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Quando a “ação não vai dar em nada”? Introdução O objetivo deste trabalho é apresentar os resultados parciais da pesquisa etnográfica realizada de julho a a outubro de 2013 acerca de um Núcleo de Primeiro Atendimento do Juizado Especial Cível da Comarca de Araruama, na região dos lagos do Estado do Rio de Janeiro: O Núcleo de Atendimento Distribuição Autuação e Citação (NADAC). Durante a pesquisa, observei o trabalho dos servidores deste núcleo a fim de compreender como eles realizam uma seleção dos casos que se tornarão ações judiciais. Esta pesquisa se encontra inserida em uma trajetória de pesquisas sobre reformas na justiça brasileira e sobre as práticas em instituições criadas com elas ou por elas afetadas, como os Centros de Integração da Cidadania (Sinhoretto, 2007), os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Moreira-Leite, 2003; Burgos, 2003; Azevedo, 2001), a polícia (Paes, 2008) e Núcleos de Primeiro Atendimento (Valim, 2012). Tais pesquisas também integram os esforços em realizar pesquisas empíricas sobre o direito (Geraldo, Fontainha e Veronese, 2010) como forma de melhor compreender a práxis jurídica a partir da ótica da práxis considerando-a como construção em vez de algo dado a priori (Dupret, 2010). Metodologia Para tanto, realizei uma observação participante, como pesquisadora e estagiária no NADAC, depois somente como pesquisadora, comparecendo três vezes por semana e permanecendo nos dois turnos de trabalho dos estagiários: matutino e vespertino. Isto contribuiu para a melhor compreensão das práticas dos servidores responsáveis pelo primeiro atendimento em que se inicia o processo com a formulação e distribuição das petições iniciais. A observação

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Page 1: Descrição NADAC (entrada)

Quando a “ação não vai dar em nada”?

Introdução

O objetivo deste trabalho é apresentar os resultados parciais da pesquisa etnográfica realizada de julho a a outubro de 2013 acerca de um Núcleo de Primeiro Atendimento do Juizado Especial Cível da Comarca de Araruama, na região dos lagos do Estado do Rio de Janeiro: O Núcleo de Atendimento Distribuição Autuação e Citação (NADAC). Durante a pesquisa, observei o trabalho dos servidores deste núcleo a fim de compreender como eles realizam uma seleção dos casos que se tornarão ações judiciais. Esta pesquisa se encontra inserida em uma trajetória de pesquisas sobre reformas na justiça brasileira e sobre as práticas em instituições criadas com elas ou por elas afetadas, como os Centros de Integração da Cidadania (Sinhoretto, 2007), os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Moreira-Leite, 2003; Burgos, 2003; Azevedo, 2001), a polícia (Paes, 2008) e Núcleos de Primeiro Atendimento (Valim, 2012). Tais pesquisas também integram os esforços em realizar pesquisas empíricas sobre o direito (Geraldo, Fontainha e Veronese, 2010) como forma de melhor compreender a práxis jurídica a partir da ótica da práxis considerando-a como construção em vez de algo dado a priori (Dupret, 2010).

Metodologia

Para tanto, realizei uma observação participante, como pesquisadora e estagiária no NADAC, depois somente como pesquisadora, comparecendo três vezes por semana e permanecendo nos dois turnos de trabalho dos estagiários: matutino e vespertino. Isto contribuiu para a melhor compreensão das práticas dos servidores responsáveis pelo primeiro atendimento em que se inicia o processo com a formulação e distribuição das petições iniciais.

A observação

O NADAC é uma criação recente, formalizada por um Provimento estadual1, complementar aos cartórios dos Juizados Especiais Cíveis cuja função abrange desde o atendimento até a distribuição dos processos tanto daqueles feitos no NADAC quanto daqueles levados pelos advogados. O primeiro atendimento consiste na tarefa de receber as pessoas e orientá-las quanto aos procedimentos necessários para que seu problema seja juridicamente acolhido e solucionado, transformado em processo e distribuído. O prosseguimento do processo depois de distribuído até a decisão é acompanhado pelo Cartório do Juizado, não mais pelo Núcleo. O discurso acerca da necessidade de sua criação assenta-se, bem como ocorre com a criação dos Juizados, na ideia de ampliar o acesso à justiça e o exercício da cidadania de modo informalizado, simplificado, rápido e, neste caso, também no cumprimento do dever de

1 Provimento Estadual CCJ nº 24 de 17/10/2008. Há outros NADAC além deste criados ou legitimados por outros provimentos.

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assegurar a efetivação do direito constitucional de petição escrito no Art. 5º, XXXIV “- são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” com a presença de estagiários que fazem as petições.

