depois do extase espiritual, lave a roupa suja.pdf

300

Upload: paulo-marcelo

Post on 29-Dec-2015

817 views

Category:

Documents


255 download

TRANSCRIPT

DEPOIS DO ÊXTASE,

LAVE A ROUPA SUJA

COMO O CORAÇÃO FICA MAIS SÁBIO

NO CAMINHO ESPIRITUAL

JACK KORNFIELD

Tradução

CARLOS A. L. SALUN

ANA LUCIA FRANCO

EDITORA CULTRIX

São Paulo

Dedicado ao Venerando Ajahn Chah, a seu irmão no Dharma o

Venerando Ajahn Buddhadasa e à linhagem dos Anciãos da floresta

UMA PROSTERNAÇÃO INICIAL

Há mais de trinta anos, quando praticava num mosteiro de uma

floresta da Tailândia para ser monge budista, tive que aprender a

me prosternar. Era esquisito no início. Quando entrávamos na sala

de meditação, tínhamos que cair de joelhos e tocar três vezes o

chão de pedra com a cabeça. Era um ato de reverência e atenção,

uma forma de reverenciar com um gesto do corpo a submissão ao

caminho do monge: simplicidade, compaixão e consciência. Nós

nos prosternávamos todas as vezes que íamos treinar com o

mestre.

Eu estava no mosteiro havia umas duas semanas quando um dos

monges mais antigos me chamou para me dar instruções. "Neste

mosteiro nós não nos prosternamos apenas para entrar na sala de

meditação ou para receber ensinamentos do mestre, mas também

diante dos superiores." Como único ocidental do mosteiro, eu queria

agir corretamente. Perguntei, então, quem eram os meus

superiores. "Segundo a tradição, todos os que se ordenaram antes

de você são seus superiores." Levei um momento para perceber

que ele se referia a todo mundo.

Assim, comecei a me prosternar diante de todos. Às vezes estava

certo: havia sábios na comunidade. Mas às vezes era ridículo.

Encontrava um monge de vinte e um anos, cheio de arrogância, que

estava ali só para agradar os pais ou para comer melhor do que em

casa. E tinha que me prosternar porque eu havia sido ordenado

uma semana depois dele. Ou tinha que me prosternar diante de um

velho agricultor babaca que estava no mosteiro para gozar a

aposentadoria e vivia mascando folhas de bétele, sem nunca ter

meditado um único dia na vida. Era duro me prosternar diante

desses companheiros da floresta como se eles fossem grandes

mestres.

Mas lá estava eu me prosternando e, por estar em conflito,

procurava um jeito de fazer a prática valer a pena. Assim, enquanto

me preparava para mais um dia de prosternações, comecei a

buscar méritos em cada um de meus "superiores". E assim passei a

me prosternar diante das rugas no rosto do velho agricultor, das

dificuldades que ele tinha enfrentado e vencido; diante da vitalidade

e da jovialidade dos jovens monges, das incríveis possibilidades

que ainda tinham pela frente.

Comecei a gostar de me prosternar. Eu me prosternava diante de

meus superiores, antes de entrar e antes de sair do salão de

refeições. Eu me prosternava antes de entrar na minha cabana na

floresta e antes do banho, diante do poço. Depois de algum tempo,

a prosternação começou a fazer parte de mim. Eu me prosternava

diante de tudo.

É o espírito da prosternação que informa este livro. A verdadeira

tarefa da vida espiritual não está em locais distantes ou em estados

incomuns de consciência: está aqui, no presente. Ela exige espírito

aberto para saudar com coração sábio, respeitoso e gentil tudo o

que a vida nos dá. Podemos nos prosternar diante da beleza, do

sofrimento, da nossa confusão, do nosso medo e das injustiças do

mundo. Reverenciar assim a verdade é o caminho para a liberdade.

Prosternar-se diante do que é e não de algum ideal não é fácil mas,

por mais difícil que seja, é uma das práticas mais proveitosas e

mais nobres.

Prosternar-se diante das dores e traições da vida é aceitá-Ias.

Através desse gesto profundo, descobrimos que tudo na vida vale a

pena. Aprendendo a nos prosternar, descobrimos que temos no

coração mais liberdade e compaixão do que imaginávamos.

O poeta persa Rumi diz o seguinte:

Ser um ser humano é uma casa de hóspedes.

Todas as manhãs chega alguém.

É uma alegria que chega, uma depressão, uma mesquinharia,

um dar-se conta momentâneo:

visitas inesperadas.

Dê as boas-vindas a todos,

Mesmo quando um bando de tristezas

carrega toda a mobília

da sua casa.

Trate cada hóspede com reverência,

Talvez ele abra espaço

para uma nova alegria.

o pensamento sombrio, a vergonha, a malícia,

receba-os na porta sorrindo,

e convide-os para entrar.

Agradeça a quem quer que chegue,

porque cada um foi enviado

como um guia do além.

INTRODUÇÃO: ALGUMAS PERGUNTAS HONESTAS

Quando o pássaro e o livro discordam,

acredite sempre no pássaro.

JAMES AUDUBON

A iluminação existe. É possível despertar. Liberdade e alegria

irrestritas, unidade com o Divino, despertar para um estado de

graça eterna - essas experiências são mais comuns e estão mais

perto do que você pensa. Mas tem uma coisa: elas não duram.

Descobertas e despertares revelam a realidade do mundo e trazem

a transformação, mas passam.

Você já deve ter lido histórias tradicionais de sábios iluminados da

Ásia ou de santos e místicos imaculados do Ocidente. Mas essas

narrativas ideais enganam. Na verdade, não existe uma

aposentadoria iluminada depois do despertar do coração. As coisas

não acontecem assim.

Todos sabem que depois da lua-de-mel vem o casamento, que

depois da eleição vem a tarefa árdua de governar. Na vida espiritual

é a mesma coisa: depois do êxtase, vem a roupa suja para lavar.

A maioria dos relatos espirituais termina com a iluminação. Mas e

que tal perguntar o que acontece depois? O que acontece quando o

mestre zen volta para casa, para junto da mulher e dos filhos? O

que acontece quando o místico cristão vai fazer compras? Como é

a vida depois do êxtase? Como viver a compreensão com coração

pleno?

Para aprofundar essas questões, falei com pessoas que dedicaram

vinte e cinco, trinta e cinco, quarenta anos a um caminho espiritual,

transformando-se nos mestres de meditação, abades, lamas e

professores da nossa geração. Essas pessoas me falaram do

começo de sua jornada e do seu despertar, das lições dos anos que

se seguiram, do que fizeram para seguir o verdadeiro caminho de

compaixão nesta terra.

O relato que se segue é de um mestre zen ocidental falando de seu

satori (experiência de iluminação) e do que aconteceu depois. Em

geral, relatos assim não são publicados porque podem passar a

falsa noção de que o despertar é reservado a pessoas especiais. A

experiência é especial, mas não é exclusiva de pessoas especiais.

Ela acontece com qualquer um que consiga se soltar, abrir o

coração e sentir o mundo de maneira radicalmente nova.

Para esse professor, o despertar veio aos cinqüenta e oito anos,

depois de praticar muitos anos com vários mestres de meditação,

cuidando ao mesmo tempo da carreira e da família.

"Para mim, a semana de meditação no sesshin zen era sempre

muito intensa. Eu sentia uma profunda liberação emocional e era

assolado por fortes lembranças - como num parto, eu tinha dores e

uma catarse física. E, depois de voltar para casa, eu continuava

assim por mais algumas semanas.

Esse sesshin começou do mesmo jeito. Nos primeiros dias, lutei

com fortes emoções e com a liberação das energias que percorriam

o meu corpo. O mestre ficava sentado como uma rocha e sua

presença me estabilizava como um leme em escuros mares

turbulentos. Eu sentia como se estivesse morrendo ou me

despedaçando e ele me instava a mergulhar no meu koan, a me

abandonar a ele. Eu não sabia mais onde começava ou terminava a

minha vida.

Então, comecei a sentir uma surpreendente doçura. Vi três

vidoeiros pela janela e era como se eles fossem a minha família. Eu

me senti passando a mão na casca lisa dos seus troncos e me

transformei na árvore me tocando. Minha meditação se encheu de

luz.

Eu já havia sentido essa felicidade em alguns retiros - ondas de

bem-aventurança depois das dores do corpo se resolverem - mas

agora era diferente. A luta cessou e minha mente ficou luminosa,

radiante, vasta como o céu e cheia de um delicioso aroma de

liberdade, de despertar. Eu me senti como o Buda sentado sem

esforço hora após hora, sustentado e protegido pelo universo

inteiro. Eu estava num mundo de paz ininterrupta e de alegria

indescritível.

As grandes verdades da vida estavam claras: vi que a avidez é a

causa do sofrimento; que quando nos guiamos pela noção estreita

do eu, esse falso ego, corremos em círculos como um proprietário

insignificante, brigando por nada. Eliminei todas as dores

desnecessárias. Depois eu não conseguia parar de rir e de sorrir. Vi

que tudo é perfeito, que cada momento é uma iluminação para

quem está aberto para ela.

Repousei nessa paz eterna por vários dias, o corpo flutuando, a

mente vazia. Eu acordava e ondas de amor e de energia feliz

inundavam a minha consciência. Então, vieram revelações e

descobertas, uma depois da outra. Vi que a corrente da vida se

desdobra em padrões que criamos como fluxos do karma. Vi a idéia

de renúncia espiritual como uma piada que nos faz desistir dos

prazeres e da vida. Na verdade, o Nirvana é aberto e alegre, é

muito mais do que qualquer um dos pequenos prazeres que

buscamos. Você não renuncia ao mundo, você conquista o mundo."

Em geral, a descrição de um despertar magnífico como esse

aparece no fim das histórias espirituais. A iluminação vem, a pessoa

entra na corrente dos seres sábios e tudo se segue naturalmente

depois disso. Ficamos com a impressão de que, uma vez desperta,

a pessoa vive feliz para sempre. Mas que tal ler os outros capítulos

dessa história?

"Alguns meses depois desse êxtase, entrei em depressão e fui

vítima de graves traições no trabalho. Tinha problemas constantes

com meus filhos e com a minha família. Mas continuava sendo um

bom professor e dava palestras inspiradoras. Mas, se você falasse

com a minha mulher, ela lhe diria que eu estava cada vez mais

impaciente e mal-humorado. Eu sabia que a visão espiritual era a

verdade e que ela continuava ali, mas via também que muitas

coisas não tinham mudado. Para ser honesto, minha mente e minha

personalidade continuavam iguais, assim como as minhas

neuroses. Era ainda pior, pois agora eu via com mais clareza.

Apesar das revelações cósmicas, eu ainda precisava de terapia

para entender os erros e as lições do cotidiano de uma vida

humana."

O que aprendemos com um relato de despertar como esse e com a

história que se segue? Diante do espelho que ele nos oferece, nós

nos compreendemos melhor. As tradições sagradas são

transmitidas em grande parte por histórias assim: contamos e

recontamos as histórias de Noé, de Bal Shem Tov, de Maomé, de

Santa Teresa, de Milarepa, de Krishna e de Arjuna, a busca do

Buda e as parábolas de Jesus. Nos tempos mo demos, ouvimos a

história da vida de Thomas Merton, de Suzuky Roshi, de Anue

Frank e de Martin Luther King Jr. Através da vida espiritual dos

outros, enxergamos as nossas possibilidades e aprendemos a viver

com sabedoria.

Observar as pessoas também faz parte da minha linhagem. Meu

professor, Ajahn Chah, sabia que, pelo caráter, é possível descobrir

o sofrimento e a liberação de cada um. Assim, ele observava os que

vinham vê-lo como um relojoeiro abrindo o estojo de um relógio.

Por sorte, como "profissional" do espírito, as circunstâncias me

puseram em contato com muitas figuras da moderna vida espiritual.

Vivi e trabalhei com freiras santas e abades sábios de mosteiros

cristãos, com místicos judeus, com mestres budistas, hindus e sufis

e com figuras importantes das comunidades junguiana e

transpessoal. O que é possível observar e ouvir em tal companhia

revela muito sobre o desenvolvimento da moderna jornada espiritual

e sobre as dificuldades que até as pessoas mais dedicadas

encontram. Eis um exemplo do que é possível aprender com essas

pessoas.

Venho organizando, desde o início dos anos noventa, uma

sucessão de reuniões para professores budistas das principais

escolas. Uma dessas séries teve como anfitrião o Dalai Lama no

palácio Dharamsala. Professores ocidentais e asiáticos se reuniram

para discutir a utilidade das práticas budistas no mundo moderno e

também as dificuldades que estávamos enfrentando. Era um salão

lotado de mestres zen, lamas e monges cheios de bondade e

compaixão, cujo trabalho e sabedoria tinham beneficiado milhares

de pessoas. Falamos dos sucessos e da alegria de ter participado

deles. Mas, quando chegou o momento de falar abertamente dos

nossos problemas, ficou claro que não havia só harmonia na vida

espiritual. Ela refletia o esforço coletivo e também as neuroses

individuais. Até mesmo em companhia tão augusta e dedicada,

havia áreas de preconceito e cegueira.

Sylvia Wetzel, uma professora budista da Alemanha, falou da

dificuldade que a comunidade budista tem para incluir as mulheres

e a sabedoria feminina. Ela apontou os budas dourados e as

excelentes pinturas tibetanas nas paredes da sala, observando que

só homens eram retratados. Então, pediu que o Dalai Lama e os

outros lamas e mestres fechassem os olhos e meditassem com ela,

imaginando que estavam entrando na sala, que tinha sofrido uma

transformação: eles se prosternavam agora diante da décima quarta

encarnação feminina do Dalai Lama. Ela estava cercada de

conselheiras, mulheres como sempre. Nas paredes, imagens de

budas e santos, todos em corpo de mulher. Não se ouviu uma única

palavra sobre a inferioridade dos homens, mas eles foram

convidados a sentar-se em silêncio no fundo da sala e a ajudar na

cozinha depois da reunião. No fim da meditação, todos os homens

da sala abriram os olhos, levemente perplexos.

Então, Ani Tenzin Palmo, uma freira tibetana de origem inglesa que

treinou durante vinte anos, doze dos quais em cavernas da fronteira

tibetana, falou em voz suave, descrevendo o anseio espiritual e as

incríveis privações de mulheres devotas que tinham permissão para

viver apenas na periferia dos mosteiros, muitas vezes sem

orientação nem comida. Quando ela terminou, o Dalai Lama pôs a

cabeça entre as mãos e chorou. Depois, prometeu fazer de tudo

para dar às mulheres uma posição de igualdade em sua

comunidade. Mas, nos anos que se seguiram, muitos professores

dos países budistas continuaram a resistir e a lutar contra essas

mudanças, às vezes em nome da tradição, às vezes por causa de

condicionamentos psicológicos e culturais. Na reunião com o Dalai

Lama, um abade zen contou que tinha tido um mau relacionamento

com a mãe, o que o impedia de orientar as monjas do seu templo.

Outros confessaram as próprias dificuldades nessa área. A

conversa passou para outras formas de cegueira: sectarismo e lutas

pelo poder entre comunidades e mestres budistas; o isolamento e a

solidão da função do professor; professores que usavam o poder, o

dinheiro e a sexualidade para explorar alunos. Em discussões

informais, falamos também de problemas mais pessoais,

Professores falaram de divórcios dolorosos, de momentos de medo

e depressão, de conflitos com a família e com outros membros da

comunidade. Professores de meditação falaram de stress e doença,

de filhos adolescentes que ameaçavam se suicidar ou passar a

noite fora e agrediam os pais dizendo: "Você é um mestre zen, e

olha só como é apegado às coisas." Todos nós temos problemas

inerentes ao corpo, à personalidade, à família e à comunidade.

Enxergamos assim a nossa humanidade comum.

Felizmente, falamos também das dádivas maravilhosas da prática

espiritual, da alegria e da liberdade que levamos conosco em meio

às circunstâncias difíceis e instáveis do mundo.

A novidade foi a honestidade com que falamos. Nossa intenção foi

inspirada pela humildade e pela compaixão do próprio Dalai Lama,

sempre com vontade de aprender, até mesmo com seus erros.

Vimos que era possível aprender uns com os outros, evitar a

repetição de erros dolorosos, permitir que nossos ideais incluíssem

o que há de humano em nós. Foi como se o florescimento da

sabedoria individual ficasse mais vivo ao se tomar coletivo.

Não é só nas tradições orientais que é difícil encontrar uma

expressão para a vida espiritual nas circunstâncias modernas. Uma

madre superiora, abadessa de um antigo convento católico no

Maine, viveu no silêncio da clausura desde os dezessete anos.

Então, nos anos sessenta, no espírito da reforma e graças ao Papa

João XXIll, a missa deixou de ser rezada em latim e o silêncio das

ordens monásticas deixou de ser tão rigoroso. Essas mudanças

foram duras para quem vivia há décadas na segurança do silêncio

sagrado, com os dias tomados pela prece e pela reflexão interior.

Essas pessoas não sabiam conversar e, quando o faziam, o conflito

era surpreendente. Ao lado do amor, surgiam críticas, medos,

ressentimentos e mesquinharias que estavam escondidos no

recipiente de prece e silêncio. As irmãs se viram forçadas a tocar a

vida espiritual em voz alta, sem nenhum treinamento para falar com

sabedoria. Muitas deixaram o convento. Levou alguns anos para a

comunidade encontrar nas palavras humanas a graça que antes

sentia no silêncio. Mas ambos são necessários na vida espiritual.

Assim como o respiração entra e sai, ela deve integrar

conhecimento interior e expressão externa. Não basta ter contato

com o despertar. Temos que descobrir como viver totalmente a sua

visão.

A iluminação perfeita aparece em muitos textos, mas não entre os

mestres e professores ocidentais que eu conheço. Momentos de

grande sabedoria, profunda compaixão e verdadeiro conhecimento

da liberdade se alternam com períodos de medo, confusão, neurose

e luta. A maioria dos professores admite prontamente essa verdade.

Mas, infelizmente, alguns ocidentais alegam ter atingido a perfeição

e a liberdade sem sombras. Em suas comunidades, as coisas são

ainda piores: com essa inflação do eu, criaram comunidades

perniciosas e centralizadas no poder.

Os mais sábios expressam mais humildade. Abades como o Padre

Thomas Keating do Mosteiro Snowmass e Norman Fischer do San

Francisco Zen Center, por exemplo, costumam dizer: "Estou

aprendendo." Ou: "Não sei." No espírito de Gandhi, de Madre

Teresa, de Dorothy Day e do Dalai Lama, eles sabem que não é

deles que nasce a perfeição espiritual, mas da paciência e do amor

que crescem através da sabedoria de toda a comunidade; que

liberdade e realização espiritual incluem a compaixão por tudo o

que surge nesta forma humana.

Cabe a pergunta: e os velhos mestres da Ásia? Será que os

mestres zen e os lamas ocidentais não são jovens demais e pouco

desenvolvidos para representar a verdadeira iluminação? Muitos

professores ocidentais diriam que, no seu caso, isso é verdade. Lá

longe pode haver alguém que se encaixe na imagem da perfeita

iluminação, mas essa aparência pode ser o resultado de uma

confusão entre o nível arquetípico e o nível humano. Um ditado

tibetano diz que devemos viver a uma distância de pelo menos três

vales do nosso guru. Como entre esses vales há montanhas

enormes, ver o professor significa uma dura viagem de vários dias.

Mas é só a essa distância que a perfeição do guru nos inspira.

Quando disse ao abade Ajahn Chah, considerado santo por milhões

de pessoas, que nem sempre ele agia como um iluminado, ele riu e

disse: "Ainda bem, pois do contrário você imaginaria que é possível

encontrar o Buda fora de você. E não é onde ele está."

Na verdade, alguns dos mais respeitados mestres asiáticos

disseram que ainda são alunos, que ainda aprendem com seus

erros. Alguns, como o Mestre Zen Shunryu Suzuki, nem mesmo se

dizem iluminados. Dizia ele: "Estritamente falando, não há pessoas

iluminadas; há apenas atividade iluminada." Essa notável afirmação

nos diz que ninguém detém a iluminação. Ela simplesmente existe

em momentos de liberdade.

Pir Vilayat Kahn, o líder de setenta e cinco anos da Ordem Sufi do

Ocidente, dá a sua opinião:

"Se você trouxesse para a América os grandes professores que

conheci na Índia e na Ásia, se lhes desse uma casa, dois carros,

uma mulher, três filhos, um emprego, seguro e impostos... todos

eles se veriam em grandes dificuldades."

Para que seja autêntica, a visão da vida espiritual que temos no

começo, seja ela qual for, deve ser realizada aqui e agora, no lugar

em que vivemos. Como é a jornada de um ocidental em meio a uma

sociedade complexa? Como os que devotaram vinte e cinco, trinta,

quarenta anos à prática espiritual aprenderam a viver? Foram essas

perguntas que comecei a fazer para mestres zen, lamas, rabinos,

abades, freiras, yogues e professores ocidentais - e para seus

alunos mais avançados.

Para compreender a vida espiritual, comecei do começo. Perguntei

o que nos atrai para a vida do espírito e que dificuldades temos que

superar em nosso caminho. Perguntei que dádivas e despertares

alcançaram e o que dá para saber sobre iluminação. Perguntei

então o que acontece depois do êxtase, à medida que

amadurecemos nos ciclos da vida espiritual. Existe uma sabedoria

que inclua o êxtase e a roupa suja?

PRIMEIRA PARTE

PREPARAÇÃO PARA O ÊXTASE

1

BABA YAGA E O ANSEIO SAGRADO

No momento em que ouvi minha primeira história,

comecei a procurar por você...

RUMI

A meio caminho na estrada da vida eu despertei

e me vi sozinho num bosque escuro.

DANTE ALIGUIERI

o que leva uma pessoa à vida espiritual? Até onde a memória

alcança, cada um de nós sente um certo mistério no fato de estar

vivo. Diante de um bebê que acabou de nascer ou quando a morte

de uma pessoa querida passa muito perto de nós, o mistério fica

palpável. Lá está ele quando vemos um entardecer radiante ou

quando sentimos a quietude silenciosa de um momento nos tempos

fluidos de agora. Entrar em contato com o sagrado é talvez a nossa

mais profunda necessidade.

O despertar nos chama de mil maneiras. Como canta o poeta Rumi:

"As uvas querem se transformar em vinho." Existe uma atração pela

totalidade, pela vida plena, mesmo quando já esquecemos. Os

hindus dizem que a criança no útero canta: "Que eu não esqueça

quem sou." Mas que logo depois de nascer sua canção é: 'Já

esqueci."

Mas, assim como há uma viagem de ida, há uma viagem de volta.

Em todo o mundo há histórias dessa viagem; há imagens do desejo

de despertar, dos passos ao longo do caminho que todos seguem,

das vozes que chamam, da intensidade da iniciação por que todos

passam, da coragem que é necessária. No coração de cada um há

a sinceridade original do buscador, que admite que é pequeno o

nosso conhecimento do universo, que é grande o desconhecido.

A honestidade que a busca espiritual exige de nós é ilustrada nos

contos russos de iniciação sobre Baba Yaga. Baba Yaga é uma

velha de aparência selvagem e maltrapilha que mora no meio da

floresta, está sempre mexendo o caldeirão e sabe de tudo. Ela

assusta, pois quem a procura é obrigado a entrar na escuridão, a

fazer perguntas perigosas, a deixar o mundo da lógica e do

conforto.

Quando, empenhado na busca, o primeiro jovem chegou tremendo

à porta de sua cabana, Baba Yaga perguntou: "Você está aqui por

conta própria ou foi mandado por alguém?" Como a família do

jovem apoiava sua busca, ele respondeu: "Fui mandado pelo meu

pai." No mesmo instante, Baba Yaga o jogou no caldeirão e o

cozinhou. A segunda pessoa a procurá-Ia, uma moça, viu o fogo

crepitando e ouviu a risada de Baba Yaga. Novamente, Baba Yaga

perguntou: "Você veio por conta própria ou foi mandada por

alguém?" Essa jovem tinha ido para o bosque sozinha em busca do

que encontrasse. "Vim por conta própria", respondeu ela. Baba

Yaga a atirou no caldeirão e a cozinhou também.

Mais tarde, um terceiro visitante, uma moça profundamente confusa

diante do mundo, chegou à casa de Baba Yaga lá no meio da

floresta. Ela viu a fumaça e percebeu o perigo. Baba Yaga a

encarou: "Você veio aqui por conta própria ou foi mandada por

outra pessoa?" A jovem respondeu com sinceridade: "Em parte vim

por conta própria, mas em parte vim por causa de outras pessoas.

Em parte vim porque você está aqui, por causa da floresta e por

causa de alguma outra coisa que esqueci. E em parte nem sei por

que vim." Baba Yaga ficou olhando para ela por um momento e

disse: "Você serve." E a convidou para entrar na cabana.

DENTRO DO BOSQUE

Não conhecemos todas as razões que nos impelem para a jornada

espiritual, mas de alguma forma a vida nos obriga a ir. Alguma coisa

em nós sabe que não estamos aqui só para dar duro no trabalho.

Há uma atração misteriosa que nos dá vontade de lembrar. O que

nos leva a sair de casa para entrar na escura floresta de Baba Yaga

pode ser uma combinação de acontecimentos. Pode ser um anseio

vindo da infância ou um encontro "acidental" com uma pessoa ou

livro espiritual. Às vezes, alguma coisa dentro de nós desperta

numa viagem para uma cultura estrangeira, quando o mundo

exótico de ritmos, fragrâncias e cores nos catapulta para fora do

sentimento corriqueiro de realidade. Às vezes basta caminhar pelas

montanhas azuis-verdes ou ouvir um coral cantando uma música

tão bonita que parece inspirada pelos deuses. Às vezes é preciso,

ao lado da cama de um moribundo, presenciar a misteriosa

transformação da "pessoa" que desaparece da existência, deixando

apenas um saco de carne sem vida à espera do funeral. Mil portões

se abrem para o espírito. Seja no brilho da beleza, seja no bosque

escuro da confusão e da dor, uma força real como a gravidade nos

traz de volta ao coração. Isso acontece

com todos nós.

OS MENSAGEIROS DO SOFRIMENTO

A passagem mais freqüente para o sagrado é o sofrimento e a

insatisfação. Inúmeras jornadas espirituais começam num encontro

com as dificuldades da vida. Um começo comum entre os mestres

ocidentais é o sofrimento da vida em família: pais alcoólatras, maus-

tratos, doenças graves, morte de um parente querido, frieza e

ausência dos pais e hostilidade entre os membros da família são

situações que aparecem em muitas histórias. Para um mestre de

meditação, sábio e respeitado, a jornada começou com isolamento

e separação.

"Quando eu era criança, havia muita Infelicidade na nossa família.

Todos gritavam e eu sentia que aquele não era o meu lugar: era

como se eu fosse um alienígena. Então, por volta dos nove anos,

comecei a me interessar por discos voadores. Durante vários anos,

fantasiei que um OVNI ia me pegar, que eu seria abduzido e levado

de volta para outro planeta. Eu queria muito que isso acontecesse

de verdade, para me livrar da alienação e da solidão. Acho que isso

foi o começo de minhas quatro décadas de busca espiritual."

Todos sabem que o coração precisa de amparo espiritual em

momentos de dificuldade. "Respeite essa necessidade", diz Rumi.

"Seja grato a quem o faz voltar, seja qual for o motivo, ao espírito.

Preocupe-se com quem lhe oferece um delicioso conforto que o

afasta da prece."

Os trinta anos de trabalho interior de outro professor espiritual, que

é também médico e agente de cura, começaram com tristezas de

família.

"Meus pais brigavam muito e depois se divorciaram em clima de

violência. Fui mandado para um internato horroroso. Viver com a

minha família era tão doloroso que me tomei solitário, magoado,

inquieto e descontente com tudo. Eu não sabia viver.

Um dia, vi um homem com manto laranja e cabeça raspada

cantando 'Hare Krishna' nos degraus de uma praça. Ingenuamente,

pensei que se tratava de algum sábio indiano. Ele me falou de

karma, reencarnação, meditação e da possibilidade de liberdade.

Senti no corpo a verdade daquilo tudo. Fiquei exultante, telefonei

para minha mãe e disse: 'Vou sair da escola. Quero ser um monge

Hare Krishna.' Ela ficou histérica, mas acabamos escolhendo um

lugar para eu aprender meditação. E assim eu me abri para um

outro mundo. Aprendi a esquecer o passado e a ter compaixão por

mim mesmo. A meditação salvou a minha vida."

A crise é um convite para o espírito, não apenas na infância, mas

sempre que a vida passa pelo sofrimento. Para muitos mestres, o

portão para o espiritual se abriu quando a perda ou o desespero, o

sofrimento ou a confusão os levou a buscar consolo para o coração,

a buscar uma totalidade escondida. A longa viagem de um

professor começou já na vida adulta, em outro país.

"Eu estava em Hong Kong. Meu casamento ia mal, fazia dois anos

que minha filha mais nova tinha morri do ainda bebê e, no geral, eu

não estava feliz. De volta à América, vi um anúncio de aulas de tai

chi na Stanford Business School. Eu me inscrevi e a prática

começou a acalmar o meu corpo, mas o meu coração continuava

triste e confuso. Eu me separei da minha mulher e experimentei

várias formas de meditação para me acalmar. Então, uma amiga

me apresentou ao seu professor de meditação, que me convidou

para um retiro. A sala era formal e silenciosa e ficamos sentados

por várias horas. Na segunda manhã, eu de repente me vi jogando

uma pá de terra vermelha no túmulo da minha filha. Vieram as

lágrimas e eu soltei um gemido. Aos sussurros, os outros alunos me

mandaram calar a boca, mas o mestre pediu que ficassem quietos e

me abraçou. Eu chorei durante a manhã inteira, cheio de dor. Foi

assim que começou, Agora, trinta anos depois, sou eu que abraço

os que choram."

O encontro com o sofrimento que leva à procura de uma resposta é

uma história universal. O Príncipe Sidarta, o futuro Buda, vivia

isolado em belos palácios, protegido de todos os problemas pelo

pai. Finalmente, quis sair para ver o mundo. Percorrendo o reino de

carruagem, na companhia do cocheiro Channa, viu quatro cenas

que o chocaram profundamente. Primeiro viu um velho curvado e

frágil, andando com dificuldade. Depois viu um homem gravemente

doente, atendido pelos amigos. Depois viu um cadáver. A cada vez,

perguntou ao cocheiro: "Com quem essas coisas acontecem?" E

todas as vezes Channa respondeu: "Com todo mundo, senhor."

Essas visões são chamadas de "Mensageiros Celestiais", pois

assim como despertaram o Buda, elas nos fazem lembrar de buscar

a liberação, de buscar a liberdade espiritual nesta vida.

Você se lembra da primeira vez que viu um cadáver ou uma pessoa

muito doente? Esse primeiro encontro com a doença e a morte

provocou um choque em todo o ser de Sidarta, Ele se perguntou:

"Qual a melhor maneira de viver numa vida assolada pela doença é

pela morte?" O quarto mensageiro veio na forma de um monge que

ele viu na orla da floresta, um eremita que tinha devotado uma vida

de Simplicidade à busca de um fim para as dores do mundo. Ao vê-

lo, o Buda percebeu que ele também devia seguir esse caminho:

enfrentar diretamente as dores da vida para encontrar um caminho

além do alcance dessas dores.

Como um Sidarta moderno, uma professora conta que, viajando

pelas cidades e pelo campo, foi chamada para o seu caminho.

"Depois da faculdade, trabalhei como assistente social na Filadélfia.

Tentei ajudar famílias desesperadas, que viviam sem trabalho, com

montes de filhos, em casas miseráveis e às voltas com o problema

das drogas. Às vezes eu chorava quando chegava em casa. Então,

fui trabalhar com um amigo na América Central - El Salvador e

Guatemala. Lá, os camponeses

pareciam viver num oceano de problemas. Viviam ameaçados por

incursões militares e o que ganhavam com o trabalho só dava para

comprar comida e remédios para os filhos. Foi muito difícil. Quando

voltei, entrei para o convento e lá fiquei durante quatro anos, não

para fugir, mas para me encontrar, para descobrir o que fazer para

ajudar este mundo."

De uma forma ou de outra, os mensageiros celestes vêm para

todos nós, convidando-nos a buscar a totalidade que falta na nossa

vida. Eles não assumem apenas a forma das nossas próprias

dificuldades, mas também das dores do mundo, cujo efeito é

poderoso: um simples noticiário pode abrir o nosso coração. As

enchentes perenes de Bangladesh, a fome e a guerra na África, na

Europa e na Ásia, a crise ecológica no mundo inteiro, o racismo, a

pobreza, a violência das cidades - são esses os mensageiros. Eles

são um chamado. Assim como fizeram com o Buda, eles nos

convidam a despertar.

VOLTA À INOCÊNCIA

Por mais difícil que pareça, as forças que nos atraem para o bosque

têm outro lado. Uma beleza nos chama, uma totalidade que

sabemos que existe. Segundo os sufis, é "a voz do bem-amado".

Nascemos neste mundo com a canção nos ouvidos, mas é pela

ausência dela que em geral a conhecemos.

Vivendo sem uma iluminação do espírito, acabamos sentindo a

saudade profunda de uma criança perdida, uma saudade sutil,

como se soubéssemos que alguma coisa essencial está faltando,

alguma coisa que dança na orla da nossa visão, que está sempre

conosco, como o ar que só é lembrado quando o vento sopra. No

entanto, é esse espírito indefinível que nos ampara, que nos

alimenta o coração, que nos incita a buscar o que importa na vida.

Somos compelidos a voltar à nossa verdadeira natureza e ao nosso

coração, que é sábio e conhecedor.

Essa saudade sagrada pode surgir pela primeira vez na infância,

como aconteceu com o mestre zen de uma grande comunidade na

Europa.

"Quando criança, eu tinha experiências de deslumbramento e de

identidade com o mundo. Eu me identificava com as colinas que

pareciam dançar e com os rios entre elas. Um dia, eu me imaginei

como parte de uma forte tempestade de verão que varreu a cidade.

Aos doze anos, percebi como é incrível o jogo da vida, maior do que

tudo o que eu conhecia. Depois esquecia de tudo e ia jogar futebol

e brincar com os amigos até acontecer de novo outro momento de

ingênuo desabrochar. Tempos depois, na universidade, ouvi um

swami hindu falar sobre o mundo da natureza e do mistério.

Durante a palestra, ele chorou abertamente. Fiquei muito tocado,

como se estivesse ouvindo a voz de Jesus, e comecei a lembrar da

inocente ligação com a minha infância. Quem percebe o quanto

perdeu tem que sair em busca dos momentos em que o espírito

veio à vida pela primeira vez."

Com os anos, a sociedade prática e materialista costuma usurpar o

mistério original da infância. Entramos cedo na escola para

"crescer" e "ser uma pessoa séria": se não abandonamos logo a

inocência infantil, o mundo se encarrega de tirá-Ia de nós. Cem

anos atrás, no curso de engenharia da academia militar de West

Point, o pintor norte-americano James McNeill Whistler sentiu de

perto essa atitude. Certa vez, o professor mandou a classe fazer um

desenho de uma ponte e Whistler desenhou um arco de pedra

belamente detalhado, onde se viam crianças pescando. O tenente

encarregado do curso não gostou: "É um exercício militar. Tire

essas crianças da ponte." Whistler refez o desenho, agora com as

crianças pescando na beira do rio. Zangado, o tenente disse: "Eu

disse para tirar essas crianças do desenho." Assim, a última versão

de Whistler mostra o rio, a ponte e duas pequenas lápides na

margem.

Como disse o escritor existencialista Albert Camus:

A vida de um homem é apenas uma longa viagem pelos desvios da

arte para recapturar aqueles um ou dois momentos em que o seu

coração se abriu pela primeira vez.

Na tradição zen, essa jornada é descrita na história do boi sagrado.

Na Índia antiga, os bois simbolizavam as qualidades maravilhosas

que habitam todos os seres, que nos despertam para a descoberta

da nossa verdadeira natureza. A história zen sobre o pastor e o boi

começa com uma pintura feita em pergaminho que mostra um

homem vagando pela vegetação da montanha. A imagem é

chamada "Procurando o Boi". Atrás do homem há um labirinto de

estradas que se cruzam: são as velhas estradas de ambição e

medo, confusão e perda, exaltação e vergonha. Esse homem nem

se lembra mais dos rios e das paisagens da montanha. Mas no dia

em que lembra, parte em busca dos rastros do boi sagrado. Em seu

coração, ele sabe que, mesmo nas gargantas mais profundas e nas

montanhas mais altas, o boi não está perdido. Na beleza da

floresta, ela pára a fim de descansar. E, olhando para baixo, vê os

primeiros rastros.

Para uma professora de meditação, agora com sessenta anos, a

busca ao boi começou na meia-idade, depois de criar três filhos.

"Quando menina, vivia num ambiente intelectual em que não se

falava devida espiritual, com a exceção talvez do Natal. Meus pais

pareciam achar que estávamos acima dessa coisa de religião. Eu

tinha muita inveja das minhas amigas que iam à igreja. Com sete

anos, comecei a recortar dos cartões de Natal as imagens de Maria,

dos anjos e de Jesus. Eu as escondia no fundo de uma gaveta e fiz

ali um altar secreto. Eu as tirava da gaveta todos os domingos e

realizava o meu próprio serviço religioso.

Então, aos quarenta e três anos, viajando a negócios, tive uma

folga e fui visitar uma catedral famosa. Naquele espaço amplo e

frio, vi a luz do sol brilhando através do vidro colorido e um coral

começou a cantar cânticos gregorianos anunciando o serviço da

tarde. No altar havia uma linda imagem de Maria, igual às dos meus

cartões. Precisei me sentar. Eu me senti outra vez com sete anos,

os olhos cheios de lágrimas e o coração prestes a explodir. Aquela

pobre menina estava espiritualmente faminta. Na semana seguinte,

eu entrei num curso de yoga e depois me inscrevi num retiro para

meditar."

A PERGUNTA SAGRADA

Nas palavras de Joseph Campbell, a primeira visão do rastro do boi

é um chamado para despertar, um puxão interior. Com isso surge

uma questão sagrada, que é diferente para cada um de nós. Alguns

questionam a dor, outros querem saber qual a melhor maneira de

viver, outros se perguntam o que é importante ou qual é o propósito

da vida. Ou como é possível amar, quem somos, como fazer para

alcançar a liberdade. Em meio à correria da vida, alguns se

perguntam: "Por que tanta pressa?"

Alguns dos mestres entrevistados recorreram à filosofia para

responder às suas perguntas; outros tentaram a avenida da poesia

e das artes. Essas questões sagradas são a raiz de muitas poesias.

Yeats escreve: "Retórica é a conversa que você tem com o outro.

Poesia é a conversa consigo mesmo." O chamado para a viagem é

como um poema pela metade, à espera da conclusão. Kabir, o

poeta místico indiano, pergunta: "Você pode me dizer quem

construiu esta nossa casa? E para onde você vai com tanta pressa

antes da morte? Você consegue encontrar o que realmente tem

valor neste mundo?"

Seja qual for a fonte desse questionar profundo, temos que ir para

onde ele conduz. Uma professora budista estava cheia de

perguntas quando terminou o curso de psicologia clínica.

"Terminei o doutoramento em psicologia e comecei a trabalhar

numa unidade para adolescentes e em prevenção do suicídio.

Durante anos acreditei que a psicologia tinha todas as respostas

que eu procurava. Mas quando comecei a trabalhar minha fé se

abalou. Diante do vasto sofrimento sem tréguas que conheci, era

ridículo pensar que a psicologia me daria todas as respostas. Ao

que eu poderia recorrer para compreender esta vida?

Um dia, em 1972, fui visitar uma amiga em Berkeley. Andando na

rua, ela encontrou um estrangeiro e começou a conversar com ele.

Ela me disse depois que aquele homem alegre e brilhante era um

lama tibetano e me convidou para assistir à sua palestra sobre

sonhos. Eu não estava entendendo nada, mas num dado momento

uma mulher fez uma pergunta sobre compaixão e a resposta dele

fez com que compaixão deixasse de ser apenas uma palavra para

mim. A resposta trazia uma manifestação de compaixão que tocou

o meu coração. Fiquei atordoada. Até aquele momento, compaixão

era para mim uma bela palavra presbiteriana sem realidade: uma

bela idéia. Agora era uma força viva. Fiquei muito intrigada,

querendo saber o que havia acontecido. Foi isso que me abriu a

porta, espiritual."

Uma mulher de negócios de Chicago, criada numa família muito

unida, vivia uma vida tradicional. Mas, sentindo que o seu sucesso

era difícil e vazio, ela começou a questionar aquilo tudo.

"Eu era a filha do meio de uma família com cinco filhos - e todos se

amavam. Eu ia à missa todos os dias e freqüentava uma escola

católica só para meninas. Rezava com fervor. Oferecia coisas às

almas do purgatório, fazia vários rituais inofensivos para não

esquecer de Jesus e de meu amor por ele. Então eu me casei.

