descartes, r. regras para a direção do espírito

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Page 1: Descartes, r. regras para a direção do espírito
Page 2: Descartes, r. regras para a direção do espírito

Pôr o lcitor directamentc em contactocom textos Ínârsrntcs d.r história da 6loso6a

a todrs es épocas e a todos os tiposc cstilrs dc 6loso6a,

Drocurando incluir os tcxtosmais significatirbs do lrcnsamento 6losó6co

nâ sua multiplicidade e riqucza.Scrá assim um rcflcxo da vibratiÍidadc

do esplrito filosófico pcrantc o scu tempg,Dcra,ntc a qcncla

c o orobìcma do homemc do mr.rndo.

Page 3: Descartes, r. regras para a direção do espírito

Textos ÍilosóÍicosDircctor rJa Colccção: Artur Morão

ProÍcssor no Dcpanarncnto dc Filosofir da FacuklarJc dc Ci0nciasI lurnanas da Univcnidudc Carólica Portugucsa

l. Críti<'u du Ru:rirr l'nÍrriz. Inrrn:nul Krnl2. httcttigução uiltrc o È'l,enlintcnro líuar<rro, Dlrid llunr!. Cnpúuttlo ilor ílrúrr, lÌicrlrich Nicrrrchc4. Dix'urto lc llcntfiti<tt,CtrlíticrÚ Whilhclm triboir5. Ot l'ntcttor th llcn{Ítin,Jmuucl Kant6. Rcg,mt ym u Dincçdo do t3píúo. Rcné llscancs7, l'unthunalluçtio du lletufitico lot Cottumct.l:ticrdltich Nictar<hcE. À llcio th I'enoncnohryiu,lllnvnJ llusrcrl9. Dircurn tb llürxlo. Rcré l)csrancs

lO. t\rtto.k ll*, t)t1lütniw du llinlut Obm amt t3crirrr. Sffrn KicrtcgurrJll. Ã l'ihuoftu no hhulc Tnlgico dot Cngor. Fricdrkh Nicrrt|r12. C.rrril urhn u 7iíralrr<'irr. Jrün lrr\c13. I'ailcgóncur u ftxh a llcndíúcc f'rrrnr. Inrmrrl Kant11. Tnnolo ilt Raltntn lo t)úenilinrtrrír. llcnto dc l:rpitxrc15. Sinlxilinn: Scu Signifituh c Êlcr1o, Âlírcd Nonh Whirchcal16. t)ttuio Sobn or l\uhr hnaliuos tht Ctuttt'iênciu. llcnti llcrgvn17. ttrci<lq{úfuúuCihu'iutl:tkrtif intscnlit lnxnc(v/. l).CrrrgìYhil lr lnrl jr icrlr ichllcgcl18. À l\tt l'crttétta, c Outnrt Opút(ulor. Inrnunlrl Krnt19. Diúhtgo xún c á'aljrrla/c. Santo ÁgrntinhoN. I'rincípios tht l:ihutfia do funn. l.ulsig ljcucrbrh21. Èu'i<lo1>llüt lur Ciènctut t|hróficos cn Ë1úttnc írrrl l/l.Cnrg \Yhillxlm llriclrkh llcgcl22. ll onnxtitos t)<tnt&nicot. t' rktsrificor. Karl Èl:n2J. l'ntlrlãutittt lìlorr'fico. Crrrg \\'hilhclm lïicrlrich I lcAcl21. O Antü rito.lÌicrlrich Nictr.rclx25. I)ir<'uno y,lrc u Dignühulc tb llmcm. Giovmni Pico rJcllr Minnúrlr26" tlcc I hnn. lÌicrlrich Nictrschc27. O llutcrioliwo lüa'irrrrl. Grrtrn llxhclul2ll. l'riu'Qtüu lltn{íúvs lu Ciènctu ilo Nutunu,l:ric,JÍich Nictr-Í{hc7). Di<lhryo ile utn l\lót{o Cri*lo c ilc un l:ikttófit Chrirãr. Nicohr Àhlcbne."lr

!J. O Si u c nn ilu lïrla Éritr, Crrrg \ì'hi lhclnr tÌicrtrich I lcacl31. lntnrhtção à llitóriu ilu l'iloutfia. Cnrg Whillrlnt lÌicJrich llcgcl12. A t C o fc rê nt iu r /r lÌrrrr. l'rJmunJ I lurrcrl13 Tcoút lur Cou c14iks lo lttarlo. \\ ilhclm l)ilthcy

It. A Rcligüio not ünitcr ilo Sinl>lcr lfrrcio. Inrnunwl Krnl75 |lu'ültryúliu ilut Ciiu'üts l:rlottificut cnt tpÍunnc (rr/ /l/J. Ccrrg \\ hillxlnr lÌicrJrich I lcgcl16 luvttigol,irt t'ilttuifi<'<rt &iltn o |stêncfu du Ulxntutc tlunxnn. F.W J x-lrlling17. O Cutf ito lu l'rrrrllrrlc. lnrnunucl KrntIt llone c Sobnritin< i<t. Àhr Schclcr19. À llu:io m I liÍ.iÍür. Crc(x8 Whilhclm lÌicdrich I lcgcl411. O No*t t)rphito Cicntífrco,Gtt<n llrhchrü4 |. &ún u ltctofíti<rt ilo Scr no Tonlxt. l lcnriquc rlc Gand12. t'rincúúts ila t|hutfrt, Rcrú l)csrncs41. Trutuh ilo l'rüncint l'riucípüt. hül l)un: lircrro4. Í)rsirt yilrn o ltnhulciru Orig,cm. c rrenuin c fitn thr Govmo Cinl,hilrn lrxlc15. A Unühulc do hrtclccttt t-tttrtru or Árvrarirlor. Sio Trxnás dc Âquimr46. À Gucrm c Quciw ilu l\t:.|:lrsnrudc Rdcrúio17. Uçìr s u ú n u lfucç ão do &ihi o, Jrilrann Cxrtlicb lichtc4lf. Llrr l)rrrrr I Ih OlJiciit),Cíecm4). Do Alnw (lkiairrrr.

^íirlúclcr9. A Ew,luçdoCrialora, llcnri llcrgsnSl. l'útilogio e Ctrn2rcrrlirr. ì\'illrlm l)ilthcy

REGRASPAKAADTRECçÃO

DOESPÍKITO

Page 4: Descartes, r. regras para a direção do espírito

Título originrl: Regulac ad Dincticlrteu lngcniì

@ Erliçõcs 70

Truluçtro dc lolo Gama

Cap dc EdiçÕcs 70

DcJúsiro bgrl n.' 283 l0rìE9

tsBN 97244-0599.0

TqJos os dircitos rcscrvados Jnra a lÍngua ponugucsaJrcr &liçòcs 70

ED!çÔES?0.LD^.Rua Lucirno Conlcirc. 123 - 2." Esq.o - 1069- | J7 LISBOÂ / Irorrugrl

TclcÍ. :213 190240Far:213 190249

E-mail: [email protected]

Esta óra csrá prorcgida pcla lci. Ntro pcrlc scr rcpnxJuzi<tano todo ou cm ÍErtc. qualqucr quc scjr o modo utiliado.

incluindo Íotocópia c xcrocópia. scm prúvia rurorizaçào do Edircr.Qualqucr tnnsgrcssào à ki dos Dircitos <to Âutor scrá passÍvcl dc

pmccrli mcnro judicial.

RenéDESCARTES

KEGRASPARAADIRECçAO

DOESPÍKITO

Page 5: Descartes, r. regras para a direção do espírito

BREVE NOTÍCIA

Unr opúsculo inconrpleto de Descanes, mas quão signifi-cativo! Os estudiosos discutem a data em gue terão sido rcdigidasas Regras Para a Dirccção do EspÍrito. As várias opiniões siruama sua rcdacção entrc 1620 e 1635, tendo em conta algumas alusõesbiográlìcas nas Regras 2.4, 10.

Segundo H. Gouhier na sua edição (r), as Regras não devemser anteriores a 1623: constituiriam uma espécie de rcsukado dotrobolho intelectualfeito entrc I6?3 e 1628 eloi neste último anoque Descartes as teria posto por escrito.

Por seuturno, a históriafisicado texto temalguns meandrcs.Há três nnnuscritos intponantes: a) o manuscrito original, quepertencia a Clerseliec nlr.s perdeu-se; b) uma cópia que foi deLeibnize se encontnou na biblioteca de Han6ver; e c) a cópia deque se semiram os editorcs dos Opuscula posthuma na primeiraedição do texto latino ent Amesterdão, 1701, e que tambémdesapareceu. Charles Adam (e Paul Tannery), na sua grande

r9ó5.(f ) Dcscartcs.Rctulacaddinctioncm ingcnii.Preí&iodc Hcnri Gouhicr. Puir. Vrin

Page 6: Descartes, r. regras para a direção do espírito

cdiçc-n dos cscritos certe.ïieno-$, Ocuvrcs clc Dcscancs,I'aris, Ccrf1908 (lulc, cditukx pcla Vrin), ,rlcorrcu ao tc.\to publicado mtsOpuscula c às variantcs do nranuscrito dc Hurtôver.

É esse tcxto (,to tomo X da ediçtio de Atlam c Thnncry) qucscrve de busc c\ presc,ttc ediçïto c tratluç[io pura português.

Sc o lcitor esrivcr imcrcssado, hú algunns obrusfunduncntuisquc o podcrão ajutlar a cstudar a.s Rcgulac:

l) E. Gilson, Irulcx scolastico-carttisictt, l\tris, Alcan, 19/,3.2) E. Gilson, Rcné l)cscuilcs. Discoursc <lc la Méthcxle.I'c.rut

c co,,tc,rlúrio, I'uris, Vrin 1925, /,967t IR. I)cscurtcs, Discurso doMétotfo, anotculo e utnrcntado por E. Gilxn, Ediç't'ics 70, Lisboal.

3) L J. IJeck, Thc Mcthod of Dcscartcs , u study of rlrc Rcgu-lae, Oxfttnl 1952.

Artur Morão

REGRI\ I

A finalidade dos estudos deve ser e orienteÉo doespírito pere cmitir iuÍzos sólidos e veÍdedeiros sobretudo o que se lhe depara.

Os h<lmens costumam, sempre que reconheccm elgu-ma semelhança entre duas coisas, avaliar âmbas, mesmonaquilo cm que são diversas, mediante o que reconhe-ceram numa dclas como verdadeiro. Rcalizam assimfalsas aproximações entre es ciências, que consistem exclu-sivamentc no conhccimcnto intelectual, e as artes, queexigenr algum exercício e hábito corporal; e vêem quenem todas as artcs devem ser aprendidas simultaneamentepekr mesmo homem e que só a<1uele que exerce umaúnica se transforma mais facilmentc num artista consu-mado; as mesmas mãos que se dedicam a cultivar os câm-pos c a tocar cítara, ou que se entregam a vários ofíciosdiferentes, nã<> os podem cxccutar com tanto desafogocomo se a unì só sc dcdicassem. Julgaram que o mesmose passarir com as ciências c, ao distingui-las umas dasoutrâs segundo a diversidade dos seus objectos, pensa-

IO I I

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nrm quc cr:r neccsário adquirir cade urna scplnrdamcnte,dcixando dc lado todas rs ()utÍ:ls. Iingantram-sc rotunde-menrc. Glm cfcito, visto quc t(des as ciências neda meissào do quc 1 sebcdoria ltumrnr, a qual pcrmtnccc scnìprcune c idênricrr [xrr nruito difercnrcs quc sciam ()sobicctos e quc sc rpliquc, c rúo reccbc dclcs nreisdisrinçircs do que r luz do sol dr varicdrdc das coisas<1ue iluminl, nio há ncccssidadc dc imJxrr atr cspíritosquais<;ucr limircs. Ncm () conlrecimcnto dc um:l sóvcrda<lc, com() sc firra a práricr dc umt única ane, nosdcsvia da dcscobcnr dc (,utn; pckr contúrio, aiuda--nos. Scnr dúvide, paÍccc-mc dc cspantar quc a meior

lnnc indague, c()nì ír nìai()r cntJrcnho, ()s c()stumcs dosIromens, as propricdadcs des phnrrs, ()s movimenttxdos astros, as tmnsmutaçirs dos ntctais c os rtbjcctttsdc scnrcllrrnres disciplinas c que, entÍctant(), quasc nin-gudnr pcnsc no lxrm scns() ou ncla Sabcdoria univcrsal,guando rudo o mris dcvc scr eprcciado, nào tlnt() lxrrsi mcsnì() qulnto [rkr contributo quc I csta tnü2.Assim, ni,r d scm motir() quc Íx)m()s cst1 regÍr lntcde t<xlas as ()uras, Íx)rquc nrdr nos afasta tmto d<>recto caminho da pr(xur:r da vcrdade como oricnttr ootì()ss(rs atlgdos, nio prrr cstc fint gcral, mas lnm dguns 6nspanicuhrcs. Não falo jâ dos maus c condcúvcis, comoa r'ã glória ou o lucro vergonhoso: c óbvio quc asrrzr'>cs dc nuu quihtc c ()s cmbustcs próprios doscspÍritos vulgarcs abrcm ncstc scntido um caminho muit<rmais trntaioso do quc () prdcria ftz.cr t> sólido c<tnhc-cimcnto da vcrde<lc. I\Ías prctcndo falar drx fins honcs-r()s c kruvárcis, Íx)Íquc nnis subtilmcntc somos porclcs ntuitas ïczc cntnnados: F)r cxcmPlo, âo PÍrrcurar-nros adquirir as ciêncirs útcis parr o bcm-cstar de cxis.têncir (ru prÍ:l () prezcr quc sc cnc()ntra ne contcmplaçàrtdr rcrdadc, e gue c quasc a única fclicidadc complctencsta vi<la c (luc ncnhuma dor vcm Jrnurbar. São cstcsrrs frutos lcgírimos das ciêncirs quc cfcctivamcnrc gxlc-

rÌì()s 6[rcrar; mes, sc nclcs pcÍtsarmos durentc o estudr.l,fzzcm muitas vcz6 quc omitamos muirrr nrcios ncccssá-rirr Jrrra o conhccinrcnto dc (rutnÉ coisas, F)rquc scúgunri<1, à primcire

-visra, ()u Íx)uc() útcis ou ixruco

dignos dc intercssc. É, prcciso icrcdinr <1uc r.rdas rsciências esrão dc ral mrxÌr concxas cnrrc si {uc d muitís-simo nrais fácil aprcndê-las rrxlas a() mcsmo tcmpodo quc scpamr uma só quc scja drs outras. Porttnto,'sealguém quiscr inrcsrigar a sdrio a rcrdedc des coises,não dcvc cscolhcr uma ciência lnnicular: csrão ruhsunides cntrc si c dcpcndcnrcs úmas d's ourras; rÌulspcnT a[rcnas cm aumenrer a luz narunlda razlo, não 1nmrcsolvcr csta ()u rquch dificuldedc dc cscoh, mas fanque, cÍn cede circunsrâncir de vida, o intclccto mostrcà vontadc () quc dcvc cscollrcr. D,m brcvc ficaú 6paÍl-tado dc rcr fcito progrcss()s muito supriorcs atrs dcquantos sc dcdicrm r csrudos partiorlarcs, c dc rcr obridonão só tudo o quc os ourÍos dcsciem, nras rinde coisrsmais clcvedes do quc es quc podem 6ÍrcnrÍ.

,2 ,l

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REGRÂ I I

Importa lidar unicamente com aqueles.obiectospara cuio conhecimento certo e indubitável osirossot espíritos Parecem ser suficientes.

T<lda a ciôncia i utn c<lnhccinrcnto ccrto c cvidcnte;

os lcvou a não rcf lectir sobrc tr is conhccinrcntos, c()modcmasiado fáccis c accssír'cis a t()d()s. ̂ \o crÌtantr), s()udc opiniào dc <1uc cstcs s:ì(, nruito nrais nunrcr()s()s d()quc pcnsenì e suf icicntes pxra pr()\'ar, c()m ccrtcza,inúmcras proposiçircs, accrcs das cluais não pudcram dis-corrcr atci cntlio x lìrìo ser dc un'ta rììrncira provável.Porquc julgaranr indigrro dc urrr homcm lctrado con-fcssar quc irnorevr algunre coisx, hrbituarrm-se dc talmodo a adornar as suxs íllsrs razòcs quc, inscnsivcl-nìcntc, acabarant por a si prriprios sc pcrsuadirem c ast( )rììxrcm c()nì() r'crdadciras.

No cntanto, sc obscrvrrnìos bcm csta rcgra, muitopoucas cois:rs se eprcscntanr a cujo cstudo nos possxmosaplicar. Dificilmcntc sc crìconrrará nas ciências qualquerqucstão sobrc a qual os lrontcns versld<ls não tenhammuitas vezcs discordado cntrc si. ìÍas, scmprc quc duaspessoas tônr sobrc a ntcsrnl coisa juízos contrários, dccertczr quc pelo nrcn()s utÌìa ()u ()utra sc cngana, c nenhu-ma delas prrece nlesmo tcr ciôncia; porquc, se rs razõcsde uma fossenr ccrtas c cvidcntcs, podcria cxpô-las àoutra de modo a finalmcnte convencer () seu entendi-mcnt(). I)arcce, pois, cluc sobrc todos os assuntos destegéncro podcmos obter opiniires provár'cis, mas úo aciência pcrfcita, visto quc nâo nos é pcrmitido scmtemcridade esperar mais de nós mcsmos do que osoutros fizcranr. Âssim, das ciências iá encontradas, res-tam só a Âritmética c a Geometria, às quais nos reduz aobservação desta regra.

Âpesar de tudo, não condcnamos por isso a maneirade filosofar até agora encontrada pclos outros e, nos esco-lásticos, a maquinaria dos silogismos provávcis, perfei-tamente adcquada às suas guerres. Na verdade, são atéum cxercício para os cspíritos das crianças e com certaemula$o os fazem progredir: é muito mclhor formá-losmediante opiniões dcstc jaez, ainda que aperentementcincertas devido às controvérsias dos eruditos, do que

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abandoná-los livremente a si próprios. Talvez sem guia

sermos seriamcnte determinar para nós próprios es regrasque nos aiudem a chegar ao cume do conhecimento hu-mano, há que admitir entre as primeiras a que nos prcvinecontra o abuso d<l ócio, em quc tantos ceem; dcixam delado o que é fácil, só se ocupam de coisas árduas sobreas quais elaboram engenhosamente coniecturas Por certomuito subtis c razões deveras prováveis. IÍas, após muitotrabalho, advertem iá tarde que não fizeram mais do queaumentar o número das dúvidas, sem terem aprcndidouma ciência.

E agora, por há pouco termos dito que, entre asdisciplinas conhecidas pelos outros, só a Aritnrética e

^Geometria estavam isentas de todo o defeito de falsidadeou de incefteza, vam()s examinar mais atcntamente arazão disto mesmo, observando que há uma dupla viaque nos lcva ao conhecimento das coisas, a sabcr, a exPe-riência ou a dedução. É preciso notar, além disso, que es

ainda o menos racional. E pouco úteis me Parecemser pare isso os laços com que os Dialécticos Pensamgovernar a ttzão humana, se bem que cu não negue quescjam muito apropriados para outros usos. Com efeito,todo o erro possível - falo dos homens e não dos ani-

mais - nuncr resulta de uma inferência errada, mas apc-naq de sc partir dc certas expcriências pouco comprecn-didas ou dc se cmitirem juízos de nrodo temerârio escnr fundanÌento.

De tais consideraçoes infere-se claramente porqueé que a r\ritmética c a Gcometria são muito mais certasque as ()utras disciplinas: são cfectivamente as únicas

de todas, e têm um objecto tal como o exigimos já que,excepto por inadvcrtêncir, parecc difícil nelas um homemenlÌanar-sc. Âpesar dc tudo, não é de espantar quc muitosespíritos se apliquem espontancanrcnte a outras arresou à filosofia: isto acontece porquc cada qual se pcrmitea si mcsmo mais confiadamentc ser adivinho em matériaobscura do quc em matéria cvidente, € é muito mais

mas somente que, na procura do rccto caminho da ver-dade, não há que ocupar-se de objecto algum sobreo qual não se possa tcr uma ccrteza igual às demonstraçõcsda r\ritmética e da Geometria.

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REGRA III

No quc respeita aos obiectos considerados, háquc pÍocurar não o que os outÌos pensaram ouo que nós próprios euspeitamos, mas aquilo deque podemos teÌ uma intuição clara e evidenteou que podemos deduzir com certeza; de nenhumoutro modo se adquire a ciência.

Dcvem lcr-se os livros dos Ântigos, pois é uma grandcvantaÍ{cnì podermos aproveitar os trabalhos de um tãoelcvado número de honrcnsr QucÍ para conheccr as dcs-cobcrtas iá feitas no passado com êxitor Qu€r tambémpara n()s inf<rrmarnros do quc ainda falta descobrir cmtodas as disciplinas. FIá, contudo, um grandc pcrigodc se c()rrtraircnì talvez algumas manchas de erro na lci-tura derrrasiado atenta desscs livros, manchas que Inós se agrrÍanì sejam quais f<-rrem as nosses resistênciasc prccauçõcs. Com efeito, os escritores costumam tcrum cspírito tal que, todas as vczes que sc cmbrcnhamp()r un'ta crcdulidade irrcflectida na crítica de uma opi-niào controverse, se esforçam sempre poÍ nos atrair

mediante os mais subtis argumentos. Pclo contúrio,scmprc que tiveram a felicidade de cncontrar algo de ccrtoc evidente, nunca o expõem scnão com rodeios, receandoeparcntemente diminuir pcla simplicidade das razõcso mérito da invcn$o, ou cntão porque nos inveiama verdade às claras.

r\inda que todos f<rssem dc boa índole e francos,impedindo-nos de tomar coisas duvidosas por verda-dciras e expondo-nos tudo dc boa fé, porque dificilmenteum afirma dgo cuio contrário não seja proposto poroutro, nuncâ sabemos em qual dcles acreditar. E nãovalcria dc nada conter os votos para aderir à opiniãopanilhada por mais Âutores; porque, sc sc trata dcuma questão difÍcil, é mais credÍvcl que a sua vcrdadctcnhe sido descoberta por um reduzido número do quepor muitos. Mcsmo se todos estivessem dc acordo, oseu ensino não nos bastaria: nunce nos tornaremos mete-máticos, por exemplo, embora saibamos de cor todasas demonstrações feitas pelos outros, se com o espÍritonão formos capezcs dc rcsolvcr todo e qualqucr pro-blcnra; nem nos tornaremos filósofos se, terido lidotodos os raciocÍnios dc Platão c Âristótelcs, não puder-mos formar um iuízo sólido sobre quento nos é proposto.Com efcito, darÍamos a impressão de termos aprcndidonão ciências, rns histórias.

Âlém disso, somos admoestados a não misrurarabsolutamcnte nenhuma conicctura com os nossos iuízossobrc a vcrdade das coisas. Esta advertência não é desomenos importância: pois, a melhor razão pela qualnão se cncontra ainda na filosofia vulgar nâda dc tãocvidcnte c tão ccrto que não possa qucstioÍÌaÍ-se, é queprimciramente os cstudiosos, não contentcs com reco-nheccr as coisas claras c certes, ousaram defendercoisas obscuras e dcsconhecidas, quc só por coniecturasprováveis dcançavam. Depois, pouco a pouco, elcs pró-prios lhcs dcram crédito total e confundiram-nas indis-

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tintamentc com as coisas vcrdadciras e cvidcntcs, sempodcrcrn tirar ncnhuma conclusão quc não parecesscdcpendcr dc alguma proposi$o semclhante c quc, porconscguintc, não fossc inccrta.

,\ fim dc não cairmos ultcriormente no mcsmo erro,vâmos aqui pessar cm rcvista todos os actos do nossocntcndimcnt() quc nos pcrmitcm chcgar ao conhecimentodas coisas, scnr ncnhum rcccio de cngano; admitcnr-seapcnxs dois, a sabcr, a intuição e a dcdução.

l'or intnição cntcndo, nâo a convicção futuantc for-necida pclos scntidos ou o iuíz<> cnganador cle umaimaginação de conrposiçõcs inadcquldas, nìas o con-ceito dr rììcrìrc purÍr c atcnta tão fácil c distinto que ne-nhuma dúvicla nos 6ca acerca do quc conrprccndemos;ou cntã(), () quc é a mcsma c<lisa, O conceito dr mentepura e atcrlta, scm dúvida possívcl, quc nascc apcnasda luz da razio e quc, por scr mais sinrplcs, ó ainda maisccrto do quc a dcdução, sc benr quc cstx última nâ<rpossa scr nral feita pclo homcm, como acinra obsen'amos.r\ssim, cada qual podc ver pcla intuição intelectual quecxistc, que pcnsa, que unr triângulo é dclinritado apenaspor trôs linhas, quc r csfera o é apcnas por umr super-fícic, c outras coisas scrnclhantcs, gue são nruito maisnumcrosas do quc a maioria obserr'â, porque nã<l scdignenr aplicar a tììcrìtc r coisas tio fáceis.

