretamente para a experiência

vivida de forma a providenciar descrições de experiências e de objetos em vez de procurar

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esclarecimentos causais. Esta abordagem toma em consideração a experiência do ponto de

vista individual, pessoal.

Husserl, considerado o fundador da fenomenologia, argumenta que a sua principal

preocupação é a criação de estruturas de consciência (Woodruff-Smith, 2007). A

fenomenologia de Husserl afirma que tudo começa com a consciência da experiência em si,

articulando uma conceção da fenomenologia fundada na epistemologia da experiência. Mais

tarde, Husserl desenvolveu outras considerações conceptuais que o levaram a propor o

seguinte: de forma a estudar a estrutura da consciência deve haver uma distinção entre o ato

de consciência e o fenómeno ao qual se dirige (o próprio objeto, transcendente à

consciência). Estes conceitos tornaram-se fundamentais no desenvolvimento das teorias de

Husserl, nomeadamente na distinção que faz entre o ato de consciência, o seu conteúdo ou

essência, e o seu objeto, como referido por autores como Moran (2001), Ricoeur (1996) e

Woodruff-Smith (2007). Relacionando a experiência do desenho com a distinção entre o ato

de consciência e o seu objeto, podemos diferenciar o seu conteúdo, descrito pelo ato de

desenhar, e o seu objeto, considerado no seu resultado final. O desenho admite a consciência

como objeto, mas também permite a reflexão e a análise do objeto dentro da atividade da

sua visualização. Com isto podemos dizer que o objeto, como por exemplo uma paisagem,

tal como aparece na consciência pode ser separado da consciência do objeto, através da

atividade do desenho. O desenho, por si mesmo enquanto objeto, adiciona uma outra

dimensão à experiência subjetiva do objeto. A experiência epistemológica de desenhar

posiciona o fenómeno dentro da consciência que, por sua vez, se torna objeto de análise e

reflexão, descrevendo não apenas o objeto ou o fenómeno, mas também a consciência

emergente desse objeto, o desenho.

Um desenho pode desempenhar dois papéis enquanto objeto, criado no qual o eu é

investido como um objeto por si só, desligado da atividade da sua criação. A dualidade do

desenho, como atividade e objeto, pode ser definida através de sua capacidade de descrever,

ou mostrar a realidade, e de descrever como descreve. Esta dualidade é realçada quando se

desenha o lugar, uma vez que leva o desenhador a descrever a relação que estabelece com o

local e a representar a experiência desse relacionamento.

3.3 O desenho da experiência - o corpo como forma de representação

Merleau-Ponty (2004), na introdução para a sua obra The World of Perception, declara

que a fenomenologia, ao considerar vários níveis de consciência, procura uma compreensão

que englobe todos os pontos de vista em simultâneo. Assim, baseado num paradigma

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fenomenológico do conhecimento pessoal e subjetivo, as suposições são agrupadas de forma

a gerarem uma compreensão da experiência. Considerando como intuito essencial da

investigação fenomenológica a descrição baseada na subjetividade da experiência pessoal

podemos argumentar que o desenho, pela sua ambiguidade, oferece múltiplos resultados

visuais sobre a mesma experiência subjetiva. A fenomenologia e o desenho compreendem

mutuamente a possibilidade de criar novas formas de pensar, escrever e interpretar a

experiência.

Merleau-Ponty propõe também uma nova abordagem sobre a teoria fenomenológica

de Husserl. Na obra The Phenomenology of Perception a presença do corpo, como elemento

que pertence ao mundo, é indissociável da experiência (Dilthey, 2010, apud Ashton, 2014).

Este corpo não é considerado pela sua fisicalidade, mas por ser um elemento que aglomera

uma intricada soma de competências. A experiência do corpo e o seu movimento são

essenciais para a perceção do mundo, uma vez que esta depende da forma como o corpo nos

apresenta a realidade através da experiência. Esta experiência resulta de um conjunto de

movimentos e de decisões que, por fim, influenciam (ou condicionam) o desenho.

A componente antropológica do corpo, revelando-se naquilo que nele existe de

invisível e de visível, abre-se e mostra-se ao mundo como um corpo coletivo, no qual

coabitam variadas narrativas. Este corpo é, de certa forma, o lugar onde esta relação entre o

interior e o exterior se desenvolve, sendo o início e o resultado de uma narrativa pessoal que

é, simultaneamente, coletiva.

Nicolas Bourriaud, falando da produção do corpo, refere quatro princípios de

separação, sendo o derradeiro aquele que se responsabiliza pela sua individualização através

da narrativa, transformando-o no recetáculo capaz de abarcar “todas as histórias e de poder

existir de todas as maneiras” (Gamito, 2011: 24)

Nesta conceptualização do corpo, da sua forma à sua construção, há uma abertura que

conseguimos relacionar com o desenho, como criação, e o desenho, enquanto ação. A

possibilidade de remendar, de acrescentar, de explorar o imaginário do corpo individual e do

corpo coletivo num só universo que é feito de multiplicidades, faz-nos pensar no desenho

como corpo.

O ritmo do desenho, que repete, reforma, combina, coloca em série, relaciona as suas

repercussões com o corpo uma vez mais. A sua ação representa e constrói o tempo,

transformando-o numa sintonia entre o ritmo da mente e da realidade extrínseca ao corpo.

Este tempo síncrono provoca uma sintonia entre o sujeito, o seu imaginário e o espaço real.

O nosso corpo, ocupando um lugar, é também em si um lugar, recebendo e registando as

suas marcas e estímulos (Belting, 2014). Para Belting o corpo é um lugar para as imagens,

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que as transforma de forma a fixarem lugares na nossa memória de maneira a poderem ser

novamente acedidos/ocupados. Este reconhecimento do lugar em imagens ocorre através da

nossa perceção, que o capta e o torna seu.

Comprometendo-se com o olhar e com o seu próprio movimento, o corpo é parte

integrante do conhecimento que é transportado para o desenho como “mapa do visível”.

Simultaneamente, ao reconhecer a sua existência, compreende os dois sentidos do olhar:

“Vê-se a si próprio a ver: toca-se a si mesmo tocando; é sensível e visível para consigo

mesmo.” (Merleau-Ponty citado in Johnson, 1993: p. 124)11

. Assim, consciente de si

próprio, é sensível à sua presença e ao espaço que ocupa. Esta reciprocidade entre a

presença do corpo e o seu sentir está envolvida com a experiência traduzida no desenho,

assumindo-se como o elo que existe entre o descrever e interpretar. Referindo a sua origem

reflexiva12

, a experiência do desenho, articulada com a memória e a sua capacidade de

combinar o passado, o presente e o futuro, conjuga o concreto e o imaginário, o visível e o

invisível.

No ensaio Cézanne’s Doubt, Merleau-Ponty admite que o relacionamento com o

corpo está associado à experiência do lugar, sendo que o desenho (que o descreve) se

desenvolve como uma continuidade desse lugar. Neste texto refere algo que Cézanne diz:

““A Paisagem pensa-se em mim” ele dizia “e eu sou a sua consciência”” (Merleau-Ponty,

1964: p. 17)13

.

Entre aquilo que é percecionado pela visão e aquilo que é materializado graficamente

no desenho é necessário que exista uma adaptação consoante a intenção e a construção do

desenho. Quando esta construção não depende apenas da visão, propondo realidades que

não se percebem de forma instantânea e uniforme, como é o caso da experimentação do

lugar, o espaço é explorado numa dimensão que não é apenas visual. O desenho permite

explorar esta liberdade e espontaneidade sem que a sua prática perca o seu caráter

desenvolto. Assim, há, na ação do desenho, um movimento que liga a forma ao sentido que

o autor lhe dá, fazendo uma interação entre o físico e o psíquico, o exterior e o interior, o

mecânico e o sensitivo, revelando a capacidade dual do corpo e do pensamento criativo.

Reconhecendo que a experiência individual é fundamental para criar conhecimento

relacional, o processo pelo qual nos relacionamos com o mundo caracteriza a arte: “ (...)

11

Tradução livre do autor (“It sees itself seeing: it touches itself touching: it is visible and sensitive for

itself.”) 12

Embora Heidegger e Merleau-Ponty desenvolvam diferentes teorias, ambas referem uma edificação

ontológica do desenho na experiência, particularmente como forma de estar enquadrado no mundo (Ashton,

2014) 13

Tradução livre do autor ("The landscape thinks itself in me," he would say, "and I am its

consciousness.").

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Como uma atividade que estende a consciência humana através de construções que

transpõem fenómenos naturais dessa condição qualitativamente indiferenciada que

denominamos "vida" em conceitos objetivos e focados internamente...” (Huebler, 1969:

173)14

. A conceção de Huebler oferece um paradigma fenomenológico segundo o qual a

experiência vivida é dirigida através de uma tradução que permite conjugar o desenho com a

experiência, a memória e a imaginação.

Procurando perceber as complexas vias que ligam a mente ao corpo, as ideias à sua

prática, propomos que uma forma de existir pensamento visual passa por haver uma

experiência irradiada no lugar, no tempo e no espaço, que lhe providencie dados,

informações. Aquilo que percecionamos e sentimos da nossa experiência e do mundo é

aquilo que é processado no desenho da memória. Por entre o caos informativo, a memória

faz uma seleção daquilo que armazena. A memória, enquanto elemento do tempo, relaciona

e organiza a informação que recebemos e captamos, formando ligações entre o passado e o

futuro. O processo da memória pode ser relacionado com o processo do desenho, uma vez

que ambos resultam de uma sucessão contínua de registos de acontecimentos que se vão

sobrepondo uns aos outros. Estas ações, passadas ou imaginadas, vão sendo confrontadas

constantemente, esquecendo e excluindo, selecionando e refazendo as memórias e as

experiências de forma a compreender o mundo e o lugar.

A visualidade do desenho faz então uma transposição, sem fazer uma substituição.

Nesta relação que se estabelece entre o objeto e a sua imagem, o desenho transpõe a matéria

sensível, sintetizando-a, não pela necessidade de haver brevidade na sua tradução, mas por

fazer uma condensação. À medida que os limites se dissolvem e são refeitos pelo artista e

pelo espectador, o desenho comprova sua capacidade de cruzar territórios conceituais, entre

e além dos limites, ao mesmo tempo que envolve modos de consciência dentro do ato de

fazer. Neste contexto, pode-se dizer que o desenho é uma maneira particular de pensar sobre

o mundo e sobre os seus objetos.

14

Tradução livre do autor (“…As an activity that extends human consciousness through constructs that

transpose natural phenomena from that qualitatively undifferentiated condition that we call “life” into

objective and internally focused concepts…”)

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4. A narrativa da memória

A palavra memória tem origem etimológica no latim, memoria (memor+ia), e refere-

se à capacidade de recolher, arquivar, interpretar e reutilizar informações, provenientes de

diferentes fontes (sejam ideias, experiências, estímulos sensoriais, conhecimentos), que

foram previamente obtidas. Sendo considerada comumente como a base da aprendizagem,

permite criar ligações sobre informações provenientes de nós próprios, dos outros, do

mundo, aliando as nossas experiências àquelas que nos são alheias. Produzindo um conjunto

único de recordações, é ao mesmo tempo partilhada e particular a todo o mundo. Sendo um

suporte para adquirir e armazenar conhecimento, permite criar associações de ideias e

pensamento que abrangem o passado, o presente e o futuro (Reis, 2014).

A memória permanece em constante evolução, atenta à dialética de lembrar e de

esquecer, inconsciente das suas deformações sucessivas, vulnerável à manipulação e à

apropriação, suscetível de estar longos períodos dormente e periodicamente reavivada. A

História, por outro lado, é a reconstrução, sempre problemática e incompleta, do que já não

existe. A memória é um perpétuo fenómeno atual, um elo ligando-nos ao eterno presente; a

História é uma representação do passado.

A memória, relacionada com a questão do lugar, não está, neste trabalho, a ser

examinada pela sua função cognitiva, mas pela capacidade operativa do seu processo, como

resposta espontânea e como conhecimento que se manifesta pela imaginação, buscando

diferentes formas de compreender e descobrir a experiência. Associada a lugares,

experiências, imagens e narrativas, distingue-se em memória artificial (semântica ou

voluntária), relacionada com a capacidade de armazenar e organizar referências,

informações, factos, e a memória natural (sensorial ou involuntária), que é pessoal e

maleável. Esta última depende de como condensamos, organizamos e recordamos as nossas

experiências, que sofrem uma constante reformulação (Horta, 2010).

O sentido do conceito de memória relaciona-se fortemente com os processos

memoriais próprios de cada tempo e espaço: do método loci da antiguidade clássica referido

Francis Yates (2007) à autobiografia e à psicanálise com artes modernas da memória, da

massificação da imprensa e do acesso à palavra escrita e à fruição de imagens, até às redes

digitais de comunicação (Tumbley, 2013). Uma historiografia de memória deverá, segundo

Tumbley, considerar não apenas as mudanças e as continuidades no modo como lembramos

e representamos o passado, mas também perguntar como formas de recordação podem ser

elas próprias construções culturais limitadas no tempo.

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34

O trabalho sobre a memória adquiriu, no contexto contemporâneo, uma certa

relevância, expandindo-se a campos de investigação bastante vastos, desde a psicologia, à

neurologia, às ciências sociais, à literatura e às artes plásticas. Por entre metáfora e

paradoxos, a memória cria reciprocidades entre disciplinas que trabalham sobre a

experiência humana, passando a pertencer a materialidade da existência social e psíquica. O

desenho, como meio capaz de trabalhar com a memória e sobre a memória, revela-se como

um campo de reflexão próprio.

Sujeita à ação do tempo e sensível aos estímulos que recebemos continuamente, a

memória sofre uma constante reconfiguração, afastando-se do seu referente num processo

progressivo. O seu estudo centra-se naquilo que sobrevive e sobre aquilo que foi

transformado. Esta contínua atualização é aquilo que Aby Warburg procura representar no

Atlas de Mnemosyne, reunindo em painéis conjuntos de imagens, organizados por temas e

símbolos, de forma a compreender as ligações e consonâncias escondidas e distantes e a

perceber o que é processado através da memória.

A memória e as imagens que existem já no nosso imaginário relacionam-se num

processo de transferência e transfiguração. No desenho vão sendo transformadas numa

tentativa de reconstituir os vestígios que surgem no fundo da nossa memória.

Walter Benjamin, no texto Escavar e Recordar, relaciona a prática do desenho como

meio para explorar a memória, com o ato de escavar em arqueologia. O desenho, enquanto

processo que reinterpreta a memória, apoia-se nas suas características subjetivas para

interpretar os elementos que inscrevem e organizam as imagens da memória. Reconstruir a

memória a partir da dispersão de imagens armazenadas é, assim, comparado por Benjamin

com a ação de revistar o solo à procura de vestígios das antigas edificações e existências.

Como meio de revistar o passado através das suas experiências, procura nas memórias

aquilo que ficou conservado (Benjamin, 2004: 219-20). As imagens destas experiências

desenvolvem-se nesta dimensão oculta e tensa da memória, feita de complexidades e

impossibilidades. O solo em que assenta precisa de ser mexido, para se criarem ligações

entre os vestígios que se encontram separados. Este processo pelo qual se “escava” para se

revelar a memória e a experiência é uma dimensão presente no desenho que a transforma.

Indagando sobre as memórias passadas, questiona simultaneamente os processos que as

criaram, revendo o contexto histórico e cultural no qual as suas histórias são construídas. O

interesse do desenho construído sobre a memória, deve-se ao facto de associar no seu

processo o imaginado e o concreto, o subjetivo e o objetivo, permitindo simultaneamente a

sua utilização como fonte de informação. O facto de o desenho revelar o seu autor pelo seu

processo de criação, seja pelo lapsos e erros cometidos, seja pelo tempo que imprime,

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mostra a forma como interpreta e representa aquilo que perceciona. O desenho surge deste

desejo de manter presente uma imagem que, existente na memória, possibilita a sua

materialização física. Esta dimensão depende das marcas que se inscrevem no suporte,

podendo variar consoante as suas utilizações. Segundo Paul Ricoeur estas marcas podem ser

uma transformação da memória num suporte escrito ou gráfico, como marca gravada na

nossa mente e como inscrição corporal (Ricoeur, 2006: 13-15).

4.1 A memória e a experiência do lugar

O tempo muda e transforma os espaços e os lugares, que vão sendo arruinados,

edificados, tomados, modernizados. Para trás fica aquilo que foram, o que existe agora são

os seus traços e os seus fragmentos. Outros lugares vão absorvendo aquilo que resta dos

seus destroços, sendo substituídos e consumidos por estruturas que se impõem. Todavia vão

sobrevivendo por conta das relações que estabelecem com as comunidades e os grupos que

os habitam. Este grupo de pessoas é responsável pela sua formação, pela sua construção e

crescimento, pelo desenvolvimento de uma identidade cultural e coletiva que está

diretamente relacionada com esse lugar. As memórias partilhadas formam-se quando são

produzidas numa união, sempre que os seus modelos são compartilhados socialmente e

quando lhe conseguimos associar códigos e um espaço específicos (Halbwachs, 1992).

“‘A alma da cidade’ torna-se na história da cidade, os sinais nas paredes do

município, o carácter distintivo e definitivo da cidade, a sua memória. Como

Halbwachs escreve em La Mémoire Collective, 'Quando um grupo é introduzido num

espaço, este transforma-se à sua imagem, mas ao mesmo tempo, produz e adapta-se a

certas coisas materiais que o resistem (...) '. Pode-se dizer que a própria cidade é a

memória colectiva da sua sociedade, e tal como a memória, está associada a objectos

e lugares. A cidade é o ‘locus’ da memória colectiva. Esta relação entre o ‘locus’ e a

cidadania, torna-se a imagem predominante de uma cidade, tanto da arquitetura

como da paisagem, e tal como certos artefactos tornam-se parte da sua memória,

novos emergem. Neste sentido unicamente positivo grandes ideias fluem através da

história da cidade e dão-lhe forma.” ROSSI, Aldo; Architecture of the City; 1982:

130 15

15

Tradução livre do autor (“‘The soul of the city’ becomes the city’s history, the sign on the walls of

the munieipium, the city’s distinctive and definitive character, its memory. As Halbwachs writes in La

Memoire Collective, “When a group is introduced into a part of space, it transforms it to its image, but at the

same time, it yields and adapts itself to certain material things which resist it. (...)One can say that the city

itself is the collective memory of its people, arid like memory it is associated with objects and places. The city

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A forma como transpomos o lugar para a nossa memória depende de como somos

tocados e sensibilizados pelos seus estímulos, por todos aqueles detalhes que o

caracterizam. O seu sentido está nos pormenores. Immanuel Kant, na Crítica da Razão Pura

(1781), descreve que a experiência sensorial do ser humano é estruturada pelo espaço e pelo

tempo, enquanto quadros conceptuais, estando assim ligados ao conceito de perceção16

. O

ser faz, ocupa o lugar. Kant reconhece o lugar através do corpo. Aceitando uma fundação

corpórea do lugar, este só existe através do corpo, que o delimita. Este lugar, que existe

dentro de nós, influencia a nossa identidade pessoal e coletiva. Como refere Yi-Fu Tuan

(1977), é pela forma como nos relacionamos com este espaço e que experienciamos o lugar

que desenvolvemos os encadeamentos com a ideia de casa e de identidade. Estes conceitos,

segundo Tuan, estão ligados à associação que fazemos entre segurança, comodidade e

pertença com aspetos fulcrais no processo de significação de uma experiência do lugar.

Interessa-nos acima de tudo compreender como descrevemos e interpretamos a

matéria que vive para além da perceção humana, como apreendemos um lugar pela

consciencialização da nossa presença no mesmo. Admitindo uma dimensão pessoal, que

compreende as experiências individuais, e simultaneamente uma dimensão coletiva, a

memória cultural é composta no contexto social e familiar, a partir de estímulos externos.

Os sentidos, apreendendo a experiência e armazenando-a na memória transformam-se agora

em imagem. Esta imagem fica gravada na memória e é característica de um determinado

lugar e de um instante específico, conectando-se ao mesmo tempo com as memórias mais

antigas, desempenhando assim uma função agregadora pela possibilidade natural de

articular experiências. Neste sentido há uma constante renovação das memórias, das

experiências e dos lugares com que se relacionam. O corpo que referimos é aquilo que nos

dá uma história própria, é responsável pela experiência do mundo e pela subjetividade do

nosso olhar. Para entendermos esta matéria e para compreendermos como ela é visível é

preciso perceber o corpo e a presença do próprio artista no desenho que cria. O sentido

sobre o qual se materializa a sua presença no desenho é constituído pelo resultado das suas

ações, da sua corporeidade e da sua experiência. A transformação do mundo em arte é feita

nesta ligação corpo-consciência-mundo, sendo na sua reciprocidade que se explora o

is the locm of the collective memory. This between the locus and the citizenry then becomesThacity’s

predominant image, both of architecture and of landscape, and as certain artifacts become part of its memory,

new ones emerge. In this entirely positive sense great ideas flow through the history of the city and give shape

to it.”) 16

A perceção é um conteúdo concreto que se pode transformar pelo nosso pensamento numa larga

variedade de referências e imagens sensoriais. Permite-nos olhar o mundo e retirar dele conhecimento sobre a

realidade. A sua natureza difere da sensação e não se define unicamente enquanto ação sensorial, uma vez que

está dependente da experiência.

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invisível e o íntimo (Barata, 2012). A imaginação funciona como ponte entre a perceção e o

seu processamento no pensamento. Pallasma, em The eyes of the skin (2005), reflete acerca

desta interação entre a perceção, a memória e a imaginação a partir da capacidade inerente

do ser humano de guardar e de imaginar espaços, construindo a “metrópole da mente”.

“Enigmaticamente, encontramo-nos a nós mesmos na obra.” (Pallasmaa, 2005: 68).

O lugar, definido na relação entre contexto, a experiência e a memória, deriva da ideia

de “transferibilidade” proposta por Gabriela Vaz-Pinheiro (2007). Nesta ligação triformada

os seus componentes relacionam-se de forma subjetiva e ambivalente. Tal como do ponto de

vista sociológico, este confronto com o lugar, a memória, a experiência e o contexto das

suas interações, pode ser explorado pelo desenho. O desenho, enquanto registo do lugar

permite sinalizar os pontos de referência que o caracterizam e constituem. Esse lugar vai

sendo percebido e representado no desenho, procedendo a uma espécie de inventário dos

gestos do quotidiano. Torna-se visível a relação que existe entre essas ações do dia-a-dia e

os traços identitário do lugar, num processo que simultaneamente destaca a presença do

olhar exterior do artista. A forma como o sujeito criador comunica pelo desenho é como que

uma insinuação subjetiva ao seu discurso, fazendo uma referência ao seu contexto sem o

anunciar explicitamente. Este lugar ganha para nós um sentido particular e a sua

interpretação e interiorização estão dependentes da nossa identidade e das nossas

experiências anteriores. Conjugando a nossa memória e o nosso imaginário, o desenho

funciona como um rasto da passagem e da experiência de um lugar. Como refere Jeff

Malpas, o lugar desdobrando-se para fora, desvenda outros lugares, e para dentro, revela as

suas dimensões íntimas (Malpas, 1999). O lugar é aquilo que ocupa o vazio quando

partimos dele para criar. É algures em oposição a nenhures (a nenhum lugar). Assim,

exercendo uma montagem, uma exploração da experiência e da sua matéria, retém as

marcas das suas passagens e das suas nuances e intensidades, um pouco como a memória.

Orientando o olhar para lá das imagens, vai assentando camadas de perceções, de

observações e de estímulos, emocionais e ambientais

4.2 Imaginação – a narrativa da memória

A forma como se desenvolve o processo de criação, na qual podemos perceber o

universo sensorial, experimental, dos comportamentos e das intenções, mostra como

relacionamos estes estímulos (mentais e físicos) com aquilo que guardamos na nossa

memória. A possibilidade de, a partir destes estímulos e da informação que armazenamos,

criamos e ficcionarmos realidades e situações depende do nosso imaginário e da nossa

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capacidade de imaginar. Neste sentido, falamos de uma conjunção entre o contexto real que

percecionamos, que nos estimula, e que experienciamos, e o universo imaginado. Esta

relação é possível através da memória. O resultado desta interação, no caso de ser uma

imagem, deriva de um conjunto de outras imagens, de vestígios de ideias que se encontram

em pausa no nosso armazenamento mental, prontas para serem “resgatadas” promovendo as

ligações que traçamos entre informações. A inscrição tem o seu paralelo em toda a criação

humana, a criação de uma cultura, dado que nela aquilo que não tem corpo, aquilo que faz

parte do pensamento, da imaginação, do sonho, passa a existir, no momento em que é visto

através da imagem. Neste processo há um aperto que precisa de ser experienciado

corporalmente, de forma a ativar a memória e a imaginação.

A imaginação, jogando com os dados da memória, faz associações entre pensamentos,

saltando de um lado para o outro, disparando de forma improvável e desigual em todas as

direções. Sobrepõe, associa, foge e encontra. Didi-Huberman (2009), falando a respeito da

Mnemosyne de Aby Warburg, refere um pensamento en fusée (foguete). “Neste contexto,

fusée traduz o rasgo de espírito ou de génio da imaginação: é fugaz, passageiro, transitório,

volátil, simultaneamente genial e errático, profundo e pouco dogmático” (Sá, 2013: 20).

Pensar o mundo através da imaginação cria uma projeção que é simultaneamente íntima e

capaz de criar afinidades, através do conhecimento adquirido pela experiência individual. A

legibilidade das imagens do mundo criadas pela imaginação depende, para Walter

Benjamin, da própria visibilidade das coisas. Para Benjamin, as imagens permitem fazer

uma leitura do mundo, criando entendimento e compreensão sobre o seu sentido (Walter

Benjamin, cit. por Didi-Huberman, 2009: 56). O desenho faz uma construção que escapa ao

tempo, possibilitando ideias e sensações que fogem e que se escapulem. O seu significado é

retirado daquilo que revela e comunica, fazendo uma interrupta leitura do mundo. A nossa

memória e a nossa imaginação, enquanto decifradora da memória, permanecem numa

constante evocação de acontecimentos e experiências, de espaços e tempos que de alguma

forma se vão relacionando uns com os outros. O tempo é habitar um lugar. As imagens

permitem-nos ver o que poderia ter sido esse lugar no tempo, como seria habitá-lo num

passado reinventado e reencontrado. Este passado não vive apenas das memórias, mas da

forma como são reconstruídas pela imaginação, que retorna ao lugar-origem. Mesmo que

nada se possa repetir, existe uma possibilidade de ligar o passado com o presente pela

memória do que passou. A representação desta evocação constrói-se, de certa forma, como

uma alegoria. Craig Owens fala deste ímpeto alegórico como “convicção a respeito do

passado e o desejo de redimi-lo ao presente” (Owens, 2004: 118) sendo, portanto, uma

forma de repor ou restabelecer algo, sugerindo também uma libertação. Neste sentido, essa

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39

representação encontra outras leituras quando relacionada com outras imagens, contrapondo

a linearidade e a conformidade narrativa. A sua história é construída de vestígios e enlaces,

com outras imagens e outras narrativas, outros tempos e lugares.

A força destas imagens está precisamente na sua capacidade de se relacionar com

outras experiências, gerando novas construções de significado e conhecimento pela ação da

memória e da imaginação. Esta potencialidade é explorada no desenho. O seu processo

operativo é, por um lado, construído por um sistema que organiza as perceções espaciais do

real, e por outro habita um universo paralelo, fragmentado e ideal, no qual opera o sonho e o

incoerente. Cria-se assim um paradoxo entre a construção sistemática e progressiva do

desenho e um gesto derivativo que ultrapassa a razão e a lógica na sua criação. Embora se

possa privilegiar ambos os lados destes processos, o desenho implica, de certa forma, uma

continua combinação entre a experiência do real e descoberta do imaginado. O desenho é

então a tradução desta articulação, encadeado nas infinitas possibilidades e ligações

propostas pelo nosso imaginário e o nosso arquivo memorial, fazendo a montagem de todas

as referências, analogias e possibilidades de sentido, representando um enredo de cada vez.

Utiliza como recursos o gesto e a memória, combinando a experiência do visível com a

nossa capacidade de armazenar e recuperar informações. A experiência é um elemento que,

no processo de desenho-memória, estabelece uma ponte entre o espaço e o tempo com o

universo interno daquele que observa e perceciona esse caos.

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5. Contexto histórico e artístico do lugar e da memória

Desde o Renascimento que existem registos que relacionam o desenho à memória,

explorando a sua capacidade de criar mnemónicas capazes de armazenar a complexidade do

mundo de forma a serem então recuperadas pela memória e pela imaginação quando

necessárias à atividade do pintor (Rosand, 2002). As abordagens de Leonardo da Vinci e

dos escritos de Vasari e Cennini, compreendem o desenho como um exercitador da

memória, relacionando a realidade com o imaginado. Existe, assim, uma articulação entre o

desenho de observação, o desenho feito a partir de testemunhos orais e o desenho de

memória.

A existência de esboços figurativos nas paredes das cavernas desenhados por pessoas

da Idade do Gelo, cerca de 15.000 anos a.C., sugere que é quase instintivo para o ser

humano querer representar-se a si mesmo e aos outros (Devanne, 1983), bem como para

registar a sua presença, a sua memória. A variedade de retratos pintados e desenhados ao

longo dos séculos fornece também uma interessante fonte de imagens que providenciam

alguma perceção e conhecimento das mudanças das convenções sociais e dos gostos, dando

uma nova vida ao passado. São testemunhos das contínuas tentativas de descrever a

complexidade e a unicidade da personalidade e do carácter humanos. A maioria destes

retratos, ainda que concretizados inicialmente como forma de enaltecer o poder e os seus

representantes e progressivamente como forma de representar, armazenar e expor uma

crítica de costumes da sociedade e das comunidades da altura, estabelece-se como uma

forma de eternização da memória. Estas imagens eram também uma forma de perpetuar a

memória de uma existência, de uma passagem.

Aliada a função memorial e representativa dos registos gráficos, a curiosidade por

conhecer e representar território e povos desconhecidos foi crescendo. No séc. XV, com a

expansão do mundo conhecido, abriram-se oportunidades de negócio e novas fortunas

surgiram um pouco por toda a Europa. A influência das viagens, das encomendas e

circulação de obras estendeu-se da Flandres, aos países germânicos e à Suíça, chegando

também a França, Espanha, Portugal e Itália. Amílcar Cabral refere também este fascínio

que se desenvolveu sobre o desconhecido, os homens e sociedades que eram vistos como

outros, salientando precisamente a época do colonialismo e do domínio imperialista como a

com mais alento e vontade de conhecer esse outro (Cabral, 1999). Este interesse revelou-se

tanto em áreas científicas que olhavam, por exemplo, os africanos como objeto de estudo

científico, como em campos artísticos. Podemos apontar o caso de Albrecht Dürer (1471-

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1528) e as suas representações de escravos negros que vinham para a Europa,

especificamente dois escravos portugueses, reflexo da vontade de conhecer o desconhecido

que demonstrava. Os dois estudos que destacamos são desenhos de retrato, resultando de um

encontro do artista com dois indivíduos de ascendência africana.

Dürer, aquando da sua estadia em Antuérpia, estabeleceu uma relação com os feitores

portugueses que representavam o rei de Portugal na Flandres. Exemplo desta relação são

oito obras oferecidas por Dürer durante uma viagem que fez aos Países Baixos entre 1520 e

1521 aos funcionários portugueses da feitoria de Antuérpia. Dürer sentia uma certa atração

pelo “exotismo que os Descobrimentos tinham introduzido no quotidiano do Ocidente”

(Dagoberto Markl, cit. Salema, 2005). Desta oferta fazem parte dois desenhos, um

atualmente guardado na Galeria Albertina, em Viena, e outro na Galeria dos Uffizzi, em

Florença.

Fig. 1. Head Study of an African, 1508 Fig. 2. The Negress Katherina, 1521

O primeiro retrato que apresentamos aqui é um estudo de um homem negro cuja

origem e história é desconhecida (não existe nenhuma referência do seu nome).

Possivelmente Dürer teria avistado este homem numa das suas viagens por Itália, ou poderá

mesmo tê-lo conhecido através do mesmo mercante João Brandão, seu patrono na

Antuérpia. Poderia ser um escravo, um servente livre ou até um membro da comitiva nobre.

No caso de pertencer a uma comitiva nobre, as suas roupas parecem sugerir que pertenceria

a uma classe social baixa. O segundo é um retrato da “Negra Catarina”, uma escrava do

feitor João Brandão, representante do comércio Português em Antuérpia (Salema, 2005).

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Estes desenhos são das primeiras representações ocidentais de pessoas negras. São

duas pessoas cuja história desconhecemos, esquecida nos meandros dos acontecimentos

históricos que se foram multiplicando, entretanto. As suas narrativas desapareceram.

Permanecem estas imagens, funcionando como vestígios de uma presença que já

desapareceu. O simples facto de terem existido e de terem sido retratadas marca um

encontro que, de alguma forma, nos pode levar a conjeturar acerca das suas vidas, do

contexto em que Dürer as retratou, como é que se sentiram, qual era a sua história. É

também, esta possibilidade do retrato, e especialmente do desenho, que é importante

mencionar. Ao vermos estes rostos, ou outros quaisquer, somo facilmente puxados para um

lugar de identificação e, possivelmente, de compreensão. A linha que nos une tem a ver com

este potencial relacionamento, com uma comunicação que ultrapassa a barreira do tempo,

do espaço, do lugar. Estes desenhos mostram um primeiro olhar, um primeiro contacto com

esta comunidade que procuram representar. Funcionam também como uma espécie de

introdução, como se fosse a apresentação inicial de alguém que vamos ficar a conhecer.

Já no século XX mencionamos um outro contacto com o desconhecido, com o fascínio

do outro que está distante. Na exposição Primitivisms, realizada no MoMA em 1984,

mostram-se as influências das artes tribais de África, Oceânia e da América do Norte no

trabalho de pintores modernos, na altura. Pintores como Gaugin, Picasso e Matisse

mostravam um primeiro interesse por máscaras e esculturas destes locais, levando outros

artistas a desenvolverem o mesmo fascínio, deixando-se influenciar pelas suas formas e

conteúdos. Primitivism é um termo usado para descrever a resposta ocidental às culturas

tribais, representadas em obras de pintores ocidentais. A exposição propõe revelar o

paralelismo entre as duas artes, colmatando a falha na investigação da história de arte sobre

esta relação. Apresentando cerca de 150 peças que remontam ao início do século XX até à

data da exposição, dando ênfase aos movimentos surrealista e expressionista,

protagonizados por artistas como Gaugin, Picasso, Brancusi, Modigliani e Klee, aqueles que

mais profundamente exploraram esta influência. A acompanhar encontravam-se cerca de

200 peças artísticas tribais expostas, bem como objetos como máscaras e outras esculturas

provenientes de coleções privadas de Picasso, Matisse, Braque, entre outros. Gaugin é

referido como propulsor deste interesse, sendo dos primeiros artistas a explorar o realismo

percetual do impressionismo, com efeitos decorativos bidimensionais e formas estilizadas

encontradas em muita da arte não ocidental.

Anself Franke (2013) refere este acontecimento como o momento que despoletou o

debate sobre a relação do ocidente com o resto do mundo, nomeadamente sobre a imagem

que é retratada comumente nesse discurso que, em muito casos, roça a superioridade. Esta

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exposição, propondo uma mostra da relação existente entre a arte tribal e a ocidental, acaba

por abrir portas à consciencialização do tipo de discurso que se desenvolve acerca do outro,

estando na origem do pensamento crítico que passa a abordar esta questão (Tolentino,

2013). Há, nesta exposição e neste discurso, uma posição condescendente e uma redução

preconceituosa sobre tudo o que não é ocidental, nomeadamente quando generalizam todas

as criações artísticas da diáspora como sendo tribais, ligadas a rituais. Stuart Hall diz-nos

isso mesmo quando refere que “entre a obra e o mundo, como entre o universo psíquico e o

universo social, interpôs-se, por assim dizer, a barreira do inconsciente histórico” (Hall,

2009: 24). Stuart Hall fala-nos também na reação de alguns artistas da diáspora negra do

Pós-Guerra, que “questionara(m) a celebração ambivalente do ‘primitivismo’ pelo

modernismo - que parecera ter aberto o mundo ocidental à arte não ocidental, revigorando o

esgotamento do primeiro, enquanto se aproximava da última, transformando-a em ‘suporte’

exotizado da criatividade ocidental” (Hall, 2009: 14). Jonathan Hay refere precisamente esta

tendência ocidental e do seu olhar sobre o resto do mundo:

“As palavras que começam com o G - globalização, globalismo e global - que

servem para manter o mundo não-Ocidental numa distância conceptual segura,

enquanto objetos e não como co-sujeitos. (…) O poder ideológico das palavras “g”

como um aglomerado interrelacionado reside no fato de teoricamente evocarem um

processo bidirecional - à medida que a modernidade amplia o seu alcance do

Ocidente para o resto do mundo, o Resto também se move em direção ao Ocidente.

Isso mascara uma assimetria fundamental, na qual, nas suas diversas formas, ou

evacua a história ou a torna infinita (porque termina com a chegada da

modernidade). Deste modo, o Ocidente transforma o Resto num objeto de

conhecimento, desejo e prazer " (Hay, 2008: 1113-114)17

As identidades culturais têm um lugar de origem, têm história, e estão numa contínua

transformação (a história é contínua, a cultura é contínua); dependem da forma como nos

posicionamos dentro das narrativas do passado. A questão identitária relaciona-se

diretamente a com as mudanças sentidas nas práticas artísticas entre os anos sessenta e

17

Tradução livre do autor (“the G words - globalization, globalism, globality and the global - which

serve to keep the non-Western world at safe conceptual distance, as object rather that cosubject (…) The

ideological power of the ‘g’ words as an interrelated cluster lies in the fact that they theoretically evoke a two-

way process - as modernity extends its reach from the West to the rest of the world, the Rest also moves

toward the West. This masks a fundamental asymmetry, in which in its diverse forms either evacuates history

or makes it infinite (because it ends with the arrival of modernity). In these ways the West transforms the Rest

into an object of knowledge, desire, and pleasure.”

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oitenta, desde a discussão entre a “pura abstração” e o “realismo documental” para um

retornar da figura (nomeadamente o corpo negro como o principal sinal de raça). Sentiu-se

também uma preocupação com a autorrepresentação, deslocando o corpo estereotipado,

indigno, negro, do discurso racial para o campo de visão - transformando este corpo num

símbolo, como objeto de visibilidade, como estrangeiro, como tabu, como exploração.

Analisando a subjetividade da identidade negra, o corpo que se constrói é um espaço, uma

tela, uma paisagem, incorporando simultaneamente diferentes materializações corporais: de

género, de sexualidade, de diferenças, de sujeito. A representação (autorrepresentação)

negra rompeu com a celebração humanista e ocidental e passou a ser uma reivindicação de

espaço. Assim, o eu negro é evadido pela experiência histórica de rutura, de perda, de

resistência, de migração e revolta, de luta pela liberdade de pertencer a múltiplos lugares, de

ter múltiplas versões de si mesmo. Retomar o corpo negro é, segundo Hall, uma estratégia

de substituição que se revelou inadequada. O sistema de representações permanece o

mesmo, apenas invertido. Este corpo, concebido como tela, pode explorar os lugares

internos da subjetividade negra, mas continua a ser uma contemplação da diferença (Hall,

2006).

O corpo que aqui mencionamos como negro, na realidade, não é exclusivo a uma cor

de pele. É um conceito que abrange todas as pessoas e as comunidades que experienciam

uma rutura, com a sua história, os seus lugares, a sua identidade coletiva e cultural. Estas

comunidades, quando impelidas por forças da necessidade maior, a se deslocarem dos seus

lugares de origem, passam a ocupar um território que não ainda um lugar. As questões

relacionadas com o aparecimento destes novos espaços, que vão sendo reconstruídos e

redefinidos pelas pessoas que os ocupam e que sobre eles criam, impulsionam a uma

mudança na criação artística do lugar.

No pós-modernismo o minimalismo redefine o lugar não como o suporte da criação,

mas como a força motivadora desse mesmo ato (Vaz-Pinheiro, 2007). O lugar estabelece

nas propostas artísticas contemporâneas, uma estreita relação com os seus contextos

culturais e sociais, sendo que a obra representa no fundo a significação desse

relacionamento.

Miwon Kwon, referindo-se às circunstâncias em que surgiu a arte site-specific, fala na

tendência da ocupação do espaço real, que emerge no fim dos anos 60 e início dos 70. “O

espaço da arte já não era entendido como um espaço vazio, uma tabua rasa, mas como

espaço real. O objeto ou o evento artístico, neste contexto, era pensado para ser

experienciado singularmente no aqui-e-agora através da presença corporal de cada sujeito

visual, num imediatismo sensorial da expansão espacial e da duração temporal (o que

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46

Michael Fried derrisivamente caracterizou como teatralidade), em vez de ser

instantaneamente “percebido” como epifania visual de um olho desincorporado” (Kwon,

1997: 86)18

. As criações site-specific relacionam-se profundamente com o lugar, exigindo a

presença física do observador no lugar em que são desenvolvidas, de forma a completar a

obra/criação artística. Há, por isso, uma reestruturação do lugar da arte e do lugar para viver

a arte, assentando num modelo fenomenológico a experiência corporal.