Durante o período que acompanhei as ações nesse Núcleo, observei o atendimento que é feito às pessoas que chegam ao balcão do NADAC bem como os estagiários transformam os relatos em petição2. Elas vêm à procura de alguma informação e contando seus problemas. Neste momento os servidores põem em prática as categorias jurídicas para selecionar aquelas histórias que serão transformadas numa ação judicial e aquelas que não chegam a se tornar ação pelas mãos do NADAC, pois “não darão em nada”, como me explicou um servidor. Além disto, tenho observado casos em que os servidores sabem que a “ação não vai dar em nada”, O caso a seguir demonstra como esta seleção é feita. Um senhor chegou ao balcão pedindo que o ajudassem a “limpar” seu nome do SERASA, pois ele tinha uma dívida em um banco que faliu e pela falência do banco estava convicto de que sua dívida se extinguira. Foi-lhe dito que se ele quisesse poderia “entrar contra o banco” que era o responsável, não contra o SERASA, mas que ele corria o risco de “levar uma litigância de má-fé”, pois ele devia aquela quantia. Ele não aceitou essa resposta e insistiu que queria processar o SERASA. Então, a Supervisora não deixou que nenhum estagiário fizesse essa petição, pois além de "não dar em nada" ela ainda passaria "um atestado de burrice" ao Juiz que "daria um esporro" no pessoal do NADAC por fazer uma petição tão "bizarra" quanto essa e disse ao senhor que se ele quisesse era "só levar o modelo e fazer em casa" que eles distribuiriam lá, já que no Juizado “você pode processar até a lua” com seu direito de petição.

As categorias mobilizadas pela servidora, como “ação que não vai dar em nada”, “ação que não vai pra frente”, “casos bizarros”, “você pode processar até a lua” nos mostram formas de categorização peculiares desse local, e reproduzidas por esses atores, as quais não são encontradas em nenhum manual jurídico. Entretanto, são reproduzidas constituindo um saber local reproduzido por intermédio das ações cotidianas ensinadas aos que chegam e que internalizam aquelas categorias e as formas de aplicá-las. As práticas, então, nos mostram qual o significado dessas categorias e qual o sentido das ações das pessoas que as mobilizam, criam , atualizam e as reproduzem rotineiramente.

2 Petição é um pedido construído em uma folha contando o que aconteceu à pessoa, o que se quer que se faça sobre o acontecimento e a legislação que assegura essas ações pedidas. Depois de pronta, seguindo uma forma específica de ser escrita, a petição é inserida em uma pasta junto a documentos que podem ser analisados pelo Juiz que deverá ler tudo isso para julgar a causa. Porém, como veremos, há diferentes modos de construir uma petição.

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Selecionei alguns casos, como o descrito acima, pois percebi que durante o atendimento desses casos é que as principais categorias são atualizadas pelas pessoas e é neste momento que se opera uma triagem, uma seleção dos casos que se tornarão ação judicial e que este procedimento pouco ou nada tem a ver com o discurso atualizado pelos idealizadores dos Juizados e, mais propriamente do NADAC, sobre assegurar o “direito constitucional de petição”, pois este é normativamente orientado enquanto na prática, embora se perceba a influência de normas, são as experiências adquiridas e atualizadas que preponderantemente orientam as ações.

Neste caso, como ocorre no Programa Delegacia Legal em que, nos diz Paes “os diferentes usos dos registros por parte dos policiais denotam que são eles que dominam as “regras do jogo”, quem deve ou não registrar, o que deve ou não ser registrado, o que merece ser investigado e o que vai ou não se tornar inquérito” (2008, p.183) são os servidores que dominam as regras, sabem e decidem o que vai ou não, o que vale ou não a pena se tornar petição; aquelas ações que “darão em nada” e aquelas que darão certo.

