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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

    Pesquisas e Prticas Psicossociais 3(2), So Joo del-Rei, Mar. 2009

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    Desamparo Primordial em Nietzsche e em Freud

    Overriding Helplessness in Nietzsche and in Freud

    Sandra Regina Lopes de Camargos1

    Caio Csar Souza Camargo Prochno2

    Maria Lcia Castilho Romera3

    Resumo

    Ao propor articular a teoria nietzschiana com a psicanlise, a idia tentar pensar em possveis contribuies para compreender o sujeito nacontemporaneidade. Esta reflexo baseia-se em Zaratustra, personagem central de Assim falou Zaratustra, escrito por Nietzsche (1883-1885), uma de suas principais obras. A finalidade articular a categoria desamparo atravs deste personagem que faz um caminho rduo,levando-o a experimentar o lado sombrio e tenebroso da vida. Por meio da categoria desamparo, articulada com a cultura, o homem atualexperimenta, na sua relao com o outro, uma angstia paralisante. Questes estas que vm ao encontro da dissertao de mestrado deSandra de Camargos, defendida na Universidade Federal de Uberlndia, Minas Gerais, Brasil.

    Palavras-chave: desamparo; Nietzsche; Freud; contemporaneidade.

    Abstract

    Proposing to articulate Nietzsches theory and psychoanalysis, the paper makes a contribution for understanding the subject in thecontemporary world. The reflection is based onZarathustra, principal character in the book Thus spoke Zarathustra, written by Nietzsche(1883-1885). The aim is to think about helplessness through this character which makes his difficult way in experiencing the dark andmysterious side of life. Throughout the helplessness category, articulated with culture, the contemporary human being experiences, in hisrelation with the other, a stony anxiety. Questions alike have been discussed within the masters thesis of Sandra de Camargos presented tothe Federal University of Uberlndia, Minas Gerais, Brasil.

    Key words: helplessness; Nietzsche; Freud; contemporaneity.

    1 Psicloga Clnica. Trabalha com criana em psicoterapia de base analtica desde 1996. Ps-graduao em Teoria Psicanaltica. Mestrandano curso de ps-graduao pelo Instituto de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de [email protected] Psiclogo, professor associado do Instituto de Psicologia e do programa de ps-graduao em Psicologia Aplicada da Universidade Federalde Uberlndia. Doutor em Psicologia social pelo Instituto de Psicologia da USP e Ps-Doutorado pelo Instituto de Filosofia da Universidadede Leipzig (Alemanha)[email protected] Psicloga, psicanalista, membro associado da SBPSP, membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos-CETEC, professora associadado Instituto de Psicologia do programa de ps-graduao em Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlndia. Doutora emPsicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP e Ps-Doutorado pelo Centro de Estudos da Teoria dos CamposCETECPUC-SP.

    [email protected].

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

    Pesquisas e Prticas Psicossociais 3(2), So Joo del-Rei, Mar. 2009

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    Introduo

    Uma criana jogada no mundo... como umaventureiro lana-se... e ao jogar-se de umparaquedas, lana-se no abismo, no nada, nocaos..........

    Sem certeza e com certeza de que, num dadomomento, o paraquedas vai abrir-se.

    Que alvio!!!!!!!! Estou seguro... Estoutranquilo... Posso at aventurar-me a me soltarnovamente. Porm, muitas vezes, o tempo do caosvivido pelo aventureiro pode durar muito e aaventura transformar-se em angstia como temospercebido no contato com os pacientes e nocotidiano.

    Somos jogados neste mundo... e se somosjogados podemos interpretar esse caos como umaaventura fascinante ou num terror de morte.

    Meu interesse lanar um debate em torno daquesto desamparo buscando em Nietzsche e emFreud alguma reflexo sem a pretenso de acharrespostas, pois aproximar estes dois autores sempre uma questo complexa e delicada. H vriasposies histricas com relao ao conhecimento deFreud sobre Nietzsche.

    Assoun (1989) aceita a tese de que Freud notenha lido quase nada de Nietzsche encontrandodeclaraes sobre isso do prprio Freud. Porm,podemos constatar que o pensamento freudiano temmuito do pensamento Nietzschiano como, porexemplo e, sobretudo, o carter teraputicoenfatizado pelo criador da psicanlise.

    Podemos consubstanciar esse ponto de vistaatravs de Naffah Neto ao referir-se Nietzsche eFreud: Trazer Nietzsche para o interior do campopsicanaltico pode significar us-lo como critrioseletivo para descobrir, textualmente o melhor dosFreuds: o mais potente, o mais criativo, o queconseguiu olhar mais longe. (Naffah Neto, 1997,p. 50). Lano-me, ento, nesta aventura, natentativa de aproximar estes dois mestres. Lano-me ao desconhecido e, como ponto de partida, tentosoltar-me, olhar o homem atual, apenas permitindo-me sobre ele me debruar espera das surpresas!

    O caminho de Zaratustra e a morte deDeus

    Se olharmos no dicionrio, amparo : ao ouefeito de amparar, proteo, auxlio, esteio, abrigo,refgio. Portanto, des-amparo, pode-se dizer, ser afalta de abrigo, de proteo (Luft, 1997).