A introdução que elaboramos serve como uma abertura à discussão sobre as práticas

artísticas que olham e trabalham o outro, mas também como uma introdução à pesquisa do

lugar onde nos inserimos e onde encontramos esse mesmo outro e da memória associada a

esta experiência. A pesquisa do lugar estabelece, no caso dos artistas que mencionamos

aqui, uma forte relação com o trabalho da memória e da imaginação. Assim, apresentamos

uma breve abordagem ao trabalho de William Kentridge, Marlene Dumas, Louise Bourgeois

e Magdalena Campos-Pons. Cada uma de sua forma, pelas obras que apresentamos aqui,

constitui uma influência na pesquisa e no desenvolvimento do nosso projeto artístico.

Embora sigam diferentes rumos e experimentações, há algo de comum entre todos estes

artistas: a memória e a preocupação de comunicar algo sobre a dicotomia do particular e do

coletivo, do interior e do exterior, do lugar interno e externo, da memória e da imaginação.

18

Tradução livre do autor (“The space of art was no longer perceived as a blank slate, a tabula rasa, but

a real place. The art object or event in this context was to be singularly experienced in the here-and-now

through the bodily presence of each viewing subject, in a sensorial immediacy of spatial extension and

temporal duration (what Michael Fried derisively characterized as theatricality), rather than instantaneously

"perceived" in a visual epiphany by a disembodied eye.”)

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5.1 William Kentridge

William Kentridge nasceu em Joanesburgo, África do Sul, em 1955. Usa uma grande

variedade de meios expressivos, desde o desenho, à escultura, ao filme, à animação e à

performance, transformando situações e problemáticas políticas em poderosas alegorias

poéticas, aludindo, por exemplo, a realidade do Apartheid na África do Sul. O facto de ter

testemunhado este reino de discriminação e de injustiça, que dividia a população segundo

um sistema social opressivo, leva-o a explorar um lado mais político e social da arte,

seguindo a prática de artistas como William Hogarth, Francisco Goya e Honoré Daumier.

Kentridge ocupa este espaço de passagem entre a uma certa fisicalidade imóvel e a

agitação temporal. Referimos o projeto Drawing Projection que se vai desenvolvendo desde

1989 como uma série de ‘desenhos filmados’ ou de ‘filmes desenhados’. Esta construção

materializa uma transação entre o pessoal e o político através da personagem recorrente

Soho Eckstein. Sendo reutilizada ao longo da série, a personagem traça uma linha contínua

entre os vários desenhos/filmes, ajustando esta conflituosa barreira (entre o individual e o

coletivo).

O seu método acolhe técnicas de montagem e animação que envolvem trabalhar

sequencialmente e repetidamente sobre um conjunto de desenhos a carvão, filmando o

processo da sua construção, desconstrução e reconstrução. Depois do desenho ser

modificado, Kentridge fotografa o resultado de forma a ter um registo de todas as alterações

que ocorrem. Trabalhando sobre os mesmos desenhos vai-nos expondo narrativas

fragmentadas pela sobreposição e acumulação de elementos, marcas e informação. Estes

vestígios, por vezes apagados, por vezes incompreensíveis, dão a sensação de várias

camadas de consciência. Deixando marcas visíveis da sua construção pelo caminho,

permite-nos conhecer no próprio filme e no próprio desenho a história da sua conceção,

como uma espécie de “desmembramento”, deixando para trás camadas de memórias. A

forma como procede à reconstrução e ao apagar do desenho exploram o movimento entre

memória e amnesia, deixando um desenho num estado de incerteza, relacionado com o

clima social em que se inserem.

A memória, nestas suas representações e nos seus desaparecimentos, transforma-se

num elemento visível. No fundo, este processo funciona como uma metáfora à sociedade e

ao mundo, que permanecem em constante transformação e evolução. Tudo é provisório e

passageiro, tal como nos desenhos filmados de Kentridge.

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Fig. 3. De 9 Drawings for Projection (1989-2003): Felix in Exile, 1994

Os desenhos de Kentridge têm uma codificação incrustada que refere espaços, lugares,

acontecimentos, organizações. É possível relacionar essas sugestões com frações de

histórias e com memórias recompostas no seu imaginário subjetivo. A compreensão destas

referências está dependente do conhecimento que temos acerca da história social, cultural e

política da África do Sul, especialmente sobre a cidade de Joanesburgo. Embora a

linguagem de Kentridge seja frequentemente alegórica e metafórica, sugerindo uma

aceitabilidade universal, a sua terra natal permanece profundamente impressa na sua prática

sob a forma de camadas arqueológicas, familiares e socias de memória: “Não tenho

conseguido escapar a Joanesburgo… E na realidade o meu trabalho está enraizado nesta

cidade bastante desesperada e provinciana.”19

(Kentridge, cit. Godby, 1991).

19

Tradução livre do autor (“I have been unable to escape Johannesburg... And in the end all my work is

rooted in this rather desperate provincial city”)

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Referindo Joanesburgo com frequência, alude ao envolvimento paisagístico da cidade,

representando os planaltos feitos pela mão humana, os montes e serras que são

continuamente erigidos, deslocados e substituídos pela indústria mineira. Cria uma visão

quase lírica da paisagem natural da África do Sul, rica em vegetação exuberante. No

entanto, escondido entre as gramíneas e os bosques estão os restos da indústria mineira que

foi sendo abandonada. “Há a sensação de desenhar uma paisagem social e histórica. O

processo de concretização do desenho encontra essa história porque a paisagem a esconde.”

(Kentridge, cit. Christov-Bakargiev, apud Tone, 2013:11). A história é quase impercetível,

vive como uma sombra, uma memória. Fazendo um paralelismo com a ação fugidia da

cidade que simultaneamente se protege e se revela pelas suas metamorfoses físicas e

estruturais, as construções de Kentridge procuram iluminar a própria memória interna do

trabalho, emaranhando os vestígios fugitivos da lembrança, do esquecimento e da sua

reconstrução.

Recorre também a símbolos e lugares específicos da cidade para cruzar a história

concreta com a memória subjetiva, levando-nos a relacionar um determinado espaço com o

seu legado. Lilian Tone (2013) refere a representação da Estação policial John Voster

Square como uma alusão ao seu historial violento e racista, bem como à sua imunidade face

a essas alegações. Posicionando-se entre o real e a fantasia, aquilo que é concreto e o que é

imaginado, mantém num permanente estado de dúvida. Apenas questionando tudo é que

Kentridge consegue manter uma distância cuidadosa do juízo moral e ideológico, propondo

um conjunto de trabalhos que, em contrapartida, procuram compreender a interação entre

Fig. 4. Rand Mines, 1999

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momentos singulares, os contextos históricos e as camadas de consciência, incorporando e

encarnando as complexidades, as dúvidas e indecisões, as perturbações, os anseios e as

esperanças deste seu lugar.

Kentridge, ao criar estas imagens sugere a observação de lugares que, através de um

processo de transmutação, combinam o consciente com o inconsciente num fluxo de

narrativas em contínua progressão. O desenho, enquanto linguagem visual, promove uma

conexão dos vários componentes que, aparentemente, estão desajustados. Consolidando

representações com características diferentes e que comunicam em diferentes linguagens,

cria uma espécie de vocabulário visual próprio, utilizando diferentes meios criar os seus

mundos e contar as suas versões da realidade, do lugar e da história.

5.2 Marlene Dumas

Marlene Dumas nasceu em 1953 nos arredores da Cidade do Cabo, África do Sul. Em

1976 mudou-se para a Holanda, onde continua a viver. Os primeiros desenhos que

desenvolve neste período revelam um sentimento de deslocação, providenciando um

comentário sarcástico e humoroso sobre a cultura da sociedade holandesa (especialmente

dirigido à classe média). Confrontada com as tendências formalistas das práticas artísticas

europeias, Dumas procura romper com as suas limitações, propondo obras que contenham

grandes cargas de informação. Os seus trabalhos, a certa altura influenciados pelos textos de

Foucault, exploram técnicas de montagem e combinam diferentes tipos de linguagens, desde

as mais académicas às mais poéticas, resultando num estilo fragmentado. O

desenvolvimento do seu trabalho é a história de uma imagem que se vai formando

gradualmente num processo de nomeação.

As suas obras representam geralmente corpos e rostos descontextualizados dos seus

ambientes e lugares, reposicionados de forma a explorar as fragilidades da existência. O seu

trabalho não se centra nesta repartição particular entre negro e branco, reflete sobre o luto,

sobre o público e o privado, sobre o aproveitamento da comunicação social. Explorando

frequentemente sentimentos como o medo, a ansiedade, o desejo e a empatia, explora as

eventualidades do amor e da guerra, sublinhando a realidade política e social da segregação,

da opressão e da dominação. Isola os corpos dos seus lugares e insere-os no contexto

específico que reflete sobre as suas definições de identidade, individual e cultural. Passando

do papel para a tela os seus quadros destacam-se pela sua emanação, pela forma como são

objetos que referem uma consequência, uma origem de assuntos abstratos e

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simultaneamente percetíveis. As suas figuras parecem quase inalcançáveis, mantendo-se

numa distância que lhe providencia a possibilidade de nos observarem, de cima.

Fig. 5. Black Drawings, 1991

Os trabalhos de Dumas fazem-nos recuar, olhar novamente e, à luz da memória,

parecem-nos familiares. Representando pessoas, os seus corpos e as suas identidades são

indefinidos, inominados. São seres que não se relacionam com um estatuto, um estado, um

ocupar particular. Não apresentam feições que se destaquem e as suas expressões não nos

remetem a uma existência concreta. Mantêm-se, de certa forma, afastados da vida. Existem

num limbo temporal e espacial mas evadem-nos nesta relação complexa e indecifrável entre

a vida e a criação. Buscando alcançar a vida, mostram-nos os limites e os vestígios dessa

procura.

Fazendo um contraponto com a maioria das representações ocidentais de pessoas

negras como serventes, visíveis ao longo da história da arte, em séries como Black

Drawings Marlene Dumas renova um olhar sobre os rostos negros. Partindo de uma coleção

de fotografias europeias usadas como postais para mostrar África no início do século

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passado, denuncia o olhar colonista presente nestas representações. Focando-se nas caras

presentes nestes postais, explora as diferentes expressões que cada rosto apresenta.

Baseia os seus desenhos nas imagens pré-existentes de pessoas negras, não desenha

pessoas que passam na rua. Há uma grande diferença entre estas duas origens. Este é

também um trabalho sobre a apropriação da imagem, a sua reprodução e representação. Não

é um trabalho político na sua essência, embora possa ser facilmente relacionado com

questões do Apartheid ou sobre racismo. É também uma forma de pensar no negro como um

estado positivo e uma forma de honrar o preto como uma cor bonita. Podemos salientar

ainda o seu interesse pela fisionomia, especialmente pelo abuso da sua utilização como sinal

de supremacia ou perfeição. Este corpo, na realidade este rosto, é uma libertação, seja dos

seus significados, intenções ou objetivos políticos, como uma libertação do peso de ter que

ser um símbolo de libertação.

Os seus trabalhos, muitas vezes repletos de um erotismo que nos aproxima da nudez

do essencial, levam-nos ao cerne daquilo que desejamos e daquilo que não se encontra nas

suas figuras, mas na memória. Esta memória fixa-se na sua obra como uma espécie de

arquétipo “como se se tratasse de um registo de seres pelos quais se passou, procurando não

esquecer os traços, apenas os traços que evitem o seu cair mais que provável nessa

dimensão bem maior do que a memória, o esquecimento.” (Molder, 1998:7). Molder chama

a estes seres despidos, de corpo inserto, de fantasmas. Pela presença do seu espírito

mantêm-se vivos. Remetem a algo familiar e conservam-se neste mundo no momento em

que vislumbramos o seu movimento e a sua presença no nosso imaginário memorial.

Fazendo referências contínuas à história de arte e à forma como os conceitos se vão

modificando e reiterando, Dumas transmite-nos nas suas obras a ideia de que a verdade tem

muitas máscaras. Muitas vezes a sua verdade não tem necessariamente a ver com a sua

intenção, mas com a consciência de que está a dizer, de que representa, de que traça uma

linha. A forma e a matéria dos seus quadros são o centro da sua construção, procura dentro

do quadro a superfície que quer arranhar. Neste sentido, a condição dos seus quadros é a de

ser uma coisa pintada, cuja imagem existe numa constante resistência às suas limitações

(físicas e informativas). Com apenas algumas pinceladas e quase sem tinta Dumas torna

presente o espírito da carne do seu sujeito, que vai ganhando espaço pela imanência da vida

que a preenche. Os seus trabalhos tendem a provocar um isolamento do corpo e dos rostos,

fragmentando-o, eliminando qualquer sinal que remetesse mais diretamente á situação que

representa.

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Quase todos estes trabalhos, embora possam ter a sua origem no lugar, são elaborados

num outro espaço. No seu estúdio, viaja com a imaginação, vive com a imaginação. Baseia-

se em imagem de um lugar que não ocupou e não observou com os seus olhos. Estas

imagens são transportadas para as suas pinturas e desenhos e representam a especificidade

Fig. 6. For whom the bell tolls, 2008 Fig. 7. Mamma Roma, 2012

de um olhar cuja falta de naturalidade é profundamente marcada nos corpos que a

representam. Na maioria dos seus trabalhos Dumas entrega-se ao seu sujeito, criando um

testemunho de algo que, na maioria das vezes, não presenciou. A sua imaginação, esta que a

faz viver, ganha uma dimensão física e política (em alguns casos) e é o elemento que

transporta aquilo que é representado para a realidade visual de Dumas. O facto de não estar

presente nos momentos que explora altera a forma como os representa; partindo de uma

imagem Dumas encontra a sua proximidade pela distância.

5.3 Louise Bourgeois – trabalhar sobre e com a memória

Louise Bourgeois nasceu em 1911, em Paris, numa família de restauradores de

tapeçarias e morreu em 2010. Estudou Cálculo e Geometria na Sorbonne e concluiu o seu

Bacharelado em Filosofia na Universidade de Paris mas decide dedicar-se às Artes,

estudando em diferentes escolas e ateliers. Depois de ter começado a sua carreira artística

em Paris, abrindo uma pequena galeria nas traseiras da oficina de tapeçaria do seu pai,

conhece o historiador de arte Robert Goldman, com quem se casou. Em 1938 mudou-se

com o seu marido para Nova Iorque, onde criou três filhos.

A sua obra é desenvolvida numa grande variedade de meios, formatos e materiais,

criando uma iconografia híbrida. Produzindo um corpo central de trabalho em escultura

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explora diversos temas, técnicas e materiais, passando de escalas muito pequenas, de

escultura quase fetichistas, a pinturas e desenhos, a instalações que ocupam quartos inteiros.

Dominou diferentes técnicas e meios, desde a madeira, bronze, látex, mármore, conjugando-

os com objetos pessoais e recolhidos pelas ruas de Nova Iorque. Os seus desenhos, segundo

Fig. 8 Are you in

Orbit (#1), 2008

Fig. 9. À Boudelaire,

2008

Fig. 10. The Stretch,

2006

Fig. 11. Love and

Kisses, 2007

relatos de Bourgeois eram feitos normalmente em noites de insónia, ficam num limbo entre

o mundo real e o mundo do silêncio; emergem entre o passado e o presente, a realidade e a

imaginação. Bourgeois fala na construção de diário visual, com o qual conseguia

contemplar o tempo. Os seus desenhos são compostos segundo a ideia de segmentação.

Bourgeois utiliza as memórias como ponto de partida das duas obras. Retoma com

frequência o espaço das experiências partilhadas, nomeadamente sobre o conceito de lar e

de casa. Este elemento, a casa, é repetido e repensado ao longo de grande parte dos seus

trabalhos. Podendo ser interpretado como um lugar de proteção e de segurança pode

também transmutar-se na forma de uma armadinha. A casa é então um lugar das memórias;

como prisão e ao mesmo tempo como refúgio, controladora e protetora, guarda as suas

memórias no interior, juntamente com a ideia de família, que no caso de Bourgeois é

geralmente associada a um símbolo de conflito.

Os desejos de conceder uma presença física às memórias, ou de recriar as experiências

do seu crescimento, manifestam-se desde o início da sua carreira, em projetos como em The

Destruction of the Father (1974). Muito como as nossas experiências influenciam as

paisagens dos nossos sonhos, as memórias de Bourgeois providenciam-lhe com o

vocabulário das figuras do seu mundo escultórico. Como a arquiteta desse ambiente, utiliza

locais do seu passado e presente como células, órgãos e tecidos das suas construções,

mergulhando cada vez mais fundo no seu universo subterrâneo. Reutiliza o medo, para si a

condição básica do ser humano, com a ansiedade, a obsessão (Kotik, 1994). Remexendo

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com as nossas reações sensoriais, Bourgeois cria dinâmicas entre a delicadeza e a força, o

enclausuramento e a liberdade, a tensão e a leveza, provocando em nós uma resposta

sensorial e experiencial. O universo que constrói vive num equilíbrio ténue, cujo balanço

controla a relação entre o peso e a leveza. A sua obra desenvolve-se assim na dinâmica entre

equilíbrios e de desequilíbrios, instigando a sensação de medo e de abrigo e do atrito que

existe entre eles. Partindo das suas memórias e experiências, a sua identidade vai sendo

desmantelada e forjada pelo seu trabalho, num processo pelo qual pesquisa e expele a sua

ansiedade numa espécie de catarse; há um desmembramento daquilo que é a mágoa, a

memória, a angústia.

O lugar longínquo da sua infância é um espaço capaz de abarcar múltiplas dimensões,

e a sua obra não tem como objetivo o seu esclarecimento mas a sua distinção. As narrativas

que constrói, num caos de linguagens e de materiais, parecem representar um desafio para a

sua compreensão. Ainda assim, e sendo a memória um dos seus principais impulsionadores

criativos, a sua infância e o seu passado não são os únicos objetos do seu trabalho. A sua

obra convida-nos a entrar um universo imaginativo, que conjuga a intuição, o entendimento

e a problemática da psicologia. A sua imaginação parece pesquisar pelo reino da

subjetividade e da psicanálise, propondo novas formas de pensar a arte e a vida através das

suas criações artísticas.

As suas esculturas, com um carácter sexual intenso, parecem também focar-se nos

papéis estabelecidos socialmente e nas questões de identidade social e individual,

nomeadamente sobre questões de género. Os seus trabalhos relacionam-se ainda com o

corpo, mais concretamente com o seu desmembramento. Explorando o corpo, que se

transforma no e pelo espaço, deforma-o e modifica-o; o corpo metamorfizado no

antagonismo entre prisão e liberdade. Relacionando o corpo, a memória e o espaço, o seu

trabalho provoca o confronto com o intenso e o imaginativo. O corpo é, assim, um

recetáculo de emoções e memórias, pensamentos e comportamentos, e é sobre a sua

fisicalidade que Bourgeois explora o seu lado mais mental. A matéria deste corpo reclama a

memória da sua existência, a sua experiência, a sua angústia, a sua consciência. A

fragmentação do corpo, remete sempre a uma parte, mas figura-se como o lugar do ser, onde

se projeta a nossa existência, deformada e repartida. O corpo, enquanto elemento no espaço,

é um lugar de perceção da memória desse espaço e enquanto lugar de refúgio funde-se com

a memória da experiência vivida. As suas experiências, sentimentos e atmosferas, na

interação de múltiplas camadas temporais, são aglomeradas e reunidas na tensão de um

único momento de criação. A narrativa visual que constrói através das imagens e esculturas

que cria, bem como os textos que escreve, remetem a uma pesquisa e uma exploração de

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ideias e questões universais, como o sofrimento ou a dor, como forma não só de comunicar

com o mundo exterior mas de alcançar o seu ser mais profundo.

As múltiplas células (Cells) que constrói indagam precisamente estes diferentes

estados de dor, seja ela física, emocional, psicológica ou intelectual. Nestes trabalhos

Fig. 12. Cell XXVI (detail), 2003 Fig. 13. In and Out, 1995

propõe uma pesquisa sobre a relação simbiótica mantida entre a narrativa e a escultura. Um

trabalho construído por diferentes objetos, uma célula, fica em falta se não for ativado por

uma qualquer interação do espetador, provocando nesse caso uma série de ressonâncias

físicas, capaz de crescimento na imaginação do observador.

A relação entre o espectador e a experiencia do seu trabalho depende da forma como

incorpora a sua perceção. O que é percecionado e compreendido depende do nosso ser e da

nossa presença, que determina o que e como apreendemos a sua peça. Neste caso, a

presença do corpo no lugar é essencial para a perceção do trabalho artístico e do espaço com

o qual se interage, como em trabalhos site-specific. O espaço e o corpo são inseparáveis e

são influenciados e alterados pela nossa perceção única e pessoal. Esta conceção aproxima-

se das ideias fenomenológicas de Merleau-Ponty, nomeadamente da sua abordagem do

espaço. Bourgeois parece partir desta conceção, focando o seu discurso estético na

importância do ponto de vista pessoal e na mutabilidade da construção de uma compreensão

mais ampla da realidade. A participação do espectador na criação de uma narrativa no

tempo presente é guiada pela estrutura da escultura, que o espectador deve percorrer.

Nas palavras de Bourgeois: “Eu preciso das minhas memórias, elas são os meus

documentos. Mantenho-as em segurança. São a minha privacidade e eu tenho uma intensa

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inveja delas, como Cézanne disse, “Tenho inveja das minhas pequenas sensações”. Ficar na

reminiscência e sonhar acordado é negativo. Temos que diferenciar as memórias. Somos

nós que vamos ao seu encontro ou são elas que vêm até nós. Se vai até elas, estás a perder o

teu tempo. A nostalgia não é produtiva. Se elas vêm até ti, são a semente para a escultura.”

(Bourgeois, 1992: 184)20

.

5.4 Maria Magdalena Campos-Pons

Maria Magdalena Campos-Pons nasceu em 1959 em Matanzas, Cuba, numa família

afro-cubana cujas origens remontam ao povo Yoruba da Nigéria. Estudou no Instituto

Superior de Arte em Havana e vive nos EUA desde 1991. A sua obra é multidisciplinar,

conjugando a instalação de audiovisuais com a performance, a escultura, o desenho, a

fotografia e o vídeo, usando tecidos, vidro e outros materiais, geralmente apresentando

obras que utilizam vários meios em conjunto. O seu vocabulário artístico é extenso, ligando

códigos de experiência pessoal com construções sociais herdadas, tradições de adornos e

alusões às forças e às características da natureza. A sua prática artística é simbólica e

singularmente focada em transformar materiais comuns, rituais e tradições em experiências

visuais e sensoriais. Partindo de experiências autobiográficas elabora um trabalho cujo

discurso se concentra num contexto cultural e histórico global.

Produz modelos inventivos da diáspora que se constroem sobre fragmentos perdidos,

símbolos, memórias pessoais e coletivas, história, religião e mitologia. Okwui Enwezor

(2007) classifica o trabalho de Campos-Pons como “imaginação de diáspora”21

. Explorando

a materialidade do corpo, os elementos materiais ganham e incorporam o significado

conceptual da construção do seu trabalho. Estes são símbolos da historicidade, do legado do

deslocamento, da dispersão, da perda, na qual a escravatura transatlântica e a modernidade

se encontram profundamente ligadas.

O seu trabalho constitui-se como uma pesquisa conceptual e estética do passado

histórico da experiência da diáspora negra em Cuba. A deslocação de Africanos para Cuba

começou no século XV e continuou até a abolição da escravatura em 1886. Os seus bisavôs

chegaram a Cuba na última onda de escravatura (Freiman, 2007). A região onde cresceu

sempre foi muito próxima de África e da cultura crioula. Depois de se mudar para os

20

Tradução livre do autor (“I need my memories, they are my documents. I keep watch over them.

They are my privacy and I am intensly jealous of them, Cézanne said, “I am jealous of my little sensations. To

reminisce and woolgather is negative. You have to differentiate between memories. Are you going to them or

are they coming to you. If you are going to them, you are wasting your time. Nostalgia is not productive. If

they come to you, they are the seed for sculpture.”) 21

Enwezor chama-lhe diasporic imagination.

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Estados Unidos a sua reflexão sobre a raça e a etnicidade passaram a ser o foco central do

seu trabalho. Explorando rituais Yoruba e cerimónias nativas, inicia a sua pesquisa sobre a

identidade feminina e negra, marcada pela ideia de exploração corporal, cultural e espiritual

associada ao exílio e à deslocação forçada. Dirige uma crítica frontal aos estereótipos da

mulher negra na América do Norte. O facto de estar longe de Cuba levou Campos-Pons a

recuperar a tradição oral e performativa que se constitui como uma das principais formas de

expansão da identidade negra da diáspora.

Stuart Hall (2006), analisando a questão do crioulo, introduz que existe uma transação

cultural entre as culturas da diáspora e os locais onde se instalam, num processo de

transculturação e de mistura. Campos-Pons é herdeira da história desta passagem entre

culturas; apresenta a carga das suas implicações históricas e teóricas numa reflexão artística

e essencialmente reflexiva sobre o deslocamento de africanos nas Américas. A raça, a

resistência, a colonização e a economia das plantações conspiram para produzir novas

identidades de crioulos, imaginadas como uma poética da vivência cultural cruzada. A sua

pesquisa passa por repensar a localização, a articulação e a representação da negritude, do

corpo negro no mundo ocidental. Neste sentido, uma série de conjunções percorrem a obra

de Campos-Pons, de raízes e de caminhos, de origens e de deslocamentos e representam, por

um lado, as nossas heranças, as âncoras da tradição, a identificação, a afirmação, e por outro

lado o movimento, a introdução em novas esferas sociais, políticas e culturais.

Fig. 14. De Las Dos Aguas, 2007

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Esta intrusão implica uma negociação, uma transmutação. Campos-Pons observa e analisa a

forma como as pessoas e os seus símbolos culturais se ajustam a um novo contexto. O seu

discurso é construído pela dualidade entre ambos os contextos, o de origem e o que recebe,

numa troca e num envolvimento cultural22

.

O trabalho que desenvolveu nas últimas décadas forma uma longa interrogação sobre

a violência que acompanhou o colonialismo nas Américas. Neste violento ciclo vicioso,

cresce uma memória intercalada e à deriva entre África e as Américas, entre Cuba e os

Estados Unidos. Campos-Pons constrói um trabalho que refere acontecimentos trágicos e

que representa, por um lado, uma forma de promover o debate sobre os eventos e as razões

que o causaram, e por outro, uma forma de o desmistificar e de lidar com a sua realidade.

Considerando as razões que estão por detrás do deslocamento, do abandono dos locais de

origem, analisa a questão do exílio, da separação e da impossibilidade de retorno -

discplacement. No caso dos seus antepassados, este exílio não foi voluntário. Neste sentido,

faz referência às acumulações de riqueza conseguidas pela exploração laboral, ligadas a

industrias como a do açúcar, manifestando-se ainda acerca da construção do discurso

histórico, escrito e edificado do ponto de vista do poder. Interessam-lhe as ideias que ficam

ofuscadas por esse discurso. Procura também perceber como é que o passado e a história

dos nossos antepassados influencia a sua vivência: como é que a escravatura contínua a ser

vivida no lugar onde esteve presente. A sua obra responde também a uma necessidade de

criar pontes, ligações, entre distâncias, uma forma de criar proximidade no estado de

ausência (Freiman, 2007).

Depois de se ter mudado para os Estados Unidos, a sua exploração da consciência da

diáspora em imagens performativas e ritualísticas emergem de forma mais completa. Numa

tentativa de compreender e de representar os mecanismos da memória, explora os rastos do

tempo que constituem a sua materialidade e os aspetos que permitem a existência de uma

memória coletiva e de uma pessoal. A memória é, para si, constituída pelos circuitos do

passado que se entrelaçam no presente. Pretende utilizá-la como uma qualidade transiente,

pela sua permeabilidade.

Revisitando elementos, situações, enclaves específicas do longo arquivo histórico do

passado opressivo relacionado com Cuba, tenta compreender os problemas concretos que se

perpetuam no agora. A memória é, assim, uma forma de reconstruir. O que recordamos não

é a verdade factual daquilo que aconteceu. Lembramo-nos sempre de uma outra coisa,

22

Mary Louise Pratt (1994) fala precisamente desta questão quando refere ao conceito de zonas de

contacto.

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60

Fig.15.Threads of Memory, 2003

reconstruimos a partir de fragmentos opacos e foscos que precisam de ser reunidos e

encaixados. Explora esta distorção da memória e experimenta as suas transformações, sejam

elas manifestações conceptuais ou causadas pela espontaneidade do nosso imaginário.

Criando associações, os seus trabalhos vão crescendo na sobreposição de camadas de

realidade e consciência.

A sua pesquisa centra-se simultaneamente sobre o lugar, dando especial atenção ao

discurso traçado entre o seu lugar de origem e o lugar onde desenvolve o seu trabalho.

Balançando entre o passado e o presente, explora a dicotomia entre a presença e a ausência,

real e imaginária, das narrativas pessoais e partilhadas. Pesquisa os espaços construídos

pelas dualidades entre Cuba e os EUA, entre distâncias físicas e espirituais/emocionais,

espaços intermédios, distâncias e proximidades, tradições e contemporaneidades.

A exploração do lugar pelo seu trabalho está profundamente ligado a África. As

questões relacionadas com este lugar e com o seu deslocamento estão no centro da sua

pesquisa, propondo a ideia de existirem diversas Áfricas locais, presentes onde que quer que

se reproduzam e se perpetuem os seus sentimentos e memórias. Este conceito pode ter duas

interpretações: a primeira diz respeito à perspetiva de quem sente isto por dentro,

intimamente, de quem é negro e vive na presença da história ancestral do lugar de África,

abandonado e agora relembrado; a segunda implica uma perspetiva exterior, de quem

identifica o negro como alguém que se desloca de África e que o caracteriza por todos os

preconceitos associados à sua ‘condição’ de africano. “Eu não preciso de pensar em África

como um lugar além - já existe em mim, estava presente na forma como o meu pai falava.

África está no lugar onde cresci e afeta a forma como eu me percebo e como eu me

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relaciono com todas as questões de território e de deslocamento e com o que elas

significam.”23

(Maria Magdalena Campos-Pons, cit. por Bell, 1998: 35)

Pensando nos símbolos, nos elementos que nos afastam e nos aproximam

simultaneamente uns dos outros, reflete acerca da perpetuação do lugar em nós, na nossa

identidade e no nosso raciocínio. Traçando as memórias residuais dos sonhos e traduzindo,

pelo gesto, a imaterialidade de tudo, fala do mundo alusivo das memórias individuais e

coletivas. Continuamente procura encontrar uma linguagem formal que exprima a

incompleta e descontínua natureza da memória, justificando nessa tentativa a necessária

reconstrução, fabricada e realizada pela arte.

23

Tradução livre do autor (I don’t need to think of Africa as over there - it is already in me, it was

present in the way my father talked. Africa is in the place where I grew up and it affects how I perceive myself

and how I relate to all these issues of territory and displacement and what they mean.”)

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6. Projeto Artístico

O projeto inicial (como já foi referido) começou pela elaboração de desenhos de

retratos de habitantes do bairro na sequência do processo inicial de contacto com o lugar.

Este processo integrou um projeto do cineasta Rui Simões, que tem desenvolvido um

interesse pessoal pela Cova da Moura e que se propôs filmar no formato de pequeno

documentário, as sessões de retrato e as conversas que quase em jeito de entrevista iam

surgindo. Alguns meses antes de dar início a esta fase do projeto visitamos quotidianamente

a Cova da Moura; participamos em diversas atividades do bairro e foi neste contexto que

conhecemos e conversamos com muitas pessoas; foi este processo de interação ativa e

prolongada que permitiu mais tarde garantir a disponibilidade das pessoas para participar no

projeto, garantir um grau de intimidade que permitisse mais tarde gravar. Os retratos foram

feitos, gravámos as entrevistas, o filme de Rui Simões ficou terminado e inclusive foi

exibido em alguns festivais de cinema, mas faltava olhar para o trabalho que tinha sido

produzido com honestidade. Percebemos que, na verdade, o resultado não correspondia às

nossas espectativas. Decidimos recomeçar e fizemos o exercício de tentar recuperar um fio

condutor, a motivação que deu azo a querer fazer este projeto.

Queríamos conhecer um lugar pelo desenho e os retratos produzidos constituíam um

resultado muito pouco expressivo. Centrámo-nos no mesmo lugar mas queríamos explorar

mais concretamente a experiência do lugar e a sua memória.

O bairro da Cova da Moura despertou a nossa atenção porque dele só conhecíamos a

sua desagradável ‘notoriedade’. Parecia impossível que um lugar fosse caracterizado apenas

como sendo um sítio violento, de drogas, de gatunos. Na tentativa de perceber o que

explorar no lugar, percebemos que queríamos contar histórias; tínhamos vontade de

encontrar a vida que existia no lugar e comunicá-la pelo desenho; gostávamos de nos

apoderar dessas histórias (‘apropriar’ para voltar a oferecer) de forma a conseguir

compreendê-las e deixar que elas criassem em nós um lugar qualquer imaginário. É este

lugar, que não existe mas que é real, que fomos descobrindo ao falar com as pessoas que

começámos por retratar. Foram elas que nos contaram como era viver no bairro, como tinha

sido mudar-se para ali há 40 anos atrás, como tinha sido crescer ali, como se sentiam

quando alguém as tratava de forma diferente por lá morarem. Estando tão próximo de outros

lugares (não só físicos como mentais), há nele uma narrativa intricada nas memórias de um

local de origem que é ali recordado e repetido. Falaram-me de saudades, de vontades, de

necessidades, de alegrias. É bom conhecer alguém que está disposto a contar-nos a sua

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história, mesmo quando nos oferece apenas um pequeno retalho. É mais fácil quando

ficamos só a ouvir. O desenho foi a nossa forma de falar de volta. Este discurso não depende

só das suas memórias mas também das nossas. Vai-se desenvolvendo numa teia que no fim,

já não sabemos onde começa e onde acaba, o que retirámos do lugar e o que já existia em

nós.

Os desenhos vivem da intenção de falar deste lugar e quando associados ao bairro, à

sua história e às suas experiências, são contextualizados, incorporados num espaço com

identidade e cultura que vai invariavelmente alterar a sua leitura. Neste sentido podemos,

mais uma vez, alinhar os nossos objetivos com o processo da autoetnografia, refletindo

sobre o lugar da Cova da Moura pelo desenho. Construído num processo posterior à

presença no lugar, desenvolve-se também como uma experimentação: da memória, de nós,

dos outros e da possível interação entre eles numa narrativa visual.

Os desenhos desenvolvem-se em séries, com números variados de desenhos e

elaborados com materiais diferentes.

As séries não surgiram logo de início. À medida que fomos desenhando, fomos

simultaneamente procurando um fio condutor, a essência do que queríamos transmitir e

transformar a partir lugar. O processo de recordar, especificamente recordar pelo desenho,

foi um pouco caótico. Tentámos encontrar um método ou uma diretriz que nos ajudasse a

organizar o tempo e o lugar no universo das nossas memórias. Rapidamente

compreendemos que a nossa ideia não era categorizar nem ordenar as narrativas, as pessoas

ou as memórias. O objetivo era tentar perceber como é que a experiência daquele lugar e a

sua memória repercutiam em nós uma reação qualquer e explorar qual o sentido dessa

reação. Será que todo este processo poderia acrescentar algo sobre o bairro, concretamente?

As séries surgem como resposta a esta procura. Pelo processo do desenho, pela tentativa,

buscando sempre outra coisa, eventualmente foram sendo criadas as ligações que

procuramos. Elas já existem, estão como que escondidas no desenho. Como Walter

Benjamin nos diz em relação à memória, o desenho precisa de escavar para compreender os

meandros da interação entre a memória e a imaginação quando centradas nas

especificidades e pormenores de um lugar.

Os desenhos seguem diferentes caminhos para expressar a nossa envolvência com a

Cova da Moura. Criámos as séries sem que exista uma ligação estrita entre elas. São

independentes embora se centrem e se baseiem na mesma intenção e na mesma exploração.

Funcionam em conjunto como diferentes camadas sensoriais. Um pouco como a memória,

as séries constroem pontes e ligações entre os seus desenhos e existem enquanto conjunto na

tentativa de traduzirem o lugar que para eles criamos, para comunicarem. O lugar foi sendo

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materializado numa construção exploratória, relacionada com as ideias de fronteira, de

barreira e de vulnerabilidade. Estas séries de desenhos desenvolvem-se segundo os

contrastes e tensões entre experiência e memória, entre o eu e o outro, entre o que

queríamos representar e o que, no fim, acabou por prevalecer da nossa relação com o lugar.

A construção seriada de desenhos permite-nos explorar diferentes aspetos da nossa

experiência do lugar e diferentes formas de a representar. Mesmo dentro de cada conjunto

de desenhos existem diversos caminhos que procuram expressar a nossa vivência e o lugar

que existe nas nossas memórias.

Apresentamos cinco séries centrais24

. Cada uma parte de um número variado de

desenhos preliminares que dão origem aos restantes desenhos que constituem a série. São

constituídas por um diferente número de desenhos, sendo que a menor tem 7 desenhos e a

maior 27. As séries variam também em formatos e materiais usados, com desenhos com

medidas entre 14,8 x 21,0 cm (A5) e 42,0 x 59,4 cm (A2) e utilizando maioritariamente

grafite, tinta-da-china, caneta e marcador preto. Nos primeiros desenhos usamos também

aguarelas coloridas, embora tenhamos posteriormente optado por continuar o trabalho sem

cores.

Juntamente com as séries de desenhos apresentamos um conjunto de escritos soltos.

Fazem parte dos apontamentos que fomos escrevendo e recolhendo durante o processo do

desenho. São uma memória descritiva que enquadra, de certa forma, as questões essenciais

que foram emergindo aquando da construção de alguns destes desenhos. São, no fundo, uma

contextualização do processo mental e sensitivo pelo qual passámos na tentativa de criar

algo sobre o lugar da Cova da Moura. Refletem sobretudo as sensações e as ideias que se

vão agregando à recordação deste lugar e das suas histórias.

24

Apresentamos as séries completas e organizadas em anexo, juntamente com alguns dos desenhos

preparatórios e de registo de ideias e experimentações. Incluímos também as séries que não foram concluídas.

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Desenho, experiência e memória

-“É também ultrapassar os limites da minha timidez, da minha solidão, do

meu condicionamento e dos meus tabus. O retrato começa por ser a história de

um encontro, muito antes do processo de criação do retrato. Esta prática só pode

ser bem-sucedida quando existe intimidade ao ponto de se estar cara-a-cara com

o outro. Hoje em dia, damos demasiada importância ao documentarismo em

detrimento da intimidade. Sinto falta de uma abordagem humana e psicológica.

Fazer um retrato é também lutar contra o esquecimento; trata-se de um

canibalismo do outro, da sua diferença e do que nos une como seres humanos. A

comunhão, a apropriação da beleza, da graça e dignidade que nos torna

semelhantes.”

Pierre Gonnord (apud Maia, 2015).

- Quando isto tudo recomeçou, senti a necessidade de escrever. Não sei como ordenar

o meu pensamento; não sei ao certo como seguir em frente. Se calhar se for documentando o

que vai passando pela minha cabeça talvez consiga encontrar um qualquer significado.

Fig. 16 e 17 - Desenhos da Série 1. (21,0 x 29,7cm)

- Na realidade sinto-me inapta. Estou quase com medo de desenhar, de desenhar mal,

de me expressar mal. O que é isto de ‘mal’ que me persegue tão constantemente? É quase

arrogante esta minha atitude. Tenho que aceitar o que quer se saia, sem o preconceito de

mim mesma.

- Dou por mim a pensar nestas pessoas e sinto vergonha. Há um nó que me aperta de

cada vez que tento lembrar-me dela. Como faço eu um trabalho sobre as suas memórias

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Fig. 18 e 19 - Desenhos da Série 1. (21,0 x 29,7cm)

nestas circunstâncias? Penso que devia reencontrá-las. Segunda-feira tenho que fazer

fotocópias e terça-feira vou lá entregá-las. Será que ainda se lembram de mim?

- Há um espaço comum entre elas; algo que partilham e que me é totalmente alheio.

Eu não o entendo, não está ao meu alcance. Ainda assim, tento insistentemente penetrá-lo.

Na realidade tudo isto é terrivelmente autocentrado. A narrativa anda sempre à minha volta.

É a minha história, não a deles. Sinto-me presa neste ciclo egocêntrico. A minha mão não é

livre, é comandada pela minha constrição. O desenho deve fluir, seguir um caminho que não

se feche nestas limitações, nestes limites.

Fig. 20, 21 e 22 - Desenhos da Série 3. (21,0 x 29,7cm)

- Sinto algumas destas coisas como se fossem apenas rasgos. Quando sopra o vento

antigo consigo ver por entre eles. Apenas um vislumbre, um espreitar. Só neste instante é

que sei que não existem barreiras. Estas, só por si, podem também ser seres palpáveis,

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podem fazer parte da nossa relação. Aquilo que nos separa é também aquilo que nos une e

que me permite, pelo meio das suas reentrâncias, ver alguém.