Eram os tumultuados anos sessenta e meu casamento não durou

muito. Vivendo uma vida maior, mais livre e mais assustadora do

que a que eu conhecia, conclui ao mesmo tempo o curso de

administração de empresas em Chicago e uma terapia de vários

anos. Meus trinta anos foram um inferno... lutando contra uma

depressão profunda e prolongada, sem saber quem eu era e o que

esperar da vida. Eu trabalhava dia e noite e, em dez anos, fui a

primeira mulher a se tomar vice-presidente da companhia, numa

cerimônia no salão de festas do Carlton Hotel. No começo, esse

sucesso me subiu à cabeça - e compensou outras perdas. Mas com

o tempo o encanto acabou e minha vida começou a parecer

extremamente egoísta. Vendo que os ricos ficavam cada vez mais

ricos e que os pobres desciam cada vez mais na escala social, eu

percebi que fazia parte do problema - e nem mesmo estava me

divertindo.

Então, dois dos meus amigos mais próximos morreram. Minha mãe

seria a próxima. Pedi demissão da empresa para cuidar dela.

Ajudar meus pais a superar o choque e a aceitar a situação foi a

tarefa mais gratificante da minha vida. Eu me tomei voluntária num

asilo e comecei a meditar.

Enfrentar pela primeira vez o persistente demônio do vazio foi como

voltar para casa. Parece mentira, mas agora eu me sinto mais eu

quando estou sentada em silêncio, ouvindo. Reencontrei meu

coração depois de todos esses anos e, com a ajuda de meus

amigos, a coragem de segui-Ia."

CHAMADOS DO ALÉM

Às vezes, o desabrochar da mente e do coração é como um

chamado dos deuses, um empurrão que não vem da vida comum. É

como se forças desconhecidas nos obrigassem a entrar na floresta

à procura de Baba Yaga. O poema de Rumi sobre a casa de

hóspedes, citado antes, nos aconselha a agradecer a quem quer

que chegue, "porque cada um foi enviado como um guia do além".

O choque das experiências de quase-morte levou milhares de

norte-americanos a se abrir para o espírito. Em Closer to the Light,

o medico Melvin Morse documenta experiências de quase-morte

vividas por crianças. Uma dessas crianças, ao sair do estado de

coma depois de quase ter se afogado, falou ao médico de uma

figura dourada, um anjo, que a tirou da água escura e a levou por

um túnel onde ela encontrou o avô, que tinha morrido anos antes, e

depois o Pai do Céu. Em todos esses relatos, as crianças contam

que encontraram a "luz que faz todos nós" e a "luz onde tudo é

bom". Dizem também: "Mais nada me dá medo."

Um mestre sufi fala do acidente de motocicleta que sofreu aos

dezenove anos.

"Eu estava em estado crítico, com ossos quebrados e lesões

internas. Quando minha mente clareou, lembrei que, por um

segundo depois do impacto, eu fiquei olhando para baixo, vendo de

cima o meu corpo e a rua. Eu enxergava, mas meu ser era

completamente não-físico. Estava em paz, aliviado. Eu sabia que

tinha uma escolha a fazer: ou voltava para o meu corpo ou me

entregava àquela maravilhosa escuridão. Mas quando olhei para a

cena lá embaixo, nasceu um sentimento muito forte de amor por

aquele corpo e pela vida. O amor e a alegria me fizeram voltar.

Soube depois que fiquei rindo e chorando na ambulância. Senti uma

liberdade que estava além do físico, uma felicidade intensa que

motiva a minha vida espiritual há trinta e cinco anos. Eu amo esta

realidade e segui o seu chamado."

Cada chamado do além nos convida a sair da visão corriqueira que

temos do mundo. Para uma professora de yoga kundalini, o

chamado veio durante os trabalhos de parto.

"Minha respiração foi ficando cada vez mais rápida. Meu corpo

começou a vibrar entre as contrações e se encheu de luz radiante.

Não apenas a pélvis, mas o coração, a cabeça, cada parte de mim

queria se abrir. Eu me senti como o meu bebê e estava me

expandindo, contendo toda a energia do mundo. Mais tarde, meu

médico disse que eu o assustei. Ele tentou me dar um tranqüilizante

para me acalmar. Meus olhos estavam arregalados de espanto.

Mas a partir desse momento eu quis trazer essa energia para a

minha vida."

O mundo cientifico e materialista da nossa cultura tenta esconder

de nós a vasta fonte da vida, mas não pode negá-Ia. Muitas e

muitas vezes ouvimos histórias, grandes e pequenas, do coração,

do espírito, da alma redespertando para uma visão maior da

realidade.

A doença também serve para nos empurrar para a frente. Um lama

ocidental fez este relato:

"Vim para a Califórnia, entrei para uma comunidade e vivia um dia

depois do outro. Então tive hepatite e fui me curar numa cabana

emprestada, nas Montanhas de Santa Cruz. Eu vomitava todas as

noites, estava com a pele toda amarela e me sentia no fim das

minhas forças, físicas e emocionais. Eu tinha abandonado tudo e

estava confuso, sem saber o que fazer.

Então, no meio da noite, comecei a ouvir um canto. Acordei e olhei

através das gotas de chuva na janela ao lado da cama. Vi um

homem gordo sentado lá fora, segurando com a mão o chapéu

preto. Na minha cabeça soavam gongos e cânticos. Ele ficou lá por

muito tempo. Finalmente, cai no sono. Na manhã seguinte, acordei

e olhei no espelho: minha pele estava normal e eu estava melhor.

Depois de várias semanas dentro da cabana, saí para andar no

bosque, sentei-me à beira do córrego e chorei.

Tempos depois, eu me liguei a um grupo hippie de teatro tibetano e

fui com eles para o Nepal. O 16º Karmapa, mestre tibetano, foi a

Katmandu pela primeira vez em treze anos e eu e dois outros

ocidentais fomos vê-lo. Ele disse que estava esperando pela nossa

visita. Fiquei assombrado: era ele o homem que eu tinha visto pela

janela em Santa Cruz! Soube depois que ele pode entrar nos

nossos sonhos e que com isso somos curados das doenças.

Ele gostou da nossa visita e, depois de muitos dias juntos, disse

que numa vida anterior tínhamos sido tibetanos e companheiros

dele. Um dos lamas mais velhos me mostrou uma fotografia do

nosso mosteiro. Verdade ou não, foi como voltar para casa. Agora,

trinta e dois anos depois, nós três nos tomamos lamas."

Os chamados do além assumem milhares de formas. Assim, não

podemos ignorar o efeito das substâncias psicodélicas na vida de

muitos mestres modernos. Andrew Weil, um médico de Harvard que

estudou o uso de substâncias sagradas no mundo inteiro, escreve:

"Na maioria das culturas antigas, como na China, na Índia, na

Grécia e nas Américas, o uso positivo de substâncias psicoativas

faz parte da tradição." Muitos dos que seguiram a jornada espiritual

tiveram as portas da percepção abertas por experiências

psicodélicas. Na verdade, muitos dos atuais professores espirituais

do Ocidente percorreram esse caminho, pelo menos em parte. Há

muito perigo no mau uso dessas substâncias e todos nós

conhecemos histórias trágicas de abuso, mas elas fazem parte da

nossa herança. Dos beatniks de tendência zen dos anos cinqüenta,

aos hippies dos anos sessenta e setenta e aos viajantes xamânicos

dos oitenta, muitos líderes espirituais que conheci falaram do efeito

de experiências com estados mentais alterados.

Um mestre de meditação francês que passou anos na Índia e no

Tibete desconhecia no início o caminho espiritual.

"Eu era um artista jovem e vivia perto da praia em busca dos

prazeres da vida. Então minha namorada me deixou e alguns

amigos que voltavam do México puseram dois comprimidos de LSD

na minha mão, dizendo: 'Coma isso. Você nunca mais será o

mesmo.' De fato: nunca mais fui o mesmo. Tive visões de regiões

espirituais e formas de arte que minha mente jamais conseguiria

imaginar. E então tive um incrível desabrochar. Morri e me dissolvi

no mundo flutuante: agonia, êxtase e depois mais nada. Percebi

que no fim a vida inteira é uma peregrinação espiritual, uma jornada

de volta a essa compreensão. Depois disso, logo que pude fui para

a Índia."

Outro professor, que estudou matemática na Columbia University,

em Nova York, relembra:

"Sempre tive interesse pelas leis da mente. Foi por isso que me

interessei pela matemática. Um dia, meu colega de quarto me deu

uma omelete cheia de cogumelos psicodélicos e, depois de comê-

la, os sons e as cores se intensificaram a um ponto até então

desconhecido. Meu coração se derreteu, se abriu, e eu consegui

sentir o mundo, amá-lo de verdade. Percebi que o amor liga todas

as coisas.

Subi até o Cloisters, o velho mosteiro em Fort Tryon Park, e as

pedras cantavam para mim. Fui visitar Merton. Desde esse dia vivo

num mosteiro trapista. Já faz vinte e um anos."

Uma renomada professora zen começou a busca espiritual com

viagens psicodélicas, mas percebeu que essas experiências

visionárias não bastavam.

Foi então para a Coréia e para o Japão à procura de um mestre

zen. Visitou muitos templos, sem achar o que procurava. De volta a

Kyoto, o lar do Zen, ela teve a idéia de tomar LSD e ir ao mais

sagrado dos templos da cidade.

"Estava a caminho, quando uma força semelhante a uma enorme

mão invisível me deteve. Fiquei assombrada. Era como se os

deuses não quisessem que eu fosse em frente. O que fazer? Ao

lado da estrada, vi os portões de um templo. Fui até lá e entrei. Lá

dentro havia um homenzinho sentado de pernas cruzadas,

pregando num inglês muito simples, dizendo as coisas mais claras

que eu já tinha ouvido sobre a mente e o coração. Era o passo

seguinte, exatamente o que eu procurava. Larguei minhas mochilas

no chão e fiquei lá por doze anos."

Muitos professores perceberam logo que as substâncias

psicodélicas eram um caminho limitado demais, que não

despertavam a mente nem abriam o coração de maneira

sistemática. Como diz um professor budista:

"As substâncias psicodélicas fizeram parte do meu começo, mas eu

sabia que não bastavam. Decidi ir para os Himalaias. Fui convidado

para um puja conduzido por um velho lama tibetano nos arredores

de Dharamsala. Meu amigo e eu andamos uns dois quilômetros

pela floresta de rododendros floridos até uma clareira perto de uma

queda d'água. As montanhas nevadas se erguiam ali perto. Seis ou

oito lamas estavam sentados em volta de uma fogueira, despejando

oferendas de manteiga no fogo, tocando sinos e tambores,

praticando cânticos e mudras. E havia um segundo círculo à volta

deles, formado por melros. Minha mente parou. Senti que estava

vendo uma coisa muito antiga, anterior à separação de homens e

animais. Eu sabia que estava na presença de um grande mistério e

que o meu caminho era trabalhar com os professores que viviam

naquela realidade."

O chamado do além levou muitos professores da atualidade a

aventuras que eles nunca teriam imaginado. Pir Vilayat Khan,

mestre da Ordem Sufi, contou que o seu pai, Hazrat Inayat Khan,

morreu quando ele tinha apenas dez anos. E que, no leito de morte,

o pai lhe disse para procurar um grande sábio na nascente dos rios

Ganges e Jamuna, na Índia.

"Com dezenove anos, fui para a Índia por terra, quase sem dinheiro.

Foi difícil. Numa cidade fui jogado na prisão sob suspeita de ser um

espião paquistanês. Seguindo o Ganges, encontrei, acima da

cidade encantada de Gangotri, um sábio extraordinário numa

caverna de gelo. Esse sábio disse que a nascente dos rios Ganges

e Jamuna era um segredo e me indicou uma geleira além de

Jamnotri, já na encosta dos Himalaias.

Segui a trilha. Já distante dos últimos seres humanos, vi pegadas

na neve. Como eram muito grandes, fiquei com medo, pensando

que fosse um urso. Segui essas pegadas por algumas horas e

finalmente cheguei a uma caverna. Na entrada, sentado como um

rei, estava um fantástico rishi. Ele me fez um sinal e entendi que era

para eu não entrar.

Então sentei na neve de pernas cruzadas, fechei os olhos e,

quando voltei a abrí-los, ele estava sorrindo. Ele sabia que eu falava

inglês, pois disse: 'Por que veio tão longe para ver quem você

deveria ser?' Respondi: 'É maravilhoso me ver em você.' Então ele

disse: 'Você não precisa de um guru.' Respondi: 'Meu guru é o meu

pai. Não estou procurando um guru.' Ele disse: 'Bom, se não está

procurando um guru, entre.'

O rishi disse: 'Há outra caverna ali para você.' Então ele me ensinou

uma prática: olhar para meu coração com o terceiro olho até sentir

ele se abrir como uma lótus. E assim eu fiz. Então ele disse:

'Descanse na luz, não na luz física nem na imagem reflexa. Vá para

a verdadeira luz. É só isso que importa.'

Ele não era o tipo de pessoa para se bater um papo. Estava

totalmente iluminado, repousando em samadhi. E disse: 'Está

chegando o tempo em que não haverá mais rishis vivendo em

cavernas, como eu. Então, os seres iluminados terão que viver no

mundo entre as pessoas.'

Depois de vários dias, ele disse: 'Você já aprendeu o suficiente.'

Percebi que tinha adquirido auto-suficiência, desapego e

perspectiva. Tinha uma maravilhosa sensação de paz e felicidade e

não queria ir embora, mas sabia que precisava voltar para o mundo.

Esse foi um passo enorme da jornada, que vai durar a vida toda."

Parece impossível que não haja uma corrente espiritual, uma

corrente de despertar em potencial que, no momento certo, esteja

esperando por cada um de nós.

O lama Govinda contou a história de sua vida em The Way of the

White Clouds. Posteriormente, acrescentou este relato:

"No começo da minha estada na Índia, um velho peregrino tibetano,

caminhando nos Himalaias, viu as bandeiras de oração de minha

casa na montanha e entrou. Eu estava fora, mas ele deu à mulher

que cuidava da minha casa, por quem eu tinha muita afeição, um

presente para o seu 'filho' e continuou sua caminhada, que duraria

um ano, até os santuários. O presente era um livro que não

consegui ler e que depois de algum tempo guardei no sótão. Depois

de anos estudando o Budismo Tibetano, eu me tomei um lama, mas

não sabia o que fazer. Então, fui convidado para refazer a tradução

original do Livro Tibetano dos Mortos. Infelizmente, não havia

cópias fora do Tibete. Três dias depois, subi ao sótão e encontrei

por acaso o velho livro que o tibetano tinha me dado. Era uma

edição original do Livro Tibetano dos Mortos impressa manualmente

em Lhasa! Entrei em contato com Evans-Wentz e comecei a

trabalhar imediatamente. Tudo o que escrevi depois, o trabalho de

toda a minha vida, surgiu porque tinha recebido 'por acaso' um

presente de um velho peregrino."

A VOLTA PARA CASA

Muitas dessas histórias falam de viagens, mas seu verdadeiro tema

é a descoberta de nosso lar espiritual. O propósito de recontar

essas histórias exóticas e um pouco mágicas não é compará-Ias

com a nossa. Cada um de nós tem a sua história singular, o seu

chamado. Mas esses relatos podem provocar um choque que nos

faça lembrar que estamos todos aqui com uma incumbência.

No momento certo, todos nós vamos despertar. Talvez o despertar

fique escondido no sótão durante anos, enquanto cuidamos dos

filhos ou da carreira profissional. Mas algum dia vai aparecer,

derrubar o portão e dizer: "Pronto ou não, cá estou eu."

Estar vivo é por si só um mistério. Os indícios de nossa verdadeira

natureza estão sempre à nossa volta. Quando a mente se abre, o

corpo se modifica ou o coração é tocado, todos os elementos da

vida espiritual são revelados. Grandes questões, sofrimento

inesperado, inocência original - qualquer uma dessas coisas nos

leva além da rotina cotidiana, "da burocracia do ego", como disse o

professor tibetano Chogyam Trungpa. Cada dia traz seus próprios

chamados para o espírito, alguns pequenos, outros grandes, alguns

surpreendentes, outros comuns.

Um praticante zen descobriu, em 1969, os livros de Alan Watts

sobre Zen. Os livros atiçaram sua curiosidade e seu espírito e o

fizeram lembrar que a vida é mais do que a vida de advogado e pai

de família que ele levava na época. Abriu a lista telefônica na letra Z

e em poucos minutos estava falando com o roshi do San Francisco

Zen Center. Pediu o Programa do centro e, com o apoio do mestre,

começou a praticar. Trinta anos depois, ainda praticando com

vontade, ele diz: "Minha vida se transformou depois daquele

telefonema."

Ainda mais comum é a história contada por outro mestre da

meditação, que há trinta anos era um esportista entusiasmado. O

golfe era o seu esporte favorito. Com o tempo, foi percebendo que o

jogo era em grande parte determinado pela mente e pelo espírito.

"Procurei me aquietar. Fiquei pasmo ao perceber que minha mente

estava agitada e fora de controle. Uma amiga sugeriu que eu fosse

com ela à aula de yoga e meditação. Apesar da dificuldade que tive

para começar a meditar, foi como voltar para casa."

Os indícios estão sempre ai, mas a família e a educação nos

ensinam a fingir que não os vemos. Uma mulher judia, agora rabina,

disse que sua família não dava atenção a ensinamentos espirituais.

As ocasionais visitas ao templo reformista eram motivadas pela

responsabilidade social e pela comida judaica. Então ela teve que ir,

como escreve Rilke, "para uma igreja no Oriente que nosso pai

esqueceu". Durante dez anos, procurou seu caminho entre os

nativos norte-americanos. Então, circunstâncias curiosas a levaram

a Jerusalém, onde conheceu a mulher de um velho hassidim que a

fez lembrar da herança de milhares de anos de espírito dentro de

sua própria tradição.

"Depois de visitar o Muro das Lamentações, a mulher do rabino,

Miriam, me levou ao quarto dos fundos. Nós nos sentamos e

começamos a conversar. Ela me contou que suas avós acendiam

as velas, partiam o pão e criavam os filhos de maneira sagrada. Era

uma vida governada pela Torah: cada ato, um ato sagrado. Era

semelhante à vida dos nativos norte-americanos que eu tanto

amava, mas quando ela pegou umas folhas finas de papel com um

manuscrito kabalista, percebi que eu também fazia parte dessa

antiga linhagem, que a herança do espírito corria pelas minhas

veias e pelo meu coração."

Não é só na floresta que Baba Yaga vive: ela vive perto de nós. Ela

é parte de nossa história familiar. Podemos ir para a Índia ou para

Jerusalém - e algumas histórias mágicas dos mestres nos levam a

acreditar que é assim o começo da vida espiritual. Mas ela começa

também quando cuidamos do jardim, quando encontramos a casa

limpa depois de uma viagem, quando ouvimos a execução inspirada

de uma peça musical, na canção de um poema, no vôo de um

pássaro.

Para mim, crescer na costa oeste significou o prazer de ver vaga-

lumes no verão. Mas minha filha, que nasceu na Califórnia, nunca

tinha visto um vaga-lume. Em nossas viagens, descobrimos que

havia vaga-lumes nas noites tropicais de Bali. Uma noite, esperei

que ela dormisse, puxei o mosquiteiro que envolvia sua cama e sai

para pegar vaga-lumes. Quando voltei, ela ainda dormia. Soltei os

vaga-lumes dentro do mosquiteiro e a acordei de mansinho. Ela

ficou maravilhada com aqueles rastros luminosos na noite, até que

deixamos os vaga-lumes sair. Como é fantástico, como é

improvável que haja belos insetos com luzinhas que piscam - mas

não tão fantástico quanto um coração cheio de amor. Nosso

coração brilha como os vaga-lumes, com a mesma luz do sol e da

lua.

Dentro de nós há uma vontade secreta de lembrar dessa luz, de

sair do tempo, de sentir nosso verdadeiro lugar neste mundo

dançante. É onde começamos e para onde vamos voltar.

Podemos vê-lo hoje mesmo ou esperar até o último dia, mas o

chamado para o mistério se apresenta repetidamente aos nossos

olhos e ao nosso coração - como escreveu Mary Oliver.

Quando a morte vier

como urso faminto no outono;

quando a morte vier e tirar as moedas brilhantes da bolsa

para me comprar, e fechar a bolsa de novo...

Quero passar pela porta, cheia de curiosidade, me perguntando:

como será que é, aquela cabana de escuridão?

E por isso vejo tudo

como uma irmandade...

e para mim cada vida é uma flor, comum

como uma margarida do campo, e tão singular...

e cada corpo um leão de coragem, e uma coisa

preciosa para a terra.

Quando acabar, eu quero dizer: durante toda a minha vida

fui a noiva da perplexidade.

Fui o noivo, tomando o mundo nos braços...

2

OS GUARDIÕES DO CORAÇÃO:

ANJOS DE LUZ, OCEANO DE LÁGRIMAS

A segurança é em grande parte uma superstição. Ela não existe na

natureza, nem os filhos dos seres humanos como um todo a

experimentam. A longo prazo, evitar o perigo não é mais seguro do

que a exposição total. Ou a vida é uma aventura ousada ou não é

nada.

HELEN KELLER

Uma vez chamados para a aventura interior, começamos a seguir

os rastros do boi sagrado na floresta. Examinando a mente ou o

coração, descobrimos que eles contêm todo o nosso mundo.

Externamente, os telescópios revelam a vastidão do espaço, com

sua miríade de galáxias e novas estrelas. Internamente,

começamos a descobrir regiões igualmente vastas na consciência,

de onde surgem todas as coisas. Há quem diga que é preciso ter

cuidado quando resolvemos seguir os rastros do boi sagrado, pois a

jornada espiritual nos faz pôr em dúvida todas as coisas da vida. Há

quem chegue a nos advertir.

Como sempre, o professor tibetano Chogyam Trungpa chegou

atrasado para fazer a palestra. Dirigindo-se à sala lotada, disse que

reembolsaria quem não quisesse ficar. Avisou aos novatos que o

verdadeiro caminho espiritual é árduo, trazendo "uma injúria depois

da outra". Sugeriu que os que tivessem dúvidas nem começassem.

"Se não começaram, é melhor nem começar." Então olhou

fixamente para todos e disse: "Mas se começaram, é melhor

terminar."

UMA PRÁTICA DIGNA

Vivemos mima época desordenada, complicada, perturbada e

exigente, e no entanto a prática espiritual exige atenção constante.

Assim, em quase todas as viagens espirituais, a primeira tarefa é

nos aquietar para ouvir a voz do coração, para ouvir o que está

além das preocupações cotidianas. Seja na prece, na meditação, na

visualização ou no jejum, temos que nos afastar dos nossos papéis

habituais, dos dias atarefados guiados pelo piloto automático.

Temos que descobrir uma forma de nos tomar receptivos e abertos.

Não basta detectar o anseio espiritual. O coração precisa de

inspiração para a renovação, precisa de apoio para encontrar o

perdão, para despertar a liberdade, para se abrir para a graça.

Temos que encontrar uma embarcação, uma prática digna que nos

leve nessa viagem, uma disciplina confiável que nos traga de volta

para o presente e nos abra para o mistério - não para nos

transformar em outra pessoa, nem para nos corrigir, mas para que

possamos ver quem realmente somos.

Para isso, as grandes tradições espirituais oferecem centenas de

meios. Algumas práticas usam a respiração para aquietar a mente e

abrir o coração. Existem disciplinas do corpo baseadas na

meditação que transcendem a avidez do pequeno eu e nos fazem

desabrochar. Existem mantras e rituais de devoção, preces e

rosários, práticas diárias de atenção sagrada; existe a indagação

secreta do coração. Numa comunidade nativa norte-americana, os

jovens jejuavam dias e dias em busca de visões, girando sem parar

uma pedrinha em tomo de uma pedra maior, como a lua em tomo

da terra, até que surgisse a resposta para as suas perguntas.

No início podemos experimentar várias tradições e práticas, mas no

fim temos que escolher uma prática e segui-Ia de todo o coração. O

que importa é a sinceridade que trazemos para o caminho que

escolhemos, a perseverança e a disposição de permanecer com ele

e ver o que se abre dentro de nós.

Uma prática verdadeira nos leva para o silêncio da floresta. Seja

onde for o começo, temos que parar e ouvir. Há uma história da

época em que Bill Moyers era secretário de Imprensa do Presidente

Lyndon Johnson. Num almoço na Casa Branca, Moyers, que tinha

estudado para ser pastor, foi convidado a fazer a oração. "Fale alto,

Bill", pediu Johnson, "não estou ouvindo nada." Moyers respondeu

suavemente: "Eu não estava me dirigindo a você, presidente."

O que esperar quando entramos na floresta para ouvir melhor a

mais silenciosa das falas? Os primeiros passos para dentro da

floresta - seja através do ritual, da prece ou da meditação - trazem

um pouco de perplexidade e suaves revelações. Quando a atenção

sincera começa a separar a realidade do presente da interminável

cascata de pensamentos, o mundo brilha com uma beleza radiante.

Percebemos que a nossa vida é controlada por opiniões e estados

interiores antes despercebidos. Despertamos para padrões de

emoções e hábitos. Começamos a sentir os nossos conflitos da

perspectiva mais ampla da imensa corrente da prática que

escolhemos. Nós nos abrimos mais a cada passo.

Uma história tradicional sueca nos dá uma idéia da fase seguinte da

jornada. Por causa de percalços dos pais, uma jovem princesa

chamada Aris foi prometida em casamento a um terrível dragão.

Quando o rei e a rainha lhe revelaram sua sina, ela ficou

apavorada. Mas, recuperando a razão, saiu para procurar uma

mulher sábia que vivia além do mercado. Essa mulher tinha criado

doze filhos e vinte e nove netos e conhecia os dragões e os

homens.

A mulher sábia disse a Aris que ela tinha de casar com o dragão,

mas que havia a maneira certa de lidar com ele. Deu, então,

instruções para a noite de núpcias. Em especial, recomendou à

princesa que usasse dez vestidos bonitos, um em cima do outro.

Chegou o dia do casamento. Foi oferecida uma festa no castelo e

depois o dragão levou a princesa a seus aposentos. Quando o

dragão se aproximou da noiva, ela o deteve, dizendo que precisava

tirar a roupa do casamento com cuidado antes de oferecer seu

coração a ele. E ele também, acrescentou ela (instruída pela mulher

sábia), tinha que tirar sua roupa. Ele concordou alegremente.

"A cada camada de roupa que eu tirar, você também deve tirar uma

camada." Tirando o primeiro vestido, a princesa observou o dragão

tirar a camada externa de sua armadura de escamas. Doeu, mas

ele já tinha feito isso várias vezes. Mas então a princesa tirou outro

vestido e mais outro. A cada vestido, o dragão se via obrigado a

tirar outra camada de escamas. No quinto vestido, o dragão

começou a chorar lágrimas de dor. Mas a princesa continuou.

A cada camada, a pele do dragão ficava mais macia e sua forma

menos definida. Ele ia ficando cada vez mais leve. Quando a

princesa tirou o décimo vestido, o dragão tirou o último vestígio da

forma de dragão e emergiu como homem, um belo príncipe com

olhos brilhantes como os de uma criança, finalmente livre do antigo

feitiço. A princesa Aris e seu novo marido se entregaram então aos

prazeres da noite de núpcias, realizando assim o último conselho da

sábia mulher que tinha doze filhos e vinte e nove netos.

Como num sonho, todos os personagens dessa história podem ser

encontrados dentro de nós: o dragão cheio de escamas, a princesa

em busca de ajuda, a avó sábia, o rei e a rainha irresponsáveis, o

príncipe escondido e o desconhecido que lançou seu feitiço há

muito tempo. O que essa história revela é que a jornada não é um

simples mergulho na luz. As forças da história humana são tenazes

e poderosas e o caminho para a liberdade interior passa por elas.

Nem mesmo para os mestres é fácil receber a graça, estar aberto

para a iluminação e para a sabedoria. Esse caminho é comparado a

um difícil processo de purificação: limpar, arrancar, deixar para lá.

Suzuki Roshi o chama de "faxina geral da mente". Os dragões que

guardam o caminho são ferozes e é doloroso arrancar as escamas.

Para seguir em frente, precisamos da inspiração dos anjos,

precisamos mergulhar no oceano de lágrimas.

Às vezes o fim do cantinho se revela claramente. É como se o

mundo místico flertasse conosco, nos atraísse para o mundo do

espírito. Um professor de meditação diz o seguinte:

"As pessoas falam de momentos de pico. Pois no fim do meu

primeiro retiro de meditação, tive um dia inteiro de pico. Depois de

uma semana de muita dor, frustração e esforço, no último dia as

cores das árvores ao longo da estrada pareciam faiscar de luz, meu

coração estava aberto como a mãe do mundo. Senti que podia

abraçar a totalidade da vida e tudo o que via repousava num amor

natural. Tudo parecia natural e puro. Sabia que é sempre assim,

embora eu tivesse esquecido. Isso não durou, mas inspirou meu

coração a ir em frente."

É importante guardar essa primeira beleza. Mas é preciso lembrar

também das semanas de dor e esforço que passamos antes, e dos

muitos anos de prática que vão se seguir. Quando procuramos nos

abrir para a iluminação do divino, mesmo sabendo que o príncipe e

a princesa vão conseguir despertar, mesmo entrevendo o

casamento sagrado, não é possível pular para o fim da história e

viver felizes para sempre. Temos que passar pelo medo de casar

com o dragão, pela busca do conselho sábio e pelo longo processo

de abandonar os hábitos dolorosos a que nos agarramos. É um

processo de desapego lento e difícil, que nos faz despertar do

feitiço.

LIVRE DAS ESCAMAS DO CORPO

A maioria das pessoas diz que seus primeiros anos de prática

espiritual serviram para tirar as escamas do dragão. Temos a

experiência direta dessas camadas: no corpo, no coração e na

mente. A primeira camada de escamas a ser retirada, seja através

da prece, da meditação ou da devoção, é a das tensões que

guardamos no corpo. Basta atingir uma certa quietude para que as

áreas de contração se tomem aparentes: a rigidez nos ombros, nas

costas, nos maxilares ou nas pernas. Ao longo da vida, sempre que

nos deparamos com o conflito e o stress, nós nos contraímos da

mesma maneira, construindo o que Wilhelm Reich chama de

"couraça do caráter".

Algumas tradições liberam a tensão física, que se manifesta na

respiração e no corpo, através de técnicas como a yoga, o taí chi ou

o movimento sufi. Quando essas práticas são usadas com

sabedoria, para libertar o corpo e não para dominá-lo, as tensões

começam a diminuir e a sensação de contração dá lugar a uma

nova flexibilidade.

Mas mesmo nas tradições sem práticas físicas, as camadas do

corpo se manifestam e precisam ser administradas. Nas horas de

prece, meditação ou contemplação, aumenta a tensão e a dor. O

que estava contido há anos começa a vir à tona. Diz um estudante:

"No começo, eram os joelhos que doíam, e eu punha a culpa na

meditação. Mas então os ombros e o pescoço ficaram mais

quentes, as costas doloridas nos pontos de mais rigidez. A tensão

no corpo continuou a crescer. Às vezes, era difícil respirar fundo.

Lembranças e velhas mágoas começaram a vir à tona. Era tão

desagradável que eu tentava afastá-Ias. Tentei meditar deitado, no

colchonete mais macio que encontrei, esperando que a dor

sumisse. Mas, para minha surpresa, mesmo deitado, foi só prestar

atenção que lá estava a tensão esperando por mim. Lutei com o

meu corpo por muito tempo, anos. Ele só começou a se soltar

quando aprendi a aceitar até a dor mais profunda e a tratá-Ia com

bondade. Agora isso vai e vem. Que bênção seria enfim aceitar o

meu corpo."

Junto com as tensões do corpo, surgem também camadas de

inquietação e resistência. É como o esforço para se acalmar no

meio de um dia muito agitado. No começo, mal conseguimos ficar

sentados - temos tantas idéias e responsabilidades. Dentro de nós

há uma energia febril. Mas a prática da prece, da meditação ou da

devoção exige entrega constante, perseverança em meio a todas as

formas de inquietação e resistência. Uma professora lembra o início

de sua prática de cem mil prosternações:

"Nos meus primeiros anos de devoção tibetana tradicional e prática

de prosternações, todo o meu esforço era para continuar. Eu

sempre fui muito ocupada. Para mim, nunca foi fácil ficar quieta. Eu

estava sempre abrindo a geladeira, ligando a TV, telefonando para

um amigo. Devia ser solidão e dor oculta no corpo. Comecei a

praticar porque não queria mais fugir de mim mesma. Achei que

essa prática, que me obrigava a me curvar e a me movimentar, era

mais fácil do que ficar sentada, mas as resistências foram as

mesmas. Aprendi que não podia fugir de mim mesma. Quem se

entrega realmente a uma prática, tem que se ater a ela. Há

períodos muito difíceis, mas no fim acaba funcionando."

Felizmente, assim como no caso das peles do dragão, nem tudo é

dor. Há também a leveza que sentimos a cada vestido que é tirado,

como se os anjos trouxessem bênçãos para alternar com as nossas

lágrimas. Há momentos de calma maravilhosa, que abrem os

sentidos e restauram a inocência do coração. Um monge cristão

relata:

"Eu estava meditando no jardim do mosteiro: andava de um lado

para o outro, recitando uma prece e respirando suavemente a cada

passo para me fumar. De repente, voltei a ser um garotinho de dois

anos, dando meus primeiros passos. Foi glorioso. O prazer de pôr o

pé no chão, a grama macia, o cheiro de terra e de rosas. Todas as

plantas e insetos ficaram muito maiores, como quando eu era

pequeno. Tudo ficou tão vivo. Senti que faria qualquer coisa para

manter o contato com esse coração puro."

TROCA DAS PELES DO CORAÇÃO

No empenho para deixar o corpo mais solto e mais aberto, nós nos

deparamos inevitavelmente com a necessidade de abrir e curar o

coração. As escamas do coração aparecem primeiro em forma de

energias inconscientes que provocam contração. Os sufis as

chamam de "Nafs", os budistas e hinduístas falam de obstáculos ao

coração puro, os cristãos lutam com os sete pecados mortais, como

a luxúria e o orgulho. Em todas as jornadas espirituais, temos que

enfrentar diretamente as energias presentes na avidez, na raiva, no

orgulho, no medo, na inquietação e na dúvida - os hábitos que

fecham o coração.

Inicialmente, podemos descobrir como o coração se fecha quando

sucumbimos ao poder de nossa própria avidez. A mente carente ou

a miséria em nós querem mais do que temos agora. E tentamos

usar a experiência externa para suprir a necessidade espiritual.

Depois de trinta anos de prática, uma professora recorda:

"Meus pais eram do tipo espiritualista, mas nos anos sessenta voltei

minha energia para o impulso sexual e para o rock and roll. Eu não

queria me aproximar de Deus sem passar pelos degraus de baixo.

Durante anos vi os homens e a sexualidade como o caminho para a

felicidade.

Eu me tomei uma atriz de sucesso razoável. Finalmente, tive a

minha dose de sexo e percebi que essa não era a resposta. Eu

ainda queria alguma coisa. Minha mãe sempre me convidava para ir

a um retiro de yoga, mas eu nunca quis ir porque tinha medo que

ela prejudicasse meu estilo sexual. Um dia eu fui, e foi exatamente

isso que tive que resolver. Eu tive que enfrentar a carência que me

impulsionava. Foi esse meu primeiro passo na yoga e na

meditação."

Para soltar as peles de dragão da avidez e da carência, temos

antes que saber como elas se prendem ao corpo e as histórias que

contam na mente. Temos que localizar e dar nome a nossos

anseios. E temos que descobrir que é possível libertar o coração de

seu domínio.

No pólo oposto ao desejo e à mente carente, descobrimos a

couraça escameada que afasta o mundo: a raiva e o julgamento

que rejeitam as coisas como elas são. Em geral, quem começa a

praticar uma disciplina qualquer fica chocado pelo tanto de

preconceito, aversão e ódio que descobre em si mesmo. Sempre

que brigamos com o mundo à nossa volta e o culpamos, rejeitamos

e excluímos partes de nós mesmos. Aleksandr Solzhenitsyn, cujos

livros sobre a Rússia estalinista nos despertaram para o sofrimento

de milhões de pessoas, escreve:

Se ao menos lá houvesse pessoas más praticando insidiosamente

o mal, bastaria separá-Ias das outras e destruí-Ias. Mas a linha que

divide o bem do mal passa pelo coração de todo ser humano e

quem, entre nós, está disposto a destruir uma parte do próprio

coração?

Como o dragão, antes de nos libertar para o amor, temos que

conhecer nossas escamas e entrar em acordo com nossas vozes

sentenciosas. Encontraremos camadas de raiva e ódio causadas

pela traição e pela perda, mil aversões e resistências às coisas

como elas são. A atenção da meditação começa a desemaranhar o

novelo de julgamentos. Descobrimos um comentário critico

constante, que tudo avalia, que nos mantém em luta com a vida

como ela é. Diz um professor budista:

"Eu não sabia o quanto eu era sentencioso até começar a meditar.

Havia um julgamento e uma opinião sobre cada coisinha, dentro e

fora de mim - tudo era alto, macio, pouco, muito. Finalmente, meu

professor me fez contá-los - centenas de julgamentos em uma hora.

Comecei a rir quando percebi que isso era apenas um hábito que

eu não precisava levar tão a sério. Mas no ano seguinte minha

prática mudou e eu cheguei à raiva. Foi difícil. Há muito tempo eu

usava todos aqueles julgamentos para ser um bom menino. Eu não

tinha idéia do tanto de raiva e dor que eles escondiam. Durante

muitos meses a raiva e a dor se revelaram em sentimentos,

imagens, pensamentos e no meu corpo."

Uma freira da Congregação das Ursulinas fala de um processo

semelhante.

"Tivemos uma fase de grande inocência e inspiração logo que

começamos o noviciado. Mas quando fomos chegando aos trinta

anos, instalou-se uma sensação de traição. Tínhamos passado a

juventude trabalhando, rezando e tentando ser santas - e perdido

muita coisa. Quando conseguimos aceitar com honestidade quem

éramos na verdade, ficamos com muita raiva, uma raiva muito

anterior ao noviciado."

A raiva, como a sofreguidão do desejo ou a tirania do julgamento, é

uma pele que dá para soltar. Na história, a princesa e o dragão

tiveram que se revelar, camada por camada, e com isso os dois se

tomaram mais disponíveis, mais suaves. Quando tiramos as

primeiras escamas e vestidos, começamos a perceber o que está

sob a contração provocada pela raiva e pelo preconceito.

Em geral, descobrimos uma nova camada de mágoa, solidão, medo

e dor.

Nesse ponto, é essencial ter um coração temo. É o lugar da

coragem - a coragem para envolver em amor a dor mais dura, as

mais profundas mágoas e os maiores medos. É onde a confiança e

a entrega se alimentam. O despertar desse espírito de perdão e

bondade é como a visita dos anjos. Nasce a energia para perdoar,

uma nova ternura e receptividade do coração.

Meu professor Ajahn Chah diz o seguinte:

Se você não chorou profundamente, ainda não começou a meditar.

A dor e a mágoa que surgem quando começamos a desabrochar

são ao mesmo tempo pessoais e universais. Muitos professores

dizem que não esperavam tal dor, mas o coração tem a própria

lógica. Um respeitado professor zen relata:

"Depois de vários anos flertando com o Zen, tinha chegado o

momento de me comprometer. Eu me inscrevi para o treinamento

de inverno: três meses seguidos de treinamento intensivo. Como eu

já conseguia ficar calmo e confortável quando meditava, esperava

que essa clareza zen só crescesse. Mas não foi assim. Passei todo

o período de prática chorando e chorei metade do inverno seguinte.

Eu me lamentei pelo conflito e pela insegurança de antes, pelos

relacionamentos perdidos, por ter usado mal meu corpo, pelas

mágoas, pela morte de meu pai. Só então, depois de dois anos,

minha meditação se abriu para um silêncio profundo e imenso."

A pele de dragão das lágrimas não derramadas cobre a tristeza e o

anseio que nos liga ao domínio da tristeza. Às vezes a tristeza

resulta de um só fato: a morte dos pais, uma história familiar de

alcoolismo e maus-tratos, uma perda importante. Outras vezes é o

acúmulo de milhares de momentos em que nos faltou

reconhecimento e apoio.

Num poema chamado "De Volta a Maio de 1937", Sharion Olds fala

da necessidade de reconhecer as tristezas que nos fizeram ser a

pessoa que somos agora. Ela vê os pais como os garotos inocentes

que eram quando se conheceram.

Eu os vejo de pé nos portões formais do colégio,

Vejo meu pai saindo

Pelo arco de arenito ocre...

Vejo minha mãe com alguns livros apoiados no quadril...

Eles estão prestes a se formar, prestes a se casar...

Quero ir até eles e dizer: Parem,

não façam isso - ela é a mulher errada,

ele é o homem errado, vocês vão fazer coisas

que nem imaginam agora,

vocês vão fazer coisas ruins para os filhos...

mas eu não vou. Quero viver. Eu

os pego como bonequinhos de papel,

homem e mulher, e bato um no outro

como se tirasse faíscas

de lascas de pedra. Eu digo:

Façam, seja o que for, e

eu vou falar sobre isso.