    Encorajados pela belssima histria de

    Zaratustra, a tomamos como eixo dessa reflexo natentativa de compreender o desamparo do homemcontemporneo refletido no seu modo de ser e deviver. Zaratustra, personagem central de Assimfalou Zaratustra, escrito por Nietzsche (1883-1885), passa por uma experincia de solido, numacaverna, e l permanece por 10 anos, apenas nacompanhia de uma guia e de uma serpente.Zaratustra, despontando como um heri e, emseguida, percorrendo um caminho que o levar aintegrar o lado noturno, tenebroso da vida.Zaratustra, aps anos de solido, resolve descer damontanha, deseja transmitir aos homens sua

    sabedoria. O poeta quis estar com os homens, quisaproximar-se do homem, esvaziando-se,transbordando-se, justamente para dar o que tinha.Zaratustra quis dar e distribuir. Desce da montanhade sua solido e aproxima-se do homem. Abenoaa taa que quer transbordar, a fim de que sua guaescorra dourada, levando por toda parte o reflexo datua bem-aventurana. (Nietzsche, 1883, p. 27).Zaratustra, nessa empreitada, vai ao encontro doshomens, cheio de sabedoria, quer oferecer aoshomens do mercado uma notcia que poderiatransform-los, ou pelo menos, inquiet-los. Poeta,cheio, quis compartilhar sua histria, refletir sua

    sabedoria, sua vivncia. Assim, desce da caverna,desce do alto de sua sabedoria. Porque quis descer?Esta pode ser nossa primeira indagao.

    Logo no incio do seu percurso, o poeta assimdefine o homem: O homem uma corda estendidaentre o animal e o super-homemuma corda sobreo abismo. (Nietzsche, 1883, p. 31). E, maisadiante, continua: o perigo de transp-lo, operigo de estar a caminho, o perigo de olhar paratrs, o perigo de tremer e parar. (Nietzsche, 1883,p. 31).

    Esta aventura comea a ficar perigosa!!! Comopermitir soltar-me se esta aventura me leva ao

    abismo? Trazendo a metfora do paraquedas, anoo de homem como abismo, podemos pensar emdesamparo, nesse primeiro momento, como umacondio assustadora, uma situao de medo, deperigo e muito ameaadora.

    Quando Nietzsche, atravs de Zaratustra,introduz a idia da morte de Deus numa poca emque o homem moderno estava em busca de umaverdade, o homem parece encontrar-se numprofundo desamparo, sentindo-se fragilizado edesesperanoso. O homem no tem Deus, e agora?Com esta idia da morte de Deus, Zaratustrarevela aos homens do mercado que assombrosa a

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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

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    existncia humana e sem qualquer sentido.

    (Nietzsche, 1883, p. 37). Assim, inunda-se o centrodas discusses, constata-se a ruptura que a

    modernidade introduz na histria da cultura com odesaparecimento dos valores absolutos, dasessncias, do fundamento divino. Zaratustra umhomem moderno e quando resolve descer dacaverna abre-se espao para a desvalorizao devalores supremos e incontestveis na modernidadefazendo uma interlocuo condio de pequenezdo homem. Se o homem constata a morte de Deuscai por terra a noo de verdade absoluta, pode-sedizer, uma ruptura de valores imutveis, um cortena histria da poca. Zaratustra prope, a partir da,uma nova sada positiva, ou seja, a possibilidade dohomem buscar seu prprio destino, mesmo no

    conflito.Zaratustra tenta tirar daqueles homens um valorsupremo e oferece-lhes outro.

    Oferece-lhes o Super-homem. Quem o super-homem?

    Nietzsche fundamenta sua obra napossibilidade de nobreza do homem, referindo-se snoes de fora e o grau de luta do sujeito. O

    homem algo que deve ser superado. (Nietzsche,1883, p. 54). Nesse sentido, o Super-homemsuporta condies adversas, graus de luta cada vezmaiores: A vs, no aconselho o trabalho, mas a

    luta. (Nietzsche, 1883, p. 63), referindo-se fora

    do que foi internalizado. Nesse sentido de busca, ohomem pode construir seu prprio sentido.Momento chave para construir seu projeto de vida.

    Portanto, o ser humano, para Nietzsche,exprime-se, essencialmente, como vontade depotncia, vale dizer, vontade de acumular foras,que especfica do fenmeno da vida. Melhorainda, esta vontade se concentra como uma causaatuante.

    O poeta tenta transmitir queles homens nosomente acerca de um caminho para a felicidade,mas de um caminho para a potncia, para a ao,um caminho para a adversidade. Foras e as

    relaes de foras centradas sobre a vida e tudoaquilo que ela tem de essencial, como asexualidade, a fecundidade, o excesso, otransbordamento, a beleza, a construo, adestruio e o querer-mais e no algo que nos dado prontamente, referindo-se que deveisprocurar o vosso inimigo, deveis fazer a vossaguerra e faz-la pelos vossos pensamentos! E, se ovosso pensamento for vencido, que a vossa retidolance, ainda assim, um grito de vitria! (Nietzsche1883, p. 63). So foras que afirmam e elevam avida e aquelas que, ao contrrio, negam, rebaixam etrabalham pelo seu declnio e, talvez, para o seu

    fim.