Estas práticas são, contudo, limitadas de certa maneira. Os praticantes, atores, são constrangidos pela organização social do trabalho naquele local, como nos explica Dupret quando diz que o contexto institucional judiciário “constrange os atores profissionais a se orientarem para a produção de uma decisão juridicamente pertinente” (2010, p.109). Esta condição é identificada, claramente, quando um servidor diz que não fará a petição, senão ganhará um “atestado de burrice”, uma repreensão do Juiz, por exemplo.

Nesse sentido, mais que averiguar a correspondência entre teoria e prática, todas as observações contribuem para a elucidação de que é pela apropriação e atualização das práticas contextualizadas que os atores se orientam e passam a orientar futuros atores sendo estas realidades informantesdo funcionamento dessa parte do Juizado Especial Cível. As leis, esta normatividade é, quando se quer, acionada pelos atores em seu discurso para a realização da triagem dos casos.

Portanto, se por um lado há o discurso da necessidade de existirem Núcleos de Primeiro Atendimento, o qual foi estendido aos NADACs, segundo o qual ocorre, como escreveu Valim, “a instituição dos Núcleos de Primeiro Atendimento para a concretização dos direitos fundamentais a uma condição digna de existência de reconhecimento do direito de cidadania” (2012, p.182), durante a observação não se faz menção a esse discurso, exceto para fins de triagem. O que está em foco pelos próprios atores é muito mais a rotina, a práxis, as preocupações pessoais, profissionais, institucionais, o que se tornará petição, do que a efetivação do direito à petição da maneira idealizada, ou desta ou daquela norma, deste ou daquele princípio jurídicos.

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Primeiros contatos

“Quarta-feira, dia 3 de julho de 2013

Andando pelo centro da cidade comendo chocolate meio amargo e vestida casualmente, de chinelo, short e blusa, por volta das 14h, próximo à Defensoria de Araruama, encontrei o Defensor da Vara de Família cuja rotina acompanhei este ano durante aproximadamente um mês e meio3.

(aperto de mãos)

Def.: - E aí, sumida? Como você está?

I.: - (risos) Tô sumida mesmo, mas tô bem e vou voltar a aparecer

Def.: -Ah, que bom (sorridente).

I.: -Agora, eu tô como pesquisadora.

Def.: -Que ótimo! Você entroude férias agora?

I.: -Não, tô em outro período. Tô no terceiro.

Def.: -E tá gostando?

I.: -Tô. Me perguntam, às vezes, se eu não gostaria de ir pra pesquisa e largar o direito, mas eu gosto dos dois...

Def.: -Ah, não... Você pode pesquisar no direito. O direito tem pesquisa também, ora! (enfático)

I.: -É... Aí eu volto, mas meu orientador quer que eu pegue o Juizado especial cível no tribunal.

Def.: -Ahn...

I.: -O senhor sabe quem tá lá?

Def.: -Quem tá lá é o Dr. Rafael...

I.: -Dr. Rafael,o Dr. Rafel de família?

Def.: -É, ele tá acumulando as duas funções, mas ele não faz audiência. Quem faz é a Juíza leiga, a Tatiana.

I.: -Ele (orientador) queria que eu pegasse o cartório...

3 Para fazer um trabalho na disciplina Antropologia Jurídica o acompanhei no dia-a-dia da Defensoria e nas audiências.

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Def.: -O cartório? Ah, mas eu acho que não é vantagem, não; é muita burocracia...

I.: -Não, mas ele quer que eu acompanhe os dois: o cartório e as audiências. Têm mais conciliação que audiência né?

Def.: -Tem, mas audiência tem sempre.

I.: -Então, nessa semana ou na outra eu volto. As meninas (da defensoria) continuam lá?

Def.: -Continuam, sim.

I.: -Ah, então manda um beijo para todas elas.

Def.: -Mando sim.”

Assim obtive as forças que me faltavam em meio a incertezas e inseguranças e decidi ir a uma audiência de família4 falar com o Defensor e o Juiz5 sobre minha intenção em pesquisar o Juizado Especial Cível (JEC).

Na terça-feira da semana seguinte, dirigi-me ao Fórum e por já conhecer o caminho caminhei até a sala de audiências da Vara de família no segundo andar. Cheguei às 14:45, as audiências já tinham começado, esperei sentada ao lado de outras pessoas, até que outra audiência fosse convocada, quando o Defensor Bruno6 abriu a porta para chamar a próxima parte7 e nessa oportunidade perguntei se podia entrar também, fui permitida e entrei.