-Italo Calvino, no excerto “O Mundo observa o Mundo”, integrado em Palomar,

anuncia:

“Pertença do olhar a um sujeito que olha debruçado do parapeito dos seus

olhos: “De quem são os olhos que olham? Normalmente, pensa-se que o eu é uma

pessoa debruçada para fora dos seus próprios olhos como se estivesse no parapeito

de uma janela e que observa o mundo que se estende em toda a vastidão, ali, diante

de si. Portanto: há uma janela que dá para o mundo. Do lado de lá está o mundo; e

do lado de cá? Sempre o mundo: que coisa queriam que estivesse?” (Calvino, 1987:

118).

Fig. 23,24, 25 e 26 - Desenhos da Série 2. (21,0 x 29,7cm)

- Sinto alguma ansiedade com isto tudo. Parece que é tudo urgente e que já está tudo

atrasado, fora de prazo. É estranha esta falta de chão, de compromisso, de realidade. Tenho

que tratar disto o mais rapidamente possível.

Falta meia hora.

- Às vezes, tudo se resume a uma única ação. É uma questão de estar presente. Faz

com que a memória que têm de nós seja avivada e complementa a memória que temos do

lugar, das pessoas.

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Fig. 27, 28 e 29 - Desenhos da Série 2. (14,8 x 21,0cm)

- Esta questão da presença e da sua necessidade de se concretizar fisicamente leva-me

a pensar sobre o que é estar com e para alguém. Tudo aquilo que tenho vindo a refletir e a

recordar nasce e vive num universo não físico. Não se baseia tanto na fisicalidade das

pessoas que recordo mas nos universos mentais e imaginários em que os coloquei. Ainda

assim, os ambientes e a própria presença no lugar em que as conheci e que os ouvi

acrescentam algo à minha leitura. Estas histórias não pertencem apenas aos lugares

imaginados onde as encaixamos pelas nossas interpretações. Pelo contrário, pertencem

àquele bairro, àquela esquina, à creche e à cantina, ao Moinho, à rua, àquela casa. São

alteradas por todos estes envolventes que, sozinhos, também contam uma história.

Fig. 30, 31, 32, 34, 35 e 36 - Desenhos da Série 3. (7,4 x 10,5cm; 21,0 x 29,7cm)

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- As minhas memórias destes pedaços contados e das pessoas que os viveram alteram

e são alterados por este lugar que é a Cova da Moura. Alteram a minha memória e

especialmente alteram a minha experiência do lugar.

- Há também uma camada sonora neste lugar que capta a minha atenção. No fundo

existe um zumbido que não se consegue realmente ouvir mas que permanece sempre

presente. Faz uma ligação com a cidade que rodeia esta pequena ilha. Lembra-nos de que

este lugar está ainda rodeado de muitos outros lugares, diferentes e ferozes. De forma

pontuada, vou prestando atenção à restante manta ruidosa que se vai revelando pelo bairro.

Entre crianças frenéticas que correm pela rua e os risos das tias que vendem comida ao pé

dos cafés, vão saltando uns rasgos de música morena que aquece aqueles que, como eu, têm

o pé dançante. É gira a confusão de estímulos que nos persegue. De vez em quando levam-

me até à vila onde estudei quando era miúda, e aos velhotes que permaneciam todo o dia

nos bancos à porta das suas casas, a conversar. Na verdade, tudo isto me parece

romantizado. A memória e o processo de a estimular têm destas coisas.

Fig. 37, 38 e 39 - Desenhos da Série 3. (14,8 x 21,0cm)

- Acho particularmente engraçado o processo que nos leva a criar estas representações

‘douradas’ na nossa memória. Estamos em permanece reinvenção, rescrição e

reinterpretação da experiência que vivemos e dos lugares que experienciámos, como se, em

absoluto, pudéssemos apenas viver de experiências inventadas e de coisas imaginadas. Se

calhar faltar-nos-ia um estímulo real para as criar, para que a nossa imaginação conseguisse

construir o resto da ‘história’. Pergunto-me então para que nos servem estas memórias. Qual

o seu propósito e a sua utilidade. No fundo fazem parte de quem somos enquanto seres que

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sentem e pensam. Provavelmente estimulam o nosso sentimento de pertença e de encaixe

social. Funcionam também como uma justificação e uma legitimação para estarmos vivos e

para explorarmos o que nos rodeia. Nascerão desta curiosidade? Talvez a aticem.

Fig. 40, 41 e 42 - Desenhos da Série 3. (14,8 x 21,0cm)

-Há várias linhas que podem ser exploradas. Algo que se esconde em todas as

esquinas. Há uma separação qualquer, um limite, uma barreira. Por vezes é ténue, mas está

sempre presente.

- Gosto da sua liberdade, que apesar de tudo é limitada. A mulher é dominante. A

trabalhadeira e a mãe, a base, a fundação, a raiz.

Fig. 43 - Desenhos da Série 4. (42,0 x 59,4cm)

- Tenho que fazer respirar o desenho. Esta linha toda preta. É pesada, precisa de água,

de ar. Onde é que os vou buscar?

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Fig. 44, 45, 46, 47 e 48 - Desenhos da Série 4. (14,8 x 21,0cm)

- Esqueço-me do que me quero lembrar. Como se processa isto de recordar? Talvez

consiga recordar as sensações, o tempo antes e depois do contacto, da familiaridade de

certos momentos, raros e específicos. Existem várias camadas que se constroem na nossa

memória, como níveis diferentes de informação. Esta informação tem, por sua vez, diversas

naturezas. Posso lembrar-me de uma situação específica, decompô-la temporalmente,

encaixá-la num espaço. Posso recordar os seus movimentos, uma sequência de ações que a

caracterizam. Posso pensar no seu cheiro, nos sons que a habitam, nos estímulos sensoriais

que continuam presentes nesta situação. Posso ainda tentar lembrar-me de como me senti. A

memória cresce e desenvolve-se numa amálgama de pormenores que, por alguma razão

ficam guardados. Há uma apropriação de todos os elementos que, em vez de ficarem

encaixotados e congelados, vão sendo reformulados no nosso imaginário. Ganham

importância e significados que vão sendo analisados e interpretados e passam a pertencer a

um universo alternativo e construído pela nossa imaginação e pelas nossas idiossincrasias. É

esta mutação que eu pretendo explorar com o desenho: como é que a minha memória altera

estes momentos, e o lugar que preenchem? O que é que eu recordo? O que é que resta desta

experiência? Como é que eu a volto a experienciar neste mundo imaginado?

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Fig. 49, 50, 51, 52, 53 e 54 - Desenhos da Série 4. (14,8 x 21,0cm)

- Lembro-me das ruas, são diferentes das que estamos habituados. Algumas têm muito

lixo, assim nos cantos. Umas garrafas perdidas e umas coisas desse género. A primeira vez

que fui lá apanhei um autocarro em Belém. Subiu por ali a cima.

Fig. 55, 56, 57, 58 e 60 - Desenhos da Série 4. (14,8 x 21,0cm)

- Começa com as montanhas, o muro. O lugar visto de fora, rodeado de grades e

montes e depois lá está ele no meio, como uma ilha. Isolado, amontoado, ferrugento. Há

uma aproximação, aos poucos vão-se derrubando barreiras, passando portões e saltando

fronteiras. As grades vão baixando, o nevoeiro lá em cima vai diminuindo e começamos a

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vislumbrar qualquer coisa. Por entre o fumo e a confusão podemos ver rostos, corpos ainda

fragmentados. A luz cresce, o desenho limpa-se. As histórias adensam-se, formam-se,

constroem-se pessoas, passados, identidades, experiências, memórias. Existe um povo, uma

povoação e um lugar povoado. No fim, somo nós nesse lugar. Pode mesmo ser um conto ou

um devaneio, que não remete diretamente paras as histórias (não é narrativo) mas é alusivo

à memória do lugar.

- É estranho. Não tenho a certeza se estava preparada para conhecer o bairro nestes

moldes. Foi muito rápido e fugaz.

- Há uma cortesia e uma timidez qualquer, uma vergonha, que tanto eu como eles

partilhamos. Uma cordialidade. Por exemplo, a D. Domingas tem uma filha que eu passei o

tempo todo que conversamos a tratar de filho, homem, e ela nunca me corrigiu.

Fig. 61, 62, 63, 64, 65, 66 e 67 - Desenho da Série 5. (14,8 x 21,0cm; 29,7 x 42,0cm)

- Conhecer pessoas que se deslocaram das suas casas, dos seus países, para

procurarem uma vida melhor e que construíram uma nova casa neste lugar que, ficando à

margem, se encontra num intermédio entre lá e cá. Tentar perceber como se cria este lugar,

fronteiriço, que é literalmente edificado pelas suas próprias mãos, habitado sucessivamente

por pessoas que partilham uma vontade e uma necessidade e que, em conjunto, vão

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transformando um aglomerado de pessoas numa comunidade, um aglomerado de casa num

bairro, um sítio num lugar. É um lugar que não é Cabo Verde, nem Angola, nem São Tomé,

mas também não é Portugal. É uma mescla de histórias e origens que, como o passar do

tempo e com o crescer das filhas e das netas vai continuar em transformação.

- Desenvolvem-se diferentes relações com o espaço que preenche o imaginário deste

lugar. Mesmo os moradores mais antigos vão ficando cada vez mais afastados das suas

origens. Para alguns, essa separação ainda provoca uma sensação de perda, de tristeza, de

saudade. Para outros, talvez os que tenham a possibilidade de rever a família que deixaram

com maior frequência, talvez se torne mais fácil aceitar este novo lugar como a sua casa. Os

mais jovens têm uma relação diferente com o conceito de separação. Muitos estão afastados

das tradições, embora ouçam e sejam contagiados pelas histórias e memórias transmitidas

pelos mais velhos. Mas essas camadas já são dali, já pertencem ao bairro desde que

nasceram. Cresceram numa ponte cultural e geográfica e, talvez, se definam também pelas

particularidades dessa circunstância.

Fig. 68, 69 e 70 - Desenho da Série 5. (14,8 x 21,0cm)

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- Quando olho os desenhos e relembro o bairro há vários aspetos que sobressaem

sobre a minha experiência deste lugar. Inicialmente vem-me uma sensação de

longinquidade, como se se tratasse de uma memória muito antiga. Este afastamento cria em

mim uma espécie de dúvida: se de facto fui eu quem passou por lá, se fui eu que nele entrei,

se fui eu que percorri o bairro, se foi a mim que contaram as suas histórias ou se tudo isto

não passa de um fruto da minha imaginação ou de um roubo da existência de um outro.

Ainda assim, o que fica revela uma certa timidez, partilhada por mim e pelo próprio lugar.

Senti, e talvez ainda sinta, uma barreira ou uma enorme fortaleza que me parecia

impenetrável. Este muro foi imposto por mim e pelo lugar, simultaneamente. Serve como

uma proteção à vulnerabilidade inerente à ação de nos expormos. É uma experiência

marcada pela falta de libertação, por uma acanhada e cerimoniosa atitude com que me

apresento e represento o bairro.

Fig. 71, 72, 73, 74 e 75 - Desenhos da Série 5. (42,0 x 59,4cm; 21,0 x 29,7cm)

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7. Conclusão

O desenvolvimento deste projeto concentrou-se na relação entre o lugar, a experiência

e a memória e na sua exploração pelo desenho. O desenho, como lugar da memória e

imaginação, é determinado pelas nossas intenções, pela nossa identidade. Envolve-nos nesta

descoberta do lugar, estabelecendo uma relação connosco e com os outros. A nossa

pesquisa, centrando-se no lugar, está assente na ideia de que o lugar é um espaço habitado;

preenchido de vidas, de histórias, de memórias e de particularidades físicas, culturais e

sociais. Centrando-se no bairro da Cova da Moura, desenvolvemos e materializamos a nossa

pesquisa pela criação de cinco séries de desenhos que exploram diferentes abordagens a

partir da sua vivência prévia. Os vários lugares que construímos, constituídos também eles

por várias camadas, edificam-se na nossa memória como construções fragmentadas.

Pela concretização deste projeto conseguimos sentir e presenciar a influência que as

pessoas têm no lugar que habitam e, simultaneamente, a influência que este lugar tem nas

suas vivências. A Cova da Moura, em particular, é um lugar que se desenvolveu

especificamente nesta interação. Nasceu como resposta à necessidade de alguém, foi

crescendo por continuar a responder às necessidades de cada vez mais pessoas e mantém-se

intacto pela força da sua fundação, constituída pelas pessoas, pela sua cultura e pelas suas

relações.

Consideramos especialmente importante para a compreensão conceptual deste

trabalho a ideia de que o desenho consegue conjugar em si diferentes conhecimentos,

experienciando e explorando, em simultâneo, camadas sensoriais, sensitivas, físicas,

psicológicas e racionais. Compreendemos que é possível englobar a passagem entre o

concreto e o imaginário no desenho. Pela sua flexibilidade e pela sua linguagem híbrida,

compreende diferentes realidades na sua construção. Transferindo para o desenho o

conteúdo do lugar, da experiência vivida e da memória, podemos encontrar múltiplos

resultados gráficos. Nesta relação concluímos que podemos propor diferentes formas de

pensar, representar e interpretar a experiência.

Na tentativa de descobrirmos as múltiplas dimensões que constituem o lugar e a

memória, percebemos que existe o predomínio de um discurso autocentrado nos desenhos

que criamos. Este narcisismo e este olhar interno faz parte da nossa pesquisa do mundo.

Tudo aquilo que observamos vai sempre ser filtrado pela nossa observação e pelas

experiências que nos levaram até ao momento em que nos encontramos neste lugar.

Pretendíamos perceber até que ponto os desenhos que construímos sobre o lugar se referem

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às suas características, às suas histórias, à sua realidade. O trabalho que desenvolvermos é

uma narrativa pessoal sobre a nossa interação com este lugar, sobre a nossa relação com as

pessoas que lá conhecemos e sobre as dúvidas que surgem ao tentar compreender a

complicada teia de memórias que aí existem. O processo de criar algo sobre este

emaranhado de sensações levanta diversas questões: sobre quem nós somos neste lugar, com

estas pessoas; sobre o que é este lugar em nós, nas nossas memórias; sobre as relações

conceptuais que estabelecemos com as nossas experiências no lugar.

A nossa relação com o outro, aquele que vive nas histórias espalhadas, mantém-se

presente na sua memória. Estas narrativas são abordadas pela sua gestualidade e pela forma

como as transformamos numa abstração.

Podemos concluir que a nossa experimentação do lugar e da sua memória é orientada

pela nossa intuição, que as transformou em desenhos, que foram surgindo como uma forma

de tentar resolver estas dúvidas e estas interações. Sucessivamente foram sendo construídos

numa procura, acrescentando ou subtraindo; explorando diferentes caminhos para chegar à

edificação do lugar.

Quando olhamos os desenhos percebemos que fazem sentido no seu conjunto, como

um corpo coletivo no qual existem várias narrativas sobre a mesma experiência. A

necessidade de construir diversas séries pode ser compreendida pelo facto de se construírem

a partir da memória, fragmentada e cheias de interrupções, e pela nossa imaginação, que cria

pontes e ligações entre os seus elementos, aparentemente desconexos. No fundo, é nesta

rede de experiências e memórias intercaladas que criamos um outro lugar.

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idades do desenho. Lisboa. Pp. 113-122. URL: http://hdl.handle.net/10451/20266

(consultado a 10 de Agosto de 2017).

MONTEIRO, B., DOMINGOS, N. (Eds.), Este país não existe: textos contra ideias-

feitas. Lisboa: Deriva. Pp. 40-48. URL: http://hdl.handle.net/10451/17755 (consultado a 12

de Agosto de 2017).

NORA, Pierre (1989). “Between Memory and History: Les Lieux de Mémoire”, in

Representations, V. 26. Pp.7-24. URL:

http://www.history.ucsb.edu/faculty/marcuse/classes/201/articles/89NoraLieuxIntroReprese

ntations.pdf (consultado a 20 de Março de 2017).

PAIVA, Francisco (2012). “Espaço-Tempo no Desenho Contemporâneo”, in Almeida,

Paulo Freire de; Duarte, Miguel Bandeira (Org.), ENCONTROS ESTÚDIO UM - Temas e

Objectos do Desenho, Nº1 - Desenho e Arquitectura, 18.01.2012. Pp. 11-18. URL:

http://www.estudioum.org/descarregar/encontros_estudioum_I_2012.pdf (consultado a 25

de Fevereiro de 2017).

SABATINI, Federico (2007). “Louise Bourgeois: An Existentialist Act of Self-

Perception”, in Nebula, V. 4, Nº 4. URL:

http://www.nobleworld.biz/nebulaarchive/nebula44.html (consultado a 20 de Outubro de

2017).

SALEMA, Isabel (2005). “Artista ofereceu oito obras a portugueses em troca de

produtos exóticos”, in Jornal Público, (13/03/2005), URL:

https://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/artista-ofereceu-oito-obras-a-portugueses-em-

troca--de-produtos-exoticos-10942 (consultado a 19 de Março de 2017).

ZAHAVI, Daniel (1994). “Husserl’s Phenomenology of the Body”, in Études

Phénoménologiques, V. 10, Nº 19, Pp. 63-84. URL:

http://dx.doi.org/10.5840/etudphen199410199 (consultado a 14 de Julho de 2017).

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Lista de Imagens

Figura 1: Head Study of an African, Albrecht Dürer, 1508, carvão, 320x218 mm,

Albertina, Viena

http://www.albertina.at/jart/prj3/albertina/main.jart?rel=en&content-

id=1207841207641

Figura 2: The Negress Katherina, Albrecht Dürer, 1521, desenho com ponta de prata

sobre papel, 200x140 mm, Galleria degli Uffizi, Florence

http://www.polomuseale.firenze.it/gdsu/euploos#/autori:@526f87558a36c410ec8036d

c

Figura 3: De 9 Drawings for Projection (1989-2003): Felix in Exile, William

Kentridge 1994,

https://art21.org/gallery/william-kentridge-artwork-survey-1990s/#3

Figura 4: Rand Mines, William Kentridge, 1999, gravura, aquatinta e ponta-seca, de

placa de cobre, 37.2 x 62.3 cm, folha: 55.8 x 79.6 cm. Edição de 24. Impresso por Malcolm

Christian, The Caversham Press, Howick, KwaZulu-Natal, South Africa.

http://artinprint.org/article/william-kentridge-drawing-has-its-own-memory/

Figura 5: Black Drawings, Marlene Dumas, 1991, tinta sobre papel, 27.9 × 33.3 cm

https://www.artsy.net/artwork/marlene-dumas-black-drawings

Figura 6: From Whom the Bell Tolls, Marlene Dumas, 2008, óleo sobre tela, cerca de

100.965 x 87.63 cm

https://collections.dma.org/artwork/5331867

Figura 7: Mamma Roma, Marlene Dumas, 2012.

http://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/exhibition/marlene-dumas-image-

burden

Figura 8: The Stretch, Louise Bourgeois, 2006, gravura, placa: 141.4 × 90 cm; folha:

152 x 90.5 cm

https://www.moma.org/collection_lb/browse_results.php?object_id=148600

Figura 9: Love and Kisses Louise Bourgeois, 2007, gravura sobre papel, 153 x 91.8

cm.

http://www.studiointernational.com/index.php/louise-bourgeois-turning-inwards-

review-london

Figura 10: À Boudelaire, Louise Bourgeois, 2008, gravura.

https://www.moma.org/audio/playlist/42/682

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Figura 11: Are You in Obrbit? (#1), Louise Bourgeois, 2008, gravura.

https://www.moma.org/audio/playlist/42/683

Figura 12: In and Out , Louise Bourgeois, 1995, metal, vidro, gesso, tecido e plástico,

81 × 83 × 83 em 205.7 × 210.8 × 210.8 cm

https://www.artsy.net/artwork/louise-bourgeois-in-and-out-1

Figura 13: Cell XXVI (detail), Louise Bourgeois, 2003, aço, tecido, alumínio, aço

inoxidável, madeira, 252.7 × 434.3 × 304.8 cm

https://www.artsy.net/artwork/louise-bourgeois-cell-xxvi-detail

Figura 14: De Las Dos Aguas, Maria Magdalena Campos-Pons, 2007, 12 Polaroid

Polacolor Pro, aproximadamente 50.8 x 61 cm cada

https://girlsclubcollection.org/maria-magdalena-campos-pons-at-harveybgrannt-

center0for-african-amer-art/

Figura 15: Threads of Memory, Maria Magdalena Campos-Pons, 2003, instalação,

polímero composto, resina, aço macio, tubos, cinco pistas de vídeo projetado, som stereo.

https://www.gallerywendinorris.com/maria-magdalena-campos-pons/

Figuras 16 a 75: Desenhos do Projeto Artístico Desenho. Memória. Experiência. A

autora. Fonte própria; (ver Anexos).

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

DESENHO, EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA

Uma Proposta a partir do lugar da Cova da Moura

ANEXOS

Maria Taborda de Sousa Pires

Trabalho de projeto

Mestrado em Desenho

Trabalho de projeto orientado pelo Prof. Doutor Américo Marcelino

2017

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ANEXO I - Séries - Desenhos

Neste anexo apresentamos as cinco séries de desenhos que constituem o núcleo do

nosso projeto artístico. Cada uma é constituída por um número variado de desenhos, aqui

dispostos segundo a nossa proposta de apresentação. Todas as séries, expecto a Série 4., são

apresentadas com os desenhos preliminares que estão na origem do seu desenvolvimento.

Estes desenhos estão assinalados e são colocados em primeiro lugar.

Criamos uma legenda informativa para cada série, que menciona os materiais e

dimensões de cada desenho. Existem certos desenhos que consideramos importante

apresentar com maior detalhe, sendo que estes não possuem qualquer legenda.

Todas as medidas são referenciadas em centímetros.

As legendas estão colocadas no final de cada página e a ordem de referenciação

distribui-se primeiro no sentido da esquerda para a direita e depois de cima para baixo. A

numeração aplicada às seguintes imagens refere primeiro o número da série (1, 2, 3, 4 ou 5)

e depois a posição que cada desenho ocupa na organização da série a que pertence.

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Série 1.

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Série 2.

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Série 3.

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Série 4.

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Série 5.

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ANEXO II — Desenhos complementares

Neste anexo apresentamos uma seleção de alguns dos registos experimentais

realizados no desenvolvimento do projeto artístico. Os três primeiros conjuntos de desenhos

constituem três das séries que não foram finalizadas, mas que servem como um exemplo da

pesquisa gráfica realizada no decorrer deste trabalho. Os restantes desenhos foram feitos no

contexto da procura de um fio condutor para o desenvolvimento do projeto artístico.

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Série 6.

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Série

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Série 8.

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ANEXO III — Filme “Retratos a Preto e Branco”

Este anexo providencia uma hiperligação que dá acesso ao filme realizado por Rui

Simões sobre os retratos que realizamos a alguns moradores da Cova da Moura. Como já foi

referido, este pequeno documentário desenvolve-se sobre os momentos da concretização dos

retratos. Esta ação do desenho foi articulada com um conversa/entrevista partilhada com as

pessoas que estávamos a desenhar, sendo que o principal elemento que despertou o interesse

de Rui Simões foi conjunção do desenho com a partilha oral de histórias e relatos pessoais

relacionados com o bairro da Cova da Moura.

https://vimeo.com/247525459

Password: retratospt151217

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ANEXO IV — Transcrição das entrevistas realizadas na

Cova da Moura

M- Maria

RS- Ruis Simões

P- Patrícia

D- Domingas

Tg- Tiago

N- Eunice

T- Teodoro

J- Júlia

Cl- Clementina

L-Sr. Leandro

B- Bino

F- Flávio

R- Rui

Lu-Lucinda

P-Então vou começar por me apresentar.

M- Apresenta-te.

P- Chamo-me Patrícia, tenho 34 aninhos, sou casada e tenho dois filhos lindos, um casal, uma menina com 9 e um

rapazito com 3 anos, a Beatriz e o Gabriel. Neste momento moro em Queluz Monte Abraão. Trabalho aqui no bairro da

Cova da Moura no Moinho da Juventude desde o ano de 2000, desde o ano 2000 a tempo inteiro, Janeiro de 2000, mas no

entanto já colaboro com a associação desde os meus 16 anos a nível das atividades de jovens. Falando um pouco sobre

mim, para trás, nasci aqui no bairro da Cova da Moura. Hum... A minha família instalou-se no bairro nos anos 80, eu nasci

em 81 e vivi aqui no bairro até aos meus... Sensivelmente 18 anos de idade, com os meus pais e mais quatro irmãos.

Portanto, tenho três irmãs e tenho um irmão e temos diferenças de idade entre os cinco e os dois anos.

A minha infância aqui na Cova da Moura... Hum, residia com os meus pais e irmãos e os meus avós que residiam

duas ruas abaixo da nossa e mais dois tios, irmãos da minha mãe, que viviam também nessa mesma rua que os meus avós.

No fundo, a minha infância foi sempre vivida com a minha família, com os meus irmãos, os meus tios, com os meus

primos...

M- Muito familiar...

P- Muito familiar, pelo menos até eu sair do bairro tínhamos uma relação muito próxima de vizinhança. Os fins-de-

semana eram sempre em família, com os jantares... Encontrávamo-nos muitas vezes nos aniversários, portanto sempre que

havia uma ocasião estávamos todos, todos juntos. Ou então mesmo nas épocas festivas, o Natal, o Ano Novo, a Páscoa,

também eram sempre passadas em família, ou na casa de um ou na casa do outro. Os familiares do meu pai residiam

também relativamente perto, num bairro aqui também perto da zona da Amadora, no bairro das Fontainhas. O meu pai

tinha lá dois irmãos e normalmente aos domingos também era o dia da família. O meu pai ainda trabalhava aos sábados

mas ao domingo era o dia mesmo dedicado à família. Normalmente não ficávamos aqui no bairro, íamos sempre aproveitar

e passear um pouco, porque os meus pais durante a semana trabalhavam imenso. Nós estávamos muito... Embora

trabalhassem muito tinham muita atenção para connosco mas o tempo mesmo para a conversa e para a brincadeira era

mesmo ao fim de semana.

A minha infância! A minha infância foi super divertida, tenho memórias muito boas ao nível da infância, das

brincadeiras de rua, da escola, do ATL... Portanto, tive o privilégio que as minhas irmãs mais velhas não tiveram de andar

no ATL. Tinha o período da manha na escola e o período da tarde fazia o ATL.

M- Isso era já no Moinho?

P- Não, não. Eu comecei o primeiro ano... Aliás, o pré-escolar fiz na Misericórdia da Amadora, entretanto o

primeiro ano fiz aqui no Moinho, portanto penso que era até no início das atividades da associação, uma vez que se

começou a formar em 84, devia ser sensivelmente 86/87. Fiz o meu primeiro ano aqui na Associação mas não me adaptei

muito bem, portanto... (Risos) pedi à minha mãe para voltar para a Misericórdia, portanto fiz o resto das atividades pós

escolares, o ATL, na Santa Casa da Misericórdia que também era aqui no bairro, aqui no bairro da bola, e andei no ATL da

Misericórdia até ao 6º ano, mais ou menos, de escolaridade. Hum... Tenho muitos bons amigos de infância, da rua. Morei

na rua do Chafariz, portanto... a rua do Chafariz, a rua de Santo Antão e com a Rua do Sal , nós tínhamos ali um núcleo de

amigos... normalmente brincávamos na Rua de Santo Antão ou na Rua do Sal porque eram duas ruas onde os carros não

passavam. As nossas brincadeiras eram todas feitas ali na rua.

Que mais posso falar sobre mim? Andei aqui na escola da Cova da Moura, portanto conheço muito bem a escola

daquela altura. Tenho boas lembranças da minha professora da primária, hum... Que eu penso que a nível da quarta classe

fez um trabalho excelente com a turma, tanto que nós seguimos todos para o quinto ano. Isto fez com que as relações de

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amizade se mantiveram, fortaleceram e estivemos juntos na preparatória, que também andei aqui na preparatória da

Damaia, no 5º e no 6º, e no 7º passei então para a escola D. João V que também é aqui na Damaia. Tive assim um

seguimento mesmo a nível de zona e a nível de colegas de escola. Hum... Um à parte, eu acho que a nível do seguimento

da escola e dos colegas que foi uma experiência muito boa, tanto que neste momento tento criar isso também para os meus

filhos. Eles estiveram aqui nas amas da associação até aos dois anos, sensivelmente, cada um deles, e achei por bem a

determinada fase da infância deles, conviverem e frequentarem o núcleo perto da residência, portanto criarem amigos que

pudessem dizer ‘são meus amigos de infância’ e criassem amizade sólida... e que criem amizades sólidas para o longo da

vida. Fiz isso com a Beatriz, e ela... neste momento passou agora para o 5º ano, ela teve sempre os coleguinhas do pré-

escolar e seguiu com eles o 1ºciclo todo e portanto este ano, agora também para o 5º há de ter também os amiguinhos dela.

A experiência que eu adquiri na minha infância penso ter sido produtiva para a aquilo que eu sou hoje e tento passar, pelo

menos tento fazer o melhor para que ela também tenha algo nesse sentido.

O que eu posso dizer mais sobre mim? Eu sou uma pessoa que não sou parada. Sempre fui uma pessoa muito ativa,

a nível de organização de atividades, tanto que aos... 15 anos frequentei uma associação juvenil, SUBUD que fica em

Alfragide. Com 15/16 anos criámos um movimento juvenil dentro dessa associação, onde elegemos os corpos gerentes e eu

fazia parte dos corpos gerentes da associação, onde desenvolvíamos, no final do dia, o pós escolar, atividades com as

crianças mais novas que frequentavam os espaço e nós próprios dinamizávamos as nossas atividades, aquilo de que nós

gostávamos. Normalmente era desporto, música, dança, jogos de mesa, portanto foram assim até aos meus, sensivelmente,

17, 18 anos tive muito ligada à associação do SUBUD... com a qual fiz ai o meu primeiro intercâmbio juvenil que...

Recordo-me perfeitamente... que foi em Luxemburgo. Fomos em duas carrinhas, eramos ai uns 10 a 12 jovens com alguns

monitores e fizemos assim uma semana em Luxemburgo, e tivemos paragens em França e em Espanha. Fui sempre criando

o bichinho de trabalhar com jovens tanto que depois, simultaneamente, aos 16 anos, comecei a dar apoio escolar aos jovens

do 1º ciclo, 1º e 2º ciclo aqui na associação, coisa que fiz até aos 24 anos. Dos 16 aos 24 tive a trabalhar no apoio escolar

aqui com os jovens na associação... Só deixei porque depois optei por ir para a faculdade nessa altura e... e acabei por

deixar e foi na altura que me desliguei um bocadinho do trabalho que é feito com os jovens aqui. Hum... Que mais posso

dizer?

M- O que é que estudaste na faculdade?

P- Licenciei-me em Gestão de Recursos Humanos. Eu terminei o 12º ano aos 18 anos, não sabia o que é que eu

queria estudar... Aos 18 anos, então, vou decidir o que é que quero fazer no resto da minha vida? Fui trabalhar, falei com

os meus pais e disse “olha, agora vou trabalhar para ter as minhas coisas e fazer a minha carta...”, portanto aos 18 anos

inscrevi-me no, penso que foi na altura que abriu o Continente no centro comercial Colombo, inscrevi-me e comecei a

trabalhar 30 horas semanais como operadora de caixa. Hum... Entretanto, simultaneamente inscrevi-me no Gabinete de

Inserção Profissional aqui na associação à procura de alguma formação que eu pudesse fazer paralelamente ao trabalho.

Queria melhorar as minhas competências ao nível de informática então inscrevi-me para fazer a formação ao nível de

informática. Entretanto, mantive a minha inscrição e penso surgiu uma vaga a nível do secretariado na associação.

Ligaram-me para saber se eu estaria interessada em fazer uma entrevista para o lugar. Eu disse que sim, inscrevi-me, fiz a

entrevista, penso que tinha outras pessoas, estava uma rapaz à frente ao nível da entrevista que acabou por desistir e eu

estava na posição seguinte e então chamaram-me para começar a trabalhar. Despedi-me do Continente e comecei a

trabalhar aqui na associação, iniciei como secretária e neste momento sou a responsável na área do pessoal. Portanto... Ao

longo do tempo fui trabalhando, estudei sempre paralelamente, à noite, e neste momento tenho já algumas

responsabilidades dentro da associação e faço parte dos corpos gerentes, sou secretária Geral da Direção.

(Risos) Mais informações que queiras saber? (Risos)

M- Os teus pais ainda vivem cá na Cova da Moura?

P- Não. Os meus pais, não vieram... O meu pai é de Cabo Verde, da ilha de São Tiago, Sta. Catarina da zona da

Serra da Malagueta. Nasceu e cresceu lá e veio para cá aos 18 anos, penso eu. A minha mãe... Os pais da minha mãe, os

meus avós que já faleceram, o meu avô era de São Tiago da Cidade Velha e a minha avó de São Vicente. Mas entretanto a

minha mãe nasceu e cresceu em São Tomé e só conheceu Cabo Verde já adulta e depois de eu já conhecer. Hum... Os

meus pais viveram primeiro nas Fontainhas, casaram-se muito novinhos, este ano fazem 40 anos de casados, casaram-se no

dia da independência de São Tomé e Príncipe, e neste momento estão a viver em França. O meu pai recebeu uma proposta

de trabalho e passado um ano foi a minha mãe e estão lá a residir. Entretanto os meus irmãos, três dos meus irmãos

também foram para lá, portanto... Neste momento estou cá sozinha em Portugal, dos filhos, portanto eu é que tenho a

responsabilidade a nível da habitação que eles têm cá no Rio de Mouro, porque quando sai cá do bairro da Cova da Moura

fomos viver para a Serra das Minas e os meus pais têm lá residência... E só quando a minha filha nasceu é que eu fui para a

minha casa, portanto... Relativamente aos meus pais é isso. Não sei se queras saber mais alguma coisa... (Risos)

M- Não, era só para saber se eles continuavam no bairro...

P- Eles vieram para o bairro ai em 79...80... Viveram cá até aos meus 18 e foi na altura que se mudaram para o Rio

de Mouros e viveram lá até imigrarem para França.

M- Mas a tua relação com o bairro continuou sempre então por causa da Associação?

P- Eu nunca me desliguei do bairro. Eu nunca me desliguei do bairro porque... Eu aos 16 anos, quando comecei a

fazer as atividades aqui na Associação a nível do apoio escolar, e uns anos depois comecei a trabalhar com um grupo de

jovens três vezes por semana, em que trabalhávamos as questões do civismo, a questão do gender, com jovens que estavam

na corda bamba entre deixarem a escola ou não, era uma relação muito diferente daquela que eu fazia ao nível do apoio

escolar... Portanto eu desde os 16 até agora fui sempre mantendo uma relação com o bairro. Eu tenho amigos aqui, tenho

uma tia-avó que reside cá, que é a irmã da minha avó, tenho primos... Eu estou aqui de 2ª a 6ª feira quando não estou cá

aos fins-de-semana, portanto eu passo aqui muito tempo. Gosto do bairro, tenho boas lembranças do bairro da Cova da

Moura, vivi muitas coisas aqui no bairro que os meus filhos hoje em dia não vivem: o brincar na rua, o estar com os

vizinhos, o conhecer toda a gente... E isso tudo é algo que se cria no bairro que muitas vezes nos prédios não se tem, ou nas

grandes cidades não se tem. Hum... E eu recordo-me perfeitamente, quando eu entro no bairro e venho a pé, até que chegue

aqui à Associação há alturas que eu posso demorar 30 ou 40 minutos porque eu vou falando com as pessoas e perguntam-

me ‘e os teus pais como é que estão? E tens falado com eles? E... quando estiverem manda cumprimentos’. É uma pequena

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aldeia onde toda a gente se conhece uns aos outros e embora muitas das caras eu não vá reconhecendo mas a relação tem

sido sempre, sempre, mantida, a nível da Associação e não só.

M- Exato, também se manteve a nível pessoal, isso é que também é interessante.

P- O pessoal e o profissional cruzam-se, nesse sentido estão interligados. Eu acho que acabou por estar sempre

desde muito cedo interligado, o pessoal e o profissional e depois as relações de amizade que se vão criando no trabalho

também, de pessoas que moram cá no bairro. E dos pais e as famílias dos utentes! Eu sou uma pessoa muito atenciosa, não

é? E pode estar aqui uma pessoa para ser atendida pelo Gabinete de Ação Social e se está ali à espera eu meto conversa,

cumprimento e pergunto coisas, e digo ‘olhe não se preocupe, não espera muito tempo...’ e depois essas relações vão-se

mantendo.

M- E em relação à tua relação com, neste caso, Cabo Verde e São Tomé?

P- Eu já estive em Cabo Verde três vezes, conheço a zona de nascimento do meu pai, do meu avô. Hum... A

primeira vez estive em trabalho, gostei do impacto... Fui acompanhar um grupo de 6 jovens que foram fazer um

intercâmbio cultural. Estávamos todos pela primeira vez em Cabo Verde, portanto aquilo foi uma descoberta para nós.

Fomos à Ilha de São Tiago, para o Tarrafal. Estive lá 10 dias onde tive a oportunidade de conhecer a cultura, as pessoas, de

uma forma que se eu fosse de férias se calhar não tinha a oportunidade de conhecer. O bichinho ficou e no ano a seguir

regressei a Cabo Verde com dois amigos meus que fizeram o intercâmbio comigo aos 17 anos aqui na associação, para a

Alemanha, e a relação de amizade se manteve desde aquela altura até hoje, nós somos muito amigos. Nós optamos então

por ir fazer uma viagem de 3 semanas a Cabo Verde para conhecer principalmente a Ilha de São Vicente que não

conhecíamos. Depois voltei a ir porque recebi um convite para participar num congresso, uma colega minha da associação

tinha ido já há quatro anos, recebeu o convite novamente mas uma vez que já tinha experienciado a vivência perguntou-me

se eu estaria interessada, e eu acabei por ir, e ai estive numa perspetiva diferente e fiquei a conhecer um bocadinho a

realidade económica de Cabo Verde.

Para São Tomé tive o privilégio de ir de férias com a minha mãe em 2001. Estive lá na altura do Natal, Ano Novo,

portanto para mim foi extraordinário. É um país que tocou-me imenso a nível da cultura, da simplicidade... Conheci São

Tomé, tive o privilégio também de conhecer a Ilha do Príncipe... A minha mãe cresceu na Ilha do Príncipe. Vi as roças da

Ilha do Príncipe e foi muito bom, tenho o sonho de regressar a São Tomé e ir com o meu marido e os meus filhos.

Mas... Tendo em conta a cultura dos meus pais, embora tenha gostado muito de São Tomé, culturalmente acabo por

estar muito mais ligada a Cabo Verde. Ao Batuque, ao Kola, que também são duas culturas muito enraizadas aqui no bairro

e mesmo através da associação e dos grupos culturais que o Moinho tem. Hum... Acabo por estar muito mais ligada nesse

sentido a Cabo Verde. Conheço muito pouco de São Tomé, espero ainda vir a aprofundar os meus conhecimentos a esse

nível mas também não sei se terá sido pelo facto de os meus pais terem vindo ainda muito novos da terra de origem deles e

por terem também passado muitos anos sem lá regressar. Eles os dois só voltaram vinte e tal anos depois a onde nasceram.

Também não sei se como irmãos também estavam todos cá em Portugal o regresso demorou muito mais... E Pronto...

Relativamente à cultura são os pratos tradicionais que eu também conheço, não os sei fazer, só sei fazer a cachupa mas

gosto muito do calulu de São Tomé (risos), gosto muito da muamba de Angola, embora não tenha familiares de Angola.

Mas tenho uma grande amiga de infância, já uma amiga há uns vinte e tal anos desde a primária, portanto nós temos uma

relação de amizade muito grande e ela é de Angola... As relações culturais vão-se cruzando pelas relações de amizade que

eu fui criando ao longo desta minha curta vida ainda (risos).

O que eu gosto de fazer... Também posso falar um bocadinho, já que estou a falar sobre mim (Risos). Gosto muito

de estar com a minha família. Eu desde que tive os meus filhos prezo as minhas relações sociais com os meus amigos mas

abdiquei muito disso para estar com os meus filhos. Acho que... As vivências que se vão criando não se voltam a repetir

portanto nós temos que, tendo em conta o mundo de hoje, o tempo é cada vez mais curto... e criar estas relações, portanto...

Eu dedico muito da minha vida durante a semana, o pós-laboral, exclusivamente à família. Aos fins-de-semana vou

mantendo a relação com os amigos mas essencialmente com a família, com os meus cunhados temos uma relação

extraordinária, portanto... São os almoços, são os convívios com os filhos, as saídas. Sou uma pessoa que preza muito e

dou muito valor à família, portanto para mim a família é o porto seguro. E... É o que eu digo sempre, para além das

amizades que eu vou criando os meus melhores amigos são os meus pais e os meus irmãos (risos).

M- Eu percebo isso.