    Zaratustra, em contrapartida, fala do ltimohomem. Quem o ltimo homem? Inventamos afelicidade. Todos so iguais, nenhum pastor e um

    s rebanho. (Nietzsche, 1883, p. 34). Nestesentido, o ltimo homem busca prazeresmomentneos, busca conceitos, busca a verdade oua mentira, tornando-se impotente. Zaratustra defineo ltimo homem como aquele que no sabe o que amor, o que criao, o que anseio isto ,inventaram a felicidade, desistiram do que penoso, conquistaram segurana e conforto,consideraram que todos so iguais e vivem depequenos prazeres. O ltimo homem: esgotado,desiludido, sem foras, desprezvel, ter perdidotodas as esperanas de elevao da humanidade.

    Podemos imaginar, nesse momento, o esforo

    do poeta ao tentar transmitir queles homens apossibilidade de abertura de um novo caminho apartir do que a vida ia oferecendo. Zaratustra, aofalar aos homens do mercado, entristeceu-se, pois opovo pediu esse ltimo homem. Zaratrusta,frustrado, no sentiu-se compreendido, retira-se,acuado. Fracassa-se ao falar dando-se conta de queo super-homem no era para qualquer um.

    O poeta faz, por vrias vezes, esse percurso:dirige-se ao homem e volta solido. Um caminhorduo, e sempre que se dirige ao homem esvazia-sede sua sabedoria e tende a retornar sua caverna.Zaratustra se d conta de que viver com os homens

    um desafio, mas ao mesmo tempo, um desejo, nosentido de busca.

    O caminho tenebroso e o homem atual...

    Zaratustra recuou para si porque no foicompreendido, seu anseio em falar de suaexperincia foi reprimido. Por outro lado, o povo domercado, com ouvidos desatentos ao que lhesfalava o poeta, no alcanou a notcia que poderiadesestabiliz-los. O povo no estava preparadoainda para uma escuta da morte de Deus e muitomenos para iniciar uma aventura de re-conhecer-se

    em sua condio faltante.Podemos fazer nesse momento uma pausa.

    Damo-nos conta de que nossa aventura pode noslevar a lugares bastante tenebrosos. Reconhecer quesomos uma corda sobre o abismo, sem deus, semuma certeza na qual podemos nos agarrar pode serenlouquecedor. O poeta se d conta de que estarcom os homens no uma tarefa to simples.

    Aproximando do homem de hoje, podemosdizer que encontramos um modo de viverenlouquecido. O homem atual queixa-se de solido,mas no consegue estar com o outro. No vive aaventura do jogar-se ao desconhecido, porque nem

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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

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    sempre o outro o acolhe, o espera. Vive-se nainsegurana e no medo do contato. O mal-estar nacontemporaneidade parece regido pela falta do

    olhar do outro, falta encantamento, uma reao, umespanto, talvez. Os olhares so frios e banalizados.Percebe-se um esfriamento das relaes, umcongelamento das emoes. As sadas soimediatas e no mediadas prevalecendo aimpotncia perante a vida. E se o paraquedas no seabrir?

    Muitas vezes, o paraquedas no se abre parareceber, acolher. Porm, Nietzsche expressa,atravs de Zaratustra que o homem tem a chavepara abrir o paraquedas, ou seja, para construir seuprprio destino, ou seja, que o caminho a sertraado depende do modo de caminhar. O caminho

    no est pronto, no est dado. E a noo dedesamparo, chama-nos ateno para a condio dehomem que se d conta que os conceitos soconstrudos, so interpretados por cada pessoa deacordo com o olhar que se faz na condio dedesamparo, no jeito de caminhar.

    O desamparo em Freud

    Podemos agora aproximar e tentar umaarticulao com o conceito de desamparo para apsicanlise. Desamparo um conceito caro paraFreud. Pode ser considerado o ponto de partida e de

    chegada no construto terico da psicanlise. NoProjeto Para Uma Psicologia Cientfica (1895)Freud buscou explicar o funcionamento do aparelhopsquico em termos neurolgicos, ou seja, umaparelho livre de contradies que funciona dentrode uma homeostase. Usou da neurologia e dafisiologia para explicar o que no se v. QuandoFreud indagou-se do porqu do ser humano precisarde um aparelho psquico, tocou na questo dodesamparo, ou seja, a imaturidade biolgica do serhumano leva-o a precisar de um outro que ofereauma experincia de prazer/desprazer. Suafragilidade perante s ameaas decorrentes do

    mundo externo coloca o beb na total dependnciade um semelhante, responsvel pelos seus cuidados.Essa imaturidade leva dependncia. Portanto, esseoutro que cria as primeiras representaes, quefaz articular as experincias de prazer/desprazer. preciso que o outro faa a marca. Assim, Freud(1895) comea a distanciar-se da neurologia e dafisiologia para construir e desenvolver suametapsicologia. Assim afirma:

