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CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC INTEGRAÇÃO MUNDIAL, DESINTEGRAÇÃO NACIONAL: A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALHO DESEMPREGO E PRECARIEDADE NA UNIÃO EUROPEIA UM CONJUNTO DE RADIOGRAFIAS

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CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL:

A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

DESEmpREGOE pRECARIEDADE

NA UNIãO EUROpEIAUm COnjUnTO

DE rADiOGrAFiAs

CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL:

A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/2007_2008.htm

sEssãO 9

pARA UmA OUTRA pOLíTICA ECONÓmICA,

pARA UmA OUTRA EUROpA, pARA UmA EUROpA SOCIAL

DESEmpREGO E pRECARIEDADE:

A EUROpA vISTA pELOS DESFAvORECIDOS (2003)

Um FilmE DE CAThErinE pOzzO Di bOrGO

DEbATE COm:

JOãO FERREIRA DO AmARAL (isEG-UTl)

hENRI STERDyNIAk (OFCE-pAris)

JOãO CRAvINhO (bErD)

JOãO SOUSA ANDRADE (FEUC)

TEATrO ACADémiCO DE Gil ViCEnTE

28 DE mArçO DE 2008

© Chomages et Précarité, l'Europe vue d'en Bas, 2003.

De um continente – a AméricaA outro continente – a EuropaO mesmo sistema, Workfare, o mesmo resultado: a precariedade

AGrADECimEnTOs

A Comissão Organizadora do Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC agradece, na elaboração da presente brochura, a:

Catherine Pozzo de Borgo (Universidade de Picardie-Jules Verne – Amiens)

Catherine Levy (CNRS – Laboratoire Georges Friedman)

Editions Arthème Fayard

Estelle Krzesl (Universidade Livre de Bruxelas)

Marie-Paul Connan (Coordenadora das Marchas europeias contra o desemprego)

Máximos Aligisakis (Instituto Europeu da Universidade de Genebra)

Stephen Bouquin (Universidade de Picardie)

CGTP

UGT

Gérard Collas (Institut National de l‘Audiovisuel – INA – França)

i. EUROpA, pOBREZA E EXCLUSãO SOCIAL 009

i.1. A pRECARIEDADE: Um RESULTADO pRETENDIDO?

ENTREvISTA COm STEphEN BOUQUIN 009

i.2. A EUROpA DOS DESFAvORECIDOS: UmA vISãO DE SíNTESE

EXCERTOS DO RELATÓRIO "míNImOS SOCIAIS E CONDIçãO SALARIAL.

A EUROpA vISTA pELOS DESFAvORECIDOS" 026

ii. mERCADO DE TRABALhO E SITUAçÕES DE pRECARIEDADE 037

ii. 1. "pROpOSIçÕES SOBRE OS EXCLUíDOS:

DEBATES TEÓRICOS E pOLíTICAS SOCIAIS EUROpEIAS"

EXCERTOS DE Um TEXTO DE mAXImOS ALIGISAkIS 037

ii.2. "AS NOvAS FORmAS DA pOBREZA NA EUROpA:

O pONTO DE vISTA DA ECONOmIA"

EXCERTOS DE Um TEXTO DE yvES FLüCkIGER 055

ii.3. "A EUROpA DA pRECARIEDADE, A EUROpA DO pRECARIADO"

Um TEXTO DE CAThERINE Lévy 073

ii.4. "A UE FACE àS EXCLUSÕES:

O EXEmpLO DA pOLíTICA DE LUTA CONTRA O DESEmpREGO DOS JOvENS"

Um TEXTO DE FRANZ SChULThEIS 099

iii. DESEmpREGO E pRECARIEDADE:

O pONTO DE vISTA DAS CENTRAIS SINDICAIS pORTUGUESAS 111

iii.1. O pONTO DE vISTA DA CGTp 111

iii.2. O pONTO DE vISTA DA UGT 117

iV. AS RAZÕES DA pOBREZA E AS pOLíTICAS SOCIAIS

"pOBREZA, BAIXOS SALáRIOS E míNImOS SOCIAIS:

pARA REFORmAS ESTRUTURAIS"

Um TEXTO DE pIERRE CONCIALDI 125

V. A INTEGRAçãO pELO mERCADO (ÚNICO),

A UNIãO EUROpEIA E A DESINTEGRAçãO SOCIAL:

ALGUmAS pERSpECTIvAS CRíTICAS 137

V.1. "O pLENO EmpREGO COmO pOSSIBILIDADE":

A CRíTICA DO LIBERALISmO SOCIAL DA UNIãO EUROpEIA

EXCERTOS DE Um TEXTO DE ChRISTOphE RAmAUX 137

V.2. "OS FALSIFICADORES DA EUROpA SOCIAL"

Um TEXTO DE CORINNE GOBIN 162

V.3. OS míNImOS SOCIAIS NO ESpAçO DA UNIãO:

A pOSIçãO DA COmISSãO EUROpEIA

EXCERTOS DE UmA COmUNICAçãO DA COmISSãO EUROpEIA 169

AnEXO

AS SOLUçÕES URGENTES CONTRA A pRECARIEDADE E O DESEmpREGO:

A pROpOSTA DA ATTAC 177

bibliOGrAFiA 184

© Chomages et Précarité, l'Europe vue d'en Bas, 2003.

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i. EUROpA, pOBREZA E EXCLUSãO SOCIAL

i.1. A pRECARIEDADE: Um RESULTADO pRETENDIDO?

ENTREvISTA COm STEphEN BOUQUIN

P. O senhor participou no inquérito “Mínimos sociais e condição salarial. A Europa vista pelos desfavorecidos”, uma investigação realizada no âmbito do programa TSER da DG Investigação da Comissão Europeia1. Que síntese nos dá desse trabalho?

R. A partir de 1975, com o aparecimento do desemprego de massa, iniciou-se um processo de erosão da protecção e da segurança do emprego. As formas de emprego atípicas, temporárias, o emprego de duração determinada, a tempo parcial, começaram a crescer. Discursos e práticas sobre a modernização da protecção social expandiram-se para impor um modelo novo que assumiu forma nos anos 90. A este modelo se acrescem, certamente, os modelos nacionais que conservam a sua especificidade. Mas todos, no entanto, mostram tendências convergentes que alteram de forma similar as condições de vida da população em toda a Europa, mais particularmente a categoria social sobre a qual o nosso inquérito se concentrou, nomeadamente a dos beneficiários dos subsídios de substituição. Estes, particularmente, perderam um grau significativo de garantias sociais. A sua integridade física deixou de estar assegurada tal como antes. A segurança que garantia as prestações sociais que permitiam tratar-se, ter alojamento, habitação, alimentar-se, vestir-se, educar-se… deixou de existir realmente para uma parte da população

1 Ver texto seguinte.

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dos países da Europa. Este modelo, de natureza liberal é necessário recordá-lo, baseia-se numa lógica que tende a mobilizar o conjunto dos subsídios e dos mínimos sociais para facilitar a criação de certos tipos de empregos. Assim, os rendimentos de substituição tornam-se complementos de salário para “os pequenos trabalhos” não qualificados e que não asseguram nenhum futuro, nem profissional, nem pessoal. Mas, ao mesmo tempo, os governos instauram, por vezes, novos mínimos sociais, como o Rendimento Mínimo de Inserção (RMI), em França, a fim de lutar contra a pobreza. Como estes mínimos são em geral dissociados do trabalho ou do percurso profissional, vemos que se tornam mais facilmente activáveis ou condicionais.

P. Quais as consequências que esta nova forma de protecção social tem sobre a sociedade e a vida diária das pessoas?

R. As desigualdades que se detectam em todos os domínios no exercício dos direitos sociais concorrem globalmente para fragilizar a sociedade no seu conjunto. Simultaneamente, as pessoas estão sujeitas a uma multiplicidade de dispositivos e estatutos que fragmentam as solidariedades colectivas e criam, por isso, muitas “situações”. Relativamente aos indivíduos, a consequência mais importante destas políticas que obrigam ao trabalho é o controlo meticuloso que a administração exerce sobre os desempregados. Uma outra consequência é que nem os rendimentos obtidos pelo trabalho precário, nem os subsídios sociais permitem cobrir as necessidades essenciais. Os que são atingidos pela pobreza e pela precariedade devem, para sobreviver, fazer diligências de todo o género, a maior parte do tempo em questões administrativas, acrescente-se. Como nos diziam algumas das pessoas entrevistadas, “estar desempregado é ter um trabalho a tempo inteiro”. Mais surpreendente é ainda o facto de o recurso aos meios “paralelos” (trabalho clandestino), indispensável para dispor de rendimentos suplementares, é sobretudo raro entre os desempregados de longa duração. Também não se faz o mercado clandestino ou de troca com o que se recebe do banco alimentar. Sendo assim, desenvolve-se um mercado de trabalho paralelo onde se recrutam as pessoas com capacidades muito variadas para trabalhos penosos e com salários extremamente baixos. Mas estas pessoas são, na maior parte dos casos, pessoas “sem papéis” ou pessoas em trânsito mais ou menos permanente, como os europeus de Leste na Bélgica.

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A disponibilidade duma tal mão-de-obra permite falar duma forma de “deslocalização no local” e a sua não regularização faz parte das políticas de emprego.

P. Porque é que as conclusões do inquérito sublinham que a continuação do pleno emprego a qualquer preço dissolve a relação salarial?

R. Precisemos primeiramente que as políticas actuais prosseguem sobretudo o objectivo de “plena actividade” e não o do pleno emprego. Os mínimos sociais não se limitam a dar às pessoas sem trabalho um rendimento. Desde há alguns anos, para continuarem a recebê-lo, os beneficiários frequentemente são obrigados a provar a sua vontade de quererem reencontrar uma actividade, qualquer que ela seja, aliás. Assim, entrou-se num novo período, a do trabalho obrigatório generalizado consagrado pela Cimeira europeia de Lisboa sob o termo de “aumento da taxa de emprego”. Ora esta obrigatoriedade de trabalho sistemático influencia o mercado de trabalho: os empregos precários propostos aos que beneficiam dos “mínimos sociais” são acompanhados geralmente de prémios que incitam a multiplicá-los. Em muitos casos, estes empregos derrogam as convenções colectivas, do ponto de vista do salário mínimo ou da legislação do trabalho. Pode assim detectar-se, neste uso dos mínimos sociais, os fundamentos dum novo sistema de protecção social que altera a condição salarial na qual se inscrevem tradicionalmente as convenções colectivas e os direitos sociais.

P. No que é que a noção de empregabilidade contribuiu para alterar a nossa representação do mundo do trabalho?

R. Falar em “aumentar a taxa de emprego” como foi o faz a União Europeia (UE) desde Lisboa, é levar a pensar que o desemprego resulta da recusa que os indivíduos sem emprego fazem face às ofertas de trabalho que lhes são feitas. A fraca taxa de emprego parece assim devida ao comportamento voluntário dos desempregados e à demasiada grande generosidade das políticas sociais. Este postulado que considera que qualquer desempregado prefere os subsídios mínimos tende a apresentar os desempregados como “os devedores” da sociedade como um todo.

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Há emprego e “emprego”

P. O emprego é “o” factor de integração social por excelência? Ou é apenas um factor entre muitos outros, como a vida associativa, a cidadania, etc.?

R. O emprego poderia e deveria certamente permanecer o factor de integração social. Deixou de o ser porque a norma de emprego também deixou de ser homogénea como o era antes. Queremos com isto dizer que há hoje vários tipos de empregos e que, entre estes, existe uma série de actividades a que se chama “emprego” mas que deixaram de corresponder à norma inicial em que o emprego correspondia a um estatuto que continha garantias colectivas e direitos sociais. É por esta razão, sem dúvida, que a emergência duma nova norma de emprego deveria ser definida para assegurar de novo a coesão social. Porque se se diz que o emprego é apenas um factor de integração entre tantos outros – como a vida associativa, a cidadania, etc. – isso significa que se considera que a vida associativa ou a cidadania, nomeadamente, estão dissociadas do emprego. Ora, não o estão necessariamente. Pode perfeitamente imaginar-se uma norma de emprego que autoriza e torna possível uma cessação temporária de actividade para uma ocupação associativa, para um tempo consagrado à vida social, em sentido lato. Além disso, se se entende por emprego o facto de trabalhar, o labor, o trabalho remunerado, o trabalho assalariado, para uma larga maioria de trabalhadores, este trabalho tem sido durante muito tempo incompatível com a vida social. No século XIX, o trabalho coincidia com a pobreza, a sobre-exploração das crianças. Este trabalho era frequentemente acompanhado de acidentes mortais, A esperança de vida era bem mais curta do que hoje em dia, etc. Ainda hoje, o trabalho de noite, os horários não contabilizados, tudo o que constitui um uso desenfreado da força de trabalho são factores de relegação social para não dizer de degradação da qualidade de vida. O trabalho, o trabalho assalariado não se tornou, no fundo, um factor de integração social senão devido ao facto de a este estar ligado uma série de garantias e de direitos sociais, quer seja no plano da empresa quer seja ao nível dos sectores ou da própria nação através do funcionamento da Segurança Social.

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P. O Estado liberal era centrado nas liberdades civis; a propriedade era considerada permitir a cada um proteger-se contra as vicissitudes da vida. Devido ao facto de haver indivíduos, cidadãos incapazes de se tornarem-se proprietários, passou-se então historicamente ao Estado Social em que o indivíduo trabalhador que não é proprietário, pelo emprego que ocupa, acede à uma forma socializada de protecção contra os reversos da existência. Esta “propriedade social” como lhe chamam alguns faz parte integrante do pacto social que está nas bases fundamentais das nossas sociedades. Esta protecção social, diz-nos, já não é hoje o que foi no decorrer dos decénios que se seguiram à Segunda Grande Guerra. Como se deve interpretar este facto?

R. Olho-a como um retrocesso. Mas é necessário efectivamente ver que esta evolução foi impulsionada em nome da luta contra o desemprego: basicamente combateu-se o subemprego de massas pela pobreza, primeiramente, e, em seguida, pela precariezação do emprego. Foi porque se seguiu esta via que se viu aparecer uma série de medidas, dispositivos, quase estatutos, de estatutos intermédios que participaram na erosão da norma de emprego de que se falava acima. O objectivo, neste caso, já não é o de criar mais emprego, mas sim o de fazer participar as pessoas desempregadas na actividade económica, de os tornar “activos” no mercado de trabalho. As palavras têm aqui muito importância e estas reenviam à ideia de que para participar na vida social é necessário trabalhar. Pode compreender-se esta visão mas, concretamente, é necessário ver bem que há nisto um paradoxo na medida em que o trabalho ao qual alguns acedem hoje não lhes permite viver decentemente, de viver dignamente, de ter um projecto de vida correcto à luz dos padrões actuais da nossa sociedade. Isto significa que o trabalho precário e mal remunerado não contribui, como ambiciona, à coesão social procurada, mas pelo contrário à dualização da sociedade. Também não se vê como é que o aumento da taxa de actividade pelo trabalho precário pode permitir manter as contas da Segurança Social em equilíbrio, tanto mais que se financia esta precariedade por deduções nas contribuições sociais. É a serpente a morder a ponta da sua cauda.

P. De quando data esta mudança?

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R. Do início dos anos 80. Inicialmente, um grande número de países congratulou-se pelo facto da Segurança Social lhes permitir amortecer o choque da desindustrialização e da crise do fim dos anos 70. Esta tomada de posição traduziu-se contudo numa massificação do desemprego e num aumento consequente das despesas, e os países europeus gradualmente têm-se posto a subdividir as categorias de desempregados a fim de actuar sobre as despesas, concedendo alguns dos subsídios à cabeça, com prestações condicionais mais restritivas quanto ao acesso, limitadas no tempo, etc. Este saneamento financeiro, que foi apresentado essencialmente como uma baixa das despesas passivas dos desempregados, ilustra a passagem ao “Estado Social activo”, do qual a Cimeira de Lisboa é um marco simbólico. Uma das finalidades desta transformação é fazer da Segurança Social um instrumento macroeconómico sob a forma duma alavanca para a competitividade (redução do custo salarial) e para a flexibilidade (normas de entrada e de saída do mercado de trabalho mais flexíveis). Vem completar a esse respeito diversas adaptações da regulamentação do trabalho que favorecem, elas também, a utilização do emprego como variável de ajustamento para as empresas.

P. Estas medidas que visam a competitividade e a flexibilidade criam empregos adicionais?

R. Estas medidas aumentam em todo caso a parte de empregos precários, o vai-e-vem entre as condições de desemprego e as condições de emprego, a rotação no mercado de trabalho. Mas para além desta constatação, um estudo comparativo mostra também que certos países como a Espanha são campeões da flexibilidade mas não vêem contudo o desemprego reduzir-se. Outros, como os países escandinavos, tem um contexto normativo e regulamentar mais restrito mas têm pouca pobreza e pouco desemprego de longa duração.

O papel das organizações profissionais

P. Com a leitura de diversos relatórios recentes sobre a pobreza e a precariedade, parece que o aceso está longe de ser fácil para as pessoas mais vulneráveis. As

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prestações sociais fazem nomeadamente face a importantes pesos administrativos. Que papel desempenham a este nível as organizações profissionais?

R. A contribuição dos sindicatos é evidentemente preciosa a esse respeito – da mesma maneira que aliás a do mundo associativo. Com a condição de, pelo menos, que tenham em conta as vivências e a experiência dos desempregados. Tendo esta base, é relativamente fácil fazer correcções ao funcionamento, às vezes extremamente complexo, das instâncias que são responsáveis pela protecção social e pelas ajudas sociais. Há nisso frequentemente uma simples justaposição, um amontoado de regras não harmonizadas e não articuladas que tornam a intervenção de organizações de acompanhamento como os sindicatos extremamente úteis. É esta a razão pela qual a questão da representação dos desempregados nas organizações de trabalhadores é duma grande importância. Alguns pensam a esse respeito numa central ad hoc que agrupe todos os beneficiários da Segurança Social; outros consideram que cada uma das centrais existentes lhes deve atribuir um lugar adequado no seu seio, etc. As Agências Locais para o Emprego (ALE) poderiam ter sido a ocasião para organizar uma representação dos “trabalhadores desempregados”. Outros, entre os quais estou eu, consideram que seria necessário também democratizar a Segurança Social pela própria via de eleições internas como se faz em certos países. O pluralismo sindical poderia ser um motor de progresso e um catalisador que forçasse à implicação das pessoas em causa.

P. Segundo a sua opinião, as políticas de inserção profissional – formação ao longo da vida, reduções orientadas de contribuições patronais, acompanhamento de quem anda à procura de emprego… – preenchem elas as funções de integração no mercado de trabalho? Algumas são mais eficaz que outras?

R. Tendo já respondido largamente sobre este ponto, eu insistirei portanto sobre um aspecto. A lógica em prática é, já o disse, a de aumentar a taxa de actividade para reforçar o financiamento da Segurança Social e para melhor garantir assim a coesão social. No entanto, tenho dificuldade em acompanhar esta via, este objectivo. Primeiramente, porque se trata de despir a Segurança Social

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(descida das contribuições) sem se estar a dar-lhe os meios para a tornar a vestir (o emprego precário não financia correctamente a Segurança Social). Seguidamente, porque este aumento voluntarista da taxa de actividade nunca é acompanhado de balizas quanto à qualidade dos postos de trabalho e quanto ao nível dos rendimentos aos quais dão direito, sendo no entanto esta a única maneira de se premunir contra a dualização. Por último, porque a evolução da produtividade, a tendência para as deslocalizações e o fenómeno das reestruturações sendo o que são, provocam uma escassez global de postos de trabalho que faz com que qualquer aumento da taxa de actividade possa, nestas condições, apenas desembocar numa exacerbação da concorrência no mercado de emprego. Sair do impasse actual exige ao mesmo tempo que se coloque a questão da divisão das riquezas e do financiamento da Segurança Social. A primeira questão reabre uma outra, a da redistribuição do trabalho através da redução do tempo de trabalho. A segunda convida a abrir novas pistas de financiamento. Por exemplo, poder-se-ia pensar num financiamento via valor acrescentado e não somente via massa salarial. Eu explico melhor esta ideia: porque é que as empresas subcontratadas, bastante frequentemente PME, concentram as suas actividades em fortes intensidades de trabalho enquanto as grandes empresas dadoras das ordens se concentram, elas, em actividades de elevado valor acrescentado com uma forte intensidade capitalista? Porque a hierarquia entre grandes empresas e pequenas empresas permite descarregar uma grande parte do peso do financiamento da Segurança Social nas pequenas… transferindo ao mesmo tempo os lucros da sua actividade para as grandes firmas e por de trás delas, para os centros de coordenação e outros paraísos fiscais.

P. Os economistas têm tendência a considerar que há dois mercados de trabalho. Um mercado de trabalho primário que agrupa os trabalhadores qualificados que beneficiam dum Contrato de Duração Indeterminada (CDI), que têm um estatuto e boas remunerações, e um outro, o mercado de trabalho secundário onde se reencontram os trabalhadores de baixa qualificação, que trabalham no âmbito de contratos de duração determinada, que têm um estatuto precário e fracos rendimentos profissionais?

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R. Sem dúvida esta separação tem uma virtude metodológica, mas não se deve perder de vista que, no seio destes dois mercados, com excepção de alguns segmentos, a concorrência entre trabalhadores se intensifica tendo em conta o carácter pletórico da oferta de mão-de-obra. O relatório de 2003, do Haut Conseil de l’Emploi (Hoge Raad voor de Werkgelegenheid), dá uma indicação: 40000 vagas, em 2002, para 400000 pessoas à procura de emprego. Os atrasos no ajustamento ou as dificuldades de recrutamento em certas funções não são devidos à escassez de mão-de-obra mas à degradação das condições de trabalho e dos critérios de recrutamento cada vez mais selectivos. A esse respeito, penso que o trabalho precário é menos a via de acesso ao emprego do que uma via de triagem que oferece às empresas a ocasião de manter apenas os “melhores” após terem estado, realmente, à experiência. A concorrência entre os trabalhadores temporários é tanto mais forte quanto os lugares são bons. A questão das condições de trabalho é, além disso, frequentemente demasiado subestimada. Uma investigação efectuada no fim dos anos 90 mostrava que a duração média das carreiras no serviços de proximidade era de 9 anos, isto é, muito pouco, enquanto sobe na escala, para 12-15 anos em média, nos países nossos vizinhos. As pessoas que trabalham a tempo parcial ultrapassam a metade dos efectivos e o sector conhece uma taxa de rotação muito elevada. Na base de muitas das situações de “escassez”, não está nem a ociosidade dos desempregados, nem uma falta de qualificações, nem mesmo neste caso, uma falta de vocações, mas sim as condições de trabalho e os níveis de remuneração pouco atractivos.

P. O que pensa da sanção quanto ao subsídio de desemprego pelo artigo 80.º como estímulo à procura de emprego?

R. Um estudo quantitativo da Universidade de Antuérpia mostrava que a maioria dos suspensos pelo artigo 80.º eram mulheres (80%), pouco qualificadas (56%) e relativamente jovens (57% entre os 25 e os 34 anos). E será que a sanção conduz ao emprego? A resposta deste estudo prova o contrário. Assim, mais da metade dos suspensos (55%) continuavam inactivos quinze meses depois. Se um quarto (26%) tinha encontrado um emprego um mês após a sua suspensão e um terço após quinze meses, estas percentagens não são muito mais elevadas do que as

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da população de desempregados não suspensa ou sancionada (respectivamente 11% e 22%). Globalmente, a utilização deste artigo 80.º permitiu sobretudo reenviar as pessoas do desemprego para o Conseil Provincial des Affaires Sociales (CPAS) em vez da saída da chamada ociosidade. A política de sanção é igualmente muito selectiva. Certas categorias, como os chefes de família, não são visados, enquanto os isolados ou os coabitantes podem ser mas em função da diferença em relação à duração média de desemprego tomado localmente. No nosso estudo sobre a Bélgica, observamos que os desempregados mudam às vezes de domicílio para se subtraírem ao controlo inserindo-se na massa dos que, noutra região, andam à procura de emprego. A regulamentação social em geral e o artigo 80.º em especial participam na «gestão dos fluxos» e das «existências». É evidente que quanto mais esta regulamentação estiver virada para a «caça aos desempregados», mais estes tentarão preservar-se na sua situação, dado que o emprego regular e normalmente remunerado não existe. Devo sublinhar que no fundo estas pessoas não são «ociosas», mas reticentes em relação a um emprego precário e tanto mais ele o for. Isto demonstra que a protecção social é um dique contra a pauperização dos trabalhadores. Que se passaria se estas pessoas aceitassem qualquer emprego a tempo parcial com um contrato temporário e sem qualquer relação com a sua qualificação? Ter-se-ia, evidentemente, um mercado de emprego mais flexível. Mas não seria sobretudo mais uma fonte adicional de regressão social? É o que penso. Além disso, nesta época onde reina o individualismo, é ainda mais fácil estigmatizar estes desempregados, para quem tirar as castanhas do fogo é exclusivamente o meio para sobreviver conforme se pode e não para se enriquecer.

Sobre as bolsas do trabalho

P. Na conferência para o emprego, os interlocutores sociais puseram-se de acordo quanto a uma reforma da regulamentação dos títulos-serviços com o objectivo de alargar o sistema. Pensa que este pode favorecer a integração duradoura das pessoas excluídas do mercado de trabalho desde há um longo período de tempo?

R. Seria pessoalmente favorável a um outro sistema que se aparenta com as chamadas bolsas de trabalho do século XIX, em França. Tratava-se de agências locais

19

de ofícios instituídos pelas organizações sindicais que organizavam a colocação de trabalhadores profissionais. Hoje, um tal sistema sob a égide do sector público poderia formar associações de competências de pessoas que oferecessem a particulares assim como aos organismos públicos ou privados, no âmbito de um contrato com duração indeterminada, uma gama de serviços. Esta oferta seria acompanhada no caso de pessoas de um estatuto social real mas por um tempo de prestação reduzido a fim de poder combinar as suas tarefas profissionais com a formação na óptica de integração a prazo no mercado do trabalho regular em boas condições. As tarifas praticadas deveriam ter em conta o rendimento disponível. Seria necessário com efeito colocar-se a questão de saber que necessidades sociais são prioritárias. Deve oferecer-se a pessoas que dispõem de elevados rendimentos um empregado ou uma empregada doméstica à custa da Segurança Social ou do contribuinte sob pretexto de se criar “emprego”, enquanto apenas se trata do alugar de mão-de-obra? Ou será necessário, por exemplo, no âmbito da Segurança Social tornar acessível uma gama de serviços sociais, de cuidados, de educação, de apoio jurídico, e isto tendo em conta tanto as necessidades como o rendimento ou o estatuto? Inclino-me sem reserva para o lado da segunda opção.

P. Tal sistema seria caro?

R. Certamente, mas os estudos do Bureau Fédéral du Plan, o DULBEA, e certas análises francesas sobre as reduções das contribuições patronais mostraram que o financiamento directo do emprego, a volume orçamental constante, é mais “rentável” em termos de empregos que apostar numa contratação a partir duma descida do custo do trabalho. Para além dos efeitos de “ganho inesperado” e de substituição, a decisão de empregar não decorre directamente do custo salarial mas também do volume de actividade esperada. Existe por conseguinte uma relação elástica entre o custo salarial e a criação de empregos, uma elasticidade que não existe quando se financia directamente o emprego. Ao inverso do vestuário, os saldos no mercado do emprego não permitem esgotar a mão-de-obra disponível...

P. Segundo o relatório “Mínimos sociais e condição salarial: a Europa vista pelos desfavorecidos”, uma larga minoria da população é atingida pelo endividamento.

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Esta é composta unicamente por gente que vive dos subsídios sociais ou também de pessoas com emprego?

R. Não. Numa importante empresa de construção automóvel do Norte do país, a taxa de endividamento, mais exactamente a taxa de retenção do salário aplica-se a um trabalhador em cada três, ou seja, a taxa é de 33%. Por outras palavras, um terço dos assalariados recebe apenas a parte não dedutível dos seus rendimentos. Tal situação explica-se evidentemente pela existência no mercado dum crédito facilmente acessível mas a taxas proibitivas que implicam geralmente a acumulação de dois rendimentos na família para fazer face aos prazos de pagamento. Mas para a população que estudámos, se o sobre-endividamento existe, ele só existe para a parte desta população com uma vontade desesperada de continuar a fazer parte da sociedade de consumo. As pessoas têm principalmente necessidade de dinheiro líquido para pagar as facturas de electricidade ou de aquecimento, etc. O funcionamento de muitos dos CPAS coloca também problemas: o colocar sob tutela, a infantilização, as visitas repetidas ao gabinete do assistente social. Como o diziam alguns dos nossos interlocutores: “estar desempregado é ter um trabalho a tempo inteiro”.

Sob os números, a vida

P. Esta necessidade de acumular dois rendimentos para fazer face aos prazos dos diversos financiamentos contratados não induz isto a pobreza, quando emerge uma crise doméstica que leva, como é hoje frequentemente o caso, à separação dos cônjuges ou dos parceiros?

R. Seguramente. Um inquérito actualmente em curso no INSEE (França) mostra que os fenómenos de empobrecimento induzidos pelo movimento ascendente dos divórcios estão eles também em aumento, e atingem os homens como as mulheres, mas sobretudo os primeiros, nomeadamente devido às dificuldades financeiras que encontram para pagar as pensões alimentares. Será que nos devemos espantar quando o emprego industrial, de dominância masculina, é atingido pelas reestruturações e o desenvolvimento do tempo parcial forçado tem como primeira

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norma o emprego feminino não qualificado e nada mais faz do que reforçar as dependências relativamente ao “male breadwinner”? Isto leva-me a dizer que há, na nossa sociedade, um endurecimento global das relações sociais. Este endurecimento nem sempre é correctamente enunciado e é um dos méritos, creio eu, do inquérito que efectuámos o de ter dado a ocasião às pessoas directamente referidas e que foram questionadas a hipótese de falarem sobre a realidade difícil contra a qual são diariamente confrontadas. Isto permitiu perceber o que as séries estatísticas nos dissimulavam, nomeadamente, o crescimento, nestes dez ou quinze últimos anos, da violência social. Uma violência geralmente interiorizada pelos indivíduos, mas que pode em qualquer momento voltar-se contra eles, nomeadamente através de consumos abusivos de diversas naturezas, mas também por desespero e/ou por violência relativamente ao outro, como o cônjuge ou as crianças. Daí uma multiplicação de dramas familiares ou sociais tanto mais frequentes quando, ao inverso do período de entre as duas guerras, o indivíduo actualmente não está mais inscrito, sobretudo nos espaços urbanos, numa ou noutra comunidade local de pertença, feita de relações de proximidade, apaziguadoras ou de entreajuda. Estes indivíduos não filiados a que Robert Castel chama “sobre-numerários” reencontram-se assim frequentemente no centro de situações trágicas que são outros tantos faits divers para os meios de comunicação social, esquecendo-se estes no entanto de lhes associar a realidade socioeconómica ambiental em que vivem. Só uma acção colectiva, com a qual os indivíduos reencontrem uma dignidade e um orgulho de existência, permitirá uma saída por cima, uma ultrapassagem da situação. Os movimentos sociais podem ser positivos e inventores de relações sociais bem mais do que a reeducação comportamental, infantilizadora ou a colocação sob tutela. Qualquer atraso na resolução da profunda crise social que atravessam as nossas sociedades pagar-se-á bem caro “e em cash”. Sofreremos então uma espécie de guerra civil larvar, apolítica, estando longe de ser certo que a “penalização do social” virá em seu apoio.

P. No seu livro L’insécurité social, Robert Castel, precisamente, propõe pistas para recompor a solidariedade degradada pelos processos de activação e de segmentações das prestações sociais. (i) Um primeiro tipo de reforma seria, para

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ele, contrapor à fragmentação das novas medidas uma continuidade dos direitos para além da diversidade das situações. Sugere, nesta óptica, a criação dum regime homogéneo de direitos que cubram o campo da protecção que não é da competência das coberturas de segurança colectivas. Actualmente, certas ajudas aos desprotegidos só são concedidas se os seus beneficiários provarem que estão em dificuldade, que estão com necessidade. Há uma diferença muito nítida com os direitos comuns, uma vez que este, estão ligados incondicionalmente à cidadania. Para atribuir às prestações a favor dos excluídos da Segurança Social ligados ao emprego um estatuto de direito comum, é necessário, sugere Robert Castel, aprofundar as políticas de inserção e pôr em sinergia as diversas práticas que visam a reintegração. Concretamente isto significa, para ele, a mobilização efectiva de todos os parceiros referidos para garantir um acompanhamento real das pessoas em dificuldade. Estas devem poder sentirem-se apoiadas numa base de recursos objectivos que lhes garantam, no presente, um mínimo de segurança: recursos materiais, ajuda psicológica, reconhecimento social, direitos comuns, etc. Por outras palavras, é necessário fazer de forma a que estas pessoas não se sintam tratadas como assistidas, mas como parceiros provisoriamente privados das prerrogativas da cidadania social, estabelecendo-se como objectivo prioritário a procura de todos os meios que lhes permitam reencontrar de imediato esta mesma cidadania. Nesta óptica, e de acordo com o que Castel sugere, devem criar-se colectivos de inserção, uma espécie de organismos públicos que agrupariam, com os seus próprios financiamentos e o seu poder de decisão, as diferentes instâncias actualmente encarregadas de facilitar a ajuda ao emprego e de lutar contra a segregação social, a pobreza e a exclusão. “Encontrar-se-iam assim centralizados, mas a nível local, sob um poder unificado de decisão e de financiamento, escreve, os diferentes tipos de parceiros agora implicados de modo disperso na requalificação das pessoas em dificuldade.” Que pensa destas ideias face à vossa investigação social?

R. Penso da mesma maneira que ele, que a armadura institucional da Segurança Social deve ser reexaminada de alto a baixo. Mas esta reformulação só funcionará com a dupla condição de a concorrência entre os assalariados no mercado de emprego ser radicalmente reduzida e de os meios financeiros para esta

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reformulação estarem disponíveis ou então os parceiros associados vão defender até ao limite os seus interesses em função de critérios que, quando vistos individualmente, parecem todos racionais, mas não permitem sair do impasse actual. Sublinhemos, por último, que com a liberalização e a concorrência na colocação ou na inserção profissional, a tendência actual não vai neste sentido, mas levará inevitavelmente a uma segmentação.

Como proteger situações e trajectórias profissionais

P. Um segundo tipo de reformas esboçadas por Robert Castel para desenvolver as protecções sociais é a segurança das situações de trabalho e as trajectórias profissionais. Sob a força da mobilidade, assistir-se-á, com efeito, actualmente, a uma quebra da ligação entre os direitos incondicionais – os direitos ditos comuns – e a protecção social, por um lado, e a situação profissional do trabalhador, por outro. Os empregos, tanto a nível dos contratos de trabalho como das tarefas de trabalho, fragmentam-se e certas zonas estão agora menos cobertas pelo direito: o tempo parcial, o trabalho intermitente, o trabalho independente sujeito a um dador de ordens, as novas formas de trabalho ao domicílio, o tele-trabalho, a subcontratação, o trabalho em redes, etc. Tratar-se-á, por conseguinte, de acordo com Robert Castel, de associar, a partir de agora, novas protecções às situações de trabalho assim caracterizadas pela mobilidade, concebendo novos direitos capazes de proteger estas situações aleatórias e estas trajectórias marcadas pela descontinuidade. Uma resposta a esta situação consistiria em transferir os direitos do estatuto de emprego à pessoa do trabalhador. Trata-se da ideia dum estado profissional das pessoas, o qual não se define pelo exercício duma profissão ou dum emprego determinado, mas que engloba as diversas formas de trabalho que qualquer pessoa é susceptível de realizar durante a sua existência. Assim, encontrar-se-ia restabelecida uma continuidade dos direitos através da descontinuidade das trajectórias profissionais. O trabalhador disporia em suma de direitos de tiragem que utilizaria para cobrir os diferentes períodos do seu itinerário. De modo mais lato, poder-se-ia conceber uma bateria de direitos abertos aos trabalhadores que faria com que uma série de etapas fora do emprego, mas socialmente balizadas – principalmente a formação – se tornassem

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parte integrante duma carreira profissional em vez de a vir interromper. O que pensa de todas estas ideias?

R. Este segundo tipo de resposta é inspirado largamente pelas análises de Alain Supiot que defende a criação duma base de direitos sociais de carácter universal. A universalidade seria de acordo com a sua opinião a única maneira de não tornar estes direitos dependentes da natureza directa do trabalho, precário ou não. Havia uma controvérsia sobre este assunto entre Robert Castel e Alain Supiot em que o primeiro parece ter mudado de opinião. Há alguns anos, com efeito, Castel opunha-se à opção universalista porque esta tiraria qualquer meio para construir a relação de força directa com os empregadores que contribuiu, para muitos, para a garantia colectiva através das relações colectivas de trabalho entre empregadores e sindicatos. Dito isto, ambos convergiam, em contrapartida, para dizer que uma nova base de direitos sociais é necessária se se quer retirar os indivíduos da pobreza, da precariedade e da insegurança social. Pessoalmente, penso que há algo de verdade nas duas visões. Por um lado, é necessário que haja à partida interesses em conflito – a divisão do valor acrescentado –, uma negociação para a construção das normas e dos direitos. Mas este frente-a-frente entre trabalho e capital não inclui toda a gente se bem que, na Bélgica, graças à natureza inter-profissional e altamente representativa do sindicalismo, é-se autorizado a situar o desenvolvimento de normas e direitos de carácter universal através da negociação bi ou tripartida. Tudo depende então da orientação defendida pelos poderes públicos e pelos ministros responsáveis das pastas ligadas à problemática do emprego e das questões sociais. No fundo, este novo estatuto deveria com efeito garantir uma continuidade de rendimento para além dos empregadores ou da posição produtiva do momento – por conseguinte um salário socializado que retira ao despedimento o seu carácter dramático –, oferecendo ao mesmo tempo uma mobilidade profissional na base de verdadeiras formações e uma latitude individual na matéria.

P. O que é que pensa dos SEL, as chamadas redes locais de troca de serviços, nos quais as pessoas colocam as suas competências ao serviço de outros membros da rede, em que a troca não monetária destes serviços se faz na base duma contabilidade mais

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ou menos elaborada? As pessoas que as dinamizam dizem-se francamente criticadas pelos trabalhadores que aí vêem uma concorrência desleal e pelos organismos de controlo do desemprego que aí vêem uma actividade económica ilícita?

R. Os excluídos têm às vezes recurso a mecanismos elementares de solidariedade que se traduzem em trocas de serviços para fazer face pontualmente, num modo do dom recíproco, a situações de crise ou de aflição como finais de mês difíceis, por exemplo. Mas trata-se de dispositivos informais ao mesmo tempo improvisados pela urgência e apoiando-se em redes de sociabilidade. Os SEL são uma outra coisa. Encontra-se aí uma centralização de competências, de conhecimentos, de saberes e de conhecimentos bastante desenvolvidos e que os desprotegidos não podem naturalmente ter. Noutros termos, os SEL referem-se, no essencial, a categorias sócio-profissionais e sócio-culturais nas quais o fenómeno da pobreza e da exclusão estão geralmente ausentes. Tomemos o exemplo duma troca que possibilita tempo livre a alguns (ajuda doméstica, guarda de crianças). Ainda que estes estejam prontos para dar, em troca deste tempo libertado, saber ou competências, não deixa de ser verdade que os outros têm primeiramente necessidade de dinheiro antes de aprenderem a tocar piano. Os SEL não são nunca, por conseguinte, nenhum meio para reduzir as desigualdades sociais. Crer que estas instituições poderiam levar a tal objectivo, é finalmente esconder uma nova servidão sob um manto da auto-gestão. A “desmonetarização” da vida social só é possível entre iguais e livres ou, na sua falta, no seio duma comunidade extremamente homogénea como é, aliás, o caso de certas comunidades originárias da Ásia ou de África. A solidariedade étnico-familiar não é contudo sempre sinónima de liberdade pessoal. Eu prefiro então uma solidariedade menos “orgânica” e mais “mecânica” como a Segurança Social a pode incarnar, mesmo que de maneira imperfeita.

“O exército de reserva”

P. Se tivesse que resumir numa curta mensagem o estudo “L’Europe vue d’en bas”, o que diria?

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R. Diria que, na situação presente, a pobreza e a precariedade de quinze a vinte e cinco por cento da população é necessária para beneficiar a restante população activa e garantir a competitividade no contexto actual de concorrência induzida pela mundialização. Uns pesam sobre os outros. Se não existisse este volante de desempregados, de pobres e de precários, a situação seria diferente para cada um de nós. Assistir-se-ia a uma acção colectiva importante em relação às condições de trabalho, à intensidade de trabalho, à organização do trabalho e, no sentido duma grande “igualdade e liberdade” para todas e todos, duma democratização das relações sociais, no e fora do trabalho. Isto significa que existe uma reprodução funcional da exclusão: as posições mais degradadas socialmente devem incessantemente ser ocupadas pelos recém-chegados para garantir a perenidade do modo de funcionamento actual do sistema. Há, se quisermos, uma série contínua entre o estável e os “desafiliados”, como diz Castel. A nossa posição, parece-me, conduz a uma desmercadorização do assalariado sob a forma de consolidação da Segurança Social.

i.2. A EUROpA DOS DESFAvORECIDOS: UmA vISãO DE SíNTESE

EXCERTOS DO RELATÓRIO “míNImOS SOCIAIS E CONDIçãO SALARIAL

A EUROpA vISTA pELOS DESFAvORECIDOS”

A investigação incide sobre as problemáticas do desemprego, da reinserção profissional, da pauperização e dos “novos” pobres. A “nova” pobreza está ligada ao défice de empregos característico do período que vai da segunda metade dos anos 70 aos nossos dias e que se diferencia da pobreza residual que marcou os anos 50 e 60 até ao início dos anos 70.

O inquérito assenta ao mesmo tempo em projectos de investigação existentes, em dados de natureza quantitativa e analítica e em entrevistas detalhadas (cerca de 400) de testemunhos privilegiados, tanto de pessoas directamente atingidas pela precariedade como das pessoas que estão na primeira linha (animadores de Comités e de associações activas no quarto mundo e dos funcionários CPAS). Os investigadores adoptaram uma análise longitudinal que lhes permitiu reencontrar diversos testemunhos por várias vezes através de entrevistas colectivas ou por o seu

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trabalho ter incidido apenas em certos lugares. Na Bélgica, tratou-se de Antuérpia, de Charleroi e em menor escala de Bruxelas. Em França, tratou-se da região de Lille, no Norte, dos subúrbios de Paris e de Lorena.

Os investigadores primeiramente compararam a situação social de pessoas atingidas com a situação social de pessoas com um fraco nível de rendimento como é o caso das subvenções. Procederam seguidamente à uma comparação entre os desempregados e as pessoas inscritas num programa de reintegração ou de reinserção. Por último, partindo do caso de pessoas sujeitas a despedimentos colectivos ou a reestruturações industriais, estudaram a evolução do emprego (o estatuto).