P- É algo de extraordinário, os meus pais estão em França mas nós falamos todos os dias ao telefone, praticamente.

Bem-haja ao Viber e ao Skype (Risos). Hum... Tenho sobrinhos lindos, a minha irmã mais velha tem um filho, depois o

meu irmão tem um casalinho e a minha segunda irmã tem duas meninas. Portanto, tenho 5 sobrinhos extraordinários em

que dois deles são meus afilhados (risos) hum... E do lado do meu marido também tenho sobrinhos, e o tratamento é todo

igual. A família é enorme e é algo que nós prezamos muito e valorizamos.

Gosto de fazer desporto, fiz natação, andebol, também com um grupo de amigas de infância. Também tentei incutir

isso nos meus filhos, o trabalho de equipa, o desportivismo. A Beatriz pratica basquete e eu acho que crianças ocupadas

são crianças mais saudáveis por isso ela faz basquete, faz escuteiros... são valores que eu acho que tenho que criar neles

desde pequeninos. Gosto de ouvir música, de jantaradas entre mulheres mas nada de restaurantes, são boas memórias e

aprendizagens que vamos tendo. A faixa de idades das minhas amigas é variadíssima, tenho amigas desde os 60 aos 16 e

por isso eu acho que vou aprendendo com todas. Acho que criei uma grande maturidade ao longo da minha vida porque ao

longo da adolescência fui sempre convivendo com pessoas de outras idades, também mais velhas, que hoje me deu uma

sabedoria que acaba por ser transmitida pela vida que eu levo e pelos valores que eu fui criando. Não sei se queres saber

mais alguma coisa...

M- Gostavas de mudar alguma coisa aqui no bairro?

P- O que me entristece por exemplo é ver.. o que me marcou na minha infância foi o facto de andarmos à vontade

pelas ruas, a correr, a jogar à bola, e isso já não se vê tanto. Já não se vê tanto porque agora as ruas são alcatroadas, são os

carros, são as pessoas que são de fora do bairro ou que têm atitudes menos próprias à luz do dia... e isso é que me

entristece, porque se calhar as crianças acabam por não ter aquilo que eu vivi e que me marcou tanto a nível da minha

infância.

M- Mas por exemplo, há assim uma ideia um pouco negativa em relação ao bairro...

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P- Há, porque normalmente quado se fala em bairro de residentes africanos...

M- Especialmente por parte da comunicação social...

P- Exatamente, isso acaba por criar logo o estigma social, o que também não ajuda. Mas o bairro é tão igual como

lá fora. Eu já cheguei a vir trabalhar e deixar o carro aberto o dia todo e ninguém fazer nada e chegar a Monte Abraão e

roubarem-me. Portanto não tenho razões de queixa a esse nível.

M- Mas como é que te sentes em relação a essa discriminação que é feita em relação ao bairro?

P- Eu sou uma pessoa muito positiva, não levo as coisas assim a peito. É que de facto muitas das vezes esse

preconceito tem a ver com o desconhecimento das pessoas, é pelo que é transmitido ou na televisão ou na rádio, e as

pessoas acabam por julgar. Muitas das vezes é normal do ser humano, nós julgamos e retiramos elações daquilo que

desconhecemos. É mais fácil fazer isso do que se calhar ir à procura e tirar conclusões. Não me sinto discriminada, não

tenho problemas nenhuns em dizer que nasci e cresci e que trabalho na Cova da Moura, sinto-me bem principalmente

porque estou no meio de uma simplicidade tremenda. Eu passo aqui 8 a 9 horas por dia portanto estar aqui nesta

simplicidade, se eu estou aqui e a senhora está a vender um pastel e me apetece comer um pastel vou comprar, se me

apetece comer um geladinho que se chama fresquinha vou comprar, eu não tenho problemas nenhuns em dizer que eu

trabalho, que vivi, que cresci, porque eu tenho uma boa infância. Ao sentir-me dessa forma negativa estaria a anular as

coisas boas que eu construo aqui no bairro e vejo isto nessa perspetiva.

M- É isso que é importante ser transmitido, uma imagem que contraponha aquela que muitas vezes as pessoas têm

sobre o bairro, sem de facto conhecerem...

P- É isso. Por exemplo, vamos dizer ‘então vamos por uma criança numa ama no bairro da Cova da Moura?’, é

uma ama como outras amas, tem uma sensibilidade diferente. Os meus filhos estiveram aqui até aos dois anos de idade,

desenvolveram-se muito bem, criaram relações. É muito engraçado, a minha filha fez aqui o campo de férias há uns anos e

ainda hoje em dia as pessoas do CATL perguntam ‘ Oh Patrícia então a tua filha não vem passar aqui as férias?’. São

relações que se vão criando e eu quero também que ela as leve e cresça com isso, que seja transmitido. O meu marido

também era do bairro das Fontainha, que hoje em dia já não existe. As pessoas foram todas realojadas ou para o Casal da

Mira ou para outros sítios. São bairros dos arredores da Amadora mas também se criou boa gente, não é? É bom nós nos

afirmarmos com isso, da nossa descendência e sentirmo-nos orgulhosos daquilo que é a nossa história.

M- Boa tarde. Pode começar por me dizer o seu nome, a sua idade.

D- Domingas. Domingas do Geres... Digo completamente?

M- Não, não é preciso. Quantos anos tem?

D- 50.

M- Há quanto tempo é que vive aqui no bairro

D- Já há dois anos.

M- Dois anos?

D- Dois anos e poucos meses.

M- E pode-me contar como é que veio para cá?

D- Como é que eu vim para cá? Então, o meu primo vai Cabo Verde, ele vive na França, então vai e leva o meu

documento. Fala: Eh Domingas, você quer vir ver onde espera o seu marido? E eu digo que sim (impercetível) Então 21

dias de Fevereiro encontra o visto. Manda o visto, manda o meu sobrinho, depois Lisboa, Lisboa Nice. Chega a Lisboa no

dia 2 de Março de 2013, dia 7 de Março vai para França. Sim... dia 15 de Março, Paris. 4 de Abril, Lisboa.

Fui lá encontrar o meu marido, mesmo. E quando eu encontrar tinha outro amante e nós somos casado já há trinta e

um anos, dia 12 faz trinta e um anos que nós casámos.

A vida agora vai regularmente, está boa.

M- Está boa agora, a vida?

D- Está boa.

M- E onde é que vivia... onde é que nasceu?

D- Em Cabo Verde.

M- E foi, portanto, que conheceu o seu marido.

D- Sim.

M- E é lá que continua a sua família?

D- Sim, tenho duas filhas lá. Uma filha de meu, está aqui. Uma filha.

M- E qual é que era a ilha onde vivia?

D- Ilha de S. Tiago.

M- E não me quer contar alguma história de Cabo Verde?

D- (Risos) História de Cabo Verde é muito dura (mais risos) muito duro... história da minha vida ou história

mesmo de Cabo Verde?

M- História da sua vida em Cabo Verde (risos).

D- A minha vida... A minha vida em Cabo Verde é o mesmo que a vida aqui. É vida muito trabalhante. Compra

batata, mandioca, cebola, cenoura, vender praia e “somada” (?).

M- Vendia na praia?

D- Sim, toda a vida. Vinte e um ano, vida de volta, sim. Uma vida com cansaço. Agora está mais...

M- Está mais tranquila.

D- Agora está mais feliz. Com o meu marido está tudo bom, tudo de bom.

M- E pode-me contar essa história o seu marido outra vez?

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D- (Risos) O meu marido vai de Cabo Verde em 92, mais uma vez em 97. Em 97, nunca mais volta. No ano 2000,

nem carta, nem telefone, nem dinheiro, até 2013 que eu encontrei. Ele arranjou outro amante e foi viver a sua vida, mas

quando eu vim...

M- Quando o encontrou, ele voltou?

D- Ele voltou sim, de novo. Ele disse que não tinha maneira de me mandar a Portugal, era muito difícil, ele é um

homem sem nenhum dinheiro de ajudar. O que é que você quer? É um silêncio.

M- E o que é que ele faz cá?

D- Ele é, ele teve acidente. Ele é mecânico, teve um acidente e perdeu uma perna.

M- Como é que ele perdeu a perna?

D- No trabalho, o carro... em 75, 78 apanhou um acidente, já perdeu a perna e tem uma prótese. Mas fez sempre

vida de mecânico. Só que o trabalho está tão tão difícil, tão pouco, outra gente não deita carro (...) porque ele é deficiente.

M- E agora, portanto, vivem só do seu trabalho...

D- Sim, vivemos só desse trabalho.

M- E o que é que acha da Cova da Moura, gosta de viver cá?

D- Gosto, a Cova da Moura é um lugar muito “amorável” (amoroso), parece como Cabo Verde. Tem todas as

coisas, sim (risos), tem tio cabo-verdiano, vive mesmo, é mesmo como Cabo Verde.

M- Se calhar essa é uma das coisas melhores aqui, sente-se mais perto de casa.

Muito mais perto de casa. Quando eu vou para... como naquele dia estive na reunião, no ensaio do Batuque, quando

estava no Batuque mesmo assim como que está mesmo em Cabo Verde. Muitas coisa saiu, fica mesmo boa.

M- E o batuque, faz parte do Batuque desde que está cá a viver?

D- Sim.

M- Como é que entrou para o grupo?

D- Como entrou no Batuque? Quando veio de Cabo Verde estava na minha casa, então, ouvi aquele som de

música, aquele pam-pam-pam e depois eu vou. Vou para lá e vou falar com a D. Lieve, porque eu gosto, eu gosto muito de

estar no Batuque (risos). Então fiz um convite e (agora) vai para outra zona, e vamos cantar e dançar. Gosto, D. Lieve deu

o meu nome e fiquei lá.

M- E o Batuque, pode-me explicar mais ou menos o que é que é?

D- Batuque é uma tradição de terra, quando vai ao Batuque, mesmo que está com tristeza, entra alegria e a tristeza

sai fora. Então nós reunimos um grupo de meninas, fazemos batuco e o outro foi dançar, assim.

M- Uns dançam...

D- E outro batuca. Tem um, pode tocar assim, tem pam-pam (toca com as mãos nas pernas para exemplificar o

batuque) e todos junto faz um batuque.

M- E, não tem assim alguma história que me queira contar da sua vida, para além do trabalho? O que é que gostava

de ter feito, se pudesse ter escolhido?

D- Eu trabalho muito em Cabo Verde, trabalhei... la no Cabo Verde trabalho duro. Tira areia no mar, dentro do

mar. Tem brita (?). Também para fazer, para construir uma casa é difícil. Vida de Cabo Verde é muito mais difícil.

M- Muito mais... Mas gostava de voltar para lá?

D- Eu gosto, é a minha terra. Minha terra é Cabo Verde, adoro muito minha terra. Nunca esqueci. Estás a ver?

Cabo Verde, minha terra, eu gosto.

M- Então, se pudesse, ia para lá. E tem lá muita família? Os seus pais ainda estão...

D- Não, não, o meu pai já é morto. Mas tem duas filha (o) e dois netos.

M- Tem dois netinhos? Já foi lá visitá-los?

D- Não, não, não... não pode (risos). Tem dois netinhos... um tem 6 anos e outro tem 8, dois miúdos (...)

A mais pequena (filha) está cá.

M- E quantos anos tem a mais pequena?

D- Ah, 24, 15 de Agosto faz 24 anos.

M- É novinha ainda.

D- Vem cá 12º, vem acabar aqui.

M- E a Domingas estudou?

D- Domingas, não estudou, trabalho muito. Tenho só a terceira classe.

M- Mas gostava de ter estudado?

D- Gostava muito, mas o tempo...

M- Não houve possibilidade...

D- Não possibilidade, sim. Cria filhos, depois todos os miúdos vai fazer a escola, para a mãe não dá. Mas eu posso

trabalhar todos os dias.

M- E o que é que gostava de ter feito, se pudesse escolher?

D- Se pudesse, gostei muito de ter muitas coisas feito. Eu gostava muito... das minhas filhas, do meus marido, dos

meus netos. Adoro eles, gosto.

M- E sente, costuma... Quando sai do bairro sente que há alguma discriminação, ou nunca sentiu assim grande

coisa?

D- Não, por acaso eu nunca. Eu sai, do bairro não sai muito. Mas quando tive que sair com o Batuque eu senti

feliz, em Lisboa.

M- Pois, vocês fazem uns espetáculos não é?

D- Sim, sim, faz sim. Amanha mesmo faz.

M- Amanha? Onde?

D- Sim, em Lisboa mas já não em que sítio. D. Lieve não está, mas nós fomos.

M- Eu gostava de ver, nunca vi.

D- Nunca viu? (risos). Depois D. Lieve e a Sandra fazem um convite. Adoro muito, você gostava.

M- Eu gostava (risos). Mas não tenho ritmo suficiente, não tenho ritmo.

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D- Não tem ritmo?

M- Não sou muito boa...

D- Mas quando vê gosta.

M- Adoro! Isso adoro...

D- (Risos) Ai... Maria... Minha irmã também chama Maria. Eu tenho uma irmã, mais velha.

M- Mais velha?

D- Sim, é a Maria.

M- E só tem uma irmã?

D- Não, não, tem duas irmã.

M- Acha que está a ficar parecida? Isto é aos poucos, primeiro temos que apanhar assim o total e depois é que vou

lá.

(Risos)

M- Acho que o nariz não está bem.

Se tiver que mexer alguma coisa lá dentro, está à vontade

A Domingas estava a trabalhar enquanto fazíamos o retrato, faz e vende comida numa pequena garagem; fizemos

uma pausa para a Domingas atender um cliente

M- E tinha algum sonho?

D- Algum sonho? Tinha sonho. Estava longe do meu marido, sempre pensei que um dia nós vamos juntar.

M- Gostava mesmo dele?

D- Gostava muito dele, quando namoramos tinha só 15 anos, desde menina. Mesmo “piquenetinha” gostava

mesmo do meu marido. Agora tenho o sonho que é ir para Cabo Verde, eu e o meu marido.

M- Era esse o seu sonho.

D- Sim, era.

M- E acha que o vai conseguir fazer, esse sonho?

D- Sim, eu já quando houver essa possibilidade voltamos para Cabo Verde, para ao pé das filhas.

M- Se arranjar lá trabalho e...

D- Se arranja lá trabalho e em Cabo Verde tenho a minha casa mesmo

M- E a sua filha mais nova gostava de ir também? Acha que ela gostava de ir?

D- Gostava. Faz cinco anos que está aqui no Portugal. Vem fazer o 12º e acaba curso aqui.

M- As suas tranças são difíceis de fazer, mas são muito bonitas

(risos)

M- Então e sua tia é que é a dona desta loja?

D- Sim, é a minha tia.

M- E vive com ela cá?

D- Não, não, tenho a minha casa. Vai trabalhar, agar renda e tenho a minha casa. Esta está sozinha, também, tem

uma filha que morreu, tens os netos que cuida dele. Estar em casa até tarde, ficar toda aborrecida, vim trabalhar com ela,

ajudar ela. Ela já está com 74 anos de idade. Não posso fazer mais...

M- Ao menos ajuda no que pode.

Os seus olhos são muito expressivos.

Para além do Batuque costuma fazer mais alguma coisa ali com o Moinho?

D- Não, não.

M- E a sua filha está a estudar onde, aqui na escola?

D- Não, Marquês de Pombal.

M- Desculpe, agora não estou a fazer conversa, estou concentrada.

D- Está aqui minha filha.

M- Olá!

Esta é qual das filhas?

D- A Carla.

M- Pode olhar um bocadinho para mim, só para me ajudar a fazer aqui o seu olho?

Se nós estivermos a demorar muito tempo diga. Queria só fazer aqui o olhinho.

Acha que está parecida? (risos) mais ou menos. O que importa é que eu estou a tentar apanhar a sua simpatia, que

às vezes é mais importante que estar parecido.

Já esta cansada de estar ai na mesma posição? Ainda tenho que fazer aqui a trança.

Se calhar tem que voltar para o seu trabalho, não é?

M-Podes te apresentar.

Tg-Olá. Então o meu nome é Tiago Borges, tenho 20 anos feitos a 29 de Maio

M- Ah! Faço anos no mesmo dia!

Tg- Então como sabes sou do signo Gémeos. Nasci aqui no bairro, mas atualmente vivo aqui e noutro sítio, desde a

separação dos meus pais, há cerca de 4 anos atras. A minha infância foi aqui, não posso dizer que foi 1 infância normal por

que nunca tive outra, mas foi a minha. Gostei. Acho até hoje que os melhores anos de 1 pessoa são quando estamos n

escola primaria porque é uma descontração e uma despreocupação de que eu gostei muito, q eu sempre fui 1 pessoa muito

descontraída e agora, a medida q vou crescendo vejo que quanto mais velho, mais responsabilidades. Há responsabilidades

boas e outras não tão boas, assim dizendo!

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Atualmente trabalho e estudo. Trabalho aqui no moinho. A minha entrada para o Moinho foi feita desde minha

infância; não andei aqui neste ATL mas a partir dos meus doze anos comecei a frequentar as atividades do Moinho.

Andava num grupo que era “ Alguém passa por nós”. Fazíamos atividades extracurriculares. Aí já andava no 7º ano, para

aí, e depois o interesse foi crescendo, descobri, descobri não, fui tendo mais conhecimento acerca do que é esta área do

trabalho social que não era algo que eu pensava que na vida algum dia ia fazer, também não é algo que eu queira fazer a

vida toda, mas é uma coisa de que eu gosto.

A nível dos estudos, estou agora, passei agora para o 12º ano, estou no terceiro ano de um curso profissional de

audiovisuais. Estudo em lisboa e é isso que quero fazer da vida, mas ainda não decidi se é cinema, se é televisão…

M- Mas é algo relacionado com essa área?

Tg- É algo relacionado com essa área! Se calhar mais para a televisão. Experiências que já tive, gosto da pica do

direto, como se diz. Gosto daquela energia toda. Também gosto de cinema, mas cinema gosto mais do resultado final.

Digamos que o processamento todo e a realização toda e a produção de todo o filme é algo que eu acho que não é chato

mas é trabalhoso e às vezes para fazer um plano de 5 ou 6 segundos…foi como agora por exemplo, tivemos aqui bué

tempo, tás a ver? Mas é algo que é necessário e depois disso tudo vê-se o resultado final é disso que eu realmente gosto.

Mas estou agora aprender a trabalhar com essa parte da paciência!

Ehhh…o que é que queres saber mais?

M- Quero saber por exemplo se para ti faz diferença ou se alguma vez te sentiste discriminado também um pouco,

se calhar por seres da Cova da Moura ou assim…

Tg- Pá por ser da Cova da Moura…não sei se foi discriminação mas geralmente quando estás num sítio e dizes, um

sítio por exemplo longe da Cova da Moura e dizes venho da Cova da Moura, pá não sei oque é que as pessoas pensam, mas

reparas que toda a gente olha para trás – aquele gajo é da Cova da Moura, não sei o quê e há outros que ficam encantados e

devem achar que és tipo super-homem porque conseguiste sair daqui e ir até ao sítio onde eles estão, e há outos que

querem vir aqui e ver como é que isto é. Isto é como em todo o sítio! Eu acho que sou mais discriminado por ser pobre,

isso sim e não por ser da Cova da Moura!

M- Também podes falar nisso…!

Tg- Pá! Atualmente, sim! Sempre foi o racismo a nível de cor de pele mas hoje em dia o mais presente é o racismo

a nível de classe social! Isso sim, eu sinto. Vou a um estabelecimento, ou vou a festas, até a discotecas, ah se não tentares

impor a tua postura e tentares que as pessoas te respeitem pel’aquilo que tu és e não pel’aquilo que tu tens, vais passar mal

de certeza! Pá, nos casos mais práticos, vou a discotecas em que por vezes se não fossem as pessoas que me acompanham

que são se calhar pessoas que têm algumas posses e de demonstram isso eu se calhar não entraria em algumas das

discotecas que eu entro! Isto no caso mais prático de todos, assim mais real que eu sinto mesmo isso. Já experimentei ir a

certas discotecas sozinho, com outro tipo de pessoas ou com uma miúda só e posso-te dizer que fui barrado, mas depois

voltei lá uns dias depois e prontos, lá entrei…heeeh…discriminação, isso é um tema muito vasto! A nível racial, aqui em

Portugal, já viajei, já fui à Holanda e não achei a Holanda um país muito racista porque em comparação, em casos práticos,

posso dizer que eu vi um gajo preto a trabalhar numa joalharia, de rastas ainda por cima, algo que eu nunca veria aqui em

Portugal, não sei porquê, se calhar devido à evolução pensativa dos Holandeses ou algo assim desse género!.......Aqui em

Portugal, como te disse, é mais a nível da classe social mas claro que o racismo existe. Ainda há tempos na Damaia

apanhei um gajo, um gajo não já tinha idade o senhor, a ele faltava-lhe um dos fusíveis de certeza e ele andava na rua e

gritava, cabrões dos pretos vêm para aqui e roubam tudo, tas a ver assim um daqueles cotas mesmo rezingões, tás a ver?

parece que foram à guerra colonial e perderam lá algum parafuso e depois vieram para aqui todos marados, não te matei ao

teu avô mas mato-te a ti, cenas assim desse género, estás a ver? Ia mas é algo que a mim passa-me ao lado – pelo contrário

eu rio-me com essas situações. Pá diariamente debato bué acerca desse tema na escola porque a minha turma assim

dizendo eu sou o único preto da minha turma, tás a ver? E são milhões as piadas que tu ouves diariamente. Não sei quê,

algo relacionado com o roubo, é o preto logo mas eu rio-me mas depois claro que há partes mais sérias em que

argumentamos uns contra os outros. Eles dizem Ah, a maioria dos pretos só sabe roubar, não sei o quê, não sei o quê, e eu

depois também digo coisas sobre os brancos e eles…, mas eu levo tudo sempre na desportiva, nunca me chateei, mas

agora, pá se calhar numa ocasião ou outra já apanhei uma ou outra pessoa na minha vida em que eu senti mesmo que foi

mesmo por causa da minha cor. Eu sei, sei, penso saber, analisar uma situação, o tempo não mas o local onde eu estou,

porque é que eu estou ali e pá, mediante o que essa pessoa me disse, nesse caso eu reparei logo que era por causa disso, tás

a ver? Mas nunca foi algo que me chateou, pelo contrário, só me faz crescer e faz-me pensar também o que é que aquela

pessoa pensa pra agir dessa forma porque de certeza, uma pessoa que é racista tem os seus motivos. Pá, deve ter sido

assaltada por um preto, ou bateram-lhe muito na escola, algo assim nesse género, tás a ver? Depois há aquela generalização

que…por mais que a gente tente…mas isso a mim não me afeta! Posso dizer que fico triste, mas…não guardo raiva, nem

ah morte aos brancos, eu não sou nada, tenho muita gente, muitos amigos que pensam assim, mas eu…nada disso, cada um

é como é! Às vezes não depende da cor, estás a ver? Às vezes podes ser um preto e podes ser a pior pessoa do mundo ou

podes ser um branco e ser a melhor pessoa do mundo ou podes ser um branco e ser o maior ladrão de todos, ou um preto e

seres o maior santinho de todos, isso é….

M -Mas isso é uma atitude até bastante… positiva…de olhar para essa questão!

Tg- Por mim? Achas? Eu acho que é um bocado de egoísmo se calhar! Porque eu há certas coisas que se calhar

deveria dar atenção e eu até nem dou porque eu oiço as pessoas diariamente a lutarem contra isto ou a lutarem contra

aquilo…ah e eu gosto de lutas e de causas que façam sentido, mas depois, como toda a gente, eh pá, se calhar, sim senhora

concordo contigo, mas vá eu vou à minha vida e tu ficas aí, tás a ver? Pá eu sem querer parecer um gajo de direita ou uma

cena assim, mas eu acho que hoje em dia um dos pontos mais importantes na vida é o dinheiro, sem dúvida alguma. Eu

podia-te estar aqui a dizer, ah o dinheiro não importa, mas isso é mentira!

M – Mas um dos objetivos da tua vida…é ter dinheiro?

Tg – É ter dinheiro! Sabes que eu um dia estava a falar com um amigo meu e disse-lhe assim, puto, eu quero

mesmo é ser rico, e ele disse, queres ser rico pra quê? Pá, eu disse, quero ter todo o dinheiro do mundo e depois eu vou

rasgar esse dinheiro todo e vou queimar e depois quero ver o que é que acontece, estás a ver? Pá, e não sei se é por aí ou

mesmo isso é só para ficar bonito é o que eu lhe disse , mas pá isso era uma das minhas intenções nesta vida, ver como é

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que as pessoas agiriam se não houvesse o dinheiro. O que é que seria se o dinheiro acabasse ou se houvesse uma extrema

desvalorização do dinheiro, o que é que as pessoas fariam das suas vidas? Pá acho que voltávamos aos tempos antigos em

que se trocava tudo por tudo e aí não sei o que é que valeria mais, sinceramente!

M – Eu acho que há valores que…

Tg – Não os valores…pá eu posso dizer…

M - …que têm que prevalecer, independentemente do dinheiro que se tenha…

Tg - …por exemplo a dignidade, a honestidade é algo que eu prezo e faço sempre por zelar. É por isso é que eu

digo quando eu estou a discutir com certas pessoas, tu só queres é saber do dinheiro, eu quero saber do dinheiro, mas

quando eu chego à minha cama e ponho a cabeça na almofada durmo tranquilo – sei que nunca vou tirar nenhuma vida por

dinheiro ou nunca vou passar em cima de ninguém por causa do dinheiro, mas sempre que eu vir uma oportunidade de

fazer dinheiro, eu vou fazer dinheiro! Não é esse o problema, não é a ganância…pá, mas eu tenho ambição, tás a ver?

M -…é um realismo um bocado bruto…

Tg- É um realismo um bocado bruto, mas o mundo onde vivemos pá, não é um mundo um bruto, mas é feito por

pessoas brutas e…e num sistema bruto também e aí está!

Estou pra ver o que é que vai sair daí!...

M – …Também eu!

Tg- …e mais? O que é que queres que eu te diga mais? Queres que te fale acerca do bairro?

M – Queria que me falasses acerca de ti…mas podes falar...

Tg – De mim? Não gosto muito de falar de mim, sabes?

M – Mas agora já estás aqui…

Tg – Ia, já estou aqui! Eu quando embalo…é…sou muito bom, é como diz a Stora, és muito bom a escrever

composições…

M – Isso é uma coisa boa!

Tg – Ia, Gosto de escrever.

M – Gostas de escrever…

Tg- …Já não gosto tanto de ler, aliás eu acho que já nem sei ler, que é diferente! Mas adoro escrever. Já perdi a

entoação, então principalmente neste último ano, meu Deus, estive a ler os Maias…

M – Hum…

Tg– Pá, não tava a curtir muito de ler, mas por acaso safei-me, passei no módulo…

M – Se calhar…

Tg– hum?

M – Se calhar se lesses outro tipo de livros, gostavas mais, tinhas outro tipo de interesse…

Tg– O problema é que eu vejo mal, tenho miopia e estigmatismo. Então o facto de as linhas dos livros serem tão

juntas, faz-me confusão…tás a ver?

M – Então usa óculos!

Tg – e depois tenho que estar ali…e uso, uso lentes atualmente, mas também vou usar óculos a partir do próximo

mês e…pá, dá-me um bocado de dor de cabeça e depois como não leio em casa, os poucos livros que vou lendo, leio tipo

nos transportes ou isso, não me consigo abster do que tá à minha volta, tás a ver? Depois acabo de ler uma frase mas já

estou a pensar no que ouvi há bocado, quando vou ler a outra já não sei o que é que estou a ler e já não faz sentido com a

linha de cima portanto…fico um bocado baralhado e opto por fechar o livro e

M - …Fechar o livro…

Tg - …pô-lo dentro da mala…

M – Então, mas gostas e escrever e isso…

Tg – Ya, gosto de escrever!

M – O que é que costumas escrever?

Tg – Costumo escrever mais na escola. Pá e agora também escrita criativa! Tenho andado a desenvolver um

bocado isso, tás a ver? A nível de argumento e isso tudo… ainda estou mesmo na fase do B A, BA, ainda estou a

aprender… mas gosto, pá, gosto…o meu telemóvel! Não posso atender, supostamente…

M – …É melhor não…

Tg - …Gosto, gosto de português, gosto da língua portuguesa. Gosto principalmente quando há testes em que a

composição não seja fechada. Por exemplo na matéria que tu deste, por exemplo agora nos Maias, saiu a composição

acerca do…tema educação nos Maias e foi algo que, mesmo eu não tendo lido nos Maias, não tendo estado minimamente

atento nas aulas, eu consegui-me safar no teste à pala dessa composição, segundo o que a Sotora me disse, porque a

educação nos Maias, a Introdução dizia, faz uma comparação da educação do Afonso, que era uma das personagens, com

outro tipo qualquer e que a educação deles diversificava-se muito porque um tinha tido uma educação mais conservadora e

o outro tinha tido uma educação mais liberalista. Um tinha sido em Portugal e o outro em Inglaterra, um mais à base de

arte e o outro à mais da literatura e conservadorismo e essas coisas todas. Então, não precisei de ler os Maias para

conseguir desenvolver dali alguma coisa, tás a ver? Foi mesmo algo que não foi preciso.

M - …É melhor não apelares a que as pessoas não leiam os livros, mas…

Tg – Não, não! Não foi isso que eu fiz, pelo contrário, disse que a educação é algo muito importante, e

que…comparando, também comparei Portugal a outros países, que hoje em dia, por exemplo, eu estive a fazer um trabalho

sobre a Suécia noutro dia e vi que na Suécia a taxa de alfabetismo neste caso é 99% em 2003, ou seja quase toda a

população é, tem… foi à escola! E isso, eu acho que isso é algo espantoso para um país.

M – Claro, mas eles têm outro tipo de maneira de olhar para este tipo de questões…

Tg – Aí está! Eu acho que eles nesse nível são muito mais evoluídos! Sabes que um país sem educação é um país,

aliás isso é uma das frases que estava lá. Uma educação…no texto, para depois eu desenvolver, estava lá uma frase

de…como é que era? Uma educação com base…ó pá, era qualquer coisa assim que dizia que a educação que era dada à

base de uma pessoa tentar na vida ser rico e….ter poder, era uma educação má, tás a ver? Algo assim desse género. Depois

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era a parte mais liberalista que dizia que as pessoas tinham que explorar ao máximo as suas capacidades…e a partir daí,

Ia… pá, eu acho que a educação é fundamental! Eu gosto de estudar!...

M - …Sim!…E queres estudar cá em Lisboa?

Tg– Estudar quem? Não sei! Estou tão indeciso ainda…nem sei! Eu sou sempre

à última da hora…Pá, Inglaterra, Estados Unidos, até para o Brasil, tu vê lá!…não sei mesmo, não sei…estou à procura,

como se costuma dizer!

M - …E tu…mudaste de escola ou assim?

Tg – Ya, mudei porque andava aqui na Secundária aqui da Damaia, mas depois para a escola que eu fui, que é ali

em São Sebastião, a IPCI, porque é uma escola profissional, e é uma escola…eu primeiro comecei a tirar o curso de

audiovisuais na secundária da Amadora só que rapidamente cheguei à conclusão que aquilo não era uma escola apropriada

para eu tirar aquele curso! Porque a nível teórico, mesmo a teoria do técnico, é pouca. Só tinha bué de design e essas cenas

aí e depois, pá cheguei à conclusão que se eu queria tirar o curso tinha que ser numa escola a sério, com pessoas que

soubessem realmente o que tão a falar e com material para que eu pudesse pôr em prática tudo o que eu aprendia na teoria.

M – Hum-hum…

Tg – Portanto decidi ir para a escola profissional. É uma escola que se paga mensalidade mas como eu costumo

dizer, é um dinheiro bem empregue!

M – E… aqui no bairro, tu trabalhas com miúdos?

Tg- Trabalho. Estou aqui nas férias, estou no CAT aqui em cima no ATL com os miúdos. Durante a época escolar

faço ali o grupo que eu te disse que eu quando era criança frequentava. Agora sou monitor desse grupo, são miúdos mais

velhos, dos 12 aos 15, 16. Pá é um trabalho gratificante e ao mesmo tempo, é um trabalho um bocado difícil,

principalmente com os miúdos mais velhos que em certa parte tu até já conviveste com eles enquanto colegas e depois

…passado…passado uns tempos chegas ali e dizes olha eu agora sou o vosso monitor, peço que me respeitem como tal e é

um processo difícil… mas…nada que me faça arrepender…

M – Ya!

Tg – Gosto, porque o que eu gosto mais é partilhar a experiência, principalmente com os mais novos, aprende-se

imensa coisa! A naturalidade com que eles te dizem as coisas, quando eles te retratam o que eles viveram no dia de hoje,

ou na escola ou em casa ou no caminho para a escola, é um bocado engraçado!

M – Ya…Os miúdos aqui parecem-me ser todos muito comunicativos!

Tg – Todos muito comunicativos? A grande maioria, sim!

M – …Os que eu fui conhecendo até agora!

Tg – São! Não…mas há alguns um bocado reservados também!

M – Claro!

Tg – Mas depois também como se diz, tens que puxar o…tens que puxar o fio que anda ali! É nisso que nós

trabalhamos aqui.

M – É fixe o trabalho que o Moinho tem feito, neste sentido!

Tg – É sim senhora! Pá, se não fosse, eu não estaria aqui porque eu más causas, eu não abraço! Pá…mas não é algo

que eu queira fazer pó resto da minha vida, digo-te já! Pá, futuramente, sim senhora, terei todo o gosto em ajudar o

Moinho, só que às vezes eu próprio opto por pôr de lado um bocado o Moinho porque isto do trabalho social é muito

bonito, não sei quê, mas depois há a parte má, como em todo o sítio…tás a ver? É muita gente, são muitos interesses, às

vezes as pessoas esquecem-se do interesse principal e começam-se a focar nos interesses pessoais e eu, como eu disse, eu

tenho aquela minha parte invejosa é pá e quando isso não me agrada…ok, fiquem aí…porque o que eu quero mesmo é

seguir a outra área, tás a ver? Por isso….

M – Às vezes dá para aliar…

Tg – Às vezes dá! Já fiz trabalhos. Olha, ainda ontem estive a editar um vídeo da maratona que houve aqui do Sr.

Eduardo Pontes, um dos fundadores do Moinho, é pá e deu-me…dá-me graça porque uma coisa é editares uma, um…, é

pá, editares um vídeo de pessoas que não conheces e que só estavam ali a representar ou assim, outra coisa é apanhares

expressões de pessoas que conheces e situações com pessoas que conheces, depois quando conjugas isso fica bonito o

resultado final. Ya…também faço videoclipes, tenho feito aqui alguns videoclipes, mas é algo que eu não gosto muito de

fazer, não sei porque mas não gosto muito de fazer videoclipes!

M – Mas fazes aí com o pessoal que está a…

Tg – Sim com o pessoal do estúdio aqui de baixo. Eles dizem me…praticamente eles só querem fazer videoclipes

de toda a música, eu é que tenho que lhes pôr uns certos travões…não pá, não quero fazer isto, esta música não vale a pena,

não sei o quê… mas agora há músicas que valem mesmo a pena terem uma historia bonita por trás. A maioria dos

videoclipes que eu faço, eu gosto de pôr uma história por trás!...Mas há outros que também não podes fazer uma grande

elaboração no vídeo porque senão também as pessoas também não vão estar atentas à mensagem que está a ser transmitida.

Tens que equilibrar, quando a mensagem é fraca, pões mais no vídeo; quando a mensagem é forte, pões menos no vídeo.

M – No fundo, gostas é de contar histórias!

Tg – …Não sei! Isso eu ainda estou agora a descobrir! Tenho escrito algumas coisas, por acaso escrevi um trabalho

que eu e uns colegas meus fizemos que é uma curta-metragem. Por acaso ficou bem, mas…mas não está, não está direita!

Se eu não fizesse as legendas e os comentários, após termos visto o filme, se calhar muitas das pessoas não conseguiriam

assimilar muitos pontos do…do filme e é isso que eu estou a trabalhar, que é tentar mesmo conseguir escrever algo que…

M - …que transmita…

Tg - …que a pessoa olhe pr’àquilo e veja logo o que é que eu quero dizer com aquilo ou o que é que aquilo

transmite, exatamente!

M – Pois essas coisas, às vezes são assim um bocadinho abstratas, não é?

Tg – Ya…!

M – Eu própria estou aqui a desenhar um retrato, a tentar contar uma história!...Portanto…É…é complicado!

Tg- …É complicado, mas como eu disse, o resultado final…eu gosto também, gosto de fazer produção. Curto ficar

tipo um dia inteiro, quando tipo tenho trabalhos assim, passas um dia inteiro num cenário a fazer sete, cinco cenas pá, e…e

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depois chegas a casa para descansar e depois olhas para o dia inteiro e aprendeste, podes ter aprendido vinte coisas mas, se

calhar duas ou três que te interessaram e essas duas ou três, vais usar para o resto da tua vida! Portanto eu digo sempre,

aprendi aquilo, aprendi aquilo, aprendi esta técnica…não sei o quê…

M – Tu disseste que vivias aqui e noutro sítio…

Tg – Sim. A minha mãe mora em Queluz. Eu não vivo lá, vou lá.

M - …Vais lá…

Tg - É como se fosse a minha base. Vou lá, tomo banho, como, abalo, logo. Mas geralmente os dias de semana eu

fico lá porque é mais fácil para a minha rotina. Porque aqui se eu me quiser deitar cedo e acordar cedo no dia a seguir, isso

é mentira porque eu não me vou conseguir deitar cedo e acordar cedo no dia a seguir. Agora lá…parece que já tenho mais

disciplina…

M – Há sempre muita festa, aqui?

Tg – Aqui? Aqui é festa, se quiseres é festa de segunda a sexta! De segunda a segunda, nesse caso!

M – Hum!

Tg – É! Houve uma altura aqui que isto era…pá, isto estava tipo o bairro Alto, que era bares e cafés, às sextas e

sábados, abertos durante o dia todo, tás a ver? E…pá! É dos melhores ambientes! Tás com os teus amigos, pessoal

conhecido, não há melhor…agora se quero conhecer outros sítios também…sem dúvida alguma, o mundo é muito mais do

que estas colinas que nós vemos aqui! E às vezes o facto de nós não conseguirmos passar estas colinas, não nos deixam ter

essa perceção e depois ficamos aqui presos a vida toda e quando damos conta, ou seja, quando morremos, vemos

que…não, não conhecemos foi nada!...E eu tenho muitos exemplos disso…é o que eu digo, este bairro é um mundo, mas

só num bairro. Nascendo e crescendo aqui tu aprendes a viver em todo o lado…em todo o lado! Problemas que tu tens em

toda a sociedade, aqui tens em triplo, assim quatro ou cinco vezes mais, tás a ver? E aqui se tu conseguires aprender aqui a

viver…pá, desenrascas-te em todo o lado! Eu já vivi aqui, vinte aninhos…pá, siga prá frente! Mas nunca vou perder a

minha base que é isto, sem dúvida alguma!

M – É interessante essa ideia de…

Tg – Qual ideia?

M – O que tu disseste do bairro! O bairro é um mundo, mas é só um bairro…

Tg – É, é! Estou-te a dizer! Pá, não há pessoas mais…pá, o espírito crítico aqui é imenso! Tu não tens noção!

Aquela coisa do bairro de toda a gente falar de toda a gente, isso é espírito crítico em demasia mesmo, tás a ver? Tu fazes

uma coisa aqui…

M- Não há ninguém que não saiba…

Tg - …tu vais ter todo o tipo de opiniões possíveis e que possas imaginar…aliás, até aquelas que nem possas

imaginar! Também a entreajuda aqui é das coisas mais bonitas que eu já vi!...Pá! Aqui há de tudo! É uma diversidade de

pessoas e de caracteres e de tudo, mesmo de tudo, tudo, tudo, tudo! Problemas, tudo! Tudo o que tu possas encontrar lá

fora, encontras aqui. Tudo mesmo! Por isso é que eu acho que essa coisa de assimilarmos certos problemas…ah…só os

bairros, é mentira porque tu vais, vais lá fora, podes não ver isso, podes ver isso de uma maneira mais pontual mas vais

acabar por ver!...E quando sais daqui e estás nesse sítio em que esse problema aparece, pá, se calhar olhas p’ali pá e

começas-te a rir, mas aquele está a fazer isso por causa daquilo, o outro lá no meu bairro fazia aquilo, não sei quê e o que

parece grande para uma pessoa, tu podes pôr aquilo em ponto pequeno e…é sempre mais uma etapa, mais uma escada para

tu subires…E aí fazes aquela comparação, pá, aquele não sei quê, este não sei quê e depois vês o resultado final dos dois…

M – É como que um…uma carga… de aprendizagem… de estar na vida…

Tg – Ia, é, é, aqui é mesmo! Começasse desde pequeno. Desde miúdo mesmo!

M – Isso, pronto! Pode ter aspetos positivos e aspetos negativos…porque depois depende como tu…

Tg - …Como tudo na vida!...Diz, diz, diz…

M – Depende como tu abordas e utilizas essa sabedoria…

Tg – Encaixas isso…E depende da maneira como te dão também essa sabedoria!