    O organismo humano , a princpio, incapaz depromover essa ao especfica. Ela se efetua porajuda alheia, quando a ateno de uma pessoa

    experiente voltada para um estado infantil por

    descarga atravs da via de alterao interna. Essa viade descarga adquire, assim, a importantssima funosecundria da comunicao, e o desamparo inicialdos seres humanos a fonte primordial de todos os

    motivos morais. (p. 431)

    Quando o recm-nascido chora com fome eagita-se, essas respostas motoras so ineficazes paraa eliminao do estado de estimulao na fontecorporal. Na linguagem do Projeto, anteriormentecitado, num primeiro momento, o beb nascedesarticulado, no tem instrumental para se livrarda tenso. O choro interpretado atravs do desejomaterno, ou algum que exera essa funoaplacando sua tenso. Ele quer o colo, ou meu

    beb quer leitinho. Portanto, o alvio da tenso spode ser obtido atravs da ao especfica, capaz de

    eliminar o estado de estimulao. Mas isso que orecm-nascido no capaz de fazer sem o auxliode outra pessoa. Assim, num segundo momento,esses restos da experincia transformam-se emregistros passando a ser guias, ou seja, caminhospara uma segunda, terceira experincia. Tambm,este momento seguinte d uma perspectiva de nofuturo, ou seja, o beb d-se conta de seudesamparo. Nota-se, portanto, que somente nestesegundo momento o beb tem possibilidade dequalificar esse estado como desamparo. Portanto,para Freud, desamparo faz parte da condioinerente ao ser humano, ou seja, a condio defragilidade do homem coloca-o na dependncia dooutro.

    Freud, em toda sua obra, sustentou esta idiaafirmando, em 1937, em Anlise terminvel einterminvel, um de seus ltimos trabalhos, quemesmo depois de anos de anlise no existe como osujeito proteger-se do desamparo e dos riscos que oviver nos impe. Mas em O futuro de uma iluso,em Inibies, sintomas e angstia e no Mal-estarna civilizao que o criador da psicanlise fundatoda a noo de desamparo: Tero de admitir parasi mesmos toda a extenso de seu desamparo einsignificncia na maquinaria do universo; nopodem mais ser o centro da criao, o objeto deeterno cuidado por parte de uma Providncia

    beneficente. (Freud, 1927, p. 63).Neste sentido, o desamparo coloca o sujeito

    em, pelo menos, dois caminhos: De um lado, dcondio para luta, para o crescimento; de outro,pode estacionar, paralisar, aprisionar,enfraquecendo-se de recursos internos. Podemosimaginar como, muitas vezes, na nossa caminhadaenfrentamos situaes de desamparo. E Freud(1925) coloca no centro do desamparo a seguintedefinio: A ansiedade [angst] tem inegvel

    relao com a expectativa: ansiedade por algo.

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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

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    Tem qualidade de indefinio e falta de objeto.(Freud, 1925, p. 190). Seguindo a linha depensamento de Freud, a falta de um paraquedas

    pode ser o limite entre a vida e a morte comoconstatamos, por exemplo, na perda de entesqueridos, decepes, separaes precoces, falta deum ouvido ou um ombro amigo. Situaes quecolocam em xeque nossa relao com o mundo.

    O desamparo e a contemporaneidade

    Herrmann (2004), ao tentar articular os camposmapeadores do sofrimento humano nacontemporaneidade, afirma sobre o perigo daaniquilao da espcie humana. Uma vivncia durae cruel para nossa gerao e que nos assola dia aps

    dia.

    A ameaa palpvel e imediata de aniquilao nuclearda espcie humana, durante os anos de 60 a 80 dosculo passado, parece ter produzido um efeitotraumtico sobre a psique do real. Com efeito, acompleta aniquilao do homem impe um limiteradical ao pensamento. (p. 2)

    Segundo Herrmann (1997) vivemos, nacontemporaneidade, o trauma do fim do mundo.Este trauma tem vrias consequncias na vidacotidiana. Os efeitos traumticos podem serentendidos pela crise de insegurana sobre acontinuidade de nossa espcie. Esse medo, essepavor faz com o sujeito se arme de mecanismos queo impedem de pensar. Assim, Herrmann aponta oato puro como uma das vivncias do registro dacultura do real. O ato puro considerado uminstrumento radical quando as palavras falharam.Refere-se a isso dizendo: Estrutura patolgica:provisoriamente, diremos apenas que no se trata deviolncia nem de agressividade, mas que aimpotncia que est em questo. (Herrmann,1997, p. 164).

    Homem contemporneo, homem paralisado,no sustenta suas razes pelo dilogo. Opensamento em ato pode ser considerado um modode estar no mundo levando-o a viver assustado,perdido e fazendo-o arcarno s a singularidade deapreender o mundo, mas tambm colocar a suaprpria existncia em cheque.

    Ento, qual o destino desse homem?Birman (2000) faz uma reflexo acerca do mal-

    estar na atualidade indagando os destinos do desejoe a condio da subjetividade do homem hoje.Coloca que a psicanlise ainda o saber maisconsistente no que se refere tentativa decompreender o desamparo e seus impasses na

    atualidade. Birman relaciona o desamparo na

    cultura atual auto-exaltao desmesurada daindividualidade no registro do mundo especular eespetacular em que lhe interessa o

    engrandecimento grotesco da prpria imagem.Refere-se a isso: O que justamente caracteriza asubjetividade na cultura do narcisismo aimpossibilidade de poder admirar o outro em suadiferena radical, j que no consegue se descentrarde si mesma. (Birman, 2000, p. 25).