Uma prática espiritual digna reconhece as perdas que sofremos,

conta a nossa história e nos arranca lágrimas para nos libertar do

passado. O poeta sufi Ghalib convida as "nuvens da tempestade a

se desfazer totalmente em lágrimas", para que o céu volte a ficar

vasto e limpo.

Mesmo na dor, na raiva ou na inquietação, percebemos que grande

parte do trabalho com as limitações do coração está relacionado

aos nossos "negócios inacabados". Nós nos deparamos com as

forças e situações que nos fecharam para nós mesmos e para os

outros. O que é conflitante, não pranteado, inacabado, se revela

logo que nos tornamos atentos. É nesse ponto que temos que

aprender a trabalhar respeitosamente com as forças profundas que

governam a vida humana. São as camadas dessas energias que

criam a contração e o sofrimento. Soltá-Ias traz o despertar e a

liberação.

AS CAMADAS DA MENTE

Assim como no caso do corpo e do coração, quando examinamos a

mente também nos deparamos com a contração. O mestre de

meditação Ajahn Buddhadasa diz que o mundo moderno está

"perdido em pensamentos". A mente moderna retém camadas de

dúvida, ambição, medo e convicção, mil histórias e auto-imagens,

passadas e futuras, que formam nossa estrutura mental defensiva.

Vemos a freqüência com que a mente descarta o momento

presente para chegar a outro lugar, tornar-se outra. Na prática da

prece, da meditação ou do serviço altruísta, enfrentamos os

pensamentos repetitivos e os pontos de vista limitantes que criam a

estreita noção de eu. Nosso cálice pensante está cheio; nele não

cabe mais nada.

"Nos anos de noviciado, nós nos entregávamos a horas de práticas

em grupo, aos cânticos, ao ciclo diário de prece coletiva, ao estudo

das escrituras, à devoção e aos serviços. Nesses primeiros meses,

perdida em fantasias ou histórias, eu estava sempre em outro lugar.

Ficava imaginando que era uma grande santa, que provava para

minha família que estava certa, que voltava para os que tinham me

desprezado. Ou senão eu me preocupava com o passado e ficava

dizendo para mim mesma ou para as outras como poderia ou

deveria ter sido. A madre superiora me repreendia, dizendo que eu

me perdia em histórias em vez de estar onde estava - que assim

acabaria passando em branco pelo noviciado."

Emaranhados em opiniões e pensamentos sobre nós mesmos,

sobre os outros e sobre o mundo, não conseguimos estar onde

estamos. É como o pintor zen que pintou na parede de sua casa um

retrato em tamanho natural de um tigre. Dias depois, chegou em

casa perdido em pensamentos e levou um susto ao ver o tigre,

esquecendo que era criação sua.

Quando nos propomos a aquietar a mente através da meditação ou

da prece, percebemos o quanto nossa vida é governada por essas

histórias inconscientes. Don Juan, o guia xamânico de Carlos

Castaneda, diz isso da seguinte maneira:

Você fala demais com você mesmo. Nisso você não é o único. Todo

mundo faz isso. Sustentamos o nosso mundo com o diálogo interior.

Um homem ou mulher de conhecimento tem consciência de que o

mundo vai mudar totalmente logo que parar de conversar consigo

mesmo.

Começamos a conhecer os temas do diálogo interior: ambição ou

desmerecimento, incerteza ou esperança, ódio de si mesmo ou

auto-aperfeiçoamento. As histórias refletem nosso condicionamento

pessoal e cultural. Uma vez, um grupo de psicólogos norte-

americanos teve um encontro com o Dalai Lama, que lhes

perguntou quais as dificuldades mais comuns entre os estudantes

ocidentais do Budismo. Uma das dificuldades mais citadas foi ódio

de si mesmo. A reação do Dalai Lama foi de incredulidade, pois o

ódio de si mesmo é desconhecido na cultura tibetana. Ele deu uma

volta na sala, perguntando a todos: "Você já teve ódio de si

mesmo?" Quase todos responderam que sim.

As opiniões fixas que temos sobre nós mesmos estão no centro das

histórias que contamos. É como se atuássemos num filme fazendo

o papel do deprimido, do bonito, do tolerante, do palhaço, da vítima

zangada, daquele de quem ninguém mais vai se aproveitar. Esses

pensamentos e pressupostos são tão poderosos que usamos

repetidamente sua energia. Esses padrões de pensamento,

juntamente com as couraças no corpo e no coração, criam uma

noção limitada de eu. Às vezes são chamados "corpo de medo".

Quando vivemos do corpo de medo, temos uma vida que se limita

ao hábito e à reação.

Uma prática digna desmascara essas histórias e seus pontos de

vista limitantes, além de abrir o corpo e o coração. Começamos a

reconhecer padrões nessas contrações e a perceber que elas não

são a realidade fundamental. Aprendemos a sair da velha pele, da

noção estreita de eu, para a realidade do presente. Aprendemos a

deixar o corpo mais à vontade, o coração mais temo e a nos livrar

das velhas histórias da mente. É o momento em que vemos o que

são na verdade as peles de dragão - um feitiço kármico que não é

mais necessário - e em que o príncipe e a princesa revelam seu ser

temo e vulnerável.

Inocentes e abertos, voltamos à Simplicidade da experiência direta.

Quando saímos da corrente de pensamentos, deixando para lá o

"como foi", o "como deveria ter sido" e o "como deveríamos ser",

entramos no presente eterno.

Mas até mesmo essa troca de pele, essa libertação do corpo, do

coração e da mente, é apenas uma preparação para uma jornada

mais profunda. O príncipe e a princesa se viram. Agora, juntos,

terão de enfrentar a vida e a morte diante deles.

3

OS FOGOS DA INICIAÇÃO

Quase morrer é uma coisa que recomendo a todo mundo, pois

desenvolve caráter. Ganhamos uma perspectiva muito mais clara

do que é importante e do que não é, do valor e da beleza da vida.

ASTRÔNOMO CARL SAGAN,

QUANDO SOBREVIVEU A UMA DOENÇA QUASE FATAL

Vá em frente, acenda suas velas, queime seu incenso, toque seus

sinos e clame a Deus, mas cuidado, porque Deus virá e o porá na

Sua bigorna, acenderá a forja e baterá e baterá até transformar o

latão em ouro puro.

SANT KESHAVADAS

É hora de entrar mais fundo na floresta. O que descrevemos até

agora é uma preparação. Começamos a liberar o que há muito

tempo está retido no corpo; a nos abrir conscientemente para as

emoções profundas que, em grande parte, motivam nossa

experiência; a trabalhar com as crenças e padrões repetitivos da

mente.

Por meio desse trabalho, chegamos a uma clareira e nos vemos

frente a frente com o boi sagrado, ouvindo sua respiração calma e

regular. Segundo a doutrina zen, temos que domar o poderoso boi

para depois soltá-lo juntamente com o eu. Só então vamos entrar

em harmonia unificada com o mundo. Liberar as energias da vida

exige um processo radical de transformação, que muitas vezes é

acompanhado de um duro ritual de iniciação.

Na prática espiritual, a iniciação não é uma simples cerimônia - é

uma tarefa difícil, ao longo da qual o coração amadurece. A

passagem pelas provações do peno do de iniciação modifica a

visão que temos de nós mesmos e do mundo. Conseguimos assim

despertar em nós a autoridade espiritual e o saber interior, uma

confiança que vai nos amparar nas dificuldades e diante da morte.

A iniciação impõe a nós uma mudança de identidade que favorece a

transcendência da noção estreita de eu, a liberação do "corpo de

medo" e o despertar da sabedoria, do amor e do destemor eternos.

O processo transformador da iniciação nem sempre é externamente

óbvio. Para alguns é como uma lenta espiral, um refazer constante

e repetitivo do ser interior. Aos poucos, o coração aprofunda o

saber, a compaixão e a confiança, graças a centenas de milhares

de práticas repetidas e da sinceridade de uma disciplina espiritual

regular. O Buda comparou esse processo ao fundo do oceano, que

desce pouco a pouco até as profundezas.

Uma vez, os alunos do professor Dainan Katagiri Roshi pediram

que ele falasse sobre a fé e o calor que irradiava: "É isso que

queremos aprender com você. Como é que se aprende?" O mestre

respondeu: "Quem me vê hoje não vê os anos que passei com o

meu professor!" Ele contou que praticou ano após ano, vivendo com

simplicidade, ouvindo os mesmos ensinamentos muitas e muitas

vezes, meditando todas as manhãs, cumprindo os rituais do templo.

Esse é o lento caminho da iniciação: assumir vezes sem fim uma

atitude de atenção e respeito, pôr-se a assar no fomo até estar

totalmente cozido, amadurecido, transformado.

Mas é mais comum a iniciação trazer uma mudança intensa,

radical, rápida. Essa transformação costuma assumir a forma

arquetípica do rito de passagem. Um rito de passagem é como

passar por um desfiladeiro tão estreito que não nos permite levar

bagagem - um renascimento que nos obriga a abandonar a antiga

vida. O risco é grande, às vezes a morte passa raspando, mas só

assim adquirimos coragem e encontramos aquilo dentro de nós que

está além da morte.

Às vezes a iniciação acontece espontaneamente. Perdas, crises ou

doenças, quando administradas com sabedoria, fazem o coração

crescer. Mas às vezes é preciso criar deliberadamente uma

iniciação. Seja como for, a necessidade de iniciação é universal, e

para a juventude moderna essa necessidade é desesperada. Como

não há nada que se assemelhe a uma iniciação espiritual ao mundo

dos homens e das mulheres, os jovens buscam a iniciação na

estrada ou na rua, em carros velozes, nas drogas, no sexo

perigoso, nas armas. Por mais inquietante que seja, esse

comportamento tem sua raiz numa verdade fundamental: a

necessidade de crescer. Uma das motivações para se buscar a

iniciação, e uma de suas ferramentas, é a consciência cada vez

maior da morte. Um lama tibetano norte-americano me contou:

"Meus pais morreram quando eu tinha só dezessete ou dezoito

anos. A realidade da morte provocou um choque enorme,

inesperado, e levei muito tempo para superar a dor. Sem meus

pais, senti que não havia mais nada entre mim e a morte. Essa

constatação me empurrou para a prática espiritual. É espantoso que

seja tão difícil perceber a iminência da morte."

Don Juan, o xamã de Carlos Castaneda, recomenda fazer da morte

um conselheiro:

A morte é a nossa eterna companheira. Ela está sempre à nossa

esquerda, à distância de um braço. Ela o observa sempre e vai

continuar a observá-lo até o dia que bater no seu ombro.

Quando estiver impaciente... volte-se para a esquerda e peça o

conselho da morte. Muita mesquinharia será deixada de lado se a

morte lhe fizer um gesto, se você tiver um vislumbre dela ou

simplesmente perceber que sua companheira está ali a observá-lo.

Quem se entrega ao caminho espiritual tem que enfrentar o medo

da morte ainda em vida. Na prática mística cristã, isso é "reviver o

mistério da crucificação e da ressurreição". Na meditação budista, é

"aprender a morrer antes da morte". Como a morte vai nos levar de

qualquer forma, por que passar a vida com medo? Por que não

morrer para o jeito antigo e ficar livre para viver?

NACHIKETA E O SENHOR DA MORTE

Há uma antiga história indiana que fala de um jovem, Nachiketa,

que ficou frente a frente com a morte. Com a morte de vários

amigos, Nachiketa sentiu a brevidade da vida. Percebeu que,

divorciadas da compreensão espiritual, as ocupações mundanas

são superficiais. Filho de um rico mercador, ele sabia que a

felicidade do coração não vem das propriedades que se tem. Isso

explica o que ele fez quando o pai, instigado pelos sacerdotes

Brahim da comunidade, resolveu fazer uma grande doação ao

templo para garantir um bom renascer na outra vida. Essa doação

seria feita no centro da cidade, na presença de todos. A idéia de

comercializar virtude e mérito publicamente horrorizou Nachiketa.

O dia chegou. Em seu discurso, o pai disse: "Dou o meu gado, o

meu ouro e tudo o que tenho de valor aos sacerdotes do templo."

Mas Nachiketa observou: "Tudo o que tem de valor? E eu, seu

filho?" Publicamente humilhado e ofendido por essas palavras, o pai

de Nachiketa respondeu zangado: "Vou dá-lo também. Vou dá-Ia à

Morte!" Os olhos de Nachiketa brilharam e ele respondeu: "Aceito."

E foi embora.

Nachiketa chegou a um ponto remoto da floresta e ficou esperando

que a Morte se revelasse. Por três dias e três noites ficou sentado

ali, concentrado e imóvel, determinado a encontrar o boi branco e

olhá-lo nos olhos, determinado a enfrentar a Morte em sua busca

espiritual. Concentrado apesar da fome, da dor e da exaustão,

Nachiketa chegou finalmente à terra de Yama, o Rei da Morte,

também conhecido como "Guardião das Contas". Lá, os três

ajudantes da Morte - a pestilência, a fome e a guerra - lhe disseram

que o Senhor Yama estava fora. "Ele foi receber os rendimentos."

Nachiketa respondeu: "Está bem. Eu espero."

Três dias depois, quando o Senhor da Morte voltou, seus ajudantes

lhe disseram que um jovem estranho tinha vindo procurá-lo. Quem

ouve falar da Morte sempre corre na outra direção, mas esse jovem

estava esperando havia três dias. O Senhor Yama cumprimentou

Nachiketa e lhe pediu desculpas por tê-lo feito esperar. "Bem-vindo

ao meu reino. Vejo que é um homem dedicado à jornada. E eu o

deixei esperando. Vou compensá-Io pelos três dias de espera com

uma oferta. Você pode escolher três graças para a sua jornada."

Enquanto viajava e esperava, Nachiketa tinha entrado no limiar

entre os mundos, onde a verdade é revelada. Agora, três graças lhe

eram oferecidas. Em seu luminoso estado mental, Nachiketa pediu

perdão para si mesmo e para tudo com que tinha tido contato. "Que

meu pai me olhe com a alegria que sentiu no dia em que eu nasci."

Nachiketa sabia que para continuar a jornada tinha que abrir mão

do passado e se reconciliar com o que havia de incompleto no seu

coração.

Ao pedir perdão para si mesmo, Nachiketa perdoou o pai, porque o

perdão tem sempre mão dupla. Perdoar não é uma simples questão

de vontade e nem sempre é fácil. Às vezes, para perdoar, temos

que nos submeter a um longo processo de indignidade, mágoa e

pesar. Perdoar não significa relevar as injustiças do passado.

Podemos jurar: "Nunca mais vou deixar que isso aconteça." Mas no

fim basta deixar para lá a dor e o ódio do passado. Graças a essa

bondade que tudo suaviza, nós nos livramos da repetição cega, de

levar a dor do passado para o futuro. Perdoar não é tirar a outra

pessoa do coração: Nachiketa sabia que, se tirasse o pai do

coração, não poderia continuar o caminho com todo o seu ser.

O beneficio trazido pelo perdão é a reunião com a vida, que deixou

o coração de Nachiketa aberto e claro. Olhando-o de frente, o

Senhor Yama observou: "Seu primeiro pedido foi sábio, Nachiketa.

Qual é o segundo? Fale!" Depois de um momento de reflexão,

Nachiketa falou: "Peço a graça do fogo interior."

Nachiketa sabia que para ter sucesso na jornada espiritual

precisava de ardor e coragem para seguir o caminho com todo o

seu ser. Assim, pediu força para se entregar à busca: fogo interior é

energia sincera, paixão espiritual, Shakti, intensidade de ser.

Esse fogo, ou plenitude, não deve ser confundido com a ambição,

avidez ou sofreguidão na realização de uma meta. Não é um

esforço para nos melhorar ou para obter alguma coisa. Quando

pediu essa intensidade, Nachiketa não pretendia chegar ao fim de

uma jornada imaginada, mas estar totalmente onde estava.

Precisamos da energia de nossa presença total para encontrar

edomar o boi sagrado. O Senhor Yama elogiou outra vez a

sabedoria de Nachiketa, abençoando-o com a força interior.

Livre das restrições de antigos conflitos e cheio de perseverança e

energia, Nachiketa tinha agora quase tudo que é preciso para

passar pela iniciação. Finalmente, o Senhor da Morte lhe disse para

fazer o último pedido. Depois de refletir, Nachiketa olhou para a

Morte e disse: "Peço o que é imortal." Surpresa, a Morte lembrou ao

audacioso jovem que esse pedido era o último e que ele podia pedir

qualquer coisa. E dito isso conjurou visões do que Nachiketa

poderia escolher: um harém de belas donzelas para lhe fazer

companhia na jornada, um carro de guerra dourado puxado pelos

cavalos mais velozes do mundo, um palácio onde Nachiketa

reinaria.

Nachiketa viu tudo isso e muito mais. "Por que não escolher uma

dessas coisas?", perguntou-lhe a Morte. Mas Nachiketa era um

jovem determinado, que não se deixava convencer com facilidade.

Quem já viu o boi branco sabe que um circo de moscas é só um

circo de moscas. Assim, Nachiketa perguntou: "Essas coisas que

me mostrou não vão voltar, mais cedo ou mais tarde, para seu

reino, Senhor Yama?" O Senhor da Morte sorriu diante da

sabedoria de Nachiketa e respondeu: "Sim, é verdade." "Então eu

quero conhecer o que é imortal."

Diante disso, o Senhor Yama disse: "Vou lhe conceder sua graça."

Então deu a Nachiketa um presente simples mas extraordinário: um

espelho. "Se você quer descobrir o segredo da imortalidade,

Nachiketa, eu só posso lhe dizer para se olhar de frente e se fazer

repetidas vezes a maior das perguntas humanas: 'Quem sou eu?'

Olhe além do seu corpo e dos seus pensamentos, Nachiketa.

Assim, vai encontrar o que procura."

Seja na iniciação, seja na meditação, nós também temos que

enfrentar o Senhor Yama. Temos que perguntar quem é que nasce

e morre. Ao olhar no espelho sagrado, Nachiketa penetrou no

profundo questionamento espiritual que leva ao que é imortal.

Quando ele conseguiu abrir mão de tudo a que se agarrava, surgiu

um coração puro e eterno - Nachiketa estava livre.

AS LIÇÕES DE NACHIKETA:

PRIMEIRO, DESENCANTO

Cada passo da iniciação de Nachiketa se reflete na jornada dos

buscadores modernos. Os temas eternos são os mesmos: a

necessidade de encarar a morte, de perdoar, de encontrar energia e

coragem, de buscar a verdade. Essas tarefas repercutem no

coração de todos os que seguem o caminho do despertar.

Como em muitos casos citados neste livro, Nachiketa foi chamado à

iniciação por um terrível desencanto que o levou a rejeitar

completamente os valores superficiais deste mundo. Da mesma

forma, o desencanto com os pais, com a comunidade e até mesmo

com a religião pode favorecer nossa jornada. Joseph Campbell

costumava dizer, com desagrado, que a religião organizada oferece

apenas "inoculação contra o místico", rituais vazios que solapam o

impulso espiritual com uma versão de segunda mão. Há muitas

maneiras de se perder o coração para deuses falsos.

Às vezes é um choque ou um golpe, como a morte dos amigos de

Nachiketa ou a hipocrisia dos sacerdotes que prometeram a seu pai

a salvação em troca de dinheiro, que nos faz retomar ao coração.

As dificuldades têm valor porque intensificam a coragem, dão vida

ao nosso propósito mais profundo, redespertam a tarefa da alma na

terra. O doloroso ruir do nosso mundo é muitas vezes a preciosa

oportunidade que o coração precisava para aprender a ser

verdadeiro consigo mesmo.

Meu mestre de meditação costumava nos perguntar em relação à

vida espiritual: "Quais foram as lições mais valiosas, os bons

momentos ou as dificuldades?" O próprio sofrimento, trazido pelo

desencanto, nos dá coragem para questionar, contra todas as

probabilidades. Como Nachiketa, temos que abandonar a

segurança e o conforto para depositar nossa confiança no

questionamento. Vem então a necessidade de falar a verdade.

Kabir, o místico indiano, conhecia essa busca. "É a intensidade da

necessidade que faz tudo", disse ele.

FRENTE A FRENTE COM O DESCONHECIDO

Em muitas histórias de iniciação, a busca pelo que está além da

morte é representada pela imagem do herói atravessando a grande

água, escalando a montanha impossível, enfrentando dragões,

combatendo os exércitos de Mara, que personifica as forças do mal.

Em cada uma dessas situações, arriscamos a vida que

conhecemos para descobrir algo novo.

Elas são terríveis porque o território desconhecido da iniciação se

abre diante de nós só quando temos a coragem de voltar todo o

nosso ser em sua direção. Ao enfrentar de boa vontade o

desconhecido, depositamos confiança num propósito maior da vida.

Temos então que ir para onde a estrada nos levar, a despeito da

escuridão e do medo no coração.

Para enfrentar com firmeza o desconhecido, precisamos da ajuda

da prática ou do ritual a que nos entregamos. Para Nachiketa, a

ajuda veio através da meditação, da imobilidade de três dias e três

noites. Para outros, vem através da prece incessante em meio à

crise ou de um ritual tradicional de iniciação conduzido pelos mais

velhos. A intensidade da necessidade e a firmeza com que nos

voltamos para o desconhecido é o que nos leva ao reino do Senhor

Yama.

O encontro com a morte pode assumir muitas formas. Assim como

a floresta remota de Nachiketa, os mosteiros da Tailândia, onde fiz

meu treinamento para ser monge budista, ficam numa região cheia

de animais selvagens, cavernas escuras e fantasmas. Como parte

do treinamento, passei noites sozinho e meditei no cemitério da

floresta, junto aos corpos que estavam sendo cremados, até o fogo

se apagar de madrugada.

No curso natural da vida cotidiana, uma doença ou um parto podem

nos pôr frente a frente com a morte, modificando a vida que vem

depois. Como a provação de Nachiketa, os trabalhos de parto de

minha mulher levaram três dias e três noites, até que nossa filha

Caroline nasceu. Respiramos juntos, ficamos de mãos dadas,

esperamos. A cada hora que passava ela ia ficando mais exausta,

até que os últimos estágios do trabalho de parto a levaram para o

mundo da maternidade.

Na iniciação, nós nos damos à luz. Uma freira tibetana de origem

inglesa, que viveu doze anos nas cavernas dos Himalaias, fala de

uma ocasião em que recorreu à pratica espiritual para salvar a vida,

quando uma enorme avalanche cobriu a caverna e o vale, matando

muitas pessoas. Ela cavou um buraco para respirar e ficou

meditando na escuridão do inverno, durante muitos dias e muitas

noites.

Cada iniciação oferece um teste em que somos convidados a

abandonar a antiga visão e nos abrir para uma visão mais ampla.

Às vezes, a iniciação é individual e privada, mas às vezes exige um

ritual coletivo de transformação, um ato público de coragem. No

movimento pró-democracia da Tailândia, durante os anos setenta,

os estudantes e a polícia militar travavam batalhas de vários dias

nas ruas de Bangkok, deixando centenas de estudantes mortos ou

feridos. Numa manhã, depois de uma luta sangrenta, um mestre de

meditação de Bangkok reuniu seus monges e freiras e lhes disse

que era hora de testar seu treinamento. E seguiu para o meio do

conflito, à frente de uma fila indiana formada por umas cem figuras

de hábito, com tigelas de esmolar em punho. Quando entraram na

terra de ninguém entre as barricadas, as armas baixaram, a tensão

se aliviou. Monges e freiras a favor da paz, eles lembraram a todos

os presentes que havia outras possibilidades. Naquela manhã,

começou o processo gradual de reconciliação.

PERDÃO E RECONCILIAÇÃO

A iniciação de Nachiketa exigiu também a graça da reconciliação e

do perdão. Enquanto sua jornada era uma briga com o pai, ele se

desviava internamente de sua verdadeira tarefa: enfrentar o medo e

despertar o coração.

Na vida espiritual, o perdão é ao mesmo tempo preparação e fim,

um tema a que voltamos muitas vezes. É difícil: temos que enfrentar

a dor e a mágoa da traição e do desapontamento, e descobrir o

movimento do coração que, apesar de tudo, se dispõe a perdoar.

Às vezes, durante a viagem, vamos sentir, como Nachiketa, que

nosso coração está fechado e que somos reféns do passado.

Embora nos faça clamar por justiça, o perdão é uma atitude

generosa, de deixar para lá, pelo nosso bem e pelo bem dos outros.

É como o encontro de dois antigos prisioneiros de guerra. Um deles

perguntou: "Você perdoou seus captores?" O outro respondeu:

"Não, nunca." O primeiro ex-prisioneiro olhou com bondade para

seu amigo e perguntou: "Mas então você continua prisioneiro deles,

não é?"

A iniciação de professores espirituais exige o perdão - para os

outros, para eles mesmos, para a própria vida. Sem a sabedoria do

perdão, carregamos o fardo do passado vida a fora.

Uma enfermeira com muita experiência em partos, conta esta

história:

"Apesar da dor, a maioria dos partos corre bem e é grande a alegria

no momento em que os pais seguram o bebê. Mas, quando há uma

tragédia, quando o bebê nasce morto ou morre, as outras

enfermeiras me chamam. Acho que é por causa do que já passei.

Um dia, quando tinha oito anos, fiquei tomando conta da minha irmã

mais nova e do meu irmãozinho de três meses. Naquele dia, ele

morreu de repente no berço. Durante anos eu me senti responsável

pela morte dele e meu pesar era incrível. Minha mãe nunca disse

que tinha sido culpa minha, mas também nunca disse que não tinha

sido, e nunca me deixou demonstrar pesar. Eu era uma menina

crescida e meninas crescidas não choram.

Quando entrei na escola de enfermagem, ainda carregava essa

culpa. Cuidava de pacientes com câncer, que só respiravam graças

aos aparelhos. Às vezes, eles me imploravam para deixá-Ias

morrer. Esse ambiente refletia o que havia dentro de mim. Era muito

difícil. Então, fui a meu primeiro retiro de meditação. No silêncio,

tudo veio à tona. Tantas cenas - a morte do meu irmão, os

hospitais, ondas de pesar e dor vindas do passado - e eu percebi

que em todos aqueles anos nunca tinha perdoado minha mãe nem

a mim mesma. Passei alguns dias em silêncio com a minha dor,

como se fosse um trabalho de parto. Chorei e então senti aquele

perdão que eu tinha buscado a vida inteira. Foi uma graça. Meu

coração se abriu: consegui gostar de mim, perdoar minha mãe e

deixar para lá tudo o que me impedia de viver e de amar.

Hoje, faz quase vinte anos que medito. E, de alguma forma, adquiri

a capacidade de lidar com a angústia e a dor sem precisar controlá-

Ias ou modificá-Ias. Assim, agora os médicos e as enfermeiras me

chamam. Às vezes, fico de mãos dadas com os pais ou choramos

juntos em sua vulnerabilidade, encarando a terrível decisão que

eles precisam tomar diante de um feto defeituoso. É o perdão que

toma esta vida viável."

Perdoar a si mesmo é essencial, mas as feridas causadas pelos

outros também são um portão necessário para a cura. Um professor

de um ashram hindu fala da vez em que enfrentou as lembranças

que tinha do padrasto, um homem muito severo.

"Ele me criou desde os dois anos de idade e passei anos brigando

com ele ou tentando merecer sua aprovação. Então, um dia, depois

de um retiro de yoga de um mês, eu caminhava pelos campos perto

do ashram quando me ocorreu que meu padrasto não tinha muito

tempo de vida. Percebi que naqueles anos todos ele tinha tentado

me amar mas, como tinha tido um pai muito duro, não conseguia

demonstrar seus sentimentos. Ele também tinha medo. Com sua

falta de jeito, ele tinha me criado como seu filho. E com minha falta

de jeito, eu o perdoei. Voltei para visitá-lo. Depois disso, muita coisa

ficou mais leve na minha vida. Agradeço a Deus pelo perdão."

Às vezes não se trata tanto de perdoar más ações, mas de aceitar e

a respeitar a luta pela própria vida. Uma história da Segunda Guerra

Mundial mostra que um coração temo e capaz de perdoar nos

permite voltar ao mundo.

Durante a Segunda Guerra, muitos soldados japoneses foram

mandados para as ilhas do Pacífico. Com a derrota do Japão, essas

ilhas foram abandonadas tão depressa que centenas de soldados

nem ficaram sabendo que a guerra tinha acabado. Ao longo dos

anos, muitos desses homens foram encontrados por nativos mas,

como se sabe, alguns continuaram escondidos em florestas e

cavernas. Eles acreditavam que, como bons soldados, tinham que

permanecer fiéis ao seu país e defender a nação japonesa da

melhor forma possível, mesmo em meio a tantas provações.

E que tratamento receberam esses homens quando foram

encontrados, depois de dez ou quinze anos? Não foram

considerados desorientados nem tolos. Quando um deles era

localizado, o primeiro contato era feito com muito cuidado. Um

oficial japonês de alta patente, veterano de guerra, tirava o uniforme

e a espada de samurai do armário e, a bordo de um velho barco

militar, ia para a área onde o soldado perdido tinha sido visto. O

oficial entrava na selva e chamava o soldado até localizá-Ia.

Quando se encontravam, o oficial, com lágrimas nos olhos,

agradecia ao soldado pela lealdade e pela coragem que tinha

demonstrado ao continuar defendendo o país por tantos anos. Fazia

perguntas sobre suas experiências e lhe dava as boas-vindas. Só

depois dessa preparação o oficial dizia ao soldado que a guerra

tinha acabado e que o país estava novamente em paz. Ao chegar

em casa, o soldado tinha uma acolhida digna, celebrando sua luta e

a volta para os seus.

Faz tanto tempo que julgamos nós mesmos e os outros, que

lutamos com o passado e com a própria vida. No perdão, nós nos

prosternamos diante disso com clemência e respeito. É assim que

começamos a domar o boi branco: fazendo amizade com ele. A

coragem do perdão nos deixa livres para entrar no estágio seguinte

da iniciação.

FOGO INTERIOR

Como segunda graça, Nachiketa pediu fogo interior: ardor e

coragem para perseverar na jornada mesmo em face da morte.

Essa paixão e disposição para se abrir, para descobrir, para

aprender, é uma das principais qualidades de todos os que

avançam na vida espiritual.

A qualidade do fogo interior transforma obstáculos e dificuldades no

processo de despertar e de iluminação. Todos nós valorizamos os

momentos em que estamos plenamente vivos. Com paixão

espiritual, o despertar é possível em qualquer lugar. Um dia, um

aluno disse ao meu professor Ajahn Chah que era muito ocupado e

não tinha tempo para meditar. Ajahn Chah riu e disse: "Você tem

tempo para respirar? Se estiver determinado, basta prestar atenção.

Essa é sua prática, esteja onde estiver, seja o que for que estiver

acontecendo: respirar, estar totalmente presente, ver o que é

verdadeiro."

Uma professora budista relembra seus primeiros anos de prática.

Inspirada pelo mestre, pela plenitude de sua presença, por sua

compaixão e espontaneidade, ela queria estar viva como ele.

"Ficava sentada no Zendo, mas na verdade não sabia o que fazer.

A única instrução de que me lembro era: 'Desapareça na almofada.'

Eu me sentava ali com bastante entusiasmo, pensando: 'É isso

mesmo que quero fazer.' Mas não sabia como continuar. Então,

indo a outros retiros, fui aprendendo que o importante era me

entregar cada vez mais à prática. Com isso, descobri uma

expansão orgânica de minha capacidade de ficar sentada por mais

tempo e de dormir menos. Finalmente, no meu primeiro retiro

Vipassana de três meses, descobri que estava queimando de tanta

energia para praticar e que só precisava dormir três horas. Quando

consegui me. entregar, minha força interior cresceu."

Às vezes, esse fogo interior nos é impingido. Uma professora que

tive, Dipama Barua, de Calcutá, era uma grande yogue. Depois da

morte do marido e dos filhos, ela se interessou por meditação.

Começou a praticar, mas ficou muito doente nos primeiros tempos

que passou no templo. Mesmo assim, não desistiu. Fraca demais

para andar, subia os degraus do templo se arrastando, tão

determinada estava a enfrentar seus medos e atingir a liberdade.

Até quem está na prisão pode descobrir o caminho para essa

liberdade. Conscientes do fato doloroso de que gastamos mais com

o sistema penitenciário do que para educar nossas crianças, muitas

comunidades espirituais começaram a proporcionar ensino para os

milhões que vivem atrás das grades. Essa iniciativa parte do

princípio de que todos os seres humanos precisam encontrar a

liberdade interior e a salvação, e que ninguém está além da

redenção. Fleet Maul, um prisioneiro que segue os ensinamentos

tibetanos de Thrangu Rinpoche, diz:

"O barulho e a falta de privacidade são os maiores obstáculos à

pratica da meditação formal na prisão. Das sete da manhã às onze

da noite, todos os espaços disponíveis estão superlotados e em

constante tumulto. Para praticar nessas horas, eu esvaziava um dos

armários de material de limpeza, onde ficavam os esfregões,

vassouras e latas de lixo. Punha tudo para fora para ninguém me

interromper, pegava uma cadeira e ficava sentado meditando por

uma ou duas horas. Os outros me achavam meio estranho, mas

acabaram se acostumando com meu costume de sentar dentro do

armário. Quando finalmente consegui uma cela só para mim, depois

de anos de superlotação infernal, comecei a prática tibetana de cem

mil prosternações e recitações completas. Agora, quando fazem a

contagem às cinco da manhã, os guardas me vêem fazendo

prosternações completas ao lado da cama."

Em algum momento temos que renunciar aos medos e às

esperanças, morrendo para a jornada ideal que imaginamos e nos

abrindo de novo para o mistério. Nachiketa não pediu para chegar

ao fim de uma jornada ideal, mas para estar plenamente onde

estava. Até mesmo uma prisão, até mesmo um palácio, pode ser o

local do despertar.

Às vezes, a entrega da iniciação é acompanhada de alegria e

êxtase. Uma vez, fui visitar um templo às margens do Rio Ganges,

em Benares, e os peregrinos estavam cantando para a Santa Mãe.

Cantaram sem parar por sete dias e sete noites. Quando ficavam

exaustos, eles dormiam no chão por algumas horas e começavam

de novo. Sem parar, sem comer, eles cantavam o nome de Deus.

Andando em círculos em volta do altar, uma multidão de devotos

cantava o santo nome ao som de harpas e tamborins indianos. Uma

mulher me contou depois que, nos primeiros dias, a dor, a fome e a

preocupação com a família interrompiam internamente seu canto.

Mas a cada interrupção ela voltava a se entregar ao santo nome de

Deus e aos poucos tudo nela foi diminuindo e ela continuou a andar

e a levar sua vela sem esforço, o espírito do Divino enchendo-a de

êxtase.

Um rabino e místico conta que sua passagem através do fogo não

se deu num templo, mas no altar de um amargo divórcio americano.

Ele tinha estudado muitos anos em Jerusalém com mestres

hassídicos e kabalistas e era agora professor e líder espiritual numa

devota comunidade judaica.

"Então, depois de quatorze anos, minha mulher me deixou,

condenando tudo o que eu tinha feito, dizendo que eu não ligava

para ela, que ela tinha desperdiçado a vida naquele casamento. Ela

lutou ferozmente pela custódia de nossos três filhos, pelo nosso

dinheiro e pela casa onde tínhamos morado, fazendo exigências

cada vez maiores. Cada vez mais zangada e destrutiva, ela me

denunciou publicamente para os amigos e para a comunidade.

Como professor espiritual, esse foi um período de agonia na minha

vida. Senti como se morresse muitas vezes, como se fosse

rasgado, forçado a atravessar o fogo, a abrir mão de meus filhos, de

minha reputação, e ainda assim manter o coração aberto."

Vários anos depois desse período torturante, o rabino diz:

"Eu não pretendia sofrer tanto, mas a dor me deu mais humildade e

honestidade em relação a mim mesmo e à vida espiritual. Fui

obrigado a me tomar mais simples, mais verdadeiro comigo mesmo,

menos afoito ao julgar os outros. Felizmente minha relação com

meus filhos voltou ao normal. E eu que falava de aprender a

compaixão! Foi duro, mas acho que precisava daquilo."

Essa é uma das tarefas da iniciação. Na medida em que nos

entregamos sinceramente ao trabalho do espírito, a vida se toma

simples e plena. O poeta Rilke fala sobre isso.

Veja só, eu quero muito.

Talvez eu queira tudo:

a escuridão que vem a cada queda infinita

e o brilho febril de cada avanço.

Tantos vivem e nada querem

e são elevados à condição de príncipe

pela facilidade escorregadia dos julgamentos levianos.

Mas o que você gosta de ver são rostos

que trabalham e sentem sede...

Você ainda não está velho e não é tarde demais

para mergulhar em suas profundezas cada vez maiores

onde a vida revela calmamente o seu segredo.

(Tradução de Robert Bly)

GRAÇAS ETERNAS

O último pedido de Nachiketa foi conhecer o que é imortal, eterno.

O Senhor Yama respondeu: "Para descobrir o que é eterno, você

deve examinar o coração da própria vida." Então, deu um espelho a

Nachiketa.

O mistério da identidade - "Quem sou eu?" - é uma das questões

espirituais mais importantes da humanidade. Será que somos este

corpo de carne e sangue? Será que a consciência é apenas um

produto do sistema nervoso, dos pensamentos e dos sentimentos?

Será que somos apenas herança genética ou será que, em sua

essência, nossa natureza é espiritual? Será que somos uma criação

da própria consciência, uma centelha do divino, um reflexo da

mente universal? São essas as perguntas dos místicos e dos

sábios.

Nos mosteiros da floresta onde pratiquei, os novatos são levados a

um bosque sagrado para ser ordenados. Então, os mais antigos

ensinam a cada novo monge a primeira e mais importante prática

de meditação: investigar o mistério do nascimento e da morte. Essa

prática consiste em meditar sobre a pergunta: "Quem sou eu?"

Primeiro, você examina o corpo físico para constatar que ele é feito

de terra, ar, fogo e água e para entender como esses elementos se

combinam nas diferentes partes do corpo: pele, cabelo, unhas,

dentes, sangue, coração, fígado, pulmões, rins. Nesse saco de pele

e ossos, quem é você? Nesse ponto, você começa a investigar a

questão da identidade, a deixar para lá tudo o que não é

permanente no corpo e na mente e a descobrir uma consciência

eterna além do nascimento e da morte.

A questão da identidade é colocada de muitas formas. Durante um

retiro de três meses de meditação do insight, houve uma palestra

de um velho mestre zen coreano, vindo de um mosteiro chamado

Nove Montanhas. Ele disse aos participantes que era uma perda de

tempo praticar fosse o que fosse durante três meses. Bateu o

bastão no chão e apontou para si mesmo: "A única prática que vale

a pena é perguntar: 'O que é isto?' 'O QUE É ISTO?'"

O sábio indiano Ramana Maharshi usava esse questionamento

para despertar seus discípulos. Quando vinham com problemas e

perguntas, ele os olhava com um "olhar de piedade", de profunda

compaixão por estarem tão perdidos. Então, ele os conduzia à

meditação do autoquestionamento. Pergunte a si mesmo: "Quem

sou eu? Quem nasceu neste corpo?" Responda essa pergunta e

todos os problemas estarão resolvidos. Fazer essa pergunta é olhar

no espelho de Nachiketa. Cada experiência é questionada: "É isso

que eu sou?

É isso o eterno?" As experiências se sucedem - idéias, imagens,

planos, amores, medos, sentimentos a favor ou contra alguma

coisa, sensações mutáveis de sons e visões do mundo físico - e

cada uma é vista como realmente é: passageira, limitada, incapaz

de durar. Uma a uma, são deixadas de lado: "eu não sou isso, eu

não sou aquilo", até que deixamos de lado toda a noção de eu e

repousamos num silêncio profundo e indizível.

Um místico judeu, o rabino Mezritcher, ensinava a mesma verdade:

para sair da realidade limitada para outra realidade, "temos que

virar nada, o verdadeiro estado, aquele que é antes e depois de

todas as coisas".

Quando despertamos, descobrimos que não somos limitados por

quem pensamos que somos. Todas as histórias que contamos a

nós mesmos - as opiniões, os problemas, a identidade inteira da

noção estreita de eu, "o corpo de medo" - desaparecem e um senso

eterno de graça e libertação se abre para nós.

Como diante da morte, abandonar a velha identidade tem um preço.

O preço é abrir mão de tudo o que pensamos ser, é o despojamento

total até que só o eterno permaneça. Por meio da iniciação, da

dificuldade e da graça, conhecemos outra realidade. Um lama

americano que entrevistei descreve da seguinte maneira sua

iniciação:

"Minha maior lição aconteceu durante o retiro de três anos. Foram

três anos e três meses totalmente preenchidos, dia e noite, por

meditações e preces ininterruptas e práticas puxadas. Mas, na

metade do último ano, recebi a notícia de que meu irmão mais novo

tinha morrido, de acidente ou suicídio. Recebi o telegrama e todo

meu ser entrou em choque. Eu estava muito exposto. Aquilo tinha

jogado minha família no caos, na dor e no desespero. Queriam que

eu voltasse para ajudar. Tinha que decidir se terminava ou não o

retiro, porque quem sai não pode voltar. Foi como estar na beira de

um enorme penhasco.