Quurto ao mris, faço ac;ui unra advcrtôncia gcralnão r'á alguim talvcz surprcender-sc com () novo usodr palavra intaiçtìr., c de outras clue igualmente sercif<rrçado a dcsviar da sua significação vulgar: não pensoscqucr no nroclo como cada cxprcssão foi, nestcs últimostcmpos, usada nas cscolas, porque seria dificílimo scr-vir-nre dos mcsnros termos c exprimir idcias totalmentediversas; nìas vou atcr-mc unicamcntc à significação decada prlavra cm latim para quc, à falta de tcrmos próprios,transíira parx a minha idcia, os que me pareccm maisadcquados.

Ora, esta evidência e esta certeza da intui$o não sãoapenas exigidas plr.a a: gimpleq enunciações, mas tambémpara quaisquer raciocÍnios. Seja, por exemplo, esta con-sequência: zezé igual a l mais l ; éprccisover intui t iva-mente não só que 2 e z são 4, e que ; e r são igualmente4, mas, alim disso, que destas duas proposiçõcs se concluinecessariamente aquela tcrccira.

Poderá agora perÍlunrar-se p()rque é quc à intuiçâojuntámos um outro m<ldo de conhecinrento, que seraliza, por dedaçt\oi por cla entcndcmos o que sc con-clui necessariamente de outras coisas conhècidas conrcerteza-. lìoi imperioso proccdcr assim, porque a maiorparte drs coisas são conhecidrs com ccrtcza, ômbora nãoscjam cm si evidentes, contanto que scjam deduzidasde princípios vcrdadeiros, c i^ conhecidosr por umnrovirrrcnro contínuo c inintcrrupto do pensamento, queintui nitidamente cada coisa cm particular: eis o úniconrodo dc sabermos que o último clo dc uma cadeia estáligado ao primeiro, mesmo que não aprcndanros intuiti-vamentc num só e mesmo olhar o conjunto dos elos inter-midios, dc quc depende a ligação; basta que os tenhamoscxaminado succssivamente c quc nos lembremos que,do primeiro ao últinro, cada um deles está ligado aos stusvizinhos imediatos. Distinguimos portanto, aqui, a intui-ção intelectual dr dcdu$o certa pclo facto de 9uc,nesta, se conccbc uma espcície dc movimento ou suceslãoc na outra, não; além disso, para a dedução não é neces-sário, como para a intuição, uma evidência actual, mtsi antes à nremória que, dc certo nrodo, vai buscar a suacertez^. Pclo que sc podc dizer quc estas proposições,qu€ sc concluem imcdiatanrcntc I partir dos primeirosprincípios, são conhecidas, de um ponto de vista dife-rente,.ora por intuição, ora por dedução, mas que osprimeiros princípios se conhccem somente por iniuição,e, pelo contrário, as conclusõcs distantes ió o podemscr por dcdução.

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F,is as duas vias mais scguras Ítarr chcgar à ciôncir;do hdo <ftr cspírit. não se dcrcm adnritir mais, c trdesas ()utras dcvcnt scr rcicitadss c()mo susJrites c pssÍvcisdc crro; () quc, ap6rr dc tudo, não nos impcde dcacre'ditar <1uc a<luilo quc firi obiccto de rcvch.ção divine cntais ccrto do quc qualqucr ()ulr(t conhccimcnto; c()mcfciro, a fr:, Jxrr tisrr coises obscuras, não d um actodo cspírito, rnrs da vontrdc. F, sc tcnr fundement()s nocntcntlintcltto, Jxxlcrãrt c dcvcrirl t<xlos clcs ser dcsco-bcrros Jx,r unri ()u ()utÍìl clrs virs iá indicades' comotrlrcz únr dir o demonstclÍcmos meis rmphmentc.

REGRÂ Iv

O mâodo é neccuÁrio para r pnocusr de verdede.

C)s lÍorteis são dominedos Íx)r umt orriosidedc rãoccgl quc, muitas vczcs, cnvcrcdrm o espÍriro por cemi-nh<x dcsconhccidos, scm qualqucr cÍrcnrnça razoávcl,mes unicamcntc lÌrçr sc arriscarem 1 cncontnrr o qucprocunrm: é como sc rlgudm, inccndiedo plo dcsciotão cstúpido de cncontrer um t6íJuro, vrgucrssc scmccsslr plas prags públicr ÍÌlnr vcr se, c?sualmcntc,cncontÍ:rva rlgum pcrdido [x)r um tnrnscunte. rlssimcstudem quesc trdos os quimisras, r maiorit dos gcó-mctnrs c um gmndc número de 6lósofos; nio ncgcrquc tcnhrm por vcz6 muira s()nc nos scus ceminh<>scrnrntc c encontrem algume vcrdtdc; contudo, não

nrturd c ccgem os cspÍriros. Qucm sc ecosrunu a andar

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assim nis tÍcì'as cnfnquccc dc ral nt.rdo a acuidrdc d,tollrrr que, dcJxris, nio Jxdc suÍx)ntr r luz do plcn,r dir.Ê r cxpcriôncir quc o cliz: \'cnì(rs ntuitíssimrs vczcti ()s

quc nunc? sc clcdicrrrm às lsras iulgar o guc sc llrcsdçrrr conì nruito nttrior s,rlidez c clarcza do <pc acluclcsquc scnìprc frc<;ucntamnt ls cscohs. Iintcndo Jxrr n:ct<xftrÍcgrrs ccnas c fáccis, <;uc pcrnritenì I guenì cxadinìentcas obscrrar nuncl tottìtrÍ Jxrr vcrdrdciro elg,r dc falsoc, scrìì tlcspcrrligrr inutilntcntc ncnltunt csf<rrço <h tttcnte,nìtrs aurììcntr:tdo sctììpÍc gradurlrrrcntc (, stl)cr, atingir rrconlrccirttcnto vcrdrdciro dc tudo () quc scrá crPrzdc srbcr.

r\c;rri, hi durs obscrraçircs a frzcr: nào totlìaÍ ebso'lutantcntc lreda dc frlso Jr,'r vcrchdcir,t, c cltcgar a<t conhc'cin:cnto clc tud,t. (ìrnr cfcito, sc i:llt,rrarttì,rs tltlo dc <1uent,r

Jxxlcmos srlrcr c apcnrs [x)rquc (,u nuncl divisámosumr tir quc n()s conduzisse a td conltccimentrr, ()u [x)r-quc crínros no crÍ() ()[x)st(). ]las sc o nritrxlr nrts dáunrr crplic:rçio pcrfcitr do uso dl inruiçio intclcctuelprrr nào clirmos n(, cÍrr) contrârio à rcrdrdc, c d<l nrciodc cnc,,ntrrr dcduçr'rs plra clreger ao cottltc<imcntodc rurl,r, prrccc-nrc quc nrdr mais sc crigc prn clcscr conrplcto, ii quc ncnlruntr cii'rtci.t sc gxlc rdquirira n:ro scr pch intuigâo intclccturl ()u pch dccluçio,c()nì() anrcs f ic,,rr ditrr. Ncnt clc sc Ítxlc cstcndcratc: ensinrr conì() sc dcrcrtt íazcr cstas oPcr:rç('És, Íx)Íqucsào as nrais sirrrplcs c printciras dc t<xlas, dc rrl manciraque, sc (, Ít()sso cntcnclintcnt() as nã() pudcsse uslr trnlcstnào conrprccndcrir ncnltunt rlos prcccitos do priprio ntd-1ralo, Jxrr rrrais ficcis cluc fosscnt. Quento às outrts ttJrc.rrçips intclccturis, quc a Dialccricr sc csfirrça yrr rtricntarc()tìr a ajudr dcsrrs prinrcirrs, sio rqui inútcis, ()u antcsrdcrcnr corìrer-sc cntrc ()s obstáculos, ji quc nio lri nadrquc sc F)ssa iuntar à pur:r luz da nzào, scnr I obscurcccrdc unra ou dc outra mencirr.

Umr vcz quc. utilidedc destc múrdo é tio grendcquc o cultivo das lctras 1Ìrrece, scm ele, dcstinedo a scrnuis prciudiciel do quc úril, facilmcntc mc convcnçodc quc os cspÍritos supcri<.rrcs, mcsmo só sob 1 condutlde naturez:, já entcs o divisrram de dg;ume mencirr.(nm cfciro, I mcnte humenr tem não sci quê dc divino,cm quc as primcins scmentc dos Jrnsrmcntos úteisfirram hngrdas de tal mrrdo quc, muitrs vc:26, rindecluc dcso.rradrs c abafades p>r cstudos fcitos indirccra-mente, prrxluzcm um fruto 6pontânc(r. É o <1uc crgrri-mentlmos, nrs ciôncirs meis fáccis, r r\rirméticl c aGcomctria: dc facto, r'emos bastrntc bcm quc os mtigos(icrinrcrms urilizerem ume cspdcie dc aúlisc quc elten-diarrr à soluçãr> dc trxftrs os problemrs, ainde quc Íúor tcnham transrrritido à lxrsteridrdc. E agora ílorcsccum gdncro clc Aritnritica, quc se chama r\lgcbra, quc pcr-mitc frzcr prnr r)s núntcros o quc os .'\ntitlos frzirmprm as figurrs. l'lstas durs coises nio prssam de frutoscsgrntâncos dos princípios naturris do n()ss() m&odo,c não mc admir<l quc tcnhe sido ncstrs encs, cujos obicc-tos slo muito simplcs, quc clcs atd aqui cÍccctlm commais frcilidedc do quc nrs ()urÍ:ls, on<lc meiorcs obstâ-culos gcralmcntc ()s c()srurrulnr abafer, mas onde tam-bém, no cntlnro, sc sc cultiveÍcm com sum() cuidedo,sc frrio infalivclmcntc chcger à pcrfcire meturidedc.

lìri o quc mc pÍopus principrlnrcntc fazcr ncste Tra-rado. frlle daria nruira inrJxrrtância e 6ras ÍcgÍas, scsri scrvisscm para rcsolvcr os r'âos problcmrs com quccostumam cntÍcter-sc os elcuhd()rcs ()u ()s gcómctmsnos scus passrrcmpm: iulgaria, ncsrc curo, não rer drdooutm provl dc suJrrioridadc quc I dc mc cnrpr dcbagatclas, trlvcz conr nuis subrilcza do quc ()s outros.Ë ainde quc cstcia dccidido r frl:rr rqui muito dc figrrasc de númcros, lx)rquc não sc g>dcm pdir a ncnhumedas ()utms disciplinas ercmplos tã<> cvidcntcs c tiocert()s, qucnr, no entânto, pÍ6rar etcnção à minha idcie,

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apcrccbcÍ-se-á frcilmcntc dc gue 6t()u r pcnsar nedemcn(rs do quc nas .\lrtcnráricrs vulgarcs c quc cxpoúoumtr ()utm disciplina dc quc clas são mris roulagcnr d<rquc ÍÌlÍ16. Ibra disciplina dcvc efcctivamcntc c()nteÍ ()s

Primciros rudimcntos {a rrzj' humanl c cstcnder-sclnn hzet brrrtar vcrdadcs e rcslrcitg dc quelqucr lttsunto;c, prÊl faler livrcrncnre! d prcfcrÍvcl a trxÌr o ()utÍoconhccimcnf(, trtrnsnritido lrumanamcnle, visto quc d afilntc dC trxl,rs r)s (rutÍ()S: c cstt e minlrr pCrSurSiíJ.Sc falci dc roupagcnt nào sirlnifice quc cu qucirr cobrirc cnrolvcr cstc cnsino para eÍast:rr o tulgo, 1nt6 o qucÍovcstir c rdornar prrr nrclhor sc adaptar ao cspírito humrno.

Qurndo prinrciranrcntc nìc rplicluci às disciplinasmetcmáticas, li logo intcgralnrcnrc r nreior prnc dascoisas quc habirualnrcntc ()s scus pr()nìot()r6 ensinrm cculrirci dc prcfcrt'ncia r Âritnrctica c a (ìconrctrir, Jxrr-quc cr:rm - <lizir-sc - as meis sinrJxls c como gueuma scnda para rs Í6t1ntcs. Ilas, tant<) numr c()mon()utm, nào tivc tr s()nc dc mc rircm às mãos ÂutorcsanÍn:zcs clc nrc satisfrzcr plcnrrncnrc; lir nclcs, ccnamente,ntuitas corstrs accrca dos núntcros, cujo cilcukr rrtc faziecoÍÌstatrr a vcrdrclc; <;uento às figuras, hevir muitascoisas quc dc rlgunre mencirr clcs nrc metirrrr 5rclosrillrrn dcntr,r c quc crtrnl () rcsultado dc conscqui'nciasrigorosas; nust Íx,Í(luc c c;uc cnr assrnr e conto lá sechcgara nio n1s parccir {uc . pttcnt€sscnì bastrntcà rttcntc; Jxrr isso, nào ficava surprccnclid,, eo ver Imaior partc d,r lrontcns, nlcsmo os bcnr drxados c cru-clitos, aíÌ,rar cstrs anes prrr logo as aband,rntÍcnì c()nìornfantis c inútcis ou, pclr conrrário, dctcr-sc à cntrrdr,dissurdid,,s dc as aprcndcr Jxla itlcir dc t;trc cmnt cxtre-nìlnlcntc difíccis c inrrincadrs. (ìrnt cfcit,r, nrde lrá dcnnis inúti l do quc l idrr dc tel nrrxl, , conr simplcsnúntcrrx c figuras inrrginárias (luc e n()ssr vontadcplÍccc satisfrzcr-sc c()m o conlrccinrcnro dc scnrclhan-rcs banrlidadcs; c n6tas clcm<,nstraçirs supcrficiais, cm

que () âçls() faz meis dcscobcrtas do quc I lnc c qucsc dirigcm mais aos olhr>s c à imagine$o do quc 1<lcntendimcnto, nrda de mais fútil do quc a clas scaplicar âo 1x)nto dc pcrdcrmos, dc elgum modo, o hábitodc urilizer r própria ruÀo. r\o mcsmo tcm[x), mdr dmeis complicrdo do quc - c()m scmclh2ntc mancirr dcfazcr dcmonstraçitcs - supcr:rr n(rTâs dificuldadcs 6con-dides numr desordcm dc númcrrn.

Scguidamcntc, intcrroguci-mc sobrc t nzl<> quc()utr(rçl lcvou .o çiildorcs da FikxoÍir 1 não qucrcrcmadmirir n() cstudo dr srbcdoria ningudm quc fosscignoranrc cnr ìÍatcnráticr, como sc dc t<das csta disciplinalhcs prcccssc r meis fácil c neccssáÍia Í)ara cnsinâÍ c pÍc-prmÍ os cspÍritos prm ()utnrs ciências mais imponantc.Suspitci cntão que tivcsscm conlrccido umâ cs[Éiede lUatcmática nruito difcrcntc dr lÍarcmátice vulgar den()ssa é1xxr, scm quc lxrr isso lrnsessc que dcla tivcs-scm tido um conhecimcnto Jrrfcito, pois rs suâs loucrsdcgrirs c srcrifícios lxlr irrelcvrntcs invcnç<)cs m()strunclaramcntc com() cmm incultos. Ncm me dcmovemdt minha opiniio elgunus das suas máquims cclcbra-das pckrs llistoriadorcs, Jxris, rpcsr ulvcz d. surertrcnu simplicidadc, facilmcntc conseguirem cm cclc-bridadc scr clcvrdos à catcgorir dc pr<xlígios pla muki-dão ignorantc c cmbrsbrcade. Grntudo,cstou pcrsuadidodc quc as primcins scnìcntc dc vcrdadcs, dcposiradespcla neturcza n()s cspÍritrx humantr c Íxrr nós abrfrdr,dcvido à lcitura ou à audição gurxidirnas de tantos crro6,rinham nl forga naqucla rudc c simplcs anriguidadc qucos homcns, mcdiantc e mcsma luz intclcctud com queviam hrvcr que prcfcrir a tinudc ro pÍ:r:zcr e o honcstoao útil, cmbore ignorrscnì Íx)rquc cra assim, tambémchcgrram e conhcccr as idcirs rcrdrdciras dr Filosofiec da l\Írtcmática, sem tcrcm ainde Sxdido alcançar pr-feitamcnrc cstas m6Ínes ciôncias. Na vcrdrdc, lrtrGce-mcque alguns vcstígios dcstr vcrdedeira ltlarcmática surgcm

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einda .cnr Pappus c Diofanto, os quais, senr serem dosprinrciros tcmp()s, \'tveranì n() entant() rrruitOs séculosantes da n()ssa cra. I'l nio nre custa acrcditar quc, ulterior-rììcntc, rls próprit)s aut()res a fizeram dcsaparcccr porurna cspcícic de astúcia pcrniciosa. Cont cfeito, assinr comosc rcconhcceu (luc nruitos arrcsirls tinharrr prrrcedido rcla-rivarr:crrtc às strrs irrvcnçr'les, rccearinì clcs quc talvez,dcvicl,r à sur {rrnclc facilidadc e sinrplicidade, se desva-Iorizessc pcla sue divulgaçãt>, c prcferiram, para se faze-renr edmirer, rprcscÍrrxr-n()s cnì scu lugar algunìas ver-dades estcreis dcnrrxrstradas c()r'rì urn subtil rigor lógic<rcomo efeitos ch sua erte, enì r'ez dc nos cnsinarem aprdrprir xrtc, quc cl irrr inrr ia totalmcnte a nossa adnri-reçà<1. l l<>uvc, cníinr, i lgtrns honrens muito engenhososquc sc esforça.rlnr n() n()sso sciculo p()r- rcssuscitar arììcsrììe arte, p<lis x quc sc dcsiqna c()nì () bárbaro nomcdc .\ lqebrt nìo parcce ser outri coisa, c()ntant() queapcnes scir dc tal nrodo l ibcrta dos múlt iplos núnrcros eincxplicár'cis fi.r;uras que a complicrm, cluc não nrais lhefalte aquclc qriu dc pcrspicácil c facilidacle cxtremasquc, p()r suposiçào n()ssx, devenr cxistir na verdadeira\latcuráticr. \ ' isto quc cstcs pcnsxmenros nìe levaramdos cstucìos prrt iculercs da r\r i trrét ica e da Geometriap.lr'r urììe invcsrisaçìo aprofundada e .qeral da ìÍate-rrrática, intcrrtl.quei-tÌìc, antes de nrais, acerca do quetodos cntcndcrrr cxactrrÌìcntc p()r cssa palavra, e porqucd quc rìào srìo xpcrìxs es ciclncias, dc rluc já sc falou, quese dizcrtt prrtc clas ìlrtcmáticas, nì:ìs rinda a .r\stronomia, a\lúrsicr, r. ()pt ica, :r \ lccinicr c nruitas ourras. Nàobrstr rclui cousiderar a oriqcur da palavra; uma vez que() tcrt ' t ìo \ latcrrrática tcnì rrpcrì.ts o scntido dc discipl ina,as ciôrtcirs rcinn citadas nào tôrrr nìen()s direito do quee (ìc, ' 'u:ctr ia à dcsrtnrçrìo dc \ l :rtcrrráricas. Conro vcmos,nào há qursc ningucur, dcsdc quc rcnha apenas pisado,' l iurirr drs cscoles, Quc nào dist in.qa faci lmente, erìtret, !uc sc lhc xprcscntr. aquilo que perrence à ì\ latemáticlr

e o que pertencc às outras disciplinas. Reflectindo rnaisatentamente, pareceu-me Por 6m óbvio relacionar coma }Íatemática tudo aquilo enì que apenas se examinaa clrdcm c rnedida, scm tcr em conta se é em números,6guras, astros, sons, ou cm qualqucr outro obiectoque semelhante medida se deve procurar; e, por con-seguintc, deve lnver uma ciência geral que expliquctudo o que se podc investigar acerca da ordem e damedida, sem as aplicar a uma mxtéria cspccial: esta ciên-cia designa-se, não pelo vocábulo suposto, mes pelor'ocábulo já antigo e aceitc pelo uso de l\Íatcmática uni-vcrsal, porque esta contim tudr-r o que contribui paraque as outras ciências se chamem partes da ÌVatcmá-tica. Quanto a illatemática universal sobrepuja em uti-lidade e facilidade as outras ciências que lhe estão subor-dinadas, r'ê-se perfcitamente no facto de abarcar os mes-mos objectos que estas últimas e, além disso, muitosoutros; no facto ainda de quc as suas dificuldades, se éque contém algumas, existem tambinr nestas últimasciências, conì outras ainda provenicntes dos seus obiec-ros particulares c que ela não tem. E agora, visto quetodos sabem o scu nonìe e aquilo de que trata, emboranão lhe prestem atenção, como explicar que a maiorparte invcstigue laboriosamcnte as outras disciplinas,que dela dependem, e que ninguém se preocupe poraprender csta? Âdmirar-mc-ia certamcnte se não soubcsseque todos a consideranr rnuito fácil e se não tivcsse notado,há muito, que o espírit<,r humano dcixa sempre de lado() que iulga podcr. falzer facilmente e. se precipita logopara o que é novidade e mais clevado.

Eu, porim, consciente da nrinha fraqueza, decidiobsen'ar pertinazmente na busca do conhecimento dascoisas uma ordem tal que, principiando sempre pclosobjectos mais simples e mais fáceis, nunca passc a outrossenì me parccer quc os primeiros nada mais me deixampara desejar. Foi por isso que cultivei até agora, tanto

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gulnt(, pudc, cssa .\Íarcmárice univcrsal, de menciraquc julgo Sxxlcr tÍ:lttr drqui grr dirntc as ciêncirs meisclcvedas, scm r clas prcmarurâmcnte mc aplicer. IÍas,antcs de ir cm frcntc, rudo o quc achei dc mais dign<rdc n()ta n()s nreus cstudos antcriorc, csfirrger-mc.ci[x)r c()ngÍcgá-lo nunr trxÌr c o Jx)r cm ordcm, qucr [Ìrra() rctotn:lr um dir com<danrcntc nestc opúsculo, sc iss()frrr ncccssário cm virtudc da dirninuigâo da mcmóriac()m o aumcnt() da idadc, qucr ÍÌrm diviar a mcmórirc mc gxlcr aplicar a(, 1cslrr conr maior libcrchdc dccspírito.

RI:GRÂ \ '

Todo o método concistc na ordem c na diepo-cigão doe obiectos para oe quaie é necccúriodirigir e pcnetragão da mcnte, a 6m dc dcco-brirmog alguma verdadc. E obecryá-lo-cmoo 6el-mcnte, sc rcduzirmoe gradualmcnte .s pÍopo-eigõce complicadar e obscures . propoeiçõcemaie eimplcs c rc, em ocguid., e panir da intui-$o das meie eimples dc todac, tcnterrnor clever--nor pcloi mcrmoe dcgraur ao conhccimcnrode todas ar outrrr.

Ê nist,r rpcnas quc sc c()ntdnì () Íesum(, dc trxlat lturtrena indústrir, c cste rc1;ra tlcvc scr scguicla [x)rqucnr anscia pclo conlrccinrcnto das coisrs nào nrcnosdo quc o fro dc Tcscu per:l qucnr dcsciassc pcnctrerno labirinro. .\t6, ltá ntuitos <;uc não rcílcctcnr n() guecla prcscrcvc, ()u r ignoranr r()ttlnìcnrcr ou pÍGunrcmdch não tcr ncccssicladc, c rrruitas ì'crzcs cxaminam qucs-rocs dificilinras dc unr nrrxlr tào dcsor<lcnackr quc pareccmprrrcdcr c(rm(, sc tcntesscnr chegar, conì um só selto,

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da partc rttais hrisa ao fasti.r;io dc um cclifício, dcscurand<'as óscedes dcstinadas x cste uso, ()u não notand() até quccxistcm unras cscadas. r\ssittt fazcnt todos os astrólt>gos

pccxrìÌ cvidcntcntcntc contra csta rcgra. ì[as, porqucruruitas vczcs a ordcttr quc aqui sc csi.r;c i dc tllnr<xlo obscurr c conrplicada quc n:ìo cstá ao alcaqce detodos rcconltcccr qual scia ch, dificilmcntc t()marãoprccauçircs suficientes para não sc perclcrem' a nã() scrque cll>scrvcnt cuidadosantcntc () quc scrá expost() nÍt

ProPosrçr() scqulntc.

REGRA VI

Para dietinguir as coisas mais simplee dae maigcomplex$ e pÍosseguir ordenadamente na inves-tigação, é necessário, em cada série de coisesem que directamente deduzimos algumes veÍ-dades umas das outras, notar o que é maigsimples e como todo o resto dele cetá mais,ou menos, ou igualmente afastado.

Se bcm que csta proposiçã<-r não parcça ensinarnada clc totalmente novo, contém, no entanto, o prin-cipal segrcdo da ârte e nenhuma há mais útil em todoeste Tratado. Ensina-nos, com efcito, que todas ascoisas se podem dispor em certâs séries, não cviden-tenÌente enquanto se referem a algum género de scr, taiscomo as dividiram os Filósofos nas suas categorias, masenquanto uÍrÌas se podem conhecer a partir das outras,de tal modo que, semprc que se aprescnte uma dificuldade,possemos imcdiatamcnte advcrtir se será útil examinaralgumas outras, quais, c por quc ordem.