Nos quatro países de referência (Bélgica, França, Alemanha e Reino Unido), os subsídios diminuíram entre 1980 e 1998 em termos de volume, duração, acessibilidade e taxas de cobertura (ou seja, a relação entre o número de beneficiários dum subsídio e o número de desempregados). A luta contra a pobreza inscreve-se antes de mais nada na política social mas ganha terreno na política de emprego. Já que os mecanismos de protecção social dos regimes de segurança social associam os princípios de solidariedade ou de luta contra a pobreza, daqui resulta um aumento dos mínimos sociais, em detrimento doutros mecanismos de protecção social.

A relação entre a formação salarial e os mínimos sociais é posta sob pressão. Em outros termos, os mínimos sociais deixam de ser indexados ou determinados em função do(s) (a duração dos) subsídios e do último salário pois passam a tornar-se fixos à partida. Nem sempre se trata da consequência imediata de certas medidas que visam parar a evolução da pobreza, mas é sobretudo o resultado da introdução de medidas em defesa das famílias ou de medidas de apoio aos rendimentos de certas categorias da população.

Em França, no Reino Unido, na Alemanha e, em menor escala, na Bélgica, novos subsídios são criados. Recentemente, apareceram novas formas de contratualização de subsídios concedidos anteriormente, quer na forma incondicional, quer de acordo com as garantias colectivas e a protecção associadas

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ao estatuto do trabalhador. É portanto possível acumular os rendimentos do trabalho e os mínimos sociais. A Alemanha e a Espanha lançaram o debate sobre a norma dum emprego “aceitável”. A pobreza aumenta entre as pessoas beneficiárias de rendimentos de substituição.

A taxa de pobreza da população no desemprego aumenta em proporções diferentes nos diversos países. Entre 1985 e 1995, a parte de “desempregados pobres” (isto é, dos desempregados que vivem sob o limiar de pobreza, ou seja, com um rendimento inferior a metade do rendimento médio) tem aumentado: passou de 28% para 47% na Bélgica; de 23% para 24% na França; de 35% para 41% na Alemanha e de 32% para 50% no Reino Unido. O facto de o número de “desempregados pobres” progredir mais na Bélgica que em França resulta de um grau de cobertura mais elevado no primeiro país, ou seja, na Bélgica (ao inverso da França), todos os subvencionados sociais são contabilizados na categoria de desempregado. Na Dinamarca e na Suécia, onde a população no desemprego beneficia, da mesma maneira que na Bélgica, duma taxa de cobertura elevada, a parte dos “desempregados pobres” permanece estável, ou seja, respectivamente em 8% e 27%.

Desemprego a duas velocidades

Observa-se na população desempregada uma polarização interna entre os desempregados de longa duração, que se inserem em programas cujo objectivo principal é a luta contra a pobreza, e uma camada superior onde os fluxos de entrada e de saída estão a aumentar, tanto em termos de volume como de frequência. Esta polarização interna na população desempregada é acompanhada por uma segmentação resultante duma configuração institucional (as condições de acesso aos direitos sociais e à natureza destes) que pode variar largamente segundo os países e as regiões, o grau de escolaridade, o sexo e as características locais ou regionais do mercado do emprego.

A oferta de empregos permanece um factor preponderante. A região de Lille, no Norte de França, por exemplo, combina desemprego elevado e actividade

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económica contínua ou nova, criadora de empregos pouco qualificados nos sectores do transporte e da logística. Esta região apresenta, ao mesmo tempo, um fluxo de saída considerável, e uma pobreza importante. Os parâmetros locais no seio duma mesma configuração institucional determinam a situação social das pessoas em causa. Na região de Lille, o mercado de trabalho continua a funcionar. Em Charleroi, em contrapartida, o mercado de emprego das pessoas pouco qualificadas está em ponto morto; não se coloca, aliás, um problema de mobilidade para as pessoas inscritas em programas de formação (reciclagem). Inversamente, o Luxemburgo é o pólo de atracção das pessoas altamente qualificadas.

As medidas políticas determinam os modos de (des)funcionamento do mercado de emprego. A mobilidade inter-regional é mais forte na Alemanha, na França e no Reino Unido que na Bélgica. Além disso os programas de apoio são aí melhor harmonizados que na Bélgica.

A reintegração profissional é o fio condutor de todos os programas de emprego ou de luta contra a pobreza. No que respeita aos desempregados de longa duração inscritos em programas de procura de trabalho, tais como o RMI, em França, é muito difícil a sua integração no mercado do emprego duradouro. Um estudo longitudinal entre os Rmistas, em França, mostra que a reintegração é muito pequena. Só um quinto de entre eles encontra um emprego e destes 20%, só metade mantêm um emprego para além de dois anos. A reinserção não permite aos desempregados de longa duração readquirir os direitos sociais ligados ao desemprego de longa duração. Existe uma espiral pobreza/desemprego que não é devida às particularidades do desempregado, mas sim ao tipo de oferta de emprego.

Nos inquéritos foi perguntado aos desempregados de curta duração (entendam isto como referindo-se aos desempregados de menos de um ano) o que é que aceitariam ou que é recusariam como tipo de condições de trabalho. 84% de entre eles aceitam a flexibilidade dos horários; 62% aceitam outro emprego; 33% um emprego menos remunerado; 31% um emprego menos qualificado; 26% um emprego com um volume de trabalho mais pesado; 23% aceitam mudar; 20% aceitam um trabalho temporário.

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Os desempregados de curta duração mostram mais disponibilidade para aceitar horários mais flexíveis e/ou outro emprego do que um emprego menos remunerado. Isto não quer dizer que o façam de boa vontade. Adaptam-se sim mas por falta doutras possibilidades. A vontade de se adaptar desfaz-se com o tempo.

No Reino Unido, aqueles que procuram emprego sentem negativamente a selectividade no mercado de emprego. Foi perguntado a 500 pessoas à procura de emprego porque é que tinham recusado ou não tinham obtido um determinado emprego. Destes, 17% declararam ser demasiado idosos, 15% evocam uma deficiência física ou problemas de saúde, 11% declaram ter recusado um emprego porque era insuficientemente remunerado. Em 10% dos casos, o empregador censura-lhes uma falta de experiência ou de qualificação. Um pouco menos de 10% falam em concorrência demasiadamente forte e na escassez de empregos disponíveis: declaram não ter encontrado trabalho por falta de empregos ou porque foram preteridos em relação a outros, 7% queixam-se do facto de estarem no desemprego já há muito tempo. Menos destes 7% mencionam dificuldades por terem crianças à sua guarda, falta de formação, problemas de mobilidade, por serem objecto de discriminação étnica e por estarem associados a casos judiciais. Os factores supracitados fazem com que os desempregados de curta duração, e entre eles principalmente os mais qualificados (entendam por isto os jovens que são mais receptivos à mobilidade), tenham, aquando do recrutamento, prioridade sobre os desempregados de longa duração.

Não é fácil interrogar um desempregado de longa duração sobre a sua maneira de viver com um mínimo de rendimentos (isto é, no limiar de pobreza). Estes desempregados que só têm o rendimento mínimo têm dificuldade em se exprimirem, escondem as suas emoções e culpabilizam-se. Temem serem vistos e analisados até devido às estratégias de sobrevivência que utilizam. Por outro lado, não sabem para que servirão os resultados do inquérito. Para obter tal informação, é primordial estabelecer um clima de confiança entre os investigadores e estas pessoas. É essencial que os investigadores interroguem estas pessoas na presença de responsáveis dos Comités de desempregados e das associações activas no quarto

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mundo. Assim evita-se que sejam percebidos, pelos “cientistas” ou os “aliados das instituições”, como pessoas pobres que vivem como uma ameaça e que, aos seus olhos, não têm, mesmo de forma alguma, qualquer legitimidade.

Viver com um rendimento mínimo equivale a viver numa (quase) pobreza, num mundo subjectivo no qual as pessoas desfavorecidas se consideram como inúteis, inutilizáveis, não rentáveis, invendáveis. O modo de vida das pessoas que vivem com um mínimo de meios de existência varia dum dia para o outro e elas não têm nenhuma perspectiva de futuro, não têm nenhum projecto de vida e preferem não se voltar para o seu passado. O seu ritmo de vida abranda-se, no sentido em que remetem para mais tarde o que poderiam fazer ainda no próprio dia, dado que de qualquer modo não se altera praticamente nada na sua condição. Este retardamento não tem nada a ver com a ociosidade. Com efeito, assumirem realmente o seu caso pessoal é um trabalho a tempo inteiro. Demoram muitas vezes um dia inteiro para resolver um problema menor.

Criar um balcão de atendimento único

É indispensável criar um balcão de atendimento único onde as pessoas que vivem com um mínimo de meios de existência se possam dirigir. Por exemplo, os Rmistas perdem coragem para regularizar a sua documentação, durante dias inteiros; trata-se de problemas que fazem parte da vida diária, mas mesmo para resolver estes sentem-se psicologicamente fragilizados. Recorrem a uma estratégia de sobrevivência entre desempregados que assenta na reciprocidade. Trata-se duma economia moral onde o dinheiro deixou de ter o seu lugar, uma economia que obedece aos seus próprios códigos e que implica um forte controlo social, isto é, trata-se uma economia que aprova e/ou rejeita certos comportamentos.

Certamente, este tipo de pessoas, com rendimentos mínimos, que ambicionam sair da sua condição social (a sua pobreza), são apoiadas pela sua família, no entanto não o são pelo seu meio social envolvente (bairro, cafés…) que os qualificam de ingénuos.

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As relações entre as diferentes gerações (entre pais pobres e as suas crianças) tornam-se difíceis. O que os pais pobres consideram impossível obter, exigem-no os seus filhos. Mas estes, que vêem todos os dias os seus pais a recorrer a todas as espécies de estratégias para sobreviver, perdem também eles a coragem, e entregam-se a uma batalha de resistência para alcançarem bons resultados escolares, mas o que conseguem às vezes é apenas um emprego do tipo Rosetta2 ou similar que provavelmente será temporário.

Certos empregadores exploram estes jovens (de pais pobres) no âmbito de estágios nas suas empresas, estágios estes que duram um curto período, sendo de seguida substituídos por outros jovens com as mesmas características. No caso de estes jovens terem aprendido alguma coisa durante estes estágios, isto é no entanto de muita pouca utilidade depois.

A questão é que se trata duma população que se encontra primeiramente desempregada e, em seguida, apanhada na engrenagem da pobreza e que se consegue sair dela nela volta a mergulhar outra vez. Mesmo quando as pessoas que vivem dum rendimento mínimo deixam de fazer algo para sair da pobreza, nada disto tem a ver com a ociosidade, mais sim com o facto de que estarem muito conscientes da forte probabilidade de não conseguirem sair da situação em que se atolaram. Frequentemente, custa menos permanecer nesta pobreza do que sair dela. Encontrar trabalho para de lá sair traz problemas de mobilidade, de despesas, de guarda das crianças, de flexibilidade e de horários irregulares. Estes problemas são ainda mais difíceis de resolver para as mulheres do que para os homens. Em contrapartida, os homens pouco qualificados são confrontados mais do que as mulheres (pelo menos no sector dos serviços) com a falta de empregos.

2 Referência à personagem do filme, ele também intitulado Rosetta, dos irmãos Dardenne, de 1999. Neste filme, Rosetta luta por um emprego, por um lugar que encontra, perde, encontra outra vez, que lhe é tirado e que recupera, obcecada pelo medo de desaparecer, pela vergonha de se não integrar [N. do T.].

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Incompreensão e sentimento de injustiça

Foram relativamente poucas as pessoas interrogadas que se culpabilizam perante a sua situação social (a sua pobreza). As pessoas entrevistadas não compreendem muito bem as medidas, as regras e as regulamentações existentes. Qualificam as instituições de ameaçadoras, de ineficazes e de discriminatórias. Injustas porque constatam (pela sua abordagem individualizada) que certas pessoas chegam a sair da pobreza, enquanto outras não.

A única categoria de população que se culpabiliza face à sociedade é a que tem uma certa ética de trabalho ou que, como trabalhador independente, se reencontra socialmente vulnerável na sequência de um acidente. Esta última categoria nunca viu o regime da Segurança Social como o produto do Estado Providência e nunca se considerou como dele fazendo parte. Qualificam mesmo os desempregados de longa duração como parasitas.

No Reino Unido, o trabalho clandestino é aí tão bem controlado que praticamente não existe. Na Bélgica (e mais especialmente em Charleroi), o trabalho clandestino também não existe porque, desde os desempregados que viveram a crise industrial do fim dos anos 70, início dos anos 80, o trabalho clandestino anda a par com a integração social (com as conexões sociais). Existe mais facilmente uma economia informal e possibilidades de compensar perdas de rendimentos quando se está integrado no circuito do trabalho. Exemplo: o que cai do camião de um fornecedor pode ser redistribuído e/ou sempre revendido. Se integrar o circuito do trabalho, é possível fazer horas suplementares sem serem pagas como tais e/ou fazer trabalho clandestino particularmente. Os desempregados de longa duração, contrariamente às pessoas que integram o circuito do trabalho, não têm (praticamente) nenhuma ocasião de trabalhar clandestinamente. Não se faz mercado clandestino com o que se obtém dos cestos alimentares ou do banco alimentar e/ou a “lavandaria social” não lhes permite (ou permite muito pouco) ganhar qualquer dinheiro. A presença de ilegais ou de sem documentos (no sector do têxtil e na confecção, no sector da construção, no transporte) começa a pesar no nosso mercado de trabalho.

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Viver com um mínimo de meios de existência implica também um aumento das dívidas. Na Bélgica, em França, na Alemanha e no Reino Unido, 40 à 50% das pessoas interrogadas salientam o atraso estrutural no pagamento das suas dívidas. Na Bélgica, 38% das pessoas interrogadas têm um empréstimo a decorrer, o que significa que elas são devedoras junto dos bancos e 19% (quase 1 em cada 5) das pessoas interrogadas tem o aluguer da casa atrasado. São cada vez mais as pessoas entrevistadas que assumem ter dívidas junto das instituições ligadas ao seu cartão de crédito ou que o emitiram. É muito perigoso contrair um empréstimo junto duma instituição de crédito B para reembolsar o crédito contratado junto duma instituição A. Estas formas de crédito à vista e em dinheiro são cada vez mais utilizadas para pagar facturas.

Efeitos perversos

A acumulação de subsídios e de salário (por exemplo, o Combilohn na Alemanha, the Working Family’s Tax Credit no Reino Unido, o RMI em França e os títulos-serviço na Bélgica) é um fenómeno recente e no limite da luta contra a pobreza e da reintegração profissional. Estes sistemas de cumulações permitem aos indivíduos aumentarem (pontualmente) o rendimento da família, mas provocam, no plano colectivo, uma estagnação, ou mesmo uma espiral em baixa, do rendimento da família. Os sistemas que associam acumulação e situação da família como o Working Family’s Tax Credit no Reino Unido dão lugar, a (mais) longo prazo, a uma estagnação dos rendimentos das famílias. Quando um posto de trabalho é oferecido a um dos cônjuges e este aceita, a família no seu todo deixa de poder acumular, permanecendo então o rendimento da família inalterado. O facto de as pessoas não terem nenhum interesse em sair dum tal sistema de cumulações e aceitarem um trabalho duradouro reforça a segmentação, e tanto mais num contexto (característica para o Reino Unido) em que o número de working poor está a progredir. Em 40% dos empregos a tempo parcial do Reino Unido, o salário mensal é inferior a 400 euros, ou seja, um salário comparável ao dos empregos a tempo parciais na Bélgica.

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Numerosas medidas políticas têm como efeito aumentarem o número de pessoas em trânsito e de as forçar (por sanções) a sair do regime da segurança social. Chegam assim, por consequência, a um sistema paralelo da luta contra a pobreza e de ajuda social. Não se pode falar duma coesão social acrescida, mas duma flexibilização crescente de natureza negativa, isto é, duma fragmentação dos estatutos sociais e das situações respeitante ao mesmo tempo às normas em matéria de rendimento e de emprego.

É mesmo importante inverter a tendência da recomercialização do emprego. O Estado Providência tem gerado uma tendência à recomercialização do trabalho, trabalho este que se tem tornado num bem susceptível de ser (re)alugado ou trocado. Esta tendência, positiva para os mais qualificados porque tende a aumentar os seus rendimentos, afirma-se como nefasta para os menos qualificados devido à diminuição dos seus rendimentos.

No entender das categorias mais vulneráveis da população, a abordagem pela via do “capital humano” que está no centro da política e das directivas europeias em matéria de “empregabilidade” e de “adaptabilidade” traduz-se num empobrecimento em termos de normas absolutas e relativas, numa pobreza crescente entre os “não activos”, numa des-solidiarização acrescida e numa atenuação da força dos valores.

Sublinhe-se a necessidade actual de se ter um debate sobre os equilíbrios sociais gerais e sobre a divisão da riqueza colectiva.

Diversos modelos sociais balizam a Europa. As rigidezes do modelo escandinavo, por exemplo, são de natureza diferente das dos outros modelos. Os actores adaptam-se duma maneira ou de outra ao meio envolvente a fim de manter uma certa durabilidade, não somente no plano social, mas também no plano económico. O modelo escandinavo apresenta um grau de coesão social relativamente mais elevado que os outros modelos e não se traduz necessariamente numa menor flexibilidade.

© Chomages et Précarité, l'Europe vue d'en Bas, 2003.

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ii. mERCADO DE TRABALhO E SITUAçÕES DE pRECARIEDADE

ii.1. “pROpOSIçÕES SOBRE OS EXCLUíDOS:

DEBATES TEÓRICOS E pOLíTICAS SOCIAIS EUROpEIAS”

EXCERTOS DE Um TEXTO DE mAXImOS ALIGISAkIS

O objectivo principal deste texto consiste em apresentar as questões fundamentais e os elementos de respostas sobre a temática da exclusão, no âmbito específico da integração europeia. Para o efeito, após uma curta introdução para esclarecer esta problemática, proporemos dois níveis de desenvolvimento: um em que se estabelece os termos do debate e o outro em que se avalia a realidade europeia.

Antes de trabalharmos sobre estas questões, impõe-se uma observação preliminar. Esta refere-se à dificuldade epistemológica para tratar este tema. Realmente, trata-se de enfrentar um duplo desafio: manter uma distância crítica em relação ao objecto de estudo e controlar tanto quanto possível a natureza interdisciplinar do tema em análise.

Sobre o primeiro ponto, devemos confessar que continua a ser bem difícil respeitar a neutralidade “axiológica” weberiana. Quando se considera uma questão como a exclusão, o deslize para o emocional ou ideológico é de resto possível. No entanto, é necessário considerar a maior parte das nossas reflexões como questionamentos abertos, hipóteses de trabalho ou ainda argumentos que alimentam o debate democrático, sem nenhuma pretensão de verdade absoluta. Neste sentido, este texto introdutório não pode contornar as questões fundamentais, ao mesmo tempo científicas e de cidadania. Além disso, esta é a função das ciências sociais e humanas, ou seja, o de assumir este papel.

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O segundo elemento evocado é o dos desafios epistemológicos em torno da problemática da exclusão. Esta última reenvia-nos, com efeito, para as diferentes disciplinas científicas que compartilham a questão.

Notemos, em primeiro lugar, as interrogações históricas e diacrónicas: como é que os conceitos e as realidades evoluíram, no continente europeu, em matéria de pobreza ou exclusão? A história económica e social está cheia de ideias e de análises, que nos permitem apreender o passado, mas também compreender o presente ou mesmo de prever certas tendências futuras.

Por outro lado, as ilustrações literárias e artísticas são numerosas: que dizem a cultura, a literatura, a arte, o cinema europeus sobre a miséria humana? Não será necessário ler e reler Zola ou Hugo, ver e reexaminar os filmes de Chaplin? Evidentemente, as questões políticas e sociais não faltam: a UE produz sempre a inclusão ou trata-se antes de uma nova forma de exclusão (política, democrática, de cidadania)? A Europa em construção está ela em comunhão ou em desafiliação? As políticas sociais europeias são elas uma resposta às desigualdades? O multiculturalismo, supondo que ele existe nas sociedades europeias, é a resposta face às exclusões identitárias?

Aliás as temáticas jurídicas não são as menos importantes: as normas europeias estão elas adequadas para parar os fenómenos de pobreza e de exclusão? Qual a relação que mantém o direito com o mundo dos necessitados?

Várias outras disciplinas poderiam ainda ser evocadas, fundadas sobre as discussões éticas, filosóficas, teológicas ou psicológicas. Os desafios ecológicos e o desenvolvimento sustentável devem igualmente ser considerados: é necessário redefinir a noção de riqueza no âmbito do novo paradigma do decrescimento? As reflexões sobre os aspectos pedagógicos participam igualmente no nosso debate: a escola é o remédio contra a exclusão ou a formação contribui, por sua vez, para aumentar as desigualdades?

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Por último e sobretudo, as questões económicas são capitais: se bem que entre as mais visíveis, não estão obrigatoriamente as que melhor são conhecidas cientificamente. A miséria económica e as suas novas formas não são ainda exploradas suficientemente.

Nas ideias que se seguem, exporemos apenas algumas dimensões disciplinares. Abordemos, primeiramente, a delimitação da questão.

A problemática

Os Gregos antigos tinham a obrigação de se ocupar dos pobres e de acolher os estrangeiros. Libertavam-se desta tarefa porque eram crentes “utilitaristas”: tinham medo de maltratar os pobres e os estrangeiros (metamorfose possível dos seus deuses). Então, o que faz a Europa em via de integração face aos seus excluídos, aqui e de agora? Tem ela uma tal política racional e voluntariosa ou segue os acontecimentos sem estar a poder controlá-los?

A gestão da exclusão e as suas múltiplas formas constitui um teste capital para a UE e para o seu futuro, para a legitimidade das elites e para a adesão dos cidadãos ao projecto europeu. É também uma tarefa difícil, para os cientistas, apreender a complexidade duma problemática fundamental dos estudos europeus.

No início do século XXI, a existência de miséria nos países europeus é um desafio essencial para a integração. De acordo com os números oficiais, 15% da população vive sob o limiar de pobreza. Cerca de 70 milhões de pessoas são referidas, numa Europa que vai do Atlântico ao Mar Negro. A persistência desta situação não corresponde igualmente a uma espécie de miséria política das autoridades, aparentemente incapazes de resolver a questão social contemporânea? Noutros termos, o velho continente não se encontra ele numa situação tão grave que os “pequenos remédios” da Europa social (além disso, em retrocesso) deixaram de ser capazes de limitar as exclusões?

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Por último, convém levantar outra série de questões importantes: a integração europeia produz a exclusão (política, económica, social, escolar...)? Em suma, assistimos nós a uma europeização da exclusão? Neste caso, quais são os esforços empreendidos para incluir as minorias, os pobres e os precários? Tomemos o exemplo da Europa da educação: se os diplomas e as línguas são um passaporte para a liberdade e o futuro, o que é necessário fazer com aqueles que não têm suficientemente formação nem conhecimentos linguísticos? Como incluí-los num sistema cada vez mais competitivo, num ambiente profissional que exige flexibilidade, mobilidade e adaptação permanente?

Partindo destas questões, a nossa contribuição tentará definir um quadro conceptual geral, seguidamente examinará as políticas europeias e os seus limites.

A) Os termos do debate

A fim de tratar as problemáticas relativas “à Europa perante as exclusões” desenvolvidas previamente, evocaremos primeiro ‘a valsa dos conceitos’. Comentaremos assim as noções mais importantes e os temas da exclusão e da pobreza serão a seguir examinados. Diversos termos vizinhos serão abordados posteriormente, como a precariedade, a marginalidade, a miséria, o desemprego, as desigualdades, a nova pobreza e os seus working poors.

Os conceitos

A exclusão é uma noção geral porque se declina nos domínios do económico, do social, do cultural, da sexualidade, da cidadania, da identidade...; mas é frequentemente também o resultado das precariedades e da pobreza. Por sua vez, estes últimos são ligados aos efeitos sociais das realidades económicas; são necessárias precariedades acumuladas para “deslizar” para a pobreza e, em seguida, para a miséria e para a dessocialização total. Defendemos por conseguinte, como hipótese, que a pobreza age como uma causa da exclusão, ainda que esta permaneça um fenómeno mais global. É esta também a leitura de H. Thomas que argumenta

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que a precariedade conduz à exclusão, aparecendo esta última assim como uma sua consequência. Na realidade, a dificuldade conceptual resulta do facto de todos os conceitos estarem ligados de modo ‘circular’. Desemprego e pobreza, pais separados com filhos, relações sociais transitórias e pobreza constituem fortes correlações. É tudo uma questão de processos, de limiares e de momento ou método de análise. Assim, uma “desqualificação em curso” equivale à precariedade, enquanto uma “desqualificação terminada” significa exclusão ou grande pobreza.

a) A exclusão

Os excluídos são indivíduos inadaptados ao sistema social existente ou ainda pessoas que se encontram na parte inferior da escala social. De modo bastante evidente, colocam problemas aos incluídos, como os pobres incomodam a quietude dos ricos. Neste sentido, a exclusão gera “a nova questão social”, de acordo com os termos de Thomas, ou constitui “um novo paradigma”, de acordo com a proposta de Paugam. Como para os outros conceitos essenciais, existe também uma realidade social e uma construção teórica-académica. De acordo com G. Lamarque, o conceito de exclusão engloba ao mesmo tempo a pobreza, o desemprego e o enfraquecimento das relações sociais. Pode, além disso, ser sinónimo de precariedade quase irreversível, de eliminação, marginalização e desqualificação social. O que parece ser próprio da exclusão é a sua potencialidade em incidir e atingir a relação social, ou seja, “de degradar de forma durável o tecido social”. Este aspecto representa muito provavelmente a diferença essencial em relação à pobreza dos séculos passados.

Por seu lado, Castel entende a natureza da exclusão através da noção da vulnerabilidade. Distingue três categorias sociais: os integrados, os precários que habitam a zona de vulnerabilidade e os desafiliados. Neste quadro, convém combater a vulnerabilidade se se quiser combater a exclusão.

Quais são as razões e as causas da exclusão, este “grande medo”? A exclusão é vista como o resultado de factores económicos e materiais, e são estes que criam “situações de precariedade duradouras”. Pode igualmente acrescentar-se como fonte da exclusão

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“a lógica da competitividade”, agora reinante, acentuada até ao limite do absurdo. É por conseguinte indispensável vincular o estado de exclusão e as desigualdades. Além disso, não nos podemos esquecer de ter em consideração as variáveis do percurso pessoal: fraqueza nas relações entre filhos e pais, divórcios, doenças... Finalmente, as condições objectivas e subjectivas conduzem então para uma “desqualificação social”, uma imagem negativa de si mesmo e uma dependência em relação à assistência social.

Em proximidade imediata da exclusão, encontra-se o termo de precariedade. Como já tem sido sublinhado, trata-se de um conceito entre a exclusão e a pobreza. Não nos vamos alargar sobre esta questão, mas convém precisar um elemento. A priori, a precariedade, no sentido da mudança, o trabalho a tempo parcial e a mobilidade podem ser sinal de liberdade. O fim do pleno emprego não é obrigatoriamente um mal. Pode ser considerado como uma nova perspectiva para a solidariedade, o desenvolvimento pessoal, o pós materialismo e os tempos livres. Portanto, podemos reexaminar assim a questão da flexibilidade do tempo de trabalho e da segurança social. Estas propostas são interessantes se os indivíduos-cidadãos controlam socialmente a riqueza produzida. Mas actualmente, sob o sistema da economia de mercado e da lógica do management, a precariedade e a descontinuidade do emprego não parecem ser sinónimos de liberdade, mas antes fontes de exploração e de alienação. É necessário imaginar a mobilidade mas num quadro de ‘segurança económica’.

b) A pobreza

A pobreza é uma “exclusão insustentável” ou simplesmente uma desigualdade grave? Aparentemente, tudo é uma questão de escala. Certamente, utilizamos às vezes critérios absolutos mas, geralmente, o pobre é definido em relação aos outros. É assim a abordagem mais utilizada nas estatísticas europeias, a que tenta apreender a pobreza monetária (por exemplo, baseando-se no rendimento mediano).

Um outro grupo de definições de pobreza vem-nos do universo das Organizações Internacionais, em especial das que estão próximas da tradição humanista (ONU, OIT, PNUD), em oposição com as Organizações Internacionais

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mais viradas para a dimensão financeira (Banco Mundial, FMI). Com efeito, as primeiras apoiam mais o “trabalho decente” ou o “desenvolvimento humano”. Neste contexto, desenvolvem uma noção larga da noção de pobreza. As posições de Amartya Sen são muito representativas desta escola de pensamento. Para o prémio Nobel da Economia, a pobreza é a escassez de capacidades e é a impossibilidade de escolher: não é somente necessário assegurar um rendimento para satisfazer as necessidades fundamentais dos indivíduos; é necessário igualmente distribuir de maneira equitativa as capacidades de desenvolver realizações a fim de efectuar uma vida digna. É muito interessante assinalar que a Europa em via de integração propunha, já em 1976, uma definição bastante próxima: “são considerados como pobres os indivíduos e as famílias cujos recursos são tão fracos que são excluídos dos modos de vida, dos hábitos e das actividades normais do Estado no qual vivem”.

No que se refere às causas da pobreza, devem assinalar-se várias interrogações. Podemos dizer que as razões da pobreza residem no sistema económico e não fora deste? É certo que a exclusão e a pobreza são sobretudo construídas sociais mais do que processos naturais? A principal causa da pobreza, a sua presença em todos os países (desenvolvidos ou não) e a sua persistência como fenómeno, não se explicariam pelo facto de haver sobre-acumulação das riquezas noutros lugares, noutras pessoas? Finalmente, riqueza e pobreza serão elas dois lados comunicantes, não constituem elas um jogo de soma nula? Trata-se de interrogações tanto ideológicas tanto quanto o são indispensáveis.

Uma outra “bateria” de questões refere-se às formas e às tendências actuais da pobreza. Se a fome, os salários de miséria, o trabalho informal e a “precariedade permanente” são dominantes nos países em vias de desenvolvimento, nos países europeus vivem-se formas bem mais atenuadas: a precariedade e o desemprego para uma parte da população, mas também o aparecimento (ou antes o re-aparecimento) dos working poors, cujo número progride em todos os países ricos sob a ameaça do “dumping social” e do desemprego. A exclusão completa do sistema (para os marginais) está igualmente presente. A mundialização em marcha constitui uma outra variável a tomar em consideração.

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Os debates

a) A natureza da pobreza

Três questões específicas deverão permitir-nos explorar um pouco mais a natureza da própria pobreza. Em primeiro lugar, convém interrogarmo-nos se a pobreza é um estado ou uma passagem, uma situação ou um processo? Pelo seu carácter não estático, a pobreza dá a impressão de ser simplesmente um processo. Mas é necessário não esquecer que se trata também duma estrutura, ainda que as pessoas que a compõem não sejam as mesmas.

Em segundo lugar, importa interrogar-nos se se deve definir os pobres como uma classe social compacta ou como assistidos heterogéneos? A pobreza é caracterizada por elementos económicos objectivos ou por traços sociais relativos? Obviamente, tudo isto depende dos critérios retidos para caracterizar uma classe: critérios económicos (situações bastante semelhantes), critérios sociais (percursos de vida frequentemente diferentes), critérios políticos (consciência política antes frágil)... Podemos dizer que os pobres se encontram numa situação de desqualificação social comum, mas com grandes diversificações individuais. O que, com efeito, faz deles uma categoria social especial.

Por último, a seguinte questão: quais são as camadas sociais mais atingidas pela pobreza? Parece que os jovens, as pessoas com um diminuto nível de formação, as famílias monoparentais e os indivíduos procedentes das minorias étnicas, ou a imigração, estão mais expostos à exclusão e à miséria. As nossas reflexões sobre a situação europeia explorarão estes casos.

b) As causas da pobreza

Numerosos aspectos das causas da pobreza, ou da exclusão, já foram acima evocados. No entanto, as causas profundas não foram postas suficientemente em evidência.

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De maneira esquemática, aparecem duas grandes orientações relativas às origens e à persistência da exclusão: as causas colectivas e macroeconómicas; as razões individuais e micro-sociológicas. A esse respeito, constata-se que os europeus hesitam entre os factores que vêm do sistema e os que são atribuídos aos percursos individuais. A hipótese sociológica seguinte merece reflexão: seria um erro ver a exclusão como uma questão individual?

É ainda importante assinalar as dimensões dinâmicas e diacrónicas da exclusão. Neste quadro, a tipologia etiológica de H. Thomas merece ser citada. A autora distingue a abordagem estática vertical (rendimento) e a horizontal (acumulação dos factores) relativamente à abordagem dinâmica. Esta última manifesta-se quer pelo deslizar progressivo, quer pela reprodução (pobreza herdada). O perpetuar da situação de exclusão, geração após geração, é uma hipótese de trabalho a tomar seriamente em consideração quando são tratadas as causas da pobreza.

c) As soluções

É frequente crer, ou fazer crer, que a pobreza é uma fatalidade. No entanto, esta perspectiva não é compartilhada por todos e considera-se que é possível tratar a exclusão. Neste caso, as escolhas políticas impõem-se. As sociedades europeias e a UE devem enfrentar um dilema importante, que decidimos qualificar de alternativa do abade Pierre: é necessário combater a pobreza pela caridade ou trata-se antes de instaurar a justiça social? A forma jurídica que assume esta questão é a seguinte: deve promover-se a prática da assistência para garantir a ordem social ou é necessário aplicar os princípios da solidariedade e da segurança para prevenir a exclusão? A política social europeia será uma mistura delicada entre estas duas orientações? Obviamente, retornaremos seguidamente a todas estas questões.

O debate sobre o Estado Providência encontra-se próximo destas interrogações. O papel deste é de se encarregar das exclusões. Mas esta função não é preenchida da mesma maneira nos diferentes países (nomeadamente da UE). Quais são os principais modelos e as suas características (tipologias, comparações, visões

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diferentes da pobreza e as políticas de inclusão)? Quais são as evoluções recentes (crise do Estado Providência, Estado Social activo)?

Perante este tipo de escolha à Corneille, é necessário igualmente estabelecer o diálogo social e a luta colectiva. Hoje em dia, a Europa oficial parece dar a sua preferência ao diálogo social, enquanto a segunda possibilidade está sobretudo ausente na realidade europeia actual. É necessário reconhecer as vantagens sociais obtidas com o conflito democrático, pela negociação e pelo diálogo social, sobretudo nos períodos de elevada conjuntura (como aconteceu durante os ‘Trinta gloriosos anos’). No entanto, convém recordar que o retrocesso da pobreza nunca se produziu, historicamente falando, sem luta política e reivindicativa por parte dos cidadãos. A miséria só sofreu uma regressão verdadeiramente quando mulheres e homens lutaram de maneira organizada. A acção colectiva é uma solução para combater a pobreza.

No entanto, é possível levar a cabo uma acção colectiva eficaz pelos excluídos? Com efeito, a exclusão é não somente económica, mas também política. Pode assim atingir a própria essência da cidadania. É certo que o excluído pode continuar a participar normalmente na vida política por meio da assistência ou pelo seguro (há mesmo movimentos activos na matéria). Contudo, existe um perigo evidente de distanciação. O excluído torna-se então um cidadão de segunda ordem, ou passa mesmo para a marginalidade. Os fenómenos de dessocialização e de despolitização andam, por vezes, a par.

Até agora, tivemos ocasião de colocar questões conceptuais e teóricas. É agora necessário tratar mais concretamente da nossa temática. Com efeito, como assinala Paugam a propósito da Sociologia da pobreza, trata-se de estudar esta última como uma “experiência vivida” e como um “elemento da consciência que as sociedades modernas têm delas mesmas”. Estes elementos são para nós importantes. A pobreza é um espelho que permite apreender, pelo menos parcialmente, a natureza de uma sociedade (neste caso a UE). Esta problemática pode ser formulada do seguinte modo: digam-me como gerem (como tratam) os vossos

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pobres ou os vossos estrangeiros e dir-vos-ei que tipo de sociedade têm. Em suma, como se pode avaliar a situação europeia em matéria de exclusão?

B) A UE a e as suas políticas sociais face às exclusões

A luta contra a pobreza é um dever moral em qualquer sociedade que se quer civil. Será o caso da UE? Certamente. Mas será verdadeiramente uma prioridade da União e esta luta será ela eficaz? A UE esforça-se em opor-se à exclusão social e à pobreza. No entanto, ela não pode impor a sua política. Assim, os resultados não são garantidos como acontece com o Pacto de Estabilidade.

Examinando os aspectos e os métodos da Europa social, defenderemos a hipótese que as acções europeias perante os desafios da exclusão são insuficientes. Certamente, a UE não é de longe o único responsável pela situação social do continente. Mas as suas acções cobrem um vasto leque que vai do económico ao social, da política ao jurídico, do educativo ao cultural. A Europa não pode impedir os divórcios ou refazer as relações familiares e inter-geracionais (razões subjectivas da exclusão), mas pode intervir em matéria de emprego ou a criar serviços de proximidade. Em todo caso, tem o dever de lutar contra as diversas formas de exclusão que a comprimem.

Reflexões gerais

“Os pobres é um sector em grande crescimento”, exclamava o caricaturista Chapatte aquando da atribuição do prémio Nobel da Paz a Muhammad Yunus. Esta afirmação é aplicável sobretudo nos países que compõem o antigo Terceiro Mundo. Mas não somente. Como já tem sido evocado, a Europa, apesar do seu desenvolvimento económico, também não eliminou a pobreza e a precariedade no seu território. A realidade da exclusão social, com os seus numerosos aspectos, está bem presente nos países da UE. Aqui, propomos uma avaliação global da política oficial da UE em matéria social e de luta contra a exclusão.

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Como analisar e avaliar os discursos e as acções da Europa social? Em todos os textos fundamentais e nos actos concretos da UE, a vontade de garantir os direitos sociais fundamentais dos cidadãos é constantemente afirmada. Assim, por exemplo, a famosa Estratégia de Lisboa revista, actualmente centrada no emprego e no crescimento, quer ligar uma economia de conhecimento competitiva com um modelo social eficaz. No entanto, para se ir mais além na reflexão, devemos levantar algumas questões suplementares a propósito da Europa social: 1.º) trata-se de uma ambição realizável? E neste caso, como é que a UE faz para atingir aos seus fins? 2.°) a política social e a luta contra as exclusões serão elas simples álibis a fim de melhor acompanhar e ‘vender’ o projecto económico de integração?

A posição da UE quer-se próxima da primeira hipótese: a UE parece empreender muitas acções em matéria social. Para nos convencermos, eis algumas dimensões/exemplos das políticas sociais europeias: a Agenda Social; as políticas comunitárias de emprego (a Estratégia Europeia para o Emprego); o diálogo social e a participação dos trabalhadores; a saúde, a higiene e a segurança no trabalho; a igualdade entre homens e mulheres; a protecção social; as acções face aos grupos-alvo, como os deficientes e as pessoas idosas; a luta contra a pobreza; a política contra as discriminações; o Fundo Social Europeu (FSE) ou o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER); iniciativas comunitárias como a EQUAL ou como o Fundo Europeu de Ajustamento à Mundialização (FEAM).

Mas a Europa em construção ‘faz ela bem’? Há com efeito uma contradição fundamental na lógica do sistema: de um lado, a necessidade de se ser competitivo, o que cria “vulneráveis”; e, do outro, a necessidade de se assumir o encargo daqueles que o sistema produz. Já que não se põe em causa a criação dos “vulneráveis”, o que importa é apenas geri-los. É a tarefa das políticas sociais europeias. Um bom resumo das reflexões e dos programas de acção da UE encontra-se na Agenda Social da Comissão. Como interpretar este texto: convincente, realista ou insuficiente perante as questões da pobreza e da exclusão? Certamente, o ‘falar barato’ domina esse texto da Comissão, com o elogio do modelo social europeu, o seu valor acrescentado, os sucessos da precedente Agenda Social. No entanto, encontram-se também elementos

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críticos: o número de 68 milhões de europeus confrontados com o risco de pobreza é julgado inaceitável e o caminho a percorrer, para ganhar as batalhas do emprego ou da igualdade de oportunidades, é considerado como ainda muito longo.

Uma política social como simples álibi da Europa económica não é uma hipótese a excluir. A comunicação da Comissão, que acompanha a Agenda Social, estabelece algumas referências que vão neste sentido. Assim, por exemplo, está lá escrito “a Europa tem necessidade de trabalhadores activos mais numerosos e trabalhando de maneira mais produtiva”. É pelo menos surpreendente encontrar tais afirmações num texto que deve defender a dimensão social da Europa. Finalmente, o objectivo é um emprego de qualidade ou simplesmente a empregabilidade? Consideramos que as políticas sociais europeias se encontram em contradição quase permanente com os objectivos económicos da União. A política para os jovens (particularmente atingidos pela questão do emprego) é outro exemplo. Afirmar que se trata de modernizar os sistemas de protecção social e aumentar a flexibilidade dos mercados de trabalho não parece ser muito coerente. A política de igualdade entre mulheres e homens sofre de contradições do mesmo estilo. Assim, procura-se conciliar trabalho e vida familiar das mulheres a fim de criar uma economia mais flexível.

É igualmente indispensável colocar-se a questão dos meios para concretizar uma política social europeia. A Agenda Social define quatro principais instrumentos: a legislação comunitária, o diálogo social entre parceiros a nível europeu, o financiamento subsidiário dos projectos concretos nos países-membros e o Método Aberto de Coordenação (MAC). Não podemos examinar todos os meios de acção, apenas o MAC, instrumento mais recente e menos conhecido do público, será comentado.

Julgado indispensável para instaurar as políticas de luta contra a pobreza e a exclusão, este método é definido em cinco pontos: estabelecer objectivos comuns para a União; estabelecer indicadores comuns para permitir a comparação das medidas e as boas práticas; elaborar as estratégias nacionais (ou regionais) e os Planos de Acção Nacionais (PAN); publicar os relatórios que analisam e avaliam os PAN; estabelecer um plano de acção comunitário para promover a cooperação e a troca transnacional.

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Os princípios chave que presidem ao MAC são a subsidiariedade, a convergência, a aprendizagem mútua, a abordagem integrada e a gestão por objectivos. Resumidamente, com o MAC pretende-se a realização dos objectivos comuns através das sinergias das diversas práticas nacionais. É uma europeização por osmose permanente, nos limites impostos pelo princípio de subsidiariedade.