M - …Sim também!

Tg – Porque a educação é um dos pontos mais importantes da vida do ser humano…a tua educação vai ditar aquilo

que tu vais ser na vida!...Aí está! Por isso é que eu acho que deve ser dada essa…essa…abertura e essa à vontade com os

miúdos aqui do bairro, para já saberem de certas coisas e não sei o quê, mas tem de haver uma linha que separa o que é a

rua e o que é a casa. E neste caso, a casa tem que vir tentar decifrar certos códigos que o miúdo trás para dentro de casa,

vindos da rua, não sei se estás-me a entender…

M – Sim!

Tg – Eu aprendi isto com um monitor meu e ele era muito bom nisso. Eu devo-lhe muito do que eu sei hoje em dia

porque…quando eu comecei a sair mais para a rua, comecei a ser, a ver certas coisas…e certos ambiente e não sei quê, e

ele ajudou-me muito bem a decifrar esses tais códigos, tás a ver?

M – Hum…

Tg – E é isso que eu hoje tento passar aos outros miúdos também. Acho que é a maneira mais correta, porque

especialmente se tu tiveres uma educação muito à base de casa…e à base da mamã e do papá, quando fores grande, se

calhar vais ter alguns problemas mesmo a nível social, tás a ver? Mas agora, se te souberes desenrascar desde puto,

souberes por onde andas, souberes o que fazes, mas sempre com aquela boa educação por trás…pá, tens tudo na vida para

te conseguires safar!

Posso ver como é que isso está?...Estou mais velho aí!

M – Ó pá, faço toda a gente mais nova e o mais novo…faço mais velho!

M- Olá (riso)

N- Olá

M- Podia-me dizer só o seu nome, idade e o que é que faz?

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N- O meu nome é Eunice Delgado, mais conhecida por Niche, 53 anos.

M- Ok... Hum... Será que me podia contar um bocadinho da sua história, onde é nasceu e quando é que veio para a

Cova da Moura...

N- Eu nasci em Cabo Verde na ilha de São Vicente, vim de Cabo Verde há 40 anos. Hum, estou na Cova da Moura

desde... 77... sim 77. O meu irmão é que já nasceu aqui. Portanto nós viemos para aqui, morávamos ali em baixo na

Avenida da República, mais os meus irmãos, tenho dois irmãos que já nasceram aqui no bairro... Hum, trabalho aqui há...

12 anos, sim 12 anos.

M- Há 12 anos que trabalha no moinho?

N- Sim

M- O que é que faz aqui no moinho

N- Sou cozinheira e faço a gestão do Kola.

M- Hum-hum, e...

N- Tenho 5 filhos, tenho 7 netos...

M- (risos) E... E os seus filhos, eles moram aqui na Cova da Moura?

N- Tenho duas mais velhas que estão nos Estados Unidos, os meus netos estão todos nos Estados Unidos, tenho um

rapaz que vive no Algarve e tenho uma menina em Londres e tenho uma em casa mais pequenina que tá em casa neste

momento.

M- Tão todos bastante separados (riso)

N- É, estão todos dispersos um bocadinho por toda a parte

M- Dispersos...

N- Foram andando por ai, tem de ser...

M- E... (pausa) e, o seu marido, tem um marido?

N- Hum, o meu companheiro já faleceu a 15... Há 17 anos!

M- 17 anos?

N- Sim, 17 anos que o meu companheiro faleceu...

M- Então teve que, no fundo, educar um pouco pelos...

N- Tive que ser mãe e pai. Sim... Mas graças a deus eu hoje consigo ver a recompensa do esforço que eu fiz.

M- Ainda bem. Costuma ir a Cabo Verde, muito?

N- Desde que vim de cabo verde já fui duas vezes

M- Hum-hum

N- A primeira vez foi em 2000 com as minhas duas mais novas e a segunda vez foi 2008

M- Hum...

N- 2008, sim, nós fomos com o Kola...

M- Com o Kola! Como é que foi?

N- Uma experiencia.

M- Voltar a casa?

N- Sim. Uma experiencia ótima. Eu fui a Santo Antão, que eu não conhecia a ilha de Santo Antão, fui viver o Kola,

lá a Santo Antão, que eu só tinha vivido o Kola em São Vicente que é muito mais pequeno do que em Santo Antão. E o

Kola aqui na Cova da Moura.

M-Sim...

N-Gostei, adorei mesmo... Aquilo é que é o Kola, o resto é conversa!

M- (Risos) E o resto da sua família, tirando os seus filhos e assim, ficou lá?

N- Tenho a minha mãe. Meu pai que está em cabo verde, e a minha mãe está aqui.

M- Ah, a sua mãe tá cá.

N- Sim a minha mãe mora mesmo aqui no bairro.

M- Hum-hum.

N- Por isso muitas vezes eu passo mais tempo aqui que na minha casa, que eu vivo em Rio de Mouro neste

momento. Há 10 anos que eu estou em Rio de Mouro mas pronto passo a maior parte do tempo aqui, na Cova da Moura do

que em casa. A minha mãe aqui no bairro, tenho também um irmão aqui no bairro...

M- No bairro também...

N- E tenho uma irmã no Cacem, tenho um irmão em Londres, um irmão em Espanha... (risos)

M- (Risos) mas isso também, pronto é engraçado, pode visita-los em muitos sítios diferentes (riso) mas é pena não

estarem mais perto...

N- É a vida...às vezes as circunstancias da vida levam a que a gente tenha que seguir por outros caminhos...

Aconteceu...

M- E na altura que veio viver para a Cova da Moura tinha... Hum... já tinha cá a viver alguém que conhecia?

N- A minha mãe tinha uma amiga, foi através dessa amiga que nós viemos aqui pró bairro. Ela, a amiga, morava ali

prós lados da Avenida da República, depois a minha mãe conseguiu, através da comissão de bairro, um terreno e depois

construiu a casa dela, que é onde ela vive. Mas nos viemos prá ‘qui através de pessoas conhecidas, e era o que acontecia

naquela altura a pessoa vinha através dum familiar ou de um amigo.

M- De um amigo... Sente que na altura o bairro era muito diferente?

N- Era completamente diferente, era... Não tínhamos luz, as condições eram completamente diferentes. O bairro

evoluiu muito... e... não tínhamos luz, não tínhamos televisão, não tínhamos uma serie de coisas que hoje temos graças a

deus...

M- Pois, o que me foram contando foi que nem sequer havia água, em alguns sítios...

N- Não, não tinha esgotos em casa...

M- Não tinha esgotos, exato.

N- Sim, era completamente diferente do que é agora.

M- O Moinho também deve ter ajudado bastante...

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N- Sim o Moinho, o Moinho é o pilar da Cova da Moura...

M- Aos moradores, não é? Que se juntaram...

N- Sim, através do Moinho conseguiu-se o esgoto, conseguiu-se água, o problema é que nós íamos buscar água no

chafariz que havia aqui deste lado, havia dois chafarizes, era onde a gente ia buscar água, quem tivesse uma mangueira

ligava a mangueira, depois emprestava à vizinha, enchia os bidões de água, quem não tivesse mangueira acartava a água na

cabeça, com os bidões na cabeça, era assim que acontecia. Mas hoje, pronto, as condições são melhores.

M- Mas...

N- E a Cova da Moura foi-se construindo assim, um a ajudar o outro, como a gente costuma usar muito isto aqui é

o juntar das mãos, foi assim que se foi construindo, o vizinho ajuda, a por um tijolo, a fazer uma mesa, depois a gente fazia

uma panela de comida e todo o mundo comia, foi assim que se foi construindo a Cova da Moura.

M- Esse sentimento de comunidade é muito...

N- Sim, muito!

M- Muito forte...

N- E no bairro, apesar de tudo, tem muito isso.

M- Se calhar é uma das razões porque as pessoas gostam de viver cá...

N- Sim, eu gosto muito, praticamente passo mais o meu tempo aqui no bairro que na minha casa.

M- Exato... e sabendo isso, tendo vivido cá e continuar a vir cá, como é que se sente quando, quando ouve... às

vezes há uma ideia um bocadinho...

N- Errada do bairro...

M- Errada, não é? Bastante...

N- Sim, as pessoas têm que vir aqui para ver. Por acaso ainda hoje estava a conversar com o senhor do talho, o

rapaz do talho, e ele estava a dizer que ele antigamente tinha receio de vir aqui porque... As coisas que ele ouvia lá fora...

Por isso é que as pessoas têm de ver para crer. Ele disse que hoje entra aqui a qualquer hora, qualquer hora que a gente

pede-lhe uma encomenda, ele está sempre pronto a vir, porque ele sente-se bem, e as pessoas tratam-lhe bem e ajudam-no

às vezes a estacionar o carro e diz assim: ‘Olha, chega mais para ai que ali tem um lugar para estacionares!’ ou ‘Vai mais

pra trás’ ou isso ou aquilo. Mesmo os jovens fazem isso e ele já sente que a ideia que tinha é completamente diferente.

M- Errada...

N- Às vezes é a imagem que passam para fora, não é do bairro...

M- Exato.

N- O bairro não é nada disso que as pessoas dizem, por isso é que as pessoas têm de vir aqui para ver o bairro e as

pessoas que vivem aqui no bairro.

M- Para conhecer...

N- Nós não somos nenhum bicho papão!

M- Exatamente , mas por isso é que eu fiquei tão interessada em conhecer melhor as pessoas do bairro. O desenho

é um bocadinho a minha forma de comunicar, digamos de transmissão, essa realidade que eu pessoalmente também não

conhecia... mas sempre tive...

N- Curiosidade.

M- Curiosidade de conhecer.

N- É mesmo o trabalho que o Moinho faz para a comunidade, é um trabalho muito interessante, o Moinho é o pilar

da Cova da Moura, mesmo.

M- Pois foi também de certeza muito impulsionador!

N- Sim de muita coisa no bairro.

M- De muita coisa no bairro... e... Se agora pudesse, gostava de voltar a viver em Cabo Verde?

N- Viver lá? Não sei... Não sei, que ainda tenho uma menina pequenina em casa e é difícil para ela, mas... De férias

tudo bem, mas viver viver não sei...

M- Viver mesmo...

N- São muitos anos fora, não sei... Férias ainda vá que não vá, agora viver...

M- Era complicado.

N- Era... mas eu gosto, é o meu pais, é a minha terra. Gosto...

M- Claro.

N- Gosto... Gosto e tenho lá muita família, muita família mesmo.

M- Pois, também é por isso que eu pergunto. Grande parte das famílias de muita gente que foi ficando por cá

contínua a viver longe e por isso não têm a oportunidade de os ver com tanta frequência...

N- Eu tenho lá as minhas primas, elas vêm de vez em quando, tenho o meu tio, ele também vem, as saudades não

assim muitas... são sempre saudades não é? Mas não assim tantas porque a gente vai... E hoje em dia com Facebook e com

essas coisas todas (risos) a gente vai estar sempre em contacto.

M- Sim isso é verdade.

N- Mas para viver lá era um bocadinho difícil já. Pra já não... Talvez com a reforma, se me derem a reforma, pode

ser...

(Risos)

M- E fez a escola cá?

N- Fiz lá e cá. Também fui mãe muito cedo, não deu para concluir estudos nenhuns. É que eu fui mãe aos 16 anos.

M- 16... Cedo... Mas gostava de ter podido estudar mais?

N- Hum... Então, depois nós tivemos oportunidade aqui na associação de fazer aquilo das novas oportunidades, fiz

o 9.º ano. Se eu quisesse fazer mais tinha feito, como ainda nos dão essas oportunidades... mas não...

M- Já não... Mas há assim alguma coisa que gostava de poder ainda concretizar?

N- Gostava de concretizar... Gostava de ir aos Estados Unidos...

M- Isso era engraçado

N- A gente íamos aos Estado Unidos com o Kola, íamos..

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M- Íamos já!

(risos)

N- O Rui também está sempre pronto a ir a todo o lado.

(risos)

M- Nice, para mim é essencial se for falando... Às vezes perco-me um bocadinho mas a Nice pode continuar a falar

que eu vou ouvindo, aliás eu agradeço.

N- A cozinha, por exemplo, é um núcleo muito difícil porque nos estamos muito expostas la na cozinha. Nós

diariamente confecionamos à volta de 600 refeições. Temos pequenos-almoços, temos almoços, lanches e jantares para a

casa toda. Temos também o projeto de cantinas sociais, damos refeições a 110 pessoas diárias.

M- Hum-hum.

N- Chega a sexta-feira nós temos de confecionar para 3 dias, sexta, sábado e domingo. E... na cozinha somos só

quarto, duas cozinheiras e duas ajudantes, mas eu costumo dizer nos somos mulheres de garras porque para segurar aquelas

panelas e segurar mesmo as pessoas diariamente é um bocado difícil, mas vamos... hum... Deitando as coisas para trás

porque é uma coisa que nós gostamos de fazer. Todas lá na cozinha, nós gostamos todas do que fazemos. E gostamos da

casa, do ambiente, dos colegas, temos um bom ambiente. É assim um bocado puxado, mas a gente estamos aqui, temos

amor àquilo que fazemos... pronto... Essa coisa das cantinas sociais não é brincadeira, às vezes as pessoas chegam aqui

com montes de problema e nós temos que estar a tentar entender, a tentar não entrar, pronto falar com a pessoa, porque às

vezes a pessoa chega aqui, nós temos um horário não é? A refeição é servida de x a x horas, só que às vezes as pessoas

chegam aqui e nós temos que abrir exceção porque é a única refeição que têm. É o que eles vêm buscar aqui na associação.

M- São só pessoas que vivem aqui?

N- Não só, temos pessoas da Amadora, de Alfragide...

M- hum...

N- Não só...

M- Pois deve ser um trabalho que coloca em contacto com uma realidade um bocado difícil.

N- A gente cozinha até dizer chega.

M- Também é bom sentir que se consegue de certa forma ajudar.

N- Sim, ser útil.

M- Um bocadinho pelas pessoas, não é?

N- Sim, nós o que fazemos, fazemos com gosto, gostamos daquilo que fazemos, isso não haja dúvida. Senão

também não ficava cá tanto tempo! (risos) A gente fica na paródia, uma conversa daqui, uma conversa dali e quando

damos por isso já é de noite.

(pausa)

O Kola, como vocês sabem, é património imaterial em Portugal e o Kola tem servido muito para projetar o bairro

em si. Este ano realizou-se um coloquio, há muita gente que não percebia o que é que era o Kola, o que é que quer dizer o

Kola, o que significa o Kola, e esse coloquio serviu pra isso, esclareceu muita coisa e o Kola tem ajudado muito a projetar

o bairro. Assim como o batuque também, através dos convites que são feitos, as pessoas tomam conhecimento dos grupos

que existem e não só o Kola e não só o batuque, porque nós temos também aqui grupos de jovens, temos músicos, temos

dançarinos...

M- Pois, há bocado as meninas estavam a ensaiar.

N- Sim, estavam no ensaio sim. Agora para o festival que nós temos, o festival da juventude, agora do dia 21 a dia

25, e a nível cultural, os grupos têm servido muito para isso, para dar outra imagem do bairro e fazer uma ligação mas

aprofundada com a comunidade fora do bairro. Portanto este ano nós fizemos, na festa do Kola, fizemos o festival da

cachupa. Isso serviu para trazer pessoas aqui. Também temos o projeto Sabura que orienta o turismo na Cova da Moura,

traz muita gente a conhecer o bairro, jovens de faculdades... Seniores, pessoas de faculdade assim já mais de idade, tudo

vem aqui visitar o bairro. E as pessoas quando saem daqui vão com uma ideia completamente diferente do que quando

chegam aqui

M- Acha que de alguma forma essa imagem também mudou ao longo dos anos, um bocadinho? Que hoje em dia as

pessoas estão um bocadinho mais abertas?

N- Mais abertas... Sim mudou, mudou. O Moinho contribuiu muito para isso. Mudou, mudou.

Há sempre uma coisinha aqui uma coisinha aqui, mas às vezes as pessoas fazem mais do que aquilo é, como um

problema que houve aqui há tempos, as pessoas fazem mais do que aquilo que é.. mas... o bairro tem vindo a melhorar

muito mesmo, mesmo a relação aqui com as pessoas, mesmo dentro do bairro, tem servido muito para isso.

Ainda agora, amanha o batuque vai atuar no CCB

M- Ah é no CCB!

N- No CCB. O Kola teve a semana passada nas festas da comemoração da independência do Cabo Verde, no

Seixal. O Kola vai a África do Sul nas festas lá.

M- A Nice está em algum desses grupos?

N- O Kola.

M- Está no Kola! É também uma maneira de se manterem vivas as tradições.

N- E tentar passar aos mais jovens, sim, isso é que a gente tenta passar aos nossos filhos, aos nossos netos.

M- Porque existe toda uma geração de pessoas que já nasceram cá e que não estão em contato, se calhar...

N- Mas nos grupos todos têm avós, que tem netos, por exemplo no Kola temos a Isadora que tem os netos com ela

no grupo, no Batuque também tem avós e netas. Pronto, a gente tenta sempre passar as nossas tradições para não deixarem

cair, não deixar morrer. Estamos longe da terra...

M- Exato...

N- E esses convívios servem mesmo para isso.

M- Sim, eu acho que é importante, eu gostei imenso de estar cá no Kola, nunca tinha vindo. E acho que é uma

experiencia que qualquer pessoa ia gostar de ter.

N- É uma festa, muita alegria, tem muita cor.

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M- Mesmo!

N- Muito barulho! (risos) Mas é uma festa linda. Agora tem que ir a Cabo Verde ver o Kola em Cabo Verde.

M- Adorava... (risos) Os seu filhos também participaram quando eram mais pequeninos?

N- A minha mais pequenina ainda participou as outras já estão crescidas, já não...

M- Já não...

N- Mas a minha mais pequenina ainda participou.

(pausa)

N- Cachupa refogada é cachupa de um dia pró outro, que a gente tenta tirar o máximo do caldo. Fazemos um

refogado de cebola e azeite e depois pomos lá a cachupa a andar à volta. Geralmente acompanhamos com ovo e linguiça.

M- Pois, tinha ovo.

N- É muito bom. Cachupa de cevada é muito boa, eu fiz pró coloquio, não sobrou nem um bocadinho. O pessoal

adorou!

M- Ah! Isso é que era cachupa de cevada!

N- Foste ao coloquio?

M- Sim, eu estava lá no coloquio.

N- Comeste a cachupa?

M- Estava divinal!

N- Cachupa de cevada é mais leve que o milho. É muito bom.

M- Eu comi, podia ter comido mais, mas tive que pedir um tupperware para levar para casa, não consegui comer

tudo

N- Nós na altura do Kola fazemos 7 panelas de cachupa, todos os anos aumenta uma panela.

(risos) A noite toda a fazer comida desde manha, e eu geralmente não costumo ir a casa, fico sempre aqui.

M- Durante a noite toda pra fazer cachupa!

N- Sim e nessa altura do coloquio fiquei quinta pra sexta, sexta para sábado, aqui no Moinho sozinha.

M- Sozinha a fazer cachupa?

N- Muito milho...

M- Tem assim alguma receita secreta?

N- Não...

M- Então tem de me ensinar a fazer.

N- Estão a tentar fazer que a cachupa entre no recorde, vou fazer agora este fim-de-semana em Cabo Verde, ver se

entra no Guiness. É de sábado para domingo. Muita cachupa.

M- Muita cachupa .. (riso)

N- Geralmente é na Praia que lá é que é a capital, lá é que eles fazem tudo...

(pausa)

M- E a Nice já está habituada aqui a ser usada como cobaia nestes projetos?

(risos)

N- Ah, eu gosto, eu gosto.

M- Isso é que é, pode ser também uma boa maneira de falar um pouco...

N- Sim, para falar um bocadinho sobre mim.

M- É sempre bom poder contar.

N- Gosto.

(pausa)

M- Tem assim algum episodio que tenha sido marcante que me possa contar?

N- Na associação, ou no bairro?

M- No bairro, na sua vida...

N- No bairro não... Todas as situações que aconteceram no bairro aqui comigo foram marcantes na minha vida.

M- Pois, às vezes assim do nada é um bocado difícil...

N- Para mim, marcante é o facto de pertencer aqui à associação, essa família grande. Deu uma volta muito grande

na minha vida, me deu muitas oportunidades, ter a minha casa, criar os meus filhos, ter um emprego estável. E tenho muito

orgulho em pertencer aqui a essa família

M- O que é que fazia antes de trabalhar no Moinho?

N- Trabalhei em restaurantes, limpeza... Houve uma altura em que eu tinha. Não sei se já viu aqui no bairro as

pessoas a venderem asas de frango?

M- Ah sim, sim.

N- Também fazia isso, numa altura que estava sem trabalho, metia o grelhador na rua e pronto (riso). Passou assim

alguns tempos, um bocadinho mais complicados... Depois chamaram, para aqui tenho estado aqui. A Lieve chamou, tem

sido uma pessoa muito importante na minha vida, uma boa relação.

M- Ela parece-me genuinamente... muito... empenhada...

N- Uma mãe, uma amiga...

(pausa)

(pessoa ao fundo – está mais elegante ai, desculpa lá, estás a favorece-la, parece que tem menos 20 anos! Está

bonita)

M- Eu estou a captar a essencial!

Sim por acaso parece um bocadinho mais nova mas eu não há problema. Não sei, eu acho que o desenho não tem

de ser...

- Isso é que é um espetáculo

M- Não tem de ser realista. Acho que a experiencia é mais importante do que se é igual ou não?

(pausa)

A Nice também faz parte da direção?

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N- Não, já fiz, da anterior direção.

M- Pois foi, mudou recentemente não é?

N- Sim, em janeiro.

M- Também é bom, ajudam em frentes muitos diferentes não é? Vocês atuam um bocadinho em todas as direções,

também ajudam a fazer as coisas financeiras e.. não é?

N- Não, eu não. Eu só faço o trabalho da cozinha e do economato que é tudo o que é compras, sou eu que faço a

gestão disso.

M- Portanto tem que fazer as compras para tudo o que...

N- Tenho que calcular quantos kilos de arroz, quantos litros de leite, isso tudo.

M- Não fiz os óculos não sei como preferia...

N- Não, está bom, sem óculos está bom.

M- Ok, então se calhar pode começar por me dizer o seu nome, a sua idade...

T- Sou o Teodoro Ribeiros, tenho 61 anos de idade, reformado.

M- É reformado?

T- Reformado por invalidez.

M- O que é que fazia?

T- Pedreiro, pedreiro da construção civil. Ah, tive muitos anos a trabalhar na construção civil, por isso que fui

desgastando a coluna, fui submetido a uma operação da coluna e é por isso que já não dava, por invalidez.

M - Já não conseguia mais.

T- Sim. Não conseguia mais pelo menos na minha área não. E, e pronto, ah... Sou um morador daqui da Cova da

Moura há muitos anos, mesmo há muitos anos.

M- Muitos anos, desde quando?

T- Eu comecei a fazer a casa aqui em 1977, final de 77.

M- Mesmo muitos anos...

T- Hum?

M- Mesmo muitos anos.

T- Mesmo muito anos... Vou no próximo dia 6 do mês de agosto fazer 40 anos cá em Portugal. Que eu vim em

1975 para Portugal. Vim com os meus pais e irmão. Infelizmente eles já não estão entre nós agora e eu continuei aqui. Já

fiz parte da comissão de moradores em 78/79 ate 80 e tal, foi 5 anos praticamente. Depois continuei a trabalhar e sempre

como morador do bairro e um dia... Eu andava sempre ai... A ver o trabalho da associação da juventude, mas sempre de

lado e a perceber o trabalho e a beneficência da associação. Então chegou um dia que não deu para ficar mais de fora da

associação, talvez o senhor Rui tenha um bocadinho dedo nisso...

(riso)

Fomos a Espanha, fomos a Espanha participar no filme de fados de Carlos Saura e a partir desse momento fiquei

dentro do Kola, dentro do grupo Kola e da associação e tenho desenvolvido, eu acho, que um bom trabalho dentro da

associação e mesmo para os moradores. Eu gosto de ajudar as pessoas e essa convivência para mim ainda é melhor

M- O facto de estar mesmo em contacta com as pessoas que esta a ajudar...

T- Sim, sim, sim. Isso é uma grande alegria que é inimaginável... Tenho saído da minha casa para ir a segurança

social levar o processo das pessoas que não conseguem lá ir. As pessoas não têm mobilidade nem condições para lá ir. Ah,

muitas pessoas dizem: ‘epá mas essa pessoa tinha um neto que podia la ir, afinal isso é para pedir alguma ajuda para o neto

e tudo, porque é que o neto não vai’. Eu digo, esse problema não é meu. Eu sei que a pessoa em questão não pode lá ir, se

ela tem familiares que podem ir para mim não me interessa, o que interessa é aquilo que estou a fazer e vou quantas vezes

for preciso, é quantas vezes vou. Porque nós quando começamos a fazer uma coisa que estamos a fazer da boa vontade,

começamos a nunca mais conseguir parar e cada vez que vamos alastrando o nosso trabalho, a nossa boa-fé, vamos

ganhando sabedoria, experiencia e tudo porque cada dia que vivemos aqui dentro da associação estamos a ganhar. Isto é

uma escola, estamos a aprender, cada dia mais, aprendemos com uma criança, aprendemos com um adolescente e

aprendemos com um idoso. Estamos sempre em aprendizagem. O meu intuito de atualizar essa aprendizagem é passar para

outras, a minha experiencia, para outras pessoas...

M- Que vêm a seguir...

T- Sim, que vêm a seguir, que é para, enfim, que é para a gente servir a todos e ser bem servidos. Isso é... Isso é

uma coisa que eu faço mesmo de coração, é incansável, que eu nunca canso, quando estou a fazer essas coisas nunca me

canso. Posso sair dum lado entrar do outro, sempre a ajudar as pessoas. Já têm batido a porta às vezes a alto da noite,

precisam de ajuda, eu deixo duas crianças lá ao cuidado das outras pessoas em casa, mas vou ajudar essa pessoa. E não me

interessa na altura se ela não passou por um vizinho ou um compadre ou uma comadre mais próximo que pudesse ajudar

para ela não incomodar. Eu sinto muita alegria e satisfação em poder ajudar. Só fico revoltado é se é alguma coisa que não

consigo ajudar, isso é que fico a remoer, eu devia, devia ter prestado atenção mais nesta área para eu saber distinguir

aquela coisa toda. Porque cada um, nós temos a nossa boa vontade e temos a sabedoria, por exemplo se eu tivesse andado

mais tempo na escola, que era impossível naquele tempo, eu tive 4ª classe, mas se fosse agora se eu tivesse o 12.º por

exemplo eu teria expandido muito mais, eu tinha ajudado muito mais pessoas, mais áreas e tudo.

M- Gostava?

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T- Sim, sim. Eu gostava de ter... Mas é que como temos isso muito bem estruturado dentro da associação, nós

temos esse método de tandem de trabalhar com tandem, vem ajudar bastante. Esse método em tandem foi a melhor que a

associação podia ter feito.

M- E em Cabo Verde... É de onde, aliás?

T- Eu venho de Cabo Verde, da ilha de São Nicolau.

M- Veio de lá com quantos anos?

T- Nasci em São Nicolau. Nasci em ilha do Sal, quando vim da ilha do Sal para Portugal tinha 21 anos

M- 21..

T- Sim

M- Era muito novo

T- Sim, sim, eu vim fazer 21 anos aqui. Cheguei, naquela altura estava de patas pró ar, porque os refugiados, os

retornados, tinham vindo todos e o trabalho que havia era muito pouco, também o país estava mesmo em definição, não

havia um governo fixo, essa coisa toda. Complicou-se um bocado, mas lá consegui mais tarde arranjar qualquer coisa, lá

para os lados de Sines, Alentejo, e a minha irmã também passou a ir no centro de formação profissional, naquela altura que

era no parque Guimarães Delfim na Amadora, fez uma inscrição para mim, eu tive a sorte que fui chamado juntamente

com pessoas que estavam há dois anos e meio à espera. Tirei o curso de formação profissional, de pedreiro como era novo,

prestei atenção, sai com distinção, tive um emprego logo, oferta de um emprego da Câmara de Oeiras, porque os primeiros

que ficassem melhor classificados a Câmara de Oeiras dava o emprego direto, mas nessa altura rejeitei por causa da

habitação. Eu estava na Amadora, ia trabalhar toda a coisa, não aceitei e naquela altura a habitação era caríssima. Minha

irmã tinha um grande flagelo, ganhava quatro contos e quinhentos e tinha que pagar quatro contos por quartos e para os

meus pais aquilo não estava a dar. Um dia, a visitar uma pessoa no bairro 6 de Maio, uma pessoa amiga, ela disse: ‘epá na

Cova da Moura estão a arranjar terreno’ e eu disse ‘ai é?’. Fui ver, realmente lá conseguimos. Nessa altura já tinha saído da

formação profissional. Eu vim, comprei uma barraca ai, havia umas pessoas que eu conhecia, coincidência, conheci essas

pessoas na ilha do Sal e eles iam para os Açores e queriam desfazer-se da barraca. Lá fizeram o preço, compramos a

barraca, compramos algum material para termos dentro da barraca e fechamos a coisa, enchemos bidões de água para

termos na barraca porque naquela altura havia três chafariz ai, onde a gente ia buscar as águas, mas era uma grande

dificuldade porque a pessoa ia tinha que ficar à espera e na fila e tudo, e só à noite é que eu encheria os bidões da água e

assim fomos fazendo. Começamos a fazer a casa numa sexta-feira, onze e meia passou lá a Republicana, a GNR, que

andava lá no bairro para implicar com as pessoas que estavam a fazer casas. Assim que eles se foram embora tínhamos

combinado com a malta e começamos a fazer a nossa casa. Segunda-feira quando regressaram ficaram de boca aberta que

eu já lá estava dentro de casa, com um rádio daqueles com música a tocar e tudo, já la estava a morar. Até utilizaram a

expressão, assim, numa mais esqueci-me dessa, um olhou pro outro: ‘esses Cabo-verdianos são lixados, matam e esfolam,

mas para trabalhar nunca vi, sexta-feira passámos aqui não tinha nada e hoje já têm uma casa com música.’ Aquilo

marcou-me, aquela frase que ele disse. Ele falou um bocadinho sobre o especto que tinham de como o Cabo-verdiano se

portava, mas deu também um elogio de admiração, de como é que foi possível. E assim foi... Tive de pagar uma coima,

porque naquela altura, a gente tinha de pagar aos senhores do expresso de coima, era uns três contos e duzentos e outros

oito contos e quinhentos. Ah, na altura eu preparei para pagar so os três contos e duzentos, até era a nota de Santo António,

aquela nota de Santo António daquela altura, eu lembro-me de ver. Arranjei três contos e duzentos, tudo em nota de vinte.

Mas como a casa tinha mais de um metro de comprido eu sabia que a multa era de oito contos e quinhentos e então trouxe

os três contos e duzentos e a polícia disse, a GNR disse: ‘não, essa casa é muito grande, a multa é de oito contos e

quinhentos’. Eu disse ‘oh senhor guarda, desculpe lá, eu pensei que fossem três contos e duzentos, se fosse três contos e

duzentos eu pagava logo aqui, agora, faz-me diferença mas eu pago, agora oito contos e quinhentos não posso pagar, tem

de mandar para tribunal’. E enquanto eles estão assim longe, eu estou ai a contar o dinheiro, mas a olhar assim de lado

para eles, até que eles caíram naquilo que eu queria e aceitaram os três contos e duzentos, passaram um comprovativo

como eu tinha sido autuado e continuamos a nossa vida... Quinze dias depois, no sábado, nós aí com a malta, aquilo era

mais uma convivência do que trabalho, aí nós a fazer uma massada, aparece a GNR. Eles não costumavam vir sábado mas

vieram aquele sábado. Eu disse, ‘eu já fui autuado, já paguei a multa’. ‘E quanto pagou?’ ‘Três contos e duzentos’. ‘Não

pode ser! Isso é multa para oito contos e quinhentos? E coiso, lá-lá-lá, e quando eles estão a teimar comigo, ali a medir e

tudo, chega um rapaz de mota, um rapaz branco, de mota, para, volta para eles e disse ‘oh colegas vão ai para outro lado,

vão ai para outro lado porque isso já foi meu.’ Era um militar daqueles da GNR, já vinha com o recibo, o comprovativo

que tinha entrado dinheiro na Câmara, nos bombeiros, porque aquele dinheiro é destinado a três secções disso. Na altura

foi tal alegria, os gajos ainda estavam lá, tirei cinquenta escudos do meu bolso e eu disse ao senhor toma para beber um

cafezinho. Ele ficou todo satisfeito, eles ficaram ainda mais danados, mas já não puderam fazer nada. Isso é só para ver o

que a gente passava naquela. Sem estradas, os carros não subiam cá em cima, era lamaçal, porque não havia ruas, não

havia nada, mas cada dia, graças a uma boa ideia a um bom empenho, formamos a comissão de moradores e lá começamos

a bater as portas a pedir a nossa necessidade e tudo. Houve um senhor da altura que nos deu uma grande ajuda, que era o

doutor Andrade Neves, ex-presidente da Câmara de Oeiras. Era o dono de um jornal da Amadora, salvo erro, esse senhor

foi impecável connosco. Chegamos a acarreta-lo no braço porque vinha para uma reunião e chovia muito lá na rua

principal e lá o levamos, mas não nos arrependemos. As portas que não nos abriu, indicou-nos a quem nos devíamos

dirigir. Dentro de pouco tempo foi um triunfo que tivemos aqui no bairro. Ah, só que a gente queria começar o

saneamento, a ligação de esgotos e tudo, não havia verba, e então ah, conseguimos fazer isso. Cada morador que fizesse

uma ficha de inscrição na comissão de moradores davam dois contos e quinhentos, era um contributo de dois contos e

quinhentos mas podia pagar quinhentos, quinhentos, quinhentos. Através desses dois contos e quinhentos tinha direito a

ligação da água em sua casa. Essa ligação da água custaria dois contos quinhentos e cinquenta e cinco mas se fizer a

inscrição e desse esse donativo, aquela ligação era de graça. Então assim fizemos, muitos moradores aderiram...

M- Aderiram.

T- Arranjámos, naquela altura, eu lembro-me quando foi o ajuste de contas, cento e catorze mil e quinhentos

escudos. Começámos a obra, então a Junta de Freguesia, a Câmara deu a máquina, deu o material. Assim começámos a

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fazer o esgoto cá no bairro. E pronto, quando o dinheiro acabou, a Junta e a Câmara continuou aquilo que a gente tinha

feito.

M- Começado...

T- Sim, sim. Mas isso foi logo no início, agora graças a deus já temos, já temos ai tudo. A única ameaça sempre é a

Câmara, que nos ameaça sempre.

M- Ainda recebem muitas ameaças?

T- Sim, sim, é sempre, porque nós notamos quando há boa vontade e quando não há. Com boa vontade já podia ter

sido a qualificação do bairro, e tudo, mas isso vai arrastando vai arrastando. Nem sabemos quando, quando é que será.

Porque agora alegam que não há verba, a Câmara não tem dinheiro para nada, e quando foi a altura do concurso público,

até ali fez um comunicado que aceitaria o resultado do concurso porque era para não arrastar mais cinco dez anos nesse

impasse. Porque houve um concurso, era constituído por cinco juízes, três deles pertenciam a camara...

M- Pois...

T- Por isso a gente nunca podia se safar. Bem, para nós era a história da arquitetura, fizeram um bom orçamento,

estava igual àquele do Vasco da Cunha que ganhou, que ganhou o concurso. Era para fazer a obra, que estava para

começar, em que a Câmara pensava, nessa altura, tirar sessenta e um por cento do bairro. A restruturação que fizesse, quer

dizer, ia tirando até que ficava sem nada, porque quem tira sessenta e um por cento hoje, deixa os trinta e nove, mais tarde

diz ‘não, eu tirei aquele, deixa eu tirar o resto’, e assim deitava o bairro abaixo. Mas o tiro deve ter saído à Câmara pela

culatra, é mesmo a falar assim, deve ser, deve ser isso, porque mesmo esse Vasco da Cunha que ganhou o concurso, a

tentar fazer a obra a tempo abriu insolvência. Não sabemos, voltamos à estaca zero, estamos outra vez na estaca zero.

Temos a comissão de bairro ai a trabalhar, a fazer desenvolvimento, a fazer tudo, mas nessa altura não sabemos, não

sabemos mais nada... Disso só esperamos que algum dia haja dinheiro e bom senso da parte dos governantes para se

lembrarem que esse é um povo, é um povo trabalhador.

M- Sim...

T- Todos nós viemos naquele tempo para fazer a nossa casa, para desenrascar aqui. Somos um povo trabalhador e

não pensamos só em nós. Estamos a pensar em nós e no nosso futuro porque, se eu conseguir com muito esforço fazer a

minha casita, eu estou tranquilo porque se se mantiver de pé, quando eu morrer, ficará para os meus filhos.

M- Ficará para...

T- Ficará para os meus filhos, isso é que... é assim...

M- Sim, até agora só tenho conhecido histórias de pessoas com uma força muito... especial.

T- Sim, sim. Porque na Cova da Moura, nós... Não, não me vejo a morar em mais lado nenhum, em lado nenhum.

Eu podia agora, faça de conta que agora me saía o euro milhões, pensa que iria comprar ai um apartamento noutro lado

para sair da Cova da Moura? Não, não. Não, aqui é que eu fico. É aqui que falamos a mesma língua.

M- Hum-hum (riso)

T- É aqui que nos respeitamos uns aos outros. Aqui sou respeitado por todos, todos mesmo em geral. Porque eu

tenho dedicado a todos, a todos, esses anos da minha vida. Eu não tenho receio de sair aqui ou acolá, para todo o lado que

eu saio, saio com cabeça levantada porque sempre adquiri, sempre... Manter o meu respeito e respeitar a todos, grande,

pequeno, sem olhar a quem seja. E essa é uma mensagem que passo sempre para os meus filhos. Muitas vezes vêm trazer a

minha filha aqui a casa, tem três anos e tal, vou passar por um vizinho, digo a ela, ‘cumprimenta o vizinho’ e ela tem de

cumprimentar.

M- E ela cumprimenta...

T- Porque é assim, é do princípio que a gente tem que os ensinar... Sim, sim...

M- Pois, eu não cheguei a perguntar. Tem... tem filhos, verdade?

T- Tenho, tenho.

M- Quantos filhos é que tem?

T- Ah! Nessa altura estou com cinco.

M- Cinco filhos...

T- Dois rapazes e três raparigas. Tem, a mais nova nasceu a 20 de março de 2014.

M- É novita!

(riso)

T- Eu tenho uma que é da idade (a falar para Rui Simões)... sim. não, não a sua filha é mais velha

(Rui – tem sete anos)

T- Tem sete. Eu tenho com a Alice, tenho essas duas pequeninas, que é uma que nasceu a 5 de Novembro de 2011,

e esta Angélica que nasceu agora a 20 de Março de 2014.

(voz ao fundo – e eu nasci a vinte de Março também)

Ah, de 20 de Março também. É do mesmo dia, mesmo dia dela. Mas é uma alegria. Eu nos outros filhos que eu

tive, eu sei que eles eram meus filhos mas eu agora notei que eu não fui assim, a cuidar, não fui pai. Não fui pai, porque

quem cuidava era a mulher, eu ia trabalhar, quem cuidava era a mulher. Mas agora que eu aprendi a mudar fralda, eu

aprendi a estar atento durante a noite porque se é preciso e tudo, e quando ela vem ‘oh papá, oh pai’, essa coisa toda, é uma

grande alegria. Isso é, não... Pronto, mesmo que a gente queira explicar não conseguimos.

M- Mas é bom, ter, ter...

T- Sim é bom, isso é uma experiencia que devia passar pelo menos uma vez. Se possível, porque dá-nos uma

vontade, uma vontade ca dentro, é uma experiencia. Mesmo que a gente já tenha filhos porque, ora o meu filho mais velho

nasceu a 3 de Setembro de 82.

M- Ah.

T- Imagina que é uma diferença muito grande. É esse que eu disse que não acompanhei tanto, não fui pai. Estou a

ser pai e acompanhante dessa aí, aí é que eu fiquei a saber o que é, o que é ter filho nessa idade. Cuidar deles... Pronto não,

não há... Não há palavra que dê para descrever a sensação quando eles têm alegria e tudo...

M- É bom que tenha percebido isso a tempo..

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T- Não, não... Eu percebi isso. Eu percebi isso, a primeira hora quando nasceu a minha filha Vânia, eu percebi logo

isso. Percebi que pronto, ia mudar a minha vida, ia mudar a minha mentalidade de como via o que é que era ser pai. E a

partir desse momento eu mudei a minha mentalidade do que é que é pai, não é só chegar, comprar as coisas e deixar e casa

para usar e não faltar nada. Mas é estares atento, dar aquele abraço quando a criança chorar e saber o que é que a criança

tem e essa coisa toda. Claro, que nem todos têm a sorte que eu tive, porque eu estou reformado, estou em casa, não tenho

que levantar cedo para ir trabalhar. Talvez se eu tivesse que fazer isso, mesmo que eu quisesse eu já não podia ter esse

grande prazer e esses grandes momentos.