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isoladamcnte, mas as conìParamos entrc st Para asconhccer umas a Partit das outras - sc podcm dizcrou absolutas ou rclativas.

nrais sinrplcs e o mais fácil, cm função do uso qucdclc farcnx)s na rcsolução das questõcs.

Quanto ao rclativo, é o que ParticiPa dcsta nresmanaturcza ()u, ao menos, de alg'unr d<ls scus elcmentos;por isso, podc rcfcrir-sc ao absoluto, e delc se deduzirnrcdiantc uma certa série; mas, além diss<-r, enccrra noscu conceito outras coisas, quc chamo relaçt-rs; assimi tudo o que se diz depcndentc, cfcito, conìPosto' Par-ticular, múltiplo, desigual, dissemelhante, obliqut)' etc.

Dstas coisas rclativas afastam-se tento mais dasabsolutas quanto mais relaçrics deste tipo contôm, subor-dinadas udras às outras; e e Prescnte regra advcrtc-nt>squc é prcciso distinguir todrs estas rclaçõcs, e atcntar nasur c,inexão mútua c na sue ordcm natural, de modo

al13rrna, sob um ponto de vista, mais absolutas doquc outras, mas que, considcradas- de outra mancira, sãomais relativas. r\isim, o universal é mais absoluto queo particular, Porque tem uÍne natureza mais simples' ma:;pode dizcr-sé mais rclativo do que este ütimo' Porque

dependc dos indivlduos para existir, etc. Do mcsmomodo, certas coisas são por vezes realmente mais abso-lutas que outres sem, no entanto, sereÍn ainda as maisabsolutas de todas; por exemplo, se tornrmos em con-sideração os indivÍduos, a espécie é algo dc absoluto;sc nos referirmos ao género, cla é algo de rclativo;entrc os objectos mensuráveis, a extensão é qualquercoisa de absoluto, mas, entÍe as cspécies de extensão, éo comprimento que é absoluto, etc. Da mesma maneira,por 6m, para melhor se comproendcr que consideramosaqui séries de coisas a conhccer c não â natureze de cadauma delas, foi de propósito que contámos â causa er.r igual entre as coisas absolutas, cmbora as surs nâru-rezas sejam verdadeiramentc relativas. Com efeitor paraos Filósofos, a causa e o efeito são coisas corrclativas;aqui, porém, se invcstigarmos o que é um efeito,importa antes conhecer a causa, e não inversamente.Âs coisas iguais também sc corrcspondcm umas às outras,mes só reconhecemos as desiguais comparando-as àsiguais, e não inversamente, etc.

Ë nccessário notar, em scgundo lugar, que sãopoucas as naturezas puras e simplcs, que se podcm verp<lr intuição imediatamente e por si nÌesnìâs, indepen-dcntcmente de quaisquer outras, mas nas próprias expc-riências ou graças a uma certa luz que nos é inata;dizcnros que importa considerá-las diligcntemente, por-que são as mesmas que, em cada série, chamamos asmais simples. Quanto a todas es outras, só podem serperccbidas deduzindo-as das primciras, quer por umainfcrência imediata e próximar Tucr apenas medianteduas, três ou mais conclusões diferentes, cuio númerotambém deve ser notado, a fim dc sabcrmos se mais oumcnos graus as afastam da proposição gue é a primeirac a mais simples. Tal é, em todo o lado, o cncadeamentodas consequências quc origina estâs séries dc obiectosde invcstigação, aos quais se dcvc rcduzir todr a questão,

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pare que examinar se possa com unì mitodo seguro.Ìrías, como não é fácil a totlas rcccnseâr, e, além disso,como é nrais importante discerni-las por uma ccrtapcnctração do espÍrito do que retê-las na memória, háque procurar um mcio de dar aos espÍritos uma fcrr-nração que lhcs permita reconhecê-las imediatamcntc,sempre quc for necessário. Para tal, certamente, nada énrais conveniente, segundo a minha cxpcriência, do quehabituar-nos a reíìcctir com certe perspicácia sobre cadauma das mÍnimas coisas que já vimos antcriormente.

Note-se, finalmente, em tercciro lugar, que não sedcvcm começer os estudos pela investigação das coisasdifíceis, mas que importa, antes de nos aprontarmospara algumas qucstõcs determinadas, rccolhcr previa-mentc, sem fazer nenhunra escolha, as verdadcs que seapresentcnì espontaneamntc, r'er dcpois, gradualmente,se outras dclas se p<ldem deduzir, e dcstas outrâs ainda,c assim por diante. Feito isto, é prccis<.r reflcctir atenta-nìcntc nas verdadcs cncontradas c examinar cuidadosa-rÌìcntc p()rque é quc pudcmos acltar umas nrais cedo emais facilmcnte do quc outras c quais são essas. Âssintsabcrcmos julgar, ao abordar uma determinada questão,e quc outras investigaçõcs scrá útil cntregar-nos prcvia-nìcntc. Por cxemplo, se nre viesse ao pensâmento quc ()númcro 6 c o dobro de três, procuraria em seguida odobro do número 6, qucr dizer rz; procuraria igual-mcntc, sc bcnr nìc parece, o dobro destc último, ouscja, 2,4, e tanrbénr o dobro deste último, a saber, 48,etc. Daqui dcduziria facilmente quc há a mesnìa rclaçãr.rentre , c 6 que entrc 6 c rz, igualnìente entrc 12 e 24,ctc., e que, por conscquência, os núnreros 1,6, rz, 24,48, etc., são continuanlente proporcionais. Do mcsmonrodo, ainda quc tudo isto scja tão claro que quase percceinfantil, unra rcflcxão atcnta faz-nre comprecnder a maneiraconì() se complicanr todas as questrics relativas às pro-porçõcs ou rclações entre as coisas que sc podem pro-

por, c a ordem que a sua invcstigaÉo exige: só issoabrange o conjunto de toda a ciência das matcmáticasPuras.

mesma proporção. Não se muda e natureza da dificuldadcquando se procÌrÍiln t ou 4 grandczas ou mesmo mais,porque - como é evidente - têm de cncontrar-se umaa uma separadamcntc e sem relação às outras. Observo,em..scguida, que, dadas as grandezes t e 6, apcsar dafacilidade que há em achar uma terceire quc elteia empropor$o contÍnua, ou seja, rz, não é, no entanto,tão fácil, dadas duas grandezas extremas, a sabery e 12,poder achar a grandeza média, isto é, 6, porque, paraqucm disto examina intuitivamentc a, razão,- é claroqrre existe um ou outÍo género de dificuldade, quedifcrc muito do precedcnte. Com cfeito, para achar úmmeio proporcional, é preciso prestâr aten$o, eo mcsmo

a duas, mas a três diferentes ao mesmo tempo, perÍrachar uma quarta. É permitido ir mais longc- ainàa ever se, dados epenas ) e 48, teria sido mais difícil acharuma das três médias proporcionais, ou scia, 6, tz e 24.De facto, perece ser assim, à primeira vista; mas logo

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nos (rc()rre que esta dificuldade se pode dividir e simpli-6car s€, obviamcnte, se procurar primeiro ume sónrédia proporcional cntrc t e 48, ou seja, 12, c sc seprocurar scguidanrente uma outre média proporcionalentrc t e 12, ou seia 6, e uma outra entre rz e 48, ist<>é 24. Destc modo sc reduz ela ao scgundo géncro dedificuldade já cxposto.

Tudo isto nre permite observar, além disso, c()mo sepodc buscar o conhecimento da mesma coisa por viasdifcrentes, cm que uma é nruito mais difícil c obscuraque a outra. Por exemplo: achar estes quatro tcrnìoscontinuamcnte proporcionais: 3, 6, 12, 24. Se supu-scrnìos dois se.rguidos, ou scja, 3 c 6, ou 6 e tz, ou 12c 24, será facilimo achar os outros c direnros entã()quc a proporção a encontrar é dircctamente cxaminada.Sc supuscrmos dois alternados, isto é, t e 12, ou 6 e 24,para acharnìos os ()utros, então diremos que a dificul-dadc é exanúnada indircctamentc da primcira nrancira.Sc igualnrcnte supuserm()s os dois externos, , c 24, p^Ítatravis dclcs sc procurarcnr os intermcdiári<;s 6 e tz,cntão cla será examinada indirectamente da scgundamaneira. Podcria ainda continuar assim e extrair destcúnico cxcnrplo muitas outras deduçõcs: estas bastarãopara quc <> lcitor compreenda o quc cu prctendo ao clizcrquc uma propr>sição se dcduz directa ou indircctanlcnte,c pcnse quc, a partir do que há de mais fácil e do que seconhccc cgr primciro lu13ar, nruitas dcscobcrtas podcmscr fcitas rnesnìo n()utras disciplinas por aquclcs quercílcctcnr com atcnçã<l c sc cntrcganÌ às investigaçrjcsconr argúcia.

REGRA VII

Para completar a ciência, é precieo analisar,uma poÍ uma, todas as coisae que Be telacionamcom o nosso obiectivo, por um movimentocontlnuo e iamais interrompido do p€nsamento,abarcando-as numa enumeração suficiente e me-tódica. .

A observa$o do quc aqui se propõe é neccssáriapara admitir como certas as verdades que, dissemo-lomais acima, se deduzem dos princlpios primeiros cconhecidos em si mesmos, mas não de um modo ime-diato. Com efcito, isto faz-se por vezes poÍ um encadea-mento tão longo de conscquências que, após termosalcançado cstas verdades, não é fácil lcmbrar-nos de todoo caminho que até aí n'os levou; por isso dizemos qucé preciso remediar e fraqueza da memória por umacspécie de movimento continuo do pcnsamento. Porexemplo, sc divcrsas operações mc lcvaram primeira-mente ao conhecimento da rela$o entre as grandezasA e B, depois entre B e C, em seguida entre C e D e,

JE

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por 6nì, entre D e E, nem por isso vejo qual é a quccxistc entrc A e E, e não posso fazer umr ideia prccisaa pa,rtir das relaçc-rcs já conhecidas, a não ser que merecordc dc todas. Por isso, pcrcorrê-las-ci várias vezespor unìa csyrccic de nrovinrento contlnuo da imaginaçãoquc r'ô intuitivanrcnte cada objccto enr psrticular enquant()vai passanckr aos outr()s, ati tcr aprendid<l a transitar daprimeira rclação para a últinra conr tal rapidcz que, semdcixar quasc ncnhum papcl à menrória, rìÌe pxrcça vcrsimultaneamcntc o todo por intuição. Assinr, ao ajudara mcnrória, corrige-sc tanrbém a lcntidão do csplritoe aumcnta-sc de certo modo a sua capacidadc.

Âcrcscentamos, porénÌ, que cstc nrovinrento não deveinterronrpcr-sc enl nenhunra parte; frcqucntcrmente, osquc tcntarÌì fazer algunra dedução dernasiado rápida,partin<l,r dc princÍpios rcnrotos, não pcrc()rrcnÌ tod<l ocncadcanrento das conclusrics intermédias com o cuidad<rsuficientc para não onritircm nruitas inconsidera<larnentc.Todavia, é cert<.r que nrcsmo a mcnor das onrissrics fazimcdiatamcnte qucbrar a cadcia e arruina co:npletarr,cntel ccrtcz^ da conclusão.

r\linr disso, dizcmos aqui que a cnunÌeração é exigidapara c()nrplctar a ciência; pois, se ()s outr()s prcccitosnos scrvcrn, ccrtamentc, para rcsolvcr a maioria dasqucstfos, st'r a cnunrcração nos podc ajudar a aplicar on()sso cspírito a qualquer unra delas, a, ftzer sempresobrc ela unr juizr> seguro e certo c, por consequência,a não dcixar escapar absolutamente nada, pareccndoassinr que dc todas sallcm<ls algunra coisa.

Ilsta cnumeração, ou indução, é, pois, a investigaçãodc tutlo () que se rclaciona com uma questã() proposta,investigação tão diligente e tão cuidada que dcla tirem<>sa conclusão ccrta c evidente de que nada omitimospor descuido; de tal forma que, depois dc a termosusado, se o objecto da nossa investigação continuaroculto, fiquemos pelo nrenos mais sábios por nos aper-

cebermos dc quc não poderÍamos encontrálo por nenhu-ma das vias de nós conhecidas; e que se, por acâso, comonruitas vezcs acontece, pudemos pcrcorrer todas as viaspelas quais os homens al chegam, nos seia permitido afir-nrar audaci<>samcnte que o scu conhecimento está forade todo o alcance do esplrito humano.

Note-se, alim dissor iluc, por enumcra$o suficicnteou indu$o, entendemos apenas aquela que nos dá averdade na sua conclusão com mais certeza do que todo() outro género de prova, salvo a simples intuição.Senrpre quc não é possÍvel reduzir um conhecimentoà intuição, depois de reieitados todos os encadeamentosdos silogismos, reste-nos unicamentc esta vie, na qualdevemos totalmente acreditar. Pois, todas as coisas qucdeduzimos imediatanrente unìas das outras, se a ilaçãotivcr sido evidente, foram já reduzidas â uma verdadeiraintuição. ìÍas, se tirarmos uma única consequência de umgrandc núnrero dc coisas separadas, nruitas vezes a capa-cidadc do nosso entendimento não é suficiente p^r^conscguir abrangê-las a todas nume única intuição;neste ceso, deve contentar-se com e certeza dessa opcra-ção. Do mesmo modo, não podcmos por meio de umaúnica intuição da vista distinguir todos os clos de umacadeia demasiado comprida; no entanto, se virmos aligaçã<l dc cada elo com os seguintes, isso bastará paradizermos também que percebemos como é quc o últirnose li.ga ao primeiro.

pcrfeitamente evidentes, se, apesar de tudo, cometcrmosa menor omissão, dá-se a ruptura da cadeia c toda a cer-tezl. de conclusão se dcsvanèce. Às vezes, também esta-mos certos de tudo abarcar com uma enumcração, mas

t

/

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scm distinguirmos as coisas uÍnâ por uma, de formaquc só conhcccmos o todo confusamcnte.

Álim disso, essa cnuneração deve, às vezes, serconrplcta, ()utras, distinta e, de tempos a tempos, nemunìa colsa ncm outrai por iss<l se disse apenas quedcvc scr suficicnte. Com efeito, se quisesse pr()var porcnumeração quant()s géneros há de seres corporais ouconìo são aprccndidos pelos sentidos, não afirnraria quehá uma dcternrinada quantidade e não nrais, a nã<rscr quc, antes, soubcssc scguranìente que os comprcenditoclos na minha cnumeração e os distingui em particularuns dos outros. Suponhamos, p()r outro lado, que, pelanrcsnìa via, queria mostrar que e alma racional não écorporal; não será dc modo algum necessário quc aenunrcração scia conrplcta, mas bastará juntar simulta-neantcntc todos os corpos em alguns grupos, de nranciraa dcmonstrar que a alma racional a ncnhum deles se podercfcrir. Suponhamos, por fim, quc cu queria mostrar,por nrcio cla enumeração, quc a supcrficie do círculo émaior quc todas as sulrcrficies das ()utras figuras de igualpcrimctro: tanrbérn não é necessário passar em rcvistat<rdas as figuras, mas basta Íazct csta demonstraçãopara algumas cm particuler, a 6m dc daÍ cxtrair, igual-mcntc por indução, idôntica conclusão a respcito de todasas ()utras.

Âcrcscentei tambim quc a enumeração dcve sermctódica, não sCr porque não há rcnridio mais efiazc()ntra os dcfeitos iá cnumerados do clue aprofundartudo conr ordem, mas também porquc acontece fre-quentemcnte que, se fosse preciso percorrer separada-mente cada uma das coisas em perticular que se rcla-cionam com o obiecto proposto, nenhuma vida humanabastaria para tal, quer por causa do seu núnrcro cxcessivo,quer em virtude das repetições demasiado frequentesquc sc aprcsentariam dos mesmos objcctos. ÌtÍas, se

dispusermos todâs estas coisas na melhor ordem, redu-zir-se-ão tanto quento possÍvel a detcrminedas classes,das quais bastará examiner cuidadosamente ou umaúnica, ou algum pormenor de cada ume em particular,ou então, algumas mais do que outras ou, pelo menos,nada algum^ vez percorreremos em vã<l duas vezes;esta maneira de proceder é tão útil que, muitas vezes,por causa de uma ordem bem estabelccida, se levama cabo, ao fim de pouco tempo - e graças a um trabalhofácil - numerosas tarefas que, à primeira vista, pareciamenormes.

Quanto à ordem dc enumera$o das coisas, podegeralmente variar c depende do arbítrio de cada um;por isso, para que o pensamento esteia em condiçõesde a cstabclecer com mais acuidadc, i prcciso recordar oque se dissc na quinta proposi$o. Há ainda muitascoisas, nas artes humanas de menor importância, que sedescobrem fazendo consistir todo o mit<>do no estabe-lecimento dcsta ordem. Âssim, sc se quiser fazer umanaÍyama pcrfeito transpclndo as lctras de um nome, nãoé nccessário passar do mais fácil para o mais difÍcil,nem distinguir as coisas absolutas das relativas: nem issotem lugar aqui. Bastará propor-se, pelo exame dastransposiçõcs das letras, uma ordem tal que nunca sepercorram duas vezes as mesmas e quc o seu númeroseja, por exemplo, repartido por determinadas classes, detal modo que se veja logo em quais há mais hipóteses dese achar o que se procura. Por este meio, com efeito,muitas vezes o trabalho não será longo, Ínâs âpeÍrâsuma brincadeira de crianças.

De resto, estas três últimas proposições não devemser separadas, porque é preciso, geralmentc, rcflectirnelas ao mesmo tempo e porque todas contribuemigualmentc p^r^

^ perfeição do método. Não teria grande

interesse determinar qud dclas se deve ensinar em primeiro

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lugar; explicánro-las aqui em poucas palavras, Porquequase nrais nada temos t fazer no resto do Tratado, emquc m()strircmos cm pormenor o quc aqui abordámoscnr gcral.

REGRÂ VIII

Se, na eérie de obiectos a pÌocuÍaÍ, depararmoscom alguma coisa que o nosso entendimentonão possa intuir suficientemente bem, há quedeter-se aÍ, sem examinar o que segue e evitando'um

úabalho supérfluo.

Ás três rcgres precedentcs prescrevem a ordem eexplicam-na; esta agore mostra em que casos é absoluta-nìente necessária e em que casos é apenas útil. Comefeito, o que constitui um greu completo na série que servepara ir das coisas relativas ao absoluto, ou inversamente,deve necessariamente ser examinado antes de tudo o quese lhe segue. Se, por outro lado, como frequentementeacontece, muitas coisas sc referem ao mesmo grau, ésem dúvida útil passá-las sempre em revista por ordem.Quanto à ordem, não somos contudo obrigados

^observá-la tão estrita e rigorosamente; Íegra geral, aindaque não conhccêssemos claramente todas as coisas, masapeÍìas um reduzido número ou urn só, pode, nocntento, passer-sc à frente.

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Iìsta regra decorre nccessariamente das raz<ics dadaspara a scgunda. Contudo, não se iulgue quc cla nadacontim de novo pare prom()ver a erudição, embora parcçaquc apenas nos desvia da investigação dc ccrtas coisas,nãr> nos cxpondo vcrdade algy1l. Claro quc apenasensina os principiantes a não trabalharem em vão, quasepclo mcsmo motivo que a scgunda regra. Ì\Ías, aos queconhecercm perfeitamcnte as sete relÌras precedentes,cla mostra por quc ttzio a si mcsmos se podem contentarcm qualquer ciência, ao ponto de nada mais tercm a deseiar.Pois, quem quer que tenha observado cuidadosamenteas regras prccedcntes para resolver alguma dificuldadec scja, no cntanto, obrigado por esta última regra adcter-se cm alguma partc, saberá então certamentc que,apcsar de t<da a sua aplicação, nunca poderá encontrara ciência quc procura, e isso não por culpa do seuespírito, mas pelo impcdimcnto procedente da natureza daprópria dificuldade, ou pela sua condição de homem.Estc conhccimcnto não é uma ciência menor do que a quemanifcsta a natureza da própria coisa; e quem lcvassemais longc a sua curiosidade não pareceria ter bomscns().

Tudo isto deve ser ilustrado por um ou dois exem-plos. Âssim, suponhamos que alguém procura, entre-gando-se exclusivamente às Ìríatemáticas, essa linha queem Dióptrica se chama anaclástica, ou seja, aquela emquc ()s raios paralelos se rcfractam de tal forma que todos,depois da refracção, têm um só ponto de intersecção.Facilnrcnte observará, sem dúvida, segundo âs regrasquinta e scxta, que a dcterminação desta linha dependeda rclação que os ângul<ls de refracção mantêm com osângulos.de incidência; mas, como não será c p^z 9" p--curar mrnuctosamente esta rclação, que diz respeito nãoà Ìrlatcmática mas à Física, será forçado a dctcr-se aquino limiar. Dc nada lhe servirá querer aprender esteconhccimcnto dos Filósofcrs ou cxtraí-lo da experiência,

pois pecaria conma e regra terceira. Âlém disso, estaproposi$o é ainde composta e relativa; ora, só decoisas puramente simples e absolutas é quc se pode teruma experiência ccrta; dir-sc-á no seu lugar. Seria tam-bém inútil supor entre os ângulos em questão uma rela-

$o que, por suspeita, lhe parecessc a mais verdadeirade todas, pois iá não procuraria, e xvclâstica, mas epenesuma linha quc scria a conscquência lógica da suasuposi$o.

Se, por outro lado, alguém que não se dedique sóàs ÌrÍatemáticas, mes que, segundo a primeira regra,deseje procurar a verdade em tudo quanto se lhedepare, cair na mesma dificuldade, descobrirá, além disso,que a relação entre os ângulos de incidência c os ângulosde refrac$o depcnde da sua mudança dcvido à diversi-dade dos meios; que, por seu turno, esta mudang dependeda mancira como o raio penctra aravés de todo o corpodiáfano, e que o conhecimcnto desta penetra$o supõco conhecimento da natureza da ac$o da luz; e quc,por fim, pâra compreender a ac$o da luz, é precisosaber o que é cm geral uma potência natural: é, cmúltima análise, o que há de mais absoluto em toda cstasérie. Ponanto, dcpois de ter feito claramente e em por-menor este exame através da intuição intelectual, voltaráa pessar pelos mesmos graus, seguindo a quinta regre,e se, a partir do segundo grau, não puder descobrira natureze da acção da luz, enumerará, de acordo com esétima regra, todas as outres potências naturais, a 6m dcque o conhccimento dc alguma dcstas potências lhefaça compreender cssa ac$o, pclo mcnos por anâlogia;falaremos, depois, da andogia. Feito isto, investig"úde que maneira o raio penetra através de todo o co{podiáfano e procederá assim por ordem cm tudo o mais,até chcgar à própria anaclástica. Esta constituiu até hoiccm vão o obiccto de muitas inquiriçõcs; contudo, nada

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veio que possa impedir alguém de vir a cr.rnhecê-la demancira evidentc, pclo uso correcto do nosso método.

ÀÍas demos o exemplo mais nobre de todos. Se alguémse propuser como questão a análise de todas as verdadespare cujo conhecimento a razão humrna. é suficiente- e parcce-me quc isso deve ser feito ume vez na vidapor todos os que sc esfcrrçam seriamente por alcançara sabedoria - descobrirá certamentc, e partir das regrascladas, que nada se pode conhecer antes do entendimento,visto que dele depende o conhccimetno de todo o mais,c não o inverso. Depois de, em seguida, ter examinadocm pormenor tudo o que vcm imediatamente a seguirao conhecimento do entendimento puro, enumerará, norcst(), todos os outros instrumentos de conhecimentcrquc temos alinr do entendimento, e que são apenas dois:a imaginação c os sentidos. Empregará, pois, todo o seucuidado em distinguir e enr examinar estes três modosde conhccimcnto, c ao vcr quc, propriamcnte, a vcr-cladc c () erro sri podem existir no entendimento, emboradcrivcnr frequentemente a sua origem dos outros doismodos dc conhecimento, prcstará cuidadosa atenção atudcl quanto o possa enÍlanar para se precaver, e enu-mcrará exactamentc todas as vias abertas aos homensparx a vcrdade, a fim de seguir uma que scja segura:ncm elas, com efeito, são tão numerosas que as nã<>achc a trdas facilmentc e por unìa enumeração suficiente.E -:, que parccerá maravilhoso e incrível aos que o nãoespcrinrcntaram - logo após ter distinguido, a propó-sito dc cadr objccto em perticular, os conhecimentosquc cnchcm ou apcnas ornamentam a memória dos quesã<> r'erdadeiramente causa por que um homcm sc devadizcr mais crudito, o que será einda fácil de Ítzer...,scntirá inteiramente quc nada mais ignora por falta decspírito ou de arte, e que nada há que outro homempossa saber, sem que ele próprio também o consiga,bastando aplicar a sue mente como convém. Âinda que

muitas vezes se possam propor-lhc muitas coisas, cuiainvestigação lhe será proibida por esta regra, devido aofacto de, no entanto, ter a percepção clara de que elasestão fora do alcance do espírito humano, nem por issose julgará mais ignorante; mâs o saber simplesmentc queaquilo que procura não pode ser sabido por ninguém,satisfará plcnamente a sua curiosidade, se for sensato.