Um exemplo concreto desta diligência está contido no volumoso Relatório da Comissão sobre a inclusão social. Há uma grande riqueza de experiências, mas também certa confusão sobre as linhas gerais a seguir. A aprendizagem mútua é certamente uma vantagem considerável, mas as melhores práticas não são nem automaticamente aplicáveis nem obrigatoriamente exportáveis. Em suma, a interrogação à qual se trata de responder é a seguinte: o MAC constituirá a boa via para lutar contra a pobreza? Temos o sentimento que uma grande energia é gasta para se obterem resultados aleatórios e incertos. No entanto, o problema vem menos do método que do contexto geral. A luta europeia contra a pobreza e para o emprego poderia melhorar se a UE exigisse resultados (como para o Pacto de Estabilidade). Com efeito, o MAC poderia ter todo o seu lugar se invertesse o dogma actual: em vez de visar um mercado próspero, e em seguida um modelo social consistente, tratar-se-ia antes de construir primeiramente uma política social sólida e só depois uma economia florescente. Como este paradigma não é actualmente dominante, o MAC corre o risco de se limitar a uma série de boas intenções.

Parece pois que a Europa Social não está suficientemente preparada para fazer face às exclusões. Certamente, o direito social europeu editou durante muito tempo normas elevadas em matéria social, sem, no entanto, procurar a harmonização jurídica. Quanto à tendência actual, esta está sobretudo virada para um mínimo de regras sociais. Com efeito, a lenta gestação da dimensão social europeia (segurança social, igualdade homens-mulheres, fundos de coesão) parece existir apenas para garantir, sobretudo, o funcionamento da economia. Tomemos o exemplo da livre circulação das pessoas. É claro que este princípio não é aplicável aos mais pobres. Para alguém materializar este direito e instalar-se num outro país europeu, é necessário ter um trabalho ou um rendimento suficiente. O paradoxo merece ser sublinhado: os pobres são ‘excluídos da integração’ europeia.

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Encontra-se uma situação análoga com as normas internacionais perante a globalização da economia. Obviamente, não parecem suficientes no combate contra a exclusão social. Ainda que o pobre não seja uma categoria jurídica, os textos internacionais garantem os seus direitos económicos (alimentação, vestuário, alojamento...). O problema é a não aplicação das normas, bem como a distância entre o direito e a realidade. “O direito à vida não integra actualmente o direito às condições necessárias para viver”!

A última observação geral que aqui iremos fazer é relativa ao papel da redistribuição das riquezas que a UE poderia fazer. Dito noutros termos, a Europa será ela um Estado Providência e a Europa Social o equivalente a este Estado Providência europeu? A questão é tão importante como difícil. A hipótese aqui defendida é a seguinte: com os seus fundos estruturais ou regionais, as suas políticas coordenadas, o seu MAC e os seus programas específicos, a UE desempenha um papel fraco mas real de redistribuição. À parte este trabalho subsidiário, a Europa cria um impulso, promulgando as políticas consideradas como as melhores. A UE é certamente muito fraca na redistribuição, mas dispõe de alavancas potentes para influenciar indirectamente as políticas sociais nacionais.

No entanto, é necessário sublinhar que esta situação não está à altura dos desafios. Globalmente, parece-nos que a Europa Social desempenha um papel mais regulador que distributivo. Neste sentido, o social põe-se ao serviço do mercado e não o inverso. A Europa não pode garantir um rendimento mínimo aos seus cidadãos, ainda menos um subsídio universal. Mesmo direitos sociais adquiridos são actualmente postos em questão: “Certamente, o princípio de solidariedade, nomeadamente no âmbito da coesão económica e social, é aplicável... Esta solidariedade permanece bastante insuficiente para se contrapor à subida da pobreza e da exclusão. Assim fazendo, as instituições europeias, conscientes do sentimento anti-europeu que as suas políticas fazem nascer, instauraram medidas de urgência, que continuam a ser no entanto inapropriadas devido à amplitude dos desafios a enfrentar”.

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Domínios específicos

Recordemos que existem várias espécies de exclusão: económicas, políticas, sociais, escolares, psicológicas, físicas ou mentais (deficiência), de identificação, culturais... Aqui exporemos diversos aspectos, nomeadamente a problemática dos jovens nos bairros difíceis, o papel da educação, os casos das famílias monoparentais e das minorias étnicas.

A situação preocupante da juventude perante a exclusão, o desemprego, ou ainda perante o desafio da formação, interpela as políticas dos Estados-Membros e a UE. Estamos diante de várias questões importantes: Quais são as consequências a longo prazo da exclusão das crianças e como é que se pode protegê-las? A violência dos jovens, sobretudo nos bairros desfavorecidos, é passível de ser bem gerida? Que nos dizem os exemplos concretos no terreno? Que políticas (projectos, medidas ao nível local ou central, sinergias) são necessárias seguir? As medidas preconizadas pela Comissão Europeia são adequadas e realistas? O MAC funciona nesta matéria?

Devemos partir da constatação que as crianças e os jovens constituem uma categoria social dependente por definição. Além disso, hoje em dia, a sua idade de entrada na independência parece ser cada vez mais avançada. Se a maioria dos jovens encontra o seu lugar na sociedade, uma parte importante (sobretudo os sem bagagem educativa sólida) juntam-se ao mundo do desemprego e da precariedade. Num ambiente cada vez mais competitivo, a inserção social torna-se cada vez mais incerta. A UE está absolutamente consciente da gravidade da situação. “A inserção no mercado de trabalho é difícil para os jovens, que apresentam uma taxa de desemprego duas vezes superior às taxas globais europeias (17,9% para os menos de 25 anos contra 7,7% para os mais de 25 anos).” Além disso, os jovens são particularmente expostos à pobreza, que atinge 19% dos jovens dos 16 aos 24 anos, contra 12% da população de idade entre 25 e 64 anos”. A UE propõe “um pacto europeu para a juventude” com vertentes económicas e educacionais. Ainda que as intenções sejam honrosas (designadamente sobre a mobilidade e a cidadania activa), os remédios parecem insuficientes. Assim, pode interrogar-se se o MAC e o

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modelo da flexigurança são as melhores soluções a propor? Socializar os jovens pelo modelo da empregabilidade será realmente a melhor escolha que a Europa pode oferecer aos seus futuros cidadãos?

Relativamente ao problema colocado quanto à atitude violenta dos jovens dos bairros e ao seu comportamento frequentemente anti-social, é importante ouvi-los, respeitá-los e encontrar-lhes um emprego, em vez de se “limpar” os bairros. Perante as rupturas, trata-se de criar pontes, de construir o longo prazo, de se ter alternativas económicas. Sem estar a negligenciar as micro-realizações das ONG’s e as relações horizontais, é necessário ter uma política global coordenada, tomando ao mesmo tempo em consideração a representação dos jovens e dos seus grupos. É necessário, por conseguinte, o diálogo, mas não somente a comunicação. A obrigação de continuar a estar atentos ao contexto político, como a subida da extrema-direita e do populismo, é um outro ponto fundamental. A delinquência (questão de indivíduos ou de sociedade?) não é um assunto fácil. Portanto, convém evitar as respostas fáceis, como a repressão. A relação entre a educação, a formação, a escola e a luta contra a exclusão é uma outra dimensão essencial da nossa temática. A escola precede ou segue-se ela à pobreza? Existem modelos escolares capazes de quebrar o círculo vicioso ‘exclusão social/exclusão escolar’ e quais (a escola republicana francesa, o paradigma inglês ligado ao “mercado”, o modelo alemão da formação profissional...)? Quanto à Europa em construção, deve ter ela uma política específica sobre a questão da escola a fim de realizar a Estratégia de Lisboa e lutar contra as exclusões?

Partimos da hipótese que um mau nível de educação gera seguramente a precariedade e o desemprego, mas, sobretudo, partimos da hipótese de que as desigualdades e as exclusões sociais produzem maus alunos que perpetuam a exclusão social. Neste caso, convém não acusar demasiado a escola dado que o essencial está noutro sítio. Assim, a ideia segundo a qual a sociedade é injusta e a escola não serve para nada deve ser matizada. A exclusão escolar não é uma simples fotocópia da exclusão social. Noutros termos, as relações de produção (mercado) e as ‘relações de reprodução’ (escola) mantêm relações dialécticas complexas. É certo que os capitais culturais e humanos que provêm da educação estão repartidos de forma desigual.

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A escola parece cada vez menos capaz de uma melhor redistribuição destes. Além disso, o sistema escolar aparece cada vez menos apto a garantir a igualdade de oportunidades ou a ser um agente de socialização e de civismo. Finalmente, se a tendência actual perdurar, a escola poder-se-á tornar numa máquina de exclusão. Obviamente, os países-membros e a UE não parecem estar em condições de inverter esta tendência. Nos Estados-Membros, os problemas são semelhantes mas os contextos sócio-políticos exercem influências diferentes. Assim, a França do paradigma de Durkheim da solidariedade e da escola da República, é também o país dos guetos escolares e das Grands Ecoles elitistas. O Reino Unido preconiza o paradigma liberal da escola aberta a todos mas, realmente, o sistema privilegia a selecção precoce e as escolas privadas. O resultado, nos dois casos, é a criação de pessoas desfavorecidas (há os vencedores e os perdedores).

A Europa pode ela fazer outra coisa contra esta situação ou, pelo contrário, acentuar mais as desigualdades e as exclusões escolares? Com efeito, a nível da UE, a situação é muito paradoxal. A priori, a UE não tem competências directas em matéria de educação e ainda menos a possibilidade de ditar um sistema educativo aos países-membros. No entanto, a realidade é bem diferente. Os responsáveis políticos europeus apreenderam a importância capital da educação e da formação. A escola é um investimento produtivo a prazo: desenvolvimento do capital humano, reforço da economia do conhecimento (um dos objectivos da Estratégia de Lisboa). As somas importantes consagradas à investigação europeia (programas-quadros), a troca de estudantes ou a promoção do multilinguismo são outras provas concretas da vontade europeia para agir em matéria educativa. Constatamos contudo um problema em relação a esta temática, ou seja, a correlação entre o nível de educação e a força da exclusão. Incentivando fortemente as melhores práticas e os pólos de excelência, a UE não produz ela exclusão? Há um perigo evidente: as políticas europeias participam na criação de uma nova ordem educativa ligada aos imperativos do mercado. Seguindo a filosofia da OCDE, os financiamentos da UE parecem privilegiar uma escola da rentabilidade em vez de privilegiarem uma política escolar de coesão.

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ii.2. “AS NOvAS FORmAS DA pOBREZA NA EUROpA:

O pONTO DE vISTA DA ECONOmIA”

EXCERTOS DE Um TEXTO DE yvES FLüCkIGER

Introdução

Durante os anos 80, a evolução da pobreza na Europa continental distinguiu-se claramente da observada nos países anglo-saxónicos. Enquanto os períodos de conjuntura desfavorável se traduziram num aumento do desemprego relativamente marcado na maior parte dos países europeus, nos Estados Unidos, pelo contrário, as fases de recessão provocam um aumento da pobreza, compensado por um crescimento muito mais fraco do desemprego. A explicação principal destas diferenças está ligada ao sistema de protecção social que permitiu, na Europa, conter os efeitos da conjuntura sobre a pobreza e a exclusão social e isto graças a uma rede de segurança suficientemente generosa e vasta para evitar nomeadamente que os desempregados aceitassem qualquer emprego para sobreviver. Pelo contrário, o sistema de protecção social desenvolvido nos Estados Unidos obriga as pessoas desprovidas de trabalho a reintegrarem-se rapidamente e a prontificarem-se para aceitar salários inferiores aos que obtinham anteriormente.

Nestas condições, não é surpreendente constatar que uma conjuntura desfavorável tem apenas um efeito muito limitado no desemprego nos Estados Unidos. Em contrapartida, o seu impacto no nível dos salários reais é claramente mais marcado. Por outras palavras, a flexibilidade salarial substitui a flexibilidade observada ao nível dos empregos. Nos anos 80, a Europa conheceu assim um aumento mais ou menos contínuo de desemprego incompressível enquanto os Estados Unidos registavam um crescimento da pobreza no trabalho.

Se os Estados Unidos tiveram êxito ao impedir o crescimento muito regular de desemprego incompressível que afecta a maior parte dos países europeus (excluindo a Irlanda, o Reino Unido ou a Dinamarca), em contrapartida conheceram, antes de todos os outros países, o aparecimento de uma categoria de trabalhadores pobres (os

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working poors). Hoje, as mutações do mercado de trabalho que afectam todos os países europeus, como a Suíça, de resto, contribuíram para alterar a imagem “tradicional” da pobreza, ligada essencialmente à ausência de trabalho remunerado (o desempregado ou deficiente) ou à inactividade forçada (a reforma antecipada). O emprego assalariado, mesmo a tempo inteiro, deixou de ser uma protecção contra os riscos de pobreza. Ainda o é menos num mercado de trabalho onde a flexibilidade ganha terreno. Neste contexto, observa-se que a pobreza na Europa atinge hoje quatro grupos diferentes de pessoas:

os pobres “activos” à procura dum emprego (os desempregados); 1. os pobres com incapacidade temporária ou duradoura de trabalho;2. os pobres inactivos;3. os trabalhadores pobres (os 4. working poors).

Se o risco de pobreza afecta mais fortemente as pessoas desprovidas de trabalho ou as que não fazem parte da população activa, não deixa de ser menos verdade que o exercício de um emprego já não protege mais da precariedade. Assim, enquanto as três primeiras categorias formavam o essencial da população pobre nos anos 70 a 80, o grupo de working poor representa hoje quase 25% desta população, como pode constar-se da leitura da figura seguinte.

A composição da população em situação de pobreza de acordo com as diferentes categorias

Nota e fonte: R. Pena-Casas e M. Latta, Working Poor in the European Union European, Foundation for the

Improvement of Living and Working Conditions, 2004.

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Tudo leva a crer que esta proporção corre o risco ainda de crescer mais no futuro. Tendo em conta estas diferentes observações preliminares, pode afirmar-se, de um ponto de vista económico, que o conceito de pobreza deveria ser apreendido como:

um processo…1. multidimensional…2. conduzindo a uma acumulação de insuficiências que podem ir até à ruptura 3. das relações sociais e à exclusão social;tornando o regresso a um emprego e a uma situação de não pobreza cada 4. vez mais difícil.

Esta visão deve ao mesmo tempo guiar as análises da pobreza mas também a investigação de soluções inéditas susceptíveis de dar uma resposta à nova pobreza que se desenvolve hoje na Europa. Isso significa que é necessário colocar a tónica na análise das transições e na dinâmica que afecta a população pobre, mais do que estudar unicamente a probabilidade de se encontrar na situação de pobreza num dado momento, como muitos investigadores têm demasiado tendência a fazê-lo ainda hoje.

Isto implica igualmente a necessidade de se abordar a questão da pobreza utilizando todas as dimensões que podem conduzir a uma situação de “privação”. Para aí chegar, convém previamente que se possa isolar as diferentes dimensões relevantes da pobreza para captar o seu carácter multidimensional. Finalmente, é necessário estudar a ordem na qual as diferentes formas de “privação” aparecem para se compreender as relações de causalidade e determinar em que condições especiais este processo conduz finalmente à exclusão social.

Mas antes de aí chegar, convém colocar-se a questão das causas que são susceptíveis de explicar o aumento da pobreza no trabalho observada na Europa desde há uma dezena de anos. Várias explicações foram sugeridas. Algumas colocam a tónica no papel das mudanças tecnológicas que implicam uma procura crescente de mão-de-obra qualificada. Outros trabalhos insistem no impacto da globalização e, em especial, da abertura crescente das trocas comerciais e financeiras

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internacionais, cuja consequência provável, nos países desenvolvidos pelo menos, é a diminuição relativa da procura de mão-de-obra não qualificada. Uma terceira abordagem destaca o papel exercido pelas migrações internacionais que têm feito pressão sobre os “baixos salários”. Finalmente, uma quarta corrente da literatura mostra a importância de mudanças de ordem, sobretudo institucional, como a baixa da taxa de sindicalização ou as variações da taxa de salário mínimo, modificações estas também que não desempenharam nenhum papel em favor dos indivíduos que se encontram na parte inferior da escala de salários.

Se as causas são múltiplas, pode admitir-se no entanto que estão todas, de uma maneira ou outra, ligadas às mutações que afectam o mercado de trabalho na Suíça assim como na Europa e, em especial, à flexibilidade que aí se desenvolve. Sem estar a analisar em detalhe este fenómeno que foi objecto de numerosos trabalhos durante estes últimos anos, pode no entanto admitir-se que esta flexibilidade se manifesta sob diferentes formas. Tomou a forma, em primeiro lugar, de uma flexibilidade quantitativa externa que se exprime por meio da modulação dos efectivos realizada segundo a vontade das decisões de contratação e de despedimentos. Em si, esta forma de flexibilidade não é nova. Responde aos ciclos conjunturais que afectam o clima económico geral e que incitam as empresas a reduzir o seu nível de emprego em períodos de recessão e aumentam os efectivos em situação de retoma económica. Se esta flexibilidade não é certamente nova, parece no entanto que, durante a última década, as empresas passaram a poder mais rapidamente efectuar despedimentos em períodos de recessão económica e logo quando os primeiros sinais de recessão económica se fazem sentir. Pelo contrário, em fase de retoma, o efeito do crescimento económico no aumento do emprego foi claramente mais fraco, mais fraco sobretudo que nos períodos precedentes. Estas mudanças de comportamento têm evidentemente consequências não negligenciáveis na evolução do desemprego e, mais ainda, na capacidade do crescimento económico em criar empregos e de reabsorver o desemprego, provocando o desenvolvimento de um desemprego de longa duração, que tem consequências na evolução da pobreza em geral mas também da pobreza no trabalho em especial. Com efeito, os desempregados de longa duração têm frequentemente de aceitar baixas substanciais dos seus salários

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para reencontrar um emprego, sobretudo no fim de período durante o qual teve direito ao subsídio de desemprego. Esta flexibilidade é manifesta também a nível temporal através do ordenamento do tempo de trabalho e, em especial, dos empregos a tempo parcial. Esta forma de emprego também não é nova, mas tende a difundir-se atingindo também a mão-de-obra masculina, embora esta continue a estar ainda sub-representada neste grupo da população activa. Deste ponto de vista, convém claramente distinguir o emprego a tempo parcial escolhido daquele que é imposto. Este último afecta em especial certas pessoas que são obrigadas a adoptar este tipo de ocupação para permanecer no mercado de trabalho, às vezes para além da idade legal da reforma, a fim de compensar prestações de reforma insuficientes ou, mais ainda, para retornar após um período de desemprego mais ou menos longo. Nestes casos, o trabalho a tempo parcial é um indicador de precariedade. Ao mesmo tempo, esta forma de emprego representa também, em certas circunstâncias, nomeadamente para os estudantes, para as pessoas que se encontram próximas da reforma ou para as que têm despesas de família, uma escolha deliberada que permite conciliar vidas familiares e profissionais, estudos e limitações de rendimento ou mesmo a inserção futura no mercado de trabalho ou ainda a passagem progressiva para a reforma. Neste caso, o trabalho a tempo parcial atinge sobretudo uma população ao abrigo da precariedade que escolhe esta forma de emprego como modo de vida.

A terceira forma de flexibilidade manifesta-se à escala funcional por meio da polivalência acrescida e da diversificação das tarefas exigidas pelas empresas. As estatísticas sobre as formações seguidas e as profissões exercidas demonstram-no claramente: uma proporção cada vez mais fraca da população activa exerce ao longo de toda a sua carreira a profissão para a qual se formou. O mercado de trabalho exige cada vez mais flexibilidade por parte dos trabalhadores que devem habituar-se a assumir diferentes funções, mesmo numa mesma empresa, e preparar-se para terem diferentes profissões. Esta nova exigência traduz-se nomeadamente nas políticas de remuneração salarial que tendem a valorizar cada vez mais a experiência profissional acumulada no âmbito de diversos empregos ou de diferentes empresas e a reduzir o peso da antiguidade na progressão salarial. Estas mudanças fizeram-se sentir principalmente nos sectores mais expostos mas impõem-se progressivamente

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nas outras empresas privadas, orientadas para o mercado interno e até mesmo no sector público. Têm também um efeito não negligenciável na probabilidade de os desempregados chegarem a reencontrar um emprego após um período mais ou menos longo de inactividade, sobretudo se estes não puderem beneficiar durante a sua carreira profissional da formação contínua, que é hoje ainda mais indispensável tanto quanto a flexibilidade funcional tende a generalizar-se no mercado de trabalho. Esta evolução é igualmente portadora de desigualdades porque as disparidades observadas a nível da formação básica tendem a ser exacerbadas ainda pelas desigualdades de acesso à formação contínua, sabendo que são precisamente os que mais necessitariam que são dela afastados frequentemente.

A quarta forma de flexibilidade manifesta-se a nível dos estatutos das pessoas ocupadas, através nomeadamente do desenvolvimento do outsourcing e da extensão do estatuto de trabalhador independente. O assalariado assenta numa divisão da cobertura de riscos ligados ao exercício duma actividade profissional e numa participação, às vezes, dos empregadores em certos riscos privados que não são necessariamente ligados ao próprio trabalho. Além disso, a empresa assume, certamente em graus diversos de acordo com os países, os riscos ligados à conjuntura económica ou às flutuações sazonais da sua actividade, embora o Estado apoie frequentemente através dos sistemas de desemprego parcial que permitem ao empregador repercutir uma parte dos seus custos sobre a colectividade. Em relação a esta situação, o estatuto de trabalhador independente é caracterizado pelo facto de a pessoa que se encontra envolvida dever suportar ela própria todos os riscos. É igualmente muito frequente que seja objecto de um tratamento diferenciado no âmbito dos sistemas de Segurança Social cuja obrigação de seguro não abrange esta parte da população, a qual deve tomar por sua conta as medidas necessárias para se proteger contra os riscos essenciais da existência. O estatuto de trabalhador independente inclui por conseguinte, e frequentemente, situações de precariedade, sobretudo de pessoas que foram obrigadas a optar por este estatuto para conseguir escapar ao desemprego, frequentemente de maneira muito temporária. A esse respeito, é impressionante constatar que, de acordo com os dados do recenseamento da população suíça, a percentagem de activos

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ocupados a tempo inteiro como assalariados passou de 82,3% da população activa total, em 1970, a 58%, em 2000. Isto mostra claramente que o trabalho pago a tempo inteiro, além de já não proteger como antes dos riscos de pobreza dos trabalhadores, o seu exercício torna-se cada vez mais raro. Esta evolução apenas faz aumentar os riscos de pobreza, associados mais frequentemente ao trabalho a tempo parcial, e de pobreza laboriosa mais frequentemente ligada ao estatuto de trabalhador independente, mesmo quando esta actividade é exercida a tempo inteiro. Finalmente, a flexibilidade manifesta-se também a nível das remunerações por meio das políticas de salário ligadas ao mérito e à remuneração diferida no tempo (as stock-options) que contribuem para aumentar as desigualdades e indirectamente para aumentar os riscos de pobreza dos trabalhadores. Para tratar esta matéria, começaremos em primeiro lugar, por clarificar o conceito de working poor que constitui o pano de fundo da nova pobreza na Europa.

Problemas de identificação e de medida da pobreza

Contrariamente ao que se poderia pensar, a noção de pobreza é eminentemente subjectiva e o conceito de working poor é-o sem dúvida ainda mais. Isso significa que as definições ligadas a estes fenómenos diferem de acordo com os autores e a sua sensibilidade. Pode no entanto admitir-se que genericamente a literatura é unânime a circunscrever a população working poor a indivíduos que trabalham mas cujo rendimento profissional não é suficiente para permitir à sua família escapar à pobreza. Nesta óptica, a pobreza é definida através do limite de rendimento por adulto equivalente abaixo do qual as necessidades básicas não podem ser satisfeitas. Como se pode constatar, a noção de working poor recorre a métodos ligados às medidas da pobreza. No seguimento dos trabalhos de Sen, numerosos estudos preocuparam-se em definir índices de pobreza. Estas investigações em geral distinguem cinco etapas na definição de um índice de pobreza. Inicialmente, é necessário determinar o indicador de bem-estar a empregar para delimitar a população desfavorecida. Ainda que, como recordámos na introdução, a pobreza seja um fenómeno multidimensional por essência, os investigadores tiveram, por questões de simplificação, a tendência

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para considerar unicamente um só indicador para sintetizar a situação de vida das famílias. Deste ponto de vista, o rendimento impõe-se logicamente como o indicador mais natural para medir o nível de bem-estar atingido por uma família. De facto, melhor que qualquer outra dimensão, o rendimento permite captar a noção de direito a um rendimento mínimo que pode ser utilizado ou não de acordo com as preferências individuais; por exemplo, certas pessoas podem optar por poupar em vez de comprar bens ou serviços que podem julgar superficiais. No entanto, é-se obrigado a reconhecer que o rendimento representa um fluxo relativamente volátil que não permite necessariamente captar o poder de consumo de certas famílias susceptíveis de recorrerem às suas poupanças para financiar a satisfação das suas necessidades diárias pelo facto de o seu rendimento corrente não as permitir assegurar. Esta é a razão pela qual pode ser útil utilizar a despesa como indicador de bem-estar. Com efeito, o fluxo de consumo é determinado pelo rendimento permanente, baseado numa visão a longo prazo que torna este indicador menos volátil às flutuações de curto prazo susceptíveis de afectar o rendimento corrente. Isto é particularmente importante para apreender o nível de vida dos trabalhadores independentes que sofrem, frequentemente, meses após meses, de variações importantes dos seus rendimentos, sendo assim possível que desçam abaixo do limiar de pobreza, durante um ou outro mês específico, mesmo que os rendimentos obtidos nos meses seguintes lhes permitam numa perspectiva anual obter um nível de rendimento superior ao limiar de pobreza. Do mesmo modo, a utilização do rendimento como indicador de nível de vida contribui geralmente para sobrestimar o nível de bem-estar atingido pelas famílias durante o seu período de actividade profissional e subestimá-lo após a reforma.

A segunda escolha que convém efectuar refere-se à unidade de análise. A opção sem dúvida mais simples consiste em escolher o indivíduo. Esta escolha permite evitar a terceira etapa da definição da pobreza que nos conduzirá, no parágrafo seguinte, a abordar o tema delicado das escalas de equivalência que constituem estas sim uma etapa obrigatória dos estudos centrados na unidade familiar. Se a escolha do indivíduo permite certamente facilitar as análises, é em contrapartida discutível do ponto de vista da pobreza porque o subsídio óptimo dos recursos familiares pode

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com efeito incitar pessoas a permanecer em parte fora do mercado de trabalho sem que caiam, por isso, numa situação de pobreza e isto graças aos rendimentos obtidos por outros membros da família.

Se a unidade escolhida para medir a pobreza for a família, é necessário então utilizar as escalas de equivalência para poder comparar famílias que não são somente de dimensões diferentes mas que, além disso, são compostas de forma diferente. Com efeito, um número idêntico de pessoas pode ser atingido por duas famílias, formadas num caso unicamente por adultos idosos com 14 anos ou mais (de acordo com as normas da OCDE) enquanto no outro apenas por um só adulto vivendo com crianças (família monoparental). Dividindo os recursos totais da família (medidos através do rendimento ou pela despesa) pela escala de equivalência própria à sua dimensão, é possível seguidamente confrontar o montante do seu rendimento equivalente (ou do seu consumo equivalente) com o de outras famílias de dimensão e de composição diferentes. Várias abordagens podem ser utilizadas para medir estas escalas de equivalência. A primeira consiste em dividir muito simplesmente os recursos totais da família pelo número de indivíduos que a constituem. Contudo, este método não tem em conta as economias de escalas realizadas numa família composta de vários membros. Contribuiria para subestimar o bem-estar das famílias numerosas em relação ao seu nível de vida real. É necessário portanto recorrer a escalas de equivalência mais complexas. Geralmente, e a fim de evitar as controvérsias que as escalas de equivalência sempre levantam, os investigadores utilizam a escala da OCDE. Apresenta a vantagem de ser reconhecida de maneira mais ou menos universal. Pode escrever-se com a ajuda da fórmula seguinte:

EQOCDE=1+(1 – nbr_adulto)*0,5+nbr_criança*0,3

onde “nbr_adulto” simboliza o número de adultos e “nbr_criança” o número de crianças que vivem na família. Neste caso, um adulto é definido como uma pessoa idosa com mais de 14 anos. Ainda que a escala da OCDE beneficie de um reconhecimento mais ou menos universal, isso não significa contudo que seja indiscutível. Muito longe disso.

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Uma solução alternativa consiste em estimar, de forma econométrica, escalas de equivalência tais que a parte do rendimento familiar consagrada, por exemplo, à satisfação de necessidade básicas seja idêntica para famílias de dimensão e de composição diferentes. Dividindo o rendimento necessário, para que uma família de 4 pessoas (2 adultos, 2 crianças), por exemplo, com 20% deste satisfaça as necessidades básicas pelo rendimento do qual tem necessidade necessário para que uma família de um só adulto com os mesmos 20% satisfaça igualmente as suas necessidades básicas obtém-se a escala de equivalência de uma família de 2 adultos e de 2 crianças. Para proceder a tal análise, é necessário ter informações muito precisas sobre o consumo e o rendimento de um número suficientemente elevado de famílias a fim de estimar, da maneira mais fiável possível, estes diferentes montantes de rendimento que permitem avaliar se as famílias atingiram um nível de bem-estar equivalente, garantido pelo facto de todos consagrarem uma parte idêntica (fixado arbitrariamente em 20%, por exemplo) dos seus recursos às necessidades básicas. Na Suíça, diversos estudos foram realizados para estimar, a partir dos dados do inquérito sobre os rendimentos e o consumo das famílias (ERC), as escalas de equivalência econométricas. Mas estas estão frequentemente sujeitas a uma margem de erro importante que as torna dificilmente utilizáveis. Além disso, outros investigadores mostraram que uma maneira alternativa para medir estas escalas de equivalência consiste em utilizar abordagens subjectivas baseadas nos recursos necessários a diferentes famílias para atingir um nível de satisfação idêntico. Cada abordagem contém manifestamente juízos de valor. Nenhum método é claramente preferível aos outros, o que abre obviamente o campo a muitas controvérsias sobre os resultados dos estudos sobre a pobreza. Contribuem para desviar o debate do verdadeiro problema que é a questão dos meios a utilizar para reduzir a pobreza e não o debate, algo inútil, quanto à maneira de a medir.

A quarta etapa deste processo de definição consiste então em fixar um limiar a partir do qual as pessoas (as famílias) cujo rendimento (rendimento equivalente) é inferior a este limite são consideradas como pobres. A determinação de tal limiar pode ser baseada numa abordagem dita “absoluta”; neste caso, fixa-se geralmente um cabaz de bens de consumo mínimo, frequentemente ligado a considerações

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alimentares, sendo os indivíduos que não têm a possibilidade de obter este cabaz considerados como pobres. Certos economistas propuseram, para definir este limiar, a determinação de um número de calorias mínimas que é necessário ingerir para sobreviver (definição mais ou menos universal) e de medir seguidamente o montante mínimo necessário, num país dado, para o adquirir. Este exemplo mostra efectivamente a dificuldade que envolve esta abordagem absoluta. Para além disto, no caso de se adoptar esta opção, não se estabelece uma relação automática entre o limiar de pobreza e o nível de bem-estar do conjunto da população. Existe igualmente uma abordagem dita “relativa” onde o limiar de pobreza é definido como sendo igual a uma certa percentagem do rendimento ou do consumo médio ou mediano dos indivíduos. O termo “relativo” indica evidentemente que, de acordo com esta abordagem, se pode classificar alguém de pobre ainda que tenha o suficiente para comer porque se considera pobre face aos outros. Neste caso, uma relação automática é estabelecida entre o limiar de pobreza e o resto da população. Uma outra abordagem susceptível de ser adoptada é a dita dos limiares oficiais. Consiste simplesmente a partir de leis, de prescrições ou de outros decretos, em definir o que a população ou os poderes públicos consideram como o nível de recursos mínimo abaixo do qual uma pessoa ou uma família tem direito a prestações da ajuda social. Na Suíça, por exemplo, pode utilizar-se os limiares definidos pela Conferência Suíça das Instituições de Acção Social (CSIAS). Constituem recomendações enviadas aos cantões e que visam determinar o nível de rendimento abaixo do qual uma família deveria poder obter prestações de ajuda social. Neste caso, estas normas permitem igualmente definir escalas de equivalência implicitamente adoptadas pelo CSIAS como limiares absolutos de pobreza. Ascendem assim a 960 francos para 1 pessoa sozinha (unicamente despesas de manutenção), 1469 francos para 2 pessoas, 1786 francos para 3 pessoas e 2054 francos para 4 pessoas, etc.

A quinta etapa desta análise é a que se chama geralmente de fase da agregação. Trata-se aqui, uma vez que se foi capaz de fazer a distinção entre os indivíduos considerados “pobres” e os que não o são, derivar um índice sintético que dá uma indicação sobre a importância do fenómeno de pobreza. A solução mais simples é evidentemente a de contar o número de indivíduos “pobres” e comparar este

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número com a população total de forma a considerar a proporção de pobres na população. Tal indicador chama-se the headcount ratio. Este primeiro índice mede o risco de alguém se encontrar numa situação de privação. Pode-se calculá-lo para diferentes subgrupos da população a fim de determinar as categorias para as quais seria necessário orientar medidas de política económica.

Mas existem igualmente índices mais complexos, complementares do primeiro, que permitem nomeadamente avaliar o desvio médio que separa o rendimento observado dos pobres e o limiar de pobreza definido previamente. Se o primeiro índice permite avaliar aquilo a que se chama a intensidade da pobreza, o segundo, proposto por Sen e conhecido sob o nome de income GAP ratio”, permite em contrapartida avaliar a profundidade da pobreza. É com efeito certamente importante saber que 10% da população de um país é pobre, mas é ainda mais importante saber se estas pessoas desfavorecidas se situam a 1% apenas do limiar de pobreza ou se encontram em média a 50% deste limite. No segundo caso, o esforço que as autoridades deveriam realizar para retirar estas pessoas da precariedade será com efeito claramente mais importante que no primeiro caso. Outras numerosas sugestões foram feitas neste sentido e o índice que é provavelmente hoje mais popular é o índice dito FGT, sugerido originalmente por Foster, Greer e Thorbecke.

Quando todas as etapas necessárias a definir um limiar de pobreza, subjacente ao conceito de working poor, forem cruzadas, convém ainda atacar-se último a um obstáculo igualmente temível, que se refere ao estatuto de actividade das pessoas que, apesar do trabalho que realizam no mercado, não conseguem escapar à pobreza. É necessário então responder às questões seguintes:

. é necessário limitar a categoria de working poor somente às famílias (pessoas) que fornecem (conjunto) um número mínimo de horas de trabalho equivalente a um tempo pleno (36/40 horas por semana)?

. esta actividade deve ser realizada durante a maior parte do período de referência (ano) ou aquando do inquérito apenas?

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Estas questões estão longe de serem simples de resolver e uma vez mais sublinhe-se que não existe uma resposta que se imponha por si própria. É a razão pela qual qualquer estatística relativa a working poor deve ser sempre utilizada tendo como prudência prévia o exame das escolhas adoptadas pelos investigadores em matéria de indicador de bem-estar escolhido, de escalas de equivalência e de limiar de pobreza adoptado, sem omitir o problema do tempo de actividade mínimo manifestado pelos indivíduos ou as famílias considerados working poors.

Análise de resultados

A análise da base de dados mostra que:

1. A taxa de pobreza dos trabalhadores nos países da UE (7% para o conjunto da UE 15) varia em função do risco total de pobreza (15% para o conjunto do UE 15). Em comparação com os dados helvéticos, a taxa de pobreza e a percentagem de trabalhadores pobres, calculados de acordo com definições perfeitamente idênticas às utilizada no caso da Suíça, são notavelmente semelhantes mesmo que o risco de precariedade pareça, hoje ainda, inferior na Suíça do que era na Europa dos 15.

2. A relação entre a pobreza e a pobreza dos trabalhadores varia consideravelmente de um país para o outro. Isso demonstra que o emprego constitui, em certos países, uma barreira mais eficaz contra a pobreza do que noutros. Esta capacidade protectora depende nomeadamente da existência ou da ausência de políticas de salário mínimo.

3. Na Dinamarca, Bélgica, Irlanda, Reino Unido e Alemanha, o trabalho reduz em dois terços ou mais o risco de pobreza. Em todos os países, o trabalho constitui por conseguinte uma protecção eficaz contra a pobreza e o estímulo para ter um emprego para uma pessoa que o não tem é, de longe, superior ao que é em certos países europeus onde o trabalho é mal remunerado.

4. Nos Países Baixos e no Luxemburgo, o risco é quase idêntico, o que sugere

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que, nestes dois países pelo menos, o trabalho não constitui uma protecção contra a pobreza porque sem dúvida as remunerações são demasiado fracas para garantir o mínimo vital.

5. O risco de pobreza de trabalhadores depende estritamente do tempo de trabalho, do tipo de contrato e da duração do emprego tal como mostra o seguinte gráfico.

Pobreza dos trabalhadores em função do estatuto de ocupação, UE 15, 2001

Nota e fonte: R. Pena-Casas e M. Latta, Working Poor in the European Union European,

Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 2004.

Neste, destaca-se em especial o caso das pessoas que trabalham a tempo inteiro apenas uma parte do ano (primeira barra) que têm o dobro do risco em cair numa situação de pobreza do que as pessoas que conseguem conservar um emprego durante todo o ano (segunda barra). Do mesmo modo, as pessoas empregadas sob contratos de duração determinada (última barra) têm um risco em viver em situação de pobreza duas vezes superior, porque sem dúvida as condições salariais são claramente mais desfavoráveis que as obtidas pelos empregados que beneficiam de contratos permanentes (penúltima barra).

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Análise das transições para a pobreza de trabalhadores

Depois de ter analisado os riscos de pobreza, devemos considerar resumidamente quais os fluxos que afectam a população desfavorecida. Esta questão é particularmente importante para a política económica de luta contra a pobreza. Com efeito, trata-se de determinar se a pobreza, geralmente, e/ou se a pobreza de trabalhadores em especial, representa estados “temporários” ou se formam pelo contrário situações que se perpetuam no tempo. No segundo caso, isso significa que existe uma “armadilha da pobreza” que é muito mais difícil de combater do que quando a pobreza é unicamente temporária, ligado a acontecimentos infelizes que qualquer um pode sofrer sem, no entanto, ter de permanecer, de modo durável, numa situação de precariedade.

Neste ponto, interessamo-nos por conseguinte pelas transições para o estatuto de working poor. Antes de ir mais longe nesta análise, é bom precisar os limites e inconvenientes deste tipo de análise. Vimos anteriormente, as questões ligadas à definição duma população de trabalhadores pauperizada através de um limiar de rendimento, abaixo do qual um indivíduo é considerado como pertencendo à categoria dos desfavorecidos. Esta abordagem binária não distingue o indivíduo, que se situa num nível relativamente próximo deste limiar, daquele que se encontra relativamente afastado. Além disso, dum e do outro lado deste limite de rendimento, existem indivíduos que se encontram próximos, gozando de um nível de bem-estar muito similar, mas que são colocados em categorias diferentes. Quando nos concentramos nas evoluções de um ano para o outro, os indivíduos que têm uma maior probabilidade de alterar o seu estatuto (por exemplo, de se tornarem em trabalhadores pauperizados) são os que tinham inicialmente um nível de rendimento próximo do limiar escolhido. Quando se sabe que as variáveis de rendimento são frequentemente sujeitas a erros de medição, há forte probabilidade de que um número de transições observadas não reflicta necessariamente mudanças na situação económica dos indivíduos ou das famílias.

Sem entrarmos em detalhes sobre a análise das transições, sublinhe-se que uma análise com dados de painel europeu das famílias de 1994 e 1997 mostra

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que um terço dos activos pobres em 1994 tem permanecido sucessivamente num estado de pobreza dos trabalhadores ao longo de todo este período. Além disso, 10% dos activos pobres em 1994 continuavam em estado de pobreza em 1997, após terem conhecido, contudo, uma transição para fora da situação de pobreza. Destes, 7% conheceram dois ou três períodos fora da pobreza antes de voltar a cair no final do período de observação. Finalmente, 12% dos pobres a trabalharem em 1994 ficaram inactivos durante o período em análise. Estes números demonstram efectivamente que, da mesma maneira que na Suíça, existe na Europa uma população pobre que apesar de uma actividade profissional exercida a tempo inteiro não chega nunca “a sair”, formando o que se tornou hábito designar por armadilha da pobreza, mas que afecta neste caso uma população ocupada o equivalente a tempo inteiro na maior parte do ano. Os números do painel europeu de famílias destacam que somente 38% dos trabalhadores pobres conseguiu sair do seu estado de pobreza durante o período examinado sem terem recaído, pelo menos antes do fim do período de observação.

Conclusões

O fenómeno da pobreza dos trabalhadores empregados aumentou de importância na Europa durante os últimos 15 anos e a Suíça não permaneceu à margem desta evolução. Não é assim um acaso se esta questão ocupa um lugar central nos debates políticos. Com efeito, pode parecer chocante que, mesmo na Suíça, a actividade lucrativa não protege da pobreza. As análises apresentadas no âmbito deste artigo confirmam a importância deste problema. Na Suíça, a taxa de working poors é superior a 6% da população activa ocupada a tempo inteiro e esta percentagem progride desde o início dos anos 90. Estas taxa é apenas um pouco mais baixa que no resto da Europa dos 15 onde excede os 7%. Mais inquietante ainda é o facto de as análises efectuadas sobre as transições que caracterizam o estatuto de pobreza dos trabalhadores demonstrarem que, na Suíça como no resto da Europa, uma fracção não negligenciável da população pobre permanece de modo durável neste estado, apesar de exercerem uma actividade mas que não é suficiente para colocar as famílias destas pessoas, activas, ao abrigo da pobreza.

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Para se contrapor a esta evolução preocupante, é indispensável utilizar os resultados dos estudos realizados sobre a pobreza para elaborar políticas económicas e sociais susceptíveis de darem uma resposta eficaz a este problema dos working poors. Sem estar a entrar nos detalhes destas medidas, pode no entanto pensar-se que é necessário, em primeiro lugar, colocar a tónica nas medidas preventivas, orientadas para as populações em “risco” que são relativamente bem conhecidas hoje, graças aos estudos que foram efectuados na Suíça e na Europa sobre os perfis da população precarizada e sobre os factores que acentuam os riscos. Isso significa, em especial, que é necessário favorecer as medidas de integração da população estrangeira no mercado de trabalho, instaurando ao mesmo tempo políticas que visem favorecer a formação contínua das pessoas activas, sobretudo as que têm o nível de educação mais baixo.