    Portanto, o sujeito contemporneo, paraBirman, impe-se e expe-se numa direoexibicionista e autocentrada na qual o horizonteintersubjetivo encontra-se esvaziado e desinvestidodas trocas humanas. E o recurso, ou seja, omecanismo a fim de defender-se do desamparo anular o outro e tentar salvar a si mesmo

    manifestando um narcisismo exarcebado comcertezas ilusrias. Vive-se de certezas, precisa-sedelas para estar no mundo, tem receitas para quasetudo. Aperta-se o boto e aparece logo uma receitaque ensina a ser feliz. Desta forma, o sujeito, nacontemporaneidade, com um jeito estranho devivenciar o desejo, tem percorrido um caminho deum mal-estar, ausncia de perspectivas,desesperana, nada a dizer, no saber falar sobre simesmo mostrando uma imagem de senhor de si,cheio de convices. Um homem desprovido de suahistria.

    Vivemos um tempo massacrante. Um tempo da

    falta de olhares quentes, pode-se dizer, umdescomprometimento com o outro. Um tempo emque a caminhada sem o reconhecimento dos nossoscompanheiros pode tornar nossa aventura algoviolento e destrutivo. Um tempo em que osemelhante mais frequentemente representadocomo igual carecendo de um sentido afetivopossibilitado pela alteridade. A aventuratransforma-se em angstia levando-o a ummovimento de mergulho em si sem o outro.

    O desamparo e a clnica

    Faz-se necessrio questionar esse tempo dedesamparo do homem na contemporaneidade.Zaratustra nos alerta, chama-nos ateno para umperigo: o desaparecimento de vontade, a ausnciade todo valor, o fim do amor, da criao. O ltimohomem prefere a passividade. Porque um desafioestar com o outro? Para que estar com o outro? Eporque Zaratustra desejou estar com os homens?

    Esta indagao de extrema importncia para aclnica psicanaltica contempornea, pois opsicanalista se defronta com pacientes marcadospor um empobrecimento do mundo simblico, porfalsas seguranas. O homem quer satisfao total.

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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

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    Vive-se a onipotncia infantil de uma falsa ilusode autonomia. O homem tem-se colocado no lugardo mais digno dos seres. Ele se sente to

    maravilhoso consigo mesmo que est apto a secolocar como centro do mundo, ou mais ainda,como causa do prprio mundo. O homem ocupauma posio gloriosa, no pertence ao mundo dascoisas ordinrias, mas o mundo lhe pertence.

    Percebe-se pouca luta, ou seja, a luta contra aangstia do desamparo. Poder-se-ia dizer que hos que lutam contra a angstia e a dependncia eaqueles que lutam com a angstia e com adependncia (Romera & Torrecillas, 1988, p. 6).Isso vem de encontro vivncia atual de que ohomem vive uma iluso de liberdade negando todaforma de dependncia. Depender de algum

    aprisionar-se. Nega-se a dor passando uma imagemde autonomia. Falsa autonomia, pois, por trs dessehomem, encontra-se um sujeito impotente. No seluta com a dor. Essa angstia que invade leva ohomem a aprisionar-se ao desejo de ser imagem.Assim, ele no reconheceria na imagem, mas esta que o capturaria deixando-o em inanio desubstancialidade. Capturado por uma imagem defelicidade seja marcada no corpo, seja na imagemde pais quando acreditam que cursos podemgarantir-lhes o lugar de pais. Uma forma deperfeio, porm, um esvaziamento de implicaes,um campo ilusrio que no se sustenta.

    por frequentar esse lugar de glrias que ohomem se depara com uma grande aflio comocita Freud emInibies, sintoma e angstia (1926)a angstia como um sinal a resposta do ego

    ameaa da ocorrncia de uma situao traumtica.(Freud, 1926, p. 99) e acrescenta que tem umaqualidade de indefinio (p. 189) trazendo-nos aidia de uma situao de impotncia. Assim, aangstia como sinal abre a possibilidade depensamento e a angstia negada incita ao ato.

    Portanto, um jogo sem luta, ou seja, pacientesmarcados pelas intervenes imediatas na realidadeprometidas pelas novas tecnologias, sofisticaes

    que se encontram exatamente na origem do homemfraco que hoje parece constituir uma espcie demito organizador do mal-estar na cultura. Nega-se aindividualidade. Por isso, devemos conceber osujeito na contemporaneidade como autodestrutivo.Como o leitor pode tambm verificar, fazer calar omal-estar com solues apaziguadoras pode seruma medida muito cara ao homem enfraquecendo-ode recursos, escravizando-o e levando-o morte.

    At agora nossa aventura parece levar-nos acaminhos tenebrosos em que a iminncia de mortenos assola. Como suportar esta condio dedesamparo?