Cumprimentei todos na sala, o Juiz Pablo, a Promotora Luíza e a auxiliar do juiz Clara. Fui muito bem recebida, agradeci pelo período em que acompanhei as audiências de família, por todos terem sido solícitos... Logo, o Juiz perguntou se eu já acabara a matéria –antropologia jurídica-, respondi positivamente acrescentando que agora retornara como bolsista de IC8 pela UFF em um projeto chamado “As práticas de administração de conflitos nas instituições judiciárias” quando fui interrompida pela entrada das partes iniciando uma nova audiência.

Quando se abriu outro intervalo, o Juiz perguntou de novo o nome do projeto, eu respondi e ele comentou com a Promotora:4 Audiência na Vara de Família no Fórum de Araruama. Neste caso, deveria ir em uma terça ou em uma quinta, os únicos dias em que o Defensor “fazia audiências” com o “Juiz de Família” ocupando a maior parte da pauta do dia. Pode-se dizer que esses dias eram reservados aos casos do Defensor.5 Como veremos, devido ao meu contato anterior os dois e a promotora, esta surgirá em breve, me indicaram o caminho e auxiliaram minha entrada no NADAC. 6 Todos os nomes citados são fictícios para a preservação da identidade dos meus interlocutores.7 Parte ou partes, basicamente, é o nome dado às pessoas que estão em algum processo, processando ou sendo processadas.8 Iniciação Científica.

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“-É... é um nome bonito, não? Mas, eu não entendi nada! Você entendeu?” Ela balançou a cabeça negando. Eu ri e expliquei:

“-Basicamente, é saber como o judiciário administra, resolve os conflitos.”

Houve outra audiência e no intervalo seguinte falei que voltaria, mas agora precisava frequentar e acompanhar o JEC. Ao ouvir isso, o Juiz exclamou:

“-Então, eu tenho uma coisa pra te dizer... horrível! Horroroso! Meu Deus... não tinha uma coisa pior, não? Aqui já é horrível, lá é pior.”

Aproveitei esta reação para tentar adentrar nos motivos que o faziam julgar tão mal o JEC, saber por que ele achava horrível, no diálogo que segue.

Eu: “-Mas, por que horrível?”

Juiz: “-Porque o Juizado se transformou em um meio de ganhar dinheiro. Com o Juizado, o judiciário assinou sua sentença de morte.”

Eu: “- Então, preciso acompanhar o juizado porque é a linha de pesquisa do meu orientador. Soube pelo Dr. Bruno que o senhor está acumulando a função no Juizado e eu gostaria de acompanhar as audiências e a rotina do cartório.”

Ele, o Defensor, e a Promotora disseram quase em uníssono que “não tinha nada no cartório”. Eu continuei:

“-É só burocracia?”

Juiz: “-É. Não tem nada.”

Juiz.: “-Você gosta das frases que eu falo, não gosta? Pra colocar aí (no pedaço de papel que eu tinha em mãos)?”

Eu:”-Sim.”

Juiz: “-Então vou te falar mais uma. O juizado especial é pau de dar em doido. O problema é que de graça. As causas são tão pequenas que não pagam todo o trabalho do judiciário.”

Eu: “-Então, mas é a rotina que eu preciso acompanhar.”

Juiz com ar de incredulidade: “-Mas, a rotina do cartório...”

Então, o Defensor interferiu sugerindo que eu começasse pelo NADAC. O Juiz me explicou que era um lugar em que eu teria contato maior com o Direito vendo os problemas chegando e a aplicação das leis, além de ser propício para aprender a peticionar. Ele me perguntou se eu queria, eu aceitei, mas insisti que seria interessante se eu pudesse ter acesso aos processos no cartório. Ele disse que não teria ninguém para ficarão meu lado me mostrando os processos. O Defensor e o Juiz se olharam e a Promotora sugeriu a conciliação

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no JEC, mas o Juiz disse que não pois era muito monótono9 acrescentando que eu tinha um viés acadêmico. Comentei já ter escutado isso de outras pessoas e ele disse que provavelmente depois de ver “a realidade do JEC” eu sairia correndo e nunca mais voltaria, ou voltaria por ser perseverante e teimosa e complementou dizendo:

“-Então está resolvido. Começa pelo NADAC e depois vão-se abrindo as portas para o cartório e as audiências você assiste. As audiências são públicas. Você vai assistir com a Juíza Leiga.”