É necessário seguidamente dar prioridade ao regresso dos desempregados à situação de empregado e o mais rapidamente possível, sabendo que o desemprego contribui para degradar a situação de muitas das famílias que viviam anteriormente à margem da pobreza, mas numa situação de precariedade. Isto pode, às vezes, implicar uma diminuição do salário em relação ao que era obtido antes do período de desemprego, mas este sacrifício é frequentemente menos penalizante que um longo período de desemprego, que torna o regresso ao emprego cada vez mais difícil e cada vez mais precário. De modo a que tal política seja eficaz, é indispensável que o trabalho continue a ser suficientemente atractivo, de modo que os desempregados sejam motivados a aceitar os empregos susceptíveis de lhes serem propostos e de modo a que o trabalho a tempo inteiro proteja melhor contra os riscos de pobreza. Para o efeito, convém nomeadamente aumentar o nível dos salários mínimos para que sejam significativamente superiores aos limiares em vigor no domínio da ajuda social. Na Suíça, esta política deve ser aplicada de maneira sectorial e regional, por meio das diferentes Convenções Colectivas de Trabalho (CCT) e pelas negociações que têm lugar periodicamente entre os sindicatos e as forças patronais. Mas estas devem lembrar-se da necessidade de se lutar contra os baixos salários. No entanto, é necessário continuar a estarmos conscientes que tal política não é suficiente em si para resolver o problema da pobreza de quem trabalha. Com efeito, 40% apenas

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dos working poors têm um “baixo salário”. A instauração de um salário horário mínimo não teria por conseguinte necessariamente um impacto muito importante no nível de working poor. Mas é sem dúvida uma peça do puzzle a construir.

Em matéria de desemprego, é necessário combater igualmente a estigmatização da qual são vítimas os desempregados de longa duração, nomeadamente por meio de subsídio de regresso ao emprego. Para as pessoas com mais de 50 anos, convém também reexaminar os sistemas de remuneração ligados à antiguidade que contribuem para formar os salários das pessoas desta classe etária acima da sua produtividade. Quando se acrescenta a este problema, as despesas ligadas à segurança profissional, compreende-se melhor porque é que as empresas preferem frequentemente contratar jovens cujo salário é, no início da carreira, frequentemente inferior à produtividade.

Simultaneamente, convém reformar o sistema fiscal e social para evitar que um aumento de rendimento ligado à uma retoma de emprego seja reduzido a nada pelo aumento de impostos e de contribuições e pela supressão de prestações sociais que são devidas a pessoas à procura de um trabalho. Isso significa, por conseguinte, que é necessário construir um sistema de apoio social que evite que as pessoas que encontram um emprego não percam repentinamente as ajudas financeiras que recebiam; neste caso, pode prever-se muito simplesmente uma redução progressiva destas prestações à medida que o rendimento do trabalho aumente. Além disso, é preciso uniformizar o cálculo do rendimento que determina o direito às prestações e hierarquizar as ajudas concedidas de modo a evitar-se que certas famílias cheguem, acumulando múltiplas ajudas atribuídas por diversos serviços, a obter um rendimento líquido superior ao de famílias que, tendo um salário mas que corresponde a um rendimento bruto situado exactamente acima do limite das ajudas, não recebem nenhuma prestação social.

Os exemplos são hoje inúmeros e demonstram as incoerências dos sistemas de tributação ou de apoio social que destroem todas as vantagens de um regresso à situação de empregado em relação à situação de pessoas dependentes de prestações

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públicas que não têm nenhum interesse em as perder. Isto é particularmente verdadeiro no que diz respeito aos empregos de baixos salários.

Resulta também dos estudos efectuados sobre a pobreza dos trabalhadores empregados que o rendimento profissional não é o único factor que determina a probabilidade de se pertencer à população pobre. Constata-se nomeadamente que a estrutura familiar é um factor particularmente preponderante. Com efeito, a presença de crianças reduz o tempo de trabalho dos membros da família, principalmente das mulheres, e onera as possibilidades de carreira devido às interrupções da vida profissional que elas induzem. Além disso, quanto maior for a família, menor é o rendimento per capita, com tudo o resto igual. Isto significa que é necessário, em paralelo com o mercado de trabalho, instaurar verdadeiramente uma política familiar que permita em particular às mulheres permanecer no mercado de trabalho, mesmo depois do nascimento dos seus filhos. Uma política em prol das famílias que esteja igualmente em condições de lutar contra a pobreza de quem trabalha passa também pela reformulação do sistema fiscal. Passa nomeadamente por uma reforma da fiscalidade e dos sistemas de ajuda social, o que é indispensável para fazer com que o trabalho continue a oferecer uma imunidade contra a pobreza.

ii.3. “A EUROpA DA pRECARIEDADE, A EUROpA DO pRECARIADO”

Um TEXTO DE CAThERINE Lévy

Introdução: algumas precisões para se tentar definir uma noção

É nos anos 80-90 que se vê aparecer, nos artigos de revistas especializadas (e seguidamente na imprensa), o termo de “precário” atribuído como adjectivo a um grupo social. Seguidamente, o “assalariado pobre” torna-se o representante-tipo de todas as precariedades, as do trabalho, do emprego e do rendimento. Um pouco antes, o termo de “precariado” é forjado para designar uma nova relação de trabalho que tende a ampliar-se e na qual, para retomar a expressão de R. Castel, se constata “a fragmentação da condição salarial”.

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A noção de precariedade não é habitual em todos os países da UE e o vocabulário utilizado em França ou na Alemanha, por exemplo, não é necessariamente traduzível noutras línguas. A precariedade faz referência à problemática do emprego: assim, em França, na Alemanha, na Itália e na Espanha, esta noção reenvia ao contrato de trabalho. No Reino Unido, o importante num posto de trabalho é aquilo a que se chama “qualidade do emprego” e a precariedade refere-se então ao trabalho em más condições (bad jobs). Mas em inglês o termo utilizado para definir uma situação de emprego difícil é to be a threat to social stability – to undermine social stability ou ainda lack of job security, o que significa “ameaça à estabilidade, a falta de segurança do trabalho”.

Há assim limites na utilização da noção de precariedade para qualificar as políticas de emprego na Europa. Existe uma grande diversidade de situações. Para apreender o que pôde mudar na condição do assalariado na Europa é necessário proceder a uma abordagem por país, ainda que as diversas políticas nacionais tenham convergências importantes. É sobretudo a multiplicação dos “pequenos biscates”, ligados à política de activação e ao regresso ao emprego, que provoca este sentimento de insegurança para uma parte da população.

Pode também analisar-se a precariedade do emprego pelo negativa e defini-la como uma ausência de continuidade no trabalho ou de controlo sobre este, indo a par com uma fraca protecção social e de rendimentos. Estes tipos de empregos constituem a categoria dos empregos atípicos, entre os quais se encontra o tempo parcial, os Contratos de Duração Determinada (CDD), as missões de trabalho temporário, etc.

O debate quanto ao significado da precariedade do emprego desencadeou-se, porque certos sociólogos e economistas pensam que ao passar a ser esta a norma, o termo ‘assalariado’ deveria dar lugar ao termo ‘precariado’. Outros pensam que a extensão da precariedade obriga à criação de um novo indicador que tenha em conta todos os níveis de precariedade com ou sem emprego.

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Insegurança no mercado de trabalho

A) O emprego precário

O emprego temporário (CDD/trabalho temporário)

Se o termo ‘precariedade’ não tem significado idêntico nos diversos países europeus, a definição de emprego temporário, em contrapartida, é-nos fornecida pela literatura da Comissão. Trata-se dum emprego ocupado em virtude “dum contrato de trabalho com duração determinada onde o motivo de expiração é geralmente mencionado; são incluídos nesta categoria, os trabalhadores sazonais, as pessoas empregadas por uma agência de trabalho temporário, as pessoas titulares de um contrato de formação específica, as pessoas que trabalham por encomenda”.

O trabalho temporário progrediu num grande número de países europeus e desde há uma vintena de anos que constitui assim uma fonte suplementar de insegurança e de precariedade para os trabalhadores. Como menciona um relatório da OCDE, “pode temer-se que um número crescente de trabalhadores tenha sido apanhado pela armadilha de empregos que não oferecem nenhuma segurança, com remunerações medíocres e com poucas vantagens adicionais...”, por outras palavras, as férias pagas, o seguro na doença, o subsídio de desemprego, o direito à reforma...

O aumento dos empregos temporários foi forte em Espanha, França, Itália, Países Baixos e em Portugal, mas não nos outros países. O salário médio dos trabalhadores temporários é inferior ao dos assalariados permanentes: a diferença varia entre 17% na Alemanha, 27% nos Países Baixos ou ainda 47% em Espanha. Nos anos 90, o emprego temporário representava mais de 2/3 do crescimento do emprego, o que se explica facilmente pelo facto de que as leis aplicadas ao trabalho temporário foram muito mais liberalizadas que as que regulavam o trabalho permanente.

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Missões e agências de trabalho temporário

Desde há 15 anos, o número de empregos (ou missões) de trabalho temporário foi multiplicado por cinco na Dinamarca, em Espanha, Itália e Suécia. A França é o país que, com os Países Baixos, conta mais temporários em toda a Europa, 4% do emprego total. Mas, actualmente, esta percentagem está a aumentar em inúmeros países europeus que, como a Alemanha ou a Bélgica, atribuem subvenções a agências de trabalho temporário para colocar os desempregados de longa duração. Os programas de regresso ao emprego permitem às agências de trabalho temporário retirar da massa de desempregados para alimentar a vaga de ofertas de empregos precários. Na Alemanha, a comissão Hartz pôs em prática procedimentos tais que os desempregados são obrigados a aceitar os empregos oferecidos sob pena de perderem direito à prestação do subsídio de desemprego, ainda que o salário proposto seja largamente inferior aos salários em vigor na profissão.

No Reino Unido, o papel das agências de trabalho temporário é diferente, pois não propõem o mesmo tipo de emprego aos desempregados e aos trabalhadores temporários. As agências sob contrato com o Estado são remuneradas de acordo com o número de colocações que efectuam, são incitadas a forçar os desempregados a aceitar qualquer trabalho. Numa zona particularmente atingida pelo desemprego, em Lowestoft, perto de Norwich, “recrutadores” percorrem as ruas à procura de desempregados para trabalhos de muito curta duração, para postos de trabalho de 12 horas mínimas por dia, o que se assemelha ao que faziam os workhouses no século passado. O Trade Union Congress (TUC) efectuou, em 2001, um estudo comparativo dos salários em 196 empresas. Este estudo mostra que os temporários ou assalariados com CDD são menos bem remunerados que os assalariados com CDI. Em 70% das empresas, os trabalhadores temporários não têm contribuições para sistemas de reformas; em 25%, não existem subsídios de doenças, etc.

No Reino Unido e nos Países Baixos, as agências de trabalho temporário interessam-se igualmente pelos trabalhadores migrantes, propondo-lhes empregos que os cidadãos nacionais recusam, sobretudo para os trabalhos sazonais.

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De acordo com um inquérito do OIT, o trabalho temporário permite aos trabalhadores migrantes deixar um país onde os salários são muito baixos para ir para um outro país onde são mais elevados, mas à chegada muito raramente atingem os salários em vigor. No Reino Unido e nos países escandinavos, a maioria dos temporários trabalha no sector dos serviços. A contratação de temporários aquando da privatização dos serviços públicos, no Reino Unido permite, no caso de “ limpezas de pessoal”, não pagar indemnizações por despedimento.

Em França, o papel das agências de trabalho temporário torna-se cada vez mais importante. Começam a colaborar com a Agência Nacional para o Emprego (ANPE) e podem também ser encarregadas pelas autoridades regionais de “colocar” despedidos-desempregados. Foi o que se passou na região Longwy, aquando da reconversão dos trabalhadores das fábricas Daewoo (2003) que “ficaram à conta” de agências privadas e “reciclados”, não em estágios de formação, mas em missões de trabalho temporário (ínterim). As agências privadas são remuneradas de acordo com o número de trabalhadores “colocados”, com a condição de a duração da missão de trabalho temporário ser no mínimo de 15 dias.

Na Europa, a mais forte concentração de empregos temporários encontra-se na agricultura e nas profissões não qualificadas. Os jovens (15-24 anos) têm uma probabilidade três vezes superior à dos outros assalariados de ter um emprego temporário, mas os trabalhadores que têm um diminuto nível escolar têm uma taxa de emprego temporária superior em 60% em relação aos que tem uma melhor formação. O inquérito europeu sobre as condições de trabalho mostrou que os trabalhadores temporários estão mais expostos a acidentes do trabalho, sobretudo devido aos ritmos de trabalho e também porque se tratará mesmo de trabalhos perigosos, dispondo em geral apenas de alguns minutos de formação.

Os trabalhadores temporários em princípio estão cobertos pelos mesmos dispositivos que os “permanentes”, mas frequentemente são prejudicados porque não contabilizam as durações mínimas de trabalho requeridas para gozar dos mesmos direitos. Assim, em certos países, é necessário um ano de trabalho para ter

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direito ao subsídio de desemprego. Além disso, os temporários têm frequentemente dificuldades para apresentar o seu processo em condições porque geralmente não sabem com precisão que agência de trabalho temporário ou empresa deve pagar as contribuições sociais. É uma fonte de precariedade e de insegurança suplementar, mas a desigualdade mais flagrante entre trabalhadores permanentes e temporários encontra-se na diferença de salário horária para um mesmo trabalho.

Se se compara as condições de trabalho entre trabalhadores temporários e trabalhadores permanentes, a percentagem dos trabalhadores temporários que assinalam condições de trabalho penosas é superior à dos permanentes (inquérito da Fundação de Dublin). Sobre outros pontos, como o acesso à formação, o facto de se ter um emprego temporário reduz o acesso à formação paga pelo empregador de 6 para 20% de acordo com os países. A diferença mais importante no acesso à formação situa-se na Dinamarca porque a formação dos assalariados permanentes é aí muito importante. As estruturas de mobilidade dos trabalhadores para o emprego ou para o desemprego variam fortemente de um país para o outro; a mobilidade ascendente é mais forte na Áustria, na Dinamarca, nos Países Baixos e no Reino Unido e mais fraca em França, na Bélgica e em Espanha.

Um outro inquérito mostra que para certos países (Alemanha, Espanha, França, Países Baixos e Reino Unido), 12% dos trabalhadores temporários foram contratados para postos de trabalho permanentes pelas empresas utilizadoras, 18% encontrou um emprego permanente numa outra empresa (o que faz um total de 30%). No Reino Unido, os empregos com CDD são frequentemente uma via para obter um emprego permanente, mas isto não é verificado em França, Portugal e na Alemanha. Na UE, conta-se que cerca de um quarto dos contratos temporários é inferior a seis meses e que dois terços são inferiores a um ano.

O emprego a tempo parcial

Em 2005, o emprego a tempo parcial aumentou em cerca de 1% num ano na UE 25, atingindo 17,5% do emprego total. Encontra-se essencialmente nos

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sectores do comércio, dos transportes e comunicações, das actividades de serviços (aos particulares e às empresas). Na UE 15, representam 18,5% do emprego total. O aumento é mais forte para as mulheres, mas trata-se de uma média porque se considera os Estados-Membros; constata-se que a parte dos empregos a tempo parcial representa 3,9% do emprego assalariado na Eslováquia, 75,3% nos Países Baixos e 32,7% na Dinamarca.

O desenvolvimento deste tipo de emprego contribui fortemente para o crescimento do número de assalariados pobres, e em especial das mulheres, frequentemente sozinhas e com crianças a cargo (um só ascendente). Na Alemanha, mais de um quarto dos empregos são a tempo parcial e sobretudo são ocupados por mulheres. Em França, conta-se 1,2 milhão de empregos a tempo parcial a contra-gosto ou impostos, dos quais 77% são ocupados por mulheres. No Reino Unido, o trabalho a tempo parcial que representa 25% do emprego total (e 45% do trabalho das mulheres) prejudica os assalariados porque não só ganham salários baixos como também têm apenas um acesso limitado aos direitos sociais (desemprego, maternidade, reforma). Estes empregos são chamados de bad jobs.

Mulheres com um emprego a tempo parcial em percentagem do emprego total por país, 1995-2006

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

UE 27 : : 29.2 28.7 28.5 28.9 28.6 28.5 29.0 30.0 30.9 31.2

UE 15 31.0 31.5 32.2 33.0 33.2 33.2 33.3 33.3 33.8 35.1 36.1 36.7

Zona euro 28.0 28.5 29.5 30.6 31.1 31.3 30.9 30.9 31.5 33.0 34.6 35.2

Zona euro 13 27.5 28.0 28.9 29.8 30.3 30.4 30.7 30.7 31.3 32.8 34.4 35.1

Zona euro 12 27.5 28.0 28.9 30.0 30.5 30.6 30.9 30.9 31.5 33.0 34.6 35.2

Bélgica 30.5 31.4 32.4 34.5 36.9 37.4 36.9 37.4 39.1 40.5 40.5 41.1

Bulgária : : : : : : 3.6 3.0 2.6 2.7 2.5 2.5

República Checa : : : 9.9 9.9 9.3 8.5 8.3 8.5 8.3 8.6 8.7

Dinamarca 35.4 34.7 34.9 35.5 34.7 34.1 31.6 30.3 32.7 33.8 33.0 35.4

Alemanha 33.7 33.9 35.3 36.4 37.2 37.9 39.3 39.5 40.8 41.6 43.5 45.6

Estónia : : : 11.4 10.4 10.9 11.3 10.7 11.8 10.6 10.6 11.3

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Irlanda 22.4 22.0 25.4 30.0 30.1 30.3 30.7 30.6 31.0 31.5 : :

Grécia 8.4 8.7 8.5 10.0 10.0 7.8 7.2 8.0 7.7 8.5 9.3 10.2

Espanha 16.4 16.5 17.0 16.8 17.1 16.8 16.8 16.8 17.1 17.9 24.2* 23.2

França 29.1 30.0 31.2 31.6 31.4 30.8 30.1 29.8 29.6 29.9 30.2 30.2

Itália 12.7 12.9 13.4 14.3 15.6 16.5 16.6 16.9 17.3 25.0* 25.6 26.5

Chipre : : : : 11.1 13.9 12.9 11.3 13.2 13.6 14.0 12.1

Letónia : : : 13.1 13.2 12.8 11.9 12.0 12.7 13.2 10.4 8.3

Lituânia : : : : : 11.1 11.4 12.3 11.8 10.5 9.1 12.0

Luxemburgo 21.8 20.5 21.0 22.0 24.0 25.1 25.8 25.3 30.7 36.3 38.2 36.2

Hungria : : 5.6 5.5 5.5 5.2 5.2 5.1 6.2 6.3 5.8 5.6

Malta : : : : : 15.5 17.5 18.3 21.3 19.3 21.1 21.8

Holanda 67.4 68.1 67.3 67.6 68.9 71.0 71.3 73.1 74.1 74.7 75.1 74.7

Austria 26.8 27.6 28.5 30.5 32.2 32.2 35.0 35.9 36.0 38.0* 39.3 40.2

Polónia : : 13.6 13.2 13.6 13.4 12.7 13.4 13.2 14.0 14.3 13.0

Portugal 12.7 14.5 16.6 17.1 16.7 16.4 16.4 16.4 16.9 16.3 16.2 15.8

Roménia : : 17.5 18.3 18.2 18.6 18.4 13.0 12.2 11.2 10.5 9.8

Eslovénia : : : : 7.2 7.8 7.4 7.5 7.5 11.0 11.1 11.6

Eslováquia : : : 3.8 3.2 3.1 3.5 2.7 3.8 4.2 4.1 4.7

Finlândia 15.4 15.2 15.3 15.9 16.9 17.0 16.8 17.5 17.7 18.4 18.6 19.2

Suécia 35.8 34.9 34.7 34.3 33.3 32.3 33.0 33.1 35.5 36.3 39.6* 40.2

Reino Unido 44.4 44.6 44.6 44.4 44.0 44.3 43.9 43.8 44.0 43.9 42.7 42.6

* quebra de série; : não disponível

Fonte: Eurostat, online

Para terminar esta análise sobre os empregos “atípicos”, é útil referir o caso dos trabalhadores independentes que são “falsos trabalhadores independentes”, porque “dependentes” do seu dador de ordem. É necessário sublinhar que, em Itália, este tipo de emprego permitiu criar um estatuto legal de trabalho que era anteriormente “clandestino”, e os 27% do emprego total representados por trabalhadores independentes não são outra coisa que empregos para-subordinados – por conseguinte trata-se de falsos trabalhadores independentes.

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Não se encontram dados globais satisfatórios para a Europa, porque o título de “trabalhadores independentes” abrange estatutos totalmente diferentes, indo do motorista de táxi ao trabalhador da construção, ao notário, ao médico ou ao advogado.

Em Espanha, os empregos precários assumiram um lugar importante, dado que 30% dos assalariados consideram que ocupam um emprego precário; a criação deste tipo de empregos acompanhou as reconversões posteriores aos despedimentos. Os sindicatos então introduziram a ideia da “flexigurança” para proteger os percursos dos assalariados através da protecção social e das políticas activas de emprego.

Os estágios

Os estágios são destinados aos jovens que procuram um emprego e aos desempregados que andam à procura de emprego. Na Europa, a França tem a taxa de desemprego mais elevada de jovens com menos de 25 anos. Era de 22% em Fevereiro de 2005, atrás da Polónia, da República Checa e da Itália, mas se se acrescentar os estagiários “benévolos”, a taxa sobe a mais de 30%. É esta a razão pela qual tomamos nas nossas exemplificações essencialmente a França. O Conselho Económico e Social estima em 800000 o número de estagiários por ano, dos quais apenas 60000 são verdadeiros estágios de formação. Os estágios não são sujeitos a nenhuma regulamentação e por conseguinte, na maior parte do tempo, não somente não asseguram nenhuma formação como contribuem para desvalorizar os diplomas dos estudantes estagiários, dos quais uma grande parte não é remunerada3. No jornal francês Libération, de 30 de Novembro de 2005, podia ler-se um anúncio parecido na página electrónica do governo. Propunham um estágio de 5 meses no serviço de informação do primeiro-ministro: era necessário ter no mínimo o 12.º ano+3, ter tido uma experiência no sector da comunicação, aceitar

3 Em França, em 2006, pode fazer-se com que um jovem de 14 anos trabalhe gratuitamente durante 10 dias. Para lá destes 10 dias, terá direito a uma remuneração até um máximo de 1,3 euros a hora! É a directiva europeia de 22 de Junho de 1994 (Directiva 94-33CE) que foi a primeira, no seu artigo 4.º, a precisar que “a proibição do trabalho das crianças com a idade de pelo menos 14 anos não se aplica... às crianças de, pelo menos, 14 anos de idade que trabalhem no âmbito de um sistema de formação… ou de um estágio numa empresa.

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não ser remunerado e não esperar ter contrato no fim do estágio. O estágio dito “fotocópia/café”, onde o estagiário não aprende nada, opõe-se ao estágio “emprego disfarçado”, onde o estagiário ocupa verdadeiramente um posto de trabalho, onde tem um emprego a tempo inteiro. Isto permite aos empregadores ter uma mão-de-obra qualificada e motivada e com pouca despesa. O estagiário não tem dia de folga e faz frequentemente horas suplementares... Certas empresas tornaram-se “estagiofágicas”, fábricas de estagiários que formam a maioria do pessoal e nas quais os inspectores do trabalho têm pouco peso porque este “trabalho dissimulado” é, de resto, legal. Há uma pletora de candidatos para os estágios, o que faz com que o estágio comece a tornar-se um emprego atípico – ou precário – sem contrato, sem salário e sem direitos: nenhuma remuneração é obrigatória e, como ela é inferior a 30% do salário mínimo nacional, o empregador não tem que pagar contribuições sociais, estando no entanto o estagiário coberto pela Segurança Social.

Quando se é diplomado e não se encontra emprego, escolhe-se um estágio à falta de melhor porque é, para muitos, a única alternativa à exclusão. Conforme se escreveu no trabalho colectivo de investigação “Geração Precária”, o estagiário adere contra a sua vontade na espiral da concorrência desleal com o trabalho temporário, os free lance e outros istas, consultores, desempregados, etc., porque propondo gratuitamente o seu trabalho, contribui para a baixa geral dos salários. Além disso, o estagiário não desconta nem para o subsídio de desemprego, nem para a reforma. Mas a gratificação do estágio, se dura mais de três meses, deve ser declarada, para que o estagiário participe no pagamento do imposto. Quanto aos estágios noutros países da Europa, impõem-se algumas informações. Na Itália, ainda que os estágios não sejam remunerados, há na convenção o nome de um tutor responsável e um projecto de formação e de orientação; não existe convenção “em branco”. Uma cópia é dirigida ao ministério do Trabalho (região) e aos sindicatos da empresa, o que permite efectuar controlos. Dois outros países reconhecem a vocação profissional do estágio: a Espanha e o Luxemburgo. A Espanha instituiu o “estágio subcontrato” para completar uma formação (é necessário um título profissional ou um diploma e o estagiário recebe um subsídio de pelo menos 60% de um assalariado a tempo inteiro); no Luxemburgo, é o mesmo princípio, mas reservado a pessoas com menos de 30 anos.

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Na Bélgica, o estagiário beneficia de um estatuto que o liga ao direito do trabalho. Nos países do Norte da Europa, o regime do estagiário é decalcado do do assalariado. As organizações internacionais (ONU, OIT, OMS, HCR ou ainda a Comissão Europeia, em Bruxelas) são grandes “estagiofágicos”, onde abundam estagiários que nem sempre são remunerados...

B) Despedimentos e desemprego

Acentuação da precariedade da vida

Desde já há vários anos que um número importante de assalariados das empresas situadas no território da Europa vive ao ritmo dos encerramentos. Quer se trate de fusões, de deslocalizações ou de cessação de actividade, são numerosos aqueles que têm conhecido a experiência de um despedimento.

A Comissão Europeia produziu três directivas (1975, 1992, 1998) que dão às organizações sindicais, no caso de despedimentos colectivos, o direito de analisarem as decisões tomadas pelas direcções de empresa. Mas este direito limita-se às discussões sobre o acompanhamento social e, sem a intervenção da política, tem apenas uma incidência diminuta. Estas directivas guiam o conjunto das políticas de emprego dos governos, que, geralmente, não intervêm nos despedimentos. Estes provocam, no entanto, nos lugares onde ocorrem verdadeiros sismos sociais. É o que se passa com os encerramentos das minas de carvão, na Bélgica, no Reino Unido e em França, da mesma maneira com os da siderurgia, da indústria têxtil, da indústria automóvel... ou das outras indústrias conhecidas como “modernas”.

Nos países da Europa do Norte, a fraca taxa de desemprego permite, no dizer dos inquéritos europeus, viver menos dramaticamente o despedimento, a precariedade dos empregos e o sentimento de insegurança. Mas todos os países europeus conhecem, desde os anos 90, um endurecimento dos regimes de segurança no desemprego, pondo-se assim a questão de saber como garantir uma certa segurança ao conjunto da população activa. A precariedade do emprego e a perda

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do emprego provocam uma precariedade ou uma insegurança dos rendimentos; mas assim como a precariedade do emprego não tem as mesmas consequências em cada país da UE, os subsídios de substituição não são os mesmos, nem em montante nem em duração. A política do workfare, a obrigação de trabalhar para receber subsídios, que se iniciou desde os anos 90, foi experimentada muito antes, desde 1986, no Reino Unido. Os procedimentos não são idênticos nos países da UE, mas o modelo do workfare anglo-saxónico e as políticas ditas de activação pouco a pouco estenderam-se aos países da Europa continental, seguidamente aos países da Europa do Norte. A condicionalidade dos subsídios de substituição do emprego perdido implica um controlo da administração, chamado de controlo social.

A taxa de desemprego na UE, 1996-2007

1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

UE 27 : : : : 8.6 8.5 8.9 8.9 9.0 8.9 8.2 7.1

UE 15 10.1 9.8 9.3 8.5 7.7 7.2 7.6 7.9 8.0 8.1 7.7 7.0

Euro area 10.7 10.6 10.0 9.1 8.2 7.8 8.2 8.7 8.8 8.9 8.3 7.4

Zona euro 13 10.6 10.5 10.0 9.2 8.3 7.8 8.2 8.6 8.8 8.9 8.2 7.4

Zona euro 12 10.6 10.6 10.1 9.2 8.3 7.8 8.2 8.7 8.8 8.9 8.3 7.4

Bélgica 9.5 9.2 9.3 8.5 6.9 6.6 7.5 8.2 8.4 8.4 8.2 7.5

Bulgária : : : : 16.4 19.5 18.1 13.7 12.0 10.1 9.0 6.9

República Checa : : 6.4 8.6 8.7 8.0 7.3 7.8 8.3 7.9 7.1 5.3

Dinamarca 6.3 5.2 4.9 5.2 4.3 4.5 4.6 5.4 5.5 4.8 3.9 3.7

Alemanha 8.7 9.3 9.1 8.2 7.5 7.6 8.4 9.3 9.7 10.7 9.8 8.4

Estónia : 9.6 9.2 11.3 12.8 12.4 10.3 10.0 9.7 7.9 5.9 4.9

Irlanda 11.7 9.9 7.5 5.7 4.2 4.0 4.5 4.7 4.5 4.3 4.4 4.5

Grécia 9.6 9.8 10.8 12.0 11.2 10.7 10.3 9.7 10.5 9.8 8.9 :

Espanha 17.8 16.7 15.0 12.5 11.1 10.3 11.1 11.1 10.6 9.2 8.5 8.3

França 11.5 11.5 11.0 10.4 9.0 8.3 8.6 9.0 9.3 9.2 9.2 8.3

Itália 11.2 11.3 11.3 10.9 10.1 9.1 8.6 8.4 8.0 7.7 6.8 :

Chipre : : : : 4.9 3.8 3.6 4.1 4.6 5.2 4.6 3.9

Letónia : : 14.3 14.0 13.7 12.9 12.2 10.5 10.4 8.9 6.8 5.9

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Lituânia : : 13.2 13.7 16.4 16.5 13.5 12.4 11.4 8.3 5.6 4.3

Luxemburgo 2.9 2.7 2.7 2.4 2.3 2.0 2.7 3.7 5.1 4.5 4.7 4.7

Hungria 9.6 9.0 8.4 6.9 6.4 5.7 5.8 5.9 6.1 7.2 7.5 7.2

Malta : : : : 6.7 7.6 7.5 7.6 7.4 7.3 7.3 6.3

Holanda 6.0 4.9 3.8 3.2 2.8 2.2 2.8 3.7 4.6 4.7 3.9 3.2

Austria 4.3 4.4 4.5 3.9 3.6 3.6 4.2 4.3 4.8 5.2 4.7 4.4

Polónia : 10.9 10.2 13.4 16.1 18.2 19.9 19.6 19.0 17.7 13.8 9.6

Portugal 7.2 6.7 4.9 4.4 3.9 4.0 5.0 6.3 6.7 7.6 7.7 8.0

Roménia : : : 6.9 7.2 6.6 8.4 7.0 8.1 7.2 7.3 :

Eslovénia 6.9 6.9 7.4 7.3 6.7 6.2 6.3 6.7 6.3 6.5 6.0 4.7

Eslováquia : : 12.6 16.4 18.8 19.3 18.7 17.6 18.2 16.3 13.4 11.3

Finlândia 14.6 12.7 11.4 10.2 9.8 9.1 9.1 9.0 8.8 8.4 7.7 6.9

Suécia 9.6 9.9 8.2 6.7 5.6 4.9 4.9 5.6 6.3 7.4* 7.1 6.1

Reino Unido 7.9 6.8 6.1 5.9 5.3 5.0 5.1 4.9 4.7 4.8 5.3 :

* quebra de série; : não disponível

Fonte: Eurostat, online

O acesso aos direitos sociais

O tema da redistribuição é central no sistema de protecção social instaurado durante o período do pós-guerra na Europa. A pobreza e a exclusão são aí definidas como uma privação e o sistema de subsídios impõe-se como um direito que permite uma redução das diferenças de rendimentos. A protecção social deve ser incondicional porque é a única capaz de redistribuir recursos e de gerar um sentimento de obrigação mútua e de interesse colectivo. Este direito não implica nenhuma culpabilização, nem verificação, da existência de necessidades e distingue-se assim da ajuda social. A recusa de qualquer responsabilidade individual no desemprego, ou na pobreza, projecta a responsabilidade do Estado e dos empregadores, que participam no financiamento da protecção social. A garantia do acesso aos direitos sociais reside na existência dos serviços públicos. Estes assentavam na ideia de igualdade de tratamento. Quanto a esta última, gradualmente tem-se transformado, tanto a partir do “direito à

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diferença” como das “discriminações positivas”, numa igualdade de oportunidades que implica, pelo contrário, uma diferença de tratamento. Na medida em que os serviços públicos se abrem à concorrência, ou seja, aos critérios de rendibilidade das empresas privadas, pode prever-se um aumento das desigualdades no acesso aos direitos sociais. Assim é nos sistemas de saúde, nos transportes urbanos ou regionais, etc.

O tema da responsabilidade colectiva compartilhada, que se esbateu no domínio da protecção social, permanece dominante na esfera das políticas financeiras e económicas da UE, para justificar medidas restritivas ligadas ao equilíbrio das contas públicas, à eficácia económica e à transparência, como sinónimos de “boa governança”. A Comissão Europeia fez da inclusão social uma das chaves mestras da sua “Comunicação sobre o futuro dos sistemas de protecção social na Europa” (14/07/99) com quatro objectivos: 1) tornar o trabalho mais vantajoso; 2) fornecer um rendimento certo, garantir reformas certas e sistemas de reformas viáveis; 3) promover a integração social; 4) garantir um nível elevado e duradouro de protecção da saúde.

A exclusão do trabalho é aí designada como o problema essencial donde provêm as outras dimensões da pobreza. O texto da Comissão reconhece o processo da exclusão como associado não somente à escassez de trabalho e de rendimento, mas também aos problemas de alojamento, de educação, de saúde, de discriminação (racista ou sexista). Mas o discurso da Comissão sobre as políticas comuns de protecção social coloca sobretudo a tónica nos problemas do mercado de trabalho, em vez de ser nos problemas do alojamento, da saúde ou da protecção social dos inactivos. O discurso sobre a inclusão social integra-se com efeito na problemática das políticas de emprego activas, onde o sucesso das políticas do mercado de trabalho é julgado na base da taxa de actividade da população em idade de trabalhar, em vez de o ser na redução da taxa de desemprego e da pobreza.

Na óptica “de inclusão activa”, desenvolvida em primeiro lugar pela OCDE, o discurso europeu retoma o raciocínio da eficácia económica vestindo-o com objectivos de luta contra o desemprego e a pobreza. A inclusão activa corresponde, tanto para as pessoas idosas como para os pais isolados ou para os deficientes, a

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obrigação de trabalhar com salários e condições de emprego que estão à margem do mercado regular de trabalho.

Fraqueza dos rendimentos dos empregados ou dos privados de emprego

A precariedade do emprego, ou a ausência de emprego, cria uma insegurança que torna os indivíduos mais frágeis e mais maleáveis; isto autoriza a administração a efectuar um maior controlo sobre estas populações e reforçar o carácter disciplinar do tratamento da pobreza na Europa.

A) Um controlo sistemático dos beneficiários de ajudas sociais

O controlo social encontra a sua origem no sistema de tratamento dos pobres, elaborado pelas políticas “pré-democráticas”, entre os séculos XVI e XIX, que consistia em diversos modos de reclusão e de trabalho forçado. O colocar a trabalhar certas categorias da população é um elemento recorrente das políticas económicas e sociais nos países da Europa.

O controlo social que desempenha um papel importante no desenvolvimento actual dos sistemas de protecção social manifesta-se de duas maneiras:

. pelos controlos administrativos e as regulamentações que afectam a vida privada dos beneficiários, a percepção que eles podem ter de si mesmos, a sua capacidade de se envolverem em acções sociais;

. pelo workfare, preconizado a partir da hipótese que os estímulos para “o trabalho pago” não são suficientes, não podem funcionar, dada a irracionalidade dos pobres e dos desempregados.

Esta “irracionalidade” apoia-se na ideia de que os numerosos desempregados estão nesta situação por sua própria vontade, dado que recusam aceitar o trabalho proposto. No entanto, a reserva em aceitar um trabalho “mal pago” deve-se frequentemente

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ao risco associado a um processo administrativo complexo de reinscrição no circuito dos subsídios aquando da perda deste trabalho. As frequentes mudanças nas regulamentações sobre o acesso aos subsídios e a falta de informação dos beneficiários a respeito dos seus direitos agravam a ideia do risco que correm.

Em França, o controlo social manifesta-se também pela nova denominação dos desempregados. Os “beneficiários” dum rendimento que substitui o do emprego perdido tornaram-se “beneficiários” de subsídios, termo vago que acrescenta uma dimensão institucional de estigmatização social, afectando a auto-estima e o comportamento dos desempregados.

Os direitos sociais inicialmente previstos para reduzir as desigualdades tornaram-se condicionais. Com efeito, a atribuição dos direitos às pessoas privadas de emprego depende essencialmente dos comportamentos individuais e da sua submissão às restrições que lhes são impostas. Esta questão tornou-se objecto de críticas na UE perante o perigo de os Estados-Membros se deixarem levar por uma espiral descendente, forma de “dumping social”, que os pode levar a adoptar os níveis mais baixos de protecção social. A esse respeito, pode assinalar-se a boutade que se ouvia no mundo operário no século XIX: “o que é uma fábrica? É um lugar onde se produz algodão e pobres...” Isto é a mesma coisa que dizer que se trabalha para se empobrecer, destino comum dos trabalhadores no século XIX, o que continua a ser uma velha história.

A questão que é necessário colocar hoje refere-se à correlação entre trabalhadores pobres e falta de segurança. Por outras palavras, como medir a relação entre trabalho e pobreza? A pobreza no trabalho foi reconhecida pelo Conselho da Europa em 2003. Dezoito indicadores já tinham sido definidos para a medir, em Dezembro de 2001, no Conselho Europeu de Laeken, a fim de ajudar os Estados-Membros na sua luta contra a pobreza e a exclusão social. Com esta base, os cálculos deram uma estimativa: 16% da população europeia “está ameaçada de pobreza”, expressão que significa que estas pessoas vivem em famílias que têm um rendimento inferior ao limiar de pobreza (definido como 60% do rendimento mediano por país).

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Na Europa, em 2005, são 72 milhões de cidadãos que são considerados como “ameaçados pela pobreza”.

Pode colocar-se a tónica sobre a pobreza dos indivíduos sem emprego ou sobre a das famílias. Estas duas abordagens são complementares; se se insiste no ou na assalariado(a) pobre, centra-se a atenção no mercado de trabalho (baixos salários e precariedade dos empregos); a abordagem por família permite a concentração no tipo de ajuda e no complemento de recursos de que as famílias têm necessidade para “serem incluídas” na sociedade. Assim, o inquérito europeu de 2001 contabilizava cerca de 11 milhões de trabalhadores pobres, mas se se tivesse em conta as famílias era de um total de 20 milhões de indivíduos que se estaria a falar. Cada abordagem tem os seus limites e os seus pressupostos; e passar de um conceito (o trabalhador pobre ou a pobreza) a uma medida estatística válida para um conjunto de países é ainda mais difícil quando a definição utilizada depende da política social, do modo de representação do trabalho e do desemprego, próprio a cada sociedade.

O interesse desta via de análise comum tem a ver essencialmente com o reconhecimento do facto de que ter um emprego não protege da pobreza e não se foge aos debates que esta última gera. A resposta à questão de como lutar contra a pobreza não faz não somente referência ao desemprego como também à política salarial. A remuneração do trabalho representa um custo para o patronato, mas este custo é também o rendimento do assalariado. Sublinhe-se que 15% dos assalariados europeus são assalariados de baixos salários. Trata-se aqui de uma média, em certos países a sua proporção é claramente superior, como na Alemanha, Grécia, Irlanda e no Reino Unido.

Desde a Cimeira de Lisboa, em 2000, que foi adoptado e quantificado o objectivo do pleno emprego, dado que os governos se comprometeram a atingir em 2010 uma “taxa de emprego” de 70% nos seus países respectivos. Este objectivo refere-se à população dos 15 aos 65 anos, o que, de passagem, significa que a UE preconiza o trabalho dos adolescentes e o retrocesso da idade da reforma. Na falta de uma definição rigorosa de emprego, as orientações políticas em prática

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favorecem o desenvolvimento dos empregos precários, flexíveis, a tempo parcial, com duração determinada, mal remunerados, etc. O facto de se ter dado a prioridade à taxa de emprego e não à baixa da taxa de desemprego demonstra que a preocupação primordial consiste em evitar a escassez de mão-de-obra e os riscos de aumento dos salários que daí decorrem.

É o que confirma o relatório do secretariado permanente da OIT (BIT), de Fevereiro de 2004, ao sublinhar que o desemprego atinge uma população muito importante no mundo mas que nenhuma instituição é capaz de fazê-lo diminuir. Acrescenta ainda que o mercado é tanto incapaz quanto o patronato tem necessidade desta massa de desempregados para manter os salários em baixa. Daí o ter-se posto em prática reformas dos sistemas de subsídio de desemprego que “incitam” ao trabalho, impondo a qualquer desempregado com subsídios a obrigação de exercer uma actividade para manter o seu subsídio. Esta imposição do trabalho é geral e toca não somente os desempregados, mas também todos os beneficiários das ajudas sociais como os desempregados de longa duração, os deficientes, os doentes e os pais separados. A protecção social mínima, contrapartida da activação das despesas para o desemprego, organiza o regresso forçado ao emprego, em contradição com o artigo 5.º, ponto 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da UE que estipula que “ninguém pode ser constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório.”

B) O regresso ao emprego

O regresso ao emprego, motivo condutor das directivas europeias, deve combater os efeitos desincentivadores que se considera que a protecção social estimula, ou seja, as reservas ou as recusas dos desempregados subsidiados em aceitar os empregos degradados que lhes são propostos. A desincentivação não deve ser atribuída aos desempregados, mas antes à má qualidade dos empregos e dos estágios propostos. De acordo com um estudo efectuado em 2000 por investigadores sobre a UE, “o emprego de baixo salário aparece por toda a parte como uma etapa frequente de inserção ou de reintegração profissional... Na UE, os ex-desempregados têm em média uma proporção de assalariados de baixos salários 2,8 vezes mais elevada que

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a observada para o conjunto dos assalariados.” Esta política de regresso ao emprego manifesta-se diferentemente de acordo com os países, mas a priori por toda a parte os desempregados são suspeitos de preguiça. Devem dar provas da sua actividade.

No Reino Unido, em 1985, o Social Security Act instaura uma obrigação de acompanhamento de estágios de formação, o Trainingfare; em 1986, os desempregados de longa duração são obrigados a apresentarem-se a entrevistas regulares nos centros de emprego. Estas obrigações condicionam o pagamento do subsídio. Chegados ao poder, em 1997, governo do New Labour não altera o regime de prestação do subsídio de desemprego. Endurece sim as medidas do sistema da protecção social para aumentar a taxa de actividade e “pôr a trabalhar” os pais divorciados, os deficientes e os jovens. Assim, o acesso ao imposto negativo para os baixos salários (Working Family Tax Credit) deve incitar a retoma dum emprego; os subsídios para deficientes tornam-se mais difíceis de obter.