Consultei meu mestre tibetano. Ele me disse que, durante um retiro

de três anos, muitas pessoas nascem e morrem, que muitos

obstáculos advêm.

Ele disse que eu podia fazer o que quisesse, sem esquecer que

tinha prometido ficar em retiro durante três anos. Foi uma resposta

absoluta. Meditei e ondas avassaladoras de impotência, dor, culpa

e medo me sufocaram. Cada parte do meu condicionamento, a

identidade que tinha mantido até aquele momento, gritava para

voltar para casa. Sentia o conflito em cada célula do meu corpo. Eu

estava sendo dilacerado. Mas eu tinha me comprometido a praticar

no domínio da verdade absoluta, a buscar compaixão universal por

todos os seres. Para chegar a isso, percebi, tinha que deixar para lá

o apego pessoal.

Eu tinha que ficar. Foi como saltar de um penhasco na escuridão

total. Foi incrivelmente difícil. Mas, pela prática e pelo espírito do

meu professor, eu me liguei à liberdade absoluta de minha

verdadeira natureza, que não depende do que acontece. Agora

simplesmente sei que isso é verdade.

E, meio ano depois, quando saí e vi minha família, todos estavam

felizes por eu ter terminado o retiro, compreendendo que me

juntava a eles de maneira totalmente nova. Sinto agora que tudo o

que vivi naquele retiro e nas profundezas dos meus conflitos de

consciência os ajudou."

Há um paralelo na tradição cristã. Para despertar para o coração de

Jesus, temos que "estar dispostos a andar por muito tempo como

um cego na escuridão". Assim escreveu São João da Cruz.

Segundo a obra-prima da literatura contemplativa, The Cloud of

Unknowing, quem contempla tem de "morrer para si mesmo e

perder a consciência radical centralizada em si mesmo de seu ser,

pois é o eu que fica no caminho de Deus".

Um mestre sufi conta que foi assustador perder a identidade

quando sua vida espiritual se abriu:

"Observando o que eu pensava que era eu, o indivíduo separado,

tudo foi ficando claro. Houve primeiro um vazio, mas com ele veio

uma rajada de medo, um esforço para existir, uma espécie de

terror. Senti que estava abrindo mão de tudo - todo o meu senso de

eu tinha se dissipado. Um dia, viajava de avião quando senti como

se estivesse caindo pela janela e o terror veio em ondas, irracional

e muito forte. Eu me senti como um animal caindo no espaço. Só

mais tarde, quando aprendi a me soltar, a me deixar cair, foi que me

abri para um céu sem nuvens onde desapareci."

Em sua iniciação, esse professor sufi sentiu como se fosse morrer.

Um professor hindu com quem falei teve uma experiência mais

literal de quase-morte. Ele viveu muitos anos no Ocidente,

praticando yoga e meditação, e aos quarenta e três anos foi passar

um ano na Índia:

"Depois de meses no ashram, fui em peregrinação para Benares,

Allahabad e Rishikesh, e fiquei muito doente. Fui parar num hospital

imundo, com muito pouco dinheiro e sem amigos, tão fraco que mal

conseguia falar. Achei que ia morrer ali sozinho e, depois de muitos

dias de febre alta, eu realmente cheguei perto da morte. Fiquei ali

deitado, tremendo e com medo. Depois de alguns dias de confusão,

me ocorreu que era para isso que serviam meus anos de

treinamento. Fechei os olhos e senti o fim da minha vida a um sopro

de distância.

Senti o mundo inteiro de nascimento e morte girando em tomo de

mim. Estava em todo o meu corpo - a dor, a busca do prazer - e

quando enfrentei a enormidade do medo, foi como se tivesse

morrido um pouco. Então despontou um puro saber: 'Não é isso que

você é.' Percebi que o que os yogues tinham me ensinado era

verdade, e minha resistência desapareceu. Só encontramos o que é

imortal quando enfrentamos a morte. Quando voltei, era um homem

curado e mais humilde."

"Senti como se tivesse morrido um pouco" é uma frase semelhante

à usada por Ijukarjuk, um renomado xamã esquimó, para descrever

sua iniciação durante um jejum de trinta dias numa pequena cabana

na neve. Graças a essa viagem, Ijukarjuk se tomou um homem

sábio e um mestre da cura. Para nos libertar, como Nachiketa,

temos que fazer as perguntas sagradas e segui-Ias, mesmo que

seja até o Senhor Yama e o reino da morte. É lá que encontramos

graças eternas.

Há mais uma coisa na história de Nachiketa. Na conclusão, vemos

o jovem se prosternando pela última vez diante do Senhor Yama,

totalmente em paz. E então, como num passe de mágica, o Reino

da Morte se transforma nos campos de arroz de sua Índia nativa.

Lá, um último segredo lhe é revelado: morte e nascimento não são

coisas distintas. A renovação vem através da morte. Depois de

enfrentar a morte e a solidão, não temos mais medo de viver e a

vida floresce sob os nossos pés. Todos os lugares em que

passamos se tomam solo sagrado.

Nachiketa sabia disso em seu coração e caminhou em direção à

sua casa, para abraçar o pai e começar uma nova vida. Se a sua

história fosse pintada por um praticante zen, veríamos caminhando

ao seu lado a figura de um boi branco, domado.

SEGUNDA PARTE

OS PORTÕES DO DESPERTAR

OS PORTÕES DO DESPERTAR

Todas as tradições espirituais têm histórias daqueles que

despertaram de seu estado habitual, semelhante a um sonho, para

uma maneira sagrada de ser. Através da iniciação, da purificação,

da prece ou da entrega total à dança da vida, conheceram o que é

sempre presente e sagrado.

O fundador do Zen japonês, Dogen, explicou:

A verdadeira natureza da mente humana é a liberdade absoluta.

Milhares de milhares de alunos que praticam a meditação já

atingiram essa compreensão. Não duvide das possibilidades por

causa da simplicidade do método. Se você não consegue encontrar

a verdade onde você está, onde espera encontrá-Ia?

Há uma parte de nós que conhece a eternidade assim como

sabemos o nosso nome. Ela pode estar esquecida ou encoberta,

mas está ali. Como Nachiketa, temos apenas que pedir a verdade -

e vamos descobrir que ela está no espelho. Para meu professor

Ajahn Chah, esse centro interior é "Aquele Que Sabe".

Os praticantes espirituais que entrevistei descobriram esse centro

em si mesmos. Mas Aquele Que Sabe não está apenas nos

praticantes. Um famoso estudo sobre a vida espiritual norte-

americana revelou que a maioria dos entrevistados tinham tido uma

experiência mística em algum momento da vida. No entanto, o

estudo revelou também que a maioria não queria que aquilo

acontecesse de novo. Por quê?

Não conseguimos entender o que não dá para dizer em palavras e

que, portanto, não se encaixa em nossa visão do que é real. Como

mostra o estudo, quando tropeçamos em algo assim somos pegos

de surpresa e ficamos assustados. Nos mapas, os antigos

cartógrafos escreviam nos locais desconhecidos:

"Aqui há dragões."

Mas, assim como habitamos o mistério do nascimento e da morte,

assim como a noite é cheia de estrelas, assim como conhecemos a

necessidade de amor, temos em nós a possibilidade do despertar.

Ainda hoje, em muitas partes do mundo, pessoas consideradas

iluminadas, santas ou sábias são amplamente reverenciadas. O

sábio em nós também pode ser despertado, Aquele que Sabe pode

ser encontrado na nossa vida.

Há vários pontos de entrada para a sabedoria eterna do coração,

que chamamos de "portões do despertar". Cada portão é uma

entrada para nós mesmos, uma entrada para a verdade. Vamos

falar de quatro dos mais poderosos, pela descrição de pessoas que

os transpuseram. Você vai perceber que na sua vida também há

passagens assim.

4

O CORAÇÃO COMO MÃE DO MUNDO:

O PORTÃO DA TRISTEZA

Supere a amargura por não estar à altura da magnitude da dor

confiada a você.

Como a mãe do mundo, você está carregando a dor do mundo no

seu coração.

SUFI

Transpomos os portões do despertar levados pelas mesmas

melodias, pelas mesmas canções de alegria e desespero que nos

chamaram para o espírito. O oceano de vida nos traz ondas de

nascimento e morte, alegria e tristeza. Para muitos, assim como no

começo da busca, são as dolorosas verdades da vida que se

transformam em portão sagrado, que conduzem ao grande coração

da compaixão. Nosso retomo para o espírito pode ter começado

com o golpe da tragédia, com a devastação da perda. Agora, numa

oitava mais abaixo, a dimensão do despertar nos abre para a dor do

mundo. É o "Despertar pelo Portão da Tristeza".

Dizem que na manhã do seu despertar, o Buda olhou para o vasto

universo com olhos de sabedoria recém-despertos e lágrimas

começaram a rolar pelo seu rosto. Ele viu seres, em todas as

circunstâncias da vida, lutando pela felicidade. Mas, por equívoco,

esses seres agiam de maneira a causar mais sofrimento para si

mesmos e para os outros. Alguns dizem que, ao tocar a terra, as

lágrimas do Buda ganharam vida e se transformaram em Tara, a

Deusa da Compaixão.

No Muro das Lamentações, em Jerusalém, vemos as mesmas

lágrimas e súplicas por compaixão, não apenas pelo templo perdido

de Israel, mas pela tristeza de quem está distante do Divino.

Manhã e noite, o coração clama:

Responda, meu Deus, pois estamos em grande aflição. Por favor,

atenda nosso grito, permita que sua bondade nos conforte. Antes

que o invoquemos, nos responda, como disse o profeta Isaías:

"Acontecerá então que, antes de me invocarem, já eu lhes terei

respondido; enquanto ainda estiverem falando, já eu os terei

atendido."

Sem compreender a fonte de sofrimento, os seres humanos lutam

para atingir a felicidade através do controle e da ganância, da

violência e do ódio. Quando agimos por desilusão e ignorância, a

dor é o resultado inevitável. A sofreguidão, o envolvimento

agressivo com o mundo, traz consigo dificuldade e perda, mesmo

quando a intenção é buscar segurança e encontrar felicidade.

O Buda viu o que vêem os corações sábios: que a vida na terra é

bela mas dolorosa. Só que nossas reações confusas ampliam essa

dor fundamental, transformando-a num sofrimento ainda maior.

Enquanto escrevo estas palavras, decisões humanas fomentam a

guerra em vinte e oito países. Milhões morrem de fome, embora

haja comida em abundância. Milhões definham em casa ou em

hospitais, vitimados por doenças contra as quais temos remédios e

vacinas. Esse sofrimento não é alheio a nós. A professora budista

Sylvia Boorstein conta que uma vez foi à Sinagoga no dia em que é

costume rezar por parentes mortos no Holocausto e se espantou

com o número de pessoas que se levantaram para rezar. "Olhei

para todas aquelas pessoas de pé e pensei: 'Será que todas elas

são sobreviventes diretos?' E então percebi que todos nós somos

sobreviventes diretos e me levantei também."

Às vezes, na vida espiritual, temos a impressão de que todas as

barreiras que erguemos para nos proteger das dores do mundo

ruíram. Com o coração sensível e exposto, sentimos uma afinidade

natural com tudo o que vive. Os gritos das crianças de rua ecoam

em nossa mente, imagens de terrorismo, de racismo, de destruição

ecológica, de pobreza e de escravidão enchem a nossa

consciência, que parece se abrir às lutas da humanidade e da

própria terra. Às vezes, sentimos como se estivéssemos num

cemitério, vendo o sofrimento de inúmeras gerações. E percebemos

que não há como fugir.

Mas é preciso abrir os olhos e o coração para o sofrimento do

mundo para encontrar a liberdade e a paz. Cada um à sua maneira,

todos nós, como futuros budas, temos que examinar esta questão:

qual é a verdade do sofrimento na vida humana e qual é a causa

desse sofrimento?

No Sermão do Fogo, o Buda fala da gênese das tristezas do

mundo.

Tudo está queimando. O olho está queimando e o que se vê está

queimando. Os ouvidos e os sons que eles ouvem estão

queimando, o nariz, a língua, o corpo e a mente. Com que fogos

estão queimando? Com os fogos da ganância, do ódio, da

ignorância, queimando de ansiedade, ciúme, perda, decadência e

aflição. Considerando esse sofrimento, o seguidor do caminho fica

cansado dos fogos, cansado da ganância e do ódio que alimentam

a busca ávida de visões, sons, cheiros, gostos, corpo ou mente.

Cansado, ele se desnuda dessa avidez e, pela ausência dessa

avidez, ele fica livre.

Ver a verdade do sofrimento é chegar à liberdade através do portão

do sofrimento. Não dá para compreender nem para ter controle

sobre as condições mutáveis da vida. Não dá para ter controle

sobre o amante, o companheiro, a casa, o trabalho. Não dá para ter

controle nem mesmo sobre os filhos. Dá para amá-los e protegê-

los, mas qualquer tentativa de controlá-Ios gera sofrimento. Prazer

e dor, exaltação e vergonha, sucesso e fracasso se alternam dia

após dia. No mundo, a dor e o prazer se entrelaçam, assim como a

noite se entrelaça ao dia. Quem resiste a essa verdade,

inevitavelmente sofre.

Ramakrishna foi um sábio hindu cujas visões e devoção se

tomaram legendárias na Índia no século passado. Dizem que uma

vez ele ficou vários dias perdido em orações às margens do

Ganges, à espera de uma revelação do rosto da Divina Mãe,

criadora da própria vida. Então, num dado momento, a superfície da

água se agitou e uma bela deusa saiu do rio, os cabelos brilhantes

pingando, os olhos como lagos que contêm toda a criação. Ela abriu

as pernas e seres saíram de seu corpo - crianças e animais, uma

fonte de nascimentos de todas as espécies. Então, num momento

terrível, ela se abaixou, levou uma criança recém-nascida à boca e

começou a comê-Ia, sangue escorrendo pelo peito. Ela que cria é

também a que destrói, ela é a fonte, a continuação e o fim da vida.

Então, lentamente, a deusa desapareceu nas ondas, deixando

Ramakrishna a contemplar seu poder.

Quando abrimos o coração através do portão da tristeza, sentimos

que a dor e a insatisfação se entrelaçam ao tecido da experiência.

Em meio ao prazer, ficamos nos perguntando quando ele vai

acabar. Com o controle total da situação, ficamos preocupados com

a perda. Até mesmo o nascimento mais belo e a morte mais

abençoada trazem a dor, pois entrar e sair do corpo são processos

dolorosos. Ao longo do dia, experiências agradáveis, neutras e

desagradáveis se sucedem sem cessar. Essa mutação sem fim é

em si mesma uma fonte de dor e nossa maneira habitual de reagir a

ela gera uma continua sensação de luta.

Uma estratégia para atingir a liberação é focalizar a atenção nessa

experiência continua de insatisfação e dor, pois em meio a ela

podemos chegar a uma liberdade que nos livra da avidez e da

identificação.

Os alunos da tailandesa Maha Naeb aprendem a entender a

insatisfação prestando atenção meticulosa ao que motiva cada ação

e cada movimento ao longo do dia. Para isso, o aluno fica

absolutamente quieto, sem mudar de posição nem fazer nada, a

menos que perceba qual é a experiência, do corpo ou da mente,

que precisa da mudança. Ao acordar de manhã, ele fica deitado

meditando em silêncio, sem se mexer. Depois de algum tempo,

percebe que ficar deitado numa só posição faz com que o corpo

fique dolorido, e então se movimenta para se sentir melhor.

Passado algum tempo, sente por exemplo a bexiga cheia e vai ao

banheiro para aliviar essa fonte de dor. Mas o assento da privada é

duro e o banheiro é frio. Assim, depois de aliviar esse desconforto,

sai do banheiro e vai se sentar numa poltrona confortável. Mas

então é a barriga que se manifesta: é a fome matutina. Para aliviá-

Ia, vai para a cozinha comer. Mas depois precisa arrumar a cozinha,

porque restos de comida apodrecem e cheiram mal. Depois fica

sentado mais um pouco, até que outra dor ou desconforto faça com

que se movimente. E assim vai.

A observação cuidadosa da origem de cada ação revela um

movimento constante para aliviar o sofrimento. Quem enfrenta essa

verdade não acha que ela seja uma fórmula de desespero, mas um

portão para a compaixão. Porque, no coração, a liberdade e o amor

são ainda maiores do que o sofrimento. Quem enfrenta a dor do

mundo desperta um coração destemido e generoso, direito inato da

humanidade.

O poeta sufi Rumi celebra a sabedoria que se dispõe a mergulhar

nos fogos da vida.

A presença de Deus está ali à nossa frente,

um fogo à esquerda,

um lindo córrego à direita...

Quem entra no fogo

aparece de repente no frescor do córrego,

A cabeça que desaparece sob a superfície da água,

essa cabeça emerge do fogo.

A maioria das pessoas se resguarda do fogo,

e é nele que acaba...

Se você é amigo de Deus,

o fogo é a sua água.

Você deveria pedir cem mil

pares de asas de mariposa,

para poder queimá-los, um par por noite.

(Tradução de Coleman Barks)

Um professor de meditação conta que o sofrimento foi seu portão

para o despertar e que ele conseguiu se abrir para esse fogo e ficar

impassível no meio dele.

"Minha meditação era sempre muito difícil. Tinha muita tensão e dor

no corpo e também no coração. Como ambientalista, lidava havia

anos com o sofrimento do mundo, e uma multidão de imagens e

tristezas afluía quando eu meditava. Era como se eu estivesse no

meio da floresta tropical sendo queimado e devastado. Via a guerra

e a poluição, imagens do que faziam à terra. Eu ficava ali chorando,

mas continuava, mesmo quando era tudo muito forte. Eu não queria

fugir do mundo. Tinha que enfrentá-lo, entrar nele. Então houve

uma mudança.

Eu estava no ashram, praticando com um pequeno grupo de alunos

adiantados. Tinha sentido muita dor física naquelas semanas, mas

fiquei sentado, imóvel, com a mente muito focalizada e muito quieta.

Meus pensamentos diminuíram até quase sumir e minha

consciência desceu ao centro do coração. Os sons, sensações ou

pensamentos que surgiam eram como vibrações sutis atravessando

o espaço do meu coração. Isso era tudo o que eu sentia. Era como

se a quietude do meu coração se expandisse até se transformar no

mundo. As experiências eram pequenas vibrações que passavam

sutilmente por esse vasto coração cheio de paz.

Então, de alguma forma, eu me soltei ainda mais e entrei na mais

profunda paz imaginável, sem qualquer som ou sensação. Eu

estava totalmente silencioso e vazio. Eu não sentia meu corpo nem

minha mente, só pura consciência. Toda minha identidade se

dissipou. Foi assombroso, fantástico, além do êxtase. Percebi que

nunca mais sentiria medo da morte porque só essa consciência

eterna, não-nascida, é real.

Eu senti que no mundo não há nada que se compare a essa paz.

Visões, sons ou pensamentos, por mais agradáveis que sejam, são

perturbações dolorosas diante desse silêncio. Quando voltei,

entendi o sentido de sofrimento para o Buda: cada nascimento leva

à morte, a luta dos opostos - noite e dia, alegria e tristeza, tudo o

que surge e passa - é inerentemente dolorosa.

Logo depois disso, numa estrada da Índia, vi um carneirinho

nascendo. Fiquei pasmo, vendo a luta do nascimento naquele

carneirinho que surgia. Percebi que qualquer identificação com esta

vida - com o processo de nascimento, envelhecimento, morte - é

sofrimento. Fiquei ali parado, chorando pelo sofrimento do mundo:

eu o sentia com compaixão. Eu sabia que jamais esqueceria.

Mas é assombroso também como é forte o desejo, as raízes do

prazer e do estímulo. Depois de alguns meses, voltei ao Ocidente,

atrás de música e vinhos finos. A força do querer e da indulgência

voltou de maneira exorbitante, uma reação ao que eu tinha visto.

Mas continuei a seguir minha prática espiritual, porque uma parte

de nós sabe quando vemos a verdade. Não dá para esquecer."

Quando respeitamos o portão do sofrimento, surge o maravilhoso

poder da compaixão. Essa compaixão é descrita como a reação do

coração à dor de qualquer outro ser. É uma ternura por todas as

formas de vida, por tudo o que nasce e morre, por todas as

criaturas que vivem do nascimento e da morte umas das outras. Às

vezes é compaixão por nós mesmos. A necessidade de tal

compaixão está em cada jornada, budista ou hindu, judaica ou

cristã. A questão do sofrimento humano é central na jornada da

graça e da redenção.

Uma freira relata:

"No mês anterior à Páscoa, houve as preparações de costume, com

preces e vigílias extras. Era primavera e resolvi me entregar mais

do que nunca a elas. Passei horas contemplando o mistério de

Cristo na Cruz. Chegou a Páscoa, vivemos a alegria da

ressurreição e toda a comunidade se sentia ainda mais sensível.

Uma noite, cerca de uma semana depois, eu estava no meu quarto

olhando para o crucifixo moderno, a única coisa que tínhamos na

parede. De repente, fui tomada pela tristeza e pela dor. Meu corpo

começou a doer e deitei-me na cama em agonia. Senti como se

estivesse morrendo, tão real era aquilo tudo. Comecei a chorar por

Jesus, por seu sofrimento e morte na cruz. Eu era Maria segurando

o filho crucificado e sabia que essa crucificação não tinha acabado.

Eu era todas as mães que tinham perdido seus filhos na guerra, em

acidentes, na doença, que ainda hoje não têm como dar de comer

aos filhos famintos. Eu era a mãe presa num terremoto na Armênia,

lutando desesperadamente, incapaz de salvar o filho. Eu era todos

os soldados nas batalhas sem sentido, eu era as vacas e os porcos

a caminho dos matadouros, eu era os generais modernos e os

soldados romanos, eu era a mãe carente e o explorador da

pobreza, a vitima e o algoz, todos que morreram, todos que sofrem.

Fiquei deitada, velada pela dor do mundo - tanta dor. Não dava para

suportar. Meu coração chorava.

Então Jesus estava no meu corpo e juntos suportamos o sofrimento

do mundo. Percebi que suportá-lo com compaixão era divino. Meu

coração se abriu graças a essa dor sagrada. É esse o propósito de

Deus para as nossas dores; unir o coração de todos nós. Há tanta

compaixão. Compaixão dentro da compaixão."

Às vezes aprendemos essa compaixão na solidão de nossa cela,

outras vezes precisamos que outro ser humano veja a nossa

tristeza e toque o que está fechado em nós.

Uma das dádivas de um bom professor é a capacidade de segurar

o espelho da compaixão para que nosso coração saiba de novo se

abrir. Um mestre zen fala de seus primeiros anos de prática:

"Eu tentava tanto, enfrentava tanta aflição e dor na minha prática.

Eu havia atingido o meu limite - estava prestes a desistir. Então

procurei a mestra que, vendo a profundeza da minha luta, deixou de

ser uma roshi severa e exigente. Foi como se ela tivesse se

transformado numa Deusa da Compaixão. 'Muito bem, muito bem.'

Senti que ela havia tocado o lugar mais sensível do meu coração

com sua compaixão e com sua voz."

Era assim que Dipama Barua, avó e anciã budista, trabalhava com

seus alunos em Calcutá e em suas visitas aos Estados Unidos. Os

alunos a procuravam com perguntas relativas à meditação, que ela

respondia pacientemente. Depois oferecia um chá e fazia perguntas

interessadas sobre a saúde e a família de todos. Uma vez, um

aluno contou que seus pais estavam muito aborrecidos pelo fato de

ele estar estudando meditação na Índia. A mestra tirou de baixo do

colchão parte de suas economias e entregou a ele, dizendo:

"Compre um presente da Índia para a sua mãe." Quando os alunos

falavam de suas lutas ou estavam tristes por causa das dores do

mundo, ela estimulava a prática. Dizia: "Mas não é só isso que

existe." E os abençoava e os abraçava, fazendo carinho e repetindo

palavras suaves de amor e bondade, até que eles se acalmavam,

como que envoltos na graça de uma grande mãe.

É esse o caminho para a liberdade pelo portão da tristeza. A

compaixão que nele encontramos permite que a plena verdade da

vida e da encarnação, sua dança de agonia e beleza, seja vista e

aceita sem resistência.

Se aceitarmos o que o mestre zen John Tarrant chama de abertura

para as "Lágrimas do Caminho", vai nascer a sabedoria. No livro

The Light lnside the Dark, ele cita o relato de uma praticante que,

tomada por uma aflição inesperada, chorava noite e dia, até que o

choro começou a mudar.

Fui invadida por lembranças do meu pai e da dor de suas ausências

e de ter sido entregue a instituições, negligenciada e desdenhada.

Achava que estava me abrindo e então essa espessa questão

pessoal me arrebatou. Fiquei totalmente envolvida. Chorava e

chorava. Tudo o que eu via parecia ser um novo motivo para as

lágrimas. Depois de vários dias, meu estado de espírito começou a

mudar e minhas lágrimas ficaram mais impessoais, mais sem causa

- lágrimas de comoção pela vida. Fui tomada pela ternura,

especialmente por coisas negligenciadas, abandonadas - um

determinado tom de azul no céu do amanhecer, os ossos de rato

que as corujas deixam cair. Estas últimas lágrimas são as lágrimas

da iniciação. Somos arrebatados pela amplidão.

Quem, nos recessos profundos do coração, abre mão de tudo e

deixa de lado a luta e a avidez, atinge aquele saber que é eterno.

Como disse um professor:

"Depois que me abri além de qualquer senso de mim mesmo, senti

que 'minha dor' se transformou na 'dor', a dor do mundo. Vi que o

universo se move e o planeta está em fogo - uma dor imensa, que

no entanto nada perturbava e que eu conseguia suportar. Ela

repousava em meio a uma paz imensa."

No portão da tristeza nós nos libertamos da ilusão e da avidez, do

falso alheamento em relação à vida, e tudo suportamos.

Repousamos no grande coração do Buda, no coração d'Aquele Que

Sabe.

5

NADA E TUDO:

O PORTÃO DO VAZIO

Você vive na ilusão e na aparência das coisas. Há uma realidade,

mas você não sabe disso.

Quando souber, vai ver que você não é nada. E, sendo nada, você

é tudo. É isso.

KALU RINPOCHE

De onde vem nossa vida de alegria e tristeza? Quando a fonte da

criação é personificada, recebe nomes como Alá, Brahma ou Deus.

Mas alguns experimentam a fonte divina fora da personificação.

Segundo místicos e meditadores que tiveram essa experiência, o

cosmos sai de um vazio sagrado, o Grande Vazio. Os místicos

judeus o descrevem da seguinte maneira:

Do vazio Deus fez o mundo; ele existe só no coração de Deus. Para

conhecer nosso lugar temos que ser outra vez como nada, e então

o que é santo vai nos traspassar e iluminar tudo o que fazemos.

O que significa "ser como nada"? Compreender o vazio ou a

ausência de eu é desconcertante: é difícil de explicar, assim como a

água é óbvia, mas difícil de explicar para um peixe. Mas a

experiência dessa verdade nos abre para a paz e para a alegria.

Angelus Silesius, um místico da Renascença Cristã, explica:

Deus, cujo amor e alegria estão em toda parte,

você só pode visitá-lo

se você não estiver lá.

(Tradução de Stephen Mitchel)

Ao receber o espelho do Senhor da Morte, Nachiketa foi levado a

investigar a fonte do próprio ser. Nas profundezas desse

questionamento, os praticantes da meditação podem descobrir a

experiência do vazio. Esse vazio tem dois lados: o vazio do eu e o

vazio do vazio.

O vazio do eu aparece primeiro na falta de controle sobre o "eu"

supostamente fixo. Quem se volta para dentro para meditar ou rezar

se depara imediatamente com a corrente mental de pensamentos

em constante mutação e com as infindáveis ondulações de

humores e emoções que dão cor a cada momento. As emoções e

correntes de pensamentos têm vida própria. Nelas, uma visão

completa da infância ou a repetição de complexas experiências

adultas aparecem, arrebatam a nossa atenção e desaparecem em

poucos momentos. Em geral, achamos que somos a soma desses

pensamentos, idéias, emoções e sensações corporais, mas neles

não há nada de sólido. Como dizer que somos nossos

pensamentos, opiniões ou emoções se eles nunca são os mesmos?

Recuando um passo, conseguimos ver quem é que sabe disso, o

espaço de saber em que isso surge.

Na meditação, podemos tirar a atenção da idéia de que tudo faz

parte da "minha experiência" e levá-Ia a uma observação mais

silenciosa, menos possessiva. Essa observação silenciosa nos

permite ver o primeiro aspecto do vazio, a ausência do eu ou do

ego - a descoberta de que a idéia de si mesmo como um sólido ser

isolado é apenas uma imagem mental. É isso que Alan Watts

chama de segredo mais bem guardado em The Book: On the Taboo

Against Knowing Who You Are.

Há um monge tibetano que era um bem-sucedido cineasta e

produtor de televisão nos anos sessenta, quando conheceu seu

professor, o Lama Yeshe. Quando foram apresentados, o Lama

Yeshe descobriu que seu futuro aluno fazia filmes e disse: "Você

faz filmes para TV? Sou um bom ator. O melhor! Posso ser

qualquer coisa porque sou vazio. Não sou nada." E riu.

Emily Dickinson também fez uma alusão ao nosso sentimento

intuitivo dessa verdade:

Sou ninguém! quem é você?

Você é - Ninguém - Também?

O que significam essas misteriosas descrições do não-eu? Para

uma praticante da meditação, a experiência do vazio de eu foi um

sinal em sua vida espiritual. Ela tinha estudado em vários lugares

da Índia, com vários lamas e mestres. Voltou depois de muitos anos

na Ásia, mas ainda passava dias meditando.

"Nas montanhas, eu acordava cedo, ainda no escuro. Sentada em

silêncio dia após dia, tive uma experiência maravilhosa e terrível. Eu

desapareci. Tudo o que eu era se dissipou. Não sei que nome dar a

isso e nem sei se dá para lhe dar um nome, nem mesmo Nirvana,

porque está antes dos nomes. Uma tal felicidade! Sabia que aquele

coração aquele corpo não eram mais meus, eram do mundo."

No vazio do eu o mundo fica transparente, claro, descomplicado.

Percebemos que a idéia do eu separado é falsa. O que somos no

eu convencional desaparece no silêncio, na paz e na pura

experiência de ser, sem ninguém para ter essa experiência.

Identificado o vazio do eu, chegamos à segunda dimensão do vazio:

o vazio de todos os fenômenos. Um texto budista, o Samutta

Nikaya, diz o seguinte:

Imagine que uma pessoa que não é cega veja as muitas bolhas do

Ganges que passam com a correnteza e, depois de cuidadoso

exame, descubra que são vazias, irreais, insubstanciais. Da mesma

maneira, é possível examinar impressões sensoriais, percepções,

sentimentos e pensamentos, tudo o que experimentamos, e

descobrir que são vazios e sem um eu.

O vazio do eu nos abre para a experiência do vazio em si mesmo, o

vazio dinâmico do qual nascem todas as coisas. Na tradição

budista, o despertar para o vazio é um portão para o Nirvana, a

liberdade de coração a que se dá o nome de Não-Nascido, Não-

Criado, Não-Condicionado.

Místicos de todos os tempos falam da descoberta desse portão. Há

várias maneiras de transpor esse portão, mas é mais comum

transpô-lo através da meditação, através de um encontro com

alguém desperto ou através da imersão numa solidão tão profunda

que nos toma transparentes.

DESCOBERTA ATRAVÉS DA MEDITAÇÃO

Esta é a experiência de um professor durante um longo retiro de

meditação do insight:

"Depois de vários meses, só precisava de três ou quatro horas de

sono. A ordem era ficar absolutamente presente e. alerta, sem

reagir a nada que acontecesse. Os pensamentos e emoções

vinham e passavam. Houve dias de intensa solidão, de lágrimas e

aflição, e depois momentos de arrebatamento. Em certos dias eu

me sentia como se estivesse morrendo, como se meu corpo

estivesse se desintegrando. Estava imerso num mundo de morte e

destruição. Mas depois tudo isso se dissipou. Era como se flutuasse

pelas horas de meditação, com ondas de luz e êxtase, o corpo

dissolvido e aberto como o céu, sem limites.

À medida que a minha quietude aumentava, as experiências vinham

com maior rapidez. Embora houvesse um fluxo constante de

pensamentos, eu conseguia observar cada um deles. Cada forma-

pensamento criava um mundo de idéias, lembranças ou fantasias e

sumia logo que era observada. No silêncio mental cada vez mais

profundo, comecei a sentir sutis pré-pensamentos, como se a

mente estivesse grávida, prestes a liberar o pensamento seguinte.

Sons, cheiros, emoções e sensações, por menores que fossem,

eram observados e libertados, como vaga-lumes na noite. Mantive a

rotina de sentar e andar, sentindo como se estivesse sob o mar

num mundo silencioso e transparente.

Uma tarde, eu me deitei para meditar no calor do dia. Meus olhos

se fecharam e despontou a consciência de todas as sensações

dessa nova postura. Flutuando, as percepções apareciam e

desapareciam como bolhas no refrigerante. Eu me abandonei a isso

e as percepções vieram ainda mais depressa, como se o universo

pulsasse rapidamente - pulsos de luz, como vaga-lumes. Um

momento de medo veio e se foi, e então minha mente se abriu e

tudo ficou tolamente silencioso, além do silêncio. Não havia eu, nem

experiência, nem palavras. Só um saber. O mundo repousava num

oceano de paz de onde vinham todas as manifestações - que logo

sumiam. Foi assombroso. Eu sabia que a essência da consciência

era essa grande paz. Eu sabia que eu, como tudo, era apenas uma

manifestação na mente. E além desse mundo onde tudo nasce,

muda e morre, está essa realidade sempre presente. É claro que

tudo voltou, mas mais luminoso, transparente, brilhante de alegria."

Às vezes, os primeiros momentos dessa abertura para o não-eu são

bem mais simples. Outro professor conta como descobriu o vazio:

"Eu estava caminhando e meditando no jardim junto ao templo.

Lembro-me do lugar exato. Ergui o pé, voltei a pousá-lo na terra,

senti todas as sensações do movimento e percebi que ele não

estava acontecendo para NINGUÉM, que não havia eu! Veio o

pensamento: 'É um processo vazio.' E esse pensamento foi tão

vazio quanto o passo."

Para uma professora zen, a compreensão do vazio veio em silêncio.

Ela chama o seu caminho de "perseverança suave" e explica: "Eu

não era uma estudante zen do tipo guerreiro."

"Eu estava meditando com o koan MU, fazendo o meu zazen com

os outros. Estava bem relaxada e MU estava se repetindo, tinha

assumido vida própria. Então, eu simplesmente desapareci. Havia o

sentar e o meditar e sons e MU, e era tudo MU. Eu era nada e era

MU e, quando fui ver o mestre, ri muito. Era isso que eu sempre

tinha sido."

Dizem que o espírito de meditação deve continuar quando nos

levantamos da almofada. Um professor de meditação fez um longo

retiro na Índia, mas sua descoberta começou no quintal, com um

cachorrinho doente no colo.

"As pessoas costumam abandonar cachorros no templo e nesse

retiro havia uma ninhada com vários cachorrinhos doentes. Sentei-

me por vários dias, sempre com um cachorrinho. Aquilo me

dilacerou. Muitos cães iam e vinham, mas nesse dia vi que a

verdade fundamental da vida não muda, embora se manifeste nos

corpos em mutação. Continuei meditando com os cachorrinhos e

sua dor de barriga e depois voltei para a sala.

Minha paz era grande. Pensamentos e intenções despontavam e se

dissolviam, mas eu não tinha impulso para segui-los. E então

aconteceu um abandono mais profundo, como se toda a percepção

se dissipasse no espaço, no vazio. De repente não havia eu, não

havia nada a fazer nem a resolver. Tudo era bobagem. Eu me ergui

da almofada com um enorme sorriso e no vazio despontou a

alegria, um rio sem margens, uma dança do vazio, uma

confirmação de liberdade em que a vida não é problema, o eu não é

problema, nem mesmo os cães doentes são um problema."

O VAZIO NA PRESENÇA SAGRADA DE OUTRA PESSOA

A compreensão do vazio é contagiosa: parece que podemos pegá-

Ia dos outros. Sabemos que, quando uma pessoa triste ou zangada

entra numa sala, nós também ficamos tristes ou zangados. Então,

não é de estranhar que a presença de um professor que esteja

vazio, aberto e desperto tenha uma forte influência sobre os outros,

especialmente sobre quem está preparado. Em todas as tradições,

há histórias sobre o despertar de alunos através de encontros

diretos com o mestre. Um professor de meditação e raja yoga viveu

uma experiência decisiva quando assistia a uma palestra na

Califórnia, e essa experiência o levou a uma estada de dez anos na

Índia.

"Estava ouvindo Krishnamurti na sua escola em Ojai Valley, num dia

de primavera. Ele estava sentado numa cadeira de madeira, um

velho frágil de presença grandiosa. Havia uns mil alunos sentados

na grama, abrigados num bosque de carvalhos antigos. Todos

tinham a atenção voltada para o palestrante, que desafiava tudo o

que sabíamos sobre a vida e sobre nós mesmos. Ele falava da

verdadeira atenção. 'Vocês estão ouvindo de verdade? Não com as

idéias limitadas de um pensamento ou reflexão, mas no silêncio

total além da mente?' E naquele instante minha mente parou. Entrei

numa enorme quietude. O bosque começou a se expandir e a

flutuar, como se estivesse no centro da galáxia. As palavras saíam

das árvores. Eu me senti totalmente vivo e no entanto morto, além

de mim mesmo. Tudo estava cheio de luz e só existia um espaço

eterno e ilimitado. Sempre. Ouvindo as palavras flutuar como um

sonho, soube que, com Krishnamurti, eu tinha conseguido me abrir,

como se a alegria do despertar fosse contagiosa e eu a tivesse

apanhado, sentido, penetrado."

No Zen, a expressão "palavra decisiva" é usada para descrever

aquelas poucas palavras que fazem a mente se voltar para sua

verdadeira natureza de um momento para o outro. Foi o caso da

expressão de Krishnamurti: "silêncio além da mente". Há registros

desses momentos de despertar em centenas de histórias zen,

conhecidas como koans. Um exemplo é a resposta do mestre Hui

Neng quando lhe fizeram perguntas sobre uma bandeira

esvoaçando ao vento. Era a bandeira que se movia ou o vento? Hui

Neng respondeu: "Nenhum dos dois. É a mente que se move."

Na presença de um professor habilidoso, uma pergunta assim pode

levar o aluno a sair das particularidades do momento para uma

percepção fora do tempo. Lembramos da nossa natureza original,

do coração sem limites que contém todas as coisas, embora não

seja limitado por elas. Um professor budista aqui do Ocidente

lembra do que lhe aconteceu um dia nas montanhas da Índia.

"Eu me entregava apaixonadamente havia vários anos à meditação.

Uma noite, o professor nos reuniu para cantar, rezar e assistir a

uma palestra. Eu estava sentado na fileira da frente, completamente

atento. No meio da palestra, ouvi o professor dizer: 'Seu rosto é

como uma máscara.' Essa frase foi como um relâmpago num céu

azul e claro: abriu uma fenda no meu mundo. De um instante para o

outro, tudo o que eu pensava que sabia se dissipou. Eu tinha feito

umas cem viagens de ácido antes de ir para a Ásia, mas elas

perderam a importância comparadas a isso. Era uma dimensão

totalmente nova, fora de todos os sentidos. Transcendi meus

sentidos e minha identidade, tudo o que eu pensava que eu era.

Estava além do prazer e da dor, do êxtase e da alegria. Chorei por

um bom tempo, tão belo era aquilo. Isso foi há vinte e seis anos. Em

todos esses anos, é essa realidade por nascer que importa mais do

que qualquer outra coisa. É uma tocha que ilumina tudo. É tudo o

que existe. E, de alguma forma, está presente neste momento."

Várias circunstâncias se juntam num despertar em conjunto. Há a

abertura do aluno, uma sincera disposição para descobrir. Há em

geral um período preparatório de prática e purificação. O

acontecimento acima se deu depois de muitos anos de rígidos

retiros de Vajrayana e Vipassana. Há o respeito e a admiração que

envolvem o mestre. E há o campo de consciência do mestre - a

presença direta de amor, liberdade e vazio que ele consegue

transmitir.

Uma professora de meditação, com vinte anos de prática orientada

por mestres de várias tendências budistas, disse que ainda falta

alguma coisa na sua vida:

"Eu estava fazendo uma peregrinação espiritual pela Ásia. Recebi,

pelo correio, um convite para visitar um mestre para quem eu havia

escrito. Em sua linda carta, ele descrevia o momento em que o

Buda ofereceu uma flor para Maha Kasyapa e o Zen nasceu.