M- Pois isso também é verdade.

T- Tenho vagar para isso, e pronto, por isso é que eu tenho reparado isso tudo e é muito bom, é muito bom mesmo.

(riso)

M- Sim senhora... E em relação à imagem que muita gente ainda tem em relação a Cova da Moura...

T- Sim isso tem... Por mais, por mais que nós, tentemos fazer aqui um ótimo trabalho, um ótimo trabalho, essa

imagem é uma imagem que dificilmente sairá. Porque há sempre, mesmo se vivermos aqui na passividade, se fizermos de

tudo, de tudo, para ser mais correto, há sempre um de fora que vem cá para poder puxar essa dita Cova da Moura. Não está

a ver? Há muito tempo que não acontecia nada aqui porque eles (a polícia) já vêm cá, uma conversinha daqui uma

conversinha dali, eles com eles, não é caso de policia, não é caso de ferimento, não é caso de nada. Mas eles próprios, a

própria polícia, o que quer que tenham feito aí, ultimamente, é só para denegrir a imagem da Cova da Moura.

M- Da cova da moura...

T- Agora, ah... Como as coisas foram esclarecidas, entre ambos... Como ainda está tudo em entremeio de

investigação, em conclusão da investigação. Mas pelo menos houve um resultado para os agentes que cometeram isso, a

suspensão por 90 ou 120 dia, a expulsão também do Comandante deles, isso foi já uma boa coisa, mas ai é que está, aquela

imagem, aquela má imagem da altura do acontecimento, isso ficará na memória de muitas pessoas. Até essas pessoas

perceberem que foram as autoridades que provocaram aquilo, que os moradores não tiveram nada a ver... Dizem não,

aquilo é na Cova da Moura, é na Cova da Moura, pronto. Essa imagem é um bocadinho... Por mais coisas boas que a gente

faça aqui, há pessoas lá fora que ficarão com essa imagem sempre... Mesmo aqui na Buraca. Aquelas pessoas que não

gostam mesmo de nós, que nos querem ver pelas costas, essas pessoas nunca acreditam que nós somos um povo

trabalhador, um povo pacífico, que quer o bem para todos. Na memória, eles não sabem, nunca vêm. Porque por mais que

a gente faça bem eles nunca, nunca vão analisar o que estamos a fazer... Mas também isso não interessa, para nós não

interessa porque nós estamos a fazer bem...

M- Sabem que estão de consciência tranquila.

T- ...Estamos com consciência tranquila, porque temos tentado mesmo em todas as áreas, toda a malta ser servida.

Por isso é que temos aqui muita coisa boa. Estamos a falar dessa associação, como houve um comentário que eu ouvi, num

filme, ah pois, de uma pessoa daí mesmo da equipa, de um morador, a dizer que a associação da juventude é o coração da

cova da moura. E ele disse isso e disse mesmo bem. Ele não esta presente agora, quem falou isso não está agora na Cova

da Moura, ele está ausente, mas ele quando falou, falou isso. Se não fosse a Associação Cultural Moinho da Juventude, não

sei se eu estaria cá, se a minha casa estava cá. Porque lutamos com unha e dente, a Associação Cultural Moinho da

Juventude não olha a quem para defender, para ajudar a todos. Temos ai a população, a cantina social que foi a melhor

coisa que podia existir. Pessoas que vêm, são aquelas pessoas que não têm condições para fazer uma refeição, pagando em

condições, mas aqui com a cantina social a pessoa leva a sua refeição, leva o comer e faz em casa. E tem outra coisa, na

associação, qualquer pessoa que chega lá em cima e que diz que está com fome, aquela pessoa não vai sair com fome, e

naquela altura ninguém vai perguntar se tens dinheiro para pagar a refeição. Não, não. O importante é aquela pessoa não

sair dai com fome. A pessoa tem que comer. Isso é um trabalho da Associação que, dentro mesmo da trave mestra da nossa

associação, está a persistência, isso tudo, temos que, temos que ajudar.

M- Ajudar.

T- Ajudar sempre as pessoas.

(pausa)

M- Acho isso ótimo.

T- Sim, sim.

M- Acho que o Moinho da Juventude é impressionante.

T- Sim, sim, é bem impressionante, é impressionante.

M- E acho fantástico que seja movido pelos próprios moradores e ter sido criado e ter sido continuado, passando de

geração em geração.

T- Exatamente, exatamente! Não quer dizer que os todos os moradores têm um raciocínio de um bem-haja que é

essa associação cá dentro do bairro. Mas não sei, nós não estamos muito interessados nesses moradores que não

conseguem fazer uma boa análise do trabalho de toda a associação.

M – Olá Jú. Podes-me dizer como é que te chamas e quantos anos é que tens e assim?

J – Chamo-me Júlia, tratam-me mais por Jú…tenho 37 anos, tenho 4 filhos, dois dos quais são gémeos, gémeas.

Vivo aqui na Cova da Moura já há vinte e poucos anos. Trabalho aqui na Associação, na área da cozinha, como auxiliar de

cozinha.

M – Hum-hum…e… quantos anos é que têm os teus filhos?

J - As gémeas têm seis, o Joel tem 10 e a Meggie tem 18 e tenho uma netinha, de dois anos.

M – E eles todos aqui também na Cova da Moura?

J – Sim. Vivem todos comigo.

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M – E…és casada?

J – Não!

M – Há quanto tempo é que vives na Cova da Moura?

J – Vinte, vinte anos.

M – Como é que vieste viver para cá?

J – Vim através duns amigos porque eu vivia no Rio de Mouro e eles falavam muito do bairro, até que um

dia…pronto…fugi de casa, mas não para vir viver aqui, não é? Pronto, não estava a gostar muito das coisas lá de casa e

fugi e vim parar para aqui. Mas já conhecia algumas pessoas que viviam cá! Por isso vim pr’aqui e também não tinha a

noção que havia assim tantos negros! Porque eu quando vim de Angola…eh…quase não saía! Era só mesmo Rio de

Mouro, a escola, que era ali, na área e não conhecia a outra parte de fora. Depois quando vim pr’aqui, disse, óh, tantos

negros! (risos). Fiquei contente!

M – Foi um bocadinho mais como estar em casa…se calhar?

J - Sim, sim! Que eu fiquei assim um bocadinho: ah! Aqui parece África! (risos) E elas disseram, ah nunca vieste

aqui? E eu disse, não, não conhecia…só elas falavam muito, mas conhecer mesmo…e prontos desde que vim estou aqui

até hoje, a viver!

M – E vieste de Angola com quantos anos?

J – Ah... Quinze.

M – Vieste com os teus pais?

J – Não! Vim com uma tia. Ela trouxe-me, ainda vivi com ela uns dois anos e pouco…e depois, pronto, eu queria

sair e ela sempre dizia que não, pronto, se calhar ela não estava a fazer mal, mas eu naquela altura era tão novinha…

achava que era mal… e fugi de casa. Fugi de casa; saí a primeira vez, não fui longe, depois a segunda vez saí até hoje!

M – Mas manténs contato com a tua tia?

J – Tenho, tenho! Sempre no Natal vou lá passar a tarde, só que ela está mais em Angola do que cá, mas eu criei os

meus primos que vivem lá no Rio de Mouro. E ela então todos os anos vem passar o Natal connosco, os miúdos, todos

nós…

M – E os teus pais, ficaram em Angola?

J – Não, faleceram quando eu era mais pequena…sim.

M – E tu costumas ir a Angola?

J – Não, desde que estou cá ainda não fui…

M -Nunca mais voltaste.

J – Tenho contato com o meu irmão, mais velho, de vez em quando falo com ele. O outro faleceu bem há pouco

tempo e…mas tenho falado com eles, com algumas tias, primos, assim…Gostaria de ir…

M – Gostavas de lá ir?

J – Sim…(risos)

M – Se pudesses, voltavas a viver em Angola?

J – Não! Gostaria de voltar um dia para rever os familiares, os amigos, mas para viver com os filhos, acho que é

um bocadinho complicado…

M – Pois…

J – Aquilo está bom pra uns…não é pra todos!

M – E aqui no bairro, já sentiste alguma vez que poderia haver alguma discriminação por parte das pessoas que não

conhecem o bairro? Sobre…sobre o bairro em si, sentes ou alguma vez sentiste que eras discriminada por viveres por

exemplo na Cova da Moura?

J – Pronto, as pessoas…tem pessoas que nunca vieram cá, mas têm uma noção muito…má do bairro e, pronto, eu

já ouvi a falarem, ‘ai, naquele bairro eu não entro, não! Ali é só confusão, selvagens, assim’…muitas das vezes eu já me

meti em conversas e disse assim, ‘porque é que não vai lá pessoalmente para ver?’ E já teve pessoas mesmo que tanto

falaram mal que vêm aqui e depois estão toda a hora aqui.

M – Pois!

J – Sim, estão toda a hora aí! Há uns que têm mesmo medo de vir. Que não querem, se vêm, tem que vir

acompanhado, avisar alguém daqui…eu tenho amigas também que dizem também que não gostam muito de vir aqui…mas

é aquela coisa, vêm, mas têm que andar sempre com alguém do bairro!

M – Hum!

J – Mas…assim discriminação, assim tão coiso, não!

M – Mas achas que esses medos têm algum fundamento? Achas que é mais ignorância do que…ou falta de

informação?

J – Sim, é falta de informação. Não digo que às vezes aqui o pessoal não porta mal, né? Às vezes portam mal…às

vezes, por tratarem mal uma pessoa, essa pessoa leva aquilo lá pra fora…e depois, pronto, ai outro dia, assaltaram um

jovem, fizeram isso, e as pessoas normalmente têm medo! Eu também tenho medo de ir certos bairros aqui…e também

dizem-me o mesmo, aqui ninguém vai-te fazer mal nenhum! (risos). Mas tenho medo! Já fui, já fui e não me fizeram nada,

não é? Mas, depende…

M – Pois, se calhar às vezes, também depende um bocadinho, lá está, de quem é que se conhece em determinados

sítios, mas…

J – Fogo! Mas eu muita das vezes fico triste…com… a maioria dos jovens que estão presos! Às vezes pergunto-

me, mas o que é que ele fez para estar aqui? Porque eu às vezes vou ver o meu companheiro e vejo muitos que já não estão

aqui no bairro!...E eu olho assim e digo, ‘pensava que este estivesse em Cabo Verde ou estivesse na França’…afinal está

tudo lá! Muitos mesmo, muitos mesmo! E eu pensava que a maioria deles estava no estrangeiro…

Eu não via um rapaz já há oito anos, pois eu vi-o, até estava assim muito grande. Fui, cumprimentei-o e disse, ‘eu

não sabia que tu estavas aqui preso! Pensava que estivesses em Luanda, na França’, ele disse, ‘não, já estou aqui…’. Ele

disse que já estava ali há nove anos ou quê…!

M – Nove anos?

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J – E não era só ele, são muitos! Às vezes, pronto, as pessoas dizem que eles fazem isto, fazem aquilo. Metade das

vezes também não estou na rua pra ver! Não sei! E às vezes um bocadinho, uma pessoa também já está habituada à rua

assim cheia, de jovens, de vez em quando vêm até cá cima…. Já não vejo e é triste!

M – E…o teu companheiro, portanto está preso também na…agora?

J – Está preso por outras razões…problemas de casa…violência doméstica, ele está mais preso por causa disso.

M – Mas tu estás com ele há muito tempo?

J – Sim. Ele é o pai das gémeas…se ele não tivesse…ao todo, a gente está pr’aí nove, nove anos juntos!

M – Mas ele está preso há muito tempo?

J – Três anos e tal.

M – Deve ser um bocadinho difícil, organizares tudo na tua família e, sozinha, e…

u – Já foi mais difícil! Mas olha…

M – Sentes que há aqui no bairro, bastante apoio?

J – (choro)

M – Desculpa se estou a puxar uns temas um bocado chatos… Queres parar um bocadinho?

Se quiseres podemos…

J - …As lágrimas quando começam a cair!...

M – Mas olha que ficas bonita a chorar (risos e fungadelas) és das poucas pessoas que eu conheço! (risos)

J – Já passou!

M – Já passou… Queres falar mais um bocadinho? Não te importas? Só um bocadinho! Ok! Podemos falar de

coisas mais…felizes, se quiseres… (risos) tipo…no apoio que as pessoas dão aqui no bairro, em situações se calhar um

bocadinho difíceis! O que me têm contado, o que eu tenho percebido até agora, é que é uma comunidade muito…

J – Sim…

M – Unida!

J – Sim, aqui é, aqui as pessoas são muito unidas. Pronto, eu vejo certas pessoas aqui que têm dificuldades e…se

bater à porta de um vizinho ou alguém que tenha um café…vai e pede ajuda, mesmo em questão de dinheiro, tem sempre

alguém que estende uma mão! E depois aqui no bairro, temos muitas pessoas que estão na cantina social e isso foi muito

bom pra muita gente! Que às vezes é mesmo só aquela refeição que vêm buscar aqui à Associação, prontos, há pessoas que

vêm buscar só uma comida, duas… nos fim-de-semanas levam mais, às sextas-feiras. Muitas das vezes há quem diz que

não chega porque comeram tudo no sábado! E é normal, não é? Se a gente tem fome, temos que comer! E prontos!

Também tem vindo cada vez mais gente, vindo pedindo ajuda ó Sr. Manel, o Assistente Social… Essa é uma parte muito

boa pra muita gente. Porque às vezes tinha pessoas que para tomar uma sopa tinha que fazer ou deitar um lixo! Há aqui

muita gente boa mas também, às vezes há umas que são boas mas exageram!

M – Exageram como?

J – Falar assim! Já sabe que aquela pessoa é assim…não precisa mais estar a enterrar ainda aquela pessoa! Eu não

gosto dessas coisas…

M – Mas… deves-te sentir bem, poder ajudar dalguma forma, pelo menos, como estás na cozinha, não é?

J - … Sim…

M - … Estás em contato…

J – Sim, sim! Porque às vezes vêm pessoas diretamente pra cozinha e perguntar, ai posso-me inscrever, posso já

levar comida hoje? E às vezes a gente vê que aquela pessoa quer mesmo e a gente… tem que ir primeiro falar com o Sr.

Manel, pra dar o nome, dar a autorização pra gente…pra gente dar…mas ficamos assim um bocadinho…com o coração…

M - …um bocadinho nas mãos…

J – Sim! Eu não posso, eu também preciso, não…ainda se alguém me pede um euro, dois euros, ainda vá que não

vá!

M – Mas…tu…aqui, na tua casa, a tua neta também vive contigo?

J – Vive. Nasceu prematura, agora…agora, não para! (risos)

M – Quantos meses é que ela tem? Quantos anos?

J – Já tem dois. Ela quando nasceu era tão pequenininha! Ficou na incubadora quase três meses!

M – Três meses!

J – Depois veio pra casa…Agora já tá crescida, só que não para, ela não para, só para quando está a dormir!

M – E a tua filha está a estudar ou…

J – Sim, está agora num curso profissional de cozinha

M – Ah, de cozinha!

J – Hum-hum!

M – Ficou com o bichinho… da mãe! Foi giro!

J – Ela queria ação educativa, mas depois trocou.

M – E estuda aqui…na Amadora?

J – Na Amadora, sim. Já esteve a fazer um estágio num hotel, em Lisboa e correu bem.

M - Achas que ela gostava de sair daqui da Cova da Moura ou de ficar cá e possivelmente até trabalhar contigo? Já

que está em cozinha?

J – Não sei…ela…o sonho dela, um dia, é mesmo conseguir um trabalho mesmo profissional e…ela primeiro

estava com ideias pra ir pra fora, mas agora diz que não. Diz que não porque ela vê que tem tias lá e dizem que… mesmo

na França, as pessoas têm aquela ilusão, não é bem assim!

M – Acham que é mais fácil…

J - Acham que é mais fácil, mas não é não! Há uns anos talvez fosse, mas agora, não!

M- Preferias que ela fosse?

J – No princípio, quando a bebé veio pra casa, prontos, o pai dela também neste momento está lá…e…queriam que

ela fosse, mas depois todo o mundo virou as costas, pronto. Eu disse, olha, não vale a pena contar com os outros, tens

sempre que contar contigo, não é? Comigo… e ela também ficou triste com isso… E já não toca no assunto.

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M – É um bocadinho triste, às vezes quando uma pessoa pensa que pode contar com…

J – Sim, eu também fiquei muito triste com isso. Eu não quis telefonar pra saber porque é que elas já não diziam

pra miúda ir, não é? Também não sou eu que vou empurrar a minha filha prós outros. Ela agora já está uma mulher e eu

disse a ela, já fizeste 18 anos, tens que ver as coisas de outra maneira! É uma pessoa sozinha, é pagar a renda, é as

creches… O abono, muitas das vezes tenho que ficar à espera do abono, pra fazer algumas comprinhas…só assim, pronto!

M – É muito difícil sobreviver só contigo a trabalhar…

J – É! Só que pronto, a gente sempre sai daqui às oito e as meninas vão comigo. O Joel agora neste momento não

está comigo. Ele está num colégio, está na Casa do Gaiato no Porto e prontos, é menos um … mas é chato!

M – O pai da tua neta?

M – Ah ele está em França! E sempre vai ajudando, minimamente?

J – (risos) …Ele nunca ajudou!...

M – É um bocado triste… essa situação…quando as pessoas não assumem as suas partes da responsabilidade…

J – É que ele também está lá mas ele não está a trabalhar! Mas a mãe, a mãe dele falou comigo e disse que como

ela foi agora pra França e já começou a trabalhar, diz que vai ver se todos os meses me manda cem euros…pra ajudar a

pagar a creche da bebé. Eu disse, está bem…sim, mas é sempre uma ajuda!

M – Claro! E é o mínimo que se pode pedir!

J – O Joel está no colégio porque… eu mesma é que tomei essa decisão. Preferi que ele ficasse lá no…na Casa do

Gaiato no Porto. Já estava com dez anos, já estava a…toda hora queixas, queixas, é na escola, queixas de rua…e era muita

pressão em cima de mim. Falei com uma pessoa, lá conseguiram esse contato e ele está bem. Já fui lá, estive lá há uns dias

e ele disse que está a gostar. Agora vou lá este fim do mês.

M – Costumas ir lá muitas vezes?

J – Fui lá uma vez porque ele foi agora, está lá há dois meses. Eles quando vão têm que ficar praticamente um mês

sem contato! Eu estive lá e…gostei. Do sítio e assim.

M – Pareceu-te que era um sítio onde ele podia…

J - Depois deixam eles à vontade…De vez em quando falo com ele ao telefone.

(pausa)

Já acabou? (risos)

M – Queres parar? Então podemos ficar assim, se quiseres. Importas-te de falarmos outra vez, depois? Obrigada

por teres….

J – Obrigada eu!

M - Posso só dar-te um abracinho?

M – Podes dizer o teu nome, a tua idade, o que é que fazes…

B – Ya, chamo-me Silvino Furtado, tenho 32 dois anos…

M – O que é que fazes aqui na Cova da Moura?

B – O que é que eu faço? Neste momento trabalho como Auxiliar de Educação, no G, na sala dos três até aos cinco

anos. Mas para além disso faço também parte também de um projeto, que é o projeto Sabura, que consiste em fazer visitas

guiadas aqui ao bairro da Cova da Moura, para dar a conhecer o bairro e a Associação, em que sou neste momento

responsável e um dos guias que faz as visitas aqui ao bairro.

M – E há quanto tempo é que vives aqui na Cova da Moura?

B – Desde sempre.

M – Nasceste…

B – Nascido e criado aqui.

M – Mas… vieste, os teus pais vieram para cá ou…

B – Sim, os meus pais vieram de Cabo Verde, sim.

M – De Cabo Verde…sim.

B – Sim, sou descendente de Cabo-verdianos.

M – Porque é que eles vieram para cá na altura?

B – Por causa das condições de vida como a maioria dos Cabo-verdianos…

M - …Das pessoas que vieram…E queres-me contar um bocadinho como é que foi a tua infância aqui na Cova da

Moura?

B – Foi uma infância tranquila, normal, como qualquer outra criança…posso dizer que tive uma infância feliz. Não

tive assim nada assim de especial que...que fizesse com que não tivesse uma infância feliz como criança, tipo…acho

que…nada assim de especial (riso) …foi uma infância como qualquer outra criança, normal!

M – O facto de o bairro ter uma comunidade assim tão unida, não é?…pelo que eu tenho vindo a perceber, as

pessoas aqui conhecem-se todas umas às outras e existe assim um sentido de comunidade bastante…bastante presente,

deve ser bom crescer assim num ambiente…

B – Sim, se formos a comparar com bairros que não são como a Cova da Moura, como disseste, disseste bem, o

bairro tem um forte sentido de comunidade e as pessoas conhecem-se umas às outras, há uma grande entreajuda, não é?

Depois também o próprio bairro, no início, quando cresceu, também cresceu com essa entreajuda. Só foi possível a criação

do bairro e a criação também da Associação, também foi com essa entreajuda, com esse djunta mó que é o juntar das mãos,

essa cooperação, foi assim que foi possível a construção do próprio bairro e também a construção da própria Associação.

Mas claro que o crescer assim, num ambiente assim, faz com que uma pessoa cresça alegre, livre, divertida, faz com que

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faça amigos e que sinta-se bem…sinto-me bem a viver cá! Muito também, por isso também, por ter esse forte sentido de

comunidade. As pessoas conhecem-se uma às outras, ajudam-se umas às outras, isso também faz com que o bairro seja

especial, nesse sentido.

M - Hum-hum! E tu estudaste aqui também?

B – Sim. Tipo, fiz o primeiro ciclo cá na escola que ainda existe cá dentro do bairro, que é a escola EB1 da Cova

da Moura; depois também o preparatório e o secundário também fiz aqui nos arredores. Se bem que depois o secundário,

terminei ali em Belém, na Escola Secundária Marquês de Pombal, foi onde terminei o secundário, mas comecei o

preparatório fiz cá e comecei o secundário também cá, mas depois terminei ali na Marquês de Pombal em Belém.

M – E...e depois estudaste mais? Para além disso? Foste para a Faculdade?

B – Neste momento, estava... terminei agora. Estava a tirar o curso que também tem a ver com aquilo que eu faço,

tem a ver com turismo, que era o curso de Turismo, que era pós-laboral. Era um curso de três anos, quase três anos, sim,

tinha também depois três meses, se não estou em erro, em que tínhamos de fazer um estágio profissional, que por acaso

também fiz cá na Associação, como já estava dentro daquilo que eu faço, tipo foi também juntar o útil ao agradável, eh

pronto, também dava depois a carteira profissional; como era uma coisa que eu fazia sem ter habilitações para tal, foi uma

coisa que na altura achei que valia a pena aprofundar, o conhecimento, achei que seria bom para mim por isso fiz isso.

M – E…na tua vida foste tendo assim algumas dificuldades… mais marcadas?

B – Dificuldades, dificuldades… pronto também foi o facto de ser da Cova da Moura faz com que às vezes tu sejas

visto se calhar de forma um bocadinho diferente. As pessoas vejam-te de lado, em certas situações ou em certos momentos

ou quando dizes que és do bairro, se calhar logo à partida já fazem um juízo…um juízo prévio de ti sem te conhecer

realmente, isso faz com que às vezes houvesse situação ao longo da minha vida, em que me sem sentisse injustiçado... Ou

sentisse que as pessoas fizessem o julgamento que não era o mais correto da minha pessoa e isso também faz com que a

pessoa fique um bocado…não sei se revoltado é a palavra certa, mas…fique um bocado dececionado com a nossa

sociedade porque muitas vezes…as pessoas são formatadas ou são levadas a crer em coisas que não são verdade e muitas

vezes também passou-se comigo porque as pessoas já tinham uma ideia pré-concebida de mim, daquilo que se calhar as

pessoas da Cova da Moura são e se calhar já faziam o juízo errado daquilo que eu também poderia ser. Mas pronto, acho

que também com o conhecimento, é preciso também as pessoas falarem e travarem conhecimento, para se conhecerem

umas às outras e acho que depois a partir daí as pessoas começam a ver que…realmente as pessoas da Cova da Moura são

pessoas normais como qualquer outra pessoa em qualquer outra parte de Portugal ou do Mundo e… são pessoas que devem

ser respeitadas e que devem ser tratadas com dignidade! É o que nós pedimos, normalmente.

M – Sentes que existe essa discriminação, de vez em quando? O facto de as pessoas serem do bairro…

B - Sendo sincero, claro que sim. Isso tem vindo se calhar a diminuir, também pelo trabalho que se tem feito aqui,

a nível da Associação, a mostrar o bairro, como no projeto que falei também, o projeto Sabura. As pessoas são convidadas

a vir cá ao bairro, a conhecer o bairro, conhecer as pessoas, conhecer a cultura, o dia-a-dia do bairro e tudo isso faz com

que também as pessoas já tenham uma ideia mais…próxima daquilo que é a realidade da Cova da Moura. E…pronto, acho

que hoje em dia também, por esse facto as pessoas já começam a ver a Cova da Moura com outros olhos. Com olhos de ver

e a ver realmente aquilo que a Cova da Moura é no seu real, porque muitas vezes têm uma ideia totalmente errada daquilo

que era a Cova da Moura e os seus habitantes, neste caso também.

M – Pois. E sentes que…o Moinho há de ter tido um grande papel… nessa mudança?

B – Sim, sem dúvida que o Moinho tem tido! Ao longo destes trinta anos de existência do Moinho, o Moinho tem

tido um papel preponderante para que as pessoas tenham uma ideia, uma outra ideia da Cova da Moura. E…nós

moradores, os jovens, ou falando dos moradores em geral, nós temos total consciência de que se cá não existisse Moinho,

se calhar a Cova da Moura já não existia mais, ou… já tivesse deixado de existir! E se calhar, muitas vezes também, muitas

pessoas conhecem a Cova da Moura muito pelo Moinho também, pelo bom trabalho que o Moinho tem feito ao longo

destes anos todos. E sem dúvida que, se não houvesse o Moinho, neste caso, de certeza que as pessoas não tinham saído

com uma outra ideia, talvez a Cova da Moura não fosse conhecida por esses bons aspetos que neste momento é conhecida.

M – Mas…sentes que ainda existem umas coisas a mudar aqui no bairro?

B – Sim, há muito trabalho para fazer, isso há sempre coisas que são feitas e aqueles objetivos que tu alcanças e

depois há sempre outros que queres alcançar… ainda há muito trabalho pela frente, sem dúvida, há muita coisa que se pode

fazer em prole do bairro, em prole da nossa comunidade, mas só pode ser feito em conjunto não é? Porque nenhuma pessoa

pode mudar o mundo sozinho, não é? Pode haver vontade, pode haver ambição de tal, mas quando não há um conjunto de

situações ou um conjunto de ideias que sejam canalizadas em prole de algo, torna-se mais difícil. Eu acho que há muita

coisa que pode ser ainda melhorada dentro da comunidade.

M – Desculpa, tenho que afiar... (risos) E…como é que achas que… os jovens de hoje em dia, que vivem aqui na

Cova da Moura, se têm integrado?

B – Eu acho que hoje em dia, tipo, torna-se…pronto, vivemos também numa sociedade mais aberta e claro que há

muitos coisas, muitos estereótipos a quebrar e estigmas, mas acho que, neste momento, as coisas são…se formos comparar

com uns anos atrás, acho que é muito mais fácil, se calhar, um jovem de hoje de integrar-se. Claro que ainda há muitas

coisas que…ainda há muitas barreiras, sem dúvida que há! Não podemos também estar a ser hipócritas e dizer que não há

porque há, mas acho que hoje em dia há muito mais facilidade também de um jovem integrar-se, há mais oportunidades

que não haviam no passado e que podem ser hoje em dia aproveitadas para que os jovens possam sentir-se mais integrados

e também possam integrar-se eles próprios na sociedade.

M – E em termos pessoais, tens alguma experiência que queiras contar? ... Que ilustre um bocadinho isto que tens

estado a dizer?

B – Bom…eh! Não tenho assim muito…pessoalmente nunca, nunca… claro que houve situações que já vi de

amigos e também… Também, também eu próprio… mas não há algo que já tenha passado que agora me venha à

mente…Estou-me a lembrar que ainda enquanto estudava…ah…que havia tipo… uma senhora que trabalhava na cantina

da escola e, por acaso, ela…sempre deu-se bem comigo, sempre…pronto, também sempre fui bem-educado com ela,

sempre houve boa…esse bom trato de ambas as partes e ela sempre tratou-me bem também, sempre a tratei bem e sempre

houve essa afinidade entre mim e ela, neste caso. E…pronto…ela não sabia donde eu era. Falava comigo todos os dias,

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mas não sabia de onde eu era. E…uma vez numa conversa informal que estávamos a ter, estava-se a falar sobre a Cova da

Moura e eu depois disse, olha por acaso eu sou da Cova da Moura e…ela ficou surpreendida porque, pronto, não achava

que…pronto, os jovens da Cova da Moura se calhar fossem educados, simpáticos ou que estudassem ou algo do género e

ela também tinha uma ideia totalmente deturpada do bairro que achava que era só barracas, que era só delinquentes, que

algo do género. Depois pronto, a partir dessa conversa que tivemos, consegui, também acho que consegui que ela

quebrasse esse estigma que tinha em relação ao bairro porque ela, via-se que ela tinha uma ideia totalmente errada do

bairro e pronto, também neste caso dos jovens dos bairro e depois dessa conversa vi que a partir daí, ela começou se calhar

a…se calhar não, começou a ver o bairro com outros olhos. Até uma vez eu convidei-a a vir, quando houve uma festa cá no

bairro. Ela, entretanto, até veio e gostei também porque ela veio mesmo; até pensei que ela pudesse não vir mas entretanto,

veio. Também por curiosidade, não é? Ela resolveu cá aparecer e pronto, e foi…foi um episódio que me marcou no sentido

positivo porque vi que as pessoas às vezes... Como eu dizia há bocadinho, às vezes é preciso as pessoas falarem e também

conhecerem mesmo as coisas para depois elas poderem fazer o juízo, porque muitas vezes as pessoas são levadas a crer em

algo que realmente não existe, ou pela comunicação social ou porque algum amigo ou familiar que fala sobre algo que

também ele próprio desconhece e que leve as pessoas a crer que é real e que as pessoas depois vão passar a outra pessoa

também, sem ter conhecimento dessas próprias coisas, sem ter conhecimento real também, fazendo crer as essas pessoas

que essas coisas são reais. E depois torna-se uma bola de neve. As pessoas vão crendo em algo que realmente não é real e

que elas também não conhecem e que se calhar, defendem com unhas e dentes que é assim e sem ter o conhecimento. Era o

que se passava com essa senhora. Ela nunca veio cá ao bairro, não conhecia nenhum jovem... Apesar de não saber, mas

conhecia…mas pronto, e já tinha essa ideia totalmente errada também do bairro, quer a nível físico, quer a nível...humano,

das pessoas aqui do bairro, que é totalmente errado, não é?...Aquilo que ela pensava.

M – Mas é engraçado…que essa situação tenha…e ela ter vindo cá, é muito giro, por acaso…

B – Sim, sim, também foi engraçado ela depois ter vindo cá, porque nós por acaso dávamo-nos super bem, por

acaso, sempre tivemos uma boa relação. Eu não sei se ela ficou-se a sentir mal porque ela estava a falar um bocado mal do

bairro e depois eu disse que eu era do bairro, ela a dizer ‘tu és do bairro, não sei o quê…’. Ya…e ela sentiu-se se calhar um

bocado mal e quis vir cá mesmo, conhecer…

M - …Ver mesmo um bocadinho…

B - …Vir mesmo conhecer o bairro cá fora…. É pá! Se calhar estava totalmente errada em relação àquilo que eu

pensava até agora! E se calhar pronto, dar a mão à palmatória, vir cá conhecer o bairro e pronto, e acho que foi também, da

parte dela foi…pronto, foi bom ela ter vindo conhecer o bairro e conhecer a realidade do bairro. Se calhar ela hoje em dia,

se calhar se falarem sobre a Cova da Moura, ou mesmo não digo a Cova da Moura, mas digo qualquer outra situação da

nossa vida diária... porque às vezes somos levados a…a pensar algo sobre as pessoas ou sobre um bairro ou sobre qualquer

coisa, que é totalmente errado sobre essa pessoa ou esse bairro ou essa coisa que estamos a….esse objeto, qualquer coisa

mesmo, que estamos a…pronto que se passe no nosso dia a dia, e acho que isso também foi uma lição de vida para ela, no

sentido que ela se calhar nunca mais vai fazer juízos, ou vai pensar algo sem ter conhecimento de causa e acho que, nesse

sentido, foi bom para ela ter acontecido esse episódio, para que ela também abrisse os olhos nesse sentido, de que não

devemos julgar ou criticar sem conhecer, não é? Ou falar de algo com certeza, também sem nós termos conhecimento de

algo, não é?

M – Os teus pais ainda vivem cá?

B – Sim, vivem. Também vivo cá ainda…

M – E tens irmãos?

B – Sim tenho, tenho! Tenho irmãos mais velhos e uma irmã mais nova, que vive comigo.

M – E…tu és uma pessoa…religiosa?

B – Sim, acredito, acredito em Deus. Não sou daquelas pessoas fanáticas, (risos) ou quê, mas tenho a minha fé,

acredito que haja Deus, também pronto, depois são coisas, experiências, eu já tive. Experiências a esse nível, com Deus, e

é como tudo na vida, há coisas que só a pessoa passando por certas situações é que a pessoa começa a…a ter perceção ou a

abrir os olhos para certas coisas e…considero-me uma pessoa crente, considero-me uma pessoa religiosa, porque acho que

a religião é uma das coisas que…das coisas que mais afeta esse mundo e que faz com que haja mais guerras. Infelizmente

devia ser o contrário. As pessoas que acreditam ou que supostamente acreditam em Deus, que são religiosas, deviam ser

pessoas pacíficas, mas muitas vezes, não são. Pelo contrário, pelo contrário! São pessoas que tornam-se, muitas vezes sem

se aperceberem, fanáticas. Pessoas que só vêm aquilo que querem ver, portanto não se tornam pessoas abertas a…a

conhecer algo de novo ou a travarem conhecimento com outras pessoas que tenham ideologias diferentes ou tenham

pensamentos diferentes e, infelizmente, isso faz com que essas pessoas tornem-se ignorantes e depois façam que…façam

que haja muitas situações que, infelizmente, acabam por tornar-se violentas e acabem por muitas vezes, tirarem a vida a

muitas pessoas. É o que nós vemos no nosso dia-a-dia, infelizmente no nosso mundo atual, é o que acontece. Pessoas que

dizem que são crentes, que acreditam em Deus ou que são religiosas que no fundo são as primeiras pessoas a fazerem com

que o mundo não tenha paz, infelizmente. E também são as primeiras pessoas a fazerem com que as outras pessoas

duvidem que, realmente, haja um Deus e que realmente Deus seja verdadeiro. Infelizmente, é o que acontece. Mas pronto,

sem culpa de Deus porque Deus não tem culpa nenhuma disso porque Deus é amor! Quem conhece realmente Deus sabe

que Deus é amor e sabe que Deus não pactua e que não fica contente quando essas pessoas que dizem, que supostamente,

agem em nome de Deus, tiram a vida a outras pessoas ou semeiam a violência a nível mundial, neste caso, como nós

sabemos, há casos desses.

M – Sentes que a Igreja pode ajudar aqui, na Cova da Moura, de alguma forma? Achas que as pessoas têm, de uma

maneira geral, se vê na Igreja, um apoio…

B – É assim: o bairro é maioritariamente habitado por católicos. As pessoas são, eu próprio também me criei no

seio de uma família católica, também frequentei a catequese e tudo isso mais, tipo na Igreja Católica e ia a missa, aos fim

de semanas e isso tudo, com os meus pais e também ia todos os anos a Fátima, tudo isso e, pronto. A nível da Igreja fazer

pelo bairro, eu acho que, pronto, acho que enquanto as pessoas não forem exemplo…As pessoas podem falar bem e podem

crer mostrar algo que se calhar eles próprios não são, mas acho que a postura da pessoa em si… a pessoa, como age ou

como fala ou a postura da pessoa no dia-a-dia, fala por ela. Neste caso a postura dos membros da Igreja, quando quiserem

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fazer algo pela Cova da Moura ou pelos habitantes da Cova da Moura, acho que passa por terem uma postura verdadeira,

serem verdadeiras com elas próprias primeiro e depois serem verdadeiras com as pessoas e depois… tentar, claro, a nível

espiritual… acho que isso é super importante, porque as pessoas quando estão bem espiritualmente, depois conseguem

também estar bem a nível geral e claro que a Igreja pode ter um grande impacto nas pessoas aqui do bairro. Pronto, acho

que…mas também acho que hoje em dia, também infelizmente, acho que as pessoas deixaram de crer na Igreja, deixaram

de crer nos elementos ligados á Igreja porque tudo aquilo que se vê, tudo aquilo que se fala, por tudo aquilo que as próprias

pessoas que estão ligadas à Igreja, têm feito ao longo dos anos, fazem que as pessoas deixem de crer e que a Igreja perca

credibilidade e…infelizmente, é o que acontece. Não só aqui no bairro, mas a nível geral, não é?

M - …E… Tu gostavas de ter saído aqui do bairro, ido para outro sítio qualquer, ter viajado ou teres…

B – Sinceramente não, gosto de cá viver e claro que o bairro tem os seus problemas. Se calhar se fosse viver noutro

sítio também os encontraria, na mesma, se calhar ainda em maior escala porque muitas pessoas podem ter a tendência a

pensar que não, mas os problemas que existem aqui na Cova da Moura são os que existem em qualquer outra parte de

Portugal e de qualquer outra parte do mundo. Claro que as pessoas aqui já…muitas vezes, como se fala muito do bairro…

O bairro às vezes também serve de bode expiatório para muitas coisas que acontecem. As pessoas às vezes têm a tendência

de pensar que o bairro não é um bairro bom para se viver, mas eu vivo cá há trinta e dois anos, sempre cá vivi sem

problemas. Claro que também não vou dizer que o bairro não tenha coisas que não possam ser melhoradas, mas acho que

nós, enquanto comunidade, podemos selecionar esses problemas, desde que haja vontade, da própria comunidade, para que

esses problemas sejam solucionados. Também não é preciso vir o poder local ou as pessoas de fora para que se possam vir

solucionar esses problemas que existem. Acho que quando as pessoas também têm vontade de mudar algo e se elas derem

um passo para essa mudança, essas coisas podem acontecer e…mas pronto. Para responder à tua pergunta, não me vejo se

calhar… não sei o que é que o futuro me reserva, não sei de hoje para amanhã o que é que pode acontecer, mas até agora

não tenho queixas de cá viver, tenho cá os meus amigos, os familiares… foi aqui que me tornei na pessoa que sou hoje em

dia, foi aqui que me tornei no homem que sou também, acho que foi aqui que me tornei um ser humano melhor e acho que,

pronto, não sei o que é que o futuro me reserva mas acho daqui para a frente... mesmo que daqui pra frente possa ter de ir

viver num outro sítio, por circunstâncias da vida, levarei a Cova da Moura sempre no coração. E no corpo também, já que

tenho aqui tatuado Cova da Moura, vai estar sempre comigo, inevitavelmente! (risos)

L- (...) Não sei ler, isso é só para dar pica. Não tenho idade (...) Já estou a ficar velho.

M-: Então podemos começar. Diga-me o seu nome e quantos anos é que tem.

L- Leandro. Nome completo?

M- Pode ser.

L- Sou o Leandro, sou o Leandro.

M- E quantos anos é que tem?

L- 70.

M- Tem 70 anos. E pode-me dizer há quanto tempo é que vive aqui na Cova da Moura?

L- Quanto tempo? Que eu vivo cá?

M- Sim.

L- 40

M- 40 anos?

L- Vim morar na Cova da Moura em 76, portanto eu tenho 40.

M- Há 40. E veio de onde?

L- Cabo Verde

M- Qual é que é a sua ilha?

L- Ilha? Santo Antão.

M- E quando veio para Portugal veio logo viver para a Cova da Moura?

L- Não, não. Hum... Tive uns dias na Venda Nova, mas foi pouco tempo.

M- Foi pouco tempo?

L- Foi onze dias (...) vim para aqui em 76.

M- Ainda não havia Cova da Moura ao princípio não era?

L- Era só mata.

M- Era só mata...

L- Mata ou erva. Tudo. Tudo isso.

M- Era muito diferente então?

L- Tinha até cobra! (risos) Tinha, tinha...

M- Tinha aí cobras e tudo. Então e veio para cá viver sozinho? Ou veio com mais alguém?

L- Não. Vim sozinho, mas sou casado com uma mulher de Cabo Verde, com dois filhos.

M- Quantos filhos tem?

L- Sete.

M- Sete.

L- Dois já nascidos cá.

M- Ok. E a sua mulher vive cá consigo?

L- Vive, está la em baixo sentada.

M- E na altura veio... veio para cá porquê? Pode-me...

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L- Na altura? eh... Vinha... Tinha de vir trabalhar. Ainda era para ir para o estrangeiro. Não consegui, fiquei cá.