Ora, para não ficarmos sempre na incerteza quantoà capacidade da inteligência e para que ela não trabalheem vão e ao acâso, antes de nos preparermos paraconhecer as coisas em panicular, importa uÍÌvr vez, rravida ter investigado cuidadosamente de que conheci-mentos a. razão humana é ca;parz. Para melhor o fazer, entreas coisas igualmcnte fáceis de conhecer, é por aquilo quehá de mais útil que se deve encetar a inquirição.

Estc método, na vcrdade, assemelha-se ao das anesmecânicas que não precisam da ajuda das outras, mas elasmestnas fornecem o meio de fabricar os seus instrumcntos.Se, com efeito, alguém quisesse exercer uma destas artes,por.cxcmplo, a dc ferreiro, e estivesse privado-de todosos instrumentos, seria certamente forçado, de inÍcio,a servir-sc de uma pedra dura ou de qualquer blocoinforme de ferro como bigorna, e pegar num calhau paramartelo, a dispor de pedaços de madcira em forma detenÍrzes c e iuntar, conforme âs necessidades, outrosobiectos deste género. Âpós tais prcpararivos, não secsforçaria logo por foriar, perâ uso dos outros, espadasc cÍrpacetes ou quaisquer outros objectos de ferro; mas,antes de mais, fabricaria manelos, uma bigorna, teÍrâzese tudo o mais que lhe viesse a scr útil. Este exemploensina-nos gue, no princípio, depois de tcrmos encontradoapenâs dguns preceitos rudimentares que mais pareceminatos às nossas mentes do que fornecidos pela arte, nãoé preciso tenter logo, com o seu auxílio, resolver osdiferendos dos Filósof<rs ou tirar de âpuros os l\íate-máticos; mes importa delcs nos scrvirmos primeiro

4E

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para procurar com o maior cuidado tudo o que há demais ncccssário ao exame da verdade, sobrcrudo quandonão lrouvcr razão que t frcp, perecer mais difícil de encon-trar do que algumas das qucstí5es propostes geralmentena Gcomctria, ou na Física c nas outras disciplinas.

Por ()utro lado, nada podc havcr aqui de mais útildo quc invcstigar o que é o conhecimento humano e atéonde se estende. Eis p()rque trataremos

^gor^ este

assunto numa só qucstão c pcnsamos que é preciso exa-miná-la como a primcira dc todas, scgundo as regrasjá antcriormcntc cstabclccidas. É o que deve fazcr umavcz na vid:r qucnr qucr quc amc um Pouco a verdade,pois a invcstigação aprofundadr dcstc ponto contémr>s vcrdadciros instrumcntos do sabcr c todo o método.E, nada mc parece mais inadcquado do quc disputaraudaznrcntc sobrc os scgredos da naturca,

^ influência

dos cius no nosso mundo infcrior, a predição dofuturo c coisas scmclhntcs, como muitos fazcm, scm,n() cntanto, jamais tcrcm inquirido se a razão humanapodc fazcr tais dcscobcrtas. E não deve considerar-sctarcfa árdua ou difícil detcrminar os limites deste espí-rito, quc em nós próprios sentimos, quando, muitasvczcs, não hcsitamos cm formular um juÍzo sobre oquc cxistc fora de nr'rs c que nos é completamentecstranho. E não é um trabalho inrenso querer abarcarpck> pcnsamento todas as coisas contides neste uni-vcrso,.para Ícconhcccr como cada uma_cm particularsc sujcita ao cxamc da nossa mcnte. Nada há, com efeito,tão múltiplo ou tão dispcrso quc não se possa, mediantea enunrcração, dc que tratánros, incluir cm limites detcr-nrinad<-rs e rcduzir a alguns pontos essenciais. Para dissofa;zer t cxpcriôncia na qucstão proposta, dividimos pri-mciro tudo o quc lhc diz respcito em duas partes:pois, há que relacioná-lor lu€r coÍrnosco que somoscapazes de conhecimcntos, quer com as próprias coisas

que se podem conhecer. Vamos discutir separadamenteestes dois pontos.

Na verdadc, advertimos que em nós só o entendi-

a fim dc nos precaveffnos; ou então, em que é que elasnos podem ser úteis, dc modo a lançarmos mão de todosos rccursos. Assim, esta parte scrá discutida mcdiante umaenumeração suficientc, sujeita à discussão, como se mos-trará na proposição seguinte.

Em scguida, importa vir às próprias coisas c consi-derá-las só enquanto o cntendimento as atingc. Ncstesentido, dividimo-las cm naturczas intciramcnte simplesc em complexas ou compostas. Entre as naturezas sim-plcs, só podc haver naturczas espirituais, ou corporais,ou pertcncentcs a ambas ao mcsmo tempo; por fim,entre as naturczas compostas, umas são dc facto captadascomo tais pclo cntendimento, antes dc ele as dcterminarpor um iuízo, cnquanto as outras são por elc compostas.Far-se-á uma exposição mais pormenorizada dC tudoisto na duodécima proposição, com a demonstração dcque só pode havcr crro ncstas últimas naturezas com-postas pcla inteligência. Eis porque distinguimos, nasnaturczas cornpostâs, as que sc deduzcm das naturezasmais simplcs e são conhecidas por si mesmas, das quaistrataremos em todo o livro seguintc, e as que pressu-põcm outras, cuja experiência nos mostra a composiçãona rcalidade, e a cuja explicação dcstinamos todo otcrceiro livro.

Em todo cste Tratado, csforçar-nos-emos por pro-curar com tanto cuidado c tornar tão fáceis todas asvias abcrtas aos homens para o conhecimcnto da verdade,que quem quer que tenha perfeitamente aprendido todo

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o nosso método - ainda que seja o mais mcdíocrc dosespíritos - verá que nenhuma dcstas vias lhe está mdsvedada do que aos outros e que iá nada ignora por faltade espírito ou de arte. trlas, semprc que aplicar a sua mente

^o cclnhecimento de alguma coisa, ou a encontrará

complctamente, ou aperceber-se-á, pelo menos, de queela depende dc uma experiência que não está em seu poder,e é p<lr isso que não se queixará do seu espírito, se bemque seja.forçado a deter-se; ou, por 6m, demonstraúquc a coisa procurada ultrapassa totalmente a aprecnsãodo espírito humano e, por conseguinte, nlo se julgarápor isso como mais ignorante, porque não há menosciôncia ncste conhecimento do quc cm qualquer outro.

REGRÂ IX

É precieo diÍigiÍ toda a acuidade do eepÍritopeÍa as coieas menos importantes e mais fáceise nelas noe determos tempo euficiente até nog

' habituarmoE e ver a verdade por intuifo de umamaneira dietinta e clara.

Dçois de termos exposto as duas opcraçõcs do nossocntendimcnto, a inruiÉo c a dedu$o, que são as únicasdc quc nos dcvcmos scrvir par:r aprender as ciências,como dissemos, vamos

^Bor^ cxplicar, ncste pÍoposi$o

c na scguinte, como nos podcmos tornar meis aptosptra, fuer cstas opcrâçõcs e cultivar, ao mcsmo tempo, asduas principais faculdades do nosso cspírito, a saber, apcrspidcia, vendo distintamcntc por inrui$o cada coisacm pefticuler, e a sagacidadc, dcduzindo-as com arteumas das outras.

Conhecemos ceftamentc a maneira como utilizar ainnri$o intclcctual, quento mais não scia por compara$ocom os nossos olhos. Pois, quem quiscr obscrvar mútosobiectos eo mcsmo tempo com um só olhar, não vê

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distintamente nenhum deles; e, do mesmo modo, quemtiver o costunìe de prestar atenção a muitas coisas aomesmo tempo, por um só acto de pcnsamento, ficacom espÍrito confuso. ÀÍas os artesãos que sc ocupam deobras minuciosas e que se habituaram a dirigir atentàmenrea penetração do seu olhar para cada ponto cm particular,adquircm, com o uso, a capacidadc de distinguir perfci-tamente as coisas mais ínfimas e subtis; assim também,os que nunca dissipam o seu pensamento em váriosobicctos ao mesmo tempo, mas o ocupam continua-nìcnte na considera$o do que há dc mais simplese de mais fácil, tornam-se perspicazes.

N<l cntanto, é um dcfcito comunì aos mortais con-sidcrar nrais bclo o quc i diflcil, c a ntaioria das pcs-soas julgam nada saber quando r'êem a causa muito simplcsc clara dc unra coisa, clas quc cntrctanto adnúram nosI:ilósofos ccrtes razões sublimes c de longe tiradas, aindaquc quasc senìprc elas sc apoiem em fundamentos nuncapor alguénr suficicntementc examinados em pornÌenor:são, scnr dúvida, insensatas, iá quc gostam mais dastrcvas do quc da luz. Ora, importa obscn'ar guc ()svcrdadciranrcntc sábios tênr igual facilidade cm disccrnira verdadc, quer a cxtraiam de um assunto simplcs ou dcdc unr assrult() obscuro. Pois, em cada unr dcstes casos,i por urìì act() scnrclhante, único c distinto, quc cles acaptanì, dcpois que aÍ chcgaram: toda a difercnça estána via, quc dcvc scr ccrtanìente mais longa, se conduza uma vcrdadc nrais afastada dos principios primeirosc mais absolutos.

É preciso, pois, quc todos se habituem a abarcarpclo pcnsanìent() tão poucas coisas ao Ínesmo temp()c coisas tão sinrplcs quc nunca iulgucnr saber algo, quenão o vcjanr tanrbinr por intuição tão distintamcntcc()rììo aquikr quc de tudo mais distintamcnte conhecem.r\lguns, claro, são p<lr naturcza muito nrais aptos paraisto do quc outros, nìas o nritodo e o exercícicl poâem

tornar também os csplritos müto mais aptos. A únicarecomenda$o que, scgundo mc parccc, dentre todasaqú importa, fazer é que cada qual se persuada 6rme-mentc dc quc não é das coisas grandes e obscuras, masâpenas das fáceis e mais ao nosso alcance, que é precisodcduzir as ciências, por mais escondidas que se possamsuPor.

Âssim, por cxemplo, se cu qüscsse examinar sealg,rma potência narural podc, no mcsmo instantc, excr-cer-se num l<rcal afastado, aravessan<lo todo o cspaçointcrmédio, Ílão é logo p^r^

^ força magnética ou a

influência dos astros, não é scquer p^Í^ ^

rapidez daac$o da luz, que dirigirei a minha mcnte, a fim dcinquirir se,. porvcntu-ra, tais acçõcs são instantâneas,pois isso scria mais difÍcil dc provar do quc o objccto daminha pesquisa; mas rcflectirei, de prcferência, no movi-nlcnto local dos corpos, porque nada pode havcr cmnrdo isto quc seia mais lrcrccptlvcl aos scntidos. E nota-rei,, certamcÍrte, que uma lrcdra não podc passar instan-taneamente dc um local para outÍo, porque é um corpo;cnquanto quc utwr potência scmclhantc à que move a

Fd.a só sc comunica de uma mancira instantânca, scpessâr no estado nu dc um suicito a outro. Assinr, ao impri-mir um movimcnto na cxtrcmidadc dc tun pau, por maiscomprido quc cle seia, facilmente concebo que a potênciaque scrve para movcÍ esta parte do pâu movc ncccsse-riamcntc num só e mcsmo instante todas as sues outraspertcs, porque se comunica no estado nu, sem existir cmqualquer coÍpo como, por exemplo, urna pcdra, quc scÍ-vtna PaÌa a transPortar.

Da mesma maneira, se cu qúscr saber como é queuma só e mcsÍrre causa simples podc produzir simulta-ncâÍnente cfeitos contrários, não é aos remédios dosmédicos, quc cxpulsarn certos humores c Íetêm outÍos,que vou rccorÍer, não é sobrc e Lua, quc aqucce pcla

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sua luz e arrefece por uma qualidadc oculta, que dircibagatelas, mas considerarei antcs por intüção a-balança,cm que o mesmo pcso num só e mesmo instante clcvaum dos pratos e baixa o outro, e coisas semclhantes.

REGRA X

Para que o esplrito se tornc pcrepicaz, devecxerciteÍ-re em pÍocuÍírÍ o que iá por outroe foicncontrado, e em lreÍaortes metodicamentc tdâseE aÍter ou oflcioe dos homene, ainda os menorimponantee, mae sobretudo or que manifegtamou eup,õem ordem.

Nasci, confesso, com um cspÍrito tal que o maiorpÍüzcr dos esrudos consistiur pera mim, não em ouviras razõcs dos outros, rus ern exercitar-mc a mim própriona su:r descobcrta; pois, foi apcnas isso qtrc me atm,iuquando ainde iovcm perâ o esrudo das ciências, c sempreque o tlrulo de um livro me prometie uma nova des-cobcrta, antes de continuar a ler, tcntava sabcr, sc potuma pcrspicácia inata, não podcria porvcnrure chegera semclhantc rcsultado, e cvitava cuidadosamcntc dcstruircsse prezer inoccnte por uma leitura aprcssada. Fui tan-tas vezes bcm sucedido que finalmente recoúeci quc iánão chcgaria à vcrdade, scguindo o hábito dos outroshomens, por invcstigaçõcs feitas de modo inceno e às

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cegas, com a ajuda da sorte mais d<l quc da arte, mas queuma krnga experiência me tinha permitido captar detcr-nrinadas Ícgres, quc pare este cfcito nre f<rram de nãop()uca utilidade e de que me vali para planczr muitasmais. r\ssinr, aperfciçrrci cuidadosamcnte todo () mcumétodo e persuadi-nrc dc quc, desdc o princípio, tinhaadoptado a maneira de cstudar mais útil de todas.

trles, porquc os csplritos dc todos não têm uÍn tãograndc inclinaçào natural para pr()curar minuciosamenteas coisas pclas suas própries f<rrças, esta proposição cnsi-nâ-nos guc não é frrrçoso (xupxr-n()s logo conr o maisdiflcil c árduo, rììas que é prcciso cxanrinar antcs t(dasas artcs tììcnos importantcs e mais simplcs, principalnrcnteaquelas cnr que mais rcina a ordcm; por cxcmplo, as dosartesãos quc tccenÌ tclas c tapcçarias, as <las mulhercs quelnrdanr à agulha ()u cntrcnrciam os fios dc um tccidode cambiantcs infinitamcnte variados; dtt mesmo modo,todos os jogos numéricos c tudo o quc. se rclacionacom e Âritmética, e excrclcios semclhantcs. E maravilhosoconstatar com() todas estas coisas cultivam o csplrito,c()ntant() quc não vamos buscar a dcscoberta aos outros,rÌìas a tirenros de nris pr<iprios. Com efeito, dado que nelasnada há quc pernìencça cscondido c porque correspondcmintciramentc à capacidade do conhccimento humano, epre-sentam-n()s muito distintamentc inúmcras ordens todasclifcrentcs cntre si, subnrctidas, porém, t Íegras e cuiacxacta obsen'ância constitui quase toda a sagacidadehumana.

E, por isso, advertinros a que se aplicassem a cstasinvcstigaçircs com nrétodo, ntétodo que, nestas mâté-rias dc menor importância, não difere habitualmentcda obsen'ância constantc da ordenr que existe na própriacoisa ,ru quc se inventa com subtileza. Suponhamos,por cxenÌpkr, que qucrenì()s lcr unra cscrita de caracteresdesconhecidos: ncnhuma ordenr aí aparecc certamente,nìas, apesar disso, inuginamos uma, quer para cxâminar

todas as hipóteses que se podem fazer rclartivamente ecada símbolo, ou cada palavra ou cada frase cm parti-cular, quer ainda para es dispor de mancira a conhecerpírr enumeração tudo o que dclas se pode dcduzir.Importa, sobrerudo, evitar perdcr tempo cm adivinharscmelhantcs coisas fortuitamente e sem arte, pois, aindaque possam nruitas vezes enconrar-se sem arte c, poÍvezes, talvez mais rapidamente à sortc do que com a ajudade um método, cnfraqueceriam a luz do espÍrito c ohabituariam de tal modo a vãs puerilidadcs quc, dçois,se dcteria sempÍe à superfície_das coisas, sem nelas poderpenetrar nrais intimemcnte. r\Ías, entretanto, não vamosnós cair no crro dos que só pcnsam em coisas sérias cdcmasiado elcvadas, das quais, após múltiplos trabdhos,adquirem u-ma ciência confusa, cmbora desejem umaprofunda? E, pois, no que há de mais fácil que devemosprimeiramentc cxcrcitar-nos, mâs com método, a fim dequc, por vias abcrtas e conhecidas, nos âcostuÍnernos,como qucnr brinca, a penetrâr semprc até à íntima ver-dade das coisas: por cstc mcio, com cfcito, será em seguidapouco e pouco, c num tempo mais crrrto do que ousa-rÍamos esperar, que também teremos consciôncia dcpodcr, com igual facilidadc, deduzir dc princípios eviden-tes várias proposições que pareccm muito difíceis ccomplicadas.

Alguns cspantar-sc-ão, talvczr luc ncste lugar emquc proorÍamos os nrcios de nos torneÍmos mais aptospara deduzir es verdades umas das ()utras, omitamostodos os preceitos dos Dialécticos, com os quais iulgamclcs govcrnat a, rtzío, prcscrevendo-lhe certas formas deraciocínio tão neccssariamente concludentes quc a, razÃ,onclcs confiante, cmbora de certa maneira dispcnsc aevidência c a atenção da própria inferência, pode, todavia,em virtude da f<rrma, concluir por vezes algo de acer-tado. Efcctivamcnre, observamos que a vcrdade sc subtraimuitas vezcs a cstcs laços, enquanto aquelcs quc dclcs se

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selem ncles permanecem enredados. Isto nào âcontocetão frcqucntemente aos outros; e a experiência mostra--nos guc todos os sofismas mais subtis quase nuncâ cos-tumam enganer e quem se serve de razão, mas sinr ospróprios sofistas.

Por isso, i sobretudo para cvitar aqui quc a nossârazào sc dcsintcresse, enquanto examinam<ls a vcrdadc dcalguma coisa, quc rejeitamos estas fcrrmas lógicas comocontrárias ao nosso obiectivo e procurÍrmos antes cuida-dosamente tudo o que nos ajude e manter o pcnsamentoatento, como se mostraÍá a seguir. Ora, plra quc sctorne ainda mais cvidente que csra lrte de raciôcinarcm nada contribui pare o conhccimento da verdade,importa observar que os Dialécticos não podem construircorn e sue aÍte nenhunr silogismo cuir conclusão scjaverdadcira, a menos que sc tenha iá a sua matéria, isioé, a não ser quc já antes conheçam e nìcsme vcrdadcque-nele sc dcduz. Daqui claremente se conclü que uÍnatal forma lógica não lhes lrcrmite conhccer nada ãe novoc que, por conscguintc, a Dialéctica vulgar é totalmentcinútil para os que desejam descobrir a verdade das coisas.Só pode senrir, por vezes, pare cxpor mais facilmente aoutros a-s razõcs já conhecidas e, por conscquência, éprcciso fazê-la passar da Filoso6^ p^r^ a Rctórica.

REGRÂ XI

Depoie da intuição de algumas proposiçõee eim-ples, se delas tirarmos outra conclusão, convém

PeÍcotleÌ a8 mesmaa com o P€nsemento nummovimento contlnuo e em nenhum lado inter-Ìompido, reflectir na8 Buer relações mútuac, econceber distintamente váriag coieas ao mermotempo, tânto quanto se pudcr; efectivamente,é aesim que o nooso conhecimento se tornamuito mais ceno e sc auÍnenta a capacidadedo eepÍrito.

Eis aqú a ocasião de cxpor mais claramentc o qucanteriormentc se disse sobrc a inrui$o intclccrual, nasÍegres terccira e sétima, pois, numa dcssas passagens,opusemo-la à dedu$o e, na outra, apenas à cnumeração.Dcfinimos csta como uma infcrência a partir de inúmerascoisas scparadas, ao passo 9ue, como disscmos nomesmo local, a simplcs dedu$o de uma coisa a peÍtirde outra se Íaz por inrui$o.

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l ìr i precis() agir assinÌ Porquc, Para a intuiçãtrintclcctual, cluas condiçircs sc cxigcnt, a sabcr, que aproposição scja conrprccncli<la clara c distintamcntc cquc, cnì seguida, scjr tarttbcrìì comPrccndida toda ao nres-mo tcnÌp() c não succssivanrcntc. r\ dcdução, porinr,sc pcnsarnros fazê-la, conÌo na tcrccira regra, não Pareccquc se rcalizc toda ao nÌcsmo tcntPo' nras implicx unìcirto rnovinrcnt() do nosso espirito que inferc uma coisadc ()utra; por isso, f<ri conr razão quc aí a distinguinrosda intuição. ìÍas sc a considcrarnros iá fcitr, scgundo o quesc dissc na sétinta rcgrx, iá não dcsigna cntã() nrovi-

dc algunr modo, da nrcnrória, na qual sc dcvem con-scrvaÍ os juízos cmitidos sobrc cada unra das partcs cnu-nrcradas, para dc todas clas sc tirar unra única conclusão.

Outras tantas distinções havia a Íazcr pa'n' intcrprctar

parcccrcrìì fundir-sc ctlniuntanrcntc nunìa só, graças aurrr nrovimcoto do pcnsanìcnto que considera atcnta-nìcntc pr.rr intuição crda obiccto cnì Particular, ao mcsmotcrÌÌpo quc vai prssando aos outros.

Há nisto unn <lupla vintaÍ{ctÌì que indicanìos e qucconsistc crn conhcccr a conclusão, quc nos ocuPa, de umamaneira mais certa c cm tornxr o nosso cspÍrito mais

ficada" devido aos seus esquccimentos e fraquezas, porum movimento contlnuo c repctido do pensamento.Suponhamos, por cxemplo, quc, por várias operações,eu tcnha chegado a conhecer, primeiro, qual a rcla$oexistente entre unìe primeira grandeza c uma scgunda,depois, cntrc uma segunda e urla tcrccira, em següda,entÌc unÌa terceira c uma qu:rna e, finalmcnte, cÍltreuma qurrta e ,.Te guinta: ncm por isso vcjo quc relaSoexiste entre a primcira c a quinta e não a posso dcduzirdas que já são conhecidas, a não ser que me lembre detodas. Eis p<lrque é ncrcssário gue o meu [rcnsamentoas pcrcorra de novo, até quc passe da primcira à últimacom tal rapidez que, scnr qwrsc deixar nenhum pâp€là memória, pareça vcr toda a coisa ao mesmo tcmpopor intuição.

. Não há ninguém- que-não -veia

como é que por estcmeio se corrigc a lcntidão do espÍrito e aumenta asua capacidadc. Âlém disso, importa obscrvar quea nraior utilidade da nossa Íegra consiste em que areflexão sobrc a mútua dcpcndência das proposiçõessimplcs nos faz adquirir o hábito de distinguir subita-mentc o que é mais ou menos rclativ<,r, e por quc grâusse rcduz ao absoluto. Suponhamos, por exenìplo, quepcrcorro al.r;unras grandczas continuamcntc pÍoporci<>nais: eis tudo aquilo sobrc que vou rcflectir. Ë por unrconceito scmelhantc, nenì nuis nem nlcnos fácil, que rcco-nheço a rela$o existcnte cnrrc a primeira e a icgunda,entrc â segunda c a terccira, entre a terceira e a guarta,etc. ì\Ías não posso concebcr assim tão facilmcntc quala dcpcndência da scgunda relativamente à primeira e àtcrceira ao mcsnto tcmpo, c é ainda múto mais diflcilconcebcr a depcndência dcsta segrurda relativrmente àprimeira e à quarta, ctc. Dal chcgo, em seguida, r cÍrptarpoÍque é que, dadas somentc a primeira e a scgunda,posso facilmente encontrar a terccira c a querta, ctc.:é quc isto se faz por meio de conccitos particulares c dis-

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rintos. Ora, dadas apcnas a primeira e a terceira, nãodcscobrirci tão facilmcntc a média, pois isso só se podefazcr mediante um conceito que envolva eo mesmo tempodois dos precedcntes. Dadas apenas a primeira c e quarte,scr-me-á ainda mais difÍcil ver por intuição as duasmédias, porque há aqui três conceitos simultaneamenteimplicados. Por isso, também me pareceria mais difícilainda achar três médias entre a primeira c a quinta.Há, no entânto, outre ttzão ptra, que isto se passe deoutra fcrrma: é que, âpesar da ligação simultânea queexiste aqui entre qutÍo conceitos, cles podem contudoscr separados, dado que quatro é divislvel por outronúmero, dc mancira a possibilitaÍ-me a brsca da terceiraapenas por meio da primeira e da quinta, em seguida, dasegunda por meio da primeira e dr terceira, ctc. Quemse habituou a fazer estas reflexõcs e outres scmelhantesreconhece imediatamente, semprc que examina urna novaquestão, o que é quc nela gera a dificuldade c qual éde cntre todos o meio nrais simplcs parâ a resolver: é oque constitui a maior aiuda para conheccr a verdade.