Graças a essa carta, meu amigo e eu acabamos indo para a Índia

para visitar esse guru de cidade pequena, um avô com um punhado

de alunos, escondido em sua casinha numa viela.

Eu me debatia com o barulho e o caos da Índia. Passavam os dias

e eu pensava: 'Não é nada disso, nada está acontecendo.' Como

me parecia que ele dava mais atenção aos homens da sala, eu

pensava: 'Ele não passa de uma machão indiano que não entende

as mulheres.' Todos os dias as pessoas se curvavam diante dele e

eu resmungava para mim mesma: 'Para que tantas reverências?

Estou fora. Sou uma feminista dos Estados Unidos.' Ele nos pedia

para questionar quem pensamos que somos, não com esforço, mas

com abandono. 'Abandonem o que busca e o que é buscado', dizia

ele. Então, uma tarde, ele ficou me olhando nos olhos, sem desviar

o olhar. Eu me senti como um animal acuado. E veio um medo

tremendo, como se algo enorme estivesse para acontecer. Era

como se eu tivesse me desviado dessa coisa por éons - mas agora

tinha sido apanhada e não conseguia fugir. Não podia mais evitá-Ia.

Ele disse algumas palavras, mas quais eram não importava.

Despontou uma tremenda luz e uma amplidão de nada e eu me fui,

para lugar nenhum e para toda parte. E então uma tremenda

alegria, risadas e lágrimas. Tudo na minha vida que tinha levado

àquele momento fez sentido, cada luta e cada medo. E agora tinha

acabado. Eu era tudo e nada e estava completamente livre. Era

isso. Depois daquilo, por mais que eu me atirasse ao chão diante

dele, não seria o bastante, tamanha era minha gratidão. Eu lhe teria

dado qualquer coisa, mas é claro que ele não queria nada. E agora,

no meu trabalho com os alunos, vejo com surpresa que eles

pensam que há alguma coisa a conseguir, alguma coisa a fazer,

quando é tão óbvio que não há nada a fazer - mas mesmo assim

fazemos. Há o fazer que é necessário para chegar a esse lugar de

não-fazer.

Eu tinha uma idéia ingênua sobre a facilidade de levar essa

liberdade para os outros. Você não precisa ir para a Índia para

encontrá-Ia. Basta a intenção sincera. Esteja onde estiver, se você

realmente quer liberdade, o universo vai corresponder. Não tem

outro jeito. O caminho lhe será mostrado."

A DESCOBERTA NA SOLIDÃO

O conhecimento do vazio também nasce na solidão do coração.

Falando de Jesus, o Evangelho de Marcos nos diz:

De madrugada, estando ainda escuro, ele se levantou e retirou-se

para um lugar deserto. E ali orava.

Don José Rios, um venerado xamã dos índios huicholes do México,

visitou os Estados Unidos quando tinha 106 anos. Disse ele:

Sofri muito em meus oitenta anos de treinamento. Muitas vezes fui

sozinho para as montanhas. Mas vocês precisam fazer o mesmo.

Porque não sou eu quem vai ensinar a vocês os caminhos dos

deuses. Essas coisas cada um tem de aprender por si mesmo, na

solidão.

Na solidão, nem sempre encontramos o silêncio. No começo, a

solidão é até barulhenta, cheia dos conflitos do corpo e dos

contínuos comentários da mente, que Chogyam Trungpa chamava

de "falatório subconsciente". As práticas de meditação nos ajudam

a descobrir um caminho para a genuína quietude. Nelas,

descobrimos que há muitos níveis de silêncio. O primeiro é o

silêncio externo, a simples ausência de barulho. O segundo é o

silêncio do corpo, uma quietude física cada vez maior. Aos poucos,

a mente começa a se aquietar. Descobrimos então o silêncio que é

testemunha de todas as coisas e depois vinte outros níveis de

absorção silenciosa na prece e na meditação. Mais no fundo ainda,

chegamos ao indescritível silêncio além da mente, o silêncio que dá

origem a todas as coisas. Penetrar no silêncio é uma viagem, é se

entregar a níveis cada vez mais profundos de quietude até

desaparecer na vastidão.

Bernadette Roberts, uma respeitada mística cristã, foi freira durante

dez anos e agora é mãe de quatro filhos. Em The Experience of No

Self, ela fala de sua jornada para o silêncio, das crises iniciais de

medo; até que finalmente se perdeu no silêncio, saindo de seu

abraço só uma vez ou outra, quando algum pensamento sutil a

puxava de volta. Mas um dia, sentada sozinha numa capela, ela

começou a descobrir para onde levava o silêncio. Essas

experiências foram a primeira parte de um longo processo que a

puxou para o vazio, até sua vida se reunir ao todo. Nas palavras

dela:

"Havia outra vez um silêncio penetrante... mas desta vez não houve

movimento algum. Saí da capela como uma pena flutuando ao

vento... Foi difícil lá fora, porque a todo momento eu voltava para

esse magnífico silêncio. Os dias foram passando e eu comecei a

agir como sempre, mas percebi que faltava alguma coisa, só que eu

não conseguia descobrir o que... Não encontrei explicação nos

escritos de São João da Cruz nem em nenhum outro lugar da

biblioteca. Naquele dia, regressava para casa em meio a uma

paisagem de vales e colinas quando voltei meu olhar para dentro e

o que vi me paralisou. Em vez do costumeiro centro não localizado

de mim mesma, não havia nada ali, estava vazio. Nesse momento

houve uma inundação de pura alegria e eu percebi, finalmente

percebi, o que estava faltando - era o meu 'eu'.

Fisicamente, era como se um grande fardo tivesse sido tirado de

cima de mim, tão leve eu me sentia. Olhei para os pés, para ter a

certeza de que estavam no chão. Mais tarde, pensei na experiência

de São Paulo - 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo

que vive em mim' - e percebi que, a despeito daquele vazio,

ninguém tinha entrado para tomar o 'meu' lugar. Então, decidi que

Cristo era a alegria, o próprio vazio. Ele era tudo o que havia

restado dessa experiência humana. Por vários dias, caminhei com

essa alegria... Não havia mais o 'meu'; só o que era de Cristo."

Outro professor se abriu para o vazio logo no começo do caminho,

o que foi uma surpresa. Depois disso, ele passou trinta anos em

treinamento budista para compreender e integrar esse começo.

"Foi no começo da minha vida espiritual Eu tinha ido a algumas

aulas de meditação. Estava deitado em silêncio, em solidão,

descansando depois de passar muito tempo pensando,

questionando. Minha mente estava num estado claro e aberto:

energizada e viva, mas também absolutamente quieta. Eu não

sabia que esse equilíbrio de vivacidade e sossego era possível.

Peguei um velho texto budista e li algumas linhas:

Embora a Mente exista, ela não tem existência. No seu verdadeiro

estado, a Mente é nua, imaculada, um ser do Vazio, transparente,

eterna, não-composta, não concebível como coisa separada, mas

como a unidade de todas as coisas, sem no entanto ser composta

por elas. Surgindo de si mesmas e sendo naturalmente livres como

as nuvens do céu, todas as coisas que aparecem se dissipam... O

todo do Mundo e do Nirvana como unidade inseparável é a mente

de cada um.

Tudo o que eu sabia sobre o mundo se estilhaçou. Não dá para

dizer o que sobrou, pois nada havia de mim mesmo. Havia o que

está aqui antes de qualquer noção de eu. Percebi de uma vez por

todas que não existe eu, que qualquer experiência de eu é uma

ilusão. Somos vazios como um sonho, uma brincadeira da mente.

Aos poucos, parte do mundo voltou, embora a noção que tinha dele

tivesse se modificado completamente. Não sabia mais como devia

viver. Por várias semanas perambulei numa espécie de choque e

leveza."

O portão do vazio pode se revelar na solidão, na presença de outra

pessoa, na meditação profunda ou nas montanhas. Atento a esse

mistério, o coração pode se abrir diretamente para o vazio que dá

origem a todas as coisas.

Para os taoístas, essa experiência é um ouvir sagrado, não por

meio da compreensão do intelecto, mas o "ouvir do espírito", com

todos os sentidos abertos e vazios. Só então, com o vazio de todas

as faculdades, pode o ser total ouvir e saber o que está bem diante

de nós, aquilo que não dá para ouvir só com o ouvido ou só com a

mente. Essa é a sabedoria daqueles que não sabem mas que,

estando vazios, carregam um coração cheio de luz.

Isaac Newton sabia disso. Ele escreveu:

Para mim, sou apenas uma criança brincando na praia, enquanto

vastos oceanos de verdade se estendem não-descobertos diante de

mim.

Através do portão do vazio, para essa criança, a vastidão

desconhecida não é motivo de terror, mas o campo de sua alegria.

6

QUEM É VOCÊ REALMENTE, VIAJANTE?

SATORI E O PORTÃO DA UNIDADE

Um dia, apaguei todas as noções da minha mente. Abri mão do

desejo. Descartei todas as palavras com as quais pensava e fiquei

em quietude. Eu me senti um tanto estranho - como se estivesse

sendo levado para dentro de alguma coisa, ou como se estivesse

tendo contato com algum poder desconhecido para mim... e Ahhh!

Eu entrei. Perdi os limites do meu corpo físico. Eu tinha a minha

pele, é claro, mas parecia que estava no centro do cosmos. Eu

falava, mas minhas palavras tinham perdido o sentido. Via as

pessoas vindo na minha direção, mas todas eram o mesmo homem.

Todas eram eu! Eu não conhecia esse mundo. Eu acreditava que

tinha sido criado mas agora tinha que mudar de opinião: nunca fui

criado; eu era o cosmos; não existia indivíduo algum.

MESTRE S.

A meta da vida espiritual é se abrir para a realidade que existe além

da nossa estreita noção de eu. Assim como é possível entrar nessa

realidade através do sofrimento ou através do grande vazio, é

possível penetrá-Ia pelo portão da unidade e descobrir o que

podemos chamar de "Despertar como o Divino". Através do portão

da unidade, despertamos para o oceano que há dentro de nós.

Descobrimos, de outra maneira, que os mares em que nadamos

não são separados de tudo o que vive.

Esse portão nos mostra o mistério da conexão divina. Todas as

culturas têm rituais e vozes que nos chamam para essa verdade. Lá

está ela, quando ouvimos uma missa de Handel Ou Mozart e

quando vemos o sol entrando pelos vitrais de uma antiga catedral.

Lá está ela, dançando nos ashrams da Índia e com os dervixes da

Turquia, cantando os nomes do Divino noite a dentro. Lá está ela,

na Dança do Sol dos índios norte-americanos. Quando o espírito

sagrado está presente, só podemos nos prosternar em gratidão.

Como diz um swami americano:

"Uma energia bem-aventurada explodiu dentro de mim, subindo até

o topo da cabeça, e meu coração ficou cheio de amor por tudo e por

todos. Então, muitas vezes eu me prosternei, toquei o chão e disse:

'A terra é a minha testemunha.'"

As mais profundas formas de meditação, de ritual, de prece e de

arte sagrada procuram reabrir os olhos e o coração para a unidade.

Nas palavras de Simeão, um teólogo do século onze:

Despertamos no corpo de Cristo...

eu mexo a mão e - maravilha -

minha mão se toma Cristo...

Mexo o pé e no mesmo instante

ele aparece como um relâmpago...

Porque, se genuinamente o amamos,

despertamos dentro do corpo de Cristo,

pleno, conhecido como adorável e radiante...

Despertamos como o Divino

em todas as partes do corpo.

(Tradução de Stephen Mitchell)

Alguns rituais que nos ajudam a despertar para a unidade foram

desenvolvidos ao longo de muitas gerações. Um professor ocidental

fala de um antigo ritual de união que conheceu quando visitou o

Tibete pela primeira vez:

"Só para chegar ao Tibete, saímos de Katmandu e passamos

quatorze horas num ônibus velho, subindo e descendo desfiladeiros

rochosos e depois subindo a montanha, cada vez mais alto. A

viagem ficou ainda mais cansativa e perigosa quando começamos a

percorrer o platô tibetano, cheio de flores minúsculas e rochas

brilhantes. O céu ficou diferente. Era enorme e escuro, maior do

que a terra, como se o próprio Significado de chão e céu fosse

invertido naquelas montanhas selvagens.

Depois de muito viajar, chegamos a um templo na encosta da

montanha, o famoso mosteiro Drepung, num dia em que peregrinos

de todo o Tibete chegavam para uma festa. O pátio se encheu de

lamparinas de manteiga de iaque e de cantos profundos. Na última

noite, lá pelas quatro horas, a multidão saiu para subir a encosta de

uma colina ali perto e esperar pelo nascer do sol. Embrulhados nos

mantos para se proteger do vento gelado, todos recitavam preces e

mantras sagrados. As cometas de cobre do mosteiro, tão grandes

que era preciso três homens para erguer cada uma delas, soltaram

longas notas pelo vale inteiro, pontuadas pelo bater rítmico dos

címbalos.

Quando o céu começou a clarear, uma pintura gigante do Buda da

Compaixão, com quase um acre, começou a ser desenrolada na

grande parede do mosteiro. Ela tocou o chão de madrugada. As

cometas soaram outra vez.

Então, os primeiros raios de sol atingiram a pintura. O enorme Buda

dourado ficou flamejante e, no mesmo momento, a luz do sol tocou

o meu corpo. Tudo tinha sido preparado para dar a impressão de

que a luz vinha daquele glorioso Buda e eu me senti aquecido pelo

coração do Buda, como se o Buda tivesse penetrado em mim. Eu

me transformei totalmente naquele momento. Sabia que o Buda

estava em mim."

Uma peregrinação assim pode inspirar o despertar, mas o que

importa não é viajar. A meta é descobrir essa experiência por nós

mesmos, seja onde for. Em Returning to the Source, Wilson Van

Dusen, um místico ocidental, conta que experimentou o Divino

inúmeras vezes: num entardecer de verão, nos olhos de uma

criança, no gosto de uma maçã.

Como é ser um místico neste mundo? Em parte, é triste. Às vezes,

os místicos atravessam um longo período tendo experiências de

Deus, mas ainda assim continuam inseguros. Uma vez, depois de

uma palestra numa igreja, uma mulher de idade esperou que as

pessoas saíssem. Veio então até mim e eu vi que ela não tinha

mais muito tempo neste mundo. Muito circunspecta, ela me contou

um sonho em que um incrível sol dourado ia até ela e me perguntou

se esse sol era Deus. Pensei em lhe dar a resposta de sempre: "É

preciso analisar o sonho para descobrir." Mas então o impacto

emocional da situação me atingiu. Essa velhinha estava morrendo e

para ela era importante encontrar Deus pelo menos uma vez na

vida. E eu disse: "Sim, era Deus." E nós dois choramos. Mas que

coisa triste! Ela tinha as características de uma pessoa muito

espiritual, com a vida mergulhada em Deus. E mesmo assim

perguntava com desespero se O tinha encontrado ao menos uma

vez. Para mim, ela representa grande parte da humanidade: já

avançou bastante em seu caminho, mas não reconhece os sinais.

Todas as tradições têm seus místicos e todas as práticas sinceras

podem levar à revelação da unidade. Um rabino conta que esse

conhecimento veio a ele num retiro de verão:

"A experiência que abriu o meu mundo interior aconteceu no meio

de uma semana de prece e recolhimento. Era uma manhã tranqüila

e eu me sentei para rezar. Primeiro, eu me cobri com o talite e

ajustei as filacteras na testa e nos braços. ('Tu as atarás também à

tua mão como um sinal'). Fechei os olhos e, enquanto rezava, uma

luz transcendente começou a brilhar à minha volta, como se

brilhasse no mundo inteiro. Ela atravessou os pergaminhos e as

caixas e incidiu diretamente no meu corpo. Essa luminosidade

atravessou as três filacteras e imprimiu a grande oração em minhas

células, na essência do meu ser. A grande oração é: 'Ouve, Israel, o

Senhor é um', que significa que em todas as coisas HÁ UM SÓ

DEUS. Naquele momento compreendi por que a tradição mística é

tão cuidadosa com as orações escritas, que devem ser perfeitas,

sem nenhuma letra rasurada. Em vez de dizer a oração, eu a

habitava. Essa foi a maravilhosa experiência de ser uma oração.

Sei que a nossa vida e o nosso corpo são uma oração.

A partir desse momento, eu lia os salmos e as orações, de Davi ao

Talmud, e tudo se abria. Quando falavam, os grandes sábios do

passado estavam claramente num estado transformado de

consciência."

Há uma história sobre um eremita taoísta que transmite com humor

a verdade da unidade. Uma delegação formal do templo confuciano

resolveu visitar esse eremita e pedir seu conselho. Chegando sem

aviso à sua cabana, ficaram escandalizados ao vê-lo totalmente nu.

"Por que está meditando na sua cabana sem as calças?",

perguntaram. "O mundo inteiro é a minha cabana", disse ele.

"Minhas calças são esta sala. Eu é que quero saber o que vocês

estão fazendo nas minhas calças."

Essa é a verdade que já conhecemos intuitivamente. Uma

personagem dos romances de Alice Walker a descreve da seguinte

maneira:

Um dia, eu estava sentada em silêncio e me sentindo como uma

criança sem mãe, o que era verdade, quando me veio aquela

sensação de ser parte de tudo. Eu sabia que, se cortasse uma

árvore, o meu braço sangraria. E eu ri, chorei e corri pela casa. Eu

sabia o que era aquilo. Na verdade, quando acontece, não dá para

não perceber.

O mundo é a nossa cabana. Sabemos que dividimos o ar que

respiramos com os carvalhos e pinheiros das florestas, que a água

que bebemos desce das nuvens, em forma de chuva, antes de

entrar em nossas células. Tudo o que somos e possuímos é um

presente que nos foi dado pela totalidade da qual viemos e para a

qual voltamos. A mente e o corpo não são separados. Graças à

compaixão natural e ao senso de justiça que os vislumbres da

unidade despertam, começamos a tratar as outras partes de nós

mesmos - tudo o que existe - com sabedoria. Despertando para a

unidade, descobrimos que temos o mesmo sobrenome das

montanhas, dos córregos e das sequóias.

Uma experiência plena dessa verdade é chamada "satori" - a

primeira manifestação da iluminação. Todos nós somos candidatos

ao satori, à recordação do nosso verdadeiro nome - temos apenas

que aprender a nos soltar. Um mestre zen europeu fala do seu

primeiro satori, aos trinta e sete anos. Quando estudante, ele tinha

iniciado a vida espiritual para fugir da dor e da confusão de sua

família e também para entrar numa realidade maior, o que ele sabia

que era possível. Começou a seguir uma disciplina que não se

limitava às práticas tradicionais do Zen: combinava análise dos

sonhos, cura e terapia, práticas que o ajudavam a esclarecer e a se

livrar das tristezas e defesas do passado. Enquanto isso, continuou

a fazer o seu zazen.

"Minha primeira experiência de satori veio no meio. de um

treinamento zen, mas só depois de nove anos de cura psicológica e

de meditação intensiva. Então, foi como se bastasse tanta

preparação e purificação - eu estava maduro. Uma noite, sonhei

com santuários de antigos santos no sopé de uma montanha

sagrada, que só alguns poucos conseguiam enxergar. Comecei a

escalar a montanha chupando um enorme sorvete de casquinha,

enquanto todas as crianças do mundo desciam do topo da

montanha. As crianças desciam alegres para o mundo, mas eu

tinha o sorvete e ria. Éramos todos alegres e inocentes - tudo tão

diferente da minha infância real. Foi como se novas possibilidades

se abrissem dentro de mim.

Fui para o retiro de primavera pouco depois desse sonho. Depois

de uma meditação muito profunda, achei que estava começando a

encontrar o que buscava - mas, como já soubesse alguma coisa,

não me agarrei a essa idéia e continuei meditando. Então, no quarto

dia, minha mente entrou em caos e eu pensei: 'Eu me enganei'.

Mas em vez de usar a concentração como uma espada para

eliminar a confusão e deixar apenas a base luminosa, eu acolhi o

caos com todo o meu coração. Então, corpo, mente e mundo

começaram a se abrir. Foi como uma grande onda se abrindo sobre

mim. Fiquei cheio de alegria e claridade. Estava ao mesmo tempo

vazio e pleno, frio como o inverno e quente como a primavera. Senti

que podia compreender qualquer coisa.

Isso durou dias, semanas. Lembro que no período de meditação da

tarde todos estavam sempre cansados e cheios de dores, mas eu

estava sempre feliz. Quando o mestre zen fazia suas perguntas

impossíveis, eu sorria para mim mesmo. 'Eu sei a resposta.' Mas

continuava a meditar. A energia crescia cada vez mais. Finalmente,

procurei o mestre e ele me perguntou um dos koans mais antigos,

pontuado com um pequeno gesto de mão. Com esse gesto, a sala

desapareceu. Tudo se foi - o vento, as estrelas, os cachorros lá

fora. Todos nós desaparecemos na mesma vastidão. Havia tudo e

nada. E eu ri de tanto assombro. Eu sabia o que ia na mente do

professor, eu sabia a idade do mundo. Meu corpo estava

transparente, o sopro do vento era minha respiração, meus passos

eram a terra se movendo. Depois disso, a vida ficou alegre, viva e

meus mais antigos medos desapareceram. Finalmente eu estava

vivo de verdade. Mas, embora eu tenha ficado meses sorrindo, foi

estranho. Não contei a ninguém da comunidade o que estava

acontecendo porque senti que as pessoas se sentiriam excluídas.

Dessa forma, tomei consciência das dolorosas limitações deste

mundo: até na mais completa abertura, as limitações devem ser

absolutamente respeitadas."

O despertar muda o nosso senso de identidade. Abandonamos a

estreita noção do eu e entramos na consciência ilimitada da qual

viemos. Descobrimos com absoluta certeza que não somos nem

nunca fomos separados do mundo. É como se nosso coração,

nosso saber, se expandisse mais e mais, até conter tudo, até

sermos o mundo.

Outro professor descreve a simplicidade desse saber:

"Eu estava comendo. Foi durante o treinamento intensivo de outono

e fazia vários dias que eu meditava com muito afinco. Estava

determinado a derrubar todas as barreiras e a descobrir tudo -

quem sou eu, o que é esta prática. Ergui minha tigela e de repente

entendi: tudo está certo exatamente como está! O mundo é

totalmente, profundamente pleno. Eu não precisava fazer nada. Não

precisava me esforçar tanto. Parece tão prosaico dizer isso agora

em palavras, mas foi uma revelação enorme, assombrosa, que

trivializou todas as minhas questões e me livrou das mil maneiras

com que eu tentava modificar o mundo e a mim mesmo. Isso tinha

também uma surpreendente dimensão física. Meu corpo

desapareceu, a concha ou recipiente de mim mesmo sumiu, o fundo

do mundo se foi. Minha forma não era mais distinta do mundo. Toda

a minha maneira de ser foi se modificando nos meses seguintes, a

ponto de as pessoas começarem a me perguntar o que havia

acontecido."

Essa abertura para todas as coisas pode acontecer em qualquer

circunstância, como a experiência de Edmund, de Eugene O'Neill,

nos mares da Argentina.

Eu estava deitado na ponta da proa, com a água espumando lá

embaixo, os mastros muito altos com as velas brancas de luar.

Fiquei bêbado com a beleza e com aquele ritmo cantante, e por um

momento eu me perdi - perdi efetivamente minha vida. Fui

libertado... eu me dissolvi no mar, eu me transformei nas velas

brancas e nos respingos, eu me transformei na beleza, no ritmo e

no céu ofuscante de estrelas... eu pertencia, na unidade e na

alegria, à própria vida.

Por um segundo você vê e, ao ver o segredo, você é o segredo.

Para os sufis, isso é "tomar-se uma coisa só com o Divino". O saber

que buscávamos nos ilumina o corpo e o coração, como aconteceu

a uma freira dominicana que pertence à ordem há quarenta e dois

anos.

"Na infância, eu já tinha uma relação muito pessoal com Jesus. já

freira e sabendo mais sobre oração, costumava perguntar: 'Onde

está Jesus agora?' Estávamos sempre rezando, servindo e

purificando o coração para recebê-lo. Mas eu sabia que era mais do

que isso. À noite, Jesus vinha a mim, um espírito forte e consolador.

Ele entrava no meu corpo. Em muitas ocasiões, um êxtase

espiritual percorria como um amante, durante horas, todas as partes

do meu corpo. Ficava acordada durante horas. Não conseguia falar

disso, embora me sentisse radiante e profundamente realizada. Ele

enchia meu coração de amor. Comecei a ver Jesus em toda parte -

nas pessoas que lutavam, nos pobres, na mais ínfima de Suas

criaturas, em minhas irmãs, nos ricos. Eu servia a todos com amor,

como 'Cristo em Seu disfarce desolador'. Para alguns pode parecer

heresia, mas Jesus está entre nós, em cada ser humano, em cada

pedra, em cada ato, em cada sucesso e em cada erro. Sua glória

está no damasqueiro do jardim, no presente que dou à minha

sobrinha, em minhas mãos e nos meus olhos. Eu O sinto neste

corpo que me foi dado. Que belo reino para se despertar, a

presença divina no mundo."

Quando a nossa identidade se expande para incluir todas as coisas,

ficamos em paz com a dança do mundo. O oceano da vida sobe e

desce dentro de nós - nascimento e morte, alegria e dor, tudo nos

pertence e nosso coração está cheio e vazio, tão grande que acolhe

tudo.

7

A PASSAGEM SEM PORTÃO:

O PORTÃO DO ETERNO PRESENTE

Na verdade, não há nenhum ensinamento real para você ficar

remoendo. Mas, como você não acredita em si mesmo, você pega

sua bagagem e vai de casa em casa procurando o Zen, procurando

o Tao, procurando os mistérios, procurando o despertar, procurando

Budas, procurando mestres, procurando professores. Você acha

que essa é a busca suprema e faz disso a sua religião. Mas isso é

como correr às cegas. Quanto mais corre, mais longe você vai

parar. Você só se cansa e, no fim, de que adianta?

MESTRE ZEN FOYAN

Um jovem monge perguntou ao Mestre:

"O que faço para me emancipar?"

O Mestre respondeu:

"E quem o pôs no cativeiro?"

ENSINAMENTOS ADVAITA

Às vezes, conhecemos sábios que nunca foram a um lugar em

especial, nunca tiveram uma prática espiritual sistemática, nem

experiências místicas. É a generosa funcionária da creche, o sábio

que trabalha na biblioteca, a avó boazinha que todos adoram. Tais

pessoas emanam sabedoria, proximidade, bondade e liberdade de

coração. Elas não têm medo de abrir mão das coisas, de amar e de

viver.

Quando falamos de caminho espiritual, a existência de tais pessoas

coloca uma questão: e as que praticam anos e anos, aprofundam

sua sabedoria mas nunca têm uma experiência extraordinária de

graça, satori ou despertar? Isso também é muito comum. Por quê?

Examinar esses exemplos nos ajuda a desfazer uma confusão que

os últimos capítulos podem ter criado. Assim como é perigoso para

uma cultura ignorar o processo de iniciação e a experiência de

satori, graça e iluminação, é perigoso descrevê-los com muitos

detalhes: podemos glamurizar essas histórias e superestimar sua

importância, achando que são uma necessidade na vida espiritual.

Mas, estabelecendo como meta uma determinada experiência,

corremos o risco de passar anos e anos buscando fora de nós uma

coisa que sempre esteve dentro de nós. Ou de começar a duvidar

de nós mesmos e das nossas experiências, insatisfeitos com o

coração e a vida espiritual que temos.

Quando voltei para o meu professor Ajahn Chah depois de um

longo período de treinamentos intensivos nos mosteiros, eu lhe falei

das minhas descobertas e experiências. Ele me ouviu com atenção

e depois falou: "Agora você tem que abrir mão disso também, não

é?"

Não podemos esquecer que o lugar para onde estamos indo é aqui,

que qualquer prática é apenas uma forma de abrir o coração para o

que está bem diante de nós. Onde estamos agora é o caminho e a

meta.

Uma vez, pedi a um lama que me falasse de sua realização e ele

me falou da sabedoria contida na total trivialidade de tudo o que

fazia. Seus longos retiros e seu treinamento tradicional eram o "seu

trabalho", assim como o trabalho do padeiro é fazer pão. Quando

eu lhe pedi que falasse de um momento de iluminação, ele riu e

respondeu:

"Estamos sempre tentando fazer alguma coisa especial, maior,

melhor do que o que já existe. Qualquer descoberta que eu tenha

feito foi apenas uma confirmação do que já existe. Os rumores e os

ensinamentos são verdadeiros: somos seres luminosos e o

despertar é a nossa natureza. Mas, se você faz questão que eu

conte uma história, posso contar que um dia eu estava

descansando à vontade quando um monge entrou. Ele olhou para

mim e disse: 'Estou vendo que aconteceu alguma coisa.' Relaxado

e presente, eu tinha tido um momento eterno, ou horas - quem

sabe? - de perfeita plenitude e paz. Eu mal tinha notado esse

momento, mas o monge notou e seus olhos o refletiram para mim.

Comecei a ver esse reflexo em toda parte e nele eu estava

completamente relaxado. Eu não precisava fazer nem ser coisa

alguma. Estava tudo como sempre, mas ao mesmo tempo estava

tudo muito claro - despertar para esse momento agora é tudo."

Quando lhe perguntaram sobre o caminho da prática, o Buda

explicou que há quatro maneiras de a vida espiritual se

desenvolver. A primeira é rapidamente e com prazer. Nesse

caminho, o desabrochar vem naturalmente, como num parto fácil,

acompanhado de alegria e arrebatamento. A segunda é a maneira

rápida mas dolorosa. É nesse caminho que estão as experiências

de quase-morte, os acidentes ou perdas insuportáveis. Ele

atravessa um portão flamejante para nos ensinar a deixar tudo

seguir seu curso. A terceira forma de avanço espiritual é gradual e

acompanhada de prazer. Nesse caso, o desabrochar ocorre ao

longo dos anos, em geral com facilidade e prazer. O quarto

caminho, o mais comum, é também lento e gradual, mas nele

predomina o sofrimento. A dificuldade e a luta são um tema

recorrente e é através delas que aos poucos aprendemos a

despertar.

Nessa questão não temos escolha. Nós nos desenvolvemos de

acordo com os padrões da nossa vida, chamados às vezes de

"destino" ou "karma". Seja qual for a velocidade aparente, temos

que nos entregar ao processo. Na verdade, não dá para medir o

progresso. É como estar no meio do oceano num barquinho a remo.

Remamos, mas há também uma corrente maior: podemos seguir

sempre para o leste, mas sem saber que distância percorremos. É

só no começo que surge a questão da distância e do tempo. Pouco

importa a distância que achamos que percorremos. É a disposição

a nos abrir agora, radicalmente e repetidamente, que caracteriza

essa jornada.

Seria mais exato acrescentar um quinto caminho aos quatro

caminhos de desenvolvimento espiritual descritos por Buda. É um

caminho sem esforço, sem velocidade, sem jornada. Em vez de

passar pelo portão da unidade ou pelo portão da tristeza, passamos

pela passagem sem portão, onde a idéia de jornada e esforço é

uma ilusão. O lugar para onde estamos indo é aqui.

Para melhor compreender esse caminho, é preciso perceber que há

duas maneiras complementares de chegar ao despertar e à

iluminação. Uma é o caminho do esforço; a outra, o caminho do

não-esforço. No caminho do esforço, nós nos purificamos, lutamos

para eliminar o que nos impede de estar presentes, ficamos tão

concentrados no despertar e na iluminação que o resto desaparece.

Finalmente, somos forçados a deixar para lá esse resto de

sofreguidão, o desejo de atingir a iluminação. Nesse último ato de

desapego, tudo fica claro. Mas no caminho do não-esforço, não há

luta. Nós nos abrimos à realidade do presente. A única exigência é

manter o senso de naturalidade. É daí que vem a compreensão e a

compaixão.

Na verdade, esses dois caminhos fazem parte da jornada de todos

nós. Ambos nos levam ao desapego. Como diria Dipama, um dos

meus professores: "Os dois caminhos são o melhor." O esforço com

sabedoria é importante. Mas, por mais árduo que seja o caminho,

por maior que seja o esforço, o despertar do coração acaba sendo

um ato de graça, um vento de primavera que varre as

preocupações e os medos e refresca o coração.

Meditar, rezar e ouvir é como abrir as portas e as janelas. Não dá

para planejar a brisa. Como diz Suzuki Roshi: "Não dá para marcar

um encontro com a iluminação." Há uma frase que diz mais ou

menos a mesma coisa:

"Atingir a iluminação é um acidente. A prática espiritual só nos toma

propensos a ele."

A avidez nos faz perder o momento, que é agora. Há a história do

estudante zen muito afoito que chega ao templo e diz: "Quero entrar

para a comunidade e trabalhar para atingir a iluminação. Quanto

tempo vai levar?" "Dez anos", responde o mestre. "E se eu trabalhar

muito e duplicar os meus esforços?" "Vinte anos." "Ei, espere um

pouco. Isso não é justo! Por que o tempo dobrou?" E o mestre diz:

"No seu caso, acho que vai levar trinta anos."

Um mestre sufi conta que seu desabrochar foi um processo

contínuo e não numa única experiência de transformação.

"Eu me lembro, é claro, de várias descobertas e revelações, mas no

geral minha vida espiritual tem sido um processo de anos e anos de

abertura da consciência. Esse processo tem que ser respeitado e

favorecido. Ele se intensifica quando dou atenção ao que está

acontecendo dentro de mim, ao que está querendo se abrir. E a

cada nova capacidade que percebo em mim, descubro também o

que está impedindo que eu me abra. Percebo, por exemplo, que

minha compaixão aumentou, mas percebo também que tenho

dúvidas e resistências que me impedem de viver em compaixão.

Identificar essas coisas é o passo seguinte do processo de

abertura.

Conhecemos a verdade, mas temos que superar o apego e as

crenças que nos limitam. É preciso estar atento para que o

processo de abertura não pare. Mas atingimos um ponto em que ele

avança por si mesmo. Não há como voltar quando sabemos o que é

repousar no Verdadeiro Ser, o que é confiar, embora às vezes a

resistência volte. Sabendo que é isso que somos, a compreensão

não desaparece."

Em vez de buscar a iluminação como se ela fosse um estado

distante, aprendemos a reconhecer que ela está, como o Zen nos

ensina, "mais perto do que perto". Na passagem sem portão, esse

despertar natural é um direito de nascença.

Ajahn Chah, em meio a uma cultura budista que superenfatiza a

longa jornada para a iluminação, dizia sempre a seus monges e

freiras que o despertar é natural e está bem à mão. Segundo ele,

quem não sente o jorro da iluminação nos primeiros seis meses no

mosteiro está perdendo tempo. Ele dizia que a iluminação é um

estado inerente, que podemos aprender a confiar no coração,

naturalmente silencioso e livre, independentemente das condições

que se modificam à nossa volta.

Em si mesma, a mente é eterna, naturalmente em paz, imóvel.

Repouse nesse estado natural. Inconstantes, as impressões

sensoriais fazem com que a mente se esqueça de si mesma, fique

iludida e confusa. Pois sua prática é enxergar esse processo e

voltar à mente original.

Ajahn Chah observa que, através da reflexão cuidadosa e da

meditação aplicada, podemos enxergar essa realidade sempre que

ficamos em silêncio. Todas as experiências são sem eu, sem

existência independente. Elas surgem e passam como o vento, de

acordo com certas condições. Ele ensina que, nos momentos de

silêncio em que enxergamos essa verdade, saímos das condições

que chamamos de "eu" e atingimos o saber eterno, incondicional.

Assim, a prática é conhecer o mundo inconstante e não se perder

nele.

Nesse ensinamento, a perspectiva da nossa experiência se inverte.

A iluminação é o estado verdadeiro e a prática espiritual nos ajuda a

desfazer a confusão e a viver na realidade do presente. Nós somos

a meta.

Uma mestra de meditação budista fala que sua vida se transformou

sem que houvesse um acontecimento notável ou satori: só o fluxo

sem fim do próprio despertar.

"Cá estou eu, professora de centenas e centenas de alunos,

inclusive de alguns que tiveram importantes experiências de

abertura na meditação. Mas não foi esse o meu caminho. Por muito

tempo, foi duro para mim aceitar que 'nada acontecia'. Não sou uma

pessoa de grandes experiências dramáticas. Há trinta anos eu me

limito a praticar, sem sucumbir às minhas próprias idéias de

desânimo ou sucesso. Às vezes, faço meses de treinamento

intensivo, mas sem nenhuma experiência espetacular. Nos dez

primeiros anos foi difícil, mas pelo menos nunca caí no engodo de

achar que era uma pessoa especial.

No entanto, alguma coisa mudou. O que mais me transformou

foram as infindáveis horas de atenção total ao que estava fazendo.

Eu percebi que jamais abandonaria os fardos interiores de uma só

vez, mas muitas e muitas vezes. Aos poucos, fui largando o fardo

dos julgamentos, do medo, da desconfiança em relação a mim

mesma, da rigidez do corpo e da mente. Descobri que a rigidez e a

avidez despontam automaticamente e, com essa descoberta,

comecei a me abandonar, a me abrir, a apreciar a vida, a ter

sossego. Os ensinamentos tradicionais começaram a fazer sentido:

não há ir nem vir; desde os primórdios do ser, nada aconteceu nem

vai acontecer. Essa descoberta foi uma confirmação do que eu já

sabia. Fiquei menos séria, menos preocupada comigo mesma.

Minha bondade ficou mais profunda e alguns amigos dizem que eu

fui ficando cada vez mais igual a mim mesma. Dizem que houve

uma grande mudança em mim, mas nenhum acontecimento

especial a causou. Ela é o fruto das vezes sem conta em que estive

presente. É simples assim."

É fácil cair no engodo de que existe uma meta, um estado, um lugar

especial a ser atingido na vida espiritual. Às vezes, ouvindo relatos

de experiências extraordinárias, criamos uma idéia de como deveria

ser a nossa vida, começamos a nos comparar com os outros. No

Tibete, um famoso yogue vivia havia anos praticando numa cabana

na montanha, sustentado pelos habitantes do vilarejo próximo.

Então, num dia de festa, ele ficou sabendo que seus vizinhos e

benfeitores iam visitá-lo. O yogue varreu a cabana, poliu as tigelas

do altar, fez uma oferenda especial e lavou suas roupas. Depois se

sentou para esperar, mas começou a ficar apreensivo. Estava

tentando ser o quê? Levantou, pegou a poeira do chão e a espalhou

de novo no altar. Esses punhados de poeira foram a sua maior

oferenda espiritual.

Quando transpomos a passagem sem portão, chegamos ao fim da

busca. Já percorremos muitos caminhos na tentativa de atingir a

iluminação ou de ser alguma coisa especial. Finalmente, entramos

no portão do eterno presente e descobrimos que não estamos indo

a lugar algum. Aqui é o lugar, o único lugar de perfeita paciência,

paz, liberdade e compaixão. O poeta zen Ryokan trata essa

verdade como o ápice de sua vida em busca da sabedoria:

Minha vida pode parecer melancólica,

Mas viajando por este mundo

Eu me entreguei ao Céu.

N o meu saco, três quartos de arroz;

Junto ao fogão, uma pilha de lenha.

Se alguém perguntar qual é a marca da

iluminação ou ilusão

eu não sei dizer - fortuna e honra não passam de poeira.

Quando a chuva da noite cai, eu me sento no meu retiro

E me espreguiço em resposta.

(Tradução de John Stevens)

Ryokan repousa no coração compreensivo. Sem buscar mais nada

no mundo, ele confia no Tao. A iluminação é a sua própria presença

e a sua reação ao mundo é benevolente e natural.

Uma mística cristã, com uma vida espiritual ativa há trinta anos,

conta a sua história:

"Sempre fui inspirada por místicos como Santa Teresa de Ávila e

São João da Cruz. Quando passei uma temporada num convento,

depois do fracasso de um relacionamento e de problemas de

família, li seus escritos vezes sem fim. Eu tinha a idéia romântica de

que estava atravessando a noite escura da alma. Só que ela não

teve um fim, não houve uma grande experiência, não houve uma

iluminação mística no final. Quando saí do convento e me tomei

assistente social, mantive a prática de orações e contemplação,

mas minha vida continuou comum e escura por muitos anos. Agora

percebo que eu estava deprimida e solitária - nada de muito místico.

Então, há dez anos, fiz um retiro com o Padre Bede Griffiths, um

velho monge católico que tem um ashram na Índia. Ele usava

roupas de cor laranja de yogue, tinha os cabelos brancos e uma

profunda alegria irradiava do seu ser como narcisos brilhando

depois de um longo inverno. Conversamos e ele me disse que eu

havia criado uma história, uma imagem ideal da jornada espiritual.

Então ele segurou meu rosto nas mãos e, com muito amor, disse:

'Por que não ser o seu eu que é único? É só isso que Deus quer de

você.' E eu chorei e dancei e ri de tudo o que eu sempre tentei ser.

Minha vida de oração e contemplação continuou como sempre, mas

eu não estou deprimida e passei a gostar da minha vida. Não tive

nenhuma grande experiência, mas quando comecei a gostar de

mim, tudo mudou."