Acabaram as audiências às 16:00h, todos se levantaram para sair e o Juiz falou que a Clara me levaria ao NADAC para que eu começasse por lá. Agradeci a todos e fui parabenizada pela pesquisa.

Entrada no NADAC

Desci acompanhada pela Clara. Ela me disse que eu veria como o pessoal lá era muito legal. Adentramos a porta do NADAC, um tanto emperrada, e fui por ela apresentada à responsável, após perguntar se havia novas revistas de cosméticos por lá, como uma aluna da UFF que estava fazendo uma pesquisa e chegara ali a pedido do Dr. Pablo para conversar com ela, finalizando com “agora vocês conversam”.

A Supervisora Fernanda me olhou com desconfiança e me convidou a entrar e sentar em uma cadeira. Apresentei-me como aluna de Direito da UFF, fui logo perguntada sobre o que fui fazer ali, então falei da pesquisa que pretendia realizar no JEC e que ao relatar meu interesse em acompanhar a rotina do Juizado ao Juiz da Vara de Família ele me indicara o NADAC. Ela me explicou que perguntou isso, porque precisava saber que “bomba” o Juiz mandara para ela.

Eu ri e disse que não achava que era uma “bomba”, mas uma boa oportunidade de conhecer mais da prática do judiciário e que o que eu precisava fazer era só observar e descrever a rotina do NADAC. Ela me disse que aí estava o problema e estabeleceu, falando sutil e firmemente:

“-Nada de gravador nem foto.” Concordei, mas questionei o motivo dessas regras e ela respondeu que “isso vinha de muito tempo” em que ela deixou que pesquisadores da UFF fotografassem e levou uma sindicância, o que a fez proibir essa prática e ainda acrescentou:

9Que eu me tornasse uma conciliadora, o que veremos depois ser uma função um tanto rejeitada pelos estudantes por parecer “uma sessão de terapia sem graça” em que não se aprende o Direito, sendo muitas vezes aceita pelas horas de atividades complementares oferecidas.

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“-Nem escondido porque eu vejo tudo. Sou aquele professor que não deixa gravar a aula”.

Quando ela foi me explicar o que era o NADAC, perguntei se não poderia gravar essa explicação, ela negou dizendo que seria prova ilícita. Eu expliquei que não estava em busca de “provas”, mas de acompanhar e descrever a rotina de trabalho. Ela, então me falou que só havia essa possibilidade se o Juiz autorizasse, pois ele assumiria a responsabilidade por qualquer consequência.

Fui apresentada aos estagiários da tarde como estudante de direito que iria pesquisar, enfatizando na palavra pesquisar como que para avisá-los que a partir daquele momento seriam observados e essas observações seriam anotadas; soube que havia os da manhã e fui perguntada sobre o tempo que pretendia pesquisar lá. Estabeleci três meses e nesse momento ela comentou que seria isso a não ser que eu gostasse tanto de lá que não quisesse ir embora.

Foi também estabelecido o horário que passaria lá e se eu ficaria “só na pesquisa” já que eu fora encaminhada para estagiar lá, falara da pesquisa e ela faria “o que o chefe (Juiz) mandasse”. Respondi que, a princípio, gostaria de assumir as duas funções segunda, quarta e sexta de 10 da manhã às 15:30h. Escolhi esse horário para que pudesse observar o máximo possível em três meses e exercer as duas funções enquanto desse até saber em que focar minhas atenções no campo.

Em seguida, fui questionada sobre como me alimentaria considerando que passaria o dia por lá. Foram-me apresentadas as opções de levar minha quentinha e esquentar lá para economizar ou comer fora. Além, perguntou-me se era “maior” (de 18 anos), disse que sim e ela respondeu aliviada que não teria que se responsabilizar, então. Rimos disso e ela estabeleceu uma última regra que consistia em não escrever nada que ultrapasse os limites referentes ao meu projeto, pois eles “formaram uma família” e não era todo mundo que se tornava “parte dela”, e que eles falavam sobre seus problemas, trocavam conselhos... eu concordei afirmando que não escreveria esses aspectos privados. Ela finalizou o diálogo me perguntando: “-Mas, eu vou ler o que você vai escrever, né?” e eu respondi afirmativamente.