    Freud, no Mal-estar, busca responder a estaindagao mostrando-se descontente e preocupadocom a civilizao. Afirma que a sociedade

    civilizada se v permanentemente ameaada dedesintegrao. (Freud, 1930, p. 134). Por outrolado, diante desta implacvel constatao, busca naprpria civilizao um sentido para o homem viverem sociedade. Indaga-se se o homem pode aindaser feliz.

    Para Freud a civilizao entra em cena comotentativa de regular relacionamentos sociais j queo homem revela uma tendncia inata para odescuido, a irregularidade e a irresponsabilidade.(Freud, 1930, p. 115). Foi o que o criador dapsicanlise escreveu em Totem e tabu (1913), em Ofuturo de uma iluso e, concluindo brilhantemente

    em O mal-estar na civilizao (1930), levando-nosa confrontar com o abismo em nosso interior e nosforar tarefa difcil de domar e controlar nossocaos. Tudo isso com risco e nus. Talvez um preoalto demais para se conviver com o outro.

    Ento... possvel ser feliz nestacivilizao to enlouquecida?

    Em Ecce homo, Nietzsche deixa clara suaposio com relao humanidade: A ltima coisa

    que Eu prometeria seria esta: Melhorar a

    humanidade. (Nietzsche, 2000, p. 32). O homem

    no tem sada, se vive em sociedade tem de serassim, diz o poeta. O filsofo prope umdistanciamento crtico de tudo isso, da idia dehomem. Atrair muitos para fora do rebanho foi

    para isso que vim. (Nietzsche, 1883, p. 39). ParaNietzsche, sair do rebanho uma das formas deafirmar o desejo, conhecer mais de si mesmo e,assim, ter mais autonomia perante as angstias davida. Desta forma, o super-homem um novo modode sentir, um novo modo de pensar, um novo modode avaliar, uma nova forma de vida.

    Freud tambm indica-nos alguns caminhossendo que um deles a proposta do homem se

    afastar um pouco da civilizao: Contra o temvelmundo externo, s podemos defender-nos poralgum tipo de afastamento dele. (Freud, 1930, p.96). Manter-se, de certa forma, isento dasespeculaes do mundo, em Freud h apossibilidade do homem voltar-se mais para simesmo, para a fantasia, para o sonho e para o auto-conhecimento. Esse caminho parece ter a intenode nos tornarmos, de certa forma, independentes demundo externo transcendendo o abismo de nossodesamparo. O objetivo da luta de Freud durantetoda a sua vida resumiu-se em ajudar-nos a adquiriruma compreenso de ns prprios, de modo que

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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

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    deixssemos de ser impelidos por foras que noseram desconhecidas e pela massificao dacivilizao.

    Por outro lado, Zaratustra quis estar com oshomens, sentia saudades e falta dos amigos quandovoltava montanha, pois, j no eram mais oshomens do mercado, eram seus amigos porquecriou laos. Experimentou com seus amigos o ladosombrio da vida, entristecia, sofria e sentiasaudades. Zaratustra cai no vazio, aceita a condiode jogar-se no abismo, experimenta descer damontanha do seu eu e haver-se com incertezas.Toda vez que voltava caverna, Zaratustra sofriacom a ausncia dos seus discpulos, sentindo-se se desamparado. Como sofreu!!! Como, por vriasvezes, deve ter chorado quando retornava caverna

    por no ser compreendido. Porm, algo movia-onovamente a buscar os homens. Algo mudou emZaratustra. Ele causou e foi causado. Pensou,quando quis descer da caverna que pudessetransformar os homens, talvez no alcanasse adimenso na qual foi causado.

    Fortes (2003), fazendo uma interlocuo entreNietzsche, Psicanlise e a subjetividadecontempornea, com relao s dificuldades nasrelaes humanas, afirma que o que importa no a quantidade de fora, mas sua capacidade deafetar. (Fortes, 2003, p. 6). Zaratustra no foi maiso mesmo aps ter sido atravessado pelo amor dos

    amigos. Provocou nele uma nova narrativa e umanova construo de sentido e significao. Foi aoencontro do prximo, precisou dos homens paravoltar a seu caminho de autodescoberta. Precisouesvaziar-se de si mesmo e abrir-se para o outro.

    Assim como Nietzsche, a psicanlise nopromete felicidade, mas o empenho de Freud seriaque o homem pudesse reconhecer-se como sujeitofrente aos percalos da vida. E, o de Nietzsche, queo homem buscasse sua autonomia aceitando ascoisas, sem desespero, ... alegrando-se com ascoisas tais como elas so, foram e sero; (...) querer a vida, a cada momento, sem reservas,

    integralmente, incondicionalmente, por toda aeternidade. (Machado, 1997, p.142). Assim, almde elementos como vitalidade, potncia, em Assimfalou Zaratustra, associa-se a noo de amor fati,amor ao destino, uma proposta tica de afirmar tudoo que ocorre, de querer o vivido no instante em que vivido. Redimir o passado, no homem, recriar

    todo o foi assim at que a vontade diga: Mas

    assim eu o quis! Assim hei de quer-lo (Nietzsche,1883, p. 204).