A tradição zen é cheia de relatos assim. Um discípulo do Mestre

Zen Kassan vivia com o mestre mas, achando que os ensinamentos

não lhe serviam, saiu em peregrinação. Mas ouvia em toda parte

elogios a seu mestre, considerado o melhor dos professores.

Finalmente, voltou. Saudando o velho mestre, perguntou: "Por que

não revelou sua profunda compreensão para mim?" O mestre

respondeu com um sorriso: "Quando você cozinhava o arroz, eu

não acendia o fogo? Quando você me oferecia comida, eu não

estendia a tigela? Quando foi que eu o traí?" Com isso, o monge

ficou iluminado.

A perfeição sagrada que buscamos está aqui. Sempre esteve.

Julian da Noruega situa essa perfeição no centro de suas orações:

"E tudo vai dar certo, o curso das coisas está certo." Reconhecer a

perfeição das "coisas como elas são" é uma abertura radical do

coração, uma reverência à sagrada plenitude que é a base de tudo.

Essa perfeição está sempre conosco e podemos despertar para ela

em qualquer situação.

Cabe perguntar: "Por que nunca tive uma amostra da iluminação ou

da perfeição?" A verdade é que isso deve ter acontecido, só que

nós não percebemos. É como o ar invisível que nos envolve e

sustenta a vida.

Ajahn Buddhadasa, cujo mosteiro ficava numa floresta da Malásia,

chamou os alunos para o frescor das árvores. Então, ensinou-os a

procurar o Nírvana nas coisas mais simples, em momentos do

cotidiano. Disse ele: "O Nirvana é o frescor do abandono, o prazer

de experimentar sem sofreguidão nem resistência à vida."

Qualquer um percebe que, se a avidez e a aversão fossem

constantes, ninguém as suportaria. Nessas circunstâncias, as

coisas vivas morreriam ou ficariam loucas. Sobrevivemos porque há

períodos naturais de frescor, de plenitude e sossego. Na verdade,

esses períodos duram mais do que os fogos da avidez e do medo.

É o que nos sustenta. Os períodos de repouso nos deixam

renovados, vivos, nos deixam bem. Por que não somos gratos por

esse Nirvana de todos os dias?

Conhecemos o abandono - nós nos abandonamos todas as noites

quando vamos dormir. Esse abandono, como uma boa noite de

sono, é delicioso. Abrindo-nos assim, conseguimos viver na

realidade da nossa plenitude. Quem se abandona um pouco tem

um pouco de paz, quem se abandona mais tem uma paz maior. Ao

transpor a passagem sem portão, começamos a valorizar os

momentos de plenitude. Começamos a confiar no ritmo natural do

mundo assim como confiamos no sono e na maneira da respiração

se respirar.

Num retiro, um psicólogo que tinha devotado quinze anos à prática

espiritual estava mais uma vez às voltas com a questão dos

relacionamentos. A saudade, a avidez e a culpa não o deixavam em

paz. Conversamos e eu sugeri que, durante alguns dias, ele

dirigisse a si mesmo uma meditação de amor-bondade. No começo

ele não quis. Como quase todo mundo, ele não se sentiu à vontade

com a idéia de se concentrar em si mesmo. Era estranho dirigir a si

mesmo a intenção de amor-bondade durante dias a fio. Mas o retiro

continuou e seu coração foi amolecendo. Ele começou a perdoar os

outros e a si mesmo.

O mundo começou a ficar mais bonito. E então veio a

compreensão:

"Eu é que preciso me amar. Ninguém pode fazer com que eu me

sinta pleno. Só eu posso dar esse amor. Agora eu sei que a

plenitude está ao meu alcance e ao alcance de todos os seres em

toda parte. Esse saber me permite viver com uma nova

tranqüilidade e bondade em relação a mim mesmo e aos outros. Da

maneira mais simples, ele mudou toda a minha vida."

A prática espiritual não nos dá conhecimento, mas afeta a nossa

maneira de amar. Amamos o que nos é dado, amamos em meio a

tudo, amamos nós mesmos e os outros? Enxergamos a luz que o

sol nos dá todos os dias? Se não, o que fazer- no corpo, no coração

e na mente - para nos abrir, para nos abandonar, para repousar na

perfeição natural? a portão está aberto: o que buscamos está diante

de nós. É assim hoje e todos os dias.

a professor de meditação Larry Rosenberg foi praticar na Coréia

com o Mestre Zen Seung Sahn. Nessa viagem, foi visitar outros

templos e outros mestres e, numa estrada remota, descobriu um

santuário budista de grande elegância na base de uma montanha.

Junto a ele havia uma placa - "Caminho para o mais Belo Buda de

Toda a Coréia" - e uma seta apontando para um caminho de mil

degraus montanha acima. Larry resolveu subir os degraus e,

finalmente, chegou ao topo. A paisagem era de tirar o fôlego e havia

um templo de pedra tão elegante quanto o da estrada. Só que no

altar, no lugar no Buda, não havia nada, só o espaço vazio e a

maravilhosa paisagem. Quando chegou mais perto, viu uma placa

sobre o altar: "Se você não consegue enxergar o Buda aqui, é

melhor descer e praticar mais um pouco."

TERCEIRA PARTE

NÃO EXISTE

APOSENTADORIA ILUMINADA

8

PARA ALÉM DO SATORI:

OS MAPAS DO DESPERTAR

A filha de um pastor perguntou-lhe de onde vinham as idéias para

seus sermões.

"De Deus", respondeu ele. "Então, por que você sempre apaga uns

pedaços?", perguntou a menina.

PADRE ANTHONY DE MELLO

Uma pessoa claramente iluminada cai no poço. Como é isso?

KOAN ZEN TRADICIONAL

Como saber o que está além do despertar? Quando Sócrates

estava na prisão à espera da execução, ouviu outro preso cantando

complicados versos líricos do poeta Estesicoro. Ele implorou que o

outro lhe ensinasse o poema: "Mas para quê?", perguntou o preso.

Sócrates respondeu: "Para eu morrer sabendo mais uma coisa."

A vida espiritual é a mesma coisa. Ela envolve um amadurecimento

da compreensão, um desabrochar continuo. É a sabedoria "pós-

iluminação". Como disse o mestre chinês Hsu Yun aos 120 anos,

pouco antes de morrer: "Há muitos satoris menores antes de um

satori maior, e muitos satoris maiores nó caminho do verdadeiro

despertar."

Místicos de todas as tradições ensinam que, por mais poderoso que

seja o despertar, a capacidade de viver nessa realidade acaba

passando. No começo não parece. O satori desperta em nós uma

compreensão e uma liberdade tão arrebatadoras que é difícil aceitar

que são apenas o primeiro passo. Mas em todos os caminhos

espirituais há mapas ou descrições de um processo de despertar

continuo.

Às vezes, esse desenrolar é passar a níveis de visão mais

elevados. O místico cristão São João da Cruz conta que, das altas

encostas do Monte Carmelo,conseguiu ver com mais clareza do

que nunca. Às vezes é estabilizar a compreensão inicial, o que os

mestres tibetanos Dzogchen consideram necessário. Na última

cena da série de pinturas zen sobre a doma do boi, o monge e o boi

voltam juntos ao mercado dando graças - embora sua viagem

esteja longe do fim. Na verdade, a aventura mal começou. Cada

tradição tem uma imagem para mostrar que a vida continua depois

do despertar do coração, mas todas ensinam que o primeiro

desabrochar é apenas o começo.

O DESPERTAR É SÓ O INÍCIO DE UM PROCESSO

No Budismo, um dos mais conhecidos mapas do despertar vem da

tradição Theravada dos Anciãos do Sudeste Asiático. No mapa dos

Anciãos, a iluminação segue quatro estágios progressivos de

"Nobre Compreensão", sendo que cada um corresponde a um novo

nível de liberdade. O estágio inicial é chamado "Entrar na Corrente".

Entramos na corrente quando sentimos pela primeira vez a

liberdade absoluta da iluminação, uma liberdade do coração que

está além de todas as condições inconstantes do mundo.

Como o satori ou kensho (um profundo despertar) no Zen, a entrada

na corrente modifica a compreensão. Nessa primeira iluminação,

passamos a enxergar além da ilusão do eu separado, deixamos de

nos identificar com o corpo e com a mente e despertamos para a

paz eterna do Nirvana, Com isso, a vida muda de direção para

sempre: a corrente em que entramos nos leva inapelavelmente para

uma liberdade maior, assim como uma corrente impetuosa leva

uma folha para o mar.

Mas, dizem os Anciãos, tendo visto a verdade, temos que nos

purificar ainda mais para transformar o caráter e integrar à vida

essa nova compreensão. Assim, passamos da entrada na corrente

para o segundo estágio: "Voltar De Novo." No fim de um processo

profundo, que em geral leva muitos anos, abandonamos os hábitos

mais grosseiros de avidez e aversão que recriam a tímida e limitada

noção do eu. Nesse estágio, com atenção constante e sincera,

descobrimos que sofremos quando nos agarramos a desejos e

medos, a idéias e ideais. Uma vez compreendidas, essas forças

motrizes da vida humana perdem seu domínio sobre nós. Por fim,

uma profunda realização abate as forças mais poderosas do desejo,

da avidez, da raiva e do medo. Completamos assim o segundo

estágio.

O terceiro estágio é chamado pelos Anciãos de "Sem-Volta". Nele,

estamos irrevogavelmente livres do desejo, da avidez, da raiva e do

medo: nunca mais voltaremos ao seu domínio. Os poucos que

avançam até esse estágio passam antes por um longo processo de

permanência na calma e no vazio. Quando a sabedoria aumenta,

movimentos sutis de apego são abandonados assim que

despontam - e podemos repousar em liberdade. Nesse estágio, a

realidade do presente e a profunda paz do coração raramente são

perturbadas.

Finalmente vem o quarto estágio, o mais extraordinário de todos,

chamado "Grande Despertar". Nele, os últimos sinais de apego - à

alegria, à liberdade e à própria meditação - desaparecem. Agora,

sem a menor identificação com o eu, estamos livres de todos os

vestígios de orgulho, de inquietação e de separação que escondem

o puro ser. A radiância de nossa verdadeira natureza brilha

desimpedida por toda a vida.

Segundo esse mapa dos Anciãos, mesmo quem teve uma

iluminação profunda pode ser apanhado pela avidez, pela raiva e

pela desilusão. Quem entra na corrente tem inspiração para ensinar

muitas coisas relativas à iluminação, mesmo que não as viva. É por

isso que os outros estágios do despertar são essenciais.

Segundo a maioria dos mestres, depois da primeira iluminação

ainda há períodos de medo, de confusão, de perda de direção

espiritual e de conduta inábil. Por mais arrebatadora que seja a

visão, por mais profunda que seja essa primeira sensação de

liberdade e graça, o processo de maturação é essencial. Ao longo

de, tantos anos, não conheci um único ocidental que não precisasse

desse processo, assim como a maioria dos professores asiáticos.

Quem não consegue entender essa verdade está se fazendo de

tolo. Uma vez, uma mulher disse com orgulho a Mullah Nasruddin:

"Meu filho terminou os estudos." Nasruddin respondeu: "Deus vai

lhe mandar mais, sem dúvida." Assim é para todos.

Há uma considerável discordância entre os Anciãos em relação ao

que é entrar na corrente, pois os meios para se atingir esse estágio

variam muito. Numa linhagem, ele é atingido graças à meditação

profunda, que dissolve a solidez do corpo e qualquer identificação

com ele. Em outra, só quando não há mais identificação com a

mente. Alguns mosteiros ensinam que entrar na corrente não

depende da meditação profunda, pois é um estágio natural aos

primeiros meses de prática, quando nos livramos do apego.

Segundo alguns professores, um único encontro com o mestre ou

uma simples alusão à perfeição sempre-presente pode

desencadear a entrada na corrente. Alguns dizem que ela acontece

depois de uma longa luta com um koan. E mesmo os mestres de

um mesmo mosteiro podem não concordar entre si quando se trata

de dizer se um aluno atingiu ou não esse estágio.

Talvez seja melhor respeitar a verdade dos vários caminhos.

Entramos na corrente quando abandonamos a estreita noção de eu

e nos abrimos à liberdade e à confiança. Talvez seja como diz Louis

Armstrong: "Não sei falar sobre jazz - você entende quando ouve."

Depois da entrada na corrente, há ainda menos instruções precisas,

sem ambigüidade, à disposição dos alunos que pretendem seguir o

caminho. Um professor budista, conhecido como um dos mais

fortes praticantes do Ocidente, disse:

"Depois de anos de retiro, fui para Burma. O professor exigiu

empenho total e eu passei por muitos estágios de percepção, que

foram me levando a uma incrível compreensão do dharma - achei

que entrar na corrente era isso e o Sayadaw pareceu confirmar. Foi

um período inspirador e os efeitos daquele nível de consciência

duraram muito tempo. Achei então que seria fácil passar para o

outro estágio da iluminação. No ano seguinte eu me entreguei à

prática, mas fiquei repetindo o que já conhecia, sem que nada de

novo acontecesse. Fiquei frustrado e, quando avancei um pouco

mais, senti como é profundo o nível seguinte do apego.

Perguntei a vários mestres o que era preciso para atingir o estágio

seguinte, mas as respostas foram surpreendentemente vagas e

obscuras. Finalmente, meu Sayadaw disse que, no caso dele, esse

estágio da prática foi uma purificação que levou muitos anos. Por

ora, continuo seguindo a direção do dharma, mas não sei se dá

para saber o quanto avançamos e o quanto temos ainda que

avançar."

A HUMILDADE E A NOITE ESCURA

Nos mapas dos místicos cristãos, os caminhos espirituais

superiores são um processo de crescente humildade e purificação.

São João da Cruz diz que no começo há alguns momentos de

graça, seguidos de longos períodos de dor, em que perdemos o

senso de ligação com o Divino. Segundo ele, essas noites escuras

são estágios necessários da jornada sagrada.

Ele diz que a primeira é a "Noite Escura dos Sentidos", em que as

coisas do mundo perdem o gosto. É um período de perda profunda,

quando tudo o que nos confortava no passado perde seu

Significado. Depois da mais esplêndida das iluminações, entramos

num campo seco e estéril, sem conhecimento claro da estrada do

coração. São João da Cruz diz que esse é um tempo em que o

caráter se purifica do orgulho, da avidez e da ira. É quando

percebemos melhor as tristezas do mundo, que existem porque nos

afastamos do Divino.

Depois da Noite Escura dos Sentidos vem a "Noite Escura da

Alma", que exige purificação e entrega ainda maiores. É um

purgatório de aflição e confusão, como no julgamento de Jó. Desse

período de purificação surge um amor veemente pelo Divino.

Uma grande recompensa aguarda quem respeita as noites escuras

da alma:

São João fala da indizível doçura, da graça que flui para a alma que

se entregou profundamente a essa "esplêndida escuridão". Nessa

longa jornada, é a perseverança humilde que importa. São João diz:

"O amor do coração é a chama que nos leva pela estrada da

escuridão."

Um professor de meditação diz que, no seu caso, a noite escura

veio depois de anos de contemplação e de se abrir para o Divino.

"Depois de muitos anos em comunidades católicas e budistas, foi

num longo retiro solitário que o indescritível aconteceu. A descrição

mais próxima está nas palavras de Santo Agostinho: vi que Deus

estava mais próximo de mim do que eu estava de mim mesmo.

Deus era um vasto oceano e eu era uma fina membrana, flutuando

na superfície, insubstancial, que depois se foi...

Meses depois, quando o êxtase e o divino desabrochar que veio

com essa percepção arrefeceram, caí num estado pesado de medo

profundo. Foi o início de um período infernal. Depois da efusão

emocional, tudo ficou mortiço, sem sentimento, sem significado.

Como eu tinha saído do centro budista e voltado para Ohio para

ficar perto da minha filha, arrumei um emprego sem importância.

Meu corpo desenvolveu urticária e asma. A perda e a dor sem fim

me levaram ao desespero e eu cheguei perto do suicídio ou da

psicose, embora minha aparência fosse normal. Era impossível

rezar e meditar.

Um dia, depois de meses de sofrimento, eu me senti tão derrotado

que me joguei no chão do banheiro pedindo a misericórdia de Deus.

De repente, esse estado torturado saiu de mim, como a água sai de

uma banheira. Durante duas horas, fiquei sentado no chão em

êxtase, alegria e paz. Percebi que as dificuldades eram obra de

Deus e que as tristezas fazem parte do caminho. Lembrei da minha

confiança em Deus. Depois de duas horas de descanso, achei que

dava para agüentar e que, se aquele estado fazia parte da obra de

Deus, eu o queria de volta. Foi inacreditável, pois no mesmo

instante tudo voltou - vindo de baixo, como se a água estivesse

enchendo de novo a banheira. Ficou tudo como antes, doloroso e

terrível, mas esse breve período de misericórdia divina fez toda a

diferença. Eu sabia que dava para agüentar, que eu queria passar

por tudo o que Deus tinha me dado, fosse o que fosse. Senti uma

enorme gratidão pela graça e pela ternura que Deus demonstrou

naquele momento, como a mais terna das mães, que nos ajuda e

nos ampara quando caímos. Foi ali, em meio à pior das dores, que

aprendi que eu não tinha escolha: só me restava viver na graça de

Deus."

São João da Cruz fala de noite escura, mas Santa Teresa usa a

imagem de um "castelo interior" para explicar que o senso de

mistério e humildade tem que crescer "quando a alma se aproxima

do trono de Deus no centro do castelo". Em seu mapa, os anos de

jornada da alma passam por sete estágios ou moradas interiores.

São estágios de purificação que aos poucos nos libertam dos

perigos do medo, da fortuna, da honra e dos "consolos do mundo".

Como São João da Cruz, ela diz que contemplativos

experimentados passam por estágios de solidão, aflição e

decepção, sustentados apenas pelo ardor constante do amor e da

prece. "O importante não é pensar muito, mas amar muito." Ela diz

que, depois de uma longa jornada de amor e graça, entramos num

renascimento espiritual em que a alma se transforma em lagarta no

casulo do Divino: ela morre para seu antigo estado para depois

irromper com asas.

Mas, já despertos e fora do casulo, vemos que ainda há nuvens - só

que mais sutis. O místico anônimo do século quatorze que escreveu

The Cloud of Unknowing diz: "Através da contemplação somos

purificados da tristeza... mas nesta vida nunca atingimos uma

segurança perfeita."

O CAMINHO NÃO É LINEAR MAS CIRCULAR E CONTÍNUO

Essas descrições dos estágios espirituais fazem com que o

caminho pareça simples, linear e progressivo, como se a vida

espiritual se desenrolasse passo a passo ao longo do tempo. De

certa forma, os mapas estão corretos: nos anos de prática

espiritual, nós aos poucos nos purificamos, nos abrimos, nos

libertamos e nos estabilizamos. Só que não é em linha reta. Nem

nos mosteiros de Burma e do Tibete, nem nos relatos de místicos

cristãos, judeus e sufis, há alguém cujo caminho seja linear.

O desabrochar do coração humano é ardiloso e misterioso.

Queremos que o caminho seja ordenado e previsível, mas é só

viajando que descobrimos os caminhos do coração. Não dá para

capturar a liberdade e situá-Ia no tempo. Para o espírito maduro, a

liberdade é a própria jornada. Ela é um labirinto, um círculo, uma

flor se abrindo pétala a pétala, um aprofundamento espiritual, uma

dança em tomo do ponto imóvel, o centro de todas as coisas. Há

sempre ciclos em mutação - um sobe e desce, um abre e fecha, um

despertar para o amor e para a liberdade seguido de novas e sutis

dificuldades. No curso dessa grande espiral, voltamos ao começo

muitas e muitas vezes, mas a cada vez com o coração mais pleno e

mais aberto.

Os místicos judeus dizem que os estados místicos mais exaltados

voltam para a simplicidade das preces de cada dia. Na Kabala, as

mais sublimes meditações de consciência infinita, chamadas

"binah" e "cochma", são vinculadas a um cotidiano de generosidade

e devoção. Os mais elevados estados do Divino nos levam

inevitavelmente de volta à família e às preces de todo dia, ao

acender das velas do shabat semanal e às práticas sagradas de

serviço e perdão. "Assim em cima como embaixo" é a fórmula

mística.

Para Santa Teresa também há um ciclo. A vida interior de ardor e

altruísmo não encontra seu fim na união com o Divino. Ela diz que

voltamos dessa fonte sagrada vezes sem fim para trazer sua

radiância ao mundo, pois "isso nos dá vida nova". "Os benefícios

esplêndidos que o despertar nos propicia" têm que ser

corporificados, o que nos permite viver uma vida sagrada neste

mundo. O fruto da jornada interior "está nas nossas boas obras"; os

mistérios se abrem "para que possamos voltar e ter força para

servir". Como o pastor do boi, voltamos para entrar no mercado com

mãos que abençoam. Voltamos para trazer as bênçãos do coração

desperto para quem encontramos.

MAIS POESIA DO QUE CARTOGRAFIA

O coração desperta como um lótus que se abre: sua beleza e

perfume o impregnam e também perfumam o jardim. Mas é da

natureza das flores abrir-se à luz do dia e se fechar à noite. Como

mapear e descrever esse processo? Sim, há alguns estágios: broto,

botão e flor. Mas essa descrição omite mais do que conta: deixa de

lado a terra que nutre as raízes, a absorção de luz do sol, a

polinização das abelhas, as irmãs e pais da lótus que a cercam e

enchem o mundo com mais beleza. Deixa de lado o crescimento

que ocorre à noite e os botões que se escondem sob a superfície

da água, que ainda não se lembram da luz do sol.

Como o desenrolar da espiral mística é tão ricamente orgânico,

muitas tradições recorrem a poemas para expressar o seu espírito.

A poesia tem um poder misterioso: transmite Significados que o

discurso direto não consegue transmitir. Os escritos zen quase não

trazem descrições literais de estágios de iluminação, só metáforas e

imagens, como a imagem do dedo apontando para a lua ou a

história da doma do boi, que temos acompanhado. Imagens como a

da garça branca na neve ou do corvo negro à meia-noite

transmitem o despertar com mais precisão do que centenas de

páginas de explicação abstrata, desde que os ouvidos de quem

escuta estejam abertos.

O Buda ficou iluminado ao ver a estrela da manhã. Os Anciãos

dizem que suas primeiras palavras foram um poema.

Construtor desta casa de tristeza

você não precisa mais erguer seus esteios...

No Zen, aparece uma imagem diferente mas também poética, que

incluí a conexão.

Com esta estrela, eu

e todas as coisas despertamos.

Kabir, o místico indiano, canta as maravilhas de despertar dentro do

barro deste corpo.

Dentro deste cântaro de barro há desfiladeiros e montanhas

recobertas de pinheiros e aquele que faz os desfiladeiros e

as montanhas recobertas de pinheiros!

Os sete oceanos estão dentro dele, e centenas de milhões

de estrelas.

O ácido que testa o ouro lá está, e aquele que

avalia as jóias.

E a música das cordas que ninguém toca, e

a fonte de toda água.

Se você quer saber a verdade, vou lhe contar a verdade:

Amigo, escute, o Sagrado que eu amo está lá dentro.

(Tradução de Robert Bly)

A linguagem poética dos koans é usada no Zen para favorecer a

iluminação. O praticante repete um poema profundo ou koan vezes

sem fim, investigando-o até que a mente se abra de maneira

radicalmente nova. Então, dezenas de outros koans se seguem,

convidando o praticante a incorporar mais profundamente a

liberdade que descobriu, ou iluminando as direções em que a

compreensão pode se extraviar. Juntos, criam um mapa poético da

prática.

Esses koans e histórias permitem que o aluno integre o mundo da

iluminação com este mundo: "Traga uma pérola do fundo do mar

sem se molhar", pede por exemplo um mestre zen. Ou: "Qual é o

som de uma mão batendo palmas?" Ou ainda: "O que é reto dentro

da curva?"

O aluno não pode ir ao encontro dessas histórias, questões e

poemas apenas com a mente conceitual - qualquer resposta fácil é

firmemente rejeitada. As respostas aos koans só vêm quando

aprofundamos a capacidade de viver na realidade do presente, de

abrir e fechar como o lótus, de entrar na floresta escura e dançar no

mercado. Eles não apontam para um estado ideal, mas para a

flexibilidade do Tao, para a naturalidade da lótus. Eles nos ensinam

a deixar para lá o medo e a autoconsciência, o apego mundano e

espiritual - e assim ficamos livres para ser nós mesmos.

A finalidade suprema dos koans pode ser vislumbrada nesta

história, uma amostra de humor zen moderno a respeito de um

discípulo que mandava ao mestre relatos fiéis de seu progresso

espiritual. No primeiro mês, o aluno escreveu: "Sinto a expansão da

consciência e a unidade com o universo." O mestre deu uma olhada

no bilhete e jogou fora. No mês seguinte, o aluno escreveu:

"Finalmente descobri que o Divino está presente em todas as

coisas." O mestre pareceu desapontado.

Na terceira carta, o discípulo escreveu com entusiasmo: "O mistério

do Um e do muito foi relevado ao meu olhar assombrado." O mestre

bocejou. A carta seguinte dizia: "Ninguém nasce, ninguém vive,

ninguém morre, porque o eu não existe." O mestre ergueu as mãos

em desespero.

Passou um mês, dois, cinco, um ano inteiro. O mestre achou que

era hora de lembrar ao aluno que ele tinha o dever de informá-lo

sobre seu progresso espiritual. O discípulo respondeu: "Estou só

vivendo a vida. E quanto à prática espiritual, de que serve?" O

mestre leu a resposta e exclamou: "Graças a Deus ele entendeu."

Essa história reflete o que o Zen ensina sobre a perfeição das

coisas como são. A garça branca na neve é uma garça branca na

neve; o corvo negro à meia noite é na verdade ele mesmo.

IDEAIS NÃO SÃO REALIDADES

E os mapas sem poesia nem humor, que parecem prescrever um

avanço constante e linear? O risco é tentar galgar seus estágios e

se perder numa nuvem de ideais inatingíveis. Vamos examinar

como um mapa funciona na vida prática tomando como exemplo os

Dez Bhumis do Budismo Tibetano.

Tidos como os dez estágios do despertar para a Natureza Búdica,

os Bhumis são: Estágio Um, "Alegre"; Estágio Dois, "Imaculado";

Estágio Três, "Luminoso"; Estágio Quatro, "Radiante"; e assim por

diante. O nível "Alegre" começa depois da entrada na corrente.

Embora elevado e puro, ele inclui práticas humanas mais comuns,

como promessas de grande generosidade e desejo de levar o

despertar a todos os seres sensientes. No entanto, o praticante que

atingiu o segundo Bhumi tem que ser capaz de enxergar o passado

e o futuro, de dominar cem formas de meditação profunda, de fazer

o corpo se multiplicar e aparecer em muitos lugares e em muitas

formas ao mesmo tempo, de fazer com que cem Budas e

bodhisattvas apareçam à sua volta onde quer que esteja. E os

estágios seguintes falam de poderes ainda mais miraculosos e

notáveis.

Uma vez, perguntei a um velho lama do Tibete se esses dez

estágios fazem mesmo parte da prática. Ele disse: "É claro que

sim." Mas, quando perguntei se em sua tradição havia alguém que

os tivesse atingido, ele respondeu pensativo: "Nestes tempos

difíceis não conheço um único lama que tenha dominado nem

mesmo o segundo estágio."

É claro que nesses estágios há uma verdade arquetípica, que esse

diálogo não leva em conta. Em momentos de graça ou iluminação,

ficamos cercados de Budas - vemos a Natureza Buda em todos os

seres que encontramos. E tomamos nosso corpo multiforme sempre

que sentimos que todos os seres estão interligados a ele, que

somos a rede da vida, como a floresta tropical, a sequóia, o

cogumelo e o mitocôndrio. Em outras palavras: até mesmo os

mapas literais podem ser lidos como se fossem uma espécie de

poema, rico de significados possíveis.

O abade zen Norman Fischer explica do seguinte modo a diferença

entre ideais e realidade:

Os ideais refletem a nossa natureza, que é profundamente religiosa.

Mas, como sabemos, os ideais podem nos envenenar quando são

em excesso ou quando tratados de forma incorreta. Em outras

palavras, quando os tratamos não como ideais, mas como

realidades concretas. Os ideais deveriam nos inspirar a superar a

nós mesmos. Só somos realmente humanos quando queremos nos

superar. Só que nunca conseguimos, justamente porque somos

realmente humanos. Ideais são ferramentas de inspiração, não

realidades em si mesmos. Mas esse é um fato muitas vezes

ignorado, o que explica a triste história da religião na civilização

humana... Quando são compreendidos corretamente, os ideais nos

dão alegria e senso de direção.

DUAS VISÕES DO DESPERTAR

Quando comparamos o caminho linear com o desenvolvimento em

espiral, vemos que são duas concepções muito diferentes de

realização espiritual. O caminho linear tem uma visão idealista do

ser humano perfeito: um Buda, um santo ou um sábio. Nesse

contexto, a avidez, a raiva, o medo, a opinião, a desilusão, o ego

pessoal e o desejo são erradicados para sempre, são totalmente

eliminados. Resta um ser humano absolutamente firme, radiante e

puro, que nunca tem uma dificuldade, um sábio iluminado que

segue apenas a, vontade do Tao ou de Deus e nunca a sua própria

vontade. Se é esse o nosso ideal, temos que admitir que tais seres

são muito raros ou que nem existem na nossa época na terra.

Na visão mais circular de Iluminação, a liberdade é uma mudança

de identidade. Neste caso nós também despertamos para nossa

verdadeira natureza e repousamos numa liberdade de espírito

infinita. Sabemos que a verdadeira realidade está além do corpo e

da mente mas, como vivemos também dentro dos limites do corpo e

da alma, os padrões comuns de vida continuam a existir. Para os

profetas do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo, assim como

para indígenas do mundo inteiro, seres despertos são figuras

complexas que combinam santidade e imperfeição humana. Mas há

uma diferença: as dificuldades passam a ser encaradas de maneira

tranqüila e inofensiva: Como diz o sábio Nisargadatta:

Pode haver dores e dificuldades, até mesmo impaciência e irritação,

mas elas não têm nada a ver comigo. Eu não nasci e nunca vou

morrer...

Embora este corpo e esta mente sejam limitados às circunstâncias,

minha vida é um eterno desenrolar no infinito.

Não importa se preferimos o ideal perfeito ou a liberdade dentro dos

limites da nossa humanidade: o despertar é um mistério que cada

tradição e cada aluno tem que enfrentar. A solução desse mistério é

encontrada no coração, onde os opostos podem ser compreendidos

e reconciliados. Só o coração pode conter tanto nossa perfeição

quanto nossa humanidade.

No fim, deixando mapas e expectativas de lado, temos que voltar o

coração na direção do amor e da consciência. Vivendo de acordo

com o coração desperto, todos nós nos tomamos bodhisattvas,

servos do Divino. Substituímos os níveis de iluminação pela

promessa de despertar a cada minuto, junto com todos os seres.

Esse é o caminho da paciência, da compaixão, da sabedoria e da

generosidade, o caminho da vontade de viver na realidade do

presente. Só aqui podemos encontrar a liberdade e repousar numa

perfeição infinita.

Como diz Suzuki Roshi: "Estritamente falando, não há pessoas

iluminadas, há apenas atividade iluminada." Quando há um eu que

reivindica a iluminação, não há iluminação. Ele diz ainda: "Estamos

falando de iluminação que se dá a cada momento, uma iluminação

depois da outra."

9

NÃO EXISTE APOSENTADORIA

ILUMINADA

Se há em algum lugar da terra um amante de Deus que esteja

sempre seguro, eu não sei, pois não me foi mostrado. Mas isto me

foi mostrado: quando calmos e nos erguemos outra vez, estamos

protegidos nesse mesmo amor precioso.

JULAN DA NORUEGA

Não dá para ficar para sempre no topo. É preciso voltar a descer...

você sobe e vê; desce e não vê mais, mas viu. Há a arte de se

conduzir... pela lembrança do que se viu lá em cima. Quando não

se vê mais, pode-se ao menos saber.

RENE DAUMAL

Na noite da iluminação do Buda, depois de fazer o juramento de

despertar, ele foi atacado pelo exército de Mara, o deus da ilusão e

do mal. Sentado sob a Árvore Bodhi, ele continuou meditando,

indiferente às mais fortes tentações de Mara, de voracidade e

prazer. Então, com compaixão no coração, ele venceu a raiva e a

agressividade deflagradas por Mara, que foi embora derrotado.

Depois disso, o iluminado levantou e, durante quarenta e cinco

anos, ensinou por toda a Índia.

Mas, nas histórias da vida do Buda, vemos que Mara desapareceu

por pouco tempo. Voltou muitas vezes para combater, para tentar

ou para enfraquecer o Buda. Mas todas as vezes foi reconhecido

pelo Buda, que assim não sucumbiu à tentação, nem ao medo nem

à dúvida. "É você de novo, Mara?", perguntava o Buda. Mara fugia

ao ser reconhecido, mas voltava para tentar de novo.

Há textos em que o Buda e Mara ficam amigos. Num deles, o

Abençoado está sentado numa caverna quando Mara reaparece.

Assustados, os discípulos tentam se livrar de Mara, chamando-o de

inimigo do mestre. "O Buda disse que tem inimigos?", replica Mara.

Vendo a inverdade dessas palavras, eles acabam chamando o

Buda, que demonstra muito interesse.

"Ah, o meu velho amigo chegou", diz o Buda. Ele recebe Mara com

satisfação e o convida para o chá. "Como tem passado?" Eles se

sentam para conversar e Mara se queixa, dizendo que é difícil ser

mau o tempo todo. O Buda ouve as histórias de Mara com simpatia

e depois pergunta: "Pensa que é fácil ser um Buda? Sabe o que

fazem com meus ensinamentos, o que fazem em nome do Buda em

alguns dos meus templos? Buda ou Mara, há dificuldades nos dois.

papéis. Ninguém está livre." Num dos textos, a história termina

quando Mara se toma iluminado, ele também um Buda.

TRANSIÇÕES INEVITÁVEIS

Seja qual for a versão, Mara não vai embora. Não existe um estado

de aposentadoria iluminada, nenhuma experiência de despertar que

nos ponha a salvo da verdade da mudança. Tudo respira e gira em

ciclos. A lua, o mercado de ações, o coração, as galáxias, tudo se

expande e se contrai ao ritmo da vida. A vida espiritual alterna

ganho e perda, prazer e dor. Cada um de nós, inclusive o Buda, só

desperta para o que é infinito, para a realidade da liberdade,

quando aceita essa verdade.

Os ciclos de despertar e abertura de quase todos os praticantes são

seguidos de períodos de medo e restrição. As épocas de paz

profunda e de amor recém-descoberto são engolidas por períodos

de perda, medo, e traição, que por sua vez dão lugar à

equanimidade e à alegria. Misteriosamente, o coração é como uma

flor que abre e fecha. É essa a nossa natureza.

Mas essa verdade sempre nos apanha de surpresa. É como se lá

no fundo esperássemos que uma experiência, uma descoberta ou

os anos de dedicação à prática nos elevasse acima do alcance da

vida, das lutas mundanas. Nós nos agarramos à esperança de que

na vida espiritual estaremos a salvo das dores humanas. Queremos

que as experiências durem, mas a permanência não é a verdadeira

liberdade, não é a libertação do coração.

O viajante sábio aprende que não pode ficar no porto, por mais belo

que ele seja. Seria como prender a respiração, como fazer do

passado uma prisão. Como diz um mestre zen:

"A iluminação é só um começo, um passo da jornada. Se você se

agarrar a ela como se fosse uma nova identidade, terá dificuldades.

Você precisa voltar à confusão da vida, se entregar a ela ainda por

muitos anos. Só assim pode completar o que aprendeu. Só assim

vai aprender a perfeita confiança"

Como o monge nas pinturas do boi e do pastor, a maioria tem que

voltar ao mercado para que a realização seja completa. Ao descer a

montanha, ficamos chocados ao ver que os velhos hábitos esperam

por nós como se fossem velhas roupas confortáveis. Mesmo que a

transformação seja grande, mesmo quando nos sentimos firmes e

em paz, a volta é sempre um teste. Ficamos confusos, sem saber o

que fazer da vida, como viver na família e na sociedade. Ficamos

sem saber como encaixar a vida espiritual em nossa maneira

costumeira de ser, em nosso trabalho. Temos vontade de fugir, de

voltar para a simplicidade do retiro ou do templo. Mas alguma coisa

importante nos puxou de volta ao mundo e a transição é parte dela.

Um lama conta:

"Quando voltei, foi como se os meus doze anos de experiências na

Índia e no Tibete fossem um sonho. A lembrança e o valor daquelas

experiências transcendentais pareciam um sonho diante do choque

cultural que foi a volta para a minha família e para meu trabalho no

Ocidente. Velhos hábitos voltaram com rapidez incrível. Fiquei

irritadiço, confuso. Eu não cuidava do corpo, vivia preocupado com

dinheiro e com os relacionamentos. No pior momento, tive medo de

estar perdendo o que havia aprendido. Então, percebi que não dava

para viver numa lembrança iluminada. Ficou claro que a prática

espiritual é o que estamos fazendo agora. O resto é fantasia."

A vida espiritual é uma preparação para a transição de um estado a

outro, de uma circunstância a outra. A capacidade de fazer

transições sábias é a capacidade de conservar a mente de iniciante.

A mudança não é o inimigo. Como Mara, ela volta para fazer com

que o coração fique presente e confiante em níveis cada vez mais

profundos.

Integrar a experiência espiritual é um processo de muitos anos.

Depois de três meses de meditação silenciosa, os participantes do

retiro são avisados de que vão enfrentar uns doze meses de

estados de transição, de alegrias, de frustrações e de novas

descobertas, até que integrem à vida tudo o que viram. Para quem

viveu em mosteiros ou viveu na Ásia, cinco, dez ou quinze anos de

prática correspondem a cinco ou dez anos de transição, até que a

vida se restabeleça de maneira firme e plena.

Uma professora de meditação e de profunda compreensão fala de

ciclos de cinco anos. Depois dos primeiros cinco anos de prática

intensiva, ela se abriu para um vasto mundo interior e para uma

compreensão profunda e libertadora.

"É como se o meu coração precisasse de estabilidade e

fortalecimento antes que eu começasse a ter contato com a dor do

passado. Mas tudo acabou vindo à tona e os cinco anos seguintes

foram o oposto. O poço de dor e agonia foi tão grande quanto o

êxtase dos anos anteriores. Acho que eu tinha que passar pelas

duas coisas."

Num espírito semelhante, uma abadessa cristã passou em estado

de graça seus primeiros tempos no mosteiro, mas depois veio um

ciclo de prática muito difícil.

"A vida da nossa comunidade era simples e saudável e eu me

entreguei a ela com amor e energia. E com uma personalidade

fortemente formada e defendida. A prece e a meditação profunda

me ampararam por muito tempo. Depois de alguns anos, senti que

podia confiar na comunidade e parei para tomar fôlego. Nessa

época, uma das irmãs mais velha morreu. Como tínhamos tido um

contato muito próximo, sua morte desencadeou uma sucessão de

lembranças: a morte de meu irmão gêmeo quando nascemos, a

quase-morte de minha mãe, a distância, o ódio e a perda do meu

pai. Percebi que minha vida era dividida pela mágoa. Percebi que

mesmo na comunidade monástica eu tinha vivido na superfície,

fugindo da aflição e do vazio. Finalmente parei. Essa descoberta

deu início a anos de trabalho de cura para aprender a abrigar no

mesmo coração a aflição, o mosteiro, a dor de minha vida e a dor

do mundo."

IMPACTO E QUEIMADURA

Esses ciclos de abre e fecha são um remédio necessário à

integração do coração. Mas em alguns casos não há apenas ciclos,

há um impacto. Quanto mais alto subimos, maior é o tombo. Esse

impacto faz parte dos mapas da vida espiritual e do grande ciclo, e

temos que aceitá-lo como tal.

O koan zen que abriu o Capítulo 8 é apresentado a alunos que já

tiveram um primeiro despertar: "Uma pessoa claramente iluminada

cai no poço. Como é isso?" Um mestre zen adverte seus alunos:

"Depois de qualquer experiência espiritual poderosa há um declínio

inevitável, uma luta para integrar o que vimos." O poço se forma

quando nos agarramos a experiências ou ideais espirituais ou a

idéias infladas sobre os professores, sobre o caminho e sobre o eu.

Ele pode ser uma questão inacabada da vida psicológica e

emocional - a incapacidade de aceitar a própria sombra, de levar

em conta as necessidades humanas, a dor e as trevas que

trazemos conosco, de ver que temos sempre um pé nas trevas.

Brilhante como é, o universo precisa também se abrir para seu

outro lado.

Uma professora da Ordem Sufi tinha vinte e quatro anos quando

aderiu a uma tradição cheia de louvores a Deus, cânticos e

orações. Ela vendeu tudo o que tinha e viveu numa comunidade sufi

por dez anos, rodeada de êxtase e orações. Foi um período glorioso

de sua vida, que lhe abriu o coração. Então decidiu casar e foi

arrastada de volta para o mundo.