A reação geral foi de desconfiança, os estagiários se entreolhavam sem falar uma palavra. Depois, cumprimentaram-me e uma estagiária disse que não esqueceria meu nome por ser o mesmo de sua irmã.

Sem que eu questionasse, a Fernanda me contou que a lotação ideal para o Núcleo era de três funcionários (concursados), mas que só havia ela e estagiários divididos em dois turnos, manhã e tarde e indicou que seria interessante ver os dois porque veria dois modos diferentes de trabalhar.

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Sem saber o que mais perguntaria, perguntei se a demanda10 era muita e ela respondeu que não dava para comparar com cidades grandes e o que mais veria era que aqui, em Araruama, “as pessoas são muito desinformadas. Então, você passa um tempão com aquela pessoa, para situá-la. Às vezes, uma tarde inteira”. Assim, combinamos que eu começaria no dia seguinte.

Como se pode perceber minha entrada em campo foi promovida por membros da instituição, o que no decorrer da pesquisa se revelou um fator importante enquanto assegurador da continuação dela, embora também se tenha revelado a menor força das ordens do Juize o prevalecimento da autoridade da Supervisora. Depois de certo período, ela começou a indagar se a pesquisa demoraria muito pois não dava para me expulsar, mas seria melhor eu terminar logo por vários motivos expostos durante três conversas as quais serão melhor discutidas quando eu for falar sobre o significado de estagiar no NADAC e sobre a função de Supervisor.

As demonstrações de autoridade da Servidora dentro do NADAC me alertaram para o funcionamento real desses setores dentro do Judiciário e da esfera pública em geral, os quais carregam o rótulo de lugares burocráticos11 e por isso seriam lugares marcados pela proeminência de procedimentos legais e impessoais despidos de particularismos pessoais. A prática revela relativizações corroborando o que outras pesquisas etnográficas sobre instituições já elucidaram; ou seja, que as instituições, seus procedimentos e todo seu funcionamento aparentemente homogêneo são operados por pessoas as quais possuem interesses diferentes e atuam de forma particular, heterogênea, em cada sala, corredor e recinto desses lugares. No caso estudado, quem faz, ensina e estabelece formas de trabalhar, de agir e regras no NADAC é a Supervisora, ou, nas palavras Paes (2008)sobre os policiais, ela é quem “domina as regras do jogo”.

Registros...

Não foi possível utilizar qualquer meio de gravação. Melhor, possibilidade havia, mas era clandestina. Portanto, como me foi explicitamente proibido o uso de quaisquer meios de gravação de áudio ou vídeo bem como o registro fotográfico, fiquei restrita ao meio mais antigo de descrever; o caderno de campo. Contudo, ainda que me tenha sido autorizada a escrita no meu “caderno”12 o que consegui fazer no meu real caderno de campo foi uma

10 O número de pedidos das pessoas contados em número de processos.11 No sentido Weberiano segundo o qual uma sequência de procedimentos e hierarquias serviria para organizar e tornar eficiente os aparelhos do Estado.12 Inicialmente, como a pesquisa foi enquadrada nos moldes do que era conhecido pelos servidores como pesquisa, principalmente pela servidora, o caderno em questão era referido como um caderno pequeno usado para tomar notas pelos jornalistas. Mais uma vez, evidenciando o prisma denunciativo sob o qual pairava o ato de pesquisar. Por isso, optei por observar e dialogar mais e anotar depois, ou

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reconstrução das vivências a partir de notas feitas rapidamente em campo, com exceção de momentos específicos os quais me permitiam descrever mais sobre o que acontecia13.

Essa foi uma escolha compartilhada em reuniões nas quais, entre outros assuntos, a questão sobre manter esta ética, de ir até onde nos for permitido e explicitar em nosso relato o que alcançamos e o que nos foi proibido, enquanto pesquisador foi bastante debatida; e ainda é. Acredito que esta postura, principalmente no ambiente em que estive, o judiciário, me ajudou a construir um mínimo de relação de confiança sem o qual uma pesquisa não consegue ser feita, não existe, além de proporcionar reflexões sobre nosso modo de pesquisar, sobre nossas atitudes; permitindo, por vezes, questionar práticas antes consolidadas e, até o momento, intocadas. Não pretendo de nenhum modo esgotar as análises sobre o pesquisar ou sobre as relações entre sujeito e objeto, ou melhor, entre observador e observado nas ciências sociais14. Somente expus reflexões que tenho feito desde que iniciei “a” e “na” pesquisa empírica, quando me deparei com as questões mais atormentadoras que me ocorreram: sou uma pessoa pesquisando pessoas e seus afazeres no judiciário, como escreverei sobre elas? Como seria se fosse eu no lugar de um deles? Seria interessante dar-lhes uma cópia do que eu escrever?