RE,GRA XII

Finalmente, há que utilizaÍ todoe os tecursogdo entendimento, da imaginâÉo, dos sentidose da memória, quer pare termoe umâ intui$odistintâ das proposições simples, queÍ pâra eEtâ-belecermc, enre às coisas que se procuÍeme as conhecidas, uma liga$o adequada que a8permita reconhecer, queÍ ainda pera enaontraras coisas que entne ei ee devem comparaÍ, a 6mde ee não omitir nenhum recureo da indúetdahumana.

fista rcgra é a conclusão dc tudo o quc antcrior-mente sc dissc c ensina em geral o que cra necessárioexplicar cm perticular: eis como.

No conhc.cimcnto, há apcnas dois pontos a consi-derar, a sabcr: nós, que conhcccmos, e os obicctos aconhecer. Em nós, há apcnas quatro faorldades quep<xlemos utilizar par:r esse objcctivo: o cntendimcnto, aimagina$o, os sentidos e a memória. Só o entendi-mcnto é ctpzz dc ver a verdade; deve, no cÍltanto, scr

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ajudado pcla inraginação, pclos scntidos c pela menrCrria,para nada onritirnrr-rs dc <luanto se ofercce à nossa indús-tria. Do lado da rcalidadc, basta cxaminar trôs coisas;a saber: primciro, () quc sc aprcscnta csponraneanìcntc;cnr seguida, com() sc conhccc p()r ()utro unr dcternrinadoobjccto; c, por fim, quc deduçr)es sc podcm tirar dccada unr delcs. Esta cnunrcraçâo parcce-nìc conrplcta,não r.rmitindo absolutanrcnre nada daquilo a que sepodc cstcnder a indústria hunrana.

l)or isso, passando ao prinrciro ponro, desejaria aquic\p()r () que i a nrcnte do homcm, () que é o seuc()rpo, conìo c quc cste é inftrrmado por aqucla, quaissão cnr todo o comp()sto humano as faculdadcs quc ser-vcnÌ para o conhccimcnt() c o que cada uma delas fazenr particrrlar, sc este lugar não me parecesse demasiadocstrcito para incluir todos os preliminares necessários,antcs dc a todos se t()rnar manifesta a vcrdade dcstascoisas. Dcsejo, com efcito, escÍevcr sempre de maneiraa nada asserir de quanto se costuma pôr ern discussão,a não scr que prcviarnente tenha exposto as razões qucnrc lcvaranr às minhas deduções e mediante as quaiscreio quc ()s outr()s também podem ser persuadidos.

ìlas, iá que não () posso fazer agora, bastar-nrc-ácxplìcar c()m a máxinra brevidade possÍvel, qual dosnrodos dc conccber tudo o que enr nós sc destina aconhcccr as coisas é nrais útil ao mcu propósito. Nãoacrcditarcis, exccpto sc \'os agradar, que assim seia;mas, que i que vos impcdirá de seguir as mesmassuposiçocs se é evidente que, sem em nada diminuir averdadc das coisas, elas unicamentc tornam tudcl nruitonrais claro? Nã<.r scrá diverso do quc acontece na Geo-nrctria, cnÌ que fazeis sobre a quantidade ccrtas supo-sjÇòcs que nâo cnfraquccenr de mancira alguma a forçadas denronstraçÕes, ainda que tenhais muitas vezes, naIìísica, uma ideia diferente accrca da sua narureza.

É preciso, pois, conceber, em primeiro lugar, quetodos ós sentidos externos enquanto Partes do corpo,

recebe assim a 6gura, impressa pela ac$o da luz, reves-tida de diversas cores; e a primeira membrana das orelhas,das narinas e da língua, impérvia ao obiecto, vai igual-nìente buscar uma nova 6gura ao som, ao odor e aosabor.

É muito útil uma tal concepção de todas cstas coisas,pois nada cai mais facilmente sob os sentidos do q-ucã 6guta: na verdade, toce-se e vê-se. Por outro lado,csta suposição nem sequer implica mais consequênciasfalsas do que qualquer'outra: a Prova está em que oconceito de 6gura é tão comum e tão simples que estáincluído em todo o sensível. Por cxemplo, podes suPor

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melho, etc., comoexPostas ou outras

a que existe entre es figuras aquiscmclhantcs, etc.?

O mcsnro sc pode dizer dc tudo o mais, pois a quanti-dadc infinita das figuras basta, é certo, para exprimirtodas as diferenças dos objectos sensíveis.

Em scgundo lugar, é prcciso conccber que, vistoo scntido cxrerno ser posto cm movimento pelo obiecto,a figura quc ele rccebe é transposta para outra parte docorpo, chamada scntido comum, instantaneanrcnte c sempassagcm rcal de ser algum de um sítio para outro.E prccisamente assim quc agora, ao escrcvcr, comprecndoque, no mesmo instante em que cada letra particular étraçada no papel, não só a parte inferi<lr da minha pcnacstá'a nìover-se, mas ainda que nem sequer ncla podeexistir o menor movimento, sem que seja igualnrentcrcccbido xo mcsnlo tempo em toda a pena, cuja partesupcrior descreve no er todas estas difercntes f<rrmas demovinrentos, ainda que na rninha concep$o nada de realpasse dc uma cxtremidadc à outra. Quem pensaria, comcfcito, que há menos conexão entre as partcs do corpohumano do que entÍc as de uma pena, e que é que sepodc imaginar de nrais simples para cxprimir este facto?

Enr tercciro lugar, é preciso conceber que o sentidoconìum desempcnha tambénr o papel de um selo para for-n'rar na fantasia ou imaginação, tal como na cera, as mes-mas figuras ou ideias que vêm dos sentidos externos,

movidos de maneiras diferentes, tal como o sentidocomum o é pclo scntido cxterno ou como e Pena inteirapela sua parté inferior. Este exemplo mostra também comoë que a fantasia pode scr a causa de muitos movimentosnos nervos scm, no entanto, ter as suas imagens exPrcs-sas em si, mas outras de que podem seguir-se estes movi-mentos. Com efeito, a Pena inteira não cstá em mo-vimento tal como acontece com a sua Parte inferior;pelo contrário, parece, na sua parte maior, animada porüm movimento totalmente diferente e contrário. E assimse compreende como podcm fazer-se todos os movi-mentos dos outros animais ainda que ncles não seadmita absolutamente nenhum conhecimento das coisas,mas ap€nas uma fantasia puramente corpórea; tambémassim se comprcende como em nós próprios se fazemtodas aquclas operações que realizamos sem qualqucrajuda da rrzão.

Finalmente, em quinto lugar, é preciso conceber

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m()triz segundo a simples organiza$o corporal. Em todoscstes casos, csta fr>rça cognoscentc é ora passiva, oraactiva; ora imita o selo, ora a cera; contudo, cstasexprcssircs só devcm aqui tomar-se analogicamente, poisnada se encontra na-s coisas corpóreas que lhe seja tótal-mcntc semclhante. E unra só e mesma f<rrça que, ao apli-car-se com a imaginação ao sentido comum, sc diz: vcr,tocar, ctc.,;9u€, ao aplicar-se apcnas à imaginação,enquanto esta se acha rcvestida de diversas 6guras, sc diz:recordar; que, a() aplicar-se a ela para formar outras novas,se diz: imaginar ou conceber; que, finalmente, ao agirsó, se diz: comprcender. No seu dcvido lugar, exporeinrais longamente de que modo se faz esta última operação.Segundo cstas diversrs funções, a mesma f<rrça chama-scaindr <lu cntcndinrento pur(), ou inraginação, ou mcmória,()u sentidos, mas dá-se-lhe propriamente o nome decspírito, sempre que f<rrmc novas ideias na fantasia, ouse ()cupc das já fcitas. Consideramo-la apta para estasdivcrsas opcraçõcs e há que ter em conta, ultcriormente,a distinção das denominaçries prcccdentes. Unra vezassinr fornruladas todas estas concepções, o leitor atcntodivisará facilmente quais as ajudas que deve pcdir acada faculdadc e até onde se pode estendcr a indústriados honrens para suprir os defeitos do cspírito.

Com efcito, assim como o entendimento pode sermovido pcle inra.ginação ou, pclo contrário, agir sobrecla, assim tambim a imaginação pode agir sobrc osscntidos pela frrrça nrotriz, aplicando-os aos seus obiec-tos ()u, pclo contrário, clcs podem agir sobre ela,pintando nela as imasens dos corpos; por outro lado,a memriria, pclo men()s a corpórca e scmelhrnte à recor-dação dos aninrais, não é de forma alguma distinta dainraginação. Conclui-sc assim com ccrteza 9u€, se oentcndinrcnto sc ocupr do quc nada tem de corporal oudc scmelhantc ao corporal, não pode scr aiudado poressrs faculdades; mas, pelo contrário, para que nelas

não encontrc obstáculo algum, é preciso afastar os scnti-dos e despojar, tanto quanto possível, a imagina$o dctoda impressão distinta. Se, por outro lado, o cntendi-mento se propõc examinar um objecto que sc poderelacionar com um corpo, é a ideia deste obiecto quc éprcciso formar com a maior distinção possÍvcl na imagi-nação; para mais comodamentc o Íazer, dcvc mostrar-seeos sentidos externos o próprio obiecto quc esta ideiârepresentará. Uma pluralidade de obiectos não podefacilitar ao cntendimento a intui$o distinta dc cadaum deles em particular. IUas, pâra tirer dc uma pluraüdadcuma só dcdução, o quc muitas vczes se tcm de fize4há que rcjcitar das ideias, que das coisas se têm, tudoo que não exigir uma atenção imediata, a 6m dc quc orcsto mais facilmente sc retenha na memória. Do mesmomodo, não scrão então as próprias coisas que se devempropor aos scntidos extcrnos, ffns antcs dgumas dassuas figuras abrcviadas, e cstas, contento que bastem perâevitar um lapso de mcmória, serão tanto mais cómodasquanto mais breves forcm. Qucm tudo isto obscrvarnada omitirá, assim me parece, do que sc rclaciona comesta partc da nossa cxposi$o.

E vamos, agora, abordar também o segundo ponto:distinguir cuidadosamente es noções das coisas simplcs,das noçries quc e partir dclas sc compõcm e ver numase noutras onde podc rcsidir o erro, a 6m de o evitarmos,c quais as que se podem conhecer com certcze a 6mde apenas delas nos ocupâÍmos. Nestc lugar, tal como noque precede, é prcciso ftzer certrs suposiçõcs que talveznem todos nos concedem; Ínas pouco importa que nemscqucr as julguem mais verdadeiras do quc os círculosimagiúri<ls com que os Astrónomos dcscrevem os seusfenómenos, contanto que, pela sua ajuda, se distinga, apropósito dc qualquer coisa, que conhecimento podc scrvcrdadeiro ou falso.

Dizemos, pois, cm primeiro lugar, que é prcciso

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considerer âs coisas singulares em ordem ao nossoconlrecimento de forma diferente dc quando delas fala-mos tal como existem rcelmcntc. Sc, por exemplo, consi-dcrarmos um corpo extcnso e 6gurado, confcssaremosque cle, por parte da rcalidade, é algo dc uno e dcsimples. Grm efeito, não podcria ncste scntido dizcr-sec()mposto dc narureza corporal, de extcnsão e dc figura,pois cstes clcmentos nunql existiram distintos uns dos()utros. Ì\Ías, em rclação ao nosso cntendimcnto, dize-mos quc é composto dcstas três naturezas, porquecaptámos cada uma delas separadamente antes dc termospodido iulgar quc se cncontram as três iuntas num sóã mesmo sujcitó. É por isso que, não tratando aqui dccoisas senão enquanto pcrccbidas pclo cntendimento,chamamos simplcs só àquelas cuio conhccimcnto é tãoclaro c distinto que o cntcndimcnto não as podc dividircm várias outras conhecidas mais distintamcntc: tais sã<la Íìgura, a extcnsão, o movimcnt(), ctc. Quant<l às outras,conccbcmo-las todas com() sc, de ccrto modo, fosscm com-lnstas dcstas. É prcciso cntcndcr isso dc mancira tãogcral quc não há scquer cxcep$o parÍr as quc, às vezes,obtcmos gxrr abstracção.. das próprias

-coisas simplcs:.

assim acontecc quando dizcmos quc a figura é o limitcdo <lbiect<-l cxtcnso, conccbcndo pcla palavra limitc algomais gcral que pcla palavra figura, visto que sc prrde,scm dúvida alguma, falar também do limite do movi-mcnto, ctc. Nestc cÍlso, se bem que <l limite dcsignc umaabstrac$o tirada da 6gura, não dcvem, porém, consi-derar-se por isso mais simplcs do que a figura; antes,uma vcz que se atribuiainda a outras coisas, como o tcrmodc uma dura$o ou de um movimento, etc., coisas quesão dc um géncro totalmente diferente do da fiÍjrra,houvc tambim quc abstraËlo dos scus objectos, e, porconscguinte, é um composto de várias naturezas comple-tamcntc difercntcs e às quais sc aplica apcnas dc maneiracquív<rca.

Dizemos, cm segundo lugar, que as coisas chamadas

buídas indistintamentc om, aos obicctos corpóreos' oraaos espíritos, como a eristência, a unidade, -a

dura$o- ecoisas'semelhantc.

^ isto se devem igualmcntc rcfe-

rir essas noçõcs comuns que são como laços unindo cntresi outras naturczâs simplcs c sobre cuia cvidência se apoiamtodas as conclusõcs dos raciocínios. São as scguintes:duas coisas idênticas a urn terceira são idênticas entresi; assim também, duas coisas que não podcm rclacio-nar-sc com uma tcrceira do mcsmo modo, têm também

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c assirìì i quando, além do que nelas vemos por intuição()u (luc () n()sso pcnsamcnto aí capta, suspeitamos que háalgurrra coisa quc nos cstá escondida, e quand<i cstenoss() perìsamento i falso. Por este moti\'o, i cr.identequc nos cngananìos sc, por vezes, julgam<ls que nãoconhccenros complctanlcntc alguma destas naturezas sim-ples; conr cfcito, sc dela apreendôssemos intelectualmentcuma nrínimx parre, o que é seguramente necessário nalripótesc dc quc sobre ela emitimos algum iuíz<>, havcriaquc concluir, pclr isso mesmo, que a conhecemos per-fcitanrcnte. r\liás, nem a poderíamos chamar simples,nras conìp()srer em virtude do que nela captamos e doclue dela julgamos ignorar.

Dizcmos, cm quarto lugar, que a conjunção destasc.oisas siruples cnrre si é neccssárir ()u contingente.[:] ncccssária, quando unìa está implicada tão intimamentcno conccito cla outra quc não podemos concebcr distin-tanìcntc urÌìx ou ()utra, se as julgarm()s separadas entresi. É desta nraneira quc a 6guia èstá unida ã extcnsão, onrovirrrcnto à duração ou ao tempo, erc., porque nã<lc possír'cl conceber uma lìgura privada dc cxtensão, nemunr nrovinrcnto privado de toda a duraçãr>. Do mesm<rrrrocl<r rinda, sc digo quc quatro e três faacm sete, trata-sedc unrl conrposi$o necessária; com cfeito, não conce-

bemos distintamente o número sete sem ncle incluirmosnumx certa relação confusa o número três e o númcroquatro. Do mesmo modo, tudo o que se demonstra arespeito das figuras e dos números conecta-se necessa-riamentc com o obiecto de que se a6rma. E não é apenasnas coisas sensíveis que se encontra esta necessidade, mastambim noutras circunstâncias: por exemplo, se Sócra-tcs diz que duvida de tudo, segue-se necessariamenteque compreende âo menos quc duvida; do mesmo modo,que sabe que pode haver algo de verdadeiro ou defalso, etc., pois estas conscquências estão necessaria-mentc ligadas à natureza da dúr'ida. Â sua união contin-gentc é a que não implica nenhuma liga$o indissolúvelentre as coisas: como quando se diz que um corpo é ani-mado, que um homem está vestido, etc. Há ainda umagrandc quantidadc de coisas que, muitas vezes, estão liga-das entre si necessariamente e que a maioria das pcssoassitua entre as continÍlentes, não notando a relação queentre elas existe, como, por exemplo, esta proposição:sou, portanto, Deus é; e do mesmo modo: contpreendo,portxnto, tenho uma mente distinta do corpo, etc. Final-mente, importa observar que es proposições conversesda maior parte das proposições neccssáries são contingen-tes: assim, ainda que do facto de eu existir tire a con-clusão de que Deus existe, não é contudo permitido,em virtude do facto de Deus existir, afirmar que eutambinr existo.

Dizemos, em quinto lugar, que nada podemoscompreendcr para além destas naturezas simples e daespécie de mistura ou composi$o que entre elas existe.E, claro, é muitas vezes mais fácil considerar ao mesmotempo várias juntas do que separar das outras umaúnica; por exemplo, posso conhecer o triângulo semnunca ter pcnsado que, ncste conhecimento, está aindacontido o do ângulo, da liúa, do número três, dafigura, da extensão, ctc.; isto não nos impede, no

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cntanto, de dizer que a nârureza do triângulo é compostade todas estas mturezas e que elas são mais conhecidasdo que o triângulo, pois são elas próprias que a intcligêncianele descobre. No mesmo triângulo estão talvez andacncerradas muitas outras naturezas que nos escepam,como a grandcza dos ângulos, cuja soma é igual a doisrectos, e as relações inumeráveis que existem entre oslados e os ângulos, ou a capacidade da área, etc.

Dizemos, em scxto Íugar, que as naturczas por nóschamadas compostas nos são conhecidasr Qu€r porqueexperimentamos () que elas. são, quer porque nós pró-prios as compomos. Experimentam()s tudo o quc per-cepcionamos pela sensação, tudo o que ouvimos dos()utr()s e, de um modo geral, tudo o que chega ao nossoentendimento, ou de algum lado, ou da contemplaçãorcflectida que ele tcm de si próprio. Há que notar, aeste respeito, que o entendimento nunca pode ser enga-nado por experiência alguma, desdc que unicamentetenha a intuição precisa da coisa que lhe é apresentada,conforme a possui cm si ou numa imagem, e contantoquc, além disso, não iulgue quc a imaginação repro-duz fielmcntc os obiectos dos sentidos, nem que ossentidos revestem as verdadeiras figuras das coisa, nem,finalmentc, que as coisas externas são scmprc tais quaisnos apareccm. E em todos estes pontos que, efectiva-mcnte, cstâmos sujeitos ao erro, como se alguém noscontar uma fábula, iulgarmos que o acontccimento temlu.gar; ou se um doentc atingido de icterícia julgar quetudo é amarelo, porque tem o olho tingido de amarelo;ou, por finr, se devid<> a uma lesão da imagina$o, comoacontecc aos melancólicos, julgarmos que as suas imagenspcrturbadas reprcsentam realidades. Ì\ías nada disto enga-nará o entcndimento do sábio, porque tudo o quc recebcrda imaginação será evidentemente por ele julgado comorealmente nela pintado; todavia, nunca rfrrmarâ que issonìesmo acontcccu tal qual e sem qualquer mudança das

coisas externes pere os sentidos e dos sentidos p^ra ^imaginação, a não ser gue o tcnha conhecido antes, por

qualquer outro meio. Por outro lado, compomos nóspróprios as coisas que entendemos, sempre que iulgamosexistir nelas algo que nenhuma experiência imediatamentemostrou à nossa mente. Por excmplo, se âcontecer que odoentc de icterícia sc persuade de que as coisas vistassão amarelas, este seu pensâmento seú composto daquiloque a sua fantasia lhe rcpresenta e da suposi$o que faz,a saber, que e cor amarela lhe aparcce, não por defeitodo seu olho, mas porquc as coisas vistas são realmenteamarelas. r\ conclusão é que só podemos ser enganadoscompondo nós próprios de certo modo as coisas em queecrcditamos.

Dizenros, em sdtimo lugar, que esta composi$o scpode fazer de três maneiras, a saber, por impulso, porconjectura ou por dedução. É por impulso que compõemos seus iuízos sobre as coisas aqueles cuio espÍrito os levaa alguma creng, sem serem pcrsuadidos por razão alguma,mas determinados apenas ou por alguma potência supe-rior, ou pela sua própria liberdade, ou por uma dispo-sição da fantasia: a primcira influência nunca engana,a segunda raramente, a terceira quese sempre; mas aprimeira não tem o seu lugar aqui, porque não dependeda arte. A composi$o faz-se por coniectura quando,por exemplo, do facto de t âgue, por cstâr mais afastadado centro do mundo do que a terra, ser também deuma essência mais subtil, c ainda do facto de o ar, porse encontrar acima da água, ser também mais lcve, conjec-turamos que, acima do ar, nada mais há do que étcrmuito puro e muito mais subtil que o próprio ar, etc.Tudo o que dcste modo compomos não nos engena,certamente, se julgarmos quc é apenas provável e sciamais afirmarmos que é verdadeiro, rnas também nãonos torna mais sábios.

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Resta só, pois, a dcdução pela qual possamos conìpor:rs coisas dc forma a cstarnìos seguros da sua verdade.Podc, porénr, haver nela também numerosos defeitos,c()t'r'ro ac()ntece se, pclo facto de nada haver n() nossocspaç() chcio dc ar que perccpcionemos pela vista,tact() ()u qualqucr outro sentido, daÍ concluirmos que esteesprç() é vazio, associando crradamente a naturczt d<tvlzio à destc espaço. Âssinr acontece semprc quc de umacoisa prrticular ou contingcnte julgarmos que é possír'eldcduzir al.qo dc geral e de neccssário. ÌtÍas está cm nossopodcr cvitar este crro, a saber, se nunca liga-rnros coisasentrc si scnì \'er por intuição que a ligação de uma con'r()utra i c<tmpletamente neccssária, com() acontccc aodcduzirnros que nada pode ser figurado sem ser extenso,pclo facto d:r figura ter uma ligação necessária conì acxtcnsã<1, ctc.

Tudo isto pcrmitc concluir, em primeiro lugar, quecxpuscnì()s distintamcntc e, em minha opinião, porunìr cnunìcração suficientc, o que no início só confusac grossciranìente pudem<ls mostrar, a saber, que não hávias abcrtas ao homem para unr conhecinrento ccrto davcrdadc além da intuição evidcnte e da dedução ncces-sária; c também para conhecer o quc são as naturezassirrrplcs, quc abordámos na oitava proposição. E é clar<>quc x intuição intelectual se estender p{)Í um lado, atodas cssas naturezas, por outro, ao conhecinrcnt<l dascrxrcxircs que existem necessariamente cntre si e, final-nìcrrtc, a todas as outras coisas que o entendimentoiulga csistir de unre maneira precisa, quer cm si próprio,(lucr nx fantasia. Quanto à dedução, dir-se-ão maisc()rsxs a scgurr.

Conclui-se, cm scgundo lugar, que não há que cnvidarcsfrrrç<.rs por conhccer essas naturezas simples, pois sãojá suficientemente conhecidas por si mesmas, mas apenasp()r as scparar unras das outras e considerar à parte intui-rivanrente cada uma delas, aplicando-lhes a sua pcne-

tração intelectual. Não há ninguénr, com efeito, que sejatão débil de espÍrito que não perccba gu€, quan-do scntado, é de algum modo diferente de si, quandolevantado. Àías nem todos separam com a mesma distin-ção a natureza da sirua$o do resto que se contém nessepensanìento, e nem todos podem arfrrmar que nadamudou, excepto a situat'o. Não é em vão que aqui faze-mos esta observação, porque os letrados têm frcquente-mente o cosrume de serem tão engcnhosos que encontrammeio de nada ver mesmo no- que é evidente por si e queos incultos nunca ignoram. E o que lhes acontece sempreque tentam esclarecer estas coisas conhecidas por si mes-mas, mediante algo de mais evidente: com efeito, ou expli-cam outra coisa, ou absolutamente nada. Pois quemnão percebe todas as mudanças, scjam elas quais forem,que sofremos eo mudar de lugar, e quem poderia concc-ber a mesma coisa, quando se lhe diz que o lngar é a sapcr-ficic do corpo antltiente? !,sqa sup_erfície-pode mudar, se bemque eu permaneça imóvel e não mude de lugar, ou, pelocontrário, deslocar-se comigo de maneira a rodear-me,embora eu iá não me encontre no mesmo lugar. Em con-trapartida, úo parecem proferir palavras mágicas, quetêm uma força oculta e pâra além do alcance do es í-rito humano, os que dizem que o moainento, coisa conhe-cidíssima de todos, é o acto do scr cn potência, cnqaunlo estácnt polência? Quem compreende estâs palavras? Quemignora o que é o movimento? E quem não confessariaque estes homens procuÍârâm um nó num iunco?E preciso, pois, dizer que nunqr se devem cxplicar ascoisas por defini$o dguma dcsta cspécie, não acontcçacaptarmos cm vez do simples o composto, rns que cadaum as deve apcnas examinar scparadas de tudo o mais,numa intuição atenta e segundo as luzes do seu espÍrito.