"Tinham me ensinado a ser compreensiva e cheia de amor. Tive

experiências incríveis de êxtase e alegria, comuns naquela vida de

orações. Não sabia o que fazer quando deixei a comunidade e tive

que enfrentar sozinha o ciúme, o medo e a solidão, sem o apoio do

professor ou dos amigos sufis. Sem experiência, não sabia lidar

com a dor e as necessidades. Meu companheiro sufi era ainda pior.

Ele não suportava a frustração e as exigências da vida de chefe de

família. Então ele me deixou. Fiquei sozinha naquela casa. Por mais

alto que eu tivesse chegado, o tombo foi muito maior. A partida dele

inaugurou em mim uma onda de desespero que vinha do tempo em

que minha irmã se afogou e minha mãe abandonou a família - tudo

o que eu tinha pretendido curar com a ajuda dos sufis. Foi difícil.

Não havia luz no fim do túnel. Nomeio dele só havia trevas, fosse

noite, verão ou inverno. Isso durou um ano. Procurava pessoas que

me amparassem e dessem atenção às minhas lágrimas, até que

finalmente consegui ficar comigo mesma. Foi doloroso, mas foi

também um período de cura e integração. Mesmo assim, gostaria

de ter tido mais perspectiva nessa época, ou melhor orientação

espiritual."

Até os professores veteranos às vezes se sentem abalados. Um

americano, engajado na busca havia vinte anos, chegou à plenitude

da liberdade com um guru na Índia. Ficou em êxtase por um ano,

"repousando em perfeição, mergulhado em silêncio e amor".

Quando sua mulher ficou grávida, eles voltaram aos Estados

Unidos e a alegria espiritual que ele havia descoberto começou a

atrair os amigos. Depois de dois anos, ele tinha grupos diários de

meditação, um centro, centenas de alunos. Seu caminho parecia

estar se desenrolando perfeitamente e ele achou que estava a salvo

dos problemas do mundo, até que enfrentou uma crise.

"Eu sempre me preocupei com os alunos, achando a sabedoria

deles muito instável. Depois de descobrir o vazio e a liberdade, a

tendência de muitos era sucumbir outra vez à separação. Mas

então aconteceu comigo! Fiz um curso superintensivo de confusão,

pânico e depressão. Começou quando fiquei muito doente por

causa de parasitas que tinha pego na Índia. Então, sofri uma traição

e perdi todo o dinheiro que havia economizado durante anos e

investido em dois prósperos negócios. De repente, o guru estava

doente e pobre. Fiquei muito assustado. Minha vida familiar virou

um ponto de conflito. Tivemos de mudar de casa, aprender a viver

sem dinheiro, ter as preocupações comuns. Tive problemas com

minha mãe. E enquanto isso eu pensava que não devia estar

sentindo essas coisas - afinal, eu havia estado no ápice. Eu

pensava que conhecia o jogo.

Finalmente, tive que parar de ensinar. Perdi totalmente o controle.

Como uma criança, eu não queria mais entender as coisas: estava

totalmente desestruturado, vivendo um momento depois do outro, e

foi então que comecei a ter uma genuína vida espiritual."

A celebridade não protege contra esse tipo de impacto: pode até

provocá-lo. Bhagawan Das, um yogue de dois metros de altura e

topete loiro, passou sete dias na Índia andando descalço,

meditando em cavernas, cantando em êxtase os nomes de Deus.

Ele apresentou Ram Dass a seu guru, Neem Karoli Baba, uma

história que Ram Dass conta em Be Here Now, um clássico dos

anos sessenta. Depois, Bhagawan Das viajou pelo Ocidente com

Ram Dass, ensinando e cantando em grandes encontros espirituais.

"Voltei para a América e, de repente, estava no palco, diante de

milhares de pessoas, batizando bebês e abençoando pessoas que

se jogavam aos meus pés. Rodeado de benfeitores e estrelas do

cinema, eu me sentia um rei, mas ainda era um garoto, um guru de

vinte e cinco anos que, numa casa em Manhattan, se sentava numa

pele de tigre para meditar.

A Mãe Divina brinca com quem brinca com ela, porque ela é tudo...

Ela é o desejo, a raiva, a luxúria. Ela é tudo. Quem quer nome e

fama, vai ter - a Mãe dá. Mas o que eu tinha atingido na prática veio

através da graça de conviver com santos. É através da bênção dos

santos que se conquista aquele espaço. Quando comecei a ser

indulgente comigo mesmo, interrompi minha verdadeira prática e

perdi tudo.

A vida espiritual não é para sempre: é um processo constante.

Depois de três anos de 'vida espiritual', que na verdade era uma

festa, fiquei doente e fui para casa ficar com os meus filhos. Voltei

ao mundo e comecei a vender carros usados em Santa Cruz; virei

um homem de negócios e fui perdendo o meu senso de divino.

Vinte anos depois, um amigo me levou para ver um santo. Caí em

meditação profunda por três horas. Então ouvi a voz do meu guru e

quis cantar o nome de Deus. E é isso o que tenho feito. Mas desta

vez estou tendo mais Cuidado, vendo bem com quem convivo.

Quem acha que conquistou alguma coisa tem que ter Cuidado,

porque pode perdê-Ia. Tem que manter os compromissos espirituais

e não abandonar a prática. Agora estou tentando ser um ser

humano real e se outros aproveitarem minhas experiências, elas

valeram a pena."

RESPEITO À QUEDA

Ao dizer que não conhece nenhum amante de Deus que esteja a

salvo da queda, a mística cristã Julian da Noruega está dizendo que

o declínio também é vontade de Deus. Tenhamos ou não

conhecimento disso, Mara sempre volta. A queda, a descida e a

subseqüente humildade são outra forma de bênção.

O sucesso, por maior que seja, costuma ser unilateral. Então,

nossos aspectos menos desenvolvidos, a "nossa sombra", como diz

Jung, vêm à luz. São nossos aspectos mais grosseiros, sobre os

quais temos pouco controle. Há certas verdades que só o declínio

ensina, verdades que trazem plenitude e humildade através da

resignação. Em épocas de grande vulnerabilidade do coração,

chegamos perto dos mistérios impessoais da vida. Todos nós

precisamos de momentos fecundos, de um tempo para a terra

descansar, de contato com o húmus da terra. É como se alguma

coisa em nós ficasse mais lenta, nos chamasse de volta. É quando

pode despontar um conhecimento e uma beleza mais profundos.

É o que diz o mito de Orfeu. Como é filho das Musas, Orfeu é capaz

de criar a mais bela música humana que já se ouviu. Mas, pouco

depois do casamento, Eurídice, sua mulher amada, morre.

Desesperado, Orfeu segue seu espírito até o submundo. Diante do

Senhor da Morte, ele pega a lira e canta o amor que não morre,

como conta o poeta Rilke:

Uma mulher tão amada que de uma só lira veio mais lamento do

que de todas as mulheres que lamentam, tão amada que surgiu um

mundo de lamento, onde a natureza inteira reapareceu: floresta e

vale... campo e córrego e animais pesarosos... Tanto ela era

amada.

(Tradução de Stephen Mitchell)

A canção de Orfeu é tão comovente que Hades permite que

Eurídice volte à terra da luz, mas com uma condição: Orfeu não

pode se voltar para vê-Ia durante a longa viagem para casa.

Conduzida por Hermes, o deus mediador entre os dois mundos, ela

segue em silêncio atrás de Orfeu, no lento caminho de volta para o

mundo da luz.

Ele disse a si mesmo, eles tinham que estar logo atrás...

mas seus passos

eram agourentamente suaves. Se ao menos ele pudesse

virar para trás só uma vez...

É próprio do coração, da natureza humana, virar para trás - como

Orfeu acabou fazendo, embora com isso tenha perdido Eurídice

para sempre. Não podemos viver apenas no mundo de luz. O

coração sabe que para desabrochar tem que ter contato com toda a

verdade, com tudo o que somos, mesmo que isso signifique perder

o que amamos. A música de Orfeu tem que incluir a eterna tensão

da perda e da aflição para cantar plenamente a nossa mais

profunda compreensão.

Diz a tradição que, se não honrarmos as tarefas inacabadas, o

karma vai nos fazer lembrar, os conflitos não resolvidos vão

reaparecer. Seremos obrigados a nos voltar para o que não

enfrentamos em nós mesmos. Para simplificar: as circunstâncias da

vida humana vão teimar em chamar a nossa atenção. É preciso

honrar o declínio assim como a ascensão. Às vezes, basta aceitar

esse fato. Como diz um mestre zen:

"Meses de alegria se seguiram a um retiro em que o meu mestre

zen viu em mim um autêntico despertar. Mas depois desses meses

fiquei deprimido. Tempos depois fui a outro retiro, para ter uma

experiência com Toni Packer. Numa das palestras noturnas, ela

disse que, depois de um grande desabrochar, o praticante

geralmente fica deprimido. No momento em que ouvi isso, minha

depressão começou a se dissipar. É como se eu precisasse de

permissão para aceitar o que já estava acontecendo, para que o

ciclo começasse a se mover novamente."

A queda é um convite para a transformação interior e exterior. Às

vezes, uma queda espiritual não se resolve rapidamente: ela pode

levar anos para passar para a fase seguinte. Um monge católico

que deixou sua abadia depois de doze anos para voltar ao mundo

do trabalho e dos relacionamentos conta como foi essa mudança:

"Nossos dias na abadia seguiam um ritmo harmonioso de prece e

silêncio, de solidão e comunhão sagrada. Saí por causa do que

havia de não vivido em mim. Com toda a beleza e êxtase da vida

reclusa, eu tentava incluir plenamente a minha paixão, o meu ser

físico, a minha humanidade. Para alguns isso dava certo, para mim

não funcionou. Quando saí, a euforia inicial foi logo sufocada por

uma noite escura. Eu tinha aprendido a ficar em silêncio, a ouvir, a

confiar na prece. Sob esse aspecto, meu espírito era maduro. Mas

muitas partes da minha vida eram imaturas.

Eu não podia voltar, não conseguia seguir em frente, e assim decidi

servir os outros. Consegui trabalho numa instituição que servia sopa

para os pobres. Arrumei uma namorada e tentamos viver juntos.

Tive que recorrer à força do espírito para superar as dúvidas e a

depressão suicida. Foram os três anos mais duros da minha vida.

Agora percebo que eles foram essenciais para revelar minha

verdadeira vocação espiritual, uma vida de serviço. Foi graças a

eles que aprendi a confiar o que a vida traz. Sou grato agora a tudo

por que passei, pois cheguei mais perto de Deus."

DEIXAR ROLAR

No inevitável sobe e desce, os ciclos de expansão e contração que

acompanham o processo de dar à luz nós mesmos, há momentos

de fazer força, de lutar por uma meta espiritual. Mas, em geral, a

tarefa é deixar rolar, é descobrir um coração benevolente que

respeite as mudanças da vida.

Suzuki Roshi resumiu o ensinamento budista em poucas palavras:

"Nem sempre é assim." As condições sempre mudam. Descemos

do topo. Mara retoma. O respeito à verdade da transitoriedade

permite que a experiência de escuridão e queda seja parte do todo

maior.

Um lama ocidental saiu de sete anos de retiro silencioso para ficar

viajando e ensinando durante mais sete anos.

"Minha maior surpresa foi descobrir que ainda precisava aprender a

confiar. Durante anos eu pensei que a vida espiritual fosse um

estado especial de perfeição ou iluminação. Mas é, na verdade,

minimizar o apego. A vida não depende só do que fazemos. As

grandes ilusões que almejamos, no mundo ou na vida espiritual,

acabam sendo falsas. Quando aprende a deixar que as coisas

rolem, você descobre uma tremenda fé no fundamento de tudo,

naquilo que é verdadeiro antes e depois de nossos planos. Tudo

surge e passa: essa é a verdadeira perfeição. Descobri que dá para

confiar nisso."

Em todas as tradições e práticas de liberdade, descobrimos que a

tarefa do coração é bem simples. A vida nos oferece aquilo que nos

oferece e nossa tarefa é nos curvar diante disso, aceitar o que nos

é oferecido com compreensão e compaixão. Não há louros a

conquistar. Professores carismáticos e conquistas espirituais podem

ser armadilhas de esforço em que perdemos de vista nossa

Natureza Búdica aqui e agora. Ajahn Sumedho, o primeiro abade

americano de um mosteiro budista Theravada, nos adverte contra a

luta para conseguir alguma coisa em especial.

No caso das mentes obcecadas pelo pensamento compulsivo e

pela sofreguidão, as práticas de meditação se resumem a duas

palavras: "deixar rolar". É isso que importa, em não tentar seguir

esta prática e depois desenvolver aquela, atingir isto e começar

aquilo. A mente sôfrega quer ler os suttas, estudar o Achidamma,

aprender pali e sânscrito, depois o Madhyamika e o Prajna

Pararnita, ser ordenado no Hinayana, no Mahayana e no Vajrayana,

escrever livros e tomar-se uma renomada autoridade em Budismo.

Em vez de ser um especialista em Budismo, convidado para

grandes conferências internacionais, por que não "deixar rolar,

deixar rolar e deixar rolar"? Durante anos essa foi a minha prática.

Sempre que eu queria compreender as coisas, eu dizia: "Deixa

rolar, deixa rolar, deixa rolar", até o desejo se dissipar. Agora, estou

simplificando as coisas para você, tentando poupá-lo de muito

sofrimento. Não há nada mais penoso do que ir a conferências

internacionais de Budismo. Alguns querem ser o Buda do momento,

ser Maitreya, irradiar amor pelo mundo. É melhor ser uma minhoca

que sabe apenas duas palavras: "Deixa rolar, deixa rolar, deixa

rolar." Como o nosso caminho é chamado Veículo Menor, o

Hinayana, temos apenas essas práticas miseráveis.

Deixar rolar é a essência desta história sobre o santo e yogue

favorito do Tibete, Milarepa, Muito depois da iluminação, Milarepa

foi pegar lenha perto da caverna onde praticava. Quando voltou,

encontrou na caverna sete demônios de metal com corpos enormes

e olhos do tamanho de xícaras. Alguns estavam moendo cevada e

acendendo o fogo; outros faziam truques de mágica. Quando os viu,

Milarepa ficou assustado. Meditou sobre o Buda, disse um mantra,

mas não conseguiu acalmá-los. Pensou: "Devem ser as divindades

deste lugar. Estou aqui há anos, mas nunca os louvei nem lhes

ofereci nada."

Então, ele cantou uma canção de louvor:

Demônios não-humanos reunidos aqui são estorvos.

Bebam este néctar de amizade e compaixão e vão embora.

Os primeiros três demônios, que faziam truques de mágica, foram

embora. Percebendo que os outros demônios eram estorvos

mágicos, ele cantou esta canção de confiança:

Demônios, é maravilhoso que tenham vindo hoje.

Voltem amanhã.

Precisamos conversar de vez em quando.

Com isso, mais três demônios sumiram como um arco-íris. O que

ficou dançou uma dança majestosa e Milarepa pensou: "Este é mau

e poderoso."

Então cantou outra canção, o ápice da compreensão:

Um demônio como você não me intimida.

Se um demônio como você me intimidasse,

O despontar da mente de compaixão

pouco significaria.

Demônio, se quiser ficar mais tempo, para mim está tudo bem.

Se tiver amigos, traga-os.

Vamos discutir nossas diferenças.

Que o Senhor Vajradhara, o Buda,

Conceda suas bênçãos para que este ser inferior possa

ter completa compaixão.

Então, com amizade e compaixão, sem se preocupar com o corpo,

Milarepa entrou na boca do demônio - mas o demônio não

conseguiu devorá-lo e sumiu.

As práticas tibetanas ensinam que é bom honrar e alimentar os

demônios. Quando eles chegam, temos de reconhecer que eles

fazem parte da dança da vida. Quando ameaçam, só as nossas

ilusões que correm perigo. Prosternando-nos diante das

apavorantes forças em mutação da vida, seremos sábios.

Abraçando-as, elas se transformarão em arco-íris. Todas as cores

brilham no coração desperto.

Como diz Julian da Noruega: "Quando caímos e nos erguemos

outra vez, estamos protegidos nesse mesmo amor precioso." É só

aceitando a mudança que dá para viver em harmonia com as

pessoas à nossa volta e com nossa verdadeira natureza. Seja qual

for a situação, o despertar exige confiança: confiança nos ciclos da

vida, na certeza de que algo novo vai nascer, na perfeição de tudo o

que existe, seja o que for. Quando há sabedoria, deixar rolar não é

alheamento em relação à vida. É o coração abraçando a própria

vida, um desabrochar para a plena realidade do presente.

Essa é a sabedoria do Tao:

Ao agir com precipitação, você fracassa.

Ao tentar agarrar as coisas, você as perde.

Assim, a mestra age deixando que as coisas

sigam o seu curso.

Ela continua tão calma no fim quanto estava no começo.

(Tradução de Stephen Mitchell)

O ABRAÇO SECRETO

Embora pareça simples, deixar rolar é também uma prática

avançada. Ela é necessária nas maiores provações da vida e nos

nossos momentos finais. É então que o coração aprende o segredo:

deixar que as coisas rolem também é abraçar o que é verdadeiro.

Depois de anos de treinamento num mosteiro, uma professora

budista mergulhou numa aflição profunda quando o divórcio e a

morte de um de seus filhos a obrigaram a reexaminar seus anos de

prática.

"Sucumbi à dor. Eu passava dias chorando, incapaz de continuar

vivendo, sem saber o que fazer. Foi um ensinamento que nenhuma

meditação me ajudaria a enfrentar. Eu tinha que encarar o

sofrimento do mundo e o sofrimento da minha mente. Nesses anos,

aprendi a necessidade de deixar rolar, de me abrir para a verdade

fosse ela qual fosse."

Quando a queda acontece, temos de nos entregar a ela. A

liberdade do coração só se revelou ao Buda quando ele conseguiu

ter compaixão no contato com o sofrimento de Mara. Esse é um

segredo ensinado nas artes marciais como o aikidô: entrar na

energia do oponente, aceitar a agressão e se movimentar junto com

ele. Nesse abraço, nós nos reconciliamos e fazemos as pazes com

tudo. Nós e o,nosso oponente nos tomamos perfeitos.

Uma frase bem-humorada de Emerson esclarece essa questão:

"Quando um cachorro correr atrás de você, assobie para ele." É

uma verdade do coração que aquilo a que resistimos nos dá medo,

nos toma duros e inflexíveis. Por outro lado, o que abraçamos se

transforma.

Quando honramos Mara, chamando-o pelo nome e convidando-o

para o chá, o medo, a confusão e o conflito da queda se tomam

nossos aliados. A vulnerabilidade e a humildade do coração são a

nossa salvaguarda. É quando se deixa tudo para lá que nasce a

confiança; é quando se abandona a luta que a verdadeira força é

revelada; é no coração compassivo que se realiza o amor por todos

os seres sencientes. Não dá para ficar sempre no topo, mas dá

para encontrar paz e unidade em todas as coisas. Aceitando a

mudança das estações com esse abraço secreto, o lugar em que

estamos se transforma em solo sagrado, na sede da iluminação.

10

A ROUPA SUJA

Em geral, as pessoas acham que, por ser considerado um Buda

vivo, conheço apenas a serenidade, a felicidade perpétua, e que

estou livre das preocupações. Infelizmente, não é assim. Como

lama e encarnação da iluminação, eu é que sei.

KANJU KHUTUSH TULKU RINPOCHE

Não deveríamos ficar comovidos, em vez de desanimados, diante

de um ser humano que nos impressiona pela sua grandeza,

sabendo que ele deve ter chegado a ela através de suas

fraquezas?

LOU ANDREAS-SALOMÉ, BIÓGRAFA DE FREUD

No seu livro recém-publicado, Lives in the Shadow, Radha

Rajagopal Sloss faz um relato dos anos que passou com

Krishnamurti. Ela fala das dádivas de coragem e despertar que ele

trouxe a dezenas de milhares de alunos no mundo inteiro e dos

anos em que foi um segundo pai para ela. Mas fala também do

choque que teve quando soube do romance de vinte anos que

Krishnamurti tinha tido com a mãe dela, ainda no tempo em que seu

pai administrava os negócios dele e era um de seus amigos mais

próximos. Além disso, ela conta que ele tinha necessidade

compulsiva de outras mulheres, fala de abortos abafados, de

desculpas fingidas, do crescente apego à luxúria, da arrogância e

da rigidez que provocaram prolongadas batalhas legais com a sua

equipe. Outras pessoas que o conheceram bem contam essas

mesmas histórias. Mas, quando Radha quis conversar com ele

sobre tudo isso, ele lhe respondeu zangado: "Eu não tenho ego."

O que concluir dessa história e de tantos outros casos

semelhantes? Será que são casos isolados ou será que há certas

dinâmicas quase arquetípicas que podemos detectar, o que nos

ajudaria a navegar com mais consciência nesse aspecto do

caminho espiritual?

COMO REAGIR COM SABEDORIA: A SABEDORIA PERSPICAZ

Antes de fazer um inventário de nossas falhas e das falhas alheias,

é bom examinar os olhos e o coração, para ter a certeza de entrar

nesse terreno com espírito aberto e cuidadoso e não cheio de raiva,

comparações e auto-justificativas. Nesse momento, precisamos do

espírito de sabedoria perspicaz.

No sutra Kalama, o Buda ensina o praticante a considerar com

honestidade o que é sábio e saudável e o que não é sábio e

saudável, independentemente de qualquer texto, ensinamento ou

autoridade. Esse "corajoso inventário moral", como é chamado nos

Alcoólicos Anônimos, é uma prática necessária e frutífera para

alunos e professores.

Sabedoria perspicaz significa ver com clareza. Assim como

percebemos quando a roupa está suja e precisa ser lavada, o

primeiro passo para resolver qualquer problema é uma avaliação

honesta. Nas dificuldades espirituais coletivas, temos que ter a

coragem de questionar nossas opiniões, nossa comunidade, nosso

professor e nós mesmos. Temos de pôr fim ao isolamento para

enxergar a verdade e falar dela com os outros, mas sempre com

compaixão e cientes da interligação. Por si só esse estágio tem um

enorme poder de cura, embora assuste um pouco no começo.

Temos de aprender que é possível confiar na verdade e que ela

leva à liberdade.

A sabedoria perspicaz, por mais destemida que seja, tem de ser

baseada na compaixão. Além dos problemas, ela vê as causas e as

intenções equivocadas que os precedem. Como vê sem fazer

julgamentos severos, ela consegue separar o que é certo do que é

equivocado. Mais do que isso: a sabedoria perspicaz sabe que cada

tradição e cada professor tem seus pontos fortes e seus pontos

fracos. Assim, consegue ficar com o que é bom e deixar o resto de

lado.

Há modéstia e bondade na sabedoria perspicaz: ela não espera

perfeição, mas está sempre disposta a ver os dois lados, a aprender

com cada situação, a detectar as dificuldades e a compreender

suas causas. Vamos agora examinar esse caminho generoso em

algumas das áreas em que surgem mais problemas entre professor

e comunidade ao longo da jornada espiritual.

QUATRO ÁREAS EM QUE AS DITICULDADES SÃO MUITAS

Uma área de perigo nas comunidades espirituais é o mau uso do

poder. Em geral, isso acontece quando o professor ou mestre

detém todo o poder na comunidade. Quando os desejos do mestre

são soberanos, quando cada palavra sua é atendida, quando não

há troca e o questionamento não é bem-vindo, é possível que o

professor comece a controlar a vida dos alunos, alegando que é

para o seu bem. Aos poucos, a embriaguez inconsciente que o

poder provoca substitui a sabedoria e o amor se transforma em

recompensa, distribuída conforme a vontade do mestre. O mau uso

do poder produz sectarismo e rivalidade. Há os "salvos" e os

perdidos ou castigados. Há panelinhas, grupinhos, segredos e lutas

pelo poder. Quando atinge seu ponto mais doloroso, o mau uso do

poder gera paranóia, cultos e outros horrores.

Uma segunda área problemática para professores e comunidades é

o mau uso do dinheiro. A graça encontrada na vida espiritual inspira

generosidade e, quando uma comunidade dá certo, o dinheiro

começa a entrar: para Deus, para o templo, para custear o trabalho

sagrado do líder. Como a maior parte das tradições religiosas estão

impregnadas de Simplicidade, seus professores não são treinados

para lidar com dinheiro. Sem uma dedicação contínua à essência

da prática, nesta sociedade materialista é comum que professores

sucumbam, em nome do espírito, ao dinheiro, à segurança ou à

ganância. Há até casos em que o uso fraudulento dos donativos

reverte em contas bancárias secretas e num alto estilo de vida,

enquanto outros membros da comunidade são exortados a viver

com austeridade e a trabalhar sem remuneração.

Uma terceira área de perigo é o mau uso da sexualidade. No caso

das comunidades espirituais, o abuso da energia sexual, que

infelizmente é comum na nossa época, traz problemas quando o

professor não tem muita consciência. Suas necessidades,

combinadas à negação da sexualidade e a ambivalência em relação

a ela, o que é comum na maior parte dos ensinamentos espirituais,

acabam levando a amores secretos e à exploração sexual de

alunos "em nome do tantra" ou em troca de acesso ao professor.

Esses relacionamentos provocam um sofrimento desnecessário. Há

casos extremos de má conduta sexual: haréns secretos, abuso de

crianças e até mesmo transmissão do HIV por um professor que

disse aos alunos que seus poderes especiais serviam de proteção.

Uma quarta área problemática é o mau uso de álcool e drogas. Os

vícios da cultura moderna atingem as comunidades espirituais.

Certas tradições espirituais celebram a embriaguez como metáfora

da transformação espiritual. Tomada ao pé da letra, essa idéia

serve de desculpa para vícios declarados ou secretos. Professores

viciados já causaram a ruína de comunidades inteiras e muito

sofrimento na vida de alunos que acabaram vítimas da

dependência.

O MOTIVO DAS DIFICULDADES

Por que há tantos problemas em comunidades de pessoas bem-

intencionadas? É óbvio que alguma coisa está errada. Para

compreender esses desvios de uma perspectiva mais ampla, vamos

recorrer ao mundo do mito.

A mitologia grega é rica em histórias de ascensão e queda e do que

acontece com quem esquece qual é o seu lugar. Uma das mais

instrutivas é a de Ícaro, filho de Dédalo, que era considerado o mais

engenhoso de todos os artistas e artesãos. Original de Atenas,

Dédalo foi para Creta para projetar o assombroso labirinto onde o

Rei Minas ficou cativo do terrível Minotauro.

Mas Dédalo caiu em desgraça aos olhos do rei e foi preso com

Ícaro, primeiro no próprio labirinto e depois numa torre de pedra na

praia. Não demorou para Dédalo imaginar uma forma de fugir. Pai e

filho começaram a juntar migalhas de comida para atrair gaivotas.

Com muita paciência, foram juntando suas penas e acumulando a

cera que pingava das velas. Assim, Dédalo fez um par de asas,

fixando as penas com cera e barbante. Ele aprendeu a voar e

depois fez asas para Ícaro.

Finalmente, eles podiam partir para a liberdade. Enquanto amarrava

as asas ao corpo do filho, Dédalo lhe disse para não voar muito

alto, pois o sol derreteria a cera. Quando saíram voando da ilha, os

pescadores e os pastores pensaram que fossem deuses.

Vendo Creta desaparecer atrás de si, Ícaro alegrou-se com o

embalo do bater das asas. Começou a subir cada vez mais,

entregando-se à liberdade do vôo. Sentindo que podia tocar o céu,

foi chegando mais perto do sol. O calor derreteu a cera e as penas

começaram a se soltar. Gritando por socorro, Ícaro caiu como uma

folha e se afogou no mar, deixando algumas penas boiando. Com o

coração cheio de dor e desespero, Dédalo voltou para a sua terra,

pendurou as asas no templo de Apolo e nunca mais tentou voar.

Como Dédalo, nós também podemos ficar presos numa vida

labiríntica que nós mesmos criamos. Através de uma prática longa e

paciente, divisamos meios que nos permitem escapar. A parte de

nós que conhece suas limitações consegue navegar em meio aos

perigos do vôo da libertação. Mas quando esquecemos que somos

humanos, quando uma parte de nós pensa que pode voar sem

limites, então o próprio vôo nos abandona e somos inevitavelmente

lançados no mar escuro.

EMBRIAGUEZ E IDENTIFICAÇÃO COM OS DEUSES

Como mostra o mito de Ícaro, voar é coisa do domínio dos deuses e

não do domínio dos homens. Durante a prática, nossa consciência

pode se identificar com os deuses, com um arquétipo: a

possibilidade ideal. Isso tem seu valor, mas só quando sabemos o

que acarreta. Quem "se identifica com um arquétipo tenta ser um

ser perfeito; um Buda, um Cristo, um mestre totalmente puro. O

mundo dos deuses é tentador - quando provamos os frutos da

liberdade, as experiências podem nos arrebatar. O problema é

acreditar que dá para ficar por lá, sem precisar voltar para a

realidade do tempo, da terra, da vida humana.

Em geral, os professores que praticam abusos não são

propriamente desonestos. Cercados por discípulos que querem

acreditar em sua perfeição, eles começam a acreditar na própria

propaganda, a se identificar com a autoridade do papel de mestre.

Cresce então a embriaguez coletiva, criada tanto pelo professor

como pelos alunos, em geral com a melhor das intenções. Mas

nesse clima de expectativas irreais, o professor começa a se isolar,

a se sentir como Ícaro, achando que pode voar para sempre.

ISOLAMENTO E NEGAÇÃO

Quando unia comunidade se isola do mundo ou tende ao

alheamento próprio dos cultos, não há possibilidade de uma troca

saudável. Da mesma forma, quando é posto num pedestal e

considerado perfeito, o professor corre o risco de ficar isolado e

distante dos companheiros e amigos espirituais honestos. Nessa

situação, os membros da comunidade podem não perceber o que

está acontecendo. O professor que vive cercado de alunos que o

adoram, e não de pessoas que se relacionam com ele de igual para

igual, pode ser vitimado pela solidão e pela necessidade não

satisfeita de intimidade ou, pior ainda, pela autoconfiança cega, pela

arrogância e pela intolerância. Nesse caso, o isolamento é solo fértil

para o delírio, para o controle de idéias e para a transformação da

prática em culto.

Há forças culturais que contribuem para esses problemas. Nas

culturas patriarcais, somos condicionados a seguir a autoridade, a

desconfiar do corpo e dos sentimentos, a obedecer aos que "sabem

mais". Não somos estimulados a pensar por nós mesmos. A

vontade de ser salvo, de encontrar alguém que conheça a verdade

neste mundo confuso, é a base de muitas comunidades de

seguidores cegos.

A idealização e o isolamento levam à cultura da negação. A

idealização nos deixa cegos para a evidência dos próprios olhos e,

graças ao isolamento, não há ninguém para apontar os fatos. Às

vezes, é chocante o nível de negação das comunidades espirituais,

ainda mais para quem vê de fora com os olhos abertos: a

comunidade nega que seus ensinamentos tendem ao culto e que

seus membros estão perdidos no sistema espiritual, esquecidos da

própria sabedoria inata.

Eu soube da história de um mestre carismático de uma antiga

linhagem que segredava a um sem-número de mulheres casadas

que elas eram, cada uma, o seu amor secreto. Ele lhes dizia para

passar óleo no corpo e aguardar suas visitas e seus

"ensinamentos". Soube também de um rabino famoso, que somava

às suas canções inebriantes a embriaguez do álcool e vivia

passando a mão em mulheres e meninas.

A negação e o isolamento levam a um sofrimento que pode durar

muitos anos, como no caso do guru arrogante que tiranizava e

controlava a vida dos alunos para "destruir seu egotismo"; dos

padres pedófilos que encobriram por muito tempo sua prática; do

professor birmanês que acabou sendo espancado pelos monges

depois de anos de abuso.

Quase todas as tradições advertem contra o mau uso do papel de

professor. Mas os seguidores nunca acreditam que as advertências

se aplicam ao seu caso. São como Ícaro, que no embalo de voar

ignorou as palavras do pai. A capacidade de enganar a nós

mesmos é quase tão vasta quanto a capacidade de despertar.

Como questionar o professor nos põe em contato com a nossa

sombra, os alunos negam os abusos a despeito dos fatos. Mesmo

quando há denúncias nacionais de cultos ou de casos de abuso de

poder, dinheiro ou sexualidade num movimento espiritual, os alunos

não acreditam. Enquanto isso, professores iludidos buscam

explicações elaboradas para justificar o que estão fazendo: "Eu

estava usando o dinheiro, o poder, para o bem de todos." "Não se

trata de sexo, mas de ensinamentos tântricos." "Ajudo tantas

pessoas que preciso de um pouco de amparo e conforto." É difícil

resistir ao fascínio do vôo.

CONFUSÃO ENTRE CARISMA E SABEDORIA

Outra fonte de equívoco espiritual é a confusão entre carisma e

sabedoria. Alguns lideres espirituais têm a capacidade de evocar

estados extraordinários. Aumentamos as nossas esperanças, os

sentimentos de êxtase e a transcendência florescem em tomo

desses carismáticos pastores, padres, mestres zen, místicos,

rabinos e gurus. É fácil confundir esses poderes espirituais com

sinais de sabedoria, iluminação ou amor divino. Esquecemos que o

poder e o carisma não passam de poder e carisma, que essas

energias servem também aos demagogos, aos políticos e aos

entertainers.

É possível ser carismático sem ser sábio. E nem sempre a

sabedoria é brilhante e poderosa - ela pode se manifestar num

coração humilde e numa vida aparentemente comum. Nas

comunidades em que o poder espiritual é altamente valorizado, os

alunos têm que tomar ainda mais cuidado: quando se recorre a

conhecimentos secretos ou linhagens antigas; quando, entre todos

os grupos do mundo, um único grupo é escolhido para ser salvo, é

sinal que a comunidade espiritual está se transformando em culto.

Não é a regra geral, mas é um risco, principalmente no domínio

ofuscante do carisma. Algumas tradições se protegem contra esse

abuso criando uma rede de professores antigos e respeitados,

capazes de zelar pela conduta espiritual dos outros.

AS TENTAÇÕES DO PODER MUNDANO

Das Cruzadas à guerra santa, de santos corruptos e bispos

tirânicos à venda de favores, é bem conhecida a história do abuso

de poder nas religiões organizadas do Ocidente. Por outro lado, há

quem imagine que as religiões e tradições de meditação do Oriente

são imunes a essa forma de corrupção. Mas a história religiosa da

Coréia, do Japão, do Sri Lanka, da China, do Tibete e de Burma

estão cheias de episódios de abuso de poder. Em Zen of War, Brian

Victoria conta que carismáticos mestres zen do Japão, como

Sawaki Kodo Roshi e Harada Daiun Roshi, deturparam os

ensinamentos zen durante a Segunda Guerra Mundial para

fomentar a guerra e o extermínio. Durante muitos séculos, houve

professores zen que, em nome do Budismo, incitavam os

praticantes a aderir ao extermínio militar de não-japoneses, uma

forma de "guerra caridosa". O extermínio militar era visto como uma

expressão da iluminação e templos importantes forneciam

soldados, dinheiro para comprar armas e bênçãos para as

campanhas militares. Há também casos de guerra e luta pelo poder

entre mosteiros.

As guerras entre seitas, monges e mosteiros fazem parte da história

tibetana. Tsipon Shuguba, antigo ministro das finanças do Tibete e

autor de In the Presence of My Enemies, descreve as lutas pelo

poder durante as décadas que precederam a ocupação do Tibete

pela China Comunista. Mosteiros importantes, lamas como Reting

Rinpoche (regente do Dalai Lama) e centenas de monges lançaram

mão de cavalos, armas e canhões em batalhas que mataram

inúmeros monges-soldados. No exílio, o sectarismo e as lutas pelo

poder continuaram a assolar a comunidade tibetana, sempre em

nome da prática religiosa "correta".

Muitas hierarquias religiosas estabelecidas possuem grandes

propriedades, tesouros artísticos, grande influência internacional e

influência moral. A tarefa é descobrir como administrar tudo isso

sem sucumbir ao seu fascínio. Um líder espiritual sábio tem o

coração livre e o espírito simples, quer use brocados e fale com

reis, quer use trapos e viva na solidão do deserto. O amor

verdadeiro por todos os seres sabe que o poder político é sem valor

e inútil comparado com a fortuna que é viver em meio à verdade.

A NÃO INCLUSÃO PLENA DA NOSSA HUMANIDADE

A negação dos anseios humanos mais comuns é uma forma de

idealização tão difundida nas tradições espirituais do mundo inteiro

que vale a pena examinar suas razões. Algumas tradições

espirituais, do Oriente e do Ocidente, ensinam que o melhor é não

ter desejos nem necessidades pessoais. Esse ideal de perfeição

sobrenatural não reconhece o valor de relacionamentos e

necessidades comuns, achando que ter uma vida fora das estreitas

funções religiosas é nocivo para seres espirituais. Espera-se que

professores, abades e mestres estejam acima do mundo, vivendo

em simplicidade santa e pureza ascética.

A opção pela simplicidade tem muito valor, mas não se pode

confundir vida ascética com negação. O ascetismo é a escolha

consciente de um caminho de Simplicidade. A Simplicidade na

alimentação, no vestuário e no modo de agir é um caminho que

ensina a renúncia interior e a liberdade em relação às atrações do

mundo. Assim como o celibato, que também é uma expressão de

renúncia e Simplicidade.

Ao se afastar da esfera dos relacionamentos sexuais, a freira, o

padre e o monge adotam uma vida inteiramente devotada à prece,

ao serviço e à comunidade. Nesse contexto, é válido escolher o

caminho do celibato e do ascetismo. Quem faz uma opção saudável

pela pureza não suprime as próprias necessidades nem nega a sua

existência, mas aceita Eros, a intimidade humana e todo o espectro

de emoções, que passam a fazer parte de uma rica vida espiritual.

O problema é quando a negação do que é humano é parte

integrante da visão espiritual. No caso dos alunos, isso significa se

isolar da própria experiência de maneira puritana e medrosa. No

caso dos professores, a expectativa de altruísmo e pureza sem

pecado pode se traduzir em repressão ou ignorância da própria

sombra.

Os líderes espirituais que sucumbem a essa falsa idealização

costumam ignorar as necessidades humanas, a sexualidade, a

aflição e a vulnerabilidade. Os sistemas espirituais idealistas não

oferecem muita orientação nem ajuda quando se trata de lidar com

essas realidades. Mas, mesmo quando se atinge um estado puro e

sublime, as necessidades humanas não satisfeitas costumam

reaparecer. O corpo de Ícaro tem peso humano e Mara sempre

volta para nos fazer uma visita.

Quando desprezadas as necessidades do corpo e da natureza

humana tendem a ser demonizadas e projetadas nos outros,

alimentando a paranóia, a caça às bruxas e as inquisições. É o

caso de comunidades que temem muitos aspectos da vida. Uma

abadessa católica, conhecida por sua sabedoria e santidade,

fundou uma comunidade contemplativa há várias décadas. Ela

sabia que suas freiras e postulantes precisavam cuidar da energia

do corpo e das emoções. Mas foi punida por isso. As autoridades

da Igreja fecharam a abadia quando houve rumores de "outras

práticas", como meditação, trabalho respiratório e terapia, que

complementavam a rotina diária de preces e silêncio sagrado. Disse

a abadessa: "Nossa comunidade foi tratada de forma inacreditável

porque incluía o corpo e a respiração no que é sagrado." No

entanto, Thomas Merton começou a praticar meditação budista com

a permissão de seu diretor espiritual. A visão e a compreensão das

"autoridades" espirituais, como de qualquer outra, variam muito.

Encontramos uma abordagem mais humilde à plenitude da natureza

humana na vida do professor Dainan Katagiri Roshi, que vivia com

a família em Minneapolis, no centro de uma grande comunidade

zen. Quando ele recebeu o diagnóstico de câncer terminal, os

alunos correram para ajudar, embora estivessem assustados e

confusos com a idéia de o professor estar sujeito à fragilidade

humana como todos nós. Um dia, ele chamou os alunos ao seu

quarto. "Vejo que estão me observando. Querem ver como um

mestre zen morre. Vou lhes mostrar." Começou a agitar as pernas e

os braços, gritando: "Não quero morrer, não quero morrer!" Então

parou e olhou para eles. "Não sei como vou morrer. Talvez sinta

medo e dor. Lembrem que não existe uma maneira que seja a

certa." Esse é um professor que não se alheou da vida dos outros,

sabendo que o momento traz o que traz.

Aceitando abertamente as necessidades e emoções humanas, o

professor e a comunidade têm mais facilidade para lidar com essas

questões. Os problemas que surgem são aceitos como problemas

comuns, que todos enfrentam mais cedo ou mais tarde. Mas

quando o espírito da comunidade é de reprovação e medo, a

hipocrisia se instala. Só que a fachada sobre-humana acaba

desmoronando e então o dano é muito maior. Isso pode acontecer

em comunidades que adotam o celibato, mas acontece também

quando a prática espiritual é feita em meio à vida familiar comum -

ninguém, monge ou leigo, está imune às tempestades que as

emoções e os relacionamentos trazem. Essas tempestades fazem

parte do rico domínio da prática.