    Freud (1930), mesmo sugerindo ao homemafastar-se um pouco da civilizao, reconhece oamor como um dos fundamentos da civilizao.

    Coloca a civilizao como necessria. Estava

    convencido de que a criao da sociedadecivilizada, apesar de todas as suas deficincias, eraainda a mais nobre realizao do homem,

    afirmando que a civilizao constitui um processoa servio de Eros, cujo propsito combinarindivduos humanos, isolados, depois a famlia e,depois ainda, raas, povos e naes numa nica egrande unidade, a humanidade (Freud, 1930, p.145). Assim, o amor um preceito que contraria oque a civilizao promove. Somos puraagressividade. Nossa natureza instintiva, fora

    bruta. Amar significa nadar contra a correnteza.Amar o prximo no uma tendncia natural, nossatendncia no sermos amados, estamos muitomais prximos do bruto, do instintivo do que doamor.

    Portanto, levar a vida na companhia do outro um processo, uma aprendizagem, uma arte que nosimpe uma outra lgica. Requer um esforo, umatarefa em construo. Freud refere-se a issoafirmando que um egosmo forte constitui uma

    proteo contra o adoecer, mas, num ltimorecurso, devemos comear a amar a fim de noadoecermos, e estamos destinados a cair doentes se,em conseqncia da frustrao formos incapazes deamar (Freud, 1914, p. 101).

    Neste sentido, estas reflexes podem nosindicar que afetar e deixarmos ser afetados pelooutro faz-nos afastar da nossa condio de criatura

    mesmo sendo uma operao de risco e no umamatemtica em que dois mais dois so quatro.Assim, quando deixamos ser atravessados, abre-seuma brecha em que as operaes podem provocardesdobramentos possveis e impossveis. E nessedesdobrar-se, somos reconhecidos em nossasingularidade.

    Iniciamos nossa caminhada assustados emedrosos. Talvez seja essa a primeira impressoque temos do pensamento de Nietzsche com relaoao homem como no sendo um filsofo daesperana, mas Zaratustra exprime mensagem deesperana. Nietzsche mostra, ao homem, a

    esperana de que possvel viver no deserto semtransformar em deserto a prpria vida. Zaratustrapode ser chamado o poeta da esperana e do amormesmo trilhando um caminho na ambivalncia daalegria e da dor, do prazer e do desprazer, dafelicidade e da infelicidade, da angstia e do gozofoi-se construindo, assim, um homem forte.

    Podemos nos indagar agora: Como aplicar tudoisso na clnica? Freud conseguiu transformar opensamento de Nietzsche numa propostateraputica. Neste sentido, Naffah Neto (1997) fazuma reflexo a respeito da cultura atual tendo comobase a psicanlise e as teorizaes Nietzschianas:

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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

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    As consequncias de uma depurao crtica dapsicanlise so bastante preciosas no nvel daclnica: trata-se, nada mais, nada menos, de saberque tipo de homem queremos ajudar a construir, se

    um que seja criador de valores ou meramentereprodutor. (p.50)

    Afinal, o que queremos para os pacientes quenos procuram, para nossos entes queridos, nossosfilhos, nossos irmos, amigos? Suscita em ns umacerta desordem, caos, mexe com elementospreciosos guardados a sete chaves. Sabemos queno h teoria alguma que d conta do ser humano,porm a psicanlise, com sua lente sobre a condiode desamparo e Nietzsche, especificamenteZaratustra, podem nos ajudar a criar uma novaforma de olhar o homem contemporneo. Exige de

    ns suportar a presena de uma certa desordem,uma perturbao at invasiva, e principalmente, umcerto silncio, muitas vezes, arrebatador, que a novaordem na contemporaneidade nos provoca. O poetanos acalenta dizendo que preciso ter ainda caos

    dentro de si, para poder dar luz uma estreladanante. Eu vos digo: h ainda caos dentro dens. (Nietzsche, 1883, p. 33).

    Esta certa desordem nos ajuda a pensar comono viver do homem hoje encontra-se pouco espaopara o viver criativo. E o que seria um vivercriativo? Num primeiro momento, vem a idia dealgo no mecanizado.

    A possibilidade... A brecha emWinnicott

    Criar, no dicionrio, dar existncia, darorigem, causar. Isso vem ao encontro da idiaWinnicottiana de criatividade que consiste noespao iluso-desiluso (Winnicott, 1988). Porvolta do 3 ao 6 ms de vida, criado este espaoentre o beb a me que consiste por um lado, nailuso, na capacidade de criar o seio da me. E medida que cria o seio da me, cria a prpria

    existncia. E, por outro, na desiluso, ou seja, umespao em que no mais um eu totalizado, topotente. o espao do eu e no-eu. A idia decriatividade, nesse momento, remete ao beb umacondio de ter de se virar, ter de dar um jeito portratar-se de um lugar sem garantias, nem certezas.Porm, d a possibilidade do beb deslocar aangstia e, desta maneira, remodel-la, transfigur-la, transformando-a em ato criativo.