Conclui-sc, cm terceiro lugar, quc toda a ciênciahumana consiste apenes em ver distintamente comoestas naturczas simplcs concorrcm em coniunto p^r^

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composi$o das outras coisas. É muito útil observaristo, pois, sempre que se propõc uma dificuldade pararesolver, quase todos se detêm no limiar, na incerteza desaber a que pcnsementos dcvem aplicar a sux mente ena pcrsuasão de que importa procurar algum outr() novogénero de ser antes dcsconhecido, como, por ex., aop€rguntar-se qual e nature?a da pcdm-íman-, l-ogo- eles,ao vaticinârem quc a coisa é penosa c difícil, desviam ainteligência de tudo o que é cvidente e a viram paratud<> o que há de mais difícil e, panidos à aventura,cspcram que ele encontre algo dc novo, errando pclocspaço vazio .las causes múltiplas. ÌrÍas aquele que pcnsaque nada se pode conhecer na pedra-lman que não sejaconìposto de certas naturezes simples e conhecidas [x)rsi nresmas, não tem inccrtezas sobre o que é prcciso fazer.Primciro, reúne cuidadosamentc todas as cxpcriênciasque pode encontrar a propósito desta pedra; depois,csforça-se por daÍ deduzir qual e mistura de narurezassimplcs nccessária gera produzir todos os efeitos quercconhcccu por experiência ne pcdra-íman. Uma vezachada csta misrura, 1rcde audaciosamente afirmar quec<rnrprcendeu a verdadeira naturcze, dt pcdra-lman, tantoquanto cla pôdc ser descoberte por um homem c conìa aiuda das cxperiências feitas.

Por fim, conclui-se, em querto lugar, do quc f<ri dito,que os conhccimcntos das coisas não devem ser olhadosc()nìo mais obscuros uns do que bs outros, iá quetodos são da mesma naturez:l e consistem apenas nurulcornposição de coisas coúccidas por si mesmas. Quaseninguim se dá conta, mas, apoiandose numa opiniãocontrária, os mais atrevidos permitem-se tomâr as suasconiecruras por demonstraçõcs-verdadciras e, nas coisasque ignoram completamente, afirmam que vêm verdadesmuitas vczcs obscuras como através de uma nuvem.Estas verdades, não as temem expor, associando os seusconceitos a palavras que, habitudmente, os aiudam a

raciocinar sobre muitas coisas e a dclas fdar logicamente,sem realmcnte serem compreendidos nem por si própriosncm pelos que os ouvem. Quanto aos mais modestos,abstêm-se muitas vezes de examinar uma quantidade decoisas, ainda que fáceis e muito necessárias gera a vida,só porque se consideram impotentes e seu respcito;e como iulgam quc podem ser compreendidas por outÍosmais dotados de espÍrito, accitam as opiniõcs daquelcscuja autoridade lhes inspira mais coúança.

Dizemos, em quinto lugar, que e dcdufo só se podefizer, qucr das palavras às coisas, qucr do cfeito à suacâusa, qucr da causa ao scu deito, quer do semelhanteao semelhante, qucr das partes às partes ou ao própriotodo...

Quanto ao mais, receando que o cncadeamcnto dosnossos prcceitos escapc a alguém, dividimos tudo oquc sc pode conheccr em proposiçCrs simples c em qucs-tõcs. Para as proposiçõcs simplcs, não damos outros Prc-ceitos difcrentes dos que prepanrm a nossa força deconhecimcntos para eptar por intui$o quaisquer obiec-tos mais distintamente os perscrutiÌr com maior sagaci-dade, porquc cstes proposipes dcvcm ocorrer csponta-neâmente e úo podem ser obiecto de invcstiga$o.A isto nos dedicámos nos doze primeiros prcceitos eiulgamos ter então mostrado tudo o que, nâ nossaopinião, pode facilitar o' uso da nzão. Quanto àsquestões, unìas comprecndem-sc pcrfeitamente, aindaquando sc ignorc a solu$o: é só delas que nos ocupaÍe-mos nas dozc rcgras que se seguem imediatamcnte;outras comprecndem-se imperfeiamcnte e Ícservarno--las para as doze últimas rcgnrs. Ê uma divisão urdidacom um dcsígnio; 6zemo-la, quer para não sernosobrigados a dizer dgo quc pressuponha o conhecimentodo que sc seguc, quer para ensinarmos, ântes dc mais,o que tambdm iulgamos scr prioritário no cultivo doespírito. Notc-sc que, entre as questões que se com-

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preendem perfeitamente, colocâmos apenas aquclâs emq.ue. percebenros distintanìcnte três coisas, a saber: quesinais pcrmitem reconhccer o que se procura, quandoelc surge; que é prccisamente naquilo de que o devemosdeduzir; e como inrporta provar que há entre estesobjcctos, uma tal dependência que um não pode de formaalguma mudar quando o outro não muda.

Desta forma, tem()s as nossas premissas e nada mais6ca por mostrar do quc o modo de encontrar a conclusão,nãr.r certamente deduzindo dc uma única coisa simplesum objecto determinado (pois isso pode fazer-se sem pre-ceitos, conro iá se dissc), mas extraindo um obiectodeterminad(), que depende de muitas coisas conjunta-tnente implicadas, c()m umâ tal arte que não se exiiauma maior profundidadc de espírito do que a requeridapara, fazcr a nrais simples inferência. Âs questões destetipo são quase sempre abstractas e quese só se encontramna r\ritmética ou na Gcometria: é por isso que parecerãopouco úteis aos inexperientes. Faço, no entanto, umaadvertôncia: no estudo desta arte devem mais longa-mente ocupar-se e exercitar-se os que deseiam possuirperfeitamente a última parte destc método, em que tra-tamos de tudo o rcsro.

REGRÂ XIII

Se compreendermos perfeitamente uma questãotdevemoì abstraÍ-la de todo o conceito 8uPérfluotreduzi-la à maior simplicidade e dividi-la empeÍtes tão Pequenas quânto possÍvel, enume-rando-ag.

Só nisto apcnas imitamos os Dialécticos: assim comoeles, na cxposi$o das formas dos silogismos, supõemque sc coúecem os seus termos ou a matéria, assim tam-bém nós exigimos aqui antecipadamente que a questãoseia perfeitamentc comprcendida. ÌtÍas não distinguimos,comó eles, dois extremos e um meio: é da maneiraseguinte que tratamos todo o assunto. Primeiro, em todaa qucstão, deve haver necessariamcnte algo de desconhe-cidb, pois, de outro modo, e suâ invcstiga$o s-eri.ainútil: cm segundo lugar, esse incógnito tem de scr desi'gnado dc alguma maneira, pois, de outro modo, nãoéstaríamos detcrminados a investigá-lo de prefcrência aqualquer outro objecto; em tercciro lugar, só podc.serdesignado mcdianie alguma outre coisa iá conhecida.

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Tudo isto se encontra até nas questões imperfeitas, comoacontccc scmpre quc se inquirc a nâturcza da pedra--íman. O que comprecndcmos quanto a() significadodos dois tcrnÌos, pcdra-íman c natureza, é conhccido:é o quc nos dctermina a procurá-lo dc preferência a outracoisa. ì\las, alim diss<.r, a finr de a qucstão scr perfcita,qucrcm()s quc ela scja complctamcntc dctcrminada, detal f<rrma quc nada mais se in<1uira além do quc scpodc deduzir dos dados. r\ssim acontccc se alguém mepergunta o que sc dcvc infcrir precisamcnte sobrc a natu-rcza da pcdra-íman a partir das cxpcriências que Gilbert<ra6rma tcr fcito, qucr clas scjam verdadeiras ou falsas;do nrcsmo nrodo, se nìc perÍlunta a nrinlta opinião sobrea naturcza do som, atcndcndo prccisamente a estestrôs factos: três cordas r\, I3, C, produzenì () mesmosom c, cntrc clas, lì i, por hipótcsc, duas vczcs maisÍlrossa <lue r\, sem ser mais comprida nras esticada porum pcso durs vczcs mais pcsado, ao passo que C não énrais grossa quc r\, mas apenas duas vezes mais compridae csticadr por um peso quâtro vczes mais pesado, etc.Pcrccbc-sc assim frcilnrentc como é quc todas as questõcsinrpcrfcitas sc podcm rcduzir às pcrfeitas, como se cxporámais cxtcnsâmentc no rcspcctivo lugar. Vê-se tambémcomo é prcciso observar estâ rcgra para que uma di6-culdadc bcnr comprccndida seja abstraída de todo o con-ccito supcíríìuo e rcduzida a uma ftrrma tal que já nãotenhamos o pcnsamento ocupado neste ou naquele assuntocnì particular, mas apcnas cm conìparar ccrtas grandezascntrc si. Por cxcmplo, dcpois dc nos tcrmos decidido asó cxaminar tais clu tais expcriências sobre a pedra-Íman,já não há mais ncnhuma dificul<ladc em rcmovcr o nossopcnsan'tcnto dc todas as outras.

Âcresccntc-sc, alim dissr>, que a dificuldade se devercduzir à sua maior sinrplicidade, segundo as regrasquinta c sexta, c dividir-se segundo a sétima. Âssim,ao cxaminar a pedra-íman a partir de várias experiências,

percorrê-las-ei separadamente uma a seguir à outra;do mcsmo modo, se se tretar do som, como iá se disse,compararei separadamcnte entre si as cordas  e B,dcpois  e C, etc., de maneira a abarcar seguidamentetudo ao mesmo tempo numa enumera$o suficiente.Eis, pois, em relação aos termos de uma proposi$o, osúnicos três pontos a que o entendimento puro se deveater antes de abordarmos a sua última solução, se houvernccessidade de utilizar es onze regras seguintcs. A ter-ceira parte deste Tratado explicará mais claramente amancira de Íazer isto. Por outro lado, entendemos porquestõ€s tudo aquilo em que se ettëontr" o vcrdadéiroou o falso, e há que enumerar os diversos géneros dequestões para determinar o que somos capazes de fazerem rela$o a, cada, uma delas.

Já dissemos que só na intui$o das coisas, qucr sim-plcs, quer ligadas, é que não pode haver erro. Âssim tam-bérç, não é nestc sentido que elas se chamam questões,mas recebem csse nome a panir do momento cm quedecidimos emitir sobre elas um determinado juízo. Comefeito, não são apenas as pcrguntas feitas por outros quecolocamos no número das questões, mas, em rcla$o àprópria ignorância ou, antes, à dúvida de Sócratcs, tra-tou-se de uma questão logo que Sócrates, fazendo incidira sua etenção neste ponto, sc pôs a procurar se era verdadeque ele duvidasse de tudo, e isso mesmo afirmou.

Ora, nós procuramos, quer as coisas pelas palavras,quer as causas pelos seus efeitos, quer os efeitos pelassuas causas, quer o todo pelas suas pertes, ou outraripartcs por algumas de entre elas, quer, en6m, várias coisasao mesmo tempo a partir do que se acabou de dizer.

Dizcmos que se procurem as coisas pelas palavras,scmpre que a dificuldade reside na obscuridade da lingua-gem. Â isto se referem não só todos os enigmas - comoo da Esfinge sobre o animal que, e princípio, é quadrú-pede, em seguida, bípede e, por fim, caminha sobrc três

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pis; e também o dos pescadores que, em pé, na margemdo rio, munidos de anzóis c linhas para apanharem ospeixes, diziam que iá não.tinham os que haviam apanhadoe que, inversamente, tinham aquelcs que ainda nãohaviam conseguido apanhar, etc.; mxs, alim disso, namaioria dos casos sobrc que discutcm os letrados, trate-se,quase sempre, de uma questão de palavras. E não é pre-ciso tcr tão má opinião dc grandes cspíritos que sejulgue que cles concebenr mal as próprias coisas sempreque as não expliquem em termos su6cientemente adc-quados. Se llres acontece, por exemplo, cha;mar lngarà snperfhic do corpo anbientc, na;dl. de falso concebemnr rcalidade, mas abusam apenas do termo hgar, guesignifica, segundo o uso corrente, essa natureza simplcse conhecida por si mesma, devido à qual algo se dizestar aqui ou ali. Consistc numa certa relação entre acoisa, que se diz estar no lugar, e as partes do cspaç<rextcrior I e alguns, r'endo que o nome de hgar era empre-guc para dcsignar a supcrfície ambiente, dcnominarxnì-noimproprianrcnte lngar inlerno. O mesmo se passa com tudoo mais. Estas questires de palavras encontram-se tãofrcquentemente que, se houvesse semprc acordo entre()s Fil<isofrrs quanto ao signi6cado das palavras, iss<requivalcria à supressão de quasc todas as suas contro-vérsias.

 invcstigação das causas pelos seus efeitos tem lugarsempre que tentamos descobrir, a propósito de uma coisa,se cla é ou o quc ela é...

Dc resto, quandr> se nos propõc uma qucstão pararesolvcr, frequentemente acontece que não notamos lbgoa que gincro ela pcrtcncc, nem se são as coisas que pro-curam()s pelas palavras ou as causas pel<ls seus efeitos,etc.; é pt>r isst-r quc nle parecc supérfluo cntrar em taispornìenorcs sobre estes casos em particular. Será maisrápido c mais cómodo tratar ao nìesmo temp() e comordem tudo o que é preciso fazer ynra, rcsolvei qualquer

dificuldade. Por consequência, dada uma questão qual-quer, impoÍta csforçar-nos, primciro, por comprccnderclaramente o quc se procura.

. Frequcntcmente, alguns apressâm-sc de tal modo ainvcstigar proposiçõcs que aplicam à sua solu$o umespírito vagabundo, antes de advcrtircm por quc sinaisreconhecerão o obiecto procurado, se por aceso aparecer.Não são mcnos ineptos do que um criado enviado a qual-quer lado pelo seu scnhor c que estivesse tão dcscioso deobcdecer quc sc puscsse a correr prccipitadamente semainda ter recebido ordens e sem saber ondc o mandava ir.

Pelo contrário, em toda a questão, ainda que devahavcr algo dc descoúccido, pois, de outro modo, esua invcstiÍiaÉo seria inútil, é preciso, no entanto, queeste incógnito scja designado por condiçõcs tão pre-cisas que nos dctcrminemos completamcntc a procurarum objccto particular de prcferência a outro. E ao cxamedcstas ' condições 9u€, como dizemos, nos devcmosentregar desdc o início; e isso acontecerá sc apücarmosa nossa penetra$o intelcctual e captá-las inruitivamente,uma a uma, investigando cuidadosamente que limitaçãoreccbe de cada uma dclas csse incógnito que procuramos.Na verdade, o espírito humano costuma enganar-sc aqui,dc duas maneiras, quer supondo algo mais do que o quelhe foi dado para determinar a questão, quer, pelo contrá-rio, omitindo alguma coisa.

E Preqso evltar suPor rnals colses e colses malsprccisas do que as que nos são dadas: sobretudo noscnigmas c nas outras perguntas artificiosamente fcitaspara pôr os espíritos em âpuros, trvrs, por vezcs, tambémnoutras questõcs, quando, Para as resolver, se supõe- percce - como certo o que nenhumt rm,zão cxplícita,mas âpcnas uma opinião inveterada, nos fez aceitar. Porcxemplo, no cnigma da Es6nge, não se deve pcnsar quea palavra pé dcsigna âpenas verdadeiros pés de animais,mas é prcciso ver ainda se ela não se pode aplicar, coÍno

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de facto acontece, e outras coisas, a saber, às mãos dacriança e ao bordão do velho, visto quc ambos se servcmdeles como dc pis para andarem. Âssim também, na adi-vinha dos pcscadorcs, é preciso ter cuidado para quc ()pensamento dos peixes não sc apodere dc tal forma dcnossa mente quc a i-p"ç" dc pcnsar nesses animeis que,frequentcmcnte, os pobrcs tmzem consigo sem querer,e quc deitam fora depois dc os terem apanhado. Âssimambém, se se inquirir como foi construído um vasoscmclhante ao que vimos um dia, no mcio do qual seelevava uma coluna encimada por uma estátua de Tântal<rfazendo o gesto de beber; vaso que continha exactamente aágua que nele se vertia, enquanto ela não atingia um nívelsuficientementc clevado para entrar na boca de Tântdo,Ínas que a deixava dc todo cscapar imediatamente, logoque chcgava aos scus lábios infclizcs; parecc, à primciravista, que todo o artifício consistiu em construir estaestátua dc Tântalo que, no entanto, úo detcrmina dcforma alguma a guestão, não passando de um comple-mcnto. fbda a dificuldade consiste unicamente em inves-tigar como se dcve construir o vaso para quc a água seescapc dele complctamentc quando atinÍle uma certadtura, c dc ftrrma alguma antcs. Igualmentc, por fim,sc a partir dc todas as obscrvaçõcs <1uc possuímos sobreos astros sc inquirir o que podcmos asscgurar comcertcza a rcspcit<> dos seus movimcntos, não é prccisofazcr, como os Ântigos, a suposi$o gratuita de quea Terra é imrlvcl c col<rcada no ccntro do l\íundo, porquedcsde a nossa infância assim nos parcccu, mas importaantcs. pôr essa opinião cm dúvida p1la, cm scguida,examinarmos o quc dc certo é pcrmitido asserir sobrccstc assunto. E assim grr diante.

Pecamos por omissão, scmprc quc urvr condi$<rrcqucrida para determinar unra questào na mesma estácxprcssa ou comprecndida, sem nela rcflectirmos. É <rque econtccc na investigação de um movimento p€rpétuo,

não natural, como o dos astros ou das águas da fonte,mas produzido pela indústria humana, se alguém (comrralguns julgaram que se podia ftzer, pcnsando 9!e aTcrra se m()ve sempre em círculo à volta do seu cixo eque a pedra-íman conserva todas as propriedadcs daÌerra), se alguém pcnsar que encontrará cste movimento

1rcrpétuo dispondo csta pedra de maneira a quc se moveèm-círcul<l ou, Pclo menos, que ela comunique ao ferro() scu movimento com outras propriedades. Ìríesmo queviesse a conseguir, a sue arte não pr<lduziria, contudo,um movimcnto perpétuo, mas utilizaria aPenâs o queé natural, c não agiria de forma diferente de se colo-casse uma roda sob a queda dc um rio de maneira apô-la sempre em m<lvimento; cle omitiria, pois, uma con-ccpção indispensável para resolver a questão, etc..

Uma vei assaz compreendida a questão, é prcciso verexactamentc cm que consiste a sua dificuldade, P r^ Lisolar das rcstantes e mais facilmente se resolver.

Nem sempre é suficiente conrPrccndcr uma qucstãopara saber onde está a dificuldade' mas é precis<.r tambémicflectir em cada uma das coisas que nela são requeridasa finr dc que, sc ocorrerem coisas fáceis de encontrar, asdeixemos dc lado e, uma vcz retiradas da questão, apenasrcstc o que ignoramos. r\ssim, na qucstão do vaso des-crita um pouco mais acima, facilmente notamos como éque o vaso se deve fazcr: a coluna lcvantada ao meio,<i pássaro pintado, ctc. Reicitado tudo isso por não serelãcionar com () assunto, rcsta a dificuldade Pura esimples quc reside no facto dc a água, antes contida noveso, se escaper toda depois de ter chegado a ufira certealtura. A que se deve ist<t? Eis o que é preciso investigar.

Âgora, é apenes importante Pessar em rcvista ordena-damenie tudo o quc nos f<ri dado numa proposi$o,reieitando o que claramente virmos não se relacionarcom o assunto, rctend<l o que é necessário e relegando <>que é duvidoso para um exame mais atcnto.

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REGRÂ XI\I

A mesma rcgtz^ deve aplicar-se à extensão real doscorpos e propor-se à imaginação com a aiudade figuras puras e simples; será assim percebidamuito mais distintamente pelo entendimento.

Para nos servirmos da ajuda da imaginação, é pre-ciso notar que, ao deduzir algo de dcterminado e desco-nhecido dc outro já conhecido anteriormente, nem poriss<> se depara sempre com um novo géner<l de ser.Há apcnas um alargarnento de todo o nosso conheci-mento que. nos faz. compreender que, de uma ou de()utra mrneira, a coisa procurada participa da naturezadaquelas que nos são dadas na proposiçâo. Por excmplo,se alguinr for cego de nascença, não há esperança dealguma vcz chegarmos por raciocínio a fazer-lhc perccberverdadeiras ideias das cores, como as que temos ao extraí--las dos sentidos; mas se alguém, outr()ra, tiver visto ascores principais, senr nunca ter visto as coÍes intermédiasou nristas, pode acontecer que se formenr também ima-gens das que nunqr viu, graças à sua senrelhança conr

outras, mediantc uma dedu$o. Do mesmo modo, sehouver na pedra-Íman dgum género dc scr que nadatenha de semelhante com o que o nosso entendimento

^Ìé ag<rra viu, não é dc esperar que alguml vez o

venhanros a conhecer por raciocÍnio,'pois, scria precisoser dotado para isso ou dc um novo scntido ou de umamente divina. Tudo o que nestc caso o espÍrito humanopode dar, julgarcmos tê-lo obtido, se percepcionarmosdistintamente a mistura dc sercs ou de nâturczas já conhc-cidas, que produz os mesmos dcitos que se dcscobrcmna pedra-iman.

Claro, todos estes seres iá conhecidos, tais como eextensão, a 6gura, o movimento c coisas semclhentes, qucúo vem a propósito enumerar aqui, coúccem-se emdiversos sujeitos por intermédio dc uma mesffur idcia,c não imaginamos de outra forma a 6gura dc umacoroa, quer seja de prata ou de oir<1. Esta ideia comumnão se transfere de um sujcito para outro a não serpor uma simplcs compara$o: afirmamos que o quese procura é, segundo este ou aqucle aspecto, parecido,idêntico ou igual a um obiccto dado, dc tal forma que,em todo o raciocínio, é apenas por uma compara$o queconhecemos a verdadc de uma maneira precisa. Porexemplo, neste ceso: todo o  é B, todo o B é C, por-tanto, todo o  é C, comperâ-se entre si o que é pro-curado e o que é dado, quer dizcr, r\ e C, sob csta rela-

ção que um c outro são B, ctc. Ìrías porque, como jáadvertimos, as formas dos silogismos cm nada nos aju-dam a percebcr a vcrdadc das coisas, scrá de toda a van-tagem para o lcitor, depois de as ter complctamentereieitado, conccber que todo o coúecimento, que nãose obtém por meio de intui$o pura e simplcs de um<lbjecto isolado, se consegue apcÍurs pela compara$ode dois ou mais objcctos entre si. E, efectivamente, quasctoda a indústria dt raa;ão humana consiste em prcpararesta operação, pois, quando é conhecida c simples,

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nâo há necessidade de nenhunr auxílio da arte, masapenrs das luzes naturais pare ver instintivamente a ver-dade

-<1ue por cla se obtém.

F. prcciso norar quc as comparações se dizem sinrplese manifestas, mas só quandrr o que sc procura e o qúe édado participa igualmente de uma certrnaturcza. euantoàs outras todas, neccssitam dc preparação, e apenas porcste mottv(): a natureza comum não se encontra nosdois <lbjectos tal qual, mas scgundo determinadas rela-ções ou proporções cm que cstá cnvolvida. E, na sua maiorparte, a indústria lrumana não consiste noutra coisa senãoem transf<rrmar cstas proporçõcs de maneira a ver clara-mente a igualdadc <1ue cxistc entre o que se procura e oque i4 sc conhece.

E preciso n()tar, enr scguidar luc sri sc podc reduzira esta igualdade o quc supõc o mais e () mcn()s, c tud<risso está compreendido no nome de grandeza. Destemodr>, uma vez quc, scÍlundo a regra precedente, os ter-mos da dificuldadc f<rram abstraídos de todo o sujeito,neste cas() só tcmos, ultcriornrcnte, de nos ocupar dasgrandezas cm geral.

Por outro lado, para que ainda então imaginenrosalgo c não utilizcmos <> entendimento puro, mas o entcn-dimento aiudado pclas espécies rcpresóntadas na fantasia,importa obscrvar, finalmente, quc nada se diz das gran-dezas cm geral que não possa támbim rcferir-se cspãial-nrentc a clualqucr dclas cm particular.

Âssim, i fácil concluir que será de não poucx vanta-gem aplicar o que compreendemos sobre as grandezasem gcral à cspicie dc grandcza quc, entre todas, maisfácil e distintamcnte, scrá rcprcscntada na nossa imagi-nação. Esta cspécie de grandeza é a cxtensão real dcrcorpo abstraída- dc tudo o resto, cxcepto da 6gura: istodciva do que foi dito na reÍiÍa duodiêima, ent--que con-ccbemos a própria fantasia com as ideias nela existentcscomo um verdadelro corpo real, ertenso e 6gurado.