Estas medidas são enquadradas por novas regras: re-instauração dum salário mínimo, limitação do número de horas de trabalho por mês, direito sindical sob certas condições. O conjunto intitula-se New Deal. Os jovens com menos de 25 anos, os desempregados de longa duração e os idosos têm a obrigação de se inscrever nos programas do New Deal, sob pena de perderem o seu direito aos subsídios. Estes programas consistem em conselhos e controlos de procura de emprego. Para os deficientes e para os pais separados, dependentes da ajuda social, a inscrição no New Deal é voluntária. Entre 1998 e 2004, estes programas teriam alcançado 1 milhão de pessoas. Em 2003, um novo programa intitulado Pathway to Work propõe 40£ por semana em troco de trabalho obrigatório. São todos os empregos a tempo parcial, ou ainda subempregos, que fazem descer a taxa do desemprego que se considerava em 4,5%, em 2004.

No Reino Unido, o beneficiário do Job Seeker Allowance assina um compromisso sobre o número de diligências que vai fazer, tem um log book (caderneta de bordo), que é controlado todos os quinze dias, e deve apresentar as provas da sua procura de emprego materializada por cartas aos empregadores. Durante três meses,

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pode limitar a sua investigação ao tipo de emprego que ocupava anteriormente, mas após este período, deve aceitar qualquer emprego que lhe seja oferecido. Os conselheiros dos centros de emprego têm objectivos a realizar e dispõem de 16 semanas para “colocar” um desempregado num emprego, num estágio de formação ou numa associação. Apresentados como os bastiões do Estado Providência, os países nórdicos (Suécia, Finlândia, Dinamarca) também adoptaram políticas ditas de activação. Isso significa que as condições de acesso aos rendimentos de substituição que são os subsídios desemprego foram endurecidas. Se tomarmos o exemplo da Dinamarca, observa-se que o período de prestação que era de nove anos antes de 1994, passou a quatro anos em 2003 e o número de desempregados compensados diminuiu, passando de 340000 para 123000... Contudo nada disto impede que os resultados estejam à imagem do que são noutros lados: as políticas de activação não pararam o aumento do desemprego, o número de empregos subvencionados aumentou e todo o sistema contribuiu para a descida do conjunto dos salários. Em França, as políticas de activação destinadas aos desempregados datam dos anos 90. É necessário notar que a chegada ao termo dos contratos precários é a causa principal do desemprego em França, antes dos despedimentos. 60% dos beneficiários do RMI assinam contratos de inserção, são obrigado a seguir etapas na procura de emprego e aceitar qualquer emprego proposto, qualquer actividade de inserção, incluindo estágios e missões de trabalho temporário. Em 2003, o governo Raffarin instaura para os beneficiários do RMI, um Rendimento Mínimo de Actividade (RMA) que implica que os Rmistas devem trabalhar pelo menos vinte horas por mês durante 18 meses. A gestão do RMA, como a do RMI, é confiada aos Departamentos.

As políticas de activação estendem-se a todos os desempregados, desde Julho de 2001, com o Plano de Ajuda ao Regresso ao Emprego (PARE) posto em prática pela instigação da organização patronal, o Medef4. Altera fundamentalmente o sistema de prestação do subsídio de desemprego: assinando um contrato individual com a ANPE, o desempregado subscreve uma série de obrigações na sua procura

4 O equivalente à CIP, em Portugal [N. T.].

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de emprego, obrigações que são acompanhadas de sanções. A recusa de ofertas de emprego implica uma diminuição de 20% do montante do subsídio, seguidamente uma suspensão deste subsídio e, por último, a sua supressão.

Trata-se de uma transformação radical do sistema de protecção social, idêntica à do Reino Unido. A categoria que formavam os “desempregados” deixa de existir, dado que cada indivíduo retorna a um contrato individual que assina com a administração para obter uma “ajuda”. As palavras têm aqui a sua importância e a ajuda individual substitui a partir de agora o seguro colectivo que subscreviam o conjunto dos assalariados. A ajuda esperada da ANPE é sobretudo fundada na formação e na mobilidade geográfica. A obrigação imposta ao desempregado para aceitar as ofertas de emprego está ligada à nova definição de emprego “conveniente” ou aceitável. Esta definição foi alterada porque deixa de ser ligada à qualificação, à formação e ao emprego anterior, mas sim às capacidades actuais e ao estado do mercado de trabalho na região. A definição do que convém ou não a um desempregado é, por conseguinte, deixada à apreciação da ANPE que permanece o único juiz. Em França, se o estatuto de desempregado “assegurado” dava uma relativa liberdade, a introdução do PARE alterou os dados, uma vez que o desempregado assina um contrato individual com a Agência no termo do qual se compromete a procurar um emprego, procura de que deve mostrar as provas.

No seu relatório publicado em Abril de 2006, o Observatório da Pobreza indica que “uma parte crescente dos desempregados não é compensada: a taxa de cobertura dos subsídios de desemprego das pessoas à procura de emprego diminui regularmente... e não é agora mais do que 58%, em Setembro de 2005; as pessoas à procura de emprego tiveram mais dificuldades em tornar-se elegíveis a um subsídio de desemprego devido à degradação contínua do mercado de trabalho e ao endurecimento das condições de acesso à “prestação. A taxa do desemprego ultrapassa os 10% “e o número de desempregados de muita longa duração (mais de 3 anos) progrediu continuamente”. O número de desempregados aumentou regularmente desde 2000 para atingir o número de 4,3 milhões em Setembro de 2005; unicamente 2,4 são compensados.

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Mais de três milhões de pessoas vivem de mínimos sociais e o número de subvencionados pelo RMI atinge mais de um milhão.

Na Bélgica, é o mesmo princípio que governa as agências do emprego, mas pode ser menos formalizado. O papel “de colocador”, isto é, o conselheiro, é chamar o desempregado para que se apresente no Serviço do desemprego, não para colocá-lo, porque não tem emprego a propor, mas para verificar se apresenta pedidos de emprego. O grau de liberdade depende com efeito do estatuto e da categoria: os constrangimentos são mais fortes para os que perderam o seu estatuto de desempregado e dependem da assistência. Estes devem, se têm menos de 26 anos, assinar um contrato de integração social. Podem também trabalhar para uma Agência local do emprego. Os que têm mais de 26 anos e que recebem do “minimex” desde há mais de dois anos, como o Rmistas em França, são obrigados a inscreverem-se em programas de pequenos trabalhos que autorizam a acumulação de um baixo salário e do subsídio.

Na Alemanha, os beneficiários da ajuda social – que é também um subsídio sob condição de recursos – são obrigados a aceitar qualquer emprego e a provar a sua procura activa de emprego junto das agências para o emprego. Os desempregados que têm seguro de desemprego estão sujeitos às mesmas obrigações: podem recusar um emprego apenas se este não for conforme com a legislação do trabalho, se o salário for inferior a 20% ao salário anterior (durante três meses), seguidamente se for inferior ao montante do subsídio de desemprego e, por último, se o trajecto for superior a duas horas e meio por dia. Em todo caso, não se pode recusar um emprego com o pretexto de que se trata de um contrato com duração determinada ou que obriga a uma separação da família ou que não corresponde à qualificação do requerente de emprego.

Os Serviços do desemprego, em vez de serem gabinetes de colocação, transformam-se em gabinetes de controlo. Em França, na Bélgica e na Alemanha, para os que beneficiam de subsídios sob condição de recursos, os controlos inscrevem-se na vida privada, sob a forma de visita domiciliária; os controladores verificam o número de escovas de dentes, o número de manteiga no frigorífico, tiram as

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suas conclusões sobre a vida privada do beneficiário e eventualmente suprimem os subsídios (inteira ou parcialmente).

C) O regresso ao emprego não garante recursos suficientes para sair da pobreza

Com efeito, o salário que acompanha o emprego é frequentemente bastante baixo ou muito baixo. O salário horário mínimo é de 3,7£ no Reino Unido; em França, o salário mínimo nacional mensal é de cerca de 1000 euros, o que constitui um rendimento insuficiente para viver decentemente. A possibilidade de acumular um subsídio e um baixo salário não permite atingir, em geral, o salário mínimo mensal a tempo inteiro. Mais ainda, esta cumulação faz desaparecer diversas ajudas, qualquer que seja a legislação em vigor no país: a ajuda ao alojamento é suprimida, bem como a gratuitidade dos transportes (que existe apenas em certas comunas ou regiões em França), o financiamento da cantina para as crianças em idade escolar deixa de lhes ser pago, as prestações de ajudas familiares são reduzidas ou suprimidos, é necessário frequentemente pagar a guarda das crianças, vestir-se, pagar os transportes, etc. Em França, uma família que beneficia da acumulação de um subsídio e dum salário não pode continuar a ser considerada como “sobre-endividada”, característica que oferece diversas vantagens materiais quer seja pela diminuição ou pelo escalonamento das dívidas.

Não somente o regresso ao emprego não garante uma melhoria do rendimento, como o emprego pode ser muito temporário no caso de CDD ou temporário. Quando o indivíduo cai no estatuto de desempregado, a base de cálculo da sua prestação corre o risco de ser extremamente insuficiente para lhe dar, de novo, direito a um subsídio de desemprego. Reencontra-se necessariamente no circuito da assistência com um prazo de carência que pode ir até três meses durante o qual não recebe nenhum apoio.

De facto, a maioria dos regressos ao emprego faz-se em empregos apoiados e precários. A natureza destes não permite aos desempregados, na maioria dos casos, obterem um rendimento que lhes permita pôr fim a condições de vida difíceis. Não somente os salários não aumentaram nestes dez últimos anos como se reduziram em toda a Europa: é aquilo a “que se chama pudicamente de moderação salarial”.

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Esta baixa dos salários menos elevados tem causas múltiplas entre as quais a fraqueza dos sindicatos e a desregulação contínua do mercado de trabalho, com o crescimento da criação de empregos precários que beneficiam das ajudas do Estado. A fraqueza dos rendimentos propostos aquando do regresso ao emprego é em si mesma um travão a este regresso; é necessário acrescentar outros que estão ligados ao exercício dos direitos sociais (saúde, alojamento, etc.) e à mobilidade. A capacidade de deslocar-se para ao seu local de trabalho é frequentemente obstruída pela falta de transportes ou pela impossibilidade de ter um veículo individual.

A empregabilidade ou ainda “a capacidade de inserção profissional… cobre tanto a necessidade de qualificações adequadas, quanto os estímulos à procura de um emprego e as possibilidades de o encontrar”. Contudo, como constata a Comissão Europeia, as “taxas elevadas de regresso ao desemprego imediatamente depois da participação em medidas activas leva a interrogar a qualidade da assistência oferecida”. A empregabilidade é uma noção particularmente imprecisa onde se trata de avaliar indivíduos no desemprego, de explorar as razões da sua situação para se deduzir uma orientação.

As formações não cessaram de se diferenciarem e de se desenvolverem em vias diferentes em função dos “públicos” a que se dirigem. A referência ao mercado de trabalho e a ideia de que uma renovação do nível dos conhecimentos dava acesso ao emprego apagaram-se progressivamente em proveito de um “percurso de inserção” preliminar, necessário a uma formação de melhoria de nível. Os estágios de formação são “orientados” de acordo com critérios que parecem frequentemente arbitrários, porque eles o não são em função do indivíduo e das suas próprias qualidades mas sim de dados externos. Há os programas para os jovens não qualificados, os programas para os desempregados há mais de um ano, há menos de dois anos, etc. Estes estágios visam impor uma norma “disciplinar”: é necessário ser empregável, o que quer dizer estar disponível, adaptável e móvel, é necessário saber recalcar os seus desejos individuais, os seus desejos de formação, as suas qualificações e os seus empregos anteriores. Geralmente, há poucos controlos dos conteúdos das formações dispensadas e a maioria dos possibilita o acesso a empregos estáveis. Os estágios têm múltiplas funções que se situam mais no plano do comportamento ou “moralização”

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que no plano da aquisição de conhecimentos ou de know-how. Devem enquadrar as populações no desemprego com toda uma série de dispositivos que lhes evitarão que caiam nas “armadilhas da inactividade”. Os estágios inscrevem-se no “controlo contínuo” de uma população assistida, que não tem nenhuma outra porta de saída que não seja o trabalho “temporário”, de “duração determinada”.

Conclusões

As recentes reformas das políticas de protecção social dos desempregados permitem identificar uma certa convergência na definição dos objectivos e dos meios levados a efeito e, como sublinha T. Treu, “as tendências nacionais para a desregulação não foram compensadas por políticas activas capazes de evitar que a flexibilidade se traduzisse em precariedade”. É possível sublinhar três dimensões:

1. A análise dos sistemas de protecção social do ponto de vista da eficácia económica é ilustrada pelos trabalhos de investigação da OCDE e pelos textos da Comissão Europeia. Referem-se a uma certa concepção do equilíbrio financeiro das contas da Segurança Social, bem como a uma eficácia mercantil dos fundos da protecção social no mercado de trabalho.

2. A protecção social é concebida como um sistema de controlo social; pode considerar-se os dispositivos instaurados como meios de controlo e de disciplina dos desempregados ou das populações minadas.

3. Os direitos à protecção social, na Europa, são considerados como um dos aspectos da cidadania, como uma parte do contrato social entre o indivíduo e o Estado, mas também como um meio para reduzir as desigualdades produzidas pela economia de mercado.

A Estratégia Europeia para o Emprego (EEE) propôs, em 2003, uma via de abordagem que substitui a definida na Cimeira do Luxemburgo, em 1999, e que se reorganiza em redor de três objectivos: o pleno emprego, a qualidade e a

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produtividade do trabalho. De acordo com esta, onze prioridades permitiriam a sua aplicação e, curiosamente, a primeira refere-se às medidas activas em prol dos desempregados. Mas não há nenhuma questão quanto à relação existente entre a política de emprego e a protecção social, embora a Agenda Social tenha posto esta questão na ordem de trabalhos. Da mesma maneira, o tema da melhoria da qualidade do emprego foi abandonado nas novas linhas directrizes bem como o objectivo de diminuição da taxa de acidentes do trabalho. Em contrapartida, a Comissão adoptou propostas de directivas sobre o tempo de trabalho que permitem fazer trabalhar os assalariados 65 horas/semana, limiar que pode ser reexaminado à subida se houver um acordo colectivo.

Qual é natureza do pleno emprego que as políticas sociais europeias querem realizar? Na medida em que o direito ao emprego é um direito reconhecido e perante a realidade dos empregos oferecidos aos desempregados, pode colocar-se a questão do que seria um emprego conveniente, ou decente ou ainda aceitável. Em geral, os inquéritos e as análises relativas ao emprego têm em conta o salário, mas igualmente a segurança do emprego e o interesse do trabalho. Enquanto anteriormente, o emprego conveniente era definido pelas características próprias do emprego em si mesmo e pelas do desempregado a quem era proposto, o emprego agora essencialmente é avaliado não pelo próprio desempregado, mas pelos Serviços de emprego que avaliam a correspondência entre o desempregado e o emprego. Esta correspondência deixa de ser enquadrada por dados objectivos como o era a qualificação ou o montante do último salário recebido, mas por um julgamento muito subjectivo, frequentemente discutível do ponto de vista moral. É a duração do desemprego sentida pelo indivíduo que se torna o critério objectivo da sua empregabilidade ou da sua capacidade de inserção. A possibilidade de recusar um emprego com o pretexto que não é “conveniente” comporta o risco da supressão dos subsídios.

Parece evidente que a definição de emprego conveniente está ligada também a uma relação de força entre os Serviços de emprego e os desempregados. É às associações e aos sindicatos de desempregados e de assalariados que cabe levar as reivindicações de uma relação entre emprego e salário que seja aceitável ao nível europeu.

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ii.4. “A UE FACE àS EXCLUSÕES:

O EXEmpLO DA pOLíTICA DE LUTA CONTRA O DESEmpREGO DOS JOvENS”

Um TEXTO DE FRANZ SChULThEIS

As metamorfoses da questão social sob o domínio do novo espírito do capitalismo

Enquanto as nossas sociedades ocidentais se debruçam com obstinação sobre a problemática do desemprego como a versão contemporânea mais escaldante da questão social do assalariado, tudo se passa como se o próprio estatuto de “assalariado” se encontre ele mesmo muito discretamente posto em questão por detrás dos bastidores dos debates políticos. A erosão rápida do próprio estatuto de assalariado protegido pelo direito do trabalho e pelo direito social, que se manifesta designadamente entre outras coisas por um emprego dito “atípico” ser cada vez mais “típico” das condições do assalariado contemporâneo, parece abrir o caminho a uma crise fundamental de todo um modelo de sociedade historicamente criado desde o fim do século XIX. Esta transformação profunda da sociedade salarial parece fazer-se de maneira paradoxal ou, pelo contrário, “significativa”, sob a protecção das próprias políticas ditas bem pensantes. Tende-se para querer travar ou eliminar a calamidade do desemprego através de remédios políticos e económicos, cujos efeitos (não planificados, não queridos e mesmo perversos para certos actores ou, pelo contrário, queridos, planificados e desejados por outros) correm o risco de pôr radicalmente em questão uma espécie de compromissos históricos inscritos na longa duração das nossas civilizações ocidentais e representando uma espécie de resposta colectiva à uma questão social escaldante.

Desde os anos 80, todos os peritos do mundo social estão de acordo em falar duma crise profunda da sociedade salarial. Este regresso da questão social pode ser teorizada sob diferentes formas e através de diferentes conceitos:

. Há uns que nos falam da rarefacção do trabalho salarial e anunciam-nos que, em face deste produto cada vez mais raro, nos encontramos em frente de novas rupturas sociais que opõem um terço da população altamente qualificada, segura,

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integrada e economicamente privilegiada, a um terço da população caracterizada por uma exclusão económica, social e cultural cada vez mais maciça.

. Há outros que nos falam do fim do estatuto de assalariado, sucessivamente elaborado graças ao Estado Social, insistindo no impacto cada vez mais importante de empregos atípicos, mal pagos, sem protecção social válida e com uma duração limitada, que se assemelhariam cada vez mais ao que se chama nos Estados Unidos de McJobs ou de junk jobs, dos quais é necessário em geral assegurar dois ou três para se chegar a ter um rendimento com que se possa viver.

. De maneira complementar, outros observadores falam-nos de uma categoria socioeconómica crescente de working poors, de assalariados que permanecem de maneira contínua numa situação de precariedade económica, se não de pobreza material, trabalhando ao mesmo tempo a tempo inteiro.

. Seguidamente, inúmeros estudos elaboram-nos a imagem de uma sociedade cada vez mais polarizada, baseada num regresso a uma lógica comercial pura, cada vez menos dominada, controlada e regulada pelos Estados nacionais que, perante os efeitos da mundialização e globalização da economia, perdem cada vez mais a capacidade de intervir e de salvaguardar os acervos sócio-históricos do welfare capitalism. Insiste-se muito no facto de o novo darwinismo social, que acompanha a filosofia do accionista e o princípio do the winner takes all, custar uma acentuação maciça das desigualdades sociais de todas as espécies.

. Por último, toda uma série de análises sociológicas com finalidades teóricas, de orientações metodológicas e de objectos empíricos muito diversos sublinham a emergência de uma espécie de novo ethos de trabalho e uma transformação profunda das exigências normativas dirigidas aos assalariados quanto às suas disposições mentais, morais e comportamentais.

Estas transformações em curso parecem já reflectir-se na linguagem à qual se recorre para se falar dos efeitos económicos e sociais. Assiste-se desde há uma dezena

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de anos ao nascimento do que se pode chamar com George Orwell de um newspeak. Entre os novos conceitos dos quais se serve correntemente a política de pessoal, rebaptizada de maneira consequente por human resources management, o conceito de ‘employability’ parece desempenhar um papel chave e representa como tal qualquer nova visão económica e social do estatuto de assalariado e da sua condição.

Frequentemente, estas mudanças sociais, cuja força reunida parece preparar uma mudança global de sociedade, são atribuídas à dinâmica externa às nossas sociedades contemporâneas; o conceito de “mundialização” em que cabe tudo serve para esconder a nossa ignorância no que diz respeito a estas transformações sociais radicais. Colando tal rótulo que serve para tudo nos fenómenos económicos, sociais e culturais mais diversos, as ciências sociais contemporâneas correm o risco de contribuir para a visão fatalista do mundo, já bem presente nas representações colectivas dos nossos contemporâneos, e de fazer esquecer que estas mudanças manifestam ou acompanham escolhas políticas e representam desafios de luta para o que se pode chamar com Weber e Bourdieu o monopólio de definição legítima da ordem social. A noção abstracta de “mundialização” não nos leva longe em matéria de diagnóstico dos tempos que correm e necessita de uma “operacionalização” face aos objectos empíricos tangíveis como o processo de construção da Europa sem fronteiras, que nos oferece um terreno de observação e de análise completamente relevante. Trata-se precisamente de um modelo de regulação política e económica transnacional que põe radicalmente em questão a soberania dos aparelhos estatais nacionais dos países implicados, produzindo efeitos de desregulação muito fortes dentro das sociedades em causa. Trata-se, do nosso ponto de vista, de um caso empírico exemplar – espécie de gigantesco laboratório político e social – para testar algumas das hipóteses teóricas que circulam no campo das ciências sociais e económicas contemporâneas.

É através do exemplo da política europeia de luta contra o desemprego dos jovens, analisada por um grupo de investigadores de diferentes países-membros, que gostaríamos de esboçar tal diligência. A partir do seu lançamento, por ocasião da Cimeira Europeia de Amesterdão, do que se chama hoje a “Estratégia Europeia

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para o Emprego”, esta foi apresentada como a tentativa de instauração de uma política social europeia voltada para categorias-alvo particularmente vulneráveis ao risco de desemprego e vítimas das disparidades, onde estão em primeiro lugar os “jovens”. O elevado nível da taxa de desemprego dos 15-24 anos, a insuficiência ou a inadaptação da sua formação, a sua demasiado fraca “empregabilidade” constituíram-se como problemas sociais à escala da Europa, enquanto as tradições em matéria de tratamento social do emprego dos jovens permaneceram fortemente diferenciadas. A adopção, em 1999, do “Pacto Europeu para o Emprego” e depois, em Dezembro de 2000, de uma “Agenda Social europeia” parece significar uma evolução gradual para criar na prática, pelo menos na retórica, uma política social europeia que se quer voltada para certas populações-alvo como os jovens. Antes de avaliar o “sucesso” ou o “malogro” de tal política, parece primeiramente necessário interpretar o seu significado e as condições da sua aplicação, que não existem num contexto de profundas diferenças nacionais, a fim de melhor apreender os traços que caracterizam um novo modelo de Estado Social emergente à frente dos nossos olhos, que pode qualificar-se de “social-liberal”.

Os casamentos sociais-democratas europeus e o nascimento de um “híbrido político”

Na origem da EEE, o governo francês desempenhou sem dúvida um papel decisivo: e, para muitos observadores e comentaristas, esta política é mesmo largamente de origem francesa. Durante a campanha legislativa de 1997, o Partido Socialista francês, nomeadamente através do seu primeiro-secretário Lionel Jospin, torna clara a necessidade de um “governo económico”, isto é, de uma coordenação das políticas económicas nacionais, para contrabalançar a independência futura do Banco Central Europeu (BCE) e a sua política ortodoxa, agindo de maneira voluntariosa contra o desemprego. Alguns meses após a chegada ao poder da “esquerda plural” em França, o pôr em prática a EEE, na sequência de um “Conselho Europeu extraordinário sobre o Emprego”, havido no Luxemburgo em Novembro de 1997, parece marcar tal momento como decisivo na construção da Europa Social, deixada unicamente até então ao jogo dos “actores sociais” mais legítimos, a alguns

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textos e directivas ainda pouco aplicadas e, em conformidade com o princípio de subsidiariedade, às “competências nacionais”.

Apesar das aparências voluntaristas, a EEE inscreve-se assim, sem ambiguidade, na agenda neoliberal europeia. Marca menos uma mudança do que uma aceleração das pressões para a restrição das despesas sociais e para a flexibilização do mercado de trabalho, dois motores da imposição das políticas neoliberais, na Europa como no resto do mundo. As Cimeiras Europeias de Amsterdão e do Luxemburgo não conduziram à criação de uma linha orçamental “federal” específica. Com efeito, concretizaram-se, como se sabe, pela elaboração de “pilares” e de “linhas directrizes”, de “planos nacionais de emprego” (discutidos em cada país pelo Estado e pelos parceiros sociais), acompanhados de um dispositivo global de avaliação institucional comunitária que visa controlar regularmente a aplicação das linhas directrizes nos países da União. Finalmente, tratou-se sobretudo de delinear a arquitectura duma concepção e duma prática europeia da política de emprego e, mais amplamente, do Estado Social, tentando superar as diferenças nacionais numa espécie de síntese orientada pelo realce das “boas práticas” e pela transposição dos “modelos de sucesso” nacionais. Mas a importação explícita de técnicas de avaliação de origem na gestão, o benchmarking da política de emprego, não é evidentemente o único elemento de inspiração “neoliberal” na estratégia europeia do emprego, mesmo se desempenha um papel importante, que vai no sentido de um “economicismo” generalizado da política pública através do domínio de critérios quantitativos restritivos e enviesados. A noção de “flexibilidade” não é retomada de forma explícita, nomeadamente devido às reservas francesas a empregar um vocabulário demasiadamente associado às políticas neoliberais, mas a filosofia social que a acompanha está omnipresente no pilar consagrado à “adaptabilidade” e no que se refere à “inserção profissional”. As noções de “empregabilidade”, de “aprendizagem ao longo da vida”, de “política activa de emprego”, o objectivo da “redução das despesas sociais ao nível dos baixos salários” e o combate contra os “desincentivos ao trabalho” são algumas das prioridades constantemente reafirmadas. O “espírito de empresa” (segundo eixo) contrabalança a referência, mais social-democrata, à “igualdade de oportunidades” (quarto eixo). A EEE pode assim ser descrita como uma síntese negociada do estado

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das filosofias da política em matéria de emprego nos países da União tal como têm estado cristalizadas, durante este período, nas instituições, nos dispositivos, nos léxicos e nas práticas. Esta filosofia evoluiu pouco entre 1997 e 2001 e conserva um carácter relativamente híbrido: saída de uma inflexão “voluntariosa” à escala da União, visa finalmente construir um quadro de referências comum ao conjunto dos parceiros a partir de situações nacionais diferenciadas. O primeiro trabalho da EEE, com efeito, consistiu em retraduzir na língua europeia os princípios e as práticas das suas próprias instituições e políticas em matéria de emprego. Mas, longe de consistir num impulso central muito coerente, os “pilares” e as “linhas directrizes” são antes o produto de negociações político-administrativas e retraduções múltiplas do nível nacional para o nível europeu (e vice-versa). A sua função pode ser descrita simultaneamente como unificadora e mobilizadora e é, sem dúvida, neste primeiro sentido que contribuiu para a realização da agenda neoliberal, não permitindo assim a aplicação real de uma política comum de emprego.

O uso de tecnologias procedentes da gestão em matéria de avaliação das políticas de emprego ilustra um aspecto importante da legitimação das políticas neoliberais: a construção oficial de categorias de avaliação das práticas e das instituições é, a partir de agora, parte integrante da própria política pública. Não é pois, portanto, surpreendente que um bom número de desafios da política europeia cristalize em torno da definição dos indicadores de “bom desempenho” em matéria de emprego.

As modalidades de aplicação do benchmarking europeu são o produto de uma interacção complexa entre o campo político-burocrático transnacional (a Comissão Europeia, o Conselho Europeu, o Comité do Emprego, etc.) e os diferentes campos nacionais (governos, ministérios do Trabalho, parceiros sociais, etc.). O círculo dos agentes que intervêm a montante na definição dos “bons indicadores” inclui um elevado número de responsáveis políticos, um elevado número de funcionários e economistas. Contudo, o resultado deste processo transnacional exprime-se, de maneira objectivada e brutal, na lista dos indicadores finalmente retidos para avaliar os desempenhos em matéria de emprego. Sem estar a entrar numa análise metódica do seu modo de definição e as condições de recolha das informações estatísticas que

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mereceriam, elas também, terem sido desenvolvidas mais longamente, satisfazer-nos-emos com alguns elementos de interpretação.

A EEE acompanha-se de maneira muito evidente de uma desvalorização relativa da taxa de desemprego mas a favor duma referência cada vez mais apoiada na taxa de emprego, que se torna, como pudemos constatá-lo nas várias entrevistas efectuadas com actores da Comissão Europeia, o principal indicador do estado global do mercado do trabalho, completado por diversas taxas de desempregos específicas que correspondem às categorias-alvo julgadas centrais (o desemprego dos jovens, o desemprego de longa duração). É uma nova definição de “pleno emprego”, neoliberal, que se impõe: o pleno emprego exprime a mobilização máxima da população “em idade de trabalhar”, sendo esta própria categoria definida de maneira extensiva, ao serviço da actividade económica. Recorde-se ao mesmo tempo que a categoria de desemprego se enraíza na história social longa dos contextos nacionais e das lógicas de regulação estatal da questão social do assalariado moderno produzidas através dum longo processo de “social learning” e que uma convergência de pontos de vista nacionais seria assim muito mais dificilmente realizável que no caso do uso da norma abstracta de pleno emprego. No caso dos jovens, a referência a este indicador exprime a desvalorização relativa da escolarização geral em oposição à aprendizagem. No caso das pessoas idosas, é uma outra formulação do estímulo a recuar a idade da reforma, na perspectiva do financiamento futuro das reformas, tomada desde há muito tempo como o problema principal da agenda neoliberal. Vários outros indicadores têm por objectivo medir de maneira mais precisa o que se pode chamar o esforço nacional em matéria de inserção de diversas categorias-alvo, nomeadamente pelo indicador da activação das despesas sociais.

A norma de pleno emprego: entre welfare e workfare

O sucesso da noção de taxas de emprego exprime de maneira sintética a filosofia social subjacente à nova concepção de “pleno emprego”. Exprime também muito bem o carácter híbrido das instituições político-económicas europeias. A noção beveridgiana e keynesiana de “pleno emprego” é re-utilizada mas redefinida num quadro neoliberal. Um dos múltiplos usos político-económicos da noção de

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taxa de emprego constitui uma resposta às desigualdades nas taxas de actividade de diferentes categorias (por exemplo, as mulheres), tema tradicional da retórica progressista: o aumento da taxa de emprego de categorias específicas com forte taxa de desemprego ou de inactividade visaria corrigir uma insuficiência do mercado que prejudica indevidamente tal ou tal categoria.

Mas o recurso à taxa de emprego abrange ao mesmo tempo um significado sem ambiguidade quanto ao lugar do sistema escolar ou quanto à protecção social. Aplicada às classes de idade jovens, significa em primeiro lugar um pôr em causa a política de acesso aos estudos superiores longos e um estímulo ao fim precoce da escolarização em proveito do desenvolvimento da aprendizagem, suposta ser muito mais eficiente em matéria de emprego dos jovens. Aplicada às classes de idade elevadas, significa sobretudo questionar o acesso “precoce” à reforma e uma filosofia restritiva quanto ao financiamento das reformas, que implica “reformas” relativas à idade da reforma e o seu modo de financiamento.

O “Estado Social” europeu é, por conseguinte, em primeiro lugar, um conjunto de estímulos ao trabalho para categorias inactivas, que tem como objectivo o alargar da base do financiamento da protecção social, diminuindo ao mesmo tempo o número de beneficiários “passivos” das larguezas do Estado Providência. A dimensão moral e moralizadora deste sistema é evidentemente central. E pode constatar-se as conotações puritanas de tal visão do “trabalho” e de “actividade”. A insistência no carácter activo do novo “Estado Social” europeu exprime-se também pelo sucesso de um discurso que acompanha o estímulo para pôr em prática uma definição de novas condições de adaptação da mão-de-obra às novas formas de trabalho. A “inserção”, que durante muito tempo foi pensada como um conjunto de direitos associados ao risco do desemprego e à entrada no mercado de trabalho, é agora concebida como um conjunto de “deveres” particulares das pessoas à procura de emprego e dos inactivos para se tornarem assalariados eficazes, incluindo na procura de emprego. Trata-se para eles de adaptar os seus pedidos e as suas disposições às novas condições de integração no mercado de trabalho, de se tornarem, de uma certa maneira, assalariados-empresários, responsáveis por valorizar o seu capital

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humano ao seu justo preço no mercado. Perante a emergência de tal espírito do capitalismo radicalizado e estendido aos próprios assalariados, não é pois por acaso que a resolução dos países-membros da UE, assinada em 1997 aquando da Cimeira do Luxemburgo, faça, como o constatamos no início, do conceito de employability um dos pilares essenciais de uma nova política de emprego. O conceito de employability é aí representado como a capacidade (ou as qualidades) que um assalariado dispõe para recorrer às suas competências ou, por outras palavras, a capacidade de incitar uma procura face à sua oferta sob a forma de força de trabalho.

A política europeia de emprego tem assim como objectivo explícito a criação de actores do mercado de trabalho. É retransmitida pela evolução dos dispositivos nacionais em matéria de “regresso ao emprego” e de subsídios de desemprego. Com o “plano de ajuda ao regresso ao emprego”, a filosofia do workfare estende-se sucessivamente na Europa. Em França, por exemplo, tende a forçar os desempregados, por um estímulo moral acompanhado duma obrigação jurídica, a aceitar os empregos que lhes são oferecidos. Na Alemanha ou na Bélgica, manifesta-se cada vez mais abertamente no contexto das políticas de ajuda social sob a forma de política de “activação” frequentemente de carácter muito vinculativo.

Trata-se de fabricar actores económicos móveis e flexíveis, ou seja, capazes de se orientarem em configurações económicas variáveis e de aceitarem normas de trabalho mais ou menos vinculativas (de acordo com os períodos, os sectores, etc.), sem referência a normas de qualidade do trabalho ou do nível de remuneração, ou ainda capazes de inovar e de aceitar os riscos associados à criação de empresas. Os jovens continuam no meio desta política de produção de habitus flexíveis ajustados a um cosmos económico, pensado como movente, vinculativo, incerto, sendo o risco instituído numa dimensão estrutural da actividade social.

A emergência da “juventude” como categoria onde cabe tudo que se refira à representação dos problemas económicos e sociais contemporâneos vai a par com o aparecimento de toda uma panóplia de discursos, que parece fazer das qualidades específicas ligadas à juventude a própria base desta nova concepção do capital humano.

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E isto em resposta às exigências impacientes de um mundo económico sujeito aos constrangimentos aparentemente incontornáveis e irreversíveis de uma nova dinâmica histórica do capitalismo em via de mundialização. Flexibilidade, mobilidade, aperfeiçoamento, meritocratismo, plasticidade, preços baixos, espírito de concorrência, submissão contínua a testes e a provas: são estas as necessidades materiais e simbólicas ligadas ao estatuto de “jovens” trans-substancializadas seguidamente em “virtudes” universais do novo tipo de capital humano aclamado e reaclamado pelo discurso neoliberal. Fazer do futuro assalariado um eterno jovem, aceitando como uma fatalidade o dever de participar numa corrida obstinada mas sem objectivo, porque acaba por não terminar realmente numa situação estável, reconhecida e assegurada. Adaptar-se-á mais facilmente à ideia de long life learning tanto quanto talvez nunca realmente sairá desta sala de espera apelativa onde se encontrará no meio de todo um exército de reserva de candidatos eternamente jovens, dado que de forma douradora estão desprovidos de qualquer estatuto social legítimo.

O tema da “activação” acompanha-se dum endurecimento dos sistemas objectivos de constrangimentos que pesam sobre as pessoas jovens à procura de emprego, os inactivos e mais largamente os beneficiários do Estado Social. O crescimento de todas as formas de enquadramento e de controlo social está associado logicamente a uma orientação cada vez mais restritiva em matéria de despesas sociais; as sanções em relação aos “maus” inactivos ou desempregados, ou seja, os agentes económicos acusados de aproveitarem passivamente as larguezas públicas, tendem a impor-se cada vez mais no debate público. Elas são cada vez mais avaliadas como tantos estímulos ao “regresso ao emprego”, o que contribui para a coerência global do sistema que se instaura: o controlo acrescido das despesas (restrições orçamentais) tem por efeito uma deslocação das despesas para o controlo dos beneficiários e este para a imposição do acesso ao emprego e do habitus flexível que o torna possível. O uso da noção de estímulo esconde assim o desenvolvimento das diversas formas de constrangimentos sociais que têm por objectivo transformar o Estado Social “passivo” em Estado Social “activo”. Para concluir, no que diz respeito mais especificamente aos “jovens”, a EEE é reveladora da filosofia social global, “social-liberal”, que compartilham os governos nacionais e as instituições da UE:

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a legitimação do acesso precoce ao emprego e à formação profissional (em oposição à escolarização geral prolongada); a necessidade de produzir junto dos jovens disposições flexíveis em relação ao mundo do trabalho, instaurando dispositivos vinculativos que visam legitimar e facilitar o regresso ao emprego dos jovens “mais desfavorecidos” (o que se traduz na “activação” das despesas sociais).

Longe de procurar assim simplesmente lutar contra a “precariedade” dos jovens (categoria que, até agora, não foi constituída como tal no espaço europeu e ainda menos a nível nacional), a estratégia europeia do emprego fornece sobretudo um quadro que visa promover de maneira estrutural a flexibilização do mercado de trabalho, que tem por objectivo levar os jovens a interiorizar as condições de acesso ao emprego dum mercado de trabalho fortemente desregulado: esta dupla dimensão liberal e vinculativa caracteriza bem um Estado social-liberal que conjuga um nível relativamente elevado de despesas sociais (deslegitimando ao mesmo tempo as receitas fiscais em nome do seu carácter “desincentivador”) e o fabrico sob constrangimento de habitus ajustados ao mercado do trabalho desregulado.

© Chomages et Précarité, l'Europe vue d'en Bas, 2003.

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iii. DESEmpREGO E pRECARIEDADE:

O pONTO DE vISTA DAS CENTRAIS SINDICAIS pORTUGUESAS

iii.1. O pONTO DE vISTA DA CGTp

"pRECARIEDADE NO EmpREGO"5

Um TEXTO DE JOAQUIm DIONíSIO6

As estatísticas evidenciam um crescimento acentuado da precariedade no emprego, que atinge no nosso país níveis muito elevados.

Mas em que consiste afinal esta precariedade de que tanto se fala? O que é que se considera um emprego precário?

Em princípio, consideramos emprego precário todo aquele que não corresponde a um vínculo permanente de trabalho, incluindo, entre outras situações possíveis, a contratação a termo, o trabalho temporário, a prestação de serviços e outras formas variadas de subcontratação.

Note-se que estas formas de contratação são quase todas legítimas e estão devidamente reguladas na lei, destinando-se normalmente à satisfação de necessidades temporárias das empresas, por exemplo, em actividades sazonais, prestação de serviços ocasionais e substituição de trabalhadores temporariamente impedidos de exercer a sua actividade (por doença, licença de maternidade, etc.).

5 Texto original, redigido expressamente para esta brochura. 6 Membro da Comissão Executiva e do Secretariado da CGTP-IN

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A precariedade manifesta-se, então, quando as referidas formas de contratação são utilizadas de forma abusiva, em desconformidade com as normas legais aplicáveis e de modo a privar os trabalhadores dos seus direitos laborais e sociais. Assim, tornou-se prática corrente a utilização destes tipos de contratos para o desenvolvimento de actividades de carácter permanente e ocupação de postos de trabalho normais nas empresas, designadamente:

A utilização de contratos a termo para satisfação de necessidades •permanentes das empresas e serviços, tanto no sector público como no sector privado, quando, de acordo com a lei, o contrato a termo só pode ser celebrado para satisfação de necessidades temporárias das empresas e pelo período de tempo necessário à satisfação dessas mesmas necessidades;

O recurso a contratos de prestação de serviços (os célebres «recibos •verdes») em situações e condições que juridicamente exigem a celebração de contratos de trabalho, sendo que, quando o prestador de serviços se encontra na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realiza a sua prestação sob as ordens e direcção deste, mediante retribuição, a lei presume a existência de um contrato de trabalho;

A utilização da figura do trabalho temporário de forma abusiva e ilegal, •para satisfação de necessidades permanentes e normais das empresas, contratando com empresas que não estão autorizadas a exercer a actividade de empresas de trabalho temporário, que está sujeita a alvará, sem sujeição a limites de duração e recorrendo à rotação sucessiva de trabalhadores no mesmo posto de trabalho;

O recurso a várias outras formas de subcontratação manifestamente ilegais •em que, sob a designação de contratos de prestação de serviços, se utilizam trabalhadores ligados a outras empresas, não autorizadas como empresas de trabalho temporário, que são colocados nas empresas recebedoras dos serviços, ficando sujeitos à sua autoridade e direcção.

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Para além destas formas de precariedade, que se traduzem na utilização abusiva e ilegal de formas de contratação previstas na lei, verifica-se ainda outro fenómeno, que remete para o chamado trabalho clandestino ou não declarado. O trabalho clandestino abrange actividades remuneradas que não são declaradas às entidades públicas, nomeadamente ao fisco e à segurança social, situando-se no domínio da economia subterrânea. Pode estar também ligado a actividades ilícitas e a imigração clandestina.

As Estatísticas do Emprego do INE permitem uma aproximação ao nível de precariedade do emprego existente em Portugal. De acordo com esta fonte, em 2007, mais de 870 mil trabalhadores tinha um contrato não permanente, abrangendo mais de 1/4 do total dos trabalhadores por conta de outrem. Mas serão certamente mais. A fonte utilizada subvaloriza o falso trabalho independente – que abrange algumas centenas de milhar de trabalhadores – e não capta o trabalho clandestino/não declarado. A sua natureza, contrária à Lei, dificulta a contabilização.

A precariedade do emprego tem vindo a aumentar no nosso país. Tomando apenas em consideração os contratos não permanentes, verifica-se que o seu peso no total dos assalariados passou de 12% em 1992 para mais de 22% em 2007. Aumentaram 47% só entre 1998 e 2007, sendo responsáveis por mais de 60% do crescimento do emprego nesse período.

A esmagadora maioria dos trabalhadores com contratos não permanentes encontra-se nessa situação porque não tem alternativa. De facto, segundo o dados do Eurostat referentes a 20067, mais de 80% dos trabalhadores em situação precária afirma não ter conseguido encontrar um emprego permanente, sendo a mesma percentagem de 71% para os menores de 25 anos - o que contraria a tese de que os jovens preferem não ter vínculo para não ficarem presos às empresas. Apenas 11% dos jovens e 6% do total dos trabalhadores referem ter escolhido este tipo de trabalho por frequência de ensino ou formação.