Ainda estou cá.

M- E o que é que costumava fazer cá? Qual é que era o seu trabalho?

L- Hum... Trabalhava numa fábrica de vidro.

M- Hum-hum.

L- Agora já está fechada há muito tempo. Depois daquilo trabalhava na construção civil.

M- Na construção civil. E em Cabo Verde, o que é que fazia? Também trabalhava na construção civil ou...?

L- Era quase igual pronto, trabalhava nas brigadas de estrada, era quase igual.

M- Na brigada de estrada?

L- Na brigada de estrada, era do Estado.

M- Hum-hum.

L- Era a brigada de estrada mas era trabalho do Estado.

M- E... Já, já voltou a Cabo Verde muitas vezes entretanto?

L- Já fui duas vezes, só.

M- Só duas vezes?! E a sua família, ficou lá? Ou alguns também vieram para cá?

L- Não... A minha família, filhos... Está tudo cá.

M- Sim.

L- Agora tenho outros família lá, família grande.

M- Os seus... Tem irmãos? Também?

L- Tenho, tenho, tenho.

M- Eles ficaram em Cabo Verde?

L- Também já não tenho nem pai nem mãe.

M- E os seus irmãos continuam lá? Em Cabo Verde?

L- Sim, quem está lá está lá...

M- Os seus filhos vivem cá na Cova da Moura também? Consigo? Ou estão espalhados por aí?

L- Não... Hum.. O resto no estrangeiro e tenho uns na França e tenho na Suíça. O resto está cá. Aqui tenho três, só.

M- E vivem cá mesmo no bairro também?

L- Não. Tenho um que está a viver no bairro.

M- Então e depois quando a, quando a fábrica fechou o que é que fez? O que é que... Em que trabalho é que...

L- Logo a seguir trabalhei na construção civil, trabalhei na construção.

M- Ah! Pois. E... É um trabalho duro.

L- Diga?

M- É um trabalho duro?

L- Duro? Ah pois! Aquilo é duro sim.

M- O que é que gostava de ter feito se pudesse...?

L- Diga?

M- Se pudesse ter escolhido, na altura, o que é que gostava de ter feito?

L- Escolhia... Eu não tinha, não tinha nada para escolher. Eu trabalhava a pedreiro que é diferente. Trabalhava a

pedreiro.

M- Mas o que é que gostava? Não tinha nada assim?

L- Eu não tinha escola, não tinha nada de categoria que me arranjasse logo um trabalho.

M- Era o quê?

L-... Mais nada.

M- E os seus filhos? O que é que eles fazem?

L- Os meus filhos... Há uns que está lá para o estrangeiro. Não sei bem no que é que eles trabalham. Não sei.

M- E os que trabalham cá?

L- Diga?

M- E os que estão cá? Não...

L- No Algarve é empregado numa loja, ou... parece-me que é numa loja.

M- E, qual é que é a sua relação com bairro? Gosta de viver cá?

L- Estou cá, tenho que ter gosto.

M- Pois! Sim! Também é verdade. Mas gostava de ter voltado para Cabo Verde? Por exemplo.

L- Hum... Mas... Voltar eu posso voltar, sim... Voltar para a minha terra, normalmente...

M- E acha que se calhar viver cá também é estar um bocadinho mais perto da sua cultura? E das tradições.

L- Sim... Mas... Ainda não estou a pensar nisso de ir para Cabo Verde, não é. Mas... Lá é que é a minha terra...

M- Mas gostava? (Silêncio) Deve sentir saudades, é normal. Se calhar... (O Sr. Leandro chora) Às vezes é

complicado falar de saudade, não é?

RS- Era de Santo Antão, de onde? Porto Novo, não?

L- Era a minha freguesia. É sim senhora, o Senhor acertou. Sou um bocadinho mais do interior mas lá que é a

minha freguesia. É Porto Novo.

RS- A caminho de quê, de Lajedo?

L- Oh senhor! Conhece lá!

M- O senhor foi...

L- Conhece lá... é mais para cima um bocadinho... Ribeira das Patas.

RS- (risos) Onde começa o Kola, a festa de São João.

M- O Kola.

L- É sim senhor.

RS- Lá em cima.

L- Ah o senhor conhece lá...

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RS- Aquela capelinha ali.

L- Sim, sim, sim.

RS- Já fiz aquilo tudo, a procissão toda. Para baixo, até Porto Novo e para cima, até à Ribeira das Patas.

L- Ah... Quanto tempo tem, já agora?

RS- Há quanto tempo foi? Há... uns cinco anos.

L- Ah. Tem pouco tempo.

RS- 2008. Fiz aquele filme, o filme do Kola San Jon, não viu?

L- Eu vi um bocadinho, parece-me que sim...

RS- Parece? Lá em Santo Antão.

L- É mesmo o meu lugar, sou mesmo dessa zona.

RS- Hum?

L- Onde é que o senhor esteve, tem aquela igreja. Moro um bocadinho mais para cima.

RS- Ainda mais para cima?

L- Mais um bocadinho para cima ainda.

M- Mora mais para cima da igreja?

L- Sim.

RS- Na montanha lá em cima. É bonito Santo Antão.

M- Por acaso nunca estive, mas gostava muito de lá ir.

L- O que é que gostava?

M- Eu gostava muito de ir lá. Nunca fui. (risos)

L- Ah... Aquilo é... É bonito Cabo Verde, mas ele é seca, falta de chuva. Mas é, pronto. Mas quando tem lá chuva.

Agora tem zona que tem água. Tem lá uma zona que tem água, só que é agua que vem do rio. A Ribeira também tem boa

água. E... naquela zona que tem água tem sempre verdura. Sempre.

M- Tem sempre, é menos seco não é?

L- É menos seco. Tem água, tem água tem verdura. Pronto.

M- Dá para fazer mais agricultura também se calhar.

L- Pois, agricultura.

RS- Santo Antão tem que alimentar as outras ilhas que não têm nada.

L- Sim... bem, por exemplo, há o nosso caso que o senhor já falou e como São Vicente, que tem a fama, é sorrir, é

tudo, todas as ilhas. Santo Antão, Praia, Boa Vista, Fogo...

R- O senhor também é tamboreiro? Também toca? Ou tocava?

L- Sou o quê? Não, não, não. Quase nunca.

M- Nunca tocou. Mas gosta de ouvir?

L- Eu gosto de ouvir mas nem é muito

M- Não é muito (risos)

L- Eu gosto de ouvir é mais é de longe.

M- É... lá longe.. a ouvir um bocadinho. Mas é, é giro ver o Kola.

L- Ainda hoje eu estava para ver, agora falando de São Vicente, ainda hoje estava para ver na RTP África.

M- Estava a dar?

L- São Vicente. Ilha de São Vicente. É hoje na RTP África. Mostram tudo, tudo o que existe.

M- Mostram tudo?

L- Agora é tempo de festa lá. Como em São Vicente tem um praia que se chama Baía das Gatas. Que por exemplo,

turismo marcha para lá.

M- Tem muito turismo?

L- Hum-hum. Mas olha que já chama Baía das Gatas. Lá tem boas praias.

M- Hum-hum.

RS- Tem a festa de São Pedro, lá também.

L- São Pedro é na Garça e na Ribeira.

RS- Ahhhh!

L- Tem também uma zona que se chama Paul e a festa de Santo António é feita lá. Festa de São João é feito no

Porto Novo...

R- Isso em Santo Antão não é?

L- Sim, sim.

RS- Com que idade é que veio para cá? Tinha 30 anos quando veio para cá.

L- Diga?

M- Com quantos anos...

R- Tinha 30 anos.

L- Eu?

RS- Quando veio.

L- Acho que eu tinha mais.

RS- Tinha mais?

L- Mais um pouquinho. Hum... Eu estou com 70 e ali em 75.

RS- 30 anos.

L- Pois, é mais ou menos isso.

RS- Era um jovem.

M- Ainda vinha com força (risos)

L- Não...Não muito jovem que eu já estava casado (risos) E tinha dois filhos quando vim para ai...

M- Mas, mas ainda veio com bastante para dar.

L- Ainda estava novo, não é.

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M- E os seus filhos, mantém uma relação com Cabo Verde?

L- Hum?

M- Os seus filhos também se mantiveram?

L- Ah! Mantem mas nunca saiu de cá, não conhece lá.

M-: Hum.

L- E as duas que nasceram lá não conhece também porque eles vieram ainda pequeno.

M- Vieram muito pequeninos.

L- Não conhecem. Não.

M- É um bocadinho difícil para si falar às vezes.

L. Diga?

M- Se é difícil, às vezes falar de...

L- Eu?

M- Da terra (risos)

L- Ah! Oh.

RS- Gostava de voltar para lá não era?

L- Hum, gostava sim, mas não sei.

RS- Mas agora já está habituado aqui a outro conforto.

L- Hum.

RS- Não é?

L- Oh, eu ia-me habituar na mesma. É de lá que eu sou, foi lá que me criaram. Ia-me habituar na mesma, é igual.

M- Lá, começou a trabalhar com os seus pais, ou como é que...

L- Sim, mas é... Eu fui criado só com mãe. O meu pai morreu eu tinha dois anos.

M- Hum, muito cedo.

RS- Acho que não o conheceu, não é?

L- Não, não, não conheci não. Tinha dois anos.

RS- Foi o seu pai então que criou?

L- Diga?

RS- Foi o seu pai que teve de criar os filhos?

L- Não! A minha mãe.

RS- A mãe.

L- A minha mãe. O meu pai é que morreu eu tinha dois anos.

RS- Há o pai é que morreu!

M- Ah o pai!

R- Está bem, está bem.

M- E tem muitos irmãos?

L- Eramos sete também.

M- Ah eram sete também. Que bom.

L- Já morreram muitos...

M- Pois...

RS- Sempre muito filhos em Cabo Verde, não?

L- Hum-hum.

RS- E agora o que é que faz? Tem aqui esta... Lá em baixo estava numa aula de...

L- Eu não faço nada. Ainda por cima estou doente!

M- Está doente?

L- Já não trabalho há muito tempo, que é diferente.

M- Mas costuma-se entreter por aí? O que é que faz aqui no bairro? Eles.. Costuma ir lá para baixo para o Moinho

fazer umas atividades, não é?

L- Em baixo? Eu estou lá de baixo só para entreter.

M- Só para entreter.

L- Só para entreter! Já não vai aprender nada.

M- Mas é bom!

L- Sim!

M- Continuar a fazer umas coisinhas.

RS- Convive com as pessoas?

L- Sim...

RS- É melhor do que estar em casa.

L- Já não trabalho. Eu estou doente. Andava de cadeira de rodas.

M- Andava de cadeira de rodas?

L- Fazia tratamento a... de ambulância.. fisioterapia.

M- Mas agora já, já consegue andar. Tem uma bengala, mas..!

L- Dá para ir até à Buraca, ou à Damaia... Devagar, mas...

M- Devagarinho.

L- Hum-hum. E não andava. Abrir e fechar, mais ou menos.

M- Aos pouquinhos.

L- Isto aqui é nervoso (risos).

M- É nervoso?

L- Treme.

M- Começa a tremer?

L- Hum.

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M- Mas agora já está melhor, não?

L- Hum.

M- Também é preciso ter força para continuar.

L- Oh...

M- A sua mulher também o ajuda, se calhar, não?

L- Hum?

M- A sua mulher também ajuda? É uma boa companhia.

L- Ela também ajuda. É assim.

M- Pareceu-me uma senhora muito simpática.

Em relação ao desenho:

M- Vou-lhe mostrar (risos)

L- (Risos)

M- Acho que está parecido, não está acabado mas... Mas depois também podemos fazer mais um dia.

L- Diga?

M- Talvez depois possamos encontrar-nos mais uma vez, para eu acabar?

M - Olá!

Cl - Olá!

M - Tudo bem? Pode-me dizer como é que se chama, a sua idade?

Cl – Sou Clementina Dias Furtado.

M- Quantos anos é que tem?

Cl – Cinquenta e nove.

M - Tem filhos?

Cl - Seis filho, cinco rapaz e uma menina.

M – E …é casada?

Cl – Solteira.

M – E há quanto tempo é que vive aqui na Cova da Moura?

Cl – Há... Dez anos.

M – Dez anos! E…veio para cá…pode contar-me quais é que foram as circunstâncias que a levaram a vir para a

Cova da Moura?

Cl – Diga?

M – Porque é que veio para a Cova da Moura viver na altura?

Cl – Porque eu tava a morar com o meu irmão num sito que dizem que é Quinta do Mocho, depois não encontra

trabalho, fica desesperada, depois a minha prima que já morreu disse pra vir pra cá, que encontra trabalho aqui. Depois eu

venho pra Cova da Moura, graças a Deus, eu venho aqui tudo corre bem do melhor pra mim! Não tem nada que queixar de

Cova da Moura!

M – Boa! E há quanto tempo é que está em Portugal?

Cl – Ah…Eu vem no 2001.

M – E donde é que veio?

Cl – Cabo Verde.

M – Qual é que é a sua ilha?

Cl – A Praia.

M – E pode-me contar alguma coisa de Cabo Verde?

Cl – Eh… Olha, Cabo Verdi é assim: Cabo Verde é um terra livre, é um terra prá nós que nasceu lá, criou lá, é um

terra sabe, é um terra sem guerra, é um terra sem violência, é um terra um e os outros viver com humildade, com alegria, é

batuco, é funaná, é essas coisas…!

M – E gostava de voltar para Cabo verde?

Cl – Gosta!

M – Se pudesse, voltava?

Cl - Se hoje pudesse, eu voltava todos os dia, mas não posso! (risos)

M – E os seus filhos, quantos anos é que eles têm? Já nasceram todos…

Cl – Ah meus filhos já tá maior, já tá com vinte e sete ano, o ultimo…o último já esta cum vinte e sete.

M – Ok! E eles vivem aqui consigo?

Cl – Sim…hum…um está na Angola, um está na França, quatro está na Cabo Verde.

M - Ah, ok! Ficaram todos…e eles costumam vir visitá-la? De vez em quando?

Cl – Ah… de dois em dois ano vou lá visitar porque não dá pra ver todos ano, né? A vida está difícil…em dois em

dois ano eu vou lá visitar… meu filhos. Já não tem pai nem tem mãe, fica só com filhos!

M – E tem muita família em Cabo Verde?

Cl – Tem irmãs, irmãos, sobrinhos, sobrinhas, tem muita família graças a Deus!

M – E tem saudades deles, claro! Então e cá, o que é que faz? O que é que trabalha?

Cl – Aqui, eu trabalho na limpeza.

M – E como é que arranjou esse trabalho? Foi fácil?

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Cl – É, uma amiga minha que arranjou trabalho pra mim, quando que veio para Cova da Moura de

novo…eh…arranjou um trabalho para mim lá na Benfica, já até inda tá lá a trabalhar!

M – Mas se pudesse escolher, o que é que gostava de ter feito? Gostava de…

Cl – Diz?

M – O que é gostava de ter feito? Assim…se pudesse ter escolhido, qual é que era o seu trabalho…

Cl – Ah! Se não encontra trabalho, volto para minha terra outra vez…

M – E…estudou?

Cl – Gosto!

M – Não!...Se estudou, se fez escola, lá em Cabo Verde. Se esteve a estudar?

Cl – Não, não, não! Não!

M – E cá na Cova da Moura também não voltou a estudar?

Cl - …Não tem tempo a trabalhar! Eu gosta, mas não tem tempo!

M - Gostava de ter…

Cl – É!

M – Gostava de ter estudado…

Cl – Pois!

M - Então e…pode-me… contar assim alguma história da sua vida que… acha que gostava de contar a alguém?

Cl – Ah…A minha vida é….assim, é trabalhar…a minha vida desde pequenina é assim. Eu levanta desde

pequenina, andar na batuque, idade de criança. Até ainda, está na batuque, batuque e funaná! Depois veio pra cá, não larga

meu batuco, eu veio no grupo de batuque lá de Cabo Verdi pr’aí, continua na batuque!

M – E gosta muito do batuque?

Cl – Eu gosta munto!

M – Pode-me contar um bocadinho, o que é para si o batuque?

Cl – O batuque dá prá…pronto é assim, o batuque é fazer energia, fazer alegria, não fica está a pensar muito,

quando está no batuque esquecemos tudo problemas que há, batuque faz bem para as pessoas que gosta, né? Porque há

muito que não gosta, mas aquele que gosta, faz muito bem! Porque alegra coração, convive um com os outros, é batucar,

dançar, conversar, assim faz muito bem! Vai estar muito melhor! Eu gosta mesmo de batuque!

M – E faz batuque também cá na Cova da Moura?

Cl – Sim, sim, sim! Faz! É!

M - Sente que é uma espécie de família, que…

Cl – É!

M - … Que se ganha, não é?

Cl – É!

M – E apoiam-se muito se calhar, uma às outras… pelo menos foi o que eu senti, quando…

Cl – É!

M - …Que é uma forma de…

Cl - …É uma forma muito bem para a Cova da Moura!

M – E acha que é também uma forma de transmitir até a sua cultura e tradição aos mais novos, e…

Cl – Ah pois é! Ah pois!

M – Há muitas pessoas mais novas, a fazer batuque?

Cl – Sim, sim, sim, sim!

M – Acha que a Cova da Moura é também, para si, uma forma de estar mais perto de casa?

Cl – Ah pois, Cova da Moura é assim, é um lugar livre, é um lugar suave, é um lugar que tudo gente convive bem,

graças a Deus, eu não tem nada que queixar da Cova da Moura, por acaso não tem nada que queixar daqui!

M – Acha que as pessoas têm uma ideia errada, às vezes?

Cl – Isso é que não sei mas…pra mim, acho que é tudo dos bom e do melhor é a Cova da Moura!

M – O melhor é a Cova da Moura?

Cl – É!

M – E…lá em Cabo Verde, o que é que fazia?

Cl – Venda… Andava vender umas coisas, para viver, com filho! Perdeu o meu marido cedo, meu filho quando

que meu marido morreu, ele estava com três ano…Tem que luta pra criar o filhos, não é?

M – Pois, claro! E vendia na rua? O quê?

Cl – Isso é, vende no mercado!

M – No mercado?

Cl – Sim!

M – Vendia comida ou…

Cl – Não, não, roupas … coisa de comida, é!

M – É?

Cl – Hum-hum, coisa de comida, roupa…

M – E quando era mais nova, o que é que…trabalhava com os seus pais ou…?

Cl – Com pais, é!

M – O que é que eles faziam?

Cl – Ah…a mondar a erva, cavar o chão para plantar as mandioca, batatas, milhos, essas cosas assim! Na nossa

terra é isso que é nosso trabalho.

M – Hum-hum, trabalhava no campo.

Cl – É!

M – E começou a trabalhar com eles muito cedo, não?

Cl – Diz?

M – Começou a trabalhar com eles…

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Cl – Eu começou a trabalhar com nove ano, filha!

M – Logo com os seus pais…

Cl – Sim, sim, com meus pais! Ainda tá a trabalhar! (risos)

M – Diga?

Cl - Até ainda, eu está a trabalhar

M – Até ainda!?

Cl – Até ainda está a trabalhar! Desde os nove ano até ainda!

M – É uma vida…

Cl – Complicado!

M – Complicada…é preciso ter estofo para…

Cl – Diz?

M – É preciso ter estofo!

Cl - É! É preciso ter força, coragem, para trabalhar!

M – Mas está…está orgulhosa de…ter…

Cl – Ah, tenho orgulho no meu trabalho, olha! Orgulho mesmo!... Eu gosta do trabalho!

M – E… o seu marido morreu, muito cedo…

Cl - Sim, sim, sim!

M – Mas ele é o pai dos seus filhos todos?

Cl – Sim, sim, sim!

M – Deve ter sido complicado criar os seus filhos sozinha…

Cl – Ah pois, sozinha… é! É complicado! Mas, graças a Deus, o meu filho agora está todo maior! Tudo nas suas

casa deles, trabalhar, fazer a vida deles…e agora está mais folgadinha, um bocadinho!

M – Está folgada, um bocadinho!?

Cl – (risos)

M – Na altura, quando veio para Portugal, eles não vieram consigo, ou vieram?

Cl – Veiam só dois, um vai para Angola, um outro vem pra cá, outro fica lá!

M – Eles já tinham que idade quando ficaram lá?

Cl – Quando ficaram lá, o mais novo estava com…eu não me lembro porquê, a idade e anos do menino mas

ficaram todo miudinho ainda!

M – Ainda eram muito pequeninos…

Cl – Sim, sim, eram muito pequenino!

M – Eles ficaram lá com alguém da sua família?

Cl – Minha pai…meu pai, minha mãe…eles ficaram.

M – Foi para si um bocado difícil, deixa-los lá!?

Cl – É! Difícil mesmo! Chorei muito!

M – Acha que hoje em dia as pessoas têm noção do sacrifício que às vezes tem que se fazer, não é?

Cl – É!

M – Acho que se calhar não há muita gente que…que pense nisso!

Cl – Que pensa nisso, é verdade!

M – Acho que é pena… também é um bocado por causa disso que quero falar consigo e com pessoas que têm…

Cl – Sim, sim, sim!

M - … essas histórias!

Cl – Ah pois é!

M – Para tentar contar um bocadinho, outro lado da realidade…E…o que é que acha do Moinho? Como é que…

Cl – O Moinho…para mim foi bom também…pra jovens, pra adultos, pra idosos… Foi bem, mesmo! Moinho foi

bem!

M – Acha que faz um bom trabalho?

Cl – Bom trabalho! É!

M – Foi responsável pela…

Cl - Moinho foi bom trabalho! Pra criança, pra jovens, pra idosos… Tudo foi bem!

M – A D. Clementina faz alguma coisa lá no Moinho? Para além do batuque?

Cl – Não, não! Só batuque!

M – Só batuque! O batuque agora tem tido…tem feito bastantes espetáculos, até fora não é?

Cl – Ah pois! É, é, é!

M – Como é que isso está a correr?

Cl – Está a correr bem, graças a Deus! Está a correr muito bem!

M – Gosta de ir tocar assim…

Cl – É, gosta!

M – A sítios…

Cl – Gosta muito. (risos)

M – Já fazia batuque lá em Cabo Verde, não era?

Cl – Muito!

M – Costuma participar assim neste tipo de coisas, já tinha participado nalgum filme...

Cl – Não, não!

M – Nalguma dessas coisas? Não?... Mas parece estar muito à vontade! Não…

Cl - É claro! (risos)

M – É uma pessoa muito divertida, está-se sempre a rir!

Cl – Ah pois é! É! (risos)

M – Isso é giro! Acha que é uma caraterística do povo Cabo-verdiano?

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Cl – Diz?

M – Acha que é uma caraterística do povo Cabo-verdiano? Essa…

Cl – É, é, é!

M - …Capacidade de se rir sempre?

Cl – É muito!

M – E acha que aqui a geração mais nova da Cova da Moura, vai mantendo viva essa relação com África e com

Cabo Verde?

Cl – Prá mim, é tudo nas calmas, todos vivem um os outros, assim, prá mim é tudo…

M – Não sente que há alguns problemas de vez em quando, não sei!? Há uma imagem um bocadinho…

Cl – Quer dizer, não conta porque não sei pra falar assim! Já não conta esses problema mas pra mim, tudo bem!

M – Para si está tudo bem?

Cl – É!

M – Não sente assim muito essa…imagem…negativa!

E tem alguma história, assim engraçada que se tenha passado cá na Cova da Moura ou mesmo em Cabo Verde, que

me possa contar?

Cl – Na Cova da Moura, passar engraçado é fim-de-semana, dançar, andar a dançar até de manhã!

M – Costuma dançar até de manhã, todos os fins-de-semana?

Cl – É! Todo o fim de semanas!

M – É? Isso é muito giro!

Cl – (risos)

M – Como é que foi agora o festival?

Cl – O festival foi boa!

M – Foi?

Cl – Foi boa!

M – Houve aí muita música, muita dança…

Cl – É, é, é!

M – Muita alegria!

Cl – Foi boa!

M – Os batuques…tocaram ou fizeram algum espetáculo no festival?

Cl – Faz, faz o batuque! ‘Estava mesmo lindo! (risos)

M – Há muitas pessoas de fora, que vêm ver também?

Cl – Sim, sim. Muito, muito! É! Tava muita gente lá!

M - É bom que haja também o reconhecimento das pessoas que vêm de fora…

Cl – Ah, pois é!

M - …Conhecer… e interagir! Acho que é bom!.... Então e tem netinhos? Já tem netos?

Cl – Já!

M – Tem muitos, já?

Cl – Tenho quatro netos! Dois rapaz e dois menina. (risos)

M – Eles vêm cá vê-la de vez em quando?

Cl – Vêm, de vez em quando.

M – Então e aqui, vive sozinha? Agora, na sua casa?

Cl – Agora vive sozinha.

M – Mas preferia viver com alguém ou não se importa de estar assim?

Cl – Ah! Vivi com filho, quando o filho vai pra França ficou sozinha. Assim está bem!

M – Assim está bom? Tem menos chatices? (risos)

Cl – (risos) Tá mesmo bom assim! Menos problema, né?

M – Pois!

Cl – Então!

M – Também aqui no bairro há um sentido de comunidade bastante… As pessoas, mesmo quando estão sozinhas

têm-se umas às outras…

Cl – Mas eu faca bem! Toda gente aqui é meu amigo! Os jovem daqui é meu amigo, as mulher é minha amigas, eu

vivo aqui bem, graças a Deus!

M – Eu, até agora, fui sempre sentindo que as pessoas eram todas muito…

Cl – É!

M - … Que se sente mesmo uma união…

Cl – É! Uma união, mesmo! Alegria, amor! … Carinho!

M – Isso é bom!

Cl – É!

M – Uma maneira de estar em família, sem ser mesmo…

Cl – Ah pois!

M – E em Cabo verde, quando vai, vai sempre para a Praia não é? Ou costuma visitar outras ilhas, tem lá família

ou está tudo na Praia?

Cl – Não, não, sempre na Praia! Sempre na Praia!

M – E como é que é o Kola? Aqui a festa…. Pode-me contar?

Cl – O Kola? Pra mim também é bom!

M – (risos) Também dá para dançar!

Cl – Dá pra dançar, dá pra festar…olha! Pra mim é bom!

M – É uma pessoa religiosa?

Cl – Eu sim!

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M – Costuma participar aqui na Igreja?

Cl – Na Igreja, sim.

M – Acha que é uma parte…

Cl - Bom!

M - …Importante?

Cl –

Importante! A Igreja é importante! A Igreja Católica pra mim é o único!

M – Acha que tem ajudado aqui no bairro, a manter a união e até a ajudar pessoas que, se calhar, estão em

situações mais complicadas?

Cl – É! É isso! É bom!

M – Eu às vezes vou-me calando porque estou aqui concentrada, mas pode continuar a contar-me histórias!

Cl – (risos)

M – Eu quero é que conte…eu estou aqui….

Cl – (risos) Já chega!

M – Já chega de histórias?

Cl – (risos) Pois!

M – O que é que acha? Ainda não está acabado!

Cl – (risos) Pois!

M – Mas acho que sim, acho que já tivemos uma boa conversa!

M- Podes começar por dizer como é que te chamas, quantos anos é que tens, essas coisas assim.

F- Boa tarde, eu sou o Flávio Almada, sou conhecido aqui no bairro como LBC, que significa luto bu consegui que

significa na língua Cabo Verdiana, traduzindo para português, lutar para alcançar. Tenho 32 anos, vim de Cabo Verde em

2002 e estou cá no bairro há quase 13 anos. Nasci e cresci em Cabo Verde, depois terminei o liceu e vim para cá estudar o

curso de Sociologia na UBI (Universidade da Beira Interior), depois fiz transferência para Lisboa para trabalhar e estudar

ao mesmo tempo, e mudei de curso para Tradução e Escrita Criativa, e sempre vivi no bairro. Teve uns tempos que eu

dormia na Reboleira mas estava cá sempre no bairro.

M- E porque é que decidiste vir viver para aqui?

F- Porque eu gosto do espírito do bairro, gosto da sociabilidade do bairro. Gosto da forma como o bairro interpreta

o espaço público e eu considero que os edifícios que são construídos nas cidades são solitários, não têm aquela vida.

Também o bairro é muito semelhante ao sítio onde eu cresci. Toda a gente conhece toda a gente, cumprimenta-se toda a

gente, quando é preciso alguma coisa vais buscar a casa do vizinho ou da vizinha. Acho que é isso.

M - Mas já conhecias cá alguém, que vivia cá?

F - Sim, a minha mãe estava cá e a minha irmã e também tinha uns primos que na altura eu não conhecia, que só

vim a conhecer depois. Com a interação na rua, as conversas, acabei por descobrir que tinha vários primos cá que eu nem

sequer conhecia. Há tempos ainda descobri um primo próximo que não conhecia... Também o meu irmão do lado pai vivia

cá.

M-E tens mais irmão para além dele?

F- Tenho irmãos em Cabo Verde. Tenho duas irmãs e um irmão, tenho mais um irmão em Inglaterra, mais uma

irmã em França, mais um irmão em França e mais dois irmãos aqui na margem Sul.

M - E esse sentido comunitário é uma coisa que está muito em vários aspetos do bairro, não é só até de

proximidade…

F - Sim, sinto isso em vários aspetos. Mesmo no dia-a-dia, o próprio barulho, o próprio barulho às vezes quando

estás distante, sentes a falta do barulho no sentido positivo, até no sentido comunitário acabo por fortalecer. Fortalecer

tanto, não só para mim falando pessoalmente mas mesmo as senhoras que vendem o seu produto na rua, aquilo acaba por

ser uma terapia porque assim não estão em lares, não estão abandonadas. Há casos em que pessoas idosas numa

sociedade... estão a ser descartadas. Dou um exemplo, ninguém morre e fica dentro de uma casa 8 anos sem ninguém dar

conta, aqui isso é quase impossível de acontecer. Porque 3 ou 4 dias depois alguém vai dizer “então o fulano não saiu à rua,

o que é que se passa? ” e vai lá bater à porta. É mesmo da dinâmica do bairro ir bater às portas todos os duas e perguntar se

está tudo bem, acabas por dar conta se alguma coisa aconteceu. Por exemplo a minha mãe está doente e todos os dias, há

muita gente que me vem perguntar como é que ela está, não quer dizer que o bairro é diferente por que isso também se faz

nas aldeias em Portugal tanto no Sul como no Norte, isso também é Portugal.

M - Pois é assim um meio mais pequeno, as pessoas parece que se conhecem todas umas às outras.

F - Praticamente posso dizer que conheço quase, quase, quase toda a gente. Não digo a totalidade das pessoas que

vivem cá ou que passam por cá, mas eu conheço quase toda a gente.

M - E não queres falar um bocadinho do teu curso? Tiveste a trabalhar ao mesmo tempo não foi?

F - Ya, tive que trabalhar. Não sou o único, há muita gente, tanto ao nível de Cabo Verde e Portugal. O incentivo

para educação, que já não era grande coisa, anda a cair ainda mais. Há cortes para as pessoas estudarem, nas bolsas, no

financiamento, em tudo. O mercado de trabalho como está também, às vezes desmotiva, mas eu sempre gostei e gosto de

estudar. Sempre gostei de ler e de conversar com as pessoas, também porque para mim é fundamental a aprendizagem. É

através das conversas, então eu fiz o curso de Tradução e Escrita Criativa que incluía a língua inglesa, a língua francesa,

espanhol e também dava para aprender como se escrever para filmes, novelas, coisas do género. Tive que trabalhar nas

obras para pagar o curso. Trabalhei nas obras, tinha que sair as 7 e tal da manha e depois saia às 6 da tarde a correr e ainda

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para chegar às aulas sempre atrasado... E eu trabalhava com o martelo pneumático, que é muito pesado, às vezes eu ficava

a tremer, tive que parar uns anos. Trabalhei numa escola durante 3 anos para voltar a estudar. Cresci bastante e aprendi

bastante e isso é muito importante.

M - Fala me um pouco do LBC, tu és rapper, fazes ou tens alguma relação com a música aqui no bairro?

F - Sim, eu sou MC, mestre-de-cerimónias, o rapper só escreve, o MC é capaz de pegar num tema de improviso e

dinamizar uma festa ou uma coisa parecida. O MC é espécie de griô, que eram aquelas pessoas que andavam de vila em

vila em África, que cantavam ou contavam histórias e dormiam na casa das pessoas. O MC por si só tem uma

responsabilidade social. O rapper faz a música dele e fica no cantinho dele, o MC tem uma responsabilidade social, é muito

difícil teres um MC que não esteja engajado num trabalho social ou num ativismo ou numa coisa parecida. O rap como

disse o KRS - One, “rap is what you do, hip-hop is what you live”. Então rap é aquilo que tu fazes, o hip-hop é aquilo que

tu vives, o MC já agrega todos os novos elementos da cultura hip-hop. O rap que, à partida, parece uma coisa bastante

superficial porque está a ser bastante comercializado, a indústria cultural transformou o rap num produto de venda,

misógino, que promove a cultura de violência horizontal. É uma coisa bastante complexa, tem uma história bastante

complexa, e que me ajudou bastante, por exemplo, a aprender a língua inglesa, francesa, a ler bastantes livros de filosofia e

todas as áreas, estás a ver? Porque através do hip-hop podes trabalhar a linguística, a psicologia, a filosofia, a pedagogia,

então tens um leque. Porque como dizem na cultura hip-hop, o hip-hop apareceu como trivium e quadrivium, das sete artes

livres. Então o hip-hop é mais complexo e para mim foi aquilo que me ensinou bastante e que me motivou para continuar a

estudar. Mesmo a História, tanto a História geral do Mundo como a específica de África, que é uma memória que foi

completamente adulterada, substituída e mitificada, que até hoje provoca bastantes problemas. Foi através do hip-hop que

eu descobri a presença dos africanos cá em Portugal e também a relação dos africanos na época do, nós chamamos,

Holocausto e escravatura, com a criação do fado, foi através do rap que eu descobri o almanaque da cultura a nível da

escrita que os escravizados faziam na altura. Aqui, no Rossio, o Mocambo, foi por causa dos rap que eu descobri isto tudo.

Se não fosse pelo rap e pelo Ras Kass que escreveu uma música sobre a história particular de África não saberia muita

coisa, não ia saber nada sobre o feminismo, sobre a questão do racismo, a questão das desigualdades sociais, a questão de

classe. Não saberia nada se não fosse por causa do rap. Tive sorte, tive privilégio de conhecer MCs bastante conscientes

que serviram de meus professores, acaba por ser uma espécie de Sociologia também, tens que estar atento as coisas que

estão a tua volta e começas a questionar.

M – Pois que tu estavas em Sociologia primeiro, portanto á partida também já te interessavas por estes assuntos e

por esta área.

F – Comecei a escrever poesia quando tinha 14 ou 15 anos no bairro onde eu cresci e sempre fui um defensor da

institucionalização da língua cabo Verdiana e da oficialização, que não era oficializada, então eu comecei a escrever em

inglês, que me ajudou bastante a ter vocabulário e depois disse “Não!”, temos uma língua que é marginalizada então eu

vou escrever em crioulo, mas sem compromisso político, sem nada disso, era uma coisa instintiva. Comecei a escrever

poesia. Escrevia e depois é que entrei no mundo do hip-hop.

M – E achas que pode ser uma maneira de mudar qualquer coisa?

F - Eu só entendo a cultura como forma de transformar a sociedade, nunca entendo cultura como produto ou algo,

entendo a cultura como manifesto e toda a cultura é de intervenção que seja da pior forma quer seja da melhor forma. O rap

tem sido catalisador de várias mudanças, de contestações em varias partes do globo, tanto nos Estados Unidos, como em

Inglaterra, como recentemente aconteceu, aqueles dois MCs, podemos dizer rappers, que foram presos no Congo porque

estavam a contestar as eleições. Como no Senegal, como em Cabo Verde que o movimento de hip-hop esteve bastante

envolvido a nível da questão do salário mínimo, a nível do ensino, na questão do ensino da História de África. Como no

Brasil também serve para a autoestima e para a autoafirmação, são várias vozes numa voz só, que pode ser a voz de uma

comunidade. Na altura nos anos 60 tinhas vários movimentos sociais que contestavam, que falavam, atualmente tens os

rappers, os MCs. Está completamente banalizado, aquela cultura toda artificializada que aparece no MTV, mas estou a

dizer mesmo a cultura que está na rua e que está nas pessoas... em que só aqueles que vivem a cultura sabem explicar a

cultura. O rap dá para transformar muita coisa, a mim mudou bastante o meu comportamento, a forma como eu vejo o

Mundo, a forma como encaro as coisas, a forma como penso, a forma como eu atuo e a forma como eu tenho a minha

visão a nível da utopia. O rap ajudou-me bastante nisso.

M – E consideras-te, como hei de dizer...ativista?

F – Não, eu considero-me é MC.

M – Ok, certo.

F – Porque acho que isso também é bastante complicado.

M- Pois, estava a evitar usar o rótulo...

F- Porque há muita gente que faz muita coisa, por exemplo aqui na comunidade temos pessoas que eu considero

que são heroínas, que são anónimas, como as mulheres que tanto fazem e trabalham, numa sociedade completamente

machista. Tens muita gente, tens pessoas idosas que estão a ser descartadas, por causa dessa política neoliberal que põe em

primeiro lugar o lucro em vez das pessoas quando devia ser ao contrário. A felicidade devia ser o fio condutor de qualquer

governo mas não é isso que acontece, então há muita gente e também é uma sociedade de elogios e endeusamento, uma

sociedade que acaba por cultivar o ego. Não posso dizer que estou imune de passar por isso porque também sou humano e

aquilo que é do humano é meio estranho. Então basicamente é isso, há muita gente...

(pausa)

F – Tudo é político, tudo é político. O meu envolvimento em questões relacionadas com a periferia e com o bairro

é específica mas também há várias questões que, tanto através da música como através de outras coisas, a gente manifesta.

Porque isto está tudo interligado, tudo interligado. Questões de solidariedade, por exemplo com bairros, bairros em

particular, porque as questões estão mais visíveis... o desemprego crónico, em massa, a questão de alto nível de

encarceramento de jovens negros e também a violência policial e também a própria forma como a cidade se organiza, são

questões que nos preocupam. A questão da cidadania e da nacionalidade, porque há um grupo de jovens que nasceram

neste país e ainda não são nacionalizados por causa da lei de 81. Isso acaba por complicar mais as coisas, é uma exclusão

de espaço e ainda uma exclusão a nível jurídico, acaba por complicar as coisas. Também tem a outra questão, a

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estigmatização sistemática e a criminalização do bairro. Outra coisa também é a especulação mobiliária e o interesse que

tem nesses espaços, podemos ver como foi conduzida a demolição do bairro da Santa Filomena, em que se pôs em prática

um PEA (plano especial de alojamento) completamente caduco, de 92 ou 93, salvo erro, em que pessoas com filhos,

pessoas que ficaram sem casa, pessoas que já estavam numa condição vulnerável e que já estavam marginalizadas, houve

um reforço a nível social de continuar essa situação. Até quando as pessoas questionaram foram convidadas a abandonar o

país, pessoas que têm nacionalidade portuguesa. Para não falar da questão de violência, tanto simbólica como de violência

física e psicológica de que as pessoas foram alvo. Isso é inadmissível, estás a ver? Nós costumamos dizer que aqui o bairro

é uma zona em que o estado de direito está suspenso, é um estado de exceção não é? Onde tudo pode acontecer,

principalmente a nível da violência policial. Por exemplo, um jovem aqui há três dias que está com ligaduras na cabeça

porque levou uma grande surra. Sem falar do caso de 5 de Fevereiro, que também estive lá, isso nem vale a pena porque

isso foi o meu caso e das pessoas que estavam comigo, que vieram falar ao público, mas há um conjunto de casos, como

por exemplo o do Élson Sanches que foi morto, tinha 14 anos, com um tiro na cabeça a 14 cm.

M – Tinha 14 anos?

F – E o agente foi absolvido. Dentro do julgamento, o advogado de defesa do arguido, comparou o jovem a uma

gazela e responsabilizou a mãe por aquilo que aconteceu e ainda utilizou o espaço que já é criminalizado como justificação

do medo do agente. Um jovem de 14 anos... Isso é um dos casos. Há o caso do Mosuo, que foi violentado, rebentou uma

veia na cabeça e ninguém sabe o que é que se passa, foi violentado na esquadra. Ninguém sabe o que é se passa e ficou

assim. Há um conjunto de casos de morte, de morte! Sem falar da violência que acontece normalmente.

M – É uma coisa que é constante, é uma realidade permanente?

F – Permanente, que a impunidade impera, estás a ver? Se eu falar na questão das pessoas a morrerem aí no

Atlântico e no Mediterrâneo não acontece nada. Claro que Portugal se sente orgulhoso de fazer parte de Frontex. A questão

é porque é que uns se podem movimentar, se o dinheiro pode movimentar, o capital pode movimentar à vontade porque é

que as pessoas não podem?

M – É uma boa... É um comparação...

F – É uma pergunta não é? Há varias questões a nível do desemprego. Há pessoas da Cova da Moura que para as

entrevistas de emprego não colocam o endereço.