É também evidcnte por si, pois cm nenhum outro suieitose vêem mais distintamente todas as difercnças das pro-porções. Com efeito, ainda que uÍna coisa se possa dizermais ou menos branca do que outra e, do mesmo modo,um som mais ou menos agudo, e assim por diantc, nãopodemos, no entanto, definir corn exrctidão se há nesteafastamento uma relação dupla ou tripla, etc., tr não ser

que precisamente se encontra uma tal dificuldade podee deve separar-se com facilidade de todo o outro suieitoc rcduzir-sc a uma extensão ou a figuras; por este motivo,trataremos só delas ulteriormente até à regra vigésimaquinta, deixando de lado qualquer outra c<rnsidera$o.-

Descjaríamos ter aqui um leitor devotado ao estudoda Âritmitica e da Geometria, embora eu preferisse queele não se tivesse ainda ocupado delas a não ser atravésda crudição vulgar. Com efeito, o emPrego das regras

esta perte do nosso método não foi inventada Por cÍrusedos problemas nìatemáticos, antes são estes que importaestudar quase só por mor de a cultivar. E nada suporeidestas disciplinas, cxccpto talvez certos axiomas conhe-cidos por si mcsmos e ao alcancc de toda e gente; mâs oseu conhecimento, tal como habitualmente se encontranoutros, ainda que não seia alterado por nenhum errodeclarado, é no entanto obscurecido por um grandenúmero de princÍpios desvirtuados e mal concebidos,que.nos esforçaremos, de passegem e iâ t seguir, porcornglr.

9t

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Por extensão, entendcmos tudo o que tem um cont-prinrcnto, uma largura e uma profundidade, senr inqui-rir sc é um verdadeiro corpo ou um cspaço apcnas;c não há necessidade de uma cxplicação mais krnga, aoquc parece, pois nada lìá que seja mais facilmentepcrccbido pcla nossa imaginação. Todavia, visto que()s letrados usanì muitas vezes distinções tão subtisque obscurcccm a luz natural e encontram trevas aténaquilo quc os incultos nunca ignoram, é prcciso adverti--los dc que a extensão não significa aqui algr> de distintoc scparado do próprio sujeito, e que não reconlìccemoscnr .qcral cntes fikrsóficos dcsta espécie, que não caiamrcalmcntc no campo da imaginaçã<1. Pois, ainda quealguim possx persuadir-sc de que, por exemplo, ao reduzira nada tudo o que i extenso na naturezl das coisas, não

tir atcntamcnte sobrc a própria imagem da extensãr), quese csf<rrçará por representar então na sua fantasia:notará, com efeito, que não a r'ê privada dc todo o sujcito,rnas quc a imagina de fornra complctamente divcrsado juízo que sobre ela profcre, de tal forma que essesentcs abstractos (seja qual for a, opinião do intelectoaccrca da vcrdade do facto) jamais, porim, se frrrmamna fantasia scparadamente dos seus sujeitos.

()ra, como ulteriornrente nada faremos sem o auxí-lio da imaginação, é importante distinguir cautamentepor nreio de que ideias as significações particulares daspalar-ras sc dcvem pr()por ao nosso

-intelecto. Propomos,

p<rr isso, examinar estas três fórmulas: a cxtensào octpa olngar, o corpo tcn cxlensão, c a cxtensão ttão é o corpo.

 prinreira mostra como é que a extensão i tomadapor aquil<r que i extenso. r\o dizer: a extensão ocapaItgar, concebo exactamente a mesma coisa como quando

digo: o qne í exlcnso oatpa lrgar. Todavia, para evitar aambiguidade, não é melhor empreger a expressão: o qscé cxtenn, pois ela não significaria tão distintamente o queconcebemos, ou seia, quc um sujeito ocupa lugar porqueé extenso. Pr>der-se-ia entender unicamente por tal:o qrc é exleln é m sajeito qae oatpa lagar, como se eudissessc: ilm scr animado onpa lagar. Esta razão explicapor que dissemos que tínhâmos aqui a inten$o de tratarda extensão meis do que do que é extenso, emborajulguemos que ela úo se deve conceber de modo difc-rente do que é extenso.

Passemos agora a estas palavras: o corpo tcm exten-sã0, onde comprecndemos que a extenúo significa algodc difcrente do corpo; não formamos, no cntanto, nanossa fantasia duas ideias distintas, a do corpo e a daextensão, mas unicamente a do corpo extenso. Nem édiferente, por parte da coisa, do que se dissesse: O corpoé exlenso, ou rntes: o qtu á extcnn í cxlcnso. É o quecaracteriza estcs entes que só existem num outro e nuncapodem conceber-se sem um suieito. Já não econtece omesmo com os que são realmentc distintos dos seus suiei-tos, pois se dissesser por cxemplo: Pcdro tcm riqacTas,a ideia dc Pcdro seria complctamentc diferente da de

lque.zasi e, do mesmo modo, se dissesse: Paslo é rico,imaginaria uma coisa completamente diferente do quese dissesse z o rico í rico. Â maior parte das pessoas nãodistingue esta difereng e opinam erradamente que aextensão possui algo de distinto do que é ertenso, talcomo as riquezas de Paulo se diferenciam de Paulo.

Por 6m, se dissermos: a cxlensão não í o corpo, entãoa palavra extensão toÍne-se num sentido completamentediferente do que acima se cxpôs. E ncstc significadonão há ideia particular que lhc corresponde nâ fantasia,mas toda esta enunciação provém do entendimento puro,que é o único que tem o poder dc isolar seres ebstrâctos

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desta cspécie. Esta é uma ocasião de erro para muita gentc:não notam que a extensão tomada nestc sentido nãop<xlc scr captada pla imaginaçâo, e rcpresentam-nâ poruma vcrdadcira idcia. Ì\las, como uma tal ideia envolvencccssariamentc () c<lnccito de corpo, se disscrcm quc acxtensão assim conccbida não é o corpo, imprudcnte-mcnte cacm no embaraço: dc que a mctna coisa â simal-laneanteale corpo c não corpo. E muito importante distin-guir as cnunciaçõcs, nas quais as palavras desta cspécie:cxtcnsão, fgnra, núnero, sapertícic, lialta, nnidade, ctc., tôm unìsignificado tão rcstrito <1uc exclucm algo dc que, na rca-fidadc, não são distintas, c()m() quando se diz: a exlcnsãoou a f.qtra não á o corpo; o núntto não é a coisa rumerada,a st\erjlcie á o lintitc do corpo, a linba o da upcrfície, o lnntoo da linlta; a rnidade não é nna qaantidadc, ctc. Todas estasproposiçõcs c scmclhantes dcvem Íemovcr-se totalmenteda imagina$o, para quc sciam vcrdadciras; é por issoquc não tcmos a intcnção dc as analisar a scguir.

Importa obscrvar ainda cuidadosamcnte: cm todases outras prop<lsições cm que cstas palavras, cmboraconscrvando o mcsmo significado c sendo do mcsmomodo separadas dos sujcitos, nada, porém, excluem ouncgam daquilo dc quc realmentc não sc distinguem,podcmos e dcvcmos scrvir-nos da ajuda da imaginação;porquc cntão, cmbora o cntcndimento só atenda prccisa-mcntc a() quc sc dcsigna pela palavra, a imaginaçãodeve, nr> cntent(), f<rrmar uma ideia vcrdadeira da coisa,para pcrmitir ao cntcndimento voltar-se, quando ncces-sário, para as suas outras condiçr-rcs não expressas pelapalavra, c não iulgar imprudentemcnte que foram excluí-das. Por. cxempkr, sc se tratar do número, imaginarcmosum sujcito mensurável por meio de muitas unidades e,apcsar de r> cntendimento rcílcctir

^gor^ só na sua

multiplicidadc, acautelar-nos-cmos não vá cle, ulterior-mente, concluir daí algo no qual sc suponha quc a coisanumcrada cstá cxcluída do nosso conceito. fì, o que fazem

os que atribuem aos números espentosos mistérios e purosdisparatcs nos quais, certamente, não acreditariam, sc nãoconcebessem o número como distinto das coisas numcra-das. Do mesmo modo, se tretarmos da figura, pensare-mos que tratemos de um suieito cxtenso, que apenasconcebemos sob a rela$o de ser 6gurado; se abordar-m(]s. o corpo, Pensaremos que tÍ:rtamos do mesmosujeito, enquanto comprido, largo e profundo; se nosocupermos da supcrfície, concebê-la-emos como com-prida e larga, deixando de lado á sua profundidade sem,no entant(), a negar; se tratarmos da linha, scrá apenascnquanto é comprida; se nos centrarmos no ponto, dei-xaremos dc pane tudo o resto, cxcepto que é um ser.

Âpesar da amplidão com que faço todas estas dedu-çõcs, os espíritos dos mortais estão, todavia, tão preo-cupados que temo que só muito poucos estejam nestamatéria suficientemente livrcs de todo o perigo de erro,e achem, numa longa exposição, demasiado brcve aexplicação do meu pensamento. Com efeito, as própriasartes da Âritmética e da Geometria, se bem que seiam asmais certas de todas, são aqui, no entanto, uma fontede erro. Qual o calculador, com efeito, que não pensaque os seus números foram, não só abstraÍdos de todoo suieito pelo entendimento, mas que é preciso tambémdele os distinguir realmente pcla imagina$o? Qual oGeómetra que, apesar dos seus princípios, não perturbaa evidência do seu obiecto, ao iulgar que às linhas lhesfalta la.rgura e às su1rcrfícies profundidade, embora logoa seguir as componha umas pelas outras, sem notâr quea linha, a partir de cuio movimento pensa ele quc Írascea superfície, é um verdadciro corpo, ao passo que aquelaa que falta largura não passa de um modo do corpo,etc. ? ÌrÍas, para não nos determos mais tempo nestes por-menores, expor-se-á com mais brevidade a maneira comosupomos que o nosso objecto se deve conceber parademonstrarmos a seu respeito, o mais facilmentc possível,

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t-udo o que há de verdadeiro no campo da Aritmética cda Geometria.

Ocupamo-nos, porranto, aqui de um objecto extenso,scm nada mais considerar nele do quc a extensão, eevitando. dc propósito a palavra quantidade, porque hácertos Filósof<rs tão subtís quc também distinguiram estâda extcnsão. ÌrÍas supomos que todas as qucstões foramlevadas a um ponto tal que nada maiJ sc inquire anão ser uma certa extensão que importa coúeccr, com-parando-a com outra conhecida. Como, efectivamente,não cstanros à espera do conhecimento de um novoser-, mas só <ìuercmos reduzir as proporções, por compli-cadas que sejam, ao ponto em que o desconheiido se equi-pare a algo de conhccido, é ccno que todas as diferençasdc pr<lporçõcs, que se encontram noutros sujeitos, podèmtambém encontrâr-se enrre duas ou várias extãnsões.Âssim, para o n()sso propósito, basta considcrar na pró-pria extcnsãcl_ todos os aspectos que nos podem ajüdara expor as diferenças dc proporções, e apresentam-sc apc-nas três: a dimensão, a unidade e a figura.

Por dimensão, nada mais entendcmos do que o modoe a nraneira segundo a qual um suieito sC consideracomo mcnsurável; dcste modo, não só o comprimcnto, alargura e- a profundidade são as dimensões- do corpo,mas. ainda o peso é a dimcnsão scgundo a qual

- os

sujcitos são pesados, a velocidade é a dimensão do movi-nrcnto, e uma infinidade de outras coisas desde género.Pois, a. própria divisão enr várias parrcs iguais-, querseia rcal ou apenes intelectual, é cxactamcnte ã dimensãosegundo a qual contamos as coisas, e esta maneira deconstituir um númcro chama-se propriamente uma cspé-cie dg dimensão, se bem que haja àlguma difercnça nosignificado da palavra divisão. Com efcito, se õonsi-derarmos as partes em relação ao todo, diz-se então quccontamos; se, pelo contrário, nos refcrimos 10 toão,cnquanto dividido em partes, medimo-lo. Por cxcmplo,

medimos os séculos por anos, dias, horas, momentos,mas se contermos momentos, horas, dias c anos, acâbâre-mos por tcr séculos.

Por aqui sc vê que pode haver no mesmo sujeito umainfinidade de dimensõcs diversas e que nada absolutamenteacrescentam às coisas que as possuem, mas que se com-preendem da mesma maneira, quer tenham um funda-mento real nos próprios sujeitos, qucr tcnham sidoimaginadas arbitrariamente pela nossa mente. E, comefeito, algo de real o peso do colpo ou a velocidadc domovimento ou a divisão do século em anos e dias; masnão a divisão do dia cm horas c momentos, etc. No cn-tanto, o mesmo acontece a todas as coisas, se as consi-derarmos apenes sob a rela$o da dimensão, como épreciso fazer aqui e nes disciplinas l\Íatcmáticas; pois,é aos Físicos que cabe sobrctudo examinâr se o seu fun-damento é real.

Semelhante observa$o lança uma nova luz na Geo-metria, iá que nela quase todos concebem erradamentetrês espécies de quantidade: a linha, a superfÍcie e o corpo.Com efeito, já antes sc estabelcceu que a linha e a super-fície não dão lugar e um conceito, enquanto vcrdadeira-mente distintas do corpo ou distintas uma da outra. ÌtÍas,se sc considerarem simplesmente como abstraÍdas pclointelecto, não são cntão espécics dc quantidade maisdiversas do que, no homem, são cspécies diferentes dcsubstância o animal c o vivcnte. Note-se, dc passa-gem, que as três dimcnsõcs dos corpos, o compri-mento, a largura c a profundidadc, não difcrcm entresi só por palavras: nada impcde, com efeito, de escolhcrnum dado sólido qualquer destas cxtcnseics por compri-mento, uma outra por largura, ctc. E ainda quc só astrês tenham um fundamcnto rcal em todo o obiectoextenso, enquanto simplesmente extenso, no cntanto,não lhes damos aqui maior atcn$o do que a outÍas emnúmero iúnito e que são formades pclo intclecto ou

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tênr outros fundamcntos nas coisas. Âssinr, num triân-gulo, se o quisernros mcdir pcrfcitamente, é preciso conhe-cer, por parte da coisa, rrês clementos, que são ou ostrôs lad<.rs, ou dois lados e um ângukr, ou dois ângulosc a supcrfície, ctc.; do mesmo nr<ldo, é preciso conhccercinco num trapizi<1, seis num tetraedro, ctc. Tudo issose podc chamar dimensões. IÍas, a fim de escolhermosaqui as que nrelhor ajudam a nossa imaginação, nuncâprestcmos atcnção a() nìesmo tempo a mais do que umaou duas, represcntadas na nossa fantasia, ainda quenotásscnros existirem muitas outras na proposição deque nos ocuparcmos. É, com efcito, próprio da arte dis-tingui-las no maior número possível, de maneira a qucexaminemos muito poucas ao mcsmo tempo e a todas,porém, sucessivamente.

r\ unidade é aquela natureza comum na qual, conÌoacinra disscnros, dcvem igualmente participar todas ascoisas quc entre si se comparam. Se não houvcr já algu-ma determinadr na questão, podemos tomar em vez delaquer uma das grandezas ií dadas, quer outra qualquer,e será a medida comunì a todas xs outras. Compreendc-Íenìos que nela existem tantas dimensires quantas existcmnos extrcmos â c()mpârar entre si. Concebê-la-cmostambém, quer simplesmente como algo de extenso,abstracção feita de tudo o resto, e então será idênticaao p()nto dos Geómetras, cuio movimento lhcs serve paraconìpor a linha; quer c()mo uma linha, ou como umquadrado.

No tocantc às 6guras, iá se mostrou acima como é quesó por elas se podem f<rrmar ideias de todas as coisas.Resta-nos fazer aqui uma advertência: é que, das suasdiversas espécies inumeráveis, só cmpregaremos aquiaquelas pelas quais mais facilmente se exprimem todasas difcrenças das rclações ou proporções. Ora, há apenasdois géneros de coisas que entre si se comparam: aspluralidades e as grandezas. Temos, então, dois géneros de

figuras quc nos servem para as conceber: assim, por excm-plo, os pontos

atata

que designam um número triangular, ou a árvore que fazconhecer a genealogia de alguém, etc.,

O FILHO A FTL}T.A

são figuras para representar a pluralidade; mas as quesão contínuas c indivisas, como um triângulo, um qua-drado, ctc.,

levam ao conhecimento das grandezas.Âgora, a 6m de expormos quais são, de todas estas

figuras, aquelas de que aqui nos vamos servir, é precisosaber que todas as relações possíveis entre seres domesmo género sc devem referir a dois pontos cssenciais,que são a ordem e a medida.

Importa, além disso, saber que, na cogita$o de uma<-rrdem, não é pouca a actividade, como ver se podeaquì ou acolá no nosso método, que quase nada maisensina, eo passo quc no conhecimcnto de uma ordcm, apósâ sue descobcrta, não cxistc absolutamente nenhuma

O PÂI

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dificuldade, e a nossa mente pode facilmente, segundo aregra sétima, percorrer uma a uma as partes ordenadas.É que, ncste género de relações, umas referem-se àsoutras só por si, sem mediação de um terceiro termo,como acontece nas medidas, de que, por iss<>, nos limita-remos a dar aqui a cxplicação. Reconheço, com efeito, quala ordem quc existe entrc  c B, sem outra consideraçãoque a destes dois extremos; mas não reconhcço que rela-

$o dc grandeza há entre dois e três, sem ter consideradcrum terceiro termo, que é a unidade gue serve de medidacomum aos outros dois.

Importa também saber que as grandezas contínuaspodem, devido a uma unidade de empréstimo, reduzir-sepor vezcs totalmente a uma pluralidade, e sempre pelc>menos parcialmentc. Â pluralidade das unidades pode,dcpois, dispor-se numa tal ordem que a dificuldade, quesc relacionava com o conhccimento da medida, depcndcapenas dr <>rdem: é neste progresso que e arte nos i domaior auxílio.

Por 6m, há que saber que, entre as dinrensires dcuma grandeza contínua, não ltá outra que se concebamais distintamente do que o comprimento e a largura,c quc não é preciso atender a várias simultaneamcnte nanrcsma 6gura, para comparar entre si duas difercntes.O que a ârte diz e que, se tivermos mais de duasd.iferentcs para entre- si conrparar,. se percorrem suces-sivamente c se atende apenas a duas simultaneamente.

Dcpois destas observações, é fácil concluir gue, nesproposições, não se dcve fazer menos abstracção das pró-prias figuras de quc tratam os Gcómetras, se delas se6zer questão, do que dc qualquer outra matéria. Nem háque guardar alguma para nosso uso, salvo as superfíciesrcctilíneas e rectangulares ou, então, as linhas rectas,que tambim chamamos 6guras, pois não nos são menosúteis do que as superfícics para imaginar um suieito ver-dadeiramente extenso, como acima se disse. En6m, é

pelas mesmas figuras que é preciso reprcscntar, ora gren-dezas contínuas, ora também unìa pluralidade ou umnúmero, e nada há de mais simples que a indústria humanapossa achar para cxpor todas as difcrenças que existementre as relaçõcs.

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REGRÂ XV

É também útil quase Bempre tÍaçar estas figurase apresenú-las aos sentidos externos, para queseia mais fácil, por este meio, consewar âtentoo nosso PenEemento.

O modo como se dcvem representar estas 6guras,para que, ao pô-las mesmo debaixo dos olhos, as suasimagens se formem mais distintamente na nossa imagi-nação, é por si evidentc. Primciramente, Ìepresentare-mos a unidade de três maneiras, quc são: por umquadrado D, sc a ela atendermos enquanto compridae larga; ou por uma linha , se a conside-Íarmos apenes enquento comprida; ou, enfim, por umponto O , se só pretendcffnos com ela formar umaquantidade. ÌtÍas, dc qualqucr maneira que sc representee conccba, scmpre compreendereÍnos que é um suieitoextenso em todos os scntidos e susceptÍvel de uma infi-nidade de dimensões. Âssim ainda, os termos dc umaproposição, sc for preciso atender simultancamente a duasdas suas grandezas diferentes, epresentâr-se-ão aos nos-

sos olhos mcdiantc um rcctângulo, cuios dois lados serãoas duas grandczas propostas; desta mancira t3,

se forem incomensurávcis com a unidadc; d.r," Fllìll ,

ou destoutra : : : , sc forem comensurávcis; semmais nada, se só cstiver em questão uÍne pluralidadede unidadcs. Findmcnte, sc prestarmos atcnção só a umadas suas grandczas, rcprcscntá-la-cmos ou por um Ícc-tângulo, dc quc um lado é a grandeza proposta c o outÍoa unidade, dcsta mancin

-l

, o que se faz scm-pre que é prcciso comparáJa com urÌa supcrfÍcic; oupor um só. comprimcnto, da mancira scgúnte . ,se se considerar apenas como um comprimcnto incomcn-surável ; ou, então, da maneira seguinte o. o. o, scfor uma plunlidade.

105

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REGRA XVI

O que não requer a atenção imediata da mente,embora necessário à conclusão, mais vale desi-gná-lo por notações muito breves do que porfiguras inteiras; assim a memória não poderáenganaÍ-se nem o pensamento distraiÍ-se en-quento se aplica e outtas deduçõcs.

Quanto a() mais, como dissemos que não se deviamcontemplar numa só e mesma intuição, quer visual querintelectual, mais de duas dimensõcs diferentcs entrc asinumerár'eis dinrcnsões que se podem representar nanossa fantasia, i importante reter todas as outras, para<1uc facilnrente nos ocorram, sempre que necessário; ef<ri para cstc 6m que â neturcza parece ter instruído amemória. Àlas, porque esta frequentemente se apaga epara não nos forçar e gastar uma parte da atcnção emreavivá-la, enquanto estâmos ocupados com outrospcnsament()s, a arte descobriu muito a propósito o usoda escrita. Fortalecidos por este auxílio, não confiaremosaqui abs<llutamente nada à memória, mas deixando a

nossa fantasia livre c totalmentc cntÍegue às ideias prc-sentes, represcntâremos no papel tudo o quc for preciso.E isto por meio dc notas muito brevcs para que, epóshavermos cxaminado distintamentc cada coisa cm pafti-cular,. scgundo a regrâ nona, possamos, scgundo. aundécima, tudo . percorÍer por um movimento muitorápido do pensamento e ver simultaneamente por intuiçâoo maior número possívcl de objectos.

Âssim, tudo o que for ncccssário considerar comounra unidade para a solu$o dc uma dificuldade, dcsi-gná-lo-cmos por uma nota única, quc pode representar-scà vontade. I\Ías, para mais facilidadc, servir-nos-emos dasletras a, b, c, etc., para exprimir as grandees ií conhc-cidas, e das letras A, B, C, ctc., para exprimir as incó-gnitas. Fá-las-emos preceder frcqucntemente das nota-

ções numéricas r, 2, ), 4, ctc., Para cxplicar a pluralidade,e acrescentaremos as mcsmã; notações para significaro número de relaçõcs quc será prcciso nelas compreender.Por exemplo, se cscrever: zat, sctí como se dissesse:o dobro da grandeza reprcsentada pcla letra, a e quc con-tém três rclações. Por este meio, não só farcmos cconomiade muitas palavras mas, o quc é o principd, eprescnta-remos os termos da dificuldadc sob uma forma tão purae tão simples que, sem nada se omitir dc útil, jamais sccncontre neles algo de supérfluo c que ocupc inutilmentea capacidade do cspÍrito, enquento a nossa mente tiverdc abarcar vários obiectos ao mcsmo tempo.

Para mais ctaramente se compÍecndcr tudo isto, épreciso notar, primeiro, que os C-alculadores costuÍnamdesignar as grandezas em particular por várias unidadesou por um número detcrminado, ao pâsso que aqui nãoas abstraímos menos dâs figuras geométricas ou dequalquer outrâ coisa. Fazemo-lo, qucr para evitar o abor-recimento de um cálculo longo c supérfuor guer sobrc-tudo para que as partes da matériar Çuc dizem respeitoà natureza da dificuldade, permaneçam sempre distintas

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e não sejam carregadas de números inúteis. Por exemplo,se se pr()curar a base de um triângulo rectângulo, cuioslados dados são 9 c 12, o calculador dirá que ela é igual

^ \q ou rt; âo passo que nós poremos a e b no

lugar de g e rz e acharemos que a base do triângulo iigual à \/ dL+ e estas duas partes a2 e b2 perm -necerão distintas, as quais se confundem no número.

Note-se aindr que, por número de relações, se devemcompreender as proporções que se seguem em ordcmcontínua. Outros, na Âlgcbra vulgar, esforçam-se poras exprimir mediante várias dimcnsões e várias 6guras,dasquais chamam, à primcira, niz;à segunda, quadrado;à terceira, cubo; à quarta, biquadrado, etc. Estes nomesenÍÌanaram-me a mim durante muito tempo, confesso-o,pois, não me parccia que se pudesse apresentar algo dcmais claro à minha imagina$o, depois da linha e do qua-drado, do que o cubo e as outras figuras construídas à suasemelhança; e, claro, resolvi com o scu auxílio um bomnúmero de dificuldades. ÌrÍas, depois de muitas experiên-cias, reconheci que, por csta maneira dc conceber, nuncaencontrara nada que, sem ela, não pudesse conhecermuito mais facil c distintamente, e que sc deviam reieitartais denominaçõcs para que não perturbem o conceito,pois a mesma grandeza, quer se chamc cubo ou biqua-drado, nunca deve, no entanto, aprescntar-se à imaginaçãosenão como uma linha ou ume supcrfície, segundo aregre precedente. Há que notar sobretudo que a raiz,o quadrado, o cubo, etc., não são mais do que grandezasc<.rntinuamente proporcionais, que supomos sempre do-núnadas por csta unidade de empréstimo, de que já falá-mos acima. E a esta unidadc que a primeira grandezaproporcional se rcfere imediatamente e por uma só rela-ção; mas, a segunda, por intermédio da primeira, e, por-tanto, por duas relações; a terceira, por intermédio daprimcira c da segunda, e por três relações, etc., etc.Chanraremos, pois, daqui em diante, primeira propor-

cional essa grandez que, em Álgebra, se chama raiz;segunda proporcional, a que sc chama quadrado, e assimpor diante.