7 Labour Force Survey.

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Quando se compara a situação portuguesa com os restantes países da União Europeia, constata-se que Portugal ocupa o terceiro lugar do ranking da precariedade do emprego, apenas atrás da Espanha e da Polónia. A involuntariedade é também superior no nosso país (80%, como se referiu acima), embora seja norma por toda a União Europeia (mais cerca de 61% dos trabalhadores precários não encontra emprego permanente. O diferencial é ainda mais elevado no caso dos menores de 25 anos, uma vez que na União Europeia apenas 38% dos jovens têm contratos não permanentes por não terem conseguido encontrar um emprego permanente, estando 40% nessa situação por se encontrarem a estudar ou a frequentar acções de formação profissional.

Realidade imposta praticamente em todos os sectores, é entre os trabalhadores da construção, da hotelaria e restauração, do comércio e serviços que a precariedade do emprego assume maior expressão, embora esteja a aumentar nas actividades industriais. Na Administração Pública estima-se que sejam já mais 150 mil os trabalhadores precários, realidade com tendência para aumentar dado o ataque ao vínculo público e as tentativas de implementação do contrato individual de trabalho.

A precariedade e a instabilidade do emprego reflectem-se de modo muito negativo nas condições económicas e sociais e na vida das famílias e tem consequências profundas a todos os níveis da nossa sociedade. São a principal causa de desemprego e dão origem a salários mais baixos do que os dos restantes trabalhadores (27% abaixo do salário auferido pelos trabalhadores com vínculo permanente, segundo dados do INE).

Os trabalhadores precários têm piores condições de trabalho a todos os níveis, gozam de menos protecção laboral e social e, sob a constante ameaça da perda do emprego, perdem toda a capacidade de exercício e reivindicação dos seus direitos. São compelidos a aceitar condições de trabalho pouco dignas, com salários frequentemente abaixo dos mínimos convencionais e legais, com longas jornadas de trabalho e sem condições mínimas de higiene e segurança no trabalho; embora não disponhamos de números definitivos, constata-se que as empresas que mais

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recorrem ao emprego precário, registam mais acidentes de trabalho. Por outro lado, o baixo nível de qualificação e a elevada mobilidade desta mão-de-obra impedem a valorização profissional decorrente de uma carreira, acentuando o processo de desqualificação, agravado pelo facto de estes trabalhadores também não terem acesso a formação profissional. A tudo isto acresce ainda a desprotecção social decorrente de os períodos de emprego não serem normalmente suficientes para aquisição do direito a prestações sociais, como o desemprego, a doença ou a maternidade.

O trabalho precário torna-se frequentemente num círculo vicioso, em que são facilmente envolvidos aqueles que, por várias razões, ocupam posições já fragilizadas no mercado de trabalho, como sejam as mulheres, os jovens, os trabalhadores menos qualificados, os imigrantes, as pessoas com deficiência.

Os dados estatísticos são elucidativos:

A precariedade é tanto maior quanto menor for a idade do trabalhador •(53% dos menores de 25 anos tinha um contrato não permanente em 2007, percentagem mais elevada no caso das jovens raparigas), mas está em crescimento entre outras faixas etárias (aumentou 67,5% no grupo dos jovens de 25 a 34 anos entre 1998 e 2007)8;

Os contratos não permanentes atingem metade dos imigrantes •assalariados9;

Os trabalhadores não qualificados têm uma probabilidade duas vezes mais •elevada de ter um contrato não permanente do que os quadros superiores e dirigentes10;

8 Inquérito ao Emprego, INE.9 Idem, dados de 2006.10 Idem.

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Quase 2/3 dos trabalhadores com contrato precário têm no máximo o 9º •ano de escolaridade11.

Não se deve ignorar, no entanto, que a precariedade está a alastrar a outras camadas anteriormente mais protegidas, como entre os trabalhadores mais idosos, entre os mais escolarizados ou com profissões muito qualificadas (a título de exemplo refira-se que, entre 1998 e 2007, o crescimento dos contratos não permanentes ultrapassou os 91% entre os quadros e dirigentes e 74% entre as profissões intelectuais e científicas, tendo aumentado 34% no caso dos trabalhadores não qualificados).

Os defensores das formas de trabalho “flexíveis” afirmam frequentemente que a precariedade é uma situação transitória de onde se parte para chegar a um vínculo laboral estável. A realidade, porém, é que os vínculos laborais precários tendem a arrastar-se no tempo. Senão vejamos: em 2005, quase metade dos trabalhadores portugueses afirmava ter um contrato não permanente há mais de 3 anos12. Por outro lado, é cada vez menor a percentagem de trabalhadores com contrato a prazo que passado um ano consegue obter um contrato de trabalho efectivo (11% em 2007 face a 22% em 1998)13.

As pressões hoje exercidas no sentido de tornar o emprego mais flexível e mais adaptável para dar resposta às necessidades competitivas das empresas na economia globalizada vão no sentido da desregulamentação dos mercados de trabalho, alegando-se que foi a rigidez das regras laborais vigentes que conduziu à progressiva precarização das relações de trabalho e à segmentação do mercado de trabalho entre trabalhadores com vínculo permanente e trabalhadores precários e que as formas tradicionais de contratação laboral já não têm lugar no mundo actual. É um discurso contraditório cuja concretização conduzirá inevitavelmente a mais instabilidade e precariedade sendo evidente que, num mercado de trabalho ainda

11 Labour Force Survey, Eurostat12 Idem.13 Ver nota 2.

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mais desregulamentado, as principais vítimas serão novamente aqueles que já hoje ocupam uma posição mais vulnerável.

Não acreditamos que as mudanças económicas e sociais imponham a precarie dade. Pelo contrário, é hoje cada vez mais assumido que o principal factor de produtividade e de competitividade assenta na qualidade do trabalho, o que compreende factores como a qualificação, a estabilidade de emprego, um salário adequado, a segurança no trabalho e a participação dos trabalhadores na vida das empresas. A estabilidade de emprego é um factor importante porque motiva os trabalhadores e incentiva o investimento das empresas na força de trabalho; pelo contrário, os empregos de curta duração não estimulam nem a empresa nem os trabalhadores a investir na formação e na qualificação.

iii.2. O pONTO DE vISTA DA UGT

"pRECARIDADE LABORAL COmpROmETE JUSTIçA SOCIAL

E pROGRESSO ECONÓmICO"14

Um TEXTO DE JOãO pROENçA15

Em Portugal a precariedade, nas suas diferentes formas, tem vindo a aumentar, pondo em causa a coesão social e agravando a pobreza e a exclusão.

A precariedade atinge sobretudo os novos contratos, ou seja, aqueles que se encontram à procura de emprego, sobretudo os jovens e as mulheres regressadas ao mercado de trabalho.

Para muitas empresas, o recurso ao trabalho precário tornou-se a forma normal de contratação e não pode ser vista como um prolongamento do período experimental, mas antes permitindo a substituição permanente de trabalhadores e a insegurança do emprego.

14 Texto original, redigido expressamente para esta brochura.15 Secretário-geral da UGT

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E também aqui as empresas atingem outros objectivos: dificultar a sindicalização e promover uma concorrência desleal entre empresas, pelo desrespeito, pela negociação colectiva e pela violação sistemática da lei.

Neste momento, as formas mais comuns de precariedade nas relações de trabalho são:

Os contratos a prazo;•

A falsa prestação de serviços (os falsos “recibos verdes”);•

O trabalho temporário;•

Múltiplas formas de subcontração, que escondem trabalho subordinado;•

O trabalho sazonal sem contrato escrito;•

O trabalho pontual ou ocasional;•

O trabalho a tempo parcial, que não obstante ser pouco expressivo, é na •sua maioria involuntário por parte dos trabalhadores.

A maior parte destes trabalhadores ocupam postos de trabalho que correspondem a necessidades permanentes de serviço.

Actualmente Portugal, ao lado da Espanha e da Polónia, faz parte dos países comunitários com maior nível de precariedade. Mas ao contrário de Espanha, em que existe um acordo tripartido de combate ao trabalho precário (precedido de um acordo bilateral entre trabalhadores e empregadores), que vem diminuindo a precariedade, em Portugal a precariedade tem vindo a aumentar. E tudo isto com grande inoperância da Inspecção Geral de Trabalho, face às violações sistemáticas da lei.

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Mas será que esta precariedade aumenta a produtividade e a competitividade e por essa via cria mais postos de trabalho? Não, pois tal aumenta a aposta num trabalho menos qualificado e mal remunerado, atingindo muitos jovens com níveis superiores de qualificação, que não encontram postos de trabalho adequados.

O nosso futuro está na aposta na melhoria das qualificações, o que exige formação ao longo da vida, necessariamente associada a relações de trabalho estáveis.

Aliás é de salientar que as empresas e sectores com maior nível de produtividade são aquelas que têm menor nível de precariedade e que mais apostam na formação profissional, começando na própria fase de recrutamento. Assim acontece em sectores que se modernizaram, como o bancário (apesar de virmos a assistir ao excessivo recurso à subcontratação) e às empresas multinacionais que atingem no nosso País dos níveis mais elevados no conjunto do próprio grupo empresarial (comparando com estabelecimentos situados noutros países europeus).

Também na União Europeia, face aos desafios da globalização se tem vindo a assistir a opções pelo caminho mais fácil e imediato, sustentando-se numa abordagem neo-liberal da economia que conduziu à desregulamentação social, com impactos sobre os cidadãos e sobre os trabalhadores que não podem ser ignorados ou esquecidos, nomeadamente o aumento do desemprego, da pobreza e da exclusão social, o desrespeito pelo direitos dos trabalhadores e pela negociação colectiva, e a redução dos níveis de protecção social.

Esta desregulação – que os sindicatos vêm combatendo – põe em causa a Europa Social e o próprio modelo social europeu, dimensão que esteve na base da reconstrução da Europa no pós-guerra e que tem sido uma importante – senão a principal – vantagem comparativa da Europa, que lhe permitiu atingir e assegurar a sua posição privilegiada no contexto mundial, sendo a região com os mais elevados níveis de produtividade, de competitividade e de desenvolvimento económico e social.

E põe ainda em risco o apoio dos cidadãos e dos trabalhadores ao projecto

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de aprofundamento da integração europeia, como aliás ficou bem claro aquando da discussão e dos referendos sobre o Projecto de Tratado Constitucional.

A adopção da Estratégia de Lisboa em 2000, completada com o Conselho Europeu de Gotemburgo (2001), visava promover uma estratégia de desenvolvimento sustentado e harmonioso da União Europeia, baseado em três pilares igualmente relevantes: económico, social e ambiental. Ora, até 2005 – período em que a Estratégia de Lisboa foi revista – não só a implementação da Estratégia de Lisboa foi claramente insuficiente na generalidade dos Estados-membros, como foram insatisfatórios os seus resultados em termos de crescimento económico, mas sobretudo em termos de emprego, desemprego e progresso social.

Após 2005, a Estratégia de Lisboa revista, se teve o mérito de relançar a discussão e os compromissos em termos de crescimento económico e de emprego, relegou para um plano secundário a coesão social e a sustentabilidade ambiental, o que mereceu profundas críticas do movimento sindical europeu e da UGT.

Nestes anos mais recentes houve progressos importantes, realçando-se não só um bom ritmo de crescimento económico da União Europeia, mas também a criação de um número importante de empregos, a redução do desemprego para níveis que já não se registavam há muitos anos, bem como uma subida da taxa de actividade, entre outros aspectos.

Contudo, se a criação de empregos é positiva e certamente defendida pelos sindicatos, não podemos aceitar que o aumento do emprego seja conseguido à custa da falta de qualidade do emprego e do bem-estar dos trabalhadores. E o aumento da precariedade – ainda que de difícil mensuração, sobretudo dada a complexidade do conceito – tem sido confirmado por fontes muito diversas, desde os Inquéritos às Forças de Trabalho (Eurostat), aos relatórios da Fundação Dublin ou ainda a diferentes fontes nacionais.

No caso português, a situação no mercado de emprego é bastante mais complexa e problemática.

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Com efeito, não só o desemprego não se reduziu, como pelo contrário tem vindo a aumentar, tendo o seu nível duplicado entre 2000 e 2007. A taxa de desemprego foi de 8.0% em 2007, ano em que, pela primeira vez desde a nossa integração na CEE, ultrapassámos a média comunitária.

Por seu lado, o crescimento do emprego foi pouco expressivo e ainda assim fortemente associado a um crescimento da precariedade e da instabilidade do emprego. Tenhamos presente que, em 2007, o número de trabalhadores com contrato a termo cresce 8.0% e, em contrapartida, o número de trabalhadores com contrato sem termo regista um decréscimo de 2.2%.

Importa, desde logo, desmistificar a ideia, que alguns procuram introduzir nos debates, quanto ao facto da precariedade laboral dever ser entendida como um elemento positivo, associado à necessidade de uma maior adaptabilidade por parte das empresas.

Se é verdade que em todos os países europeus sempre existiu alguma precariedade legal, instrumento favorável à adaptação das empresas, a sua reduzida dimensão e o seu carácter transitório não punham em causa os direitos dos trabalhadores, os seus salários, a sua progressão salarial e na carreira, bem como o acesso à formação e à qualificação.

Actualmente não podemos ignorar o aparente “carácter estrutural” desta precariedade, com os trabalhadores a serem arrastados num círculo vicioso de sucessivos contratos precários e de situação de desemprego, nem a sua elevada expressão no mercado de emprego.

E hoje o elevado nível de precariedade em Portugal não só é extremamente preocupante do ponto de vista social, como compromete a nossa competitividade e o próprio desenvolvimento do País.

Um dos principais desafios e prioridades para o nosso País é o de combater

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o desemprego e o de criar empregos de qualidade. Nesse sentido, considera-se particularmente importante:

Uma reorientação das politicas económicas, viradas para o crescimento •económico e para a criação de empregos;

A rápida revisão das politicas activas de emprego, respondendo às •necessidades de determinados grupos mais fragilizados no acesso ao trabalho, mas assumindo-se também como um instrumento fundamental na promoção da qualidade do emprego;

O combate à precariedade do emprego;•

O aumento da qualidade do emprego, nas suas múltiplas dimensões.•

Nesse sentido, parece importante referir a Campanha “Trabalho Digno, Vida Digna” liderada pela CSI – Confederação Sindical Internacional e CES – Confederação Europeia de Sindicatos, na defesa de empregos estáveis e de qualidade à escala mundial, do respeito pelos direitos fundamentais, dos trabalhadores, incluindo os migrantes, de uma protecção social justa e universal e do diálogo social, sustentados por políticas de apoio ao desenvolvimento.

Todas as pessoas têm direito ao trabalho, a boas condições de trabalho e a um rendimento suficiente para as suas necessidades económicas, sociais e familiares mais elementares, direito esse que deveria ser concretizado através de salários que permitam níveis de vida decentes.

O combate à precariedade é hoje uma grande prioridade para a UGT e estará presente na próxima revisão do Código de Trabalho.

Queremos melhorar a adaptabilidade das empresas à mudança, através do reforço da negociação colectiva, conciliando os interesses das empresas com os dos

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trabalhadores e a necessária conciliação entre a vida profissional, as responsabilidades familiares e as aspirações pessoais.

Para a UGT, o combate à precariedade não se esgota na legislação laboral, mas esta é um instrumento fundamental para o reforço da negociação colectiva, o combate ao falso trabalho independente e o respeito pela lei e pelos acordos de negociação colectiva.

Exige-se a utilização de outros instrumentos, nomeadamente através das políticas activas de emprego e o custo acrescido, em termos de segurança social, para o trabalho precário.

O debate sobre flexigurança na forma que alguns pretendem com mais flexibilidade para as empresas e mais segurança (por maior protecção no desemprego e maiores apoios à mobilidade) para os trabalhadores, merece total rejeição da UGT.

Não aceitamos a importação de modelos estrangeiros que não têm qualquer adaptação à realidade nacional.

O que desejamos é uma maior adaptabilidade no emprego, com interesse mútuo para trabalhadores e empregadores e maior segurança no emprego, também com vantagem simultânea para trabalhadores e empregadores (associado à melhoria das qualificações profissionais).

A aposta na melhoria da qualidade do emprego tem que ser a prioridade, associando crescimento, competitividade e emprego, ou seja combinando a dimensão económica com a dimensão social.

É este o modelo que desejamos para Portugal, na base do modelo social europeu, combatendo a desregulação laboral e promovendo a coesão social.

© Chomages et Précarité, l'Europe vue d'en Bas, 2003.

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iV. AS RAZÕES DA pOBREZA E AS pOLíTICAS SOCIAIS

“pOBREZA, BAIXOS SALáRIOS E míNImOS SOCIAIS:

pARA REFORmAS ESTRUTURAIS”

Um TEXTO DE pIERRE CONCIALDI

O recente aumento vertiginoso do número de beneficiários do RMI – 9,4%, em 2004 – veio recordar-nos, se necessidade houvesse, que a pobreza permanece um fenómeno de massas em França. O que fazer para lutar contra a pobreza? Para dar uma resposta pertinente a esta pergunta, é necessário sobretudo interrogarmo-nos sobre as razões desta pobreza e sobre os processos que a alimentam. É principalmente sobre esta questão que incidirá o presente artigo.

Desigualdades e pobreza: onde é que se está?

De acordo com os indicadores oficiais do Insee, as desigualdades e a pobreza não aumentaram desde o início dos anos 80. Este diagnóstico é contrariado por outros indicadores, como o Barómetro das Desigualdades e da Pobreza (BIP 40), bem como pelas mensagens de alerta enviadas ano após ano por todos os actores no terreno e pelas associações caritativas. Onde está, por conseguinte, a verdade? Se nos limitamos à pobreza monetária, em que se baseia o diagnóstico Insee, a primeira certeza é que os números oficiais ignoram uma das transformações essenciais destes quinze últimos anos, nomeadamente o extraordinário aumento dos rendimentos do património. Desde o fim dos anos 80, estes rendimentos tiveram um crescimento excepcional: 160% em euros constantes desde 1988. Representam hoje, em média, cerca de 3300 euros por ano e por família. No mesmo período de tempo, a massa total do rendimento disponível das famílias aumentou aproximadamente cerca de 35%. Ora, o Insee não tem em conta a quase totalidade destes rendimentos.

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Isto significa diminuir em cerca de 20% o limiar de pobreza e o número de pobres. Com um impacto tão forte no nível da pobreza, tem-se dificuldade em acreditar que o formidável desfasamento observado nestes quinze anos entre o crescimento dos rendimentos do património e o dos outros rendimentos não teve incidência na evolução da taxa de pobreza.

Todos estão, contudo, de acordo com o facto de a pobreza não se poder reduzir simplesmente a uma falta de rendimentos; é também, mais global e essencialmente, a incapacidade na qual se encontram as pessoas para aceder a diversos direitos fundamentais. É esta abordagem da pobreza e das desigualdades que procura delimitar um indicador como o BIP 40. E aí tem-se uma segunda certeza: sobre as várias dimensões fundamentais (saúde, alojamento, emprego, rendimentos), as desigualdades e a pobreza têm de facto aumentado, e muito, nestes últimos vinte anos. Os testes de sensibilidade que foram efectuados ao BIP 40 mostram, sem qualquer ambiguidade: independentemente das ponderações retidas e as variáveis tidas em conta, a amplitude da mudança ocorrida nesta última vintena de anos é maciça.

Deste modo, pode dizer-se que houve pois uma mudança estrutural de grande amplitude desde o início dos anos 80, quer na repartição dos rendimentos, quer no acesso a muitos direitos fundamentais. Pode querer ter-se a vontade de fazer como a avestruz ou minimizar grosseiramente a amplitude desta realidade, como tenta fazê-lo o Insee, mas desta forma não ajuda certamente a desenvolver a reflexão.

Desemprego, baixos salários e trabalhadores pobres

Durante os trinta últimos anos, a face da pobreza alterou-se profundamente. A pobreza atinge agora muito menos que no passado as zonas rurais e as pessoas idosas, e tende a concentrar-se nas famílias de activos e, sobretudo, de assalariados ou de desempregados. Em meados dos anos 90, uma maioria de pessoas pobres pertenciam a famílias de desempregados ou de assalariados (53% em 1994, contra 42% em 1989). É neste contexto que reapareceu desde há alguns anos a questão dos baixos salários e da pobreza de trabalhadores a tempo inteiro.

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A constatação estatística não oferece qualquer ambiguidade, mas também sem grande surpresa: quanto mais nos afastamos do emprego estável para nos aproximar das zonas de emprego precário e flexível ou das alternâncias entre desemprego, emprego e inactividade, mais o risco de pobreza aumenta. O emprego de qualidade permanece por conseguinte a primeira muralha contra a pobreza.

É importante estabelecer aqui uma distinção entre os trabalhadores pobres e os trabalhadores de baixos salários. Um índice permite ter em conta este desfasamento: se a população dos trabalhadores pobres é maioritariamente masculina (mais de 60%), a dos trabalhadores de baixos salários é quase 80% feminina. Uma minoria de assalariados de baixos salários é constituída por trabalhadores pobres. No entanto, as trabalhadoras de baixos salários ganham menos que salário mínimo e, entre elas, mais de 40% ganham menos de 75% do salário mínimo. O facto de se raciocinar ao nível da família para medir a pobreza afasta contudo um grande número destas assalariadas da categoria dos trabalhadores pobres. É legítimo? Esta pergunta deu azo a muitos debates, porque minimiza, de acordo com certos autores, a inferioridade na qual as mulheres são mantidas no mercado de trabalho.

Na realidade, os dois fenómenos – trabalhadores de baixos salários e trabalhadores pobres – são ambos preocupantes mas não levantam as mesmas perguntas. Mais precisamente, o desenvolvimento dos baixos salários constitui sem dúvida o sintoma mais visível hoje das desigualdades entre homens e mulheres nas condições de emprego. Em contrapartida, a questão dos trabalhadores pobres resulta, em grande parte da desvalorização do trabalho que tem sido observada desde há quinze anos.

Existe evidentemente uma relação entre os dois fenómenos. Mas esta ligação não se resume a uma lapalissada, segundo a qual o risco de pobreza é mais elevado com um baixo salário do que com um salário elevado. Mantermo-nos nesta ideia e sugerir subvencionar os baixos salários para retirar os assalariados da pobreza seria um erro. Porque esta visão meramente estatística e estática das coisas não permite compreender os processos em funcionamento e a dinâmica que se instalou no mercado de trabalho desde há uma vintena de anos.

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Desemprego e políticas públicas: uma engrenagem infernal

Com a instalação de um desemprego de massa, a ideia impôs-se entre todos os governos – de esquerda como de direita – que a única maneira de lutar contra o desemprego seria baixar o custo do trabalho e desregular o mercado de trabalho. Daí a multiplicação de empregos apoiados, o disparar dos empregos atípicos, das subvenções ao trabalho a tempo parcial, seguidamente as exonerações de contribuições sociais “nos baixos salários”. O balanço destas medidas, em termos de emprego, marca claramente um malogro: o desemprego e o subemprego nunca foram tão elevados. A análise mostra, antes pelo contrário, que há uma lógica keynesiana que permite ter em conta as diferenças de criações de empregos entre períodos de tempo, contribuindo a redução do tempo de trabalho também fortemente. Para os assalariados em causa, a ideia que estes “bocados” de emprego poderiam constituir uma via para o emprego estável é também ela desmentida totalmente por todos os estudos. Por outras palavras, contrariamente à ideia defendida pelos seus promotores, o desenvolvimento dos empregos apoiados ou dos empregos de baixos salários não constituiu nenhuma via para o emprego estável, mas, antes pelo contrário, favoreceu o desenvolvimento de zonas cinzentas e um verdadeiro halo de pobreza e de precariedade, no qual se encontra afundada uma massa crescente de assalariados.

A instauração do Prémio Para o Emprego (PPE) aparece como o prolongamento lógico destas políticas. O consenso que se tinha desenvolvido quanto às reduções das contribuições sociais entre, por um lado, os economistas neo-keynesianos, preocupados em preservar os instrumentos da coesão social como o salário mínimo e, por outro lado, os liberais, desejosos para reduzir custasse o que custasse o custo do trabalho e para aumentar a rentabilidade do capital, encontrou com o PPE um epílogo inequívoco.

Porque instaurar um imposto negativo, é reconhecer não somente que não é possível aumentar o salário mínimo nacional líquido, mas também que seria necessário que ele baixasse. Em face dos limites evidentes das políticas de isenção de contribuições sociais, e quase “fazendo o pleno” das isenções possíveis, isto era a

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única via lógica deste tipo de política. Esta via não era frontalmente aceitável num governo social-democrata preocupado em preservar o símbolo do salário mínimo nacional. Mas a multiplicação de salários mínimos introduzidos pelas Leis Aubry sobre a redução do tempo de trabalho já tinha contribuído para baralhar esta norma essencial. A direita, que entretanto voltou ao poder, prepara-se provavelmente para ratificar e de forma duradoura esta desconexão ao salário mínimo nacional, voltando ao princípio de uma participação nos frutos do crescimento. É, em todo caso, a ameaça que se perfila a muito curto prazo.

Em resumo, as políticas públicas, longe de travarem a pressão do desemprego sobre as condições de emprego e de salário, acompanharam e reforçaram este movimento, gerando um verdadeiro círculo vicioso. A pressão do desemprego permitiu legitimar políticas de redução dos salários e de flexibilização da mão-de-obra e estas políticas, por sua vez, alimentaram o subemprego e a precariedade. Este movimento legitimou, sob o diktat do “controlo” das despesas sociais, políticas sociais ainda mais restritivas (“orientadas” ou “selectivas”, na gíria dos economistas) a fim de apoiar “os que têm mais necessidade”. E estas políticas sociais contribuíram para fragilizar ainda mais os assalariados mais vulneráveis. Esta engrenagem traduz-se hoje pela ameaça duma concorrência aberta (livre e não falseada) entre os Rmistas aos “contratos de futuro”, muito largamente subvencionados, e os assalariados precários.

Uma degradação sem precedentes da condição salarial

Para nos apercebermos da dimensão do fenómeno que se instalou desde há mais de uma vintena de anos no nosso país, pode considerar-se alguns números e resumi-los num indicador. Os rendimentos de actividade constituem para a imensa maioria das famílias a principal fonte de rendimentos. Ora, a parte destes rendimentos de actividade caiu consideravelmente desde há vinte e cinco anos. Entre 1978 e 2003, a parte dos rendimentos líquidos de actividade no rendimento disponível das famílias diminuiu de mais de 14 pontos, passando de 67% para 52,7%. Por outras palavras, o trabalho paga cada vez menos.

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Mais da metade desta baixa é imputável à diminuição dos salários líquidos, enquanto a proporção de empregos assalariados continuou a aumentar, de 83,6%, em 1978, para 91,4%, em 2003.

A explicação essencial reside na estagnação dos salários reais desde há vinte anos: nos últimos vinte cinco anos, o poder de compra do salário médio aumentou de 0,2% a 0,3% por ano. Esta quase estagnação do poder de compra é ainda mais notável quanto o nível médio de qualificação da mão-de-obra assalariada não cessou de aumentar ao longo de todo o período. A qualificação constante, o salário líquido médio conheceu uma perda de poder de compra compreendida entre (- 4%) e (- 8%), desde 1978.

Até ao final dos anos 80, as prestações sociais permitiram, até certo ponto, compensar esta degradação, mas este movimento diminuiu de intensidade no fim dos anos 80 e, desde 1993, a parte das prestações sociais no rendimento das famílias diminuiu.

Pode construir-se uma medida sintética do impacto destas evoluções no nível de vida das famílias de assalariados e de desempregados construindo um indicador que tem em conta os salários líquidos e as prestações sociais (excluindo pensões e pré-reformas) das famílias em causa. Este indicador permite responder à pergunta seguinte: se as famílias de assalariados ou de desempregados só dispusessem destes únicos rendimentos, como é que teria evoluído o seu nível de vida em comparação com a média das famílias? O gráfico responde a esta pergunta: desde 1982, o nível de vida relativo destas famílias caiu fortemente. Hoje, o lugar das famílias de assalariados ou de desempregados na escala dos níveis de vida é comparável à que prevalecia em meados dos anos 50.

Este indicador dá uma medida da fragilidade e da insegurança económica e social em que encontram hoje uma proporção considerável dos assalariados. Porque se trata apenas de uma média, alguns puderam fazer melhor, mas outros não. Houve assalariados que puderam dispor de rendimentos do património para amortecer estes choques enquanto outros não. Se se coloca a hipótese razoável

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que são os assalariados da parte inferior da escala que, em média, sofreram em cheio estas mudanças – acumulando o não às duas alternativas precedentes – fica-se, sem dúvida, com uma melhor noção do desafio actual. A pobreza fora do trabalho e no trabalho é apenas a ponta do iceberg duma precariedade que corrói o assalariado. Pretender lutar contra a pobreza sem se estar a ter em conta estes processos, é correr inevitavelmente para o malogro.

Vinte e cinco anos de pobreza relativa crescente

O que fazer? E primeiro nada fazer...

Vê-se, a constatação é sombria. E é bastante mal intencionado quem quer dar uma solução, toda ela acabada, ao problema. A análise precedente desemboca numa convicção: os défices sociais acumulados desde há mais de uma vintena de anos só podem ser preenchidos por uma política voluntariosa que vire deliberadamente as costas aos erros do passado e se inscreva na única perspectiva que é hoje aceitável, a do regresso ao pleno emprego “de qualidade”. Esta análise assenta também numa certeza: não se pode tomar seriamente esta questão da pobreza monetária pretendendo-se apenas interessar-se pelos mais pobres dos assalariados ou dos desempregados, ou pelos pobres “oficialmente contados”.

Em primeiro lugar, porque esta maneira de considerar as coisas conduziria a introduzir novas segmentações entre aqueles que seria necessário ajudar e os outros,

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formalizando de maneira insidiosa uma distinção muito discutível entre “empregáveis” e “não empregáveis”, distinção esta da qual não se vê sobre que critérios relevantes legítimos poderia estar fundamentada. Na sua grande maioria, os Rmistas de hoje teriam sido ontem desempregados compensados, indemnizados. Além disso, em vez de reforçar uma capacidade de resistência do assalariado, que foi eliminada pela dura prova da situação do desemprego de massa, tal abordagem poderia apenas aprofundar o seu rompimento e enfraquecer a capacidade dos assalariados de ponderarem as suas escolhas. Uma democracia não pode satisfazer-se com tal desequilíbrio de relações de força.

Em seguida, como se acaba de sublinhar, porque a questão da pobreza está estreitamente ligada à da condição salarial como um todo. A escolha não é entre a América sem dinheiro e a Europa desempregada. Porque é precisamente porque a Europa está sem empregos que ela ficará igualmente sem dinheiro (pelo menos os assalariados). As soluções liberais ou sociais-liberais que pretendem dar uma resposta à questão da pobreza monetária à força de empregos apoiados e de subvenções “orientadas” estão destinadas ao fracasso. Seria como se quisessem subir do fundo do porão os que se começam a afogar para apanhar ligeiramente ar sem se preocuparem com o facto de a embarcação estar a afundar completamente. Isto pode significar bons sentimentos, mas isto não impedirá o naufrágio de toda a tripulação. É necessário colmatar as brechas, salvar e colocar a embarcação correctamente sobre as águas. Para desencadear este movimento, é necessário primeiro sair das velhas obsessões liberais.

Se há uma constante no discurso económico neoliberal, é efectivamente a que consiste em agitar ameaças. Este discurso não propõe de forma alguma bons dias para o futuro. Insiste sobretudo nas catástrofes que nos esperam se a política económica não se conformar aos seus dogmas. “Não aumente os salários e os mínimos sociais, se não cuidado com o emprego”: e quantas vezes não ouvimos este discurso insidioso! Esta postura ideológica foi bem analisada por Polanyi: a força deste raciocínio reside na impossibilidade de demonstrar o carácter utópico desta fuga para a frente, para cada vez mais e mais mercado e para cada vez, menos, menos regulações.

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Porque não se poderá nunca demonstrar que uma sociedade entregue unicamente ao jogo dos mecanismos de mercado não pode fazer melhor do que o que se faz hoje. Pela simples razão de que até agora nenhuma experiência humana permitiu verificar esta ideia.

Os limiares de pobreza monetária: atenção, perigo!

A análise da pobreza monetária faz referência a limiares de rendimentos que são definidos por uma certa percentagem de um valor característico da distribuição dos rendimentos (por exemplo, a média ou a mediana).

Um tal limiar, meramente estatístico, é completamente convencional e não pode pretender ter um valor normativo. Este tipo de abordagem permite essencialmente, a partir de inquéritos feitos junto das famílias, recensear a pobreza e elaborar a fotografia. Mas considerar apenas um limiar único de pobreza monetária não tem sentido. Primeiro, porque é bem evidente que na vizinhança de um ou dois euros, duma e doutra parte do limiar, a situação real das pessoas não é nada diferente. Considerar que uns são pobres e outros não são seria absurdo. Seguidamente, porque existe uma fortíssima concentração na parte inferior da distribuição dos rendimentos. Eventualmente, passando do limiar Insee (50% do rendimento mediano) para o limiar Eurostat (60% do rendimento mediano), o número de pobres salta de 3,6 milhões para 7,2 milhões, ou seja, duplica. É muito mais útil e mais relevante que a análise considere dois ou três limiares, a fim de seguir a evolução das populações em situação ou risco de pobreza. Por exemplo, é interessante observar que se a pobreza baixou entre 1996 e 2001 para o limiar de 50%, a taxa de pobreza para as pessoas cujos rendimentos são compreendidos entre 50% e 60% do rendimento mediano, permaneceu-lhe estável, em 6,3% (ou seja, 3,6 milhões de pessoas), marcando a inscrição maciça na nossa sociedade de populações muito vulneráveis.

Não se pode assim fazer como se exista apenas um limiar de pobreza monetário, e tanto quanto, ao contrário dos Estados Unidos, a administração francesa não assume a obrigação de produzir um limiar de pobreza para orientar as políticas sociais.

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E de resto, até meados dos anos 90, ter-se-ia procurado em vão tais estatísticas, porque muito simplesmente não eram produzidas pelo sistema estatístico público. Se a fixação de limiares de pobreza monetária é, apesar dos seus limites, necessária para recensear os pobres e caracterizá-los, o uso destes limiares em nível é muito mais criticável, nomeadamente quando se trata de os comparar com casos-tipo, por exemplo, ao rendimento de um celibatário com o rendimento mínimo nacional. A razão principal tem a ver com a subestimação bem conhecida dos rendimentos nos inquéritos junto das famílias. É lógico e normal, para recensear pessoas pobres, reter um limiar de inquérito coerente com os rendimentos deste mesmo inquérito, senão não se saberia utilizar tais limiares para compará-los com situações supostas reais. A diferença não é pequena e corre o risco de seriamente falsear o diagnóstico. O quadro seguinte compara assim os limiares de pobreza monetária publicados pelo Insee e os mesmos limiares calculados a partir dos rendimentos reais das famílias.

Um solteiro com o salário mínimo nacional e a tempo inteiro recebe hoje entre 925 e 1060 euros: no entanto, é difícil dizer-se que escapa de maneira evidente à pobreza monetária. No caso de todas as outras configurações familiares, para as quais existe apenas um só salário mínimo nacional a tempo inteiro, as famílias em causa encontram-se em todos os casos abaixo do limiar de pobreza mais fraco (1). Os limiares de pobreza monetária calculados a partir dos rendimentos reais das famílias não constituem "a verdade". Mas é certo que constituem, e de longe, o menos mau indicador para efectuar este tipo de comparação e situar o nível de vida relativo de diferentes famílias.

Limiares de pobreza para uma pessoa sozinha (em euros por mês)

% do rendimento mediano Insee (2001) Rendimentos reais (2004)

50% 602 940

60% 722 1130

70% 843 1320

(1) P. Concialdi, "Les seuils de pauvreté monétaire: usages et mesures", La Revue de l’Ires, n.º 38, 2002/1.

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Pouco importa, por conseguinte, que não se tenha demonstrado que o salário mínimo era prejudicial ao emprego, e a protecção social a causa do desemprego em massa. Tentemos até ao fim a experiência liberal! Se se está de acordo para rejeitar esta fuga para a frente e esta renúncia perante supostos constrangimentos económicos, a primeira etapa consiste em repor a economia na ordem, ou seja, dar primazia aos fins relativamente aos meios. Para que serviria ter «a economia mais competitiva do mundo», se isto se devesse traduzir num aumento exponencial do desemprego e da pobreza?

Uma urgência: consolidar e alargar a base das protecções

A primeira urgência consiste em consolidar e alargar a base das protecções fundamentais. Isto refere-se de maneira essencial aos mínimos sociais e ao salário mínimo, cuja subida deve ser acompanhada de uma garantia de progressão que seja pelo menos igual à da riqueza nacional, a fim de evitar o desfasamento que se observa – nomeadamente para os mínimos sociais – desde há uma vintena de anos.

Recorde-se que o nível dos mínimos sociais é extremamente diminuto no nosso país, quer seja em comparação com o dos outros países europeus ou em relação aos indicadores usuais de pobreza monetária. O nível do RMI para uma pessoa sozinha representa menos de 30% do nível de vida médio em França, e menos de metade do limiar de pobreza a 50% do rendimento mediano. Isto já não é uma garantia de rendimento, é a certeza de continuar a ser pobre.

A mesma observação vale para o salário mínimo, que não permite, mesmo para um assalariado a tempo inteiro, sair da pobreza monetária. O aumento do salário mínimo deveria sobretudo acompanhar-se da garantia de um regresso aos mecanismos de indexação após 1 Julho de 2005, data em que a harmonização do salário mínimo terá sido terminada.

É verdade que o nível do salário mínimo nacional continua a ser claramente superior ao da maior parte dos mínimos de ramo e que isto trava, em muitos casos,

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qualquer progressão salarial. Mas isto deve-se essencialmente à demissão do patronato, que se aproveita evidentemente desta situação. E este fenómeno não é novo: quando se criou o Smig, as negociações teriam falhado se o Estado interviesse para fixar o seu nível. Não se pode assim incriminar o salário mínimo nacional com o motivo de que o patronato recusa obstinadamente reconhecer esta norma social nas negociações salariais. A conclusão mais lógica, e sem dúvida mais útil, seria que, pelo contrário, é necessário levar os empregadores a ter em conta esta realidade nas negociações. Um estímulo consistiria, por um lado, em convidar os parceiros sociais a negociar este ponto e as suas consequências para as grelhas salariais e, por outro lado, programar o desaparecimento progressivo das isenções actuais de contribuições sociais, com um registo e as modalidades que são moduladas, de acordo com cada ramo, em função dos resultados destas negociações.

Isto seria somente um primeiro passo para se sair da pobreza, e outras políticas e regulações seriam necessárias. Seria no entanto a ocasião de verificar se os dogmas liberais se opõem a tal reforma estrutural. Se o emprego devesse afundar, como o predizem alguns, aperceber-nos-íamos bem rapidamente, e teríamos sempre tempo de rectificar a barra. Ao esperarmos, os assalariados sempre teriam ganho alguma coisa, o que, nos tempos que correm, não seria já assim tão mal. Na hipótese oposta, mais provável de acordo com o que pensamos, isto daria talvez desejo a que mais economistas reflectissem sobre o conteúdo a dar a outras reformas estruturais deste tipo. É necessário ser um pouco optimista.

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V. A INTEGRAçãO pELO mERCADO (ÚNICO), A UNIãO EUROpEIA

E A DESINTEGRAçãO SOCIAL: ALGUmAS pERSpECTIvAS CRíTICAS

V.1. “O pLENO EmpREGO COmO pOSSIBILIDADE”:

A CRíTICA DO LIBERALISmO SOCIAL DA UNIãO EUROpEIA

EXCERTOS DE Um TEXTO DE ChRISTOphE RAmAUX

A precariedade está largamente associada ao desemprego de massas: quando este se reduzir é também certo que aquela se reduzirá, com vantagem para as mobilidades voluntárias. As evoluções do emprego no período 1997-2001, para tomarmos apenas este exemplo, fornecem uma prova bem clara desta ligação. Dito por outras palavras, desde que o crescimento se instale, por pouco que seja mas desde que seja de forma durável, ao longo do tempo, as empresas recomeçam a recrutar pessoal sob a forma do que se chama empregos “típicos”. As saídas voluntárias aumentaram sensivelmente no mesmo período. Baixa a precariedade do emprego, baixa o emprego a tempo parcial e – especialmente o trabalho a tempo parcial registado como “obrigatório” –, aumentam as saídas voluntárias: tantos factos que atestam que não se pode decididamente tratar a questão da mobilidade e das suas formas independentemente do volume de emprego.

Não se trata de estar a defender um modelo de emprego para “toda a vida com o mesmo empregador”. Com a ajuda do pleno emprego, o turnover livre e voluntário da mão-de-obra foi muito mais importante durante os Trinta Anos Gloriosos do que o é hoje. Não estar a renunciar à perspectiva do pleno emprego não significa minimizar a questão das mobilidades. Pelo contrário, podemos mesmo defender que é o único meio de abordar esta questão, tomando o problema pela raiz, a problemática do conteúdo e do sentido (voluntário ou imposto) destas mesmas mobilidades.

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Robert Castel sublinha que não se pode ser “proprietário de si mesmo” se não se é proprietário de “qualquer coisa”. Esta “qualquer coisa” sublinha ele, obtiveram-na os assalariados progressivamente a partir do final do século XIX, via “propriedade social” conferida, em especial, pela protecção social. Desenvolvendo esta ideia, pode defender-se que acontece o mesmo com a mobilidade: só pode haver mobilidade positiva para a mão-de-obra se houver também uma base de estabilidade. Ganha-se tanto mais na mobilidade quando se deixa um emprego estável, enquanto o trabalhador precário permanece, muito frequentemente, sujeito à aleatoriedade da mobilidade obrigada. O CDI é também mais flexível para o assalariado, em termos de mobilidade que o CDD: este oferece potencialmente “um direito permanente à instabilidade voluntária”. O racionamento dos empregos transforma muito frequentemente esta potencialidade em impossibilidade. Mas não será isto um argumento suplementar para não nos acomodarmos?

Viva a política económica!

Abaixo as políticas económicas e vivam as “políticas estruturais” da baixa do custo do trabalho: esta é, em substância, a coerência das políticas liberais desenvolvidas em França e na maior parte dos países europeus desde o início dos anos 80. Mais de vinte anos se passaram: é já muito tempo para se julgar a influência de dada política. Ora, os resultados prometidos – é um eufemismo – não estão à vista. Este falhanço, como o mostraremos, compreende-se facilmente se nos afastarmos da grelha de leitura liberal da economia.

Entre 1997 e 2001, numerosos empregos foram criados em França. Esta performance inegável atesta bem o facto de que o desemprego está longe de ser uma fatalidade. É a ocasião de demonstrar pela positiva, desta vez, que se ganha em nos afastarmos das prescrições liberais. Porque foram claramente as prescrições tipo keynesianas desenvolvidas neste período de tempo que permitiram estes resultados. Trata-se de inflexões muito tímidas, não assumidas e finalmente postas em causa; daí o claro não de 21 Abril de 2002 em França, à Constituição Europeia. Inflexões contudo reais nas quais não nos alongaremos agora, porque são

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estas que é importante desenvolver, sistematizar, se pelo menos se deseja preparar cuidadosamente a alternativa.