    Trazendo a metfora do abismo, viver estevazio pode ser uma aventura interessante e o comose transpe constri-se a possibilidade de um vivercriativo. Transpor o abismo, ou melhor, viver este

    abismo requer ir ao encontro do homem e voltar a si

    mesmo. Procura-se o prximo para encontrar-se.Assim, h a possibilidade de um novo sentido vir luz e uma nova interpretao se constri, se

    desenvolve, se impe. uma aventura deautodescoberta, um processo que nos afeta, nosassola, mas trar como resultado nos tornarmosseres mais fortalecidos. Uma aventura cheia deriscos, porm pode nos levar a nos tornarmosmenos escravizados e mais capacitados paraenfrentar os percalos da vida e paracompreendermos nossos semelhantes. Para o poeta,Criar essa a grande redeno do sofrimento, o que torna a vida mais leve. Mas, para que ocriador exista, so deveras necessrio sofrimento emuitas transformaes. (Nietzsche, 1883, p. 101).

    Parece no haver outro jeito seno conviver

    com incertezas, no com verdades absolutas. Aessncia o jeito de transpor que torna-se diferentede um para outro. Nietzsche refere-se a isso: eutolero, eu afirmo, eu supero. Esta a idia deNietzsche: ultrapassar o humano, no conflito, nador. Sim. No h caminhada sem dor, sofrimento,angstia, o jeito de caminhar o que nos tornasingulares, diferentes. A autonomia do homemparece estar nesse modo de transpor e no na ilusode que um super-homem como temos visto nacontemporaneidade buscando, a qualquer custo,formas de esconder o desamparo.

    Em Nietzsche, o transbordar da taa pode

    igualmente converter-se num novo comeo e numanova criao.Taa, esvazia e enche - d e recebe enesse transbordar h a possibilidade de uma novaresposta que o sujeito d, ou tenta dar, sua prpriainterrogao, s suas prprias representaes, aosseus prprios fantasmas.

    Consideraes finais

    Neste sentido, podemos reconhecer anecessidade de derramarmos no outro, abrirmospara o outro. Sim, uma necessidade, pois quaseuma obrigao. Por outro lado, a tentativa de

    permanecermos na posse integral de ns mesmos mortfera e uma empreitada impossvel, o qualHerrmann nos afirma que um sentimento bsico,bastante conhecido do todos ns, o desejo de serinteiro, de bastar-se a si mesmo. A prpria teoria donarcisismo afirma algo assim. (Herrmann, 2004, p.104).

    S amor prprio no basta, preciso esvaziar-se no e em outro.

    Descer da montanha do nosso eu necessrio.O poeta fez-se carente do olhar dos homens. No hcomo escaparmos do desamparo primordial, intrnseco ao homem, nos adere. Padecemos dessa

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    condio: Eu sou desamparado. O homem veio

    desse estofo do desamparo. E dar-se conta disso suportar satisfaes parciais. Suportar que no h

    felicidade completa. No h como escaparmosdessa verdade que construda no caminhar, durademais perceb-la sozinhos ou uma tarefaimpossvel. E nesse transpor que abre-se a brechapara o homem mostrar seu jeito de ser. Seu jeitoparticular, sua singularidade.

    Esta linha de pensamento leva-nos a pensar queconviver com o outro uma necessidade e no umaescolha e, neste con-viver, cada um faz um recortedo mundo, diferenciando assim, uma pessoa deoutra. Quando o poeta diz: Ai de ns! Aproxima-se o tempo em que o homem no mais arremessara flecha do seu anseio para alm do homem e a

    corda de seu arco ter desaprendido a vibrar.(Nietzsche, 1883, p.33), colocando-nos um certomedo de um tempo em que o homem corre o riscode fechar-se completamente em si, perder-se,aniquilar-se. Acrescenta-nos tambm que j tempo de o homem estabelecer sua meta. J tempo de o homem plantar a semente da sua maisalta esperana. (Nietzsche, 1883, p.33). Temos deacreditar nessa pequena frao de abertura para ooutro. O homem sombrio, efmero. No possvel ter acesso individualidade se no for peloolhar de nosso semelhante. Somos pequenos dianteda natureza do universo. Ainda temos muito a

    aprender no trato dos assuntos humanos, comoFreud afirma que embora a humanidade tenhaefetuado avanos contnuos em seu controle sobre anatureza, podendo efetuar ainda outros maiores, no possvel estabelecer com certeza que umprogresso semelhante tenha sido feito no trato dosassuntos humanos. (Freud, 1927, p.17).

    Deste modo, o desamparo do homem no setraduz em infelicidade mas em uma condio quealicera-o para o homem forte. O desamparo deFreud afirmao da vida. A est a grandeza doser humano, no apenas em suportar o necessrio,mas am-lo. Amar esta condio primordial faz-

    lo mais forte, a est sua potncia. Acolher estacondio tambm acolher o outro em suacondio, aceitar a prpria vida, gera vitalidade ealegria, no congela a dor. O homem ativo aqueleque aceita que as coisas passam e faz com que, emcada instante, a sua fora seja afirmativa.

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    Camargos, S. R. L. de; Prochno, C. C. S. C. & Romera, M. L. C. Desamparo primordial em Nietzsche e emFreud

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    Categoria de contribuio: EnsaioRecebido: 09/10/08

    Aceito: 27/05/09