Importa, 6nalmente, observar 9uc, embora aquifaçamos abstracção de certos números nos termos deuma dificuldade para examiner e sua natureze, acontecefrequentemente, porém, que ela se possa resolver maissimplesmente com os números dados do quc se delesf<rr abstraÍda; o que se explica pclo duplo uso dosnúmeros e e que iá antes fizemos alusão: cxplicam, oraa ordem, ora a medida. Por corsequência, depois de ter-mos investigado a dificuldade expressa em termos gerais,há quc a reduzir aos números dados, para ver se elesporventura nos fornecem alguma solu$o mais simples.Por exenrplo, depois de termos visto que a base dotriângulo rectângulo, em função dos lados a e b, é iguela, { az&, é prcciso, em vez dea2, pôr 8r e, em vezde h2, r44; estes números somados dão zz1, cuia raizou midia proporcional entre a unidadc e 22r, é ry. Fica-rcmos assim a saber quc a base r 1 é comensurável com<rs lados g e 12, mas não de uma maneira geral pelofacto de ela ser a base do triângulo rectângulo, noqual um lado está para o outro como , p^Í 4. Fazemostodas cstas distinções, nós, que procuramos o conheci-mento evidente e distinto das coisas, mas não os Calcula-dores, que 6cam contentes desde que se lhes ofereça asomr desejada, mesmo sem se notar que ela depcndedos lados: no entanto, é o único ponto em que residepropriamente a ciência.

Pclo contrário, importa obscrvar geralmente quenunca se deve coúar à memória nada daquilo que nãocxige uma atenção contínua, se pudermos.pôlo no papel,para evitar que uma parte do nosso espírito se subtraiaao conhecimento de um obiecto presente em virtude deuma recordaçã<l inútil. Há também que fazer um sumário,onde escreveremos os termos da questão, tais como nos

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tcrão sido propostos na primeira vez; em seguida, c()moé <1ue se abltraem e por que notaçõcs se desii3nam. Destafoinra, dcpois de se ter achado a solução 1{raças a- estasn'rcsmas notações, aplicaremos facilmcntc csta stilução,scm intervcnção da memória, ao suieito Particular de queestivermos a tratar, pois nada se abstrai a não scr deuma matéria menos gcral. Eis, pois, o que eu escrcvcria:procura-se a base r\C de um triângulo rectângulo ÂllCc abstraio a dificuldade de maneira a Procurar em gerala grandcza da base, a partir da grandeza dos lados; emseguida, em vez de A B, que é igual a !, ponho d e, emvez dc B C, quc é igual a te, ponho b, e assim pordiantc.

Notc-sc quc temos ainda a intenção dc nos scrvir-ruros das quatro regras precedentes na terceira parte desteTratado, iornando-as de uma maneira um pouct> maisrnrpla do que aquela por que fcrram r<1ui explicadas,com() sc dirá n() scu devido lu.qar.

REGRA X\ryI

A di6culdade proposta deve eer directementeperconida, ptescindindo do facto de alguns dosseus terÍnos serem conhecidos e outros desco-nhecidos, examinando intuitivâmente a interde-pendência de cada um delce em relação eos outÍos,mediante verdadeiros mcioclnioe.

Âs quatro regras precedentes ensinaram-nos conìoé que as dificuldades determinadas e perfeitameÍÌte com-preendidas se devem abstrair de cada um dos seus suici-tos cm particular c reduzir ao ponto de nada mais seprocurar ulteriormcntc scnão ccrtas grandezas a conhe-cer, estabelecendo esta ou aquela rcla$o cntrc elas cccrtas grandezas dadas. Agora, nas cinco regres seguin-tes, exporemos como é que as mesmas di6culdades devemser tratadas, de maneira a subordinar umas às outtes,nurle só proposi$o, todas as grandezas desconhccidas,scia qual f<rr o seu número, c de maneira e que, estando aprimcira cm relação à unidade como a segunda cm rcla-ção à primcira, a terccira cm rclaSo à scgunda, a querta

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crìl rclação à terceira e, assim por diante, se forem tantas,tenham unla soma igual a alguma grandeza conhecida.Isso far-se-á por um mdtodo tão certo quc, de cen<>nrodo, tcnhamos a possibilidade de a6rmár com selÌu-rança que nenhuma indústria as teria podido reduzir a ter-mos mais simples.

Quanto ao presente, note-se que, em toda a ques-tão a resolver por dedução, existe uma via scm obstácul<rc directa, por meio da qual nos é permitido passar ()mais facilmente possível de um termo â outr(), ao passoquc todas as outras vias são mais difíceis e indirectas.Par:r isto compreender, é preciso recordar o quc se dissena reÍ{ra undécima, onde expusemos como se deve fazero encadeamento das proposições: se cada uma delas enrparticular se comparar com as vizinhas, fácil nos seráperccber como é que também a primeira c a última serelacionam entre si, embora não seja tão fácil deduziras intermédias a partir das extremas. Assim, se con-siderarmos intuitivamente e sua dcpendência rccíproca,sem intcrromper a ordem em nenhuma parte, para daíinferir como é que a última depende da primeira, per-c()rrcnros dircctamente a dificuldade. Pelo contrário, se,sabendo que a primeira e o última estãr-r unidas entrcsi dc uma nraneira determinada, da;l quisermos deduzircluais são as intermediárias que as unem, seria então umaordenr completamente indirecta e invertida que segui-ríamos. Como nos ocupamos aqui apenas das questr)escomplicadas, nas quais se conheccm os extremos e sedevc chcgar a conhecer cerros intermediários, no meiodc unra ordcnr perrurbada, todo o artifÍcio neste lugarconsistirá, supondo conhecido o que é desconhecido, empr.rdermos assim propor-nos uma via fácil c dirccta deinvcstigação, mesmo nas dificuldades mais embrulhadas.Nada impcde que isso sempre aconteçâ, pois supuscmos,desdc o início desta pane, poder reconhecer que as coisasdesconhecidas numa questão cstão numa dependência tal

das coisas conhecidos que são por estas completamcntedeterminadas. Dcste modo, se rcflectirmos sobre clasmesmas, que primeiro nos ocorrem, cnquanto rcconhc-cemos csta determina$o, e se as contarmos cntre asconhecidas ainda que desconhecidas, para daÍ deduzirmospouco a pouco c pelos verdadeiros raciocÍnios todas escoisas mesmo conhecidas, como se fossem desconhcci-das, cumpriremos tudo o que este Ícgr:r prcscrcve.Quanto aos exemplos de muitas outras coisas, de quc tcmosa intenção dc falar a seguir, reservamo-los para

^ Íeçr^

vigésima quarta, porque aÍ mais facilmente se exporão.

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REGRA XVIII

Para isso, exigem-se apenar quatÌo operações: aadição, a subtracção, a multiplicação e a divisão:as duas últimas, muitas vezes, não se devem aquifaze4 quer paÍa não complicar, quer poÌquepodem, ulteriormentc, ser mais facilmente efec-tuadas.

 nrultiplicidade das regras provém, muitas vezes,da incompctência dc um trÍestrc, c o que sc pode reduzira urÌì prcceito geral único fica menos claro, quando sedividc cm numerosos preceitos particulares. É por isso<1uc todas as opcrações dc que é preciso servir-se parapcrcorrcr as questões, quer dizer, para deduzir certasgrandczas de outras, as.reduzimos aqui-a quetro pontosessenciais: a sua cxplicação farâ conhccer como sãosuficientcs.

Com efeito, suponhamos que chegamos ao conhe-cimcnto de urna só grandcza, possuindo as partes deque ela é composta: isso faz-se pela adição. Suponha-mos que rcconhecemos utna perte possuindo o todo

IU tI5

e o excesso deste todo sobre essa mesma parte: issofaz-se pela subtrac$o. Não há mais proccssos dc deduziruma grandeza dc outres, tomadas absolutamcnte, e nasquais de cefta maneira está contida. Mas, se for precisoencontrar alguma por meio dc outras de que ela é com-pletamentc difcrente e nâs quais de nenhum modoestá contida, é necessário que alguma relação a liguea estas: se for necessário procurar directamente esta rcla-fo, há que usar a multiplica$o; se indircctamente, edivisão.

Para expor claramente cstcs dois pontos, é precisosaber quc a unidade, de que iá fdámos, é aqui a basee o fundamento de todas as relaçõcs, e que, nâ série dâsgrandezas continuamente proporcionais, ela ocupa oprimeiro grau, âo passo que as grandezas dadas se encon-tram no segundo, e as grandezas procuradas no terceiro,quarto e dcmais greus, se a proporção for directa; se,por outro lado, for indirecta, a, grendezt procurada en-contra-se no segundo Íyau e nos grâus intermediários,ao passo que e grandeza dada está no último.

Com efeito, se se disser: a unidade está para a gran-deza dada, d ou t, tal como b ou 7, grandcza tambémdada, está para aquele que é procuradâ, ou seja, a bou lÍ, então a c b estío no segundo grau e o rcspectivoproduto a b no terceiro. Do mesmo modo, se se acres-centar: a unidadc está para r ou 9, como ab ou rt estãopera a grandeza procurada abc ou rrt, então abc estí noquârto grau, e obtém-se este produto pelas duas multi-plicações de ab e de r, que estão no segundo grau, e assimpor diante. Do mesmo modo: a unidade está per:r a ou t,tal como d ou t estão para a2 ou zy; e ainda: a unidadeestá pere r' ou , tal como a2 ou 2t p r a! ou rz1;assim, a unidade está para a ou !, tal como a3 our2t estão pa;a, aa ou 6z;, etc. Com efeito, a multiplica$onão se Íez dc mancira diferentc quer se multipliquc a

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mcsma gr^ndeza por ela própria ou se a multipliqucpor outre completamente diferente.

Agora, se se disser: a unidade estâ para a ou t, divisordado, tal como B ou 7, que é uma grandeza procurada,estão para ab ou 3y, dividendo dado, então, a ordem éinvertida e indirecta: é por isso que só se obtém e gren-deza procurada B pela divisão de ab, grandeza dada, por a,grandeze também dada. Do mesmo modo, se sc disser:a unidade está para  ou ;, grurdeza, procurada, tal comoA ou ;, grandeza procurada, está para a2 ou 21, grandeza,dada; ou melhor: a unidade está para  ou 1, grandczaprocurada, tal como Â2 ou 2J, grandcza procurada,está para al ou rz;, grandeza, da;ü3 e assim por diante.Englobam-se todas estas operâções no nome de divisão;apesar de tudo, há que vcr que os últimos casos destaespécie encerrem mais dificuldades que os primciros,porque nclcs se acha mais vezes a grandeza procurada,que contém, por consequência, mais rclaçõcs. Com efcito,nestes últimos exemplos, é como se se disscssc quc épreciso extrair a, ra:iz quadrada de a2 ou 2t, ou lraiz cúbica de a! ou de r2t, c assim por diantc: éa maneira de falar de que se servem os Calculadorcs.Para explicaÍmos isto na linguagem dos Geómetras, écomo sc se dissessc que é prcciso achar uma média pro-porcional entre esta grandeza dc cmpr&timo que cha-nremos unidade, c a que designamos por a2, otJ, então,duas médias proporcionais entre a unidade c d!, c assimpor diante.

Dondc se obtém facilmente a conclusão de que cstasduas opcrações são suficientes para achar qualqucr dasgrandezas que se dcvcm deduzir dc outras grandczas,em virtude de certa relação. Comprecndido isto, vamosprosseguir, expondo como é que estas operaçõcs dcvcmser analisadas pela imaginação e como também é prccisomostrá-las aos próprios. olhos, para explicarmos iá aseguir o seu uso ou prática.

Sc for prcciso fazcr uma adi$o ou uÍna subtrac$o,conccbcmos o suicito como uma linha, ou como urngrandcza ertcnsa, na qud apeÍus sc considcra o compri-mento, pois, sc for preciso juntar a linha a \ linl:a b,

junamo-las uma à outra dcsta mancitz, ab,

+^---b--c obtém-se r

ÌtÍas, sc a mais pequcne tiver de ser extraÍda, a saber,bdca,

aplid-las-cmos uÍna sobre a outra desta mancira

b. ) .

c tcmos assim e partc da maior quc não podc scr reco-bcrta pela mais pcqucna, ou seia:

(-) .

t

II6 It7

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dispomo-las uma com a outra segundo um ângulo, destamanetra:

e obtêm-se o rcctângulo

Do mesmo modo, se quiscrmos multiplicar ab por c,

3

é preciso conceber ab como uma linha, que é ab

ob

de maneira a, ter para, abe z

a+.rzy.Ã

c

i i; l

- - -+---J----! il l

eb

i i! l

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J----L--- .t lr lt l

i --- +- --r lt l

i ; il l l

J - - - t - - - - t - - -

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Por 6m, na divisão cm quc o divisor for dado, ima-ginamos que a grendcze a dividir é um Ícctângulo, emque um lado é o divisor e o outro o quocicnte. Se,por exemplo, houvcr quc dividir o rectângulo ab por a,

retiramos-lhe a largurl a, e 6ca â como quocicnte:

bG----

ou, pelo contrário, sc for preciso dividir o mesmo rcctân-gulo por b, rcúrt-lhe-cmos a altura b, e o quocienteseÍ^ a,

a

Quanto às divisõcs cm que o divisor não é dado, masapenas designado por uma rela$o, como quando scdiz quc é preciso extrair t rziz quadrada ou cúbica, etc.,então há que ver quc o termo a dividir c todos os outros,se devem semprc conccbcr como linhas que se encontramnuma série de grandezas continuamcntc proporcionais,em que a primeira é a unidade e a última, é a, grendeza,a dividir. Quanto à maneira de encontrar entre este c aunidadc tantas médias proporcionais quantas quisermos,scrá crplicada no seu devido lugar. Que baste por egorao facto dc termos advertido não haver neccssidadc de cami-nhos indirectos e rcflcxos da imagina$o; por agora, tra-temos apenas das qucstões a percorrer directamente.

Quanto às outras operaçõcs, podcm, sem dúvidaalguma, lcvar-se a cabo da maneira extremamente fácilcomo dissemos que se devem conccber. Resta, no entanto,

o

l lt ;

--- l ----r--l i1l

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expor como é que os seus termos sc devem preparar, pois,ainda que tenhamos a liberdadc, ao lidar com uma difi-culdade, de conceber os seus termos como linhas ou comorectângulos, sem nunca lhes atribuirmos outras 6guras,como dissemos na reÍÌra décima quarta, acontece muitasvezes no raciocínio que um rectângulo, dcpois de tcrresultado da multiplieÉo de duas linhas, se devc concc-ber como uma linha, pxa,frzer unìe outre operação. Âcon-tcce ainda que o mesmo rectângulo, ou â linha resultantede uma adição ou de uma subtracção, deve logo conce-ber-se como um outro rectângulo a construir sobrc umalinha designada, pela qual é prcciso frzer a. divisão.

E, pois, importante expor aqui como é que todo oÍectângulo se pode transformar cnr linha e, por sua vez,como é quc uma linha ou mesmo um rectângulo se podemtransformar noutro rectângulo de lado designado. Istoé muito fácil para os Geómetras, desde que façam estaobserva$o: por linhas, sempre que as comparamos xalgum rectângulo, como aqui, entendemos sempre rectân-gulos, enì que um lado é o comprimento que tomámospor unidade. Assim, tod<-r este trabalho se reduz à propo-sição seguinte: dado um rectângulo, construir outro quelhe seia igual, sobre um dos lados.

Se bem quc seia familiar até aos principiantes na Geo-metria, agrada-me no entanto expô-lo em pormenor, re-ceando tcr omitido algo.

REGRA XIX

Por este método de raciocinat, impona procutaÌteÍrtas gtandezas expressÍrs de duas maneirasdiferentes quantos oE teÍÍnoE incógnitoe que su1xFmos coÍno conhecidos, para per@rÍer directa-mente a dificuldade; ter-se-ão assim outras tan-tãl compâreções entre duas coieâ8 iguais.

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Page 62: Descartes, r. regras para a direção do espírito

REGRA XX

Reeolvidas as equaçõcs, há que dectuar as oPe-raçõee quc deixámoe de lado, nrülce utilizando amultiplicação eempre que parâ e divisão houverlugar.

REGRÂ XXI

Se tivermos vilriae equaç0ce deeta eepécie, Mque reduzi-las a uma únlcq a saber, àquele crriootermoo ocupaÉo o menor número de gtaue naséde das gnndczas continuamente ploporcio-nais, eegundo a qual or mesmor tetuos se devemordenar.

FIM

122 t23

Page 63: Descartes, r. regras para a direção do espírito

Éo da rrcnte, a 6m dc dcrcobrirmor algurna vcrdedc.E obscrúlo-cmos ficlmcntc, ec reduzirmos gradual-mcntc as proposiçõcs complicadru c obscures . pÍo-posiçÕcs mais simplcs e sc, cm eeguida, a partir dainruiflo drs mâis simplcs dc todas, tcnt rÍnos clevar--nos pclor mermo3 dcgraus ao coúccimcnto dc todacas outtas

REGRA VI

Para dirtinguir as coisas mais simplcs dac mais cornple-"! cprosseguir ordenadamcntc na invcstigaçilo, é rrcccssário,cm cade réric dc coisas em guc dirccumcntc dcduzimoselgumru vcrdades umar der outr.!, not r o que émeir rimplcs c como todo o resto dcle cstá mais, oumcnol, ou igualmentc afastado . ...

REGRÂ VII

Pare complcter a ciência, é preciso enaliser, ufiu lror rüne,todes as coirar quc se rclacionm com o norso obicctivo,por utn movimcnto contlnuo c jamais intcrrompido dopcÍuraÍncrÌto, ebarcandoas nurnâ cnunrcragão eu6cicntc emctódica . ...

REGRÂ VIII

Se, nr séric dc objcctos . prosuÍlr, deparermos com dgumecoise quc o nos3o cntcndimcnto não possl inruir sú-cicntemcnte bcm, há quc dcter-sc al, scrlr creminar o quescgue c cvitendo um trebalho rupérfluo.

REGRâ IX

É prcciso dirigir tode a acuidedc do csptrito pa.ra ar coisasmcno3 importantes c mais fáccis c nelas nos dctermostcmpo guficientc até nos habiruarmoc . ver a verdadcpor inruição de um.a maneira distinte c clrra...

REGfu\ X

Para que o esplrito sc tornc pcrspicaz, devc exercitar-sc crnprocuÍar o quc iá por outros foi encontrado, c em pcr-corrcr metodicarncnre todas as arrcs 0u oflcios doshomcns, aiqdâ os meno! irnponantcs, mas sobrctudoos que manifestam ou 3upõcm ordcm ...

, l

ÍNolcn

Brcvc notlcia .

REGRA I

 finalidadc dos csrudos dcvc scr a oricntaçlo do esplritopara emitir júzos sólidos c vcrdadciros sobrc tudo oquc se lhc depara . ...

REGfu\ II

Importa lidar unicamcntc com aquclcs objectos para cuiocoúccimcnto ccrto c indubitávcl os nossos csplritosparcccm ser suficicntcs.

REGRA I I I

rr-o quc rcspcita ros obicctos coruiclcrados, há quc procur.rrüo o quc os ()utros pcÍuaram ou o guc nós própriossusJrcitamos, mas aqúlo dc quc podcmos tcr urna innri-

çào clara c cvidcntc ou quc podcmos dcduzir conrccÍtc?r; dc neúum outro modo sc adguirc a ciêncie

REGRÂ IV

() méto<lo é ncccssário parâ â procura dz vcrdadc...

RËGRA \'

Todo o m&odo consistc na ordcm c na disposiflo dorobjcctos para os quais é ncccssário dirigir e pcnctrl-

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Page 64: Descartes, r. regras para a direção do espírito

REGRJì XI

Dcpois ü innriflo dc dgumer propociçõce rimplcr, rc dch!tirarmoc ouue conclurão, convérn pcÍcoÍrcr l! rncr-rn:rg com o pcnsanento num movincnto contlnuo c emncrúum lado intcrrompido, ÍcncctiÍ na! ruâ! rclaçõcsmúrua1, c concrbc( distintemcntc vátier cois$ eo mclmotcmpo, tanto qu.Ílto ec puder; cfcçtivementc, é e,srirn gueo no33o coúccimcnto rc torna múto meis certo c teaurncnta a capacidedc do crptrito ...

REGRÂ XII

Finalmcntc, há quc utilizat todos ot Íqnrnor do cntcndi-mento, da irneginet'o, dol rcntido! c da mcmória,qucr plrr tcÍÍnor uma inruiçlo dictina der propooiçõcrrimplcs, qucr pam estâbcleccÍÍrot, entre a! coisú quc rcprocurern c ac coúccidu, r.rna ligaÉo adcqpâdr quc rrpcrmita rccoúcccr, qucr ainde pirrl encontr.Í er coir.!guc cntrc ci sc dcvcm compaaâÍ, e fim dc cc Íüo omitirnenhum recurco de indústri. hurnene

REGRÂ XIII

Sc comprccndcrmor pcrfcitemeotc uma quertlo, dcvernocabstrat-la dc todo o conccito rupérfluo, rcduzi-le àmeior rimpücidadc c dividi-le cm paÍtcr tlto pcqucnasqulnto posslvcl, courncrando.as

REGRA XIV

 mcsme rcgre dcvc rpücar+c À cxtcasão rcal doc corpo!c propor-se à imrgineção com . eiude dc 6gurer purrse simplcs; ccrá ersim pcrccbide muito meic dirtinta-mentc pelo cntcndimento ...

REGRÂ XV

É tembém útil quasc scmprc tmçú cst ! figrrar c sprcrcn-táJas aog ccotidor crtcrnos, pare quc oeia mair fÁcil,POr CstC meiO, COrUCnrar |rtcroto O nOSEO pCtÌ&UnCntO

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REGRÂ XVI

O quc nlo rcqucr I stcoÉo inÊdi.t de mcntc, cmborancccssário à conctuslo, mdr valc dcsigúJo por nou-çõcs muito brevcr do quc por figuras inteirar; rssim .memória rúo podcrl cÍUenrÍ{c ÍÌcm o pcnramcntodirtrair-cc cnquento rc epüce I ourre3 dcduçôcs ... ro6

REGRÂ XVII

A dificuldedc propo3ta dcvc rer dircctemcatc pcrcorrida,prcrcindindo do ficto dc dgunr dor rcur tcrmos rercmcoúccidoo c outror dcrconhccidos, e..'nirundo intui-tivemcntc e intcrdcpcndêncie dc cadr um delcr cm rcta-çlo sos outÍor, medientc vcrdrdciros racioctnior... rrr

REGRÂ XVIII

Pere iro, erigcm-ac .pcn t quâtro operaçõct: a edigo, erubtraogo, e multipücaSo e e divislo: ar dues últi-mes, mütel vecr,, nlo se dcvcm aqui fazcr, qucr p1malo complicar, qucr porque podcm, ultcriormcntc,ser mdc facilmentc efecnraüs... rr4

REGRâ XIX

Por erte método dc raciociner, inporte procunr tmtasgrrÍtdcz.! erprcs3â! dc duac mmeires difcrcntcs quen-to3 or tcrÍnoE incógnitor quc supomor como conhcci-dor, pan pcroorcr dirccaÍncntc a dificuldedc; tcr-sc-loacsiÍn outÍls t.'rter comparaçôcr cnue duas coirar iguais r2r

REGRÂ XX

Rerolvi.l"r u cquaçõcr, M q* cfccnrer es opcraçôct quc dci-úmos dc hdo, nunca utilizendo a multiplica$o rcrr-prc que para a divillo houvcr luger ... r22

REGRá, XXI

Sc tivcrmos v&ies cqneçôcr dcste erffcie, M quc rcdnzi-hrI unn única, a rabcr, àqucb o.rior tcrmot ocuparão omcnor númcro dc grar.u oe réric des grandcza,s conti-ouârncntc proporcioneir, rcguodo . qu.l or melmoEtcÍrnot cc dcvcsr ordcner... 12,

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Page 65: Descartes, r. regras para a direção do espírito

Esto broìrÊ €soito, que ficou lumdú,lraça com dareza e píogÍamaticamsnteo grande kleal de Descatbc pecpediwa mulüpli:idade das dôndas na unldadeda lurnanasabedoda.