Vinte anos para mostrar as suas provas

Depois de 1983, as políticas económicas postas em prática receberam diversas adjectivações: “rigor salarial”, “desinflação competitiva”, “moeda forte”, “domínio das despesas públicas” ou ainda, sem se ter medo de expressões ocas, “reabilitação do trabalho” e “política de reformas”. Para além dos efeitos de vocabulário, pode considerar-se que uma mesma política neoliberal, espantosamente coerente, foi de facto aplicada. Esta apoia-se na aplicação de três princípios: a austeridade salarial, a austeridade orçamental e a moeda forte. A sua coerência pode ser resumida nos seguintes termos:

O esquema das políticas neoliberais

Nota: a zona a ponteado designa os mecanismos que não funcionam conforme a teoria neoliberal

No papel, em teoria, as sequências eram supostas actuar a favor do crescimento e do emprego. Sabe-se que não foi nada assim. Antes de procurar compreender o porquê, não será inútil apresentar os argumentos dos liberais a seu favor.

A austeridade salarial é obtida directamente pelo congelamento dos salários ou pela sua indexação em relação aos preços, e não em relação à evolução da

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produtividade, ou indirectamente pelas políticas públicas de ajuda ao emprego ou do imposto negativo. Os liberais presumem que a austeridade incentiva o emprego através de três canais: o “efeito de competitividade” (o controlo dos custos permite conquistar partes de mercado e consequente mais emprego), o “efeito de lucro” (é o famoso teorema de Helmut Schmidt, segundo o qual os lucros de hoje farão os investimentos de amanhã que farão os empregos de depois de amanhã) e o “efeito de substituição capital/trabalho (a baixa dos salários é considerada favorecer a substituição de capital por mais trabalho).

A austeridade orçamental é encarada como favorecendo o crescimento via principalmente aquilo a que se chama o “efeito de evicção”: a redução das despesas públicas reduz os empréstimos contraídos pelo Estado, o que permite a descida das taxas de juro. O investimento e, portanto, o crescimento e o emprego encontram-se assim favorecidos.

A moeda forte contribui, ela também, para a baixa da taxa de juro, pela redução acentuada do prémio de risco de câmbio que ela induz. Com a moeda forte reduz-se o preço dos bens importados, ela alimenta, para além do mais, a desinflação e apoia pois, do mesmo modo que o rigor salarial, o crescimento pelas exportações.

Estes três pilares auto-reforçam-se entre si. A dupla disciplina orçamental e salarial apoia a credibilidade da moeda. Ela envia aos mercados financeiros o sinal claro que a inflação será combatida custe o que custar e por essa via se afasta toda e qualquer veleidade de desvalorização competitiva. O conjunto conforta nas suas expectativas os mercados financeiros e a liberalização destes conclui a estrutura desta política. As políticas económicas são postas sob a tutela da finança e todo o desvio relativamente às regras da “boa governança”, em matéria de política económica, é potencialmente sancionada pela fuga de capitais. Esta colocação das políticas sob tutela opõe-se à essência da própria democracia política, que supõe que os cidadãos têm a possibilidade de escolher entre diferentes políticas económicas. Pode, de passagem, sugerir-se que o liberalismo económico está em vias de destruir o que fundamenta uma parte da sua legitimidade: a ideia que é compatível com o liberalismo político.

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Quais são, então, as razões deste falhanço neoliberal? No esquema, a zona a ponteado permite referenciar o que não funcionou como o previsto. Os défices, e com eles a dívida pública, aumentaram. As taxas de juro, em particular no final dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, também aumentaram. Mais fundamentalmente ainda, ressalta de forma clara que o neoliberalismo funcionou contra o investimento, o crescimento e o emprego.

Certas sequências ocorreram, de facto. Houve desinflação. Mais importante ainda, registou-se uma forte alta dos lucros relativamente ao valor acrescentado, uma alta de 8 pontos do PIB relativamente ao início dos anos 80. Estes lucros não são identificados ao nível do investimento. Prova de que a crise não atinge toda a gente, ela beneficiou essencialmente os proprietários do capital. Os dividendos pagos pelas sociedades aos accionistas passaram assim de 49 milhares de milhões em 1994 para 126 milhares de milhões em 2004.

Mas voltemos aos falhanços da política neoliberal. Vários elementos a explicam. Enquanto a moeda forte deveria permitir baixar as taxas de juro, foi a subida destas que foi necessário impor para que a moeda fosse forte. No final dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, para convencer os mercados financeiros de que o franco francês não se ia distanciar do marco, enquanto este se apreciava por efeito da reunificação alemã, a França teve que pagar um preço forte: aplicar taxas de juro proibitivas. A política de criação monetária, longe de ser necessariamente inflacionista como o defendem os liberais, pode favorecer o investimento e mais geralmente a procura global. Na ausência de uma tal política, o investimento não foi sustentado como o foi nos Estados Unidos. O principal bloqueio encontra-se porém aqui e não na insuficiência dos lucros, pois estes atingiram níveis recordes desde o final dos anos 80; o bloqueio surgiu antes como resultado da atonia do consumo. Este foi o grande ausente do esquema neoliberal. Atingido pela austeridade salarial quando o não foi pelas subidas de impostos incidindo sobre os assalariados e sobre os pobres (subida de dois pontos do IVA), esta atonia desencorajou largamente o investimento. As empresas não compram máquinas para produzir máquinas que produzem máquinas. É necessário que, no final, produzam bens de consumo final. Estes representam mais

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de dois terços dos mercados das empresas. A ausência de dinamismo do consumo teve incidências no investimento e consequentemente também na produção de bens de produção. Em suma, o que se chama efeito de acelerador (o investimento depende do consumo) desempenhou a sua função mas no sentido recessivo.

Longe de se reduzirem, os défices públicos e a dívida pública (os défices acumulados) aumentaram fortemente depois do início dos anos 80.

No momento em que o nome de Keynes é hoje pronunciado, este é associado automaticamente “ao falhanço das políticas de relançamento de 1982-1983”. No imaginário colectivo, a França estava à beira da falência. No entanto, a dívida do Estado não ultrapassava, em 1983, os 17% do PIB. Desde então triplicou este valor que atingiu o valor de 51%, em 2004. Para explicar esta explosão, os liberais designam evidentemente as despesas excessivas. Como se, desde meados dos anos 80, as políticas de austeridades orçamental não tivessem sido aplicadas. Como se o keynesianismo tivesse presidido aos destinos da França, desde há mais de 20 anos. Ora, e que não desagrade aos liberais, não são as despesas públicas que estão em causa. A austeridade foi de facto fortemente aplicada. A parte das despesas do Estado (em percentagem do PIB) passou, por este facto, de 25,4%, em 1983, a 22,7%, em 2004. Uma redução tanto mais notável quanto as taxas de juro reais eram positivas e entretanto tinham mecanicamente aumentado a carga da dívida e as despesas correspondentes.

Apontando a responsabilidade nas despesas, os liberais estão no seu papel. Estes instrumentalizam o papel do “peso da dívida” para nos convidarem a confiar ao privado um novo mercado: a realização das missões de serviços públicos.

Quando evocam as contas públicas, os liberais esquecem-se, conscientemente, de precisarem que um orçamento não é feito só de despesas mas também de receitas. Ora, é deste lado que surgem os problemas. Foi por falta de receitas fiscais suficientes que os défices e a dívida do Estado aumentaram. As receitas foram reduzidas por dois motivos: a fraqueza do nível de crescimento, em primeiro lugar, pois a maior parte das receitas fiscais (IVA, imposto sobre o rendimento, etc.), do mesmo modo que as da Segurança

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Social, está indexada ao nível de actividade; a contra-revolução fiscal inaugurada por Michel Rocard (baixa drástica do imposto sobre as sociedades) e ampliada a seguir pela maior parte dos governos, o “cone fiscal” limitando a taxa de imposição global a 60%, introduzida por Villepin, foram os últimos acontecimentos infelizes duma longa série de “ofertas bem direccionadas”. Trata-se duma contra-revolução na medida em que são claramente os mais ricos que beneficiaram da baixa de impostos, quer seja sobre as sociedades quer seja sobre as fortunas. Aqueles, de passagem, com uma só cajadada mataram dois coelhos: pagaram menos de impostos e, graças às economias assim realizadas, puderam comprar a taxas vantajosas títulos que o Estado foi obrigado a emitir para preencher os défices acumulados por falta de receitas suficientes… Um bonito círculo vicioso para o interesse colectivo, mas fortemente virtuoso para certos interesses particulares, o que permite sublinhar que a dívida não pesa indiferentemente sobre as gerações futuras. Quem diz dívida, diz créditos correspondentes para aqueles que compraram as obrigações do Estado. As gerações futuras de assalariados deverão, de facto, pagar a dívida. Mas pagá-la-ão as gerações futuras herdeiras destes títulos?

Vinte anos é muito. Os liberais, mais ou menos “sociais”, dispuseram de todo este tempo para aplicarem as suas receitas e não se privaram de o fazer. O balanço é aflitivo: não somente o desemprego, a precariedade e a exclusão aumentaram vertiginosamente como também a própria situação das contas públicas, que eles se reclamam fortemente de terem equilibrado, se degradaram de forma considerável.

A Europa liberal: a prova dos factos

O social-liberalismo não pode manter-se como projecto se não mostrar que tem um projecto fundamentalmente distinto do “liberalismo social”, defendido por uma grande parte da direita. Este projecto, será que existe? Pode pensar-se que esta vã pretensão se desfez em pedaços aquando do debate sobre a Constituição europeia.

Se nos posicionamos nos argumentos racionais, é de facto difícil defender que a Constituição assim como o tipo de construção europeia que ela se propõe ser, não são, de facto, liberais. Uma pequena demonstração: o emprego.

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A Constituição não se contenta em substituir o direito ao trabalho pelo “direito de trabalhar” e a “liberdade de procurar emprego” (artigo II-75.º). Nela nunca se pronuncia a palavra “desemprego”. Ela indica, e somente uma vez, que a União tem “como meta o pleno emprego” (artigo I-3.º). Mas mesmo esta expressão é imediatamente substituída por “um nível elevado de emprego” (artigos III-117.º e III-205.º). A diferença é enorme: O pleno emprego significa a redução do desemprego. O nível de emprego elevado, avaliado pela proporção do número de trabalhadores dos 15-64 anos que têm um emprego, pode, pelo contrário, ser obtido pelo recuo da idade da reforma. Aliás é isto mesmo que preconiza o Conselho Europeu (Cimeira de Barcelona, de 2002) com um recuo de cinco anos na idade limite de passagem à reforma.

A Constituição inscreve a necessidade de “promover” “mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças económicas” (artigo III-203.º) e precisa que a lei europeia, em matéria de emprego, “não implica a harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros (artigo III-207.º).

De forma mais operacional, é estipulado que as políticas de emprego devem ser “coerentes com as orientações gerais das políticas económicas dos Estados-Membros e da União (GOPE)” que devem elas próprias respeitar o “princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência, favorecendo uma repartição eficaz dos recursos” (artigos III-178.º e III-206.º). O círculo é assim fechado: as linhas directrizes para o emprego, que enquadram as políticas nacionais para o emprego, estão submetidas às GOPE, que devem eles próprios respeitar a livre concorrência suposta ser o instrumento mais eficaz de afectação de recursos16.

16 Considerando o Tratado de Lisboa, no qual se lê que a União se “empenha… numa economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego…” (artigo 1.º) e que passa a garantir as liberdades e os princípios estabelecidos na Carta dos Direitos Fundamentais, e o actual Tratado que Institui a Comunidade Europeia (Tratado CE), que já inclui os conteúdos dos artigos citados da Constituição europeia (ver artigos 98.º e 125.º a 129.º do Tratado CE), a análise que aqui é feita, que tem em conta a Constituição europeia, não perde a sua pertinência quando entrar em vigor o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que substitui o Tratado CE, após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2009. [N. do T.].

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De forma ainda mais precisa, o artigo III-206.º precisa os procedimentos da EEE. O Conselho adopta, com maioria qualificada, as linhas directrizes para o emprego (o Parlamento é somente consultado) que enquadram as politicas de emprego nacionais. Cada Estado-Membro transmite um relatório anual. O Conselho analisa estes relatórios e “por recomendação da Comissão, pode adoptar recomendações dirigidas aos Estados-Membros”.

O que é que já produziu este tipo de arquitectura? A Cimeira do Luxemburgo de Novembro de 1997, que lançou a EEE, estabelecia quatro pilares com títulos evocadores: empregabilidade, (o que deixa entender que o desemprego resulta de um problema de adaptação da mão-de-obra), desenvolver o espírito empresarial, a adaptabilidade (eufemismo de flexibilidade) e igualdade de oportunidades. A Cimeira de Lisboa de Março de 2000 reteve três objectivos: promover o pleno emprego, melhorar a qualidade e a produtividade do trabalho e reforçar a coesão e inclusão sociais. Objectivos louváveis sobre os quais alguns se fixaram para sugerir que, até que enfim, a Europa social começa a estar em marcha. Porém, de modo decente, não se pode ficar por aqui. Desde que se examine com algum cuidado a produção normativa saída no quadro da EEE, em nome destes objectivos, é de facto o registo liberal que se desenvolve o mais frequentemente e sem quaisquer nuances.

Se olhamos para as Recomendações do Conselho relativamente às linhas directrizes (por exemplo, de 22 de Julho de 2003, 2005/578/CE) encontramos, principalmente, as seguintes recomendações: a promoção do “envelhecimento activo” (o recuo da idade da reforma) a fim de aumentar a taxa de emprego, a necessidade de “tornar o emprego financeiramente mais atraente, graças a estímulos”, isto é, o workfare (a concessão de subsídio de desemprego fica condicionada ao facto de aceitar pequenos empregos a tempo parcial); a reforma das “condições mais restritivas em matéria de emprego que afectam a dinâmica do mercado de trabalho” (claramente a diminuição das protecções em caso de despedimento) e a promoção da “diversidade das modalidades em termos de contratos de trabalho, principalmente em termos de tempo de trabalho” (um encorajamento explícito aos empregos precários a ou a tempo parcial).

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Ao longo das linhas directrizes, dos Planos de acção nacionais e de outras recomendações da Comissão, só se pode constatar que a EEE se transformou num cavalo de Tróia do liberalismo, ao ponto de fazer lamentar que a Europa se ocupe do emprego.

A Constituição bloqueia completamente as políticas macroeconómicas orçamentais e monetárias e dá ela o conteúdo que se acaba de ver quanto às políticas de emprego. “A Europa não é liberal”? Procurem o erro...

Políticas de relançamento da economia? Respostas a certas objecções

As políticas de relançamento, de inspiração keynesiana, a favor do pleno emprego são elas ainda hoje actuais? Sabe-se as oposições que estas suscitam por parte dos liberais. Outros argumentos são frequentemente levantados quanto à sua aplicação, aos quais considerámos ser útil responder para mostrar que não se desfaz tão facilmente um dos pilares do Estado Social que formam as políticas económicas de apoio à actividade económica e ao emprego.

Primeiro argumento: a ideia segundo a qual “o crescimento não cria mais empregos”. As controvérsias sobre as políticas a aplicar para apoiar e sustentar o crescimento seriam pois vãs. O nível de emprego depende de três grandes variáveis: o crescimento da actividade económica, os ganhos de produtividade do trabalho e a evolução da duração efectiva do trabalho. Com a duração do tempo de trabalho constante, quanto mais a produtividade do trabalho cresce, mais será necessário que haja crescimento para relançar o emprego. A ideia de acordo com a qual o crescimento económico não cria mais empregos reenvia à ideia segundo a qual o desemprego estaria ligado ao crescimento dos ganhos de produtividade. Nos dois casos, é fácil demonstrar que estamos perante novas ideias tomadas como inquestionáveis. Nos países industrializados, os ganhos de produtividade per capita são, pelo menos, duas vezes menores desde 1975 do que o eram durante os trinta gloriosos anos. Na Europa, por exemplo, passaram de 4% ao ano, entre 1950 e meados dos anos 70, para 2% em seguida, e mesmo para 1% a 1,5% em certos

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países – entre os quais a França desde há alguns anos. Com tudo o resto constante, o crescimento tornou-se pois duas vezes mais “rico em empregos”. Enquanto na Europa seria necessário um crescimento superior a 4% para que houvesse aumento de emprego durante os trinta gloriosos anos, agora apenas é necessário que seja superior a 1%. O problema está pois na falta de crescimento económico em certos países, em particular nos da zona euro.

Segundo argumento: a baixa programada da população activa irá permitir, sem qualquer dificuldade, a reabsorção do desemprego. A ideia subjacente tem a força da simplicidade: o desemprego sendo a diferença entre a população activa e o emprego, é suficiente conseguir a baixa da população activa, sob o impacto da demografia, para que o desemprego mecanicamente baixe. Inútil pois, de novo, preocuparmo-nos quanto às políticas a aplicar para criar empregos. Este raciocínio reencontra contudo uma dificuldade: as observações sobre o longo período mostram que são as evoluções do emprego, e não as da população activa, que desempenham o principal papel em matéria de determinação da taxa de desemprego. De 1950 até hoje, os Estados Unidos viram a sua população activa multiplicada por cerca de 2,5 e a Europa por cerca de 1,5. Contrastes espantosos que não reencontraremos, muito longe disso, em matéria de taxa de desemprego. Do mesmo modo, o decrescimento demográfico que se verifica já a partir destes últimos anos na Alemanha tem sido acompanhado dum crescimento e não duma baixa do desemprego. Simplesmente, a fortiori malthusiana, esta ideia não tem, evidentemente, qualquer fundamento.

Terceiro argumento: fórmulas como o “subsídio universal” ou o “rendimento de cidadania” permitiriam, num contexto de suposta crise do “valor trabalho”, resolver a “questão social” sem ter que haver preocupação com o nível de desemprego. Mesmo se quisermos esquecer momentaneamente os riscos duma destabilização do conjunto do sistema de protecção social que levantam necessariamente estas proposições, pode avançar-se a objecção seguinte: a não ser que se considere que a riqueza monetária se cria por si mesma, o que alguns não hesitam em defender, que vale então uma sociedade onde certas pessoas trabalhariam para produzir a dita riqueza e outros não?

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Quarto argumento: a redução do tempo de trabalho chegaria para resolver a questão do emprego. Logicamente este argumento não é infundado, o que o torna qualitativamente diferente dos precedentes. Continua a haver porém uma dificuldade. Segundo as estimativas, as mais favoráveis, a redução do tempo de trabalho semanal para 35 horas permitiu criar aproximadamente 500000 empregos enquanto as estimativas menos optimistas apontam para um valor de 400.000. Este valor não é, evidentemente, desprezível e largamente suficiente para contrapor aos discursos neoliberais que se lhe opõem. Mas é, porém, relativamente pouco tendo em conta a criação de dois milhões de postos de trabalho criados entre 1997 e 2001. O facto de a redução para as 35 horas ter sido em parte travada por uma série de disposições, em particular pelas PME, não altera em nada este diagnóstico. Em suma, se a dupla crescimento e redução do tempo de trabalho é sem dúvida bom para reduzir o desemprego, não se pode, em todo o rigor, ignorar a importância do primeiro termo e a hipertrofia do segundo.

Um quinto argumento tem a ver com o meio ambiente. A poluição e o esgotamento progressivo dos recursos de energia fóssil não nos forçam eles a que se procure travar o crescimento? As teses a favor da redução do crescimento abundam neste sentido. Mas o crescimento económico, será que significa necessariamente o crescimento das indústrias poluentes? Não desagradando a todos os adeptos do decrescimento, um professor, uma enfermeira, mesmo o público – da mesma forma, aliás, que um produtor “bio”- produzem riqueza e “contribuem”, por esta razão, para a formação do PIB ( é o PIB não mercantil). Ao focalizarem-se sobre o nível do crescimento, expõem-se pois a três obstáculos: abundar em políticas recessivas cujos efeitos destruidores sobre o emprego estão portanto mais que confirmados, ser completamente inaudível por todos aqueles que têm o sentimento de lhes faltar muita coisa (habitação decente, saúde, alimentação sã, etc.), falsificar o debate inegavelmente fecundo que traz a contestação ecológica sobre o conteúdo do crescimento.

Last but not the least, o último argumento refere-se às margens de manobra da política económica. A mundialização não dá ela o sinal de alarme e anuncia o fim das políticas keynesianas? Que se dê a este argumento uma parte da verdade.

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Os Estados nacionais a fortiori quando não se defendem da mundialização ficam numa situação difícil e perdem em autonomia. As políticas keynesianas são um dos pilares do Estado Social e o facto de este se ter desenvolvido no quadro das economias nacionais fundadas na cidadania não é fruto do acaso. O Estado, ao democratizar-se, reconheceu que os “desfavorecidos” conseguiram impor uma orientação “social” à sua intervenção. Partindo deste ponto central, o que raramente é feito, a mundialização pode ser analisada como um fantástico meio para contornar as limitações políticas opostas à dominação do capital. Esta ataca sobretudo a soberania dos povos e dos seus Estados. A cidadania é, pelo menos na sua acepção forte (o poder exercido pelo povo através principalmente da eleição dos seus representantes), uma quimera à escala mundial. O povo não tem poder a este nível. Não existe a República mundial… e que monstro não seria ela, aliás? Compreende-se pois que a transferência dos centros de decisão à escala mundial é duma grande eficácia para servir certos interesses. Colocar a questão nestes termos convida, de imediato, a criticar o próprio movimento da mundialização.

A um nível mais concreto, pode admitir-se que existem aí algumas margens de manobra. Ao nível nacional, primeiramente. Os empregos criados em França entre 1997 e 2001 – fenómeno que não atingiu os países vizinhos na mesma proporção, do ponto de vista da sua regulação económica, tais como a Alemanha e a Itália –, atestam a eficácia que se pode ter se nos afastarmos dos dogmas liberais, mesmo ao nível nacional. Os presentes fiscais distribuídos aos mais ricos no decorrer dos últimos anos não o foram sob o peso das “condicionantes externas”. Estes respondem a escolhas que se podem qualificar, pelo menos algumas delas – tais como certas modificações do Imposto de Solidariedade sobre as Fortunas (ISF) –, de escolhas quase que “dedicadas”, nominalmente, de tal modo elas são “direccionadas” para beneficiar categorias restritas de pessoas. Outras escolhas são pois possíveis. Uma política de pleno emprego – um plano para a redução para metade do nível actual de desemprego em cinco anos e o pleno emprego no horizonte de dez anos, por exemplo – passa prioritariamente por um relançamento do consumo das famílias. A baixa do imposto sobre o rendimento, contrariamente ao que defendem os liberais, não pode preencher este objectivo, pelo menos por, duas razões: esta

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redução beneficia, nunca será demais reafirmá-lo, os mais ricos, cuja propensão a consumir é fraca e isto mesmo quando prioritariamente incide sob as camadas de rendimentos mais baixos; reduz o peso do principal imposto progressivo e actua pois contra a redistribuição do rendimento.

A redistribuição dos rendimentos necessária para apoiar de forma sustentada o consumo das famílias, e também, o investimento, deve articular-se com um verdadeiro plano de relançamento orçamental. Para além do financiamento dos mínima sociais (cujo efeito sobre o consumo é imediato, pois que a este nível não há poupanças) e do recrutamento de funcionários numa série de domínios – professores, em particular nas zonas de ensino prioritário, investigação, pessoal para cuidados de saúde, etc. –, este plano deveria comportar uma via de financiamento de infra-estruturas. As necessidades não faltam, quer seja em matéria de habitação, de transportes colectivos, de creches, de centros de apoio a idosos ou melhor ainda de economias de energia. A explosão dos arredores das grandes cidades não apela ela a um autêntico “plano Marshall”?

Note-se de passagem que a política orçamental não é somente um instrumento para ultrapassar as crises conjunturais endémicas do capitalismo. Esta é indissociavelmente – como tal não é pura e simplesmente uma técnica – um meio para produzir e satisfazer uma série de necessidades sem que seja necessário estar submetido à condição de rentabilizar um capital privado.

Este relançamento orçamental traduzir-se-á, sem qualquer dúvida, por um aumento temporário dos défices públicos, na linha daqueles que os Estados Unidos registaram em 2000-2002. Mas não será preferível evitar o cair numa quase estagnação e apoiar de forma sustentada o crescimento para melhor financiar, finalmente, estas despesas em vez de ficar à espera que a estagnação se traduza, ela também, por um aumento do défice, mas desta vez devido a um insuficiência de receitas fiscais?

Os rendimentos financeiros podem ser utilizados ao serviço destas despesas. Eles literalmente explodiram nestes últimos anos. A baixa de 8 a 10 pontos percentuais da parte dos salários no valor acrescentado registada desde 1983 – ou

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seja uma transferência da ordem de 120 a 150 milhares de milhões de euros – não levou, já se disse, a um aumento dos lucros investidos. No essencial, alimentou-se os circuitos financeiros. Esta deslocação não é neutra no crescimento. Crescendo a “força de pressão” da finança alimenta-se assim o peso dum capitalismo financeiro que actua claramente a desfavor da actividade e do nível de emprego. Os factos presentes são suficientemente elucidativos, para que certos autores que dificilmente podem ser chamados “de esquerdistas”, como Jean Peyrelevade, ao escrever o livro Le capitalisme total (2005) e que dirigiu sucessivamente Suez, a UAP e o Credit Lyonnais, e Patrick Artus e Marie-Paule Virard (2005), com um outro título sintomático Le capitalisme est en train de se auto-detruire.

Para a Europa: mudar de programa económico

Ao nível europeu, existem outras margens de manobra. A Europa tomada como um todo é um espaço comercial relativamente fechado, do mesmo modo que o é os Estados Unidos ou o Japão. Isto favorece as políticas de relançamento orçamental à escala do continente. Estas políticas, para responderem às novas reticências ambientais, podem ser perfeitamente “ecologicamente correctas”: vias de transporte ligando estradas e caminho de ferro, investigação e saúde, etc. Estas permitiriam apoiar os novos países aderentes que, sem isso, estão completamente dispostos a lançarem-se na concorrência sócio-fiscal.

As regras liberais da União são feitas para se anular a política orçamental de cada um dos Estados-Membros através das famosas regras do Pacto de Estabilidade (3% do défice público, 60% da dívida pública), por detrás das quais se abrigam os governos nacionais para justificarem a austeridade orçamental. Mas esta austeridade infligida aos Estados-Membros é também ela imposta de forma mais draconiana ainda à própria União.

Esta, por decisão sua, não pode recorrer a empréstimos. Por decisão do Conselho, o orçamento da União tem como seu limite máximo 1,27% do seu PIB, limite que só pode ser modificado por unanimidade. Na realidade, o orçamento

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actual da União fica mesmo aquém, uma vez que é pouco acima de 1%. Nos Estados Unidos, as despesas federais são superiores a 20% do PIB, ou seja, um nível equivalente ao que existe na maior parte dos países desenvolvidos, incluindo os países europeus. Nesta base pode medir-se a vacuidade dos discursos que dão a entender que não há outra “saída” que não seja esta Europa. No essencial, a “força de pressão” orçamental depende de cada Estado-Membro. É a este nível que as margens de manobra para as políticas heterodoxas são as maiores. Dito de forma mais precisa: seria mais fácil para um governo, preocupado em apoiar a actividade pela despesa pública, libertar-se das regras do Pacto de Estabilidade – não têm elas sido constantemente desrespeitadas e não foram elas qualificadas de “estúpidas” por Roman Prodi, enquanto presidente da Comissão? – do que impor um aumento do orçamento europeu, o que supõe a unanimidade do Conselho. Entendamo-nos bem: esta alta é necessária e seria tanto mais necessária e mais útil quanto a política orçamental é ainda mais eficaz à escala da União do que à escala nacional. Com efeito, quanto maior for a abertura comercial (a parte das importações relativamente ao PIB) menos o relançamento orçamental é eficaz. Uma parte do acréscimo da procura faz aumentar as importações. Ora, se a abertura comercial de cada país europeu é relativamente elevada (25% em França, contra menos de 15% nos Estados Unidos) ela resulta sobretudo (e isto trata-se de trocas intracomunitárias) das trocas entre países europeus. A Europa, tomada como um todo é um espaço mais fechado.

Mas a este nível também não devemos subestimar os factores de bloqueio. A experiência do comunismo deixou as suas marcas. Alguns países europeus – pode-se compreendê-lo sem que com isso estejamos a apoiá-los – estão reticentes em aumentar a esfera da intervenção pública. Contudo, existe uma solução intermédia: a das cooperações reforçadas que permitiria aos países que o desejem – a França e a Alemanha, particularmente – avançar no desenvolvimento de políticas voluntaristas, com a esperança que a demonstração da sua eficácia incite os “reticentes” a segui-los nesta via. O programa liberal da “grande coligação” na Alemanha não vai nesse sentido, pelo menos a curto prazo. Pode todavia pensar-se que o seu falhanço anunciado – a subida de três pontos de IVA, se for concretizada como previsto em 2007, traduzir-se-á seguramente por uma recessão – reabilitará rapidamente esta via.

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O bloqueio da política orçamental à escala da União vai a par com o da política monetária. A condução desta foi transferida para o BCE que tem uma posição claramente monetarista. Enquanto o banco central americano (FED) tem dois objectivos, a estabilidade dos preços e o crescimento, e não hesita, por consequência, em baixar drasticamente as suas taxas quando a recessão começa a ameaçar, o BCE mantém-se apenas no primeiro objectivo: a estabilidade dos preços. Encontra-se aqui um dos pontos de confronto entre keynesianos e liberais. Para os liberais, a moeda é neutra. A criação monetária não tem nenhum impacto directo sobre “as grandezas reais” da economia (investimento, crescimento, emprego, etc.). Ela só actua sobre os preços fazendo subir a taxa de inflação, daí o interesse que têm os liberais em torná-la independente do poder político. O único meio de reduzir o desemprego, dizem então, é reduzir o custo do trabalho através das políticas “estruturais” sobre o mercado de trabalho. Com uma regularidade que atinge a obsessão, os comunicados do BCE lembram-nos incansavelmente: os governos nacionais têm a chave da redução do desemprego se tiverem a coragem de efectuarem as reformas estruturais.

Inversamente, é a situação para os keynesianos, para quem a criação monetária contribui para forjar as “grandezas reais”. Longe de ser inflacionista, ela é susceptível de apoiar a actividade e o emprego. A inflação, nesta óptica, não é primeiramente monetária, mas resulta da evolução dos custos de produção. Ela, evidentemente, não é desejável em si mesma. Quando ela não se repercute sobre os salários nominais, pode actuar contra o poder de compra. No momento em que o crescimento se instala de forma sistemática é todavia natural que a inflação aumente um pouco, quer sob o efeito da baixa do desemprego, primeiramente, com as subidas dos salários que se lhe seguem quer ainda devido à repercussão parcial sobre os preços devido ao facto das empresas quererem preservar as suas taxas de lucro. Depois, aumenta também com a saturação provisória das capacidades de produção, o que pode conduzir as empresas a quererem vender provisoriamente mais caro, por ausência de produtos suficientes. O que foi verdade durante os Trinta Anos Gloriosos também o é, porém, hoje. Os países como os Estados Unidos e a Irlanda, por exemplo, que têm um crescimento sustentado, registaram uma taxa de inflação mais alta que a França

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ou que a Alemanha nestes últimos anos. Em suma, se não é a panaceia, um ligeiro aumento na taxa de inflação pode ser a prova feliz que nos aproximamos do pleno emprego da mão-de-obra e das capacidades de produção, do mesmo modo que pode incentivar as empresas a aumentar a sua formação e o investimento para fazer face, neste contexto, a um acréscimo da procura.

Entre o início de 2001– antes dos atentados de 11 de Setembro – e o fim de 2001, para fazer face à crise desencadeada pelo rebentar da bolha Internet, o FED reduziu a sua taxa de juro de 6,5% para 1,75% – portanto, uma baixa de perto de 5 pontos num só ano. O FED manteve as taxas excepcionalmente baixas – com uma nova redução até 1% entre meados de 2003 e meados de 2004 – durante três anos a fim de assegurar a retoma. Obnubilada pela taxa de inflação, o BCE contentou-se, pelo seu lado, com uma baixa não somente duas vezes menor, mas mais lenta: menos 2,75 entre o início de Janeiro de 2001 e o princípio de 2003.

Uma vez a retoma instalada nos Estados Unidos, o FED aumentou as suas taxas de juro a partir de meados de 2004. Apesar do marasmo económico no qual mergulharam os grandes países europeus, o BCE continuou a fazer o mesmo desde Dezembro de 2005. Uma decisão que mesmo a muito liberal OCDE considerou inoportuna. Na zona euro – neste espaço unicamente – o keynesianismo foi decididamente ultrapassado.

Como é que se pode explicar a continuação da política monetarista do BCE, dado o seu manifesto falhanço nas questões do crescimento económico e do emprego? A resposta está na questão: o objectivo do BCE não é nem o crescimento económico, nem o pleno emprego. O seu objectivo principal é a estabilidade dos preços. Ora, é isto que permite compreender que a situação se prolongue, apesar de a política conduzida neste sentido só gerar mal-estar. Esta satisfaz os titulares dos títulos financeiros cujos rendimentos são tradicionalmente diminuídos pela inflação. O objectivo implícito do BCE é, de facto, o seguinte: não somente não apoiar o crescimento, como também limitar as possibilidades deste se realizar, desde que o crescimento seja susceptível de gerar inflação e, portanto, de reduzir o rendimento real do capitalismo financeiro.

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Seja porque ponta se pegue na questão, há decididamente urgência em redefinir radicalmente as missões e o funcionamento do BCE. Por ausência duma tal redefinição, pode acreditar-se que é próprio futuro do euro, que, cedo ou tarde, será posto em questão.

Em suma, é pois a própria arquitectura europeia que deve ser questionada. Pretender o contrário, deixando entender que por pequenas variações ou mudanças se poderá levar os arquitectos liberais da Europa “à razão” é não compreender os interesses em jogo. É correr simultaneamente o risco de ser insensivelmente reduzido ao nível de simples caução de esquerda duma empresa que vira sistematicamente as costas aos seus valores (o combate pela justiça social e o progresso social, o acreditar e o respeitar a soberania dos povos....). Se a arte de governar é também a arte de concretizar compromissos, se a “crise” não pode ser um método permanente de governo, há contudo situações que só podem ser desbloqueadas pelas crises. Com o risco, no caso de se falhar, de não se sair delas. A 29 de Maio de 2005, os pontos de vista sobre esta questão mudaram sensivelmente. A retirada da versão inicial da directiva Bolkenstein testemunha, por si mesma, que nada foi em vão. Falta passar deste ensaio a uma outra situação construída pela positiva, o que não pode ser feito sem uma certa bússola política.

Para a Europa: mudar de programa político

Em nome desta bela ideia que é a Europa, e desde há vinte anos, já não têm em conta as demissões políticas e intelectuais registadas face ao liberalismo económico. Para explicar estas demissões, tendo a preocupação duma atitude compreensiva, impõe-se-nos uma passagem pela dimensão propriamente política do debate.

Se pensarmos bem, nenhum homem político de esquerda, nem aliás de direita, teria ousado uma Constituição para a França – e isto vale para qualquer outro país – que inscrevesse, no seu artigo terceiro, entre os objectivos mais generosos, a realização dum “mercado interno em que a concorrência é livre e não falseada” e que interditaria toda e qualquer restrição aos movimentos de capitais,

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mesmo aos do resto do mundo (artigo III-156.º). Por medo do ridículo, ninguém encararia evidentemente a necessidade de precisar que o poder político deve ser impedido “de influenciar” (sic!) os membros do Banco Central (artigo III-188.º)17. Ora, é o que estipulava e que estipula aliás, pois ninguém pensa voltar à Constituição europeia.

O liberalismo económico é um pensamento respeitável. À sua maneira, este é aliás, social: sob a pressão da concorrência cada um deve ser obrigado a especializar-se no domínio em que é relativamente melhor, o que acresce a riqueza global e, a partir daí, o bem-estar de todos. Mas esta ideia é desde há muito tempo contestada. Existem outros que pensam que o mercado, mesmo se tem virtudes, não tem a coerência para garantir o pleno emprego e o progresso social. Daí a necessidade duma intervenção pública. Quem ousaria propor que o seu país se dote duma Constituição que decide sobre estas questões? Ao nível nacional, nem mesmo a maior parte dos defensores do liberalismo económico. Porque a democracia política se tornou o nosso ethos comum, depois das tragédias do século passado, entendendo-se a democracia, como a possibilidade de escolha através do voto, da política económica e social a aplicar na sociedade. Ora é exactamente a democracia que está ameaçada hoje, quando, contra a possibilidade de escolha do liberalismo, nos é imposta a obrigação de nos conformarmos às escolhas deste.

Como é que então é possível explicar a posição dos partidários do sim, a fortiori de esquerda?

É do lado da nação, ou pelo menos duma certa relação com ela – e é aqui que se encontra a dimensão propriamente política do debate – que é necessário procurar a explicação. A Europa, mesmo liberal, seria a rampa de partida contra os demónios nacionalistas. Tal é, no fundo, o único argumento racional do “sim”. Um argumento perfeitamente justificável. A construção europeia foi uma rampa

17 O mesmo conteúdo dos artigos III-156.º e III-188.º já está inscrito no ainda Tratado CE, futuro Tratado sobre o Funcionamento da UE, nos artigos 56.º e 108.º, respectivamente. [N. do T.]

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de partida preciosa contra o nacionalismo. E a exaltação da nação, sabe-se, pode ser portadora das piores opressões. Mas não se pode ficar por aqui.

Somos frequentemente prisioneiros do esquema intelectual daqueles que criticamos e a questão da “nação” fornece um belo exemplo, que permite compreender aquilo que se procura explicar. Segundo a Frente Nacional (extrema-direita francesa) a nação reenvia, primeiramente, às origens, à cultura, quando não é à raça. Ora, é exactamente porque são, na verdade, prisioneiros desta forma de pensar a Nação que alguns, à esquerda, a detestam. Assimilando esta à Frente Nacional, recusam aquela (a ideia de Nação) para recusarem esta, a Frente Nacional. “Sim, para fazer desaparecer esta merda de Estado-Nação”, proclamava Negri, a ex-ultra-esquerda. “Por detrás do social, a nação”, lamentava-se François Dubet, na altura do debate sobre o referendo.

Mas o querer matar a Nação merecia bem uma Constituição liberal pois doze estrelas supranacionais iluminam o seu firmamento. Paris, não mereceria ela uma missa?

Temível armadilha. Porque não somente esta existe mas porque importa ter também uma outra ideia de Nação que coloque no seu centro a cidadania do povo, a cidadania democrática, para lá das origens de cada um de nós. Esta concepção articula-se certamente, num certo sentido, com a concepção culturalista, daí certos medos perfeitamente fundados dos demónios nacionalistas. Esta articulação deve-se ao facto de que as nações democráticas não caiem do céu, estão necessariamente inscritas nos territórios, supõem um mínimo de linguagem comum e, de facto, frequentemente uma língua comum, senão como é que se decide democraticamente? Mas pensar esta articulação dialéctica arma-nos exactamente para podermos reafirmar sem cessar, o que não surge por si mesmo, o primado da cidadania, da comunidade de responsabilidade, sobre a pertença comunitária que veneram os partidários do desenvolvimento separado. Partidários que se encontram à extrema-direita, é certo, mas também, e voltamos ao que acabou de ser dito, numa certa esquerda, sobre a forma dum certo agitar das diferenças.

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A bússola da cidadania é preciosa para combater a extrema-direita. A esquerda deverá ela ficar calada face ao sentimento de despojamento da maior parte dos cidadãos face a esta construção europeia? Alguns a isso nos convidam, indo ao ponto de lamentar que o povo tenha tido a sua palavra a dizer sobre a Constituição. Sem se ter em conta que é isso que a Frente Nacional pretende: aparecer como o único representante do povo desmunido. Sem terem em conta que, ao renunciarem ao poder do povo, ao afrontar as dificuldades que este coloca efectivamente, é à democracia que se renuncia.

A bússola da cidadania democrática é também ela útil para a construção europeia. É de bom senso conhecer as dificuldades de um terreno para construir uma casa. Assim também acontece com a construção europeia. O facto de não existir um povo europeu, uma língua europeia, torna, por definição, problemática a construção de um espaço democrático a esta escala. Tomar consciência disso não significa renunciar ao projecto europeu, antes pelo contrário, significa assumir os problemas pela abordagem correcta. Diferentemente de certas oposições do “não” de esquerda, pode assim contestar-se as proposições de generalização do voto por maioria do Conselho ou as que defendem uma transferência indiferenciada do poder legislativo do Conselho para o Parlamento europeu em matéria social. Estas proposições omitem um elemento essencial: os Chefes de Estado ou de governo têm uma legitimidade democrática maior que os parlamentares europeus. E iremos ver que esta questão da legitimidade democrática que testemunha o facto de não se poder desligar as questões económicas ou sociais das questões propriamente políticas, está longe de ser anódina desde que nos preocupemos com o que poderia ser a Europa Social.

Europa Social: sair da Arlésienne

A Europa Social tornou-se uma verdadeira Arlésienne. Não é em seu nome que alguns defenderam o Acto Único em 1986, depois o Tratado de Maastricht em 1992, depois o Trado de Amesterdão em 1997? “Aceitar estes Tratados liberais é uma condição dolorosa para que a Europa social se construa amanhã”. Sem temer o paradoxo, o mesmo refrão foi entoado a propósito da Constituição.

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Como não continuar nas fórmulas encantatórias sobre a Europa Social? Será necessário, por exemplo, como muitos opositores à construção liberal da Europa o preconizam eles próprios, estender o princípio de voto com maioria qualificada do Conselho ao conjunto das questões sociais (Segurança Social, totalidade do direito do trabalho, etc.) ou antes aumentar as competências do Parlamento sobre estas matérias? É difícil encontrarmo-nos neste registo quando se sabe que a Grã-Bretanha a isso se recusa, em nome dos argumentos liberais, mas que os sindicalistas – escandinavos principalmente – o recusam, também, por razões exactamente opostas (temem que isto sirva para desmantelar o Estado Social).

Tomemos um exemplo: segundo a Constituição, a Segurança Social depende, ela, da unanimidade do Conselho (artigo III-210.º). Perfidamente, ela estipula que “a modernização dos sistemas de protecção social” depende, ela, da maioria qualificada, “sem prejuízo” do ponto precedente, precisa-se, o que deixa, contudo, uma margem de interpretação para os liberais. Aconteça o que acontecer, os povos ganhariam eles que a Segurança Social dependa, em bloco, do voto da maioria do Conselho ou do voto do Parlamento? Nada é menos seguro.