Essas questões foram surgindo, passando a me incomodar mais quando ao comentar com os servidores sobre a possibilidade de apresentar os dados que tinha no momento15na Agenda Acadêmica da UFF fui interpelada com a afirmação da Supervisora de que era uma pena que nenhum deles poderia estar lá para me ver e isso realmente me afetou, me fazendo pensar e repensar. Até que, em um fim de tarde no Gragoatá16, contei da minha intenção em apresentar o que eu escreveria aos servidores, meu orientador concordou prontamente e isso me encorajou a seguir com esse plano. De modo que espero ter o diálogo daqueles que me permitiram observar e participar de seu cotidiano de trabalho e, ainda que não fosse o desejo inicial, de suas vidas, compartilhando impressões, conselhos, anseios, preocupações, ensinamentos.

Referências Bibliográficas

fazer notas rápidas em pequenos pedaços de papel de um bloco de recibos que peguei em casa. Senti-me muito mais confortável com essa opção e creio ter a ausência desse objeto (o caderno) ajudado a desnaturalizar minha estranha presença. 13 Tive mais essa oportunidade quando anotei as etapas necessárias às tarefas burocráticas (autuação, envio de cartas comuns e registradas, etc.) e quando acompanhei o peticionar que será explicado mais tarde, bastando saber que é o ato de relatar o problema da pessoa e pedir as possíveis soluções. 14Muitos autores discutiram e continuam a discussão sobre a relação observador/observado, sujeito/objeto nas pesquisas em Ciências Sociais. Utilizei como referência as contribuições de Geertz (2008) principalmente em seu primeiro capítulo, Jaime Jr. (2003) e Zaluar (2009) os quais discutem essa relação tortuosa em meio a outras questões centrais para a antropologia. 15 Aproximava-nos de outubro de 2013.16 Refiro-me ao Campus do Gragoatá, um dos numerosos campi (polos) da UFF no centro de Niterói/RJ.

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AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Juizados Especiais Criminais Uma abordagem sociológica sobre a informalização da justiça penal no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, p. 97-182, 2001.

BURGOS, Marcelo Baumann. Tipos de demanda, perfil das partes e formas de administração dos conflitos pelos Juizados Especiais Criminais. In: M. Stella de Amorim; R. Kant de Lima; M. B. Burgos (orgs.) Juizados Especiais Criminais, Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niterói: Intertexto, 2003, p. 159-176.

DUPRET, Baudouin. A intenção em ação: Uma abordagem pragmática da qualificação penal num contexto egípcio. Revista Ética e Filosofia Política, v. 2, n. 12, p. 109-140, 2010. 

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GERALDO, P. B.; FONTAINHA, F.; VERONESE, A. Sociologia empírica do direito: Uma introdução. Revista Ética e Filosofia Política, v. 2, n. 12, p. 1-13, 2010.  

JAIME JR. Pedro. Pesquisa em organizações. Por uma abordagem etnográfica. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 3, n. 2, p. 435-456, 2003. 

MOREIRA-LEITE, Ângela. Em tempo de conciliação. Niterói: EdUFF, 2003.

PAES, Vivian. “Quem domina a regra do jogo”: sobre a reforma da polícia e os registros policiais. In: M. Misse (org.) Acusados e acusadores. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2008, p. 165-185.

SINHORETTO, Jacqueline. Reforma da justiça (estudo de caso). Tempo Social, v.19, n. 2, p. 157-177, 2007.

VALIM, Morgana Paiva. As práticas de um núcleo de primeiro atendimento: tensões e conflitos no campo jurídico. Confluências, v. 12, n. 1, p. 179-204, julho-dezembro de 2012.

ZALUAR, Alba. Pesquisando no perigo: etnografias voluntárias e não acidentais. Mana: Estudos de Antropologia Social, v. 15, n. 2, p. 557-584, outubro de 2009.