M – Pois isso é algo que eu me tenho andado a questionar bastante quando falo com as pessoas, é até que ponto é

que chega o preconceito de uma pessoas viver aqui, ou ser daqui?

F – As pessoas podem chamar de preconceito mas aqui pela nossa experiência aquilo é um racismo institucional,

estás a ver? É institucionalizado, que vai desde, que está em toda esfera social, das instituições. Depois, é uma herança

colonial... A semântica foi alterada não é? Mas o quadro legal é a mesma coisa. Por exemplo, é preciso ter uma residência

para ter um contrato de trabalho e depois é preciso ter um contrato de trabalho para ter uma residência. É a mesma lei que

dizia … (mesmo da outra) … para ter a 4ª classe é preciso ter o Bilhete de Identidade e para ter o Bilhete de Identidade é

preciso ter a 4ª classe. Então... A nível das pessoas trabalharem a vida toda, construíram infraestruturas das quais hoje o

país se orgulha e no final das contas são tratadas da mesma forma que as pessoas de Santa Filomena. E quando se inventa

um arrastão, que nem sequer aconteceu, em que jovens foram criminalizados. Para não falar de quando 4 jovens negros em

Lisboa não podem andar juntos à vontade na rua porque são considerados um Gang, isso acaba por dizer que o perfil racial

é criminal. Podemos falar dos Estados Unidos que é uma situação mais extrema mas aqui a coisa não esta muito melhor. E

há pouco li no jornal, acaba por haver a possibilidade de haver infiltração da extrema-direita na Polícia, então a situação é

muito mais grave. E sabe o que é o pior? O pior é que há silêncio. Na democracia de fachada há silêncio. A democracia

termina na fronteira do bairro, porque quando se entra aqui as coisas mudam. São assistentes sociais que passam dados há

polícia, que passam dadas ao SEF, não há nem o mínimo de respeito pela privacidade das pessoas. Bom, isso também é

uma razão porque as pessoas não votam por aqui, não há esperança. É um direito dos votos, se podemos contribuir para a

segurança social ser 14 % do Produto Interno Bruto, aproximadamente, porque é que não se pode votar? Só se vota nas

autarquias, as autarquias não influenciam nas políticas da imigração e basicamente é um conjunto de situações. Essa

institucionalização do racismo que já foi praticada durante muitos anos e que depois daquilo que ainda se chama, em

Portugal, Guerra do Ultramar, que devia se chamar, luta pela independência dos territórios colonizados. Portugal não fez

catarse da História, ainda hoje se ensina uma História na escola que é um ataque á autoestima das crianças, que é uma

violência incrível. Também é o país onde nós estamos, as coisas não mudaram assim tanto como as pessoas pensam. E isso

é muito difícil porque há um conjunto de pessoas que estão vulneráveis, não só cá no bairro, em situação de desemprego

durante muito tempo, em que recebem a propaganda de que são bairros como a Cova da Moura e a Santa Filomena que são

o problema mas não foi Cova da Moura que fez pacto com a Troika, não foi Cova da Moura que implementa a austeridade.

A Cova da Moura nem sequer tem uma voz, fala mas ninguém ouve. Cova da Moura não participa na decisão. E é um

conjunto, é os interesses de algumas grandes empresas que estão na agenda dos políticos, isso é evidente, não é preciso ser

um génio para ver a situação como a situação está.

M – Tu achas que há possibilidade que venha a mudar esta situação? Se não houver possibilidade também, porque

é que uma pessoa continua a tentar não é?

F – A natureza humana é uma coisa complexa, de repente muita coisa pode acontecer, não dá para fazer futurologia

a nível da questão social. Chega a um ponto em que as pessoas vão dizer “basta, já chega”. Depois há varias coisas não é?

Há pouco fizeram um debate no parlamento sobre a situação das prisões na Europa, há um conjunto de leis que

praticamente nenhum dos países anda a cumprir. Depois acaba por complicar estás ver? Vai haver uma fase em que as

pessoas vão dizer “já basta”, e quem vai alterar isso são as pessoas e não dá para fazer futurologia sobre se vai melhorar ou

piorar.

M – Pois, nem queria tanto falar em termos de futurologia, tanto, era mais em termos de esperança, quase.

F – Isso…eu…a esperança pode ser a última a morrer e a primeira a matar, né? Eu acho dá para ver se as pessoas...

Isso depende, depende porque as coisas estavam... Muito protesto na rua, agora não se vê nada. De repente talvez... espero

que sim.

M – Podias-me falar um bocadinho do teu envolvimento nestas questões que estávamos a falar há bocado?

F – Costumasse dizer que tudo é político, não é? Eu acho que foi acidental.

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M- Podia-me dizer o seu nome, a sua idade, apresentar-se.

Lu- O meu nome é Lucinda, tenho 64 anos.

M- E o que é que faz?

Lu- Trabalho como ama. Tenho 4 crianças a tomar conta.

M- Toma conta de 4 crianças?

Lu- Sim...

M- E há quanto tempo é que vive aqui na Cova da Moura?

Lu- Há... 33 anos...

M- E porque é que veio viver para aqui

Lu- Vem viver para aqui porque o meu marido já estava cá, depois mandou vir buscar-me para vir para aqui para

ao pé dele.

M- E de onde é que vem?

Lu- De Cabo Verde.

M- Qual é que é a sua... Onde é que vivia lá?

Lu- Vivia em Santa Catarina.

M- E desde que veio para cá começou logo a trabalhar como ama?

Lu- Não... Primeiro tive o meu segundo filho e ficou a cuidar dele em casa durante três anos porque não havia ama

para criança, naquele tempo.

M- Quantos filho é que tem?

Lu- Tenho dois, trouxe um de lá e um aqui.

M- E o seu marido? Ele veio para cá mais cedo para fazer o quê?

Lu- Veio para aqui para trabalhar, para arranjar meios melhores que lá estava assim um pouco mal. Não há chuva...

Nós lá vivíamos através de campo.

M- Eram agricultores? O que é que faziam?

Lu- Sim. Cultivamos o campo e faz tudo de um pouco. Semear o milho, o feijão... Fazer horta, por cana, mandioca,

batata. Faz tudo!

M- Faziam um bocadinho de tudo.

Lu- Um bocadinho de tudo para nós sobreviver. Criávamos animais, vivemos assim.

M- E não era suficiente para viverem?

Lu- Era suficiente, mas depois houve crise. Com pouca chuva tinha pouco água, então para nós sobrevivermos

temos que vir para aqui. Tive que imigrar, experimentar a imigração. Começa a melhorar, as condições de vida e os

homens quando viam as coisas começarem a melhorar querem a família ao pé. Então o meu marido diz ‘olha, você é

melhor virem para aqui que assim vivemos melhor’. É que trabalha e manda para lá, depois ele aqui também tem que viver.

É mais difícil. Quando é junto, pouco pão dá para dividir.

M- E o seu marido... A Lieve disse-me que ele já faleceu.

Lu- Sim, sim... O meu marido faleceu.

M- Há quando tempo?

Lu- Há 4 anos e tal, foi em 2011.

M- E o que é que ele fazia cá?

Lu- Trabalhava em construção civil.

M- E na altura a vossa vida melhorou um pouco quando vieram para cá...

Lu- Sim, melhoraram um bocado porque tinha outros meios de viver. Já conseguíamos ter água em casa, luz em

casa, era outro mundo. Era automaticamente diferente, nós lá não tinham nem água nem luz, nem telefone. Tinha que

buscar água no rio com balde na cabeça, levar a roupa na cabeça para lavar no rio. Era vida mais cansado, trabalhar no

campo com enxada, de manhã até à noite. A vida é mais difícil mas nós gostamos daquilo que fazemos.

M- Gostava de ter podido ficar lá?

Lu- Sim, se houvesse abundancia eu não me importava, que é um trabalho que eu gosto muito de fazer.

M- E já voltou lá entretanto, desde que está cá?

Lu- Olha, umas 15 ou 16 vezes. Ah, porque deixei lá o meu pai e minha mãe. O meu pai faleceu entretanto, mas a

minha mãe ainda está lá.

M- Ainda está lá a sua mãe, então vai lá de vez em quando.

Lu- Faz 6 meses que tive lá.

M- E gostava de voltar a viver lá agora, se pudesse? Ou já está muito habituada?

Lu- Estou habituada aqui e gosta de cá estar. Já tem amigo, vizinhos e não sei quê. E lá os vizinhos que eu tinha

deixado já são poucas. E não tenho o meu marido e os meus filhos têm a vida deles, já não sei o que vai ser da minha vida

daqui para a frente, está entregue na mão de Deus.

M- É uma pessoa religiosa?

Lu- Sim.

M- É bom ter fé, em alguma coisa.

Lu- Sim, é sempre bom. É a fé que nos ajuda.

M- E aqui, na Cova da Moura. Desde que está em Portugal que vive no bairro?

Lu- Sim, sim.

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M- O que é que acha do bairro? Gosta de cá viver?

Lu- O que eu acha do bairro é uma coisa fantástico. Parece que eu estou em Cabo Verde. Me sinto no meu país. Me

sinto como se fosse estar junto na nossa terra mesmo, porque o bairro parece a nossa terra. Estamos aqui nós, junto com as

pessoas... Temos que viver com os portugueses e sabemos viver, mas estamos connosco. Isso é uma coisa que...

M- É muito bom para si.

Lu- É muito bom para nós.

M- Pelo menos permite que se mantenha vivo o espírito...

Lu- Eu gosto é que isto continua, porque isso é a nossa vida que está aqui na bairro. Nós chegámos aqui, plantámos

aqui, a nossa vida está aqui. Criámos aqui os nossos filhos, os nossos netos. Eu já estar a viver aqui no bairro há mais que

na minha terra. Já tem mais anos aqui que na minha terra onde eu nasci. Por isso já tem um pouco também de aqui.

M- Claro, esta é a sua casa.

Lu- É a minha casa. É o que nós temos. O meu marido já não está mas ainda está filhos e está eu.

M- os seus filhos também vivem cá no bairro?

Lu- Não, eles não vivem cá no bairro, mas eles estão cá. Eles vêm-me visitar sempre, está sempre comigo, fala

sempre como se estivessem... Eu parece que não sinto sozinha, fala comigo todos os dias, às vezes chama de manha. Estou

a sentir acompanhado mesmo, estou a sentir que eu não estou só. Tem vizinhos, fala comigo, chama-me. As crianças vêm-

me visitar, para além de eu tenho crianças que cuida. As crianças dos vizinhos vem aqui, fala comigo, conversa. ‘Estás

bem’, não sei quê. É uma coisa que eu sinto e que me dá alegria para viver.

M- E os miúdos de quem é ama, eles são filhos aqui de pessoas do bairro

Lu- Alguns são de pessoas que vivem no bairro. Às vezes são de pessoas quem vêm.

M- O serviço de ama é uma coisa relativamente comum aqui, há muita gente que faz...

Lu- Aqui no bairro nós trabalhamos pela conta da instituição do Moinho da Juventude. Ama particular assim nós

somos 20 ama aqui no bairro, relacionado com o Moinho.

M- há quanto tempo é que já é ama?

Lu- Comecei desde 2002, ai uns 13, 14 anos.

M- E gosta de trabalhar com crianças?

Lu- Esse é uma das coisas que sonho realizou.

M- Estudou quando estava em Cabo Verde, ou cá?

Lu- Tinha muito problema com o estudo, mas estudou um pouco, mas muito pouco. Acabou de fazer quarta classe

aqui no moinho da juventude porque não tinha condições de fazer a escola lá. A minha mãe era muito doente e eu é que

tinha que cuidar dela porque já era crescida um pouco. O meu irmão já era mais crescido e já ia para campo com o pai. Eu

é que ficava em casa com a minha mãe que era adoentada. Então eu é que tinha que ajudar em algumas coisas que ela não

podia fazer. E tinha pouco tempo para ir para a escola. Eu costumava ir até à escola que não era muito longe da casa. Eu

costumava ir até à porta da escola e ela ainda me chamava para voltar que ela precisava de mim, que não podia ir. E eu

regressava com as lágrimas nos olhos mas tinha que obedecer.

M- Gostava de ter estudado?

Lu-Gostava muito de estudar, mas infelizmente... Não porque ela não queria mas porque não tinha condições.

Apanhou uma ferida no pé desde o mês que eu nasci, desde 30 dias que eu nasci apanhou uma ferida no pé. Nunca mais

seca, fica internada nos hospitais. Ela me contou, ficou comigo lá 4 meses, pequenina, alguém ajudava porque ela tinha dor

e nem dava para cuidar de mim. Ah... E então, daí, quando deram alta para voltar para casa ela não tinha força muita para

cuidar das crianças e alguém tinha que ajudar, o meu pai e assim. Mas pronto, eu consegui sobreviver e ainda estou, graças

a Deus, a ela e todo o mundo que me ajudou. Mas eu também depois compreendi que eu tinha que ajudar ela, fiquei com

menos estudo mas estou feliz porque ela ainda é viva. Está aqui.

M- Ah! Que giro! Quem é...

Lu- Essa é a minha cunhada, mulher do meu irmão. E pronto, não deu para mais mas ela fez tudo por mim dentro

da possibilidade dela. E eu também fiz muito por ela, até hoje tem gosto, por isso é que eu vou lá muitas vezes mas mesmo

as que eu vou não chega porque eu sei que ela sofreu muito no tempo que eu era pequenina. Para criar um filho uma pessoa

já sem andar, era muto difícil, mas ela lá conseguiu.

M- E tem um irmão, não é?

Lu- Sim, tem um irmão que ajudava mas também como eu diz, viver é dos campos e tratar dos animais. Então o

meu pai e o meu irmão, que é mais velho que eu dez anos, então eu tinha 6 ou 7 anos e ele já estava com 17 anos, já um

homem feito. Já trabalhava e eu é que ficava a cuidar da minha mãe. Já depois, mesmo na doença, ela ainda tem uma filha

depois de mim 7 anos. Já eu passa a tomar conta da menina. E assim, sobrevivemos. Com dificuldade mas com muita

graça, porque era uma família muito unida.

M- E os seus irmãos continuam em Cabo Verde?

Lu- O meu irmão está em Cabo Verde, ele é que está a cuidar da mãe, nós só visitamos.

RS- Ilha de Santo Antão?

Lu- Não, ilha de Santiago.

M- E tem alguma relação com o Kola, ou assim com algum destes grupos?

Lu- Eu participa sempre porque eu gosta, gosto de batuco, do toque deles, e eu acompanha quando é Kola San

João, quando é Batuque. E batuque eu adoro, não sabe fazer mas adoro e acompanho sempre no Moinho porque eu adora

as coisas que fazem lá. O Moinho foi uma coisa que nasce aqui no nosso bairro e fantástico, sem palavra, porque nos ajuda,

sabe acolher tudo aquilo que nós temos, que podemos deixar de viver aquilo que nós temos mas eles sabem-nos ajudar.

Tem muitos pessoas que pertencem à arte, para praticar, e eu acho muito bonito isso. Porque as pessoas que dão batuque

são pessoas que gosta mas que não sabe como faziam aqui. O Moinho conseguiu a porta para que eles consigam fazer o

batuque deles e foi muito giro. Também o Kola San Jon foi a mesma coisa e é coisa muito giro e muito divertido, quem faz

gosta muito, é tão bom quando as pessoas estão a fazer aquilo de que gostam. Isso dá uma vida! Para mim, eu acho.

M- Sim, eu acho muito importante as pessoas fazerem as coisas com gosto.

Lu- Com gosto! Não apenas por fazer.

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M- E é uma maneira de se manterem vivas algumas tradições e uma cultura.

Lu- Pois, é uma tradição que é para não perder e se a gente não viver a gente acaba por perder. Assim as crianças

vão crescer a ver o pai ou a mãe a fazer aquilo, ou a tia ou os tios, e as coisas vão crescendo porque as crianças vão

crescendo nisso.

M- É bom para transmitir, para passar...

Lu- É uma transmissão. Como diz na educação, não é muita coisa para educar, basta dar bons exemplos. Está a

ver?

M- É uma boa maneira de... (risos)

Lu- Sim, sim!

M- E tem assim alguma história sobre... por exemplo aqui na Cova da Moura ou em Cabo Verde, que possa contar-

me, que a tenha marcado de alguma forma?

Lu- Bem, a história... Sei lá, só se de trabalho, oh...

M- Pode-me contar alguma história de trabalho. Trabalhar em Cabo Verde era mais duro?

Lu- Sim... É um pouquinho mais duro do que aqui, porque aqui quem vai para patroa trabalha no duro para passar a

ferro, para limpar a casa, se for preciso ir às compras, depende de aquilo que a patroa precisa. É trabalho chama trabalho. E

nós íamos para campo, seguia para cavar a terra, ou para tirar palha do milho, é agricultura. Se nós semeamos o milho e

não tiramos a palha que nasce nada temos. Então a nossa vida era ir para campo, convidava um, três, quatro, cinco e ia nós

lá uns dez num campo. Então trabalhavam hoje comigo no meu campo e amanhã nós íamos para o campo de outra colega.

É assim que nós funcionamos lá a vida. Depois de manhã vamos para campo de outro, depois de manhã vamos para campo

de outro, depois de manhã vamos para campo de outro até voltarmos para mim outra vez, e assim sucessivamente até tudo

ficar bem trabalhado. Depois na fase da colheita é a mesma coisa. Sempre estamos em conjunto, nunca estamos só, junta.

Nós dizemos assim um trabalho de djunta mo. É um espirito de trabalho que nós temos. Juntar mão quer dizer trabalhamos

com a mão, juntamos três, quatro, cinco e fazemos a minha, amanha fazemos a outra, é djunta mo.

M- É muito gira essa maneira de trabalhar, uns com os outros.

Lu- É! Sozinho trabalha, mas não é a mesma coisa. Assim, lá estamos divertidos, contamos a história, um conta

uma, o outro a dele, o que dá mais piada nós rimos. Assim sucessivamente. Há uma pessoa que leva a comida, depois nós

sentamos quando temos fome e comemos e assim junta a mão mesmo. Sentimo-nos bem. É como que estamos num

acampamento, de manhã até à tarde, depois comemos, depois lanchamos, à tarde fim do dia vamos para casa. Depois na

hora de ir para casa temos que levar palha porque temos lá animal, temos lá vaca, temos burro, temos cavalo, temos lá

muitos animais por acaso na casa dos meus pais. Tinha duas vacas, tinha cavalo, tinha burro, tinha boi, bovino né? Para

além de cabras, porcos, era muita coisa para a gente tratar. Eu trabalhava tanto!

M- Isso era na casa dos seus pais?

Lu- Na casa dos meus pais. Na minha casa, quando eu casei já tinha começado com a crise já não tinha assim tanta

abundância. Para termos tantos animais é preciso termos abundância de anos para termos muito alimento para os animais,

palha, muita palha para os animais para podermos cuidar. Quando temos pouca abundância os animais também ficam com

fome. E quando não tem chuva não há palha para os animais comer, falta água para beber, e assim é muito difícil.

A nossa história era mais para trabalho, mais para... E também juntamos à tarde para fazer um convívio, mas

sempre no meio de trabalho, quase praticamente. Convívio era quando tínhamos muito milho, descascar o milho também é

djunta mo. A tarde e hoje é ali para a Lucinda, depois é para o João, depois para a Maria. Era assim. Fazemos isso para

ajudar a conservar os alimentos, para não estragar. Trabalhava sempre em conjunto.

M- E sente que essa ideia de união é transportada aqui para o bairro?

Lu- O bairro tem muita resposta nisso também, sempre que alguém precisa de alguma coisa nós juntamos sempre.

Quem precisa de um apoio para qualquer coisa estamos todos juntos para ajudar, para fazer, quando é para fazer uma coisa

nós ajudamos, quando é para partilhar nós também estamos em conjunto. Eu sinto isso muito.

M- E sente que há algum preconceito em relação ao bairro?

Lu- Há preconceito porque já tem muita fama aqui no bairro. Isso é coisa que toda a gente sabe. Às vezes

apanhamos um táxi e dizemos Cova da Moura e alguns diz assim ‘Não, Cova da Moura não vou porque já passei lá isto, já

passei lá aquilo’. Eu não diz que não porque eu só posso dizer que eu moro lá já há trinta e tal anos e nunca me aconteceu

nada mas não estou insistir para ir porque, pronto, as coisas acontecem e às vezes quando acontecem coisas aqui no bairro

eu vejo só na televisão. Eu aqui em baixo já não é como lá em cima, aqui tem menos pessoas, menos barulho e não passa

assim tanta gente e às vezes eu estou ali dentro e não ouve nada. Às vezes ligo a televisão para o telejornal e vejo coisas do

bairro. Mas às vezes eu também ouve, não é? Às vezes também ouve... Passando às vezes 8 dias, alguém me diz ‘Ah!

Passou assim, e passou assim’ e eu não sabia de nada. Eu sei que acontecem muitas vezes que não são pessoas daqui que

vêm fazer as coisas. Não diz que daqui também não faz, porque quando junta é como nós quando tem filho e sai. Não

podemos por a mão no fogo sobre o que eles andam a fazer. Dentro de casa sabemos que pode ser um santinho e um

anjinho mas na rua nós não sabemos. Eu não sei lá fora o que é que e se está a passar, como é que é, mas pronto. Eu aqui

não tenho que me queixar. Se preciso de sair á tarde ou se anoiteceu na rua não tem medo de vir para aqui. Se eu precisa de

ir aí à Damaia e já são 8 horas e posso ir porque não tenho medo. Tranquilo. Não sei se é porque alguém já me conhece,

porque quando eu ouve a queixar eu fico assim um bocadinho estranho, porque eu nunca senti nada. E quando a gente não

queixa não pode dizer que é mau. Mas pronto, eu não sei como é que as coisas acontecem. E também não quero saber

porque para saber é preciso acontecer-me a mim e isso espera que continua assim. Eu acho que aqui há muito respeito.

M- Pelas pessoas que vivem cá?

Lu- Pelas pessoas que vivem cá e pelas pessoas que vêm. Pessoas que vêm aqui, não sei se acha que também há

respeito. Depende da maneira como a pessoa entra aqui. Depende da atitude e como vem. Há alguns que, se nós vamos a

um sítio e vamos provocar qualquer coisa toda a gente fica com a orelha assim ‘Vê lá, tem cuidado’. Se nós entrarmos com

respeito e vai fazer as coisas que nós vamos fazer e sem meter com a vida de ninguém eu acho que é muito difícil as coisas

acontecem. Na minha maneira de pensar!

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M- Sim, era precisamente isso que queria que me contasse. Queria perceber como é que as pessoas que vivem cá

sentem esta ideia que se constrói sobre o bairro, que pode muitas vezes ser uma ideia errada. Pode por vezes ter

determinado fundamento, mas muita gente fala sem conhecer.

Lu- Nós não podemos falar as coisas sem sabermos ou sem conhecer. Porque às vezes factos levantam quando nós

falamos das coisas sem saber.

M- É bom que pessoas venham de fora conhecer...

Lu- Sim, conhecer, observar. Porque observar é uma coisa e conhecer é outra coisa. Para ver se as pessoas

consegue sentir que também não +e só mau que mora aqui. Quando a gente passa tem que ver e depois observa.

M- E acha que isso tem acontecido cada vez mais?

Lu- Eu acho que sim, acho que as coisas estão a melhorar. Estão a falar já de alguma maneira diferente...

M- É bom acreditar que as coisas melhoram.

Lu- Sim, vamos acreditar.

M - Começa por dizer o teu nome e a tua idade.

R - O meu nome é Rui Gomes, tenho 23 anos e nasci na Cova da Moura.

M - O que é que fazes?

R - Estudo no Ensino Superior, na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa.

M - Vives cá com a tua mãe?

R - Sim, com a minha mãe, o meu pai e os meus dois irmãos. Entretanto o meu pai emigrou devido à crise, por isso

por agora vivo apenas com a minha mãe e os meus irmãos.

M - E estás em que ano de Arquitetura?

R - Este ano transitei para o quarto ano.

M- São cinco, não é?

R - Sim, são cinco anos com mestrado integrado.

M - Então e porque é que decidiste ser arquiteto?

R - Porque é o meu sonho desde pequenino. Desde que me conheço que desejo ser arquiteto ou algo que esteja

relacionado com artes. Comecei a estudar artes no nono ano para então depois ingressar em Arquitetura.

M - Mas alguma razão especial levou-te a escolher esse caminho?

R - Talvez o facto do meu pai ter trabalhado na construção me tenha influenciado. A família...

M - Como um futuro arquiteto, o que pensas em relação à urbanização da Cova da Moura, por exemplo? Mudavas

alguma coisa?

R - Penso que talvez seja interessante vir a relacionar a minha tese de mestrado com a situação cá do bairro. Eu

vivo cá, sou próximo a esta realidade e, contrariamente a outras teses, eu posso oferecer o ponto de vista de quem vê esta

realidade por dentro, de quem cresceu aqui e jogou à bola nestas ruas, de quem precisou conhecer bem os problemas do

bairro, não para as teses de mestrado, mas para fugir à delinquência, para poder ser alguém, enfim... para poder ser um bom

exemplo para os outros como eu penso que sou e contrariar os preconceitos que se criaram sobre a nossa imagem.

M - A vossa imagem é denegrida lá fora? Achas que esses preconceitos podem ter um fundo de verdade? Fala-me

sobre isso.

R - No meu primeiro ano da Universidade, quando os meus colegas souberam que eu sou da Cova da Moura,

começaram a surgir umas brincadeiras, comecei a ouvir umas piadas sobre o bairro... Mas sempre tentei mudar um pouco

essa imagem. Claro que o bairro tem muitos problemas, mas nem tudo o que os média falam é cem por cento verdade.

M - Pois. As pessoas têm tendência a criar estereótipos sobre as coisas quando não as conhecem. E são errados a

maior parte das vezes.

R - Claro. Isso é assim até conhecerem a pessoa. Depois de um tempo, quando me conheceram realmente,

perceberam que afinal não somos todos iguais.

M - Bem, já não sei onde é que íamos... Estávamos a falar de estereótipos.

R - ...criados pelo exterior, por pessoas que não conhecem a vida. Por exemplo, tu, antes de conheceres o bairro,

deves ter reparado que as pessoas não falam muito bem. Se calhar nunca falaram bem, excetuando alguns que vieram

visitar ou fazer algum trabalho sobre o bairro. Mas aqui existem pessoas honestas que acordam às 4 ou 5 da manhã para ir

trabalhar e chegam a casa às 10 da noite. A vida é árdua. Eu tenho sorte porque sempre tive uma mãe e um pai presentes e

eles ajudaram-me a chegar onde cheguei. O meu futuro é incerto mas...

M - Mas o futuro é sempre incerto, não é? De facto é bom haver influências positivas dentro do seio familiar, mas

também a existência destas associações que apoiam os jovens do bairro a escolher um caminho para as suas vidas. Como é

que achas que podemos tentar mudar esta imagem que vai prevalecendo sobre o bairro, o tal preconceito de que falávamos

há pouco?

R - Acho que as pessoas precisam vir cá experimentar a realidade. As palavras não chegam, não resultam. As

pessoas passam na estrada e vêm estas casas, construções mal acabadas, e ficam com uma má imagem das pessoas

também. Apesar de tudo as construções têm melhorado bastante ultimamente. Mas é preciso que as pessoas que passam

entrem no bairro para conhecer as pessoas que estão e a maneira como vivemos, a nossa cultura... Temos a nossa música

que também é divertida, temos gastronomia, temos história... Podíamos até criar uns workshops, talvez.

M - É uma hipótese...

R - E não só... Há uns dias atrás decorreu o nosso festival da Cova da Moura que é também uma forma das pessoas

conhecerem uma boa parte desta realidade.

M - Tu estás, de alguma forma, envolvido no Moinho e na organização dessas atividades?

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R - Não diretamente. Como a minha mãe e o meu irmão trabalham na Associação, eu vou acompanhando as

atividades que são realizadas cá. Costumo fazer voluntariado aqui no Moinho e participo em algumas atividades.

M - Achas que este tipo de atividades são relevantes como forma de ocupar e acompanhar as crianças e jovens que

começam a frequentar a rua?

R - Pode ser uma boa forma de despertar neles algum interesse. Nos estudos, por exemplo. Aqui as pessoas chegam

ao 9º ou 10º ano e começam a perder o interesse... porque é aborrecido ou porque os pais deixam de ter possibilidades e

também já não podem controlar os miúdos. Nessa altura começam a andar pela rua e se na rua houver quem os possa

acompanhar, melhor. Aqui no bairro temos núcleos que apoiam os jovens. Mas é claro que o interesse deve partir dos

jovens também. Eu estou a falar de jovens que não se... Jovens mais novos que eu...

M - Certo. O que é que gostavas de fazer quando acabares o curso? Gostavas de sair de Portugal ou ficar por cá?

R - Eu gostava de ficar perto mas a arquitetura em Portugal está difícil. Gostava de ir para África conhecer um

pouco sobre as minhas raízes e, quem sabe, ficar por lá a trabalhar. Mas a minha prioridade é mesmo ficar por cá. Nasci cá,

estou habituado a esta vida.

M - Os teus país vieram de onde?

R - A minha mãe nasceu em São Tomé e o meu pai em Cabo Verde.

M - Alguma vez lá foste?

R - Fui a São Tomé uma vez. Tinha três anos por isso não conta. Nunca fui a Cabo Verde. Gostava de ver como foi

a vida deles lá e que motivos os conduziram para Portugal. É claro que foi a procura de uma vida melhor, contudo gostava

ver de perto em que condições viviam naqueles países.

M - Os teus pais falam contigo sobre isso?

R - Às vezes, em reuniões familiares ou durante o jantar, contam-nos histórias engraçadas ou outras mais

complicadas que relatam a suas vidas difíceis.

M - Então sempre te foram passando...?

R - Sim... Claro, cada um puxando a sardinha à sua brasa. São Tomé de um lado, Cabo Verde do outro e "porque

aqui é melhor" ou "ali é que é"...

M - Isso também é engraçado.

R - Então acho que tenho mesmo que lá ir para saber qual é que eu prefiro.

M - Se calhar não tens que escolher.

R - Sim. Se calhar, não. Posso gostar dos dois.

M - Exato.

Simões - Onde é que se conheceram os teus pais?

R - Conheceram-se aqui.

Simões - Aqui na Cova?

R - Não tenho bem a certeza mas acho que sim. O meu tio, irmão mais velho da minha mãe, quando a trouxe para

cá o meu pai já cá estava no bairro. Então dizem que foi aquela paixão à primeira vista... Acho que foi assim... acho que foi

cá no bairro.

M - Eu não conheço o teu pai mas já conheci a tua mãe. E ela é muito ativa, está sempre a fazer qualquer coisa.

R - É verdade. Mesmo em casa ela não para. Está sempre a mexer de um lado para o outro.

Há uns tempos atrás esteve doente e foi operada, mas a ansiedade por ir trabalhar era tanta que a ajudou a curar-se

mais rápido. Ela nunca se desliga do trabalho, até porque trabalha mesmo ao lado de casa.

M - No futuro gostavas de construir uma família e criar os teus filhos aqui?

R – Claro que todos queremos sempre algo melhor, um sítio melhor para viver... Mas tudo farei para que a minha

família, os meus filhos, a minha mulher ou futura mulher – não sei quem será (risos) – conheçam as minhas raízes, este

lugar onde nasci e cresci.

M – Pergunto isto porque ouço muitas pessoas que dizem que o facto de terem crescido cá no bairro incutiu nelas

um sentido de comunidade particular.

R – Isso é verdade. Aqui os vizinhos preocupam-se uns com os outros. Se desapareço por dois dias sem dar

notícias alguém virá pelas ruas a perguntar por mim. Sim, há um grande senso de comunidade. Talvez devido a esta forma

de convivência...

M – Esse tipo de interação pode ser bom e também pode ser mau (risos).

R – Sim, depende das pessoas... há vizinhos de quem gostamos mais e outros que nem por isso. Mas aqui quase

todos dão-se bem...

M – O lugar também é propício a este tipo de interações. Eu também cresci numa cidade pequena onde os meus

vizinhos sabiam sempre tudo sobre mim: o que eu fazia, onde estava... E esta proximidade nem sempre foi muito positiva

para mim. Mas, por outro lado, sinto que qualquer criança que cresça no centro de Lisboa não tem tanta facilidade em

conviver na rua com as outras crianças.

R – Sim. Aqui as pessoas não têm medo da rua como possivelmente acontece em Lisboa. As pessoas tomam conta

dos filhos uns dos outros. Se eu for perguntar ao vizinho onde está o meu filho, ele vai saber dizer-me. E isto em Lisboa é

menos possível. Uma mãe preocupada chama a polícia, mas o seu filho pode simplesmente estar na rua ao lado a brincar

distraidamente com os amigos.

M – Pois. Achas que os teus amigos cá do bairro foram sempre uma boa influência para ti ou sentes que deveria ter

sido diferente em algum momento?

R – Acho que tenho um bom grupo de amigos. Apesar de termos vidas diferentes e nem todos terem conseguido

prosseguir os estudos como eu, fomos sempre boas influências uns para os outros. Às vezes não posso sair com eles para

poder estudar. Muitas vezes são eles que me incentivam a ficar em casa para estudar para um exame. São ótimas

influências... Como os meus pais... Eu mesmo sempre fui uma pessoa calma. Sei raciocinar sobre o que é bom e o que é

mau. Aprendi a ver as coisas como são...

M – E já participaste em alguma coisa parecida com o que estamos aqui a fazer? Já foste filmado?

R – Não, é a primeira vez. Por isso estou um pouco nervoso.

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M – É normal. Eu também fico nervosa... (risos) Não gosto muito desta exposição.

R – É muita pressão... As câmaras...

M – Apesar de tudo, acho que é uma boa forma de pôr as pessoas a contar as suas histórias e de levar essas

histórias para fora. Pode ser uma forma de aproximar as pessoas da realidade do bairro e desconstruir os preconceitos

criados pelos média. No fundo, esse é um dos meus objetivos cá no bairro. Primeiramente conhecer o lugar e, na medida

em que me aproximo, dar a conhecer esta realidade aos outros através do que faço.

R – Sim. São trabalhos como o que estás a fazer que ajudam a melhorar a imagem do bairro.

M – Ou pelo menos despertar nos outros algum interesse em conhecerem.

R – Sim... Esta coisas constroem-se aos poucos, por contaminação. Tem de se começar pelos júris que vão avaliar a

tua tese e depois por aí fora... Quando dermos por nós isto já desapareceu e já temos o nosso cadastro limpo.

M – Às vezes falar nesta coisas é um pouco estranho porque em todo o lado existem coisas boas e más. Nada é tão

linear. Queres contar algum episódio que se tenha passado contigo cá no bairro? Algo caricato, engraçado, característico...

qualquer coisa...

R – Antigamente eu era uma pessoa um pouco reservada. Mas aos poucos comecei a mudar e a sair mais de casa.

Especialmente depois de entrar na Faculdade, rapidamente conheci Lisboa como nunca havia conhecido. E isso foi, de

alguma forma, incutido pelos meus pais ao longo dos anos. Saímos do bairro muitas vezes para passear e conhecer. Fins-

de-semana e mês de Agosto sempre foram ocupados fora do bairro, a fazer férias e a conhecer outros locais. E isso ajudou-

me a perceber o mundo para além das fronteiras do bairro, para além desta cerca virtual. Fez-me perceber que existem

outras formas de vida. Enfim... sou um rapaz com sorte! Alguns não tiveram estas oportunidades. Acomodaram-se a viver

dentro destes muros e isso foi a pior coisa que lhes aconteceu. Não sei bem como explicar isto... O bairro é um ótimo lugar

para se crescer, para se habitar, mas tens de sair para procurar emprego por exemplo. Aqui há barbeiros, lojas de

conveniência, alguns cafés e pouco mais. E os jovens acomodam-se a isto, não percebem que existem outras coisas para

fazer na vida para além de estar no café ou em casa e cortar o cabelo. E depois querem o carro novo e para o conseguirem

têm que optar pelos maus caminhos.

M – Consideras que a maioria dos jovens que cá vivem pensam dessa forma?

R – A maioria não. Mas alguns...

M – Pois, alguns...

R – Suficientes para representar um todo... É assim... Não querendo parecer arrogante...

As pessoas vivem para construir a sua imagem. Querem ser e ter aquilo que pensam que os outros são e têm. É

claro que eu também gostaria de ter uma casa grande, um carro e uma família... mas para conseguir isso vou ter que

trabalhar muito.

M – E faz mais sentido conseguir as coisas por mérito próprio, pelo trabalho...

R – Mas às vezes é uma questão de oportunidade. Podemos não ter oportunidade para conseguir o que sempre

sonhamos e aí as coisas pioram. Muitos foram os que tentaram seguir esse caminho mas que entretanto foram barrados. E o

problema é quase sempre o mesmo: mal mostramos a etiqueta a dizer “Cova da Moura” estragamos tudo. Têm medo de

nos dar trabalho porque pensam que vamos para lá roubar ou estragar, ou porque vamos dar mau aspeto.

M – Achas que ainda se faz muito essa distinção?

R – Atualmente não é tanto assim. Mas ainda se houvesse histórias. O rótulo “Cova da Moura” já nos trouxe alguns

problemas...

M – Sentiste isso alguma vez antes de ir para a Faculdade?

R – Nunca senti muito isso na pele, a não ser com crianças. Dizem que as crianças são inocentes, mas como

normalmente contêm-se menos, os preconceitos da nossa sociedade vão-se revelando nas suas brincadeiras e piadinhas. E

eu tento corrigi-las, mas se não funcionar, há que ignorar...

M – Vais agora para o último ano, não é? Só te falta a tese?

R – Não. Passei agora para o quarto ano. Ainda tenho um ano para pensar numa proposta para a tese.

M – Pois... Podias fazer qualquer coisa relacionada com o bairro. Seria engraçado...

R – Sim, é verdade. Vou pensar sobre isso, mas ainda não sei. Já se fizeram muitos projetos cá e eu quero pensar

numa maneira de fazer um projeto diferente, que aproveite a particularidade de ter nascido cá. E já houve bons projetos

desenvolvidos aqui. O problema é que depois somos sempre barrados, não nos deixam seguir avante com os projetos. Acho

que esse é o problema.

Talvez queiram esquivar-se da responsabilidade de ter de lidar com a imagem internacional de ser uma Lisboa com

bairros de lata, que mesmo não sendo de lata, são bairros construídos espontaneamente pela ocupação.

M – Achas que esse pode ser um dos entraves aos possíveis projetos e investimentos de reabilitação do bairro?

R – Sim, m as por outro lado também existem outros interesses. O bairro tem uma boa localização, tem bons

acessos, boa mobilidade em relação a Lisboa e apesar de tudo. E, no século XXI, nenhuma cidade quer ter um bairro. Só

que as pessoas não são peças de Lego que tiramos daqui para pôr acolá como aconteceu com outros bairros onde as

pessoas foram colocadas em casas bonitas mas longe do centro, abandonadas à sua sorte. É óbvio que para mudar o bairro

não podemos simplesmente mudar o especto das habitações. Há que ter em conta que estas pessoas vão precisar de

trabalhar para sobreviver, vão precisar de se ligar com o exterior. E então o problema persiste... a cada novo bairro retoma

o ciclo vicioso.

Simões – Mas se te dessem uma possibilidade de trabalhares num projeto de requalificação da Cova da Moura, eras

capaz de assumir isso?

R – Era bem capaz de assumir... Com ajudas, claro. Se me dessem certezas que ia crescer aqui um projeto

monumental com verbas e com vontades, agarrar-me-ia a ele com unhas e dentes.

Simões – Pensarias num novo projeto para a Cova da Moura ou optarias por renovar o que existe?

R – É óbvio que podemos aproveitar muita coisa, mas outras tantas precisam de ser reconstruídas. Teríamos de

conciliar as duas vertentes. Podíamos criar um modelo que pudesse até ser colocado em prática noutros países, em

substituição do habitual modelo de arrasar com os bairros.

Simões – Então integrarias este tipo de construção espontânea feito à imagem de um povo que reconhece o seu

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habitat, que é Cabo Verde no fundo. É que quando eu estou aqui, eu estou em Cabo Verde... é igual, ou quase. Estive em

Cabo Verde há poucos meses e a sensação é a mesma: o mesmo tipo de janelas, de escadas, de arranjos, a maneira de

construir a varanda, enfim... o próprio urbanismo é comum. E seria boa ideia conservar este imaginário que é o vosso, mas

que também já é nosso, não é?

R – Sim. Isso é um aspeto notável. Podemos até ver isto como uma atracão turística. Como o Rui Simões reparou,

isto é Cabo Verde, só que mais perto. O bairro pode ser uma forma de conhecer um pouco do que é Cabo Verde, acho eu...

que nunca lá fui... mas vi fotos e ouvi relatos. Mas, sim... isto é diferente: da Buraca para cá há uma grande diferença de

ambiente, de vivências, na forma como as próprias pessoas se encaram umas às outras... Aqui estamos mais livres.

Simões – Pois é isso... E esta conversa dá pano para mangas e nunca mais acabava. E ela está a conseguir acabar o

desenho... muito bem! Tu estás a desenhar muito mais rápido, começas a habituar-te a este ritmo.