Como construir, pois, a Europa Social? Para clarificar esta matéria, sugerimos partir dum dado simples: as desigualdades não autorizam, a não ser que se nivele por baixo, uma definição uniformizada dos direitos sociais. O rendimento per capita nos países bálticos atinge 40% do da média europeia. Se se exclui temas historicamente pouco estudados – a luta contra as discriminações, por exemplo – é claro que o direito social europeu não trará nenhum progresso, em termos de direitos efectivos, senão muitíssimo mais tarde, aos assalariados alemães, escandinavos ou franceses. E isto, mesmo com um Conselho, um Parlamento e uma Constituição progressistas. Um salário mínimo europeu, se existisse, seria, só para ter em conta este exemplo, muito sensivelmente inferior ao que está em vigor nos países mais avançados. Para estes, a transferência da própria definição de base dos direitos sociais à escala europeia seria pois de consequências fortemente regressivas.

Fala-se aqui da base dos direitos sociais. Em França – e isto vale para outros

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países com fortes variantes na arquitectura dos direitos – esta base é dada pelo Código do Trabalho e pelo da Segurança Social. Estes definem certamente as regras mínimas, mas, e é um ponto importante, estas regras não são minimalistas. A sua norma não é “um mínimo vital” mas um certo bem-estar ou melhor-estar social. O salário mínimo nacional, por exemplo, foi construído como um salário assegurando uma progressão regular do poder de compra. A reforma – e isto vale também na doença ou no subsídio de desemprego – é considerada garantir a manutenção dum certo nível de vida e não “um mínimo de velhice”. Os mínimos sociais existem, é certo. Mas eles representam, até pelo seu fraco nível, uma ínfima parte (da ordem dos 5%) das prestações sociais. Estas são as regras do bem-estar social e que definem uma base a respeitar. Em matéria do direito do trabalho, isto significa que as regras de um nível “inferior” (acordos inter-profissionais, de ramo, de empresa) só valem se comportarem “uma qualquer coisa mais” para os assalariados, relativamente ao escalão superior. É o princípio da ordem social.

Se a “base” dos direitos sociais fosse definida à escala europeia, as directivas europeias substituiriam os Códigos do Trabalho e da Protecção Social. Basta reflectir dois segundos na questão para compreender a enorme dimensão da regressão que se seguiria.

O patronato francês não se enganou, aliás. No quadro da reformulação social, propôs-se substituir o princípio “de ordem social” pelo princípio da “repartição por domínios”, pelo qual os domínios cobertos por uma directiva europeia deveriam escapar ao campo da lei e depender somente da negociação colectiva, se possível descentralizada. O tempo de trabalho está coberto por uma directiva, que limita o trabalho a 48 horas semanais máximo (tempo que a Comissão – com a cláusula de opting out – propôs subir para 65 horas sob reserva dum acordo escrito do assalariado e desde que uma convenção colectiva se lhe não oponha). Neste quadro, imagina-se facilmente o destino das 35 horas semanais em França.

Não dar à Europa Social mais do que o que ela pode dar: esta é uma boa bússola para não nos ficarmos nas fórmulas encantatórias. Se se recusa reter uma

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posição minimalista, miserabilista, dos direitos sociais, a que os liberais, caridade obriga, se acomodam muito bem, devemos então defender que a base dos direitos sociais deve permanecer definida ao nível nacional, em França, como em todos os outros países.

A Europa tem, ao mesmo tempo, um papel a desempenhar em matéria social. Este papel não pode, é certo, exceder um objectivo: evitar as práticas de dumping social e assegurar uma convergência “por cima” dos países menos desenvolvidos. Isto é essencial, a fim de que o alargamento não se traduza numa fuga para a frente concorrencial no domínio do “mínimo fiscal”.

Como realizar este objectivo? Sugerimos que duas condições, estreitamente ligadas, sejam exigidas e deveriam formar os dois princípios gerais do direito social europeu. Em primeiro lugar, reter a norma da “convergência social por cima”, o que a Constituição não faz. Em segundo lugar, reter, como regra sistemática, o “princípio da não regressão social”. Uma norma europeia não se aplicaria assim a um país-membro a não ser que ela traga “uma mais qualquer coisa” em termos de garantias sociais.

Na ausência destas condições, a generalização do voto com maioria qualificada tem uma grandíssima probabilidade de fazer da Europa social o que ela é já hoje – basta vermos as recomendações do Conselho em matéria de política do emprego ou das reformas – o cavalo de Tróia do liberalismo.

Para que os povos adiram à Europa, é ainda necessário que esta faça a demonstração dos seus benefícios. A construção europeia que a Constituição se propunha solidificar permiti-lo-ia ela? É necessário ter o liberalismo económico bem na alma, o que será de estranhar para alguém que se diga de esquerda, para o poder pensar.

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V.2. “OS FALSIFICADORES DA EUROpA SOCIAL”

Um TEXTO DE CORINNE GOBIN

Porque ignora os ensinamentos da história e as desigualdades económicas, o “modelo social europeu” deslegitima o poder público e desmonta os direitos colectivos. Destrói toda e qualquer política de emprego.

Na dinâmica da construção europeia, há tanto a dinâmica social como há a do Eden: uma promessa deliciosa – “um dia virá, cor de laranja...”, dizia o poeta. E seria necessário suportar muitos sofrimentos (muitas reformas) antes que um sistema social comunitário respondesse às necessidades das populações.

Realmente, a União Económica e Monetária (UEM), prefigurada pelo Acto Único (1986) e consagrada pelo Tratado de Maastricht (1992), criou um sistema político e económico que contribui para deslegitimar o conjunto dos direitos adquiridos do direito social e da democracia social nos “Estados-Nações” da Europa ocidental. E a noção de “modelo social europeu”, construída por responsáveis políticos e intelectuais progressistas a partir de 1987-1988 para lutar contra este fenómeno, vai revelar-se contraproducente e conduzir a um enorme equívoco com o qual jogam ainda as autoridades da União Europeia.

Na origem, o conceito de “modelo social europeu” devia fundar uma intervenção normativa sólida ao escalão comunitário. Tratava-se de fazer sair o social do quadro restrito em que se situava e que lhe era imposto pelo Acto Único, subordinando-o ao projecto de grande mercado. O direito social, diziam-nos, fazia parte do património comum a todos os Estados-Membros; e era singular em relação ao resto do mundo.

Com efeito, a procura de uma “essência social” compartilhada de maneira intemporal e apolítica pelo conjunto da classe política europeia vai conduzir a uma triagem cada vez mais severa entre os princípios susceptíveis de serem considerados como “comuns”. Esta laminação, que exprime efectivamente o vocábulo de “base”,

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é favorecida pela fragilidade dos princípios sociais a nível europeu: desligados da história nacional, estes perdem a legitimidade que lhes confere a memória colectiva dos conflitos salariais em cada sociedade.

Além disso, assim reduzido à sua “essência comum”, o “modelo social europeu”, embora consagrado pelos grandes textos europeus, desemboca na ideia de que para além desta “essência”, a diversidade das práticas exclui definitivamente qualquer harmonização legislativa. É a opinião expressa, por exemplo, pelo vice-presidente da Comissão Europeia, o social-democrata alemão Günter Verheugen: “Cada país tem as suas tradições. É inútil tentar unificar os nossos sistemas sociais. Em cada país, gasta-se mais ou menos a mesma coisa, em proporção, no social, mas com métodos diferentes”.

Em resumo, a UE desenvolveu três grandes princípios consensuais supostos constituir o coração da Europa Social: o apoio ao mercado, que cria o “círculo virtuoso do crescimento e do emprego”, um “elevado nível de protecção social” e o desenvolvimento do “diálogo social”. Este tríptico consagraria ao mesmo tempo a regulação da economia pelo poder político e o papel dos interlocutores socioprofissionais. Contudo, o “essencialismo” desta via elimina a questão dos meios a pôr em funcionamento para atingir estes objectivos; nega o conflito que atravessa qualquer sociedade a propósito da partição e da redistribuição dos recursos. É suficiente então entregar-se à boa vontade de cada um e a regras não vinculativas. A carta dos direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, adoptada em 1989, não tem assim qualquer valor obrigatório.

No século XIX, a invenção do social – para utilizar a feliz expressão de Jacques Donzelot – perante a hegemonia do capitalismo industrial resulta de um choque violento entre duas esferas: a esfera política, que declara os cidadãos livres e iguais, e a esfera económica, que transforma a esmagadora maioria da população em escravo da boa vontade do querer patronal. O direito social oferece o meio para corrigir esta esquizofrenia da sociedade, inscrita no coração do capitalismo, levando-a a produzir instrumentos colectivos de protecção. Trata-se de proteger a ideia mesmo

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de sociedade perante o mito devastador, consagrado pelo direito civil e pelo direito comercial, segundo o qual todo e qualquer acto seria o resultado da exclusiva “responsabilidade e iniciativa individuais”, sem ter em conta as desigualdades e as relações de força. Por exemplo, não se saberia pensar o contrato de trabalho como um contrato entre indivíduos iguais.

O direito social nasce desta obrigação de se ter em conta o princípio de realidade, que a sociologia, na época ainda balbuciante, vai contribuir para revelar. Sem colocar em funcionamento instituições compensadoras, a sociedade dissolver-se-ia na crueldade do reino de alguns sobre todos. Além disso, o desenvolvimento do direito social implica necessariamente a emergência de um Estado Social que se concretiza pela criação de serviços públicos: é necessário que uma autoridade pública produza e ajude continuamente a produzir a “sociedade”, ou seja, instituições libertas, mais ou menos fortemente, das lógicas de subordinação da energia humana à valorização do capital (ensino, saúde pública, transportes públicos, etc.).

É por isso que a democracia política e a democracia social estão sempre associadas. Supõem o estabelecimento de contra-poderes, de contra-instituições, de contra correntes que criam uma autonomia de acção ao poder público, no âmbito de uma ordem pública social que transcende o peso dos interesses específicos (capitalistas, religiosos, etc.).

Todas as “invenções” que permitem um agir colectivo “foram neutralizadas” ou desmanteladas, dia após dia, nestes últimos trinta anos, pelas intervenções políticas procedentes dos novos lugares de poder transnacionais, ou seja, “transdemocráticos”, e a UE constitui um destes centros e dos mais activos. Esta destruição atingiu um tal grau que a União pode anunciar que a próxima etapa da “reforma” incidirá precisamente naquilo com que se começou a construir a autonomia pública em relação ao capitalismo: o direito do trabalho.

Assim, de acordo com a Agenda Social 2005-2010, elaborada por José Manual Barroso, “a Comissão Europeia propõe -se adoptar um Livro verde sobre a evolução

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do direito do trabalho... Neste Livro verde, a Comissão analisará a evolução actual dos novos modelos de organização do trabalho e o papel do direito do trabalho quando se trata de fazer face à estas evoluções, fornecendo um ambiente mais certo que favoreça as transições eficazes no mercado de trabalho. O debate que se abrirá poderá levar a propor um leque de acções de modernização e de simplificação das regras actuais”.

Na maior parte dos países da União, o desmantelamento do direito do trabalho progride inexoravelmente: dissolução da noção de “emprego conveniente”, simplificação dos despedimentos, ingerência dos órgãos jurisdicionais civis ou comerciais nos conflitos do trabalho (nomeadamente no que diz respeito à proibição dos piquetes de greve), utilização cada vez mais frequente de derrogações aos princípios gerais do direito do trabalho a fim de abrir a “escolha” ao regresso da responsabilidade individual... O trabalho volta a ser um objecto a-social, não regulamentado colectivamente, sujeito à quimera da liberdade e, por conseguinte, do risco, individuais.

A revisão da directiva de 1993 sobre o tempo de trabalho é exemplar deste trabalho de lenta e sistemática destruição do direito do trabalho, e em cada regressão obtida está o prelúdio da regressão que se lhe vai seguir. Esta directiva fixa a duração do trabalho semanal máxima em 48 horas em média durante 4 meses (horas suplementares incluídas). Na prática, este modo de cálculo permite impor 13 horas de trabalho por dia durante 6 dias em alternância com períodos de 6 horas por dia durante 3 dias, sem descanso compensatório para além do mínimo de 24 horas obrigatórias por semana. Esta bomba desreguladora é acompanhada duma autêntica bomba nuclear: autoriza o empregador e o trabalhador a fazer ainda mais horas, se o decidirem de um comum acordo. Retorna-se assim à primazia do contrato pessoal sobre a regra colectiva!

A 22 de Setembro de 2004, a Comissão propôs uma revisão da directiva sobre o tempo de trabalho. Longe de ilustrar a tese dos progressos em pequenos passos, este projecto destaca a mecânica europeia de “construção regressiva”. Com efeito, em vez de suprimir a possibilidade de derrogação individual por acordo

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mútuo, Bruxelas sugere simplesmente enquadrá-la por convenções colectivas. Além disso, a proposta da Comissão aumenta a duração legal de trabalho e a flexibilidade propondo que a média semanal de 48 horas seja calculada na base de 12 meses, com a obrigação de não exceder 65 horas – excepto se uma convenção colectiva o permitir. Para os sectores onde existe um “tempo de protecção”, só os períodos em que a protecção se torna activa é tida como tempo de trabalho (e por conseguinte remunerado e contabilizado para fixar a duração de trabalho e de descanso).

Após a alteração do Parlamento Europeu, é abandonada a possibilidade de renúncia individual à duração máxima semanal (estendida às 55 horas como duração possível, a média com base nos 12 meses permanece nas 48 horas), num prazo de três anos após a entrada em vigor da directiva, excepto se uma lei ou uma convenção colectiva dispuser diferentemente. Subtil e explosiva inversão: a regra colectiva nacional (lei ou contrato) permitiria fazer pior que a lei mínima europeia! Assim o Reino Unido poderia conservar o seu estatuto derrogatório. Esta sucessão de ligeiras correcções, apresentadas sempre como vitórias, conduz à elaboração de um direito social cada vez mais reduzido, globalmente regressivo, e onde múltiplas derrogações impedem raciocinar em termos de princípios gerais comuns.

“Purificar” a actividade humana

Através duma outra maneira de pensar o direito e o poder político, a ordem comunitária transformou profundamente o conteúdo da política social, neutralizando as suas capacidades de resistência e de produção de referenciais não capitalistas ou de anti-capitalistas. Já o Tratado de Roma, assinado em 1957, ordenava aos Estados franceses e italianos a redescoberta das virtudes da liberdade do mercado contra a sua cultura da intervenção pública na economia. Em 1986, a reactivação da integração económica pelo projecto do “grande mercado interno” vai reforçar a ideia da primazia de uma ordem jurídica superior – o direito da livre concorrência – que “purifique” a actividade humana de intervenções incompetentes. O Acto Único reduz a norma social (criada pela lei ou pelo contrato) à noção de “regras mínimas” que não devem perturbar a actividade das PME.

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Os tratados seguintes vão prosseguir a subordinação das regras sociais à ordem económica concorrencial: podem ser-lhe complementares, se contribuem para o bom funcionamento do mercado interno, mas não podem ser-lhe contraditórias e ainda menos paradoxais, sob pena de se tomarem como “obstáculos” a suprimir. Em 1992, o tratado de Maastricht põe claramente a política social ao serviço da competitividade das empresas. Em 1993, o Livro Branco da Comissão presidida por Jacques Delors, intitulado Crescimento, Competitividade, Emprego, faz da política de emprego o vector de reformas profundas do mercado de trabalho e dos sistemas de Segurança Social destinadas a reforçar a competitividade.

Entretanto, o diálogo social, incentivado pelo Tratado de Maastricht, desenvolve uma cultura de “desconflitualização” das relações sociais: a cultura da parceria, na qual a procura do acordo custe o que custar prevalece sobre o seu conteúdo. Em 1997, o Tratado de Amesterdão acentua a visão “de Delors” sobre o trabalho: promoção da adaptabilidade, da empregabilidade, da flexibilidade e das lógicas de “responsabilidade individual”. A política de “aumento da taxa de emprego” generaliza esta degradação: a sociedade de “pleno emprego de precários” faz-se contra a sociedade de “plenos salários”. Além disso, dois pactos intergovernamentais (os pactos de “estabilidade” e de “crescimento e emprego”) reforçam a deslegitimação, que já se tinha iniciado com o Tratado de Maastricht, dos instrumentos de política pública: protesta-se contra a fiscalidade directa, as contribuições sociais, a política orçamental, o poder de intervenção pública sobre a criação de moeda.

Em Dezembro de 2000, a Carta dos Direitos Fundamentais, incluída em 2004 pelo Tratado Constitucional, limita o direito social ao exercício da “solidariedade”. Impõe o mito liberal da “liberdade do trabalho” (o direito de trabalhar) e torna aleatório o conjunto dos direitos de remuneração. O salário, excluído das competências comunitárias, é ignorado; as prestações sociais não são garantidas como direito aos recursos.

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Em 2000, a “Estratégia de Lisboa”, adoptada aquando de um Conselho Europeu realizado na capital portuguesa, submete as outras dimensões do social (ensino, reformas, etc.) ao objectivo da obtenção de uma competitividade mais elevada: concebe-as como factor de produção e, de maneira subalterna, como instrumentos de inclusão social. Generalizam-se também os “métodos abertos de coordenação” destinados a fazer convergir as políticas sociais nacionais: retiram o social do domínio legislativo e desconectam “os direitos adquiridos” da sua história conflituosa. A legislação social europeia reduz-se, desde então, a pouca coisa, enquanto a que organiza a livre circulação dos capitais, serviços e mercadorias não cessa de aumentar. Ora, a regulamentação económica influencia necessariamente o conteúdo das políticas sociais.

Esta lenta degradação foi tornada possível porque uma parte da esquerda europeia escolheu valorizar o social como um elemento que permite “melhorar a economia europeia”, crendo assim torná-lo credível e indispensável. Esta opção significou uma tentativa de conciliar a água e o fogo (os direitos sociais e a competitividade das empresas). Permitiu à Confederação Europeia dos Sindicatos (CES) aceder a um grau de reconhecimento político elevado: assim, desde 2000, que as cimeiras sociais tripartidas da Primavera permitem uma concertação directa entre o Conselho da UE (antigo Conselho de Ministros), a Comissão e os “parceiros sociais”. O seu objectivo é “assegurar uma participação eficaz dos parceiros sociais na aplicação das políticas económicas e sociais da União”.

A estratégia do “modelo social europeu” transformou profundamente não o liberalismo económico nem a ordem política não democrática instaurada pela União, mas sim o social e a autoridade pública. A política social da União tornou-se assim um instrumento de destruição das instituições do Estado Social e dos serviços públicos e põe em perigo a própria ideia de sociedade.

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V.3. OS míNImOS SOCIAIS NO ESpAçO DA UNIãO:

A pOSIçãO DA COmISSãO EUROpEIA

EXCERTOS DE UmA COmUNICAçãO DA COmISSãO EUROpEIA

A UE desenvolveu uma estratégia no domínio do emprego que assenta em dois pilares. A nível da política económica, incluindo as suas componentes macroeconómica e estrutural, as Orientações Gerais das Políticas Económicas definem uma combinação global das políticas favorável ao crescimento e emprego no quadro de estabilidade da UEM e este aspecto deverá ser reforçado no futuro, de acordo com a resolução relativa ao Crescimento e Emprego adoptada pelo Conselho Europeu de Amsterdão. Simultaneamente, em antecipação ao título “Emprego” do Tratado de Amsterdão, o Conselho adoptou em Dezembro de 1997 orientações em matéria de emprego para as políticas do mercado do trabalho. Estas orientações para o emprego são coordenadas com as Orientações Gerais das Políticas Económicas para que sejam coerentes e se reforcem mutuamente. Serão igualmente transpostas para planos de acção nacionais, que serão debatidos pela primeira vez no Conselho Europeu de Cardiff em Junho de 1998.

Estas orientações em matéria de Emprego propõem basicamente quatro linhas de acção:

aumentar a “empregabilidade” da mão-de-obra; •promover o espírito empresarial; •incentivar a adaptabilidade das empresas e dos trabalhadores; •reforçar as políticas destinadas a assegurar a igualdade de oportunidades. •

De um ponto de vista económico, a primeira linha de acção (empregabilidade) abrange todas as políticas (formação e melhoria do capital humano, medidas activas a favor dos jovens e dos desempregados de longa duração) destinadas a evitar tensões no mercado do trabalho, principalmente quando o desemprego começar a baixar significativamente durante o processo de crescimento, e a utilizar melhor o potencial de crescimento proporcionado pela reserva de mão-de-obra.

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A segunda linha de acção (espírito empresarial) está intimamente relacionada com as reformas nos mercados dos bens e serviços e diz directamente respeito ao estrangulamento mais importante do mercado do trabalho actualmente existente, ou seja, a criação insuficiente de novos postos de trabalho.

Por último, para além de objectivos de equidade, as duas últimas orientações (adaptabilidade e igualdade de oportunidades) destinam-se a aumentar a taxa de emprego e a tomar o crescimento mais gerador de postos de trabalho. O terceiro vector de intervenção (adaptabilidade) tem por objectivo fomentar uma abordagem mais dinâmica no que diz respeito à melhoria da situação em termos de emprego, tomando as empresas mais produtivas e competitivas. Tal inclui, designadamente, as medidas tomadas pelos governos e pelos parceiros sociais destinadas a modernizar a organização do trabalho (em matéria de tempo de trabalho, novas formas de contratos, etc.), assegurando simultaneamente o devido equilíbrio entre flexibilidade e segurança. O quarto vector de intervenção (igualdade de oportunidades) tem por objectivo aumentar a taxa de emprego, eliminando os diferenciais existentes entre os homens e as mulheres, reconciliando o trabalho e a vida familiar, facilitando a reintegração no mercado de trabalho e promovendo a integração de deficientes na vida activa.

No que se refere ao aumento do conteúdo de emprego do crescimento, as reformas estruturais têm como efeito um crescimento mais lento da produtividade aparente do trabalho, podendo assim ser gerados mais postos de trabalho para uma determinada taxa de crescimento do PIB. É óbvio que o objectivo não consiste nem em limitar a produtividade a nível sectorial ou a nível das empresas, nem em reduzir o progresso a nível organizativo ou técnico, uma vez que tal iria prejudicar a competitividade e o bem-estar geral. Segundo este raciocínio, o abrandamento da produtividade aparente do trabalho, a nível macroeconómico, poderá resultar de:

(i) uma menor substituição do trabalho pelo capital;

(ii) uma maior partilha do tempo de trabalho (reorganização e redução do tempo de trabalho, incluindo postos de trabalho a tempo parcial).

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(i) Desaceleração do processo de substituição do trabalho pelo capital através de um alargamento do leque salarial

De um ponto de vista macroeconómico, um processo geral de moderação dos aumentos salariais, no âmbito de uma determinada estrutura salarial, que não repercuta nos salários reais o aumento da produtividade decorrente da substituição capital-trabalho, tal como ocorreu em 1982-89 e em 1992-96, seria benéfico mas levaria algum tempo a produzir efeitos significativos, a não ser que a moderação fosse muito intensa. Por outro lado, estes efeitos de substituição seriam completados com efeitos fortes e imediatos a nível da rendibilidade, devido à redução do custo real do trabalho por unidade produzida. Por seu turno, este último aspecto tem um forte impacte potencial no emprego ao tomar possível um crescimento mais rápido em moldes clássicos, isto é impulsionado pelo investimento, superior ao aumento da produtividade quando as expectativas a nível da procura forem favoráveis.

Uma abordagem alternativa consistiria em pressupor que o leque salarial seria significativamente alargado, principalmente a nível dos salários mais baixos. Actualmente, parte-se do princípio de que as economias da UE não estão a utilizar todas as oportunidades de emprego, principalmente nas actividades de baixas qualificações e baixa produtividade que estão actualmente excluídas do mercado devido aos custos salariais demasiado elevados. Caso sejam criadas as condições que permitam a plena utilização destas oportunidades, a reentrada no processo de produção de actividades com uma produtividade abaixo da média iria, pressupondo-se a invariância de outros elementos, provocar uma redução na produtividade aparente do trabalho.

Existem basicamente duas formas de incluir no processo económico actividades com custos salariais demasiado elevados face ao respectivo nível de produtividade.

Alargar o leque salarial para o segmento dos salários mais baixos• . Para atingir este objectivo, um alargamento do leque salarial no segmento

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dos salários mais baixos implicaria uma descida nos custos salariais de actividades que empregam mão-de-obra pouco qualificada, de cerca de 20 a 30%, tal como aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos durante as décadas de 70 e de 80. Além disso, para ser eficaz, o alargamento do leque salarial no segmento dos salários mais baixos exigiria na Europa uma redução correspondente dos subsídios de desemprego e dos regimes de protecção social, por forma a eliminar as denominadas “armadilhas da pobreza”.

Esta situação levaria, ceteris paribus, a um alargamento da distribuição do rendimento o que provocaria uma maior desigualdade e, em última análise, iria criar grupos de “trabalhadores pobres” que não estariam em condições de subsistir de forma aceitável com base nos seus salários. Esta evolução introduziria na Europa uma forma de exclusão com consequências tão graves em termos de coesão social como o desemprego; de notar que actualmente nos Estados Unidos estas consequências são consideradas de tal forma graves que se regista uma passagem para um sistema menos extremista e para um regime de apoio social sob a forma do denominado “crédito fiscal sobre rendimentos do trabalho”. Na Europa, tal significaria que uma parte das poupanças resultantes dos subsídios de desemprego deveria ser deslocada para outras formas de transferências sociais e, consequentemente, não viria minorar as restrições do orçamento público.

Esta forma de redução dos custos salariais seria assim dificilmente aplicável na UE, embora acordos colectivos pragmáticos entre parceiros sociais e, designadamente, a fixação de salários iniciais para os desempregados de longa duração, possam para ela contribuir.

• Redução dos custos não-salariais do trabalho. Na maior parte dos países, as contribuições para a segurança social constituem de longe a componente mais importante da carga fiscal sobre o factor trabalho. Estas têm frequentemente uma estrutura complexa que, para além do seu aspecto indesejável de constituírem um imposto sobre a utilização do factor trabalho, faz com que

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incidam, em termos relativos, mais pesadamente sobre os salários mais baixos. Além disso, estes sistemas foram criados enquanto expressão de solidariedade social numa altura em que o número de contribuintes era elevado (fraco nível de desemprego e elevada taxa de emprego), os orçamentos estavam equilibrados e era possível aumentar o grau de solidariedade. Actualmente, a taxa de emprego e consequentemente o número de contribuintes desceu, as despesas sociais estão a aumentar e é difícil aplicar, em termos políticos, reduções significativas no nível de generosidade dos sistemas. Esta situação provocou um ciclo vicioso de contribuições sociais cada vez mais elevadas e de cargas fiscais que incidem sobre uma proporção decrescente de trabalhadores relativamente ao número total de beneficiários potenciais. Por exemplo, a parte das contribuições da segurança social no PIB, que era de cerca de 10,5% em 1970 eleva-se actualmente a cerca de 16% para a UE no seu conjunto, e representa apenas uma parte da carga fiscal total que incide sobre as remunerações salariais.

Inicialmente, entre 1970 e 1981, o aumento da carga fiscal sobre o trabalho foi acompanhado de um aumento nos custos totais do trabalho por unidade produzida, ou seja, o peso da massa salarial global no PIB. Com efeito, durante esses anos, a parte dos salários no PIB aumentou em 4,6 pontos percentuais. Contudo, entre 1981 e 1997, a forte moderação salarial veio compensar largamente este aumento. Entre 1981 e 1997, a parte dos salários no PIB diminuiu em 6,0 pontos percentuais, o que fez com que os custos salariais por unidade de produto descessem para um nível inferior ao de 1970. Assim, o aumento da carga fiscal foi totalmente repercutido no rendimento salarial. Esta evolução deverá continuar num futuro próximo, contribuindo assim para urna nova melhoria da rendibilidade.

Contudo, apesar deste desenvolvimento favorável dos custos totais do trabalho por unidade produzida, é indiscutível que a nível individual a carga fiscal continua a ser muito elevada, sendo principalmente prejudicial na parte mais baixa do leque salarial, uma vez que provoca a exclusão do

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mercado de tarefas menos qualificadas e menos remuneradas, e o aumento da “economia subterrânea”.

Dado o volume da carga fiscal sobre o trabalho, existe uma margem suficiente para uma redução nos custos salariais dos empregadores sem reduzir o rendimento salarial líquido dos assalariados. Contudo, uma redução geral e uniforme não produziria, sobre o custo do trabalho por unidade produzida, um maior efeito do que alguns anos de nova moderação salarial, mas implicaria quer uma forte redução dos benefícios sociais, quer um elevado custo orçamental que ultrapassaria em muito os efeitos de estabilizador automático decorrentes da redução do número de desempregados. Esta redução teria assim de ser compensada por outras reformas fiscais (incluindo, se for caso disso, impostos ambientais mais elevados) que deveriam, obviamente, produzir o menor número possível de efeitos secundários negativos (em termos de inflação por exemplo), condição que não é fácil preencher. Por outro lado, os cortes na carga fiscal seriam mais eficazes se fossem orientados especificamente para certos grupos da mão-de-obra na parte inferior do leque salarial (trabalhadores jovens, desempregados de longa duração com baixas qualificações) onde o seu impacte poderá ser mais significativo, principalmente quando combinado com medidas activas do mercado do trabalho, por exemplo a nível da educação, regimes de aprendizagem, formação profissional e reciclagem, que seriam em parte financiadas utilizando as transferências sociais de forma mais activa, tais como subsídios de desemprego, e novas formas de parceria com o sector privado. Deste modo, as consequências orçamentais poderão permanecer dentro de limites razoáveis. Neste contexto, e no intuito de maximizar o impacte sobre o emprego, deve ser igualmente atribuída especial atenção à necessidade de diminuir tanto quanto possível a substituição e os efeitos negativos decorrentes de reduções específicas na carga fiscal.

Estas reduções da carga fiscal sobre o trabalho deverão ser integradas nas reformas gerais dos sistemas de segurança social e da estrutura fiscal

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necessárias por muitas outras razões (envelhecimento, explosão dos gastos com a saúde, eliminação das “armadilhas da pobreza”, introdução de impostos ambientais, etc.).

Assim, deverá ser dada uma atenção contínua à relação entre salários e produtividade, no âmbito do processo normal das negociações colectivas de trabalho, juntamente com uma reforma fiscal quando necessária, o que contribuirá para que o crescimento gere mais emprego, ao impulsionar condições de mercado conducentes à retoma e ao desenvolvimento de actividades actualmente excluídas do mercado devido aos seus custos e ao reduzir a economia “subterrânea”.

© Chomages et Précarité, l'Europe vue d'en Bas, 2003.

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AnEXO

AS SOLUçÕES URGENTES CONTRA A pRECARIEDADE E O DESEmpREGO:

A pROpOSTA DA ATTAC

O desemprego e a precariedade não são fatalidades do século XXI. Lutar contra estas calamidades exige reorientar e reorganizar a actividade humana com o objectivo de satisfazer as necessidades sociais e ecológicas. Esta urgência deve ser determinante nas políticas económicas e sociais na França, na Europa, no mundo.

Para voltar a dar sentido à construção europeia é necessário reorientá-la radicalmente:

1. Efectuar uma outra política económica: é necessário acabar com o “Pacto de Estabilidade e Crescimento”. É necessário reformar o BCE para poder permitir aos Estados contraírem empréstimos junto do seu Banco central ou ao BCE financiar investimentos úteis e aplicar uma política de créditos diferenciados que favoreçam a satisfação das necessidades ecológicas e humanas. É necessário aumentar o orçamento europeu, nomeadamente por uma tributação dos rendimentos financeiros. É necessário uma harmonização fiscal europeia sobre o capital e os seus rendimentos a fim de dar aos Estados e às autarquias locais os meios para uma política que responda às necessidades ambientais e sociais. Uma tal política fiscal permitirá a aplicação de políticas europeias e nacionais ambiciosas no desenvolvimento dos serviços e do emprego público (ou associativos subvencionados): saúde, educação, infância, pessoas idosas, transportes colectivos, alojamento social, cultura, ambiente; assim como no desenvolvimento maciço dos investimentos públicos e privados nos domínios das energias renováveis, nas poupanças de energia, na investigação fundamental e aplicada.

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2. Exigir a fixação de normas europeias: é necessário fixar um salário mínimo na indústria e comércio (SMIC) em cada país e estabelecer um calendário de convergência destes SMIC; harmonizar progressivamente para cima (num prazo de 5 a 10 anos) as normas sociais em matéria de direitos, protecção e condições de trabalho.

3. Impor às empresas uma democratização e critérios ecológicos e sociais: os eleitos dos assalariados, em ligação com os parceiros sociais externos (autarquias, associações de residentes e de defesa do ambiente, associações de pacientes...) devem dispor de direitos democráticos a fim de serem voz activa nas escolhas estratégicas de produção e de investimento (natureza, localização...) e forçar as empresas a ter em conta as consequências das escolhas das tecnologias e das produções sobre a saúde dos assalariados, das populações e sobre o ambiente. É necessário impor uma responsabilização social e ambiental das empresas: cada empresa deve produzir um relatório anual detalhado e calculado, com indicadores estandardizados, sobre as consequências sociais (salários, emprego, igualdade profissional, condições de trabalho, saúde no trabalho) e ambientais (desperdícios, rejeições poluentes, emissões de CO2) da sua actividade e da dos seus sub-contratantes, na Europa e no mundo. É necessário organizar um sistema de financiamento público de informação e verificação dos relatórios anuais das empresas e organizar a informação dos consumidores sobre os custos sociais e ecológicos dos produtos e dos serviços. É necessário, por último, transformar e reforçar consideravelmente a intervenção pública europeia e nacional com finalidades sociais ou ambientais (normas, tributação, sanções).

4. Reconsiderar as trocas internacionais: é necessário organizar as trocas (capitais, bens, serviços, tecnologias) com o resto do mundo de acordo com modalidades de cooperação e renunciar ao comércio livre, à concorrência desenfreada. É necessário privilegiar as relações comerciais e financeiras em blocos regionais e promover uma relocalização selectiva das produções, ao mesmo tempo por razões sociais (limitar o colocar em concorrência os próprios trabalhadores) e ambientais (reduzir as emissões de gases com efeito de estufa).

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Os nossos mercados não devem ser fechados aos países do Sul. Mas qualquer abertura deve ser acompanhada de uma política e de regras ambientais, de progresso social e de defesa dos direitos do homem que devem prevalecer sobre as regras da concorrência. A UE e os seus Estados-Membros devem impulsionar outra mundialização, e para isso comprometer-se no combate político para a instauração de tributações globais: sobre as transacções financeiras, sobre as emissões de CO2... O combate contra o desemprego e a precariedade é também um combate mundial e para isso é necessário sair do quadro do neoliberalismo internacional.

Para uma segurança de rendimento, de emprego e de trabalho: é necessário reformular os “mercados de trabalho”.

5. Um CDI ou um estatuto para todos: é necessário revogar os dispositivos que institucionalizam a precariedade (Contrato de novo emprego (CNE), CDD, contrato de trabalho temporário (interim)). A norma do contrato de trabalho deve ser o CDI a tempo inteiro, excepto se o de tempo parcial for escolhido e for reversível. É necessário instaurar o direito à passagem a trabalho a tempo inteiro para todos os assalariados que estão sujeitos a contratos a tempo parcial, sendo muito maioritariamente mulheres; é necessário também suprimir as isenções de contribuições sociais patronais para os empregos a tempo parcial. É necessário aumentar fortemente as horas suplementares. É necessário alargar os direitos dos assalariados dos grandes grupos aos assalariados dos sub-contratantes, nos domínios do emprego, dos salários, das instituições representativas, da negociação colectiva, da saúde e segurança, instaurando unidades económicas e sociais; é necessário duplicar pelo menos os efectivos da Inspecção do Trabalho para fazer respeitar o Código do Trabalho.

6. Lutar contra todas as discriminações: a igualdade profissional, o direito ao trabalho e a um emprego estável devem ser assegurados independentemente do sexo, da orientação sexual, da origem, do estado de saúde... A luta contra as discriminações passa por múltiplas acções de sensibilização e por uma repressão sistemática dos comportamentos abusivos dos empregadores. É necessário

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também reforçar consideravelmente a acção dos serviços públicos (emprego, educação, transportes, alojamento...) contra a discriminação geográfica nos bairros desfavorecidos, deixados demasiado frequentemente ao abandono.

7. Privilegiar as alternativas aos despedimentos e reforçar a regulamentação: é necessário suprimir as ajudas públicas às empresas que despedem para aumentar os seus lucros e fazer pagar uma “restituição social” às que o fazem, para aumentarem os seus lucros. O despedimento económico deve ser subordinado à necessidade de preservar a existência da empresa, e não o seu nível de rentabilidade. A obrigação de reclassificação dos assalariados deve ser reforçada. Novos direitos devem ser atribuídos aos assalariados e aos seus eleitos: direito de veto do Comité de empresa (ou obrigação de negociar e chegar a um acordo de empresa maioritário) quanto aos planos de supressões de emprego. Os poderes públicos devem favorecer a retoma das empresas viáveis pelos seus assalariados sob a forma de cooperativa ou SCIC (Sociedade Cooperativa de Interesse Colectivo, associando assalariados e parceiros sociais externos) gerida democraticamente.

8. Criar uma segurança social profissional: o direito ao rendimento e à formação deve ser desligado do emprego numa empresa específica. No caso de supressão de empregos justificada, se a empresa não pode verdadeiramente assegurar a reclassificação do assalariado, a Segurança Social profissional deve organizá-la no ramo ou na bacia de emprego, assegurando a manutenção do nível de qualificação e garantindo a remuneração durante os períodos de procura de emprego ou de formação. Esta Segurança Social profissional será financiada, em especial, por uma contribuição paga pelas empresas e proporcional ao grau de instabilidade da sua mão-de-obra: as empresas que despedem ou que precarizam a sua mão-de-obra deverão, assim, ser penalizadas. O Estado aqui deve co-financiar com direitos de saque sociais atribuídos a cada assalariado por um período garantido, por exemplo cinco anos, durante a vida activa.

9. Instaurar um rendimento mínimo decente, um verdadeiro “rendimento de resistência”: todos os mínimos sociais devem ser unificados num nível que permita

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viver decentemente. Este rendimento mínimo deve ser um direito individual e não ligado à situação familiar. Permitirá o desenvolvimento de actividades autónomas, autogeridas, cooperativas, solidárias, libertando as faculdades de agir de cada um, reduzindo a pressão do desemprego e da precariedade sobre as condições de vida e de trabalho de todos.

10. Reduzir o tempo de trabalho: a redução do tempo de trabalho permite a curto prazo criar maciçamente empregos e, a médio prazo, afectar os ganhos de eficácia económica aos ganhos de tempos livre mais do que à acumulação de bens materiais. É por conseguinte uma medida social e ecologicamente decisiva. As 35 horas em França criaram 500000 empregos entre 1998 e 2001, mas teriam podido criar três vezes mais. É necessário generalizar de imediato as 35 horas semanais a todos os assalariados; programar a passagem para as 32 horas, seguidamente às 30 horas nos cinco anos seguintes. É necessário impor regras sobre as condições e a organização do trabalho de forma a limitar o risco que a redução do tempo de trabalho (RTT) seja acompanhada pela flexibilização e pela intensificação do trabalho.

11. Revalorizar o SMIC e os baixos rendimentos: a Attac coloca à discussão, nos seus órgãos e na sociedade, a proposta de subir o SMIC para 1500 euros e de o indexar, bem como todos os baixos rendimentos, à produtividade. Empenha-se também numa reflexão sobre a diferença máxima tolerável entre os rendimentos. A quase estagnação dos salários desde há 25 anos deprime a procura e trava a criação de empregos. Os países (como o Reino Unido ou a Espanha) onde os salários acompanharam os ganhos de produtividade são também os que criaram mais empregos durante os últimos dez anos. Todos os assalariados próximos do SMIC devem beneficiar ao mesmo tempo desta indexação e da redução do tempo de trabalho (RTT), o que permitirá inverter a tendência do aumento da parte dos lucros no valor acrescentado. Os assalariados mais bem remunerados melhorarão primeiramente a sua situação através da RTT sem baixa de salário.

12. Financiar a eliminação do desemprego e da precariedade pela tributação e pelo decréscimo dos rendimentos financeiros: todos os rendimentos

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financeiros distribuídos nas empresas (dividendos, prémios de participação) devem estar sujeitos às contribuições sociais e depois também sujeitos a limites máximos, de modo que a escala das remunerações nas empresas não exceda a relação de 1 para 5. As stock-options devem ser suprimidas. É necessário reformar a fiscalidade para a tornar mais progressiva.

13. Instaurar uma ecologia do trabalho: a intensificação do trabalho e do sofrimento no trabalho tornam muitos empregos insustentáveis. É necessário:

. impor um reconhecimento efectivo das doenças profissionais (cancros, perturbações músculo-esqueléticas, perturbações depressivas, hoje maciçamente ocultadas pelas empresas e pela Segurança Social);

. penalizar as empresas que tornam os seus assalariados doentes;

. reforçar a representação colectiva dos trabalhadores para instaurar um direito de inspecção sobre as condições e a organização do trabalho.

Sem mais demoras, esta nova política nacional deve ser iniciada, desenvolvida. A reformulação da Europa, que está no centro do combate de Attac, permitir-lhe-á o máximo do seu desenvolvimento.

© Chomages et Précarité, l'Europe vue d'en Bas, 2003.

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bibliOGrAFiA

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Globalização é um daqueles termos que passaram directamente da obscuridade

para a ausência de sentido, sem qualquer fase intermédia de coerência.

Mas deixem-me dizer apenas o seguinte: a globalização é também muito importante

e é totalmente consistente com mais e melhores empregos,

salários decentes e empregos decentes.

Robert Reich, ministro do trabalho da Administração Clinton

Defino globalização como a liberdade para o meu grupo de investir onde quiser,

o tempo que quiser, para produzir o que quiser, comprando e vendendo onde quiser,

suportando o mínimo de obrigações possíveis em matéria de direito do trabalho

e de convenções sociais.

Asea Brown Bovery (Presidente do grupo ABB, 12ª empresa mundial)

Juntem o pior do capitalismo com o pior do comunismo e terão uma ideia

do rumo que a globalização está a tomar.

Alain Supiot

Ciclo organizado pelos docentes da disciplina de Economia Internacional

da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Colaboração do Núcleo de Estudantes de Economia da Associação Académica de Coimbra

Apoio da Coordenação do Núcleo de Economia da FEUC

Com o apoio das instituições:

Caixa Geral de Depósitos

Fundação Luso-Americana

Fundação para a Ciência e Tecnologia

Fundação Calouste Gulbenkian

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

Integração Mundial, Desintegração Nacional:

a Crise nos Mercados de Trabalho

Textos seleccionados, traduzidos e organizados por:

Júlio Mota

Luís Peres Lopes

Margarida Antunes