CONFUSÃO INTERCULTURAL

As tradições ocidentais de origem asiática enfrentam outra

dificuldade: a confusão intercultural. Professores acostumados à

modéstia no vestir e à separação estrita dos sexos podem perder a

noção do que é certo e errado ao mergulhar de repente na cultura

americana. Mas, na situação inversa, alunos ocidentais também

podem ficar confusos. A história do venerável Kalu Rinpoche, um

velho lama do Tibete, sábio e respeitado, serve de aviso. Ele era

um excelente professor, mas causou muito sofrimento na vida de

June Campbell, sua aluna e tradutora, quando fez dela sua parceira

sexual. No livro Traveler in Space, ela conta que lutou vinte anos

para resolver a confusão, a dor e o que via como um aviltamento

geral do feminino no Budismo Tibetano.

Uma professora ocidental, seguidora do Budismo Tibetano, tentou

chegar a uma compreensão intercultural da relação professor/aluno,

mas acabou fiel à própria sabedoria.

"Como tenho uma história de abuso sexual na infância e sempre

lutei pelos direitos das mulheres, eu não conseguia entender. Como

podia esse velho lama, um mestre das supremas práticas Vajrayana

de Maha Mudra, escolher todos os anos uma freira de treze ou

quatorze anos para ser sua parceira sexual? O que pensava a

mulher do lama? Eu sei que a Índia e o Tibete são um mundo

diferente. Eu soube que ter uma parceira jovem era uma prática

antiga para dar força ao lama. Homens poderosos sempre

acreditaram nisso, e figuras políticas e religiosas da Ásia seguem

essa prática.

Soube também que numa sociedade como o Tibete - ainda feudal -

isso era uma honra para a família das meninas. Famílias pobres,

passavam a fazer parte da corte do lama, o que lhes trazia algumas

vantagens. Mas, pensava eu, e as meninas? E elas?

Falei com algumas mulheres ocidentais que tinham dormido com

seus lamas. Algumas gostaram e se sentiram especiais. Algumas

se sentiram usadas e deixaram a prática. Outras disseram que

tiveram com o lama uma relação maternal. Mas nenhuma disse que

tinha sido um ensinamento: nada havia de tântrico nessa prática. O

sexo era para o lama, não para elas."

Na nossa época, a sexualidade é um terreno complexo. Não dá

para julgar uma cultura antiga usando critérios contemporâneos

ocidentais. Da mesma forma, professores de outras culturas que

vêm para o Ocidente não podem esperar que os alunos lhes

prestem serviços sexuais. É preciso haver mais consciência nessa

área para acabar com a dor e o sofrimento.

TRANSFORMAÇÃO DE DIFICULDADES EM CURA

Nas lendas arturianas, o jovem cavaleiro Parsifal junta-se aos

Cavaleiros da Távola Redonda para sair em busca do Santo Graal.

Seu mentor, Gournamond, diz a ele que, para continuar honrado,

deve seguir duas regras: primeira, não seduzir nem ser seduzido.

Segunda, chegando ao Castelo do Santo Graal, fazer a pergunta:

"A quem serve o Santo Graal?" Durante a viagem, Parsifal vê sinais

de sofrimento e conturbação em toda parte. Mas quando chega ao

Castelo do Graal, fica inebriado pela vida na corte. É levado à

presença do Rei Pescador, que está doente, e é-lhe oferecido um

banquete mágico, com tudo o que alguém pode desejar. Assim, ele

esquece do seu objetivo, e não faz a pergunta essencial. Ao

acordar na manhã seguinte, o castelo e o reino haviam sumido.

Parsifal passa anos vagando e sofrendo e só consegue voltar ao

castelo depois de, a duras penas, conquistar a maturidade. Dessa

vez ele se lembra de fazer a pergunta: "A quem serve o Graal?" O

Rei Pescador responde: "O Santo Graal serve ao Rei do Graal." (O

Rei do Graal é Deus.) Ao se lembrar dessa verdade sagrada, o Rei

Pescador fica curado. Com isso, desaparece tudo o que apodreceu

nos campos, toda a desarmonia do pais e todo o sofrimento do

remo - e volta a reinar a paz e o bem-estar.

A jornada para a iluminação se resolve quando percebemos que

sofrimento e despertar servem a um bem superior. Quando não

estamos a serviço do Divino, nossas necessidades não satisfeitas

se misturam à busca e nossas experiências espirituais servem

apenas para criar uma forma mais expandida de ego. Um professor

que se identifica demais com a energia espiritual pode começar a

acreditar que é ele que tem que ser servido, por ser o detentor dos

ensinamentos. É melhor desconfiar quando o professor vive

cercado por uma corte que dá mais importância à pessoa do que à

sabedoria da linhagem. Quando o Rei Pescador esquece a serviço

de quem está, a abundância do país acaba e todos sofrem por

causa de sua doença espiritual.

UM HUMILDE RECONHECIMENTO DA VERDADE

O coração sábio reconhece que a energia espiritual que

descobrimos não é nossa, mas é confiada a nós. Os votos do

bodhisattva e a prece de São Francisco nos aconselham a usar

para o bem dos outros as bênçãos que recebemos. O coração

sábio reconhece também que há dias em que estamos mais

próximos das bênçãos do despertar e dias em que estamos mais

distantes.

Há vários anos, eu estava na Indonésia visitando xamãs e mestres

da cura. Meu tradutor me contou que seu tio tinha sido um agente

de cura famoso, mas que tinha deixado de praticar. Quando

perguntei por que, ele explicou:

"Meu tio era um plantador de arroz que aprendeu a curar meditando

e entrando em transe. No primeiro dia em que começou a praticar a

cura, sentiu que a energia dos deuses o ajudava a ver a doença nos

pacientes. Eles lhe mostravam que ervas usar e onde tocar.

Durante vinte anos os deuses vieram, mas um dia pararam de

aparecer. Então, meu tio disse às pessoas que não podia mais

curar e voltou a plantar arroz."

Há nisso uma assombrosa integridade. É difícil imaginar um

terapeuta, médico ou professor espiritual admitindo que, em

determinados dias, os deuses não estão à sua disposição. No

entanto, todos sabem que isso acontece.

INTEGRIDADE E FUNDAMENTOS ÉTICOS

Em geral, as religiões reconhecem que a vida espiritual precisa de

uma base de virtude, honestidade e integridade. Podemos seguir os

preceitos budistas, os Yamas e Niyamas hindus ou os

mandamentos muçulmanos ou judeu-cristãos, mas o cuidado que

tomamos com a nossa conduta serve de base ao desenvolvimento

espiritual. Não se trata apenas de ser difícil meditar ou rezar depois

de um dia matando, mentindo e roubando, mas de não haver

possibilidade de liberdade quando sucumbimos à raiva e aos

desejos a ponto de mentir, matar e roubar.

Embora a virtude e a compaixão sejam naturais à consciência, os

preceitos éticos são essenciais à saúde de qualquer comunidade.

Esses preceitos devem se aplicar tanto ao professor quanto aos

alunos, pois o mestre que se coloca acima da virtude está destinado

a gerar sofrimento, como aconteceu com o Rei Pescador. Mesmo

as tradições zen e tântrica, que foram criadas para libertar os

alunos da rigidez das regras espirituais, reconhecem que o

comportamento virtuoso é necessário. Senão, o caminho que

ensinam seria uma impostura.

As tradições espirituais que chegam ao Ocidente vindas de outras

culturas costumam ter regras e preceitos tácitos que regem a

conduta do professor. Os limites para professores e alunos são

salvaguardados pela comunidade, cujo apoio é essencial para os

praticantes. Mas no Ocidente, numa cultura que enfatiza o dinheiro,

o sexo, o poder, a bebida e as drogas, essas velhas regras

parecem perder sua importância. Por isso, certos professores

estrangeiros confundem cultura popular com convite ao excesso e

acham que na América não há necessidade de regras.

Para evitar problemas, aconselhava o Buda, as comunidades

espirituais têm de estabelecer preceitos éticos claros para todos os

membros, incluindo os líderes. Muitas já adotam essa prática. Caso

contrário, os alunos têm a responsabilidade de pedir uma

declaração de princípios explícita. Criar uma comunidade espiritual

sem princípios éticos claros é um convite à traição. Os valores de

compaixão e amor que fundamentam todas as grandes tradições

repousam no compromisso com a virtude.

TRAIÇÃO COMO INICIAÇÃO VIOLENTA

Começamos esta investigação no espírito da sabedoria perspicaz.

O objetivo da reflexão sobre erros passados é buscar uma

compreensão que favoreça a cura e a redenção, e não a culpa.

Mas, a despeito das advertências, a traição ainda acontece - é um

tema assombrosamente comum na jornada. Metade das pessoas

com quem conversei sobre vida espiritual mencionaram algum tipo

de traição significativa. A traição é um portão difícil de transpor, um

exterminador da ilusão e da inocência. Funciona como uma

iniciação forçada à complexa verdade da humanidade, às sombras

lançadas pela luz. As lições da traição espiritual, assim como a dor

que provoca, podem durar anos.

Uma mulher aprendeu o que é traição no ashram onde praticava

yoga, quando teve um aborto espontâneo. Desolada, ela perguntou

ao guru se a dura rotina do ashram no calor do verão poderia ter

contribuído para a perda do bebê. Furioso, achando que seus

ensinamentos estavam sendo questionados, o mestre fez com que

ela se levantasse no meio de centenas de alunos e disse: "Ela abriu

as pernas para o marido e agora quer implicar a yoga na perda da

criança. Vai ver, ela simplesmente não serve para ser mãe." Nesse

momento, os anos de fé não questionada ficaram abalados. Ela

deixou o ashram. Depois de um longo processo de aflição, raiva,

reflexão e trabalho interior, ela compreendeu que a maior traição

era ter aberto mão da própria autoridade.

Em 1993, no primeiro grande encontro de professores budistas

americanos, que contou com a presença de 120 lideres budistas,

vários professores falaram sobre traição e mau uso do poder. Como

esse assunto tinha sido tabu por muito tempo, muitas lágrimas

rolaram. Alguns buscaram a cura e o perdão durante anos - e

outros ainda buscavam a cura. Não é a traição dos professores que

nos deixa chocados e que nos faz acordar - é perceber que traímos

a nós mesmos. Fingimos não ver a sombra mesmo quando ela é

plenamente visível. Levados pela necessidade e pelo idealismo,

abandonamos a sabedoria do coração, a nossa verdadeira

natureza.

Seja para dizer a verdade, seja para deixar como está e perdoar,

precisamos do apoio dos amigos espirituais e da força da nossa

prática. Temos que descobrir nossa própria autoridade e a

grandeza do nosso coração. "Seja você mesmo uma candeia, faça

de você mesmo uma luz", foram as últimas palavras do Buda.

Nenhum professor ou autoridade pode nos dar ou tirar a verdade.

No fim, vamos descobrir que a sabedoria simples e a compaixão

inabalável que buscamos estão em nosso coração.

A própria traição se transforma em professor. Temos que nos

prosternar diante da traição, pois ela nos leva de volta à verdade.

Graças a ela, somos obrigados a usar de sabedoria perspicaz, a

falar honestamente, a examinar ideais e defeitos e a enfrentar o

perdão. Poucas tarefas são tão ricas em seus ensinamentos.

Em 1994, quando a comunidade do yogue Amrit Desai se dissolveu,

a sensação de traição arrasou seus discípulos. A desilusão foi

grande quando o mestre foi acusado publicamente de manter casos

secretos e de manipular dinheiro e poder havia mais de vinte anos.

No entanto, como ele era também um professor sábio e criativo, os

alunos conseguiram administrar a perda graças às práticas que

tinham aprendido com ele: questionamento, equilíbrio e compaixão.

Depois de meses de penosas reuniões, o mestre foi convidado a se

retirar e os estudantes ficaram às voltas com sua confusão e

desespero. Depois disso, a comunidade se refez, dedicada aos

princípios de yoga e de espiritualidade saudável que a crise

ensinou. E o mestre também diz que, graças a tudo isso, aprendeu

lições importantes.

O Mestre Zen Dogen disse que a vida de um mestre zen é um erro

continuo - ou seja, uma oportunidade para aprender atrás da outra,

um erro atrás do outro. A traição e o mau uso do poder revelam

falhas que pertencem ao território do que é humano. Diante desses

problemas, podemos deixar ou não a comunidade, mas o

importante é aprender a prática da sabedoria e da compaixão.

Não se deve fazer julgamentos apressados quando se lava a roupa

suja. As forças impessoais do idealismo e da pretensão vazia, as

profundezas da ilusão e do medo, as sutilezas do auto-engano e da

ambição fazem parte da natureza humana. As peças gregas, os

Vedas indianos, os mitos tribais africanos e os koans zen lutam com

essas forças, que moldam o destino humano desde os tempos

antigos. Acreditar numa vida espiritual sem sombras, sem as visitas

de Mara, é imaginar um céu onde o sol está sempre a pino.

Costumam dizer na Índia que nem mesmo um santo de noventa

anos está a salvo. Enquanto vivemos somos vulneráveis. O grande

mestre zen Hui Neng fala da rapidez com que a mente pode mudar:

Quanto à Natureza Búdica, não há diferença entre um pecador e

um sábio... um pensamento iluminado e somos um Buda; um

pensamento tolo e somos novamente uma pessoa comum.

A disposição para compreender a roupa suja da prática espiritual é

também um convite à verdade. Assim como o despertar pode

sucumbir à desilusão, a compreensão e a redenção podem

ressurgir de um momento para o outro, mesmo que estejamos

perdidos. Num momento de verdade podemos recompor o que está

aos pedaços, podemos começar a curar nossos erros. Num só

momento de verdade podemos perceber que estamos perdidos e

que é possível melhorar. Nossos erros e nossa fragilidade trazem

algumas das lições mais profundas. Numa conversa sincera, num

momento quieto de avaliação, até mesmo no leito de morte, a

liberdade nos aguarda. Aceitando o nosso sofrimento e as nossas

traições, o sofrimento e as traições dos outros, conseguimos

despertar de verdade para o grande coração cheio de compaixão.

QUARTA PARTE

O DESPERTAR

NA LAVANDERIA

11

A MANDALA DO DESPERTAR:

O QUE EU ESTOU EXCLUINDO?

E tendo entrado na Corrente do Dharma, o praticante examina

regularmente seu coração e vê: esta é a liberdade conquistada e

esses são os grilhões, as complicações que ainda precisam ser

resolvidas em mim.

BUDA

Um velho monge trapista, Frei Theophane, conta a história de um

Mosteiro Mágico, onde as verdadeiras dádivas da vida espiritual

podem ser encontradas:

Eu sabia que havia muitos pontos de vista interessantes, mas não

queria mais as respostas pequenas; queria a grande resposta.

Então, pedi ao mestre que me levasse diretamente à Casa de Deus.

Eu me sentei, disposto a esperar pela grande resposta. Fiquei em

silêncio o dia inteiro e boa parte da noite. Eu O olhei nos olhos e

acho que Ele estava me olhando nos olhos. Tarde da noite, achei

que tinha ouvido uma voz: "O que você está excluindo?" Olhei à

minha volta e ouvi de novo: "O que você está excluindo?" Seria a

minha imaginação? A voz parecia estar em toda parte, sussurrando,

rugindo: "O que você está excluindo?"

Eu estaria ficando louco? Levantei e corri para a porta. Eu precisava

do conforto de um rosto humano ou de uma voz humana. Lá perto

havia um corredor onde viviam alguns monges. Bati numa das

celas.

"O que você quer?", perguntou uma voz sonolenta.

"O que eu estou excluindo?"

"A mim", ele respondeu.

Bati na outra porta.

"O que você quer?"

"O que estou excluindo?"

"A mim."

Bati na terceira cela, na quarta, tudo a mesma coisa.

Pensei: "Eles só pensam em si mesmos." Saí do prédio,

desgostoso. O sol estava nascendo. Eu nunca havia falado com o

sol, mas perguntei: "O que eu estou excluindo?"

"A mim", foi o que o sol também respondeu. Isso me liquidou.

Eu me joguei ao chão. E a terra disse: "E a mim também."

A história de Frei Theophane chama a atenção para o maior desafio

da maturidade espiritual: se queremos abrir o coração para o

mundo inteiro, nada pode ser excluído. A liberdade e o despertar

estão exatamente onde nós estamos. Se queremos amar a Deus,

temos que aprender a amar todas as Suas criaturas - inclusive nós

mesmos, com toda a nossa complexidade e imperfeição. Esse

espírito que tudo abrange cria uma mandala ou círculo de despertar

em que nos abrimos para a realidade do presente, em que

incluímos todas as dimensões da vida.

A MANDALA DO TODO

Uma "mandala" é uma imagem, em geral complexa, que representa

o grande círculo da existência, a totalidade sagrada, um mundo

completo. O objetivo da vida espiritual madura é descobrir e

incorporar esse todo sagrado à nossa vida.

Há dois princípios centrais para despertar para essa totalidade.

Primeiro: para que a liberdade floresça, todas as áreas importantes

da nossa experiência na terra têm que ser incluídas na vida

espiritual. Nenhuma dimensão significativa pode ser excluída da

consciência. Os Anciãos Budistas falam dos quatro fundamentos da

consciência sagrada, que é preciso cultivar: o corpo, os

sentimentos, a mente e os princípios dominantes da vida. Mas seus

ensinamentos dão a mesma atenção à família, à comunidade, à

subsistência e à relação com o mundo em geral. É a atenção a

cada uma dessas áreas· que nos conduz ao despertar. Elas serão

discutidas nos capítulos seguintes.

O segundo princípio é o seguinte: a consciência em uma área da

vida não se transfere necessariamente para as outras. Há atletas

olímpicos fisicamente conscientes que são emocionalmente

imaturos ou mentalmente pouco desenvolvidos. Por outro lado, há

intelectuais brilhantes que sofrem por ignorância ou descaso em

relação ao corpo e às emoções. Há também pessoas conscientes

de seus sentimentos e peritas em relacionamentos humanos, que

não têm consciência alguma dos pensamentos e pontos de vista

que as limitam.

Na vida espiritual não é diferente. Mestres da meditação, peritos em

navegar por estados expansivos de consciência, podem ficar

perdidos no domínio das emoções e dos relacionamentos. Freiras e

monges devotados, que se relacionam muito bem com Deus, têm

às vezes uma relação conturbada e até destrutiva com a família - ou

com o próprio corpo. Yogues e gurus com assombrosa destreza

física, e incrível controle sobre o corpo e sobre a mente, têm às

vezes pontos de vista não trabalhados que causam sofrimento para

quem está à volta deles. Quase todos os monges, freiras, mestres

de meditação e adeptos espirituais já veteranos acabam

descobrindo áreas inteiras da vida de que não tinham consciência.

No caso de muitos professores, é o próprio treinamento espiritual

que ensina a negligenciar ou a negar as necessidades humanas

básicas. E os que nunca chegam a incluir esses aspectos da vida

em sua prática acabam sofrendo, sem necessidade, de saúde

precária a problemas emocionais. Qualquer área que continue

inconsciente traz com ela sofrimento, conflito e limitação. Como diz

Gandhi: "Não dá para acertar num departamento da vida e

continuar errando em outro. A vida é um todo indivisível."

Em geral, o exame de áreas espiritualmente não trabalhadas da

vida revela opiniões e medos ocultos. Acreditamos, por exemplo,

que o corpo - os relacionamentos, o planejamento do futuro, o

dinheiro, a sexualidade, a família, a comunidade ou a política - é

"não-espiritual", perigoso, feio, uma cilada. Esse medo ergue

muros, isola o coração e divide o mundo em partes sagradas e

partes que não são sagradas. Compartimentalizadas, as

experiências de realização não se desenvolvem: como as árvores

bonsai, são belas mas atrofiadas.

Mas é preciso dissolver essas fronteiras interiores. Como mostra a

história de Frei Theophane, é ouvindo honestamente o que nos

causa medo ou o que excluímos que vamos encontrar a liberdade.

Se não quisermos ver, aquilo que foi negligenciado virá atrás de

nós. As partes perdidas de nós mesmos vão bater à nossa porta se

não quisermos ouvir seus gritos. No fim, vamos ser obrigados a

ouvir sua voz no divórcio, na depressão, na doença ou em algum

estranho fracasso. Mas quando ouvimos e aceitamos todas as

partes do eu, elas enriquecem nosso jardim como o adubo, como o

alimento da vida.

Há uma unidade fundamental em todas as coisas - e o coração

sabe disso, assim como conhece os movimentos da respiração.

Todas as coisas fazem parte do todo sagrado em que existimos - e

são profundamente confiáveis. Não é preciso temer as energias

deste mundo nem de nenhum outro, só a nossa confusão em

relação a elas. O Mestre Zen Rinzai diz que o ser realmente sábio é

aquele que "entra no fogo sem se queimar, entra na água sem se

afogar, brinca nos três infernos mais profundos como se fossem

uma área de lazer, entra no mundo dos fantasmas e dos animais

sem ser perturbado por eles". Nenhum dos domínios da existência é

excluído da nossa prática.

Vimala Thakar, mestre de meditação, diz: "Como amante da vida,

como posso ficar fora de qualquer área da vida?" No espírito de

Gandhi, sua comunidade trabalha numa das vilas mais pobres de

Gujarat, na Índia, cavando poços, viabilizando a irrigação e novas

culturas. No espírito do seu amigo e professor Krishnamurti, ela

ensina em retiros do mundo inteiro. Sua meditação e suas preces

não separam a vida espiritual da política, a compaixão da justiça, o

auto conhecimento da subsistência: tudo está incluído no todo.

UMA LINGUAGEM ESPIRITUAL MADURA

No começo do caminho espiritual, falamos muito de superar

obstáculos, do esforço necessário, de purificação, de ardor na

procura de Deus. Mas essa linguagem, embora nos sirva por algum

tempo, acaba ficando muito unilateral, pondo uma coisa contra a

outra: mundanidade contra liberdade, vontade própria contra graça

de Deus, pecado contra redenção. É uma linguagem construída

sobre a exclusão.

Com o despertar da sabedoria, o coração começa a se expandir

para abraçar o pleno paradoxo da vida. Como escreve Walt

Whitman: "Sou grande, contenho multidões." No coração maduro,

desponta uma perfeição mais profunda que não é oposta às coisas

deste mundo, mas as abrange na compaixão. Voltada para a

misericórdia e para a bondade, a vida espiritual abandona as lutas

do eu, as batalhas com o ego ou com o pecado. Nossa canção é

agora o amor corajoso por toda a criação, sem nada excluir.

Participamos do que Zorba, o Grego, chamou de "catástrofe total".

Na psicologia budista, esse amadurecimento é descrito pela

imagem de uma árvore venenosa, que representa o sofrimento do

mundo. Quando descobrimos que uma árvore é venenosa, nosso

primeiro impulso é cortá-Ia e removê-Ia para que não ofereça mais

perigo. Nesse estágio inicial da prática, a linguagem é de conflito:

medo do veneno e da impureza e disposição para erradicar e

destruir o que é perigoso.

Mas, à medida que a compaixão fica mais profunda, percebemos

que a árvore também faz parte da rede da vida. Em vez de destruí-

Ia, passamos a respeitá-Ia - mas construímos uma cerca à volta

dela e dizemos aos outros que é venenosa. Nossa linguagem se

transforma em linguagem de compaixão e respeito, e não de medo.

As dificuldades internas e externas são agora enfrentadas com

clemência. Esse é o segundo estágio da prática.

Finalmente, quando a sabedoria fica mais profunda, percebemos

que os problemas e os venenos são os nossos melhores

professores. Dizem que os seres mais sábios virão à procura dessa

árvore venenosa para usar seus frutos como remédio capaz de

transformar os sofrimentos do mundo. As energias da paixão e do

desejo, da raiva e da confusão, se transformam em ardor, em força

e na clareza que traz o despertar. Compreendemos que a liberdade

e a compaixão mais profundas surgem quando enfrentamos os

sofrimentos do mundo. O que uma vez chamamos de veneno é

agora visto como um aliado da nossa prática.

Essa crescente liberdade do coração traz a coragem de questionar,

de esclarecer e de aprimorar por nós mesmos os ensinamentos que

aceitávamos sem perguntas. A crença em ideais dá lugar à

sabedoria que emerge da experiência. Ganhamos uma

compreensão direta daquilo que alimenta e sustenta a liberdade.

Somos finalmente capazes de ver e de saber por nós mesmos.

A maturidade nos livra da linguagem unilateral do começo.

Deixamos para trás o bom e o ruim, o certo e o errado. O mundo

deixa de ser uma batalha entre preto e branco, entre puro e impuro.

Deixa de ser uma árvore venenosa a ser abatida e removida. Nossa

visão do sagrado passa a ser complexa, paradoxal, irônica e bem-

humorada. Mais claro, agora o coração é capaz de compreender o

mundo em vez de lutar com ele, de colher o fruto da árvore

venenosa em vez de cortá-Ia.

Como nossa clareza é cada vez maior, compreendemos de outra

maneira a linguagem do desapego e da renúncia. "O apego é a

causa do sofrimento", diz o ensinamento budista clássico. "É mais

fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico

entrar no Reino de Deus", disse Jesus. É verdade que o apego e a

ganância causam sofrimento. Mas um ensinamento maduro é mais

completo, reconhecendo que há o apego saudável e o que não é

saudável. A mãe tem um apego natural e profundo pelo filho, que

do contrário ficaria prejudicado e sofreria. O empregador pode ter

um apego saudável pelo bem-estar dos funcionários.

Quando aprendemos a distinguir os tipos de apego, passamos a

compreender melhor o Significado de compromisso. O

compromisso sábio, seja com um relacionamento exclusivo, com a

virtude, com a prece, com a meditação, com Deus ou com um

caminho sagrado, é uma expressão de liberdade interior e não uma

limitação. Renúncia traz liberdade não porque abrimos mão das

coisas (embora isso possa acontecer), mas porque deixamos para

lá a avidez e a possessividade, porque livramos o coração do medo,

da raiva e da ilusão.

Além disso, o desapego e a sabedoria perspicaz se reconciliam. A

sabedoria perspicaz estabelece fronteiras, diz sim ou não, defende

a justiça e age por compaixão. Assim, ela se toma uma expressão

altruísta e corajosa do desapego. A sabedoria perspicaz nos

permite agir sem avidez nem agressividade, nos leva a falar a

verdade e a beneficiar todos os seres.

À medida que avançamos no caminho espiritual, começamos a

compreender de outra maneira o desejo e a paixão. Como escreveu

William Blake: "Os que entram pelos portões do reino dos céus não

são seres sem paixões ou que refrearam as paixões, mas que

cultivaram a compreensão das paixões." Em vez de condenar o

desejo, nós o aceitamos com sabedoria e sensibilidade. Passamos

a ver o mundo como um jogo do desejo, e a diferença entre desejos

aceitáveis e inaceitáveis se toma aparente. Alguns desejos causam

sofrimento. Outros, como a necessidade natural de amor familiar,

alimento e abrigo, são saudáveis. O desejo de aprender, de servir a

Deus, pode nos levar ao despertar. Passamos a respeitar a paixão

e o ardor, sabendo que são energias humanas que podem

favorecer a compulsão e a avidez, mas também a lealdade e a

integridade do ser.

Essas energias deixam de ser pecados mortais e se transformam

em remédio para o despertar. Conseguimos estar no mundo sem

ser engolidos por ele, usando as energias da vida para ensinar e

despertar onde quer que seja. Sócrates, que viveu uma vida

simples e frugal, adorava ir ao mercado. Seus alunos lhe

perguntaram por que e ele respondeu: "Gosto de ver as coisas sem

as quais sou feliz." Os luxos de Atenas não eram o seu inimigo e a

sua sabedoria andava com prazer imperturbável no meio deles.

O coração maduro nos ajuda a lidar até mesmo com as forças da

raiva e do ódio. Aprendemos a distinguir a raiva do ódio, um

sofrimento mais profundo. Compreendemos os dois e sabemos que

são energias poderosas. Shantideva, o sábio budista, nos adverte:

"Mil éons de atos salutares serão destruídos num momento de

raiva." Mas nós não nos limitamos à incondicionalidade dessa

afirmação. Às vezes até a raiva tem seu valor. O Dalai Lama,

apaixonado defensor da não-violência, admite que a raiva é

perigosa, mas diz também que "existe a raiva positiva, moderada

pela compaixão e por um senso de responsabilidade que leva à

ação útil e rápida". Quem odeia e teme a própria raiva continua a

batalha. Nosso teste é compreender e transformar essas energias

em clareza e força.

O CAMINHO DO MEIO

O vocabulário mais amplo da compreensão revela que o coração

está mais flexível e sensível. As qualidades rígidas e dogmáticas do

fervor religioso dão lugar ao caminho do meio, com uma postura

sábia que não é nem indulgente nem medrosa.

Meu professor Ajahn Chah demonstrava essa flexibilidade quando

era incoerente, contradizendo coisas que havia dito antes, retirando

ensinamentos que havia enfatizado. Quando isso lhe foi mostrado

por um aluno frustrado (eu), Ajahn Chah riu: "É assim mesmo. Há

uma estrada que conheço bem, mas ela pode estar nublada ou

escura. Quando vejo que alguém está prestes a cair num buraco ou

a entrar num desvio no lado direito dessa estrada, eu grito 'Vá para

a esquerda'. Se vejo que alguém está prestes a cair num buraco ou

a entrar num desvio no lado esquerdo da estrada, eu grito 'Vá para

a direita'. Ensinar é só isso. Sempre que você é apanhado, eu digo:

'Livre-se disso também'''.

O caminho do meio abrange os opostos. Fica entre eles, aceitando

a verdade dos dois, sem se prender a nenhum. De um ponto de

vista vemos que a vida humana segue sua inevitável cadeia de

perdas e sofrimento, culminando na doença, no envelhecimento e

na morte. Mas, de outro ponto de vista, vemos que ela é uma

dádiva, cheia de graças e bênçãos, uma expressão da beleza

divina. Vemos o próprio sofrimento como a graça que nos leva à

compaixão, à entrega e à humildade.

O despertar dissolve os rótulos que pomos na nossa experiência.

No coração sábio, cada noção de quem somos - seres vis ou

Budas, pecadores ou filhos de Deus - se esclarece. Maduro, o

coração conhece a dimensão do egotismo e do pecado. Mas situa

nossa humanidade numa realidade maior, uma realidade de graça

original e bondade básica. Ele repousa em nossa natureza divina,

em nossa Natureza Búdica.

Essa compreensão nos permite entender melhor os ensinamentos

espirituais que nos instruem a destruir a auto-estima, equilibrando-

os com a necessidade de amar a si mesmo. No Samutta Nikaya,

Buda diz: "Você pode percorrer o universo décuplo e não achar um

único ser mais merecedor de amor e bondade do que você mesmo."

Às vezes, é preciso abrir mão do eu. E às vezes o problema é o

desmerecimento e o ódio de si mesmo. Nesse caso, só é possível

curar e libertar o coração através do amor pelo eu que foi rejeitado.

O coração sábio traz compaixão até para a imperfeição. Na

Stanford University, foi feito um estudo sobre "agentes de cura

magoados": uma comparação entre psicólogos que trabalhavam de

maneira impessoal, sem nada revelar sobre si mesmos, com os que

falavam de suas dificuldades e mágoas. Os "agentes de cura

magoados" conseguiam um maior índice de cura entre seus

pacientes.

O coração sábio está em paz com as coisas como elas são. Como

não ficamos mais perdidos no mundo nem lutamos mais contra ele,

nós podemos descansar. As qualidades sagradas - compreensão,

humildade e cuidado paciente - são nossas dádivas. Nosso corpo,

discurso e mente são como o Tao, "satisfeito com a mudança das

estações". Nós nos tomamos o amor que buscamos. E nesse amor

somos devolvidos a nós mesmos.

O professor zen Edward Espe Brown é o autor de muitos livros de

receitas culinárias de inspiração zen, começando com The

Tassajara Bread Book. Falando de sua prática na cozinha, ele

expõe verdades do coração.

Quando comecei a cozinhar em Tassajara, tive um problema. Meus

biscoitos não ficavam como eu queria. Eu seguia a receita,

experimentava variações, mas não funcionava. Os biscoitos não

davam certo.

Quando eu era criança, costumava fazer dois tipos de biscoito. Um

era Bisquick e o outro Pillsbury. Para fazer os biscoitos Bisquick,

precisava juntar leite à mistura e, depois, pingar a massa na fôrma

com uma colher - nem precisava enrolar. Os biscoitos Pillsbury

vinham em lata. Para abrir, era só dar uma batidinha no canto da

pia. Depois era só girar a tampa e pôr os biscoitos já prontos na

forma para assar. Eu gostava muito desses biscoitos Pillsbury. É

como deveriam ser todos os biscoitos. E os meus não estavam

dando certo.

São incríveis as idéias que temos sobre o gosto que os biscoitos

devem ter ou sobre como deve ser a vida. Comparado com o quê?

Com os biscoitos em lata Pillsbury? Quem experimentava meus

biscoitos exaltava suas virtudes e comia um atrás do outro; mas

para mim eles não prestavam.

Finalmente, tive um estalo, um despertar. "Eles não prestavam"

comparados a quê? Deus meu: eu estava tentando fazer biscoitos

em lata Pillsbury! Então, veio um momento raro em que provei

meus biscoitos sem compará-los a um padrão oculto. Eles eram

consistentes, leves, macios, crocantes, reais. Estavam

incomparavelmente vivos - na verdade, satisfaziam muito mais do

que qualquer lembrança.

Essas ocasiões podem ser libertadoras, momentos em que

percebemos que a vida está muito bem como está, muito obrigado.

Só a insidiosa comparação com um produto belamente embalado,

belamente preparado, fazia com que ela parecesse insatisfatória.

Era frustrante tentar produzir um biscoito - uma vida - sem tigelas

sujas, sem sentimentos confusos, sem depressão e sem raiva.

Depois disso saborear, provar de verdade o momento presente da

experiência - muito mais complexo e multifacetado. Impenetrável.

Quando éramos estudantes, tentávamos encobrir os erros,

esconder as confusões. Sabíamos como era o estudante zen

Bisquick: calmo, generoso, alegre, enérgico, profundo. Nosso lema,

como dizia um dos meus amigos, era: "fazer bonito". Todos nós já

tentamos fazer bonito, parecer um bom marido, uma boa mulher,

um bom pai, uma boa mãe. Todos nós já tentamos atingir a

perfeição. Já tentamos fazer biscoitos Pillsbury.

Que vá tudo para o inferno. Acorde e sinta o cheiro de café. Nada

como um bom café feito em casa, com os biscoitos de hoje.

Quando aceitamos o nosso lugar na mandala do todo, voltamos

para o lugar exato em que estamos. E nele encontramos alegria,

bem-estar, simplicidade, coragem e o que T. S. Eliot chama de

liberdade "para se importar e para não se importar". Os capítulos

seguintes ilustram o flores cimento dessa plenitude, da volta para

nós mesmos.

12

ESTE MESMO CORPO, O BUDA

Neste corpo, que não é tão grande, são encontrados todos os

ensinamentos, é encontrado o sofrimento, a causa do sofrimento e

o fim do sofrimento.

BUDA

É bom lembrar que este corpo que temos, que está aqui neste

momento...

com suas dores e seus prazeres... é exatamente o que precisamos

para ser plenamente humanos, despertos e vivos.

PEMA CHODRON

Antes da iluminação, temos que viver com o nosso corpo. Depois

da iluminação, ainda temos que viver com o nosso corpo. Diz o

Mestre Zen Dainan Katagiri: "Na prática espiritual, o importante não

é tentar escapar da vida, mas enfrentá-Ia - precisa e

completamente." Quando diz isso, ele está se dirigindo a quem está

começando o caminho e também a quem já atingiu o despertar. O

corpo tem que ser incluído na viagem do despertar, seja qual for o

ponto em que estamos.

No entanto, as tradições religiosas orientais e ocidentais não

respeitam essa verdade. Cada uma à sua maneira, todas elas

enfatizam a negação e a aversão ao eu físico, temem o corpo e têm

desdém por seus impulsos. Num mosteiro birmanês em que

pratiquei, havia mestres que proibiam a yoga, os alongamentos e os

exercícios. Segundo eles, os alunos tinham que se entregar a

meses de meditação intensiva e "abandonar qualquer preocupação

com o corpo". Muitos aceitavam esse conselho - como não confiar

nas palavras do professor? Anos depois, lutavam para recuperar a

saúde e, finalmente, viver com sabedoria. No Hinduismo, no

Islamismo e no Cristianismo é comum encontrar professores que

defendem a atitude puritana, que temem e desprezam o corpo.

Uma velha freira ursulina conta como sua comunidade via o corpo:

"Aprendi, desde o começo, a ter vergonha do meu corpo de mulher.

Em meus anos de treinamento na igreja, era obrigada a ignorar

todos os aspectos do meu corpo e a admirar esses santos que

sacrificaram o corpo pecador e morreram como mártires. Era uma

espiritualidade rígida, que reforçava profundamente a minha

vergonha interior."

Há uma história tradicional chinesa que chama a atenção para essa

perda de contato com o corpo. Na antiga China, vivia um viúvo com

duas belas filhas. A filha mais velha morreu e ele ficou com a mais

nova, Sen-jo, que era muito bonita e tinha muitos pretendentes.

Quando Sen-jo chegou à idade de casar, o pai escolheu um marido

próspero para ela. Mas Sen-jo estava há muito tempo apaixonada

por Ochu, que conhecia desde pequena. Certa vez, o pai de Sen-jo

havia dito de brincadeira que eles combinavam e deviam se casar

quando crescessem. Mas eles levaram a brincadeira a sério e

começaram a se amar profundamente.

Quando soube que estava prometida a outro, Sen-jo ficou tão

perturbada que quase desmaiou. Achando que não conseguiria

suportar aquela dor, Ochu resolveu fugir. À meia-noite, desamarrou

seu barquinho do cais da vila e começou a remar rio abaixo. De

repente, viu um vulto saindo dos arbustos e correndo pela margem.

Era Sen-jo. Correram um para o outro, Senjo entrou no barquinho e

os dois seguiram para uma vila remota.

Casaram-se e viveram durante cinco anos nesse lugar, onde

formaram uma plantação e criaram dois filhos. Mas Sen-jo se

preocupava com o pai e se sentia ingrata por ter fugido. Seu

passado não resolvido a assombrava, tingindo de aflição sua

felicidade. Quando falou sobre isso com Ochu, ele disse que

também sentia saudades de casa. Decidiram então voltar e pedir o

perdão da família. Alugaram um barco maior e, com as duas

crianças, remaram rio acima e ancoraram no cais do vilarejo.

Ochu foi até a casa do pai de Sen-jo para pedir perdão, mas teve

uma amarga surpresa. O velho não acreditou que a filha estava no

barco. "Minha filha está deitada na cama, doente demais para

conseguir falar, desde o dia em que você partiu." Ochu ficou

assombrado. "Ela está no barco, meu pai, com dois lindos netos.

Venha ver." Mas o pai não quis ir e mandou o servo. Quando o

homem voltou dizendo que era verdade, ele ficou muito confuso.

Mas foi até o quarto da filha e contou-lhe a história.

No mesmo instante, a Sen-jo doente ficou cheia de energia e

levantou-se da cama sem dizer palavra. Saiu da casa e correu pela

estrada, seguida pelo pai. Quando encontrou a outra Sen-jo com as

crianças, as duas se abraçaram e viraram uma só. Mais tarde, a

Sen-jo reunida disse que durante esse tempo todo, nas duas vidas,

tinha se sentido como se vivesse num sonho.

O que nos ensina essa triste história de uma vida dividida? Sen-jo

teve que cortar fora uma parte de si mesma para continuar vivendo,

e cada uma das metades sofreu à sua maneira. Mas há esperança:

determinada a voltar, Sen-jo inspira a nossa volta. Como ela, muitos

descobrem que vivem parcialmente num mundo de sonhos, alheios

a partes inteiras da vida, do corpo, do passado. Nem sempre foi

assim. Há uma totalidade original: nascemos em unidade com a

nossa mãe e com o nosso corpo. À medida que crescemos e nos

tomamos um indivíduo na sociedade, vamos perdendo essa

totalidade. Enfrentando a falta de respeito e apoio que é típica de

muitas famílias modernas, as opiniões e temores alheios, a

inevitável fragmentação cultural, as frustrações e perdas que

sofremos ao tentar fazer jus às expectativas da sociedade, nós nos

alheamos de nosso corpo sagrado e de nossos mais profundos

sentimentos. Em geral, esse processo é invisível e inconsciente,

acontece no escuro, como Sen-jo correndo para seguir o barco de

Ochu à meia-noite. Sentimos o alheamento, mas não sabemos bem

o que está errado.

James Joyce captou esse dilema ao falar de um personagem: "O

Senhor Duffy vivia a pouca distância do seu corpo." Joan Tollifson,

uma professora zen, conta como foi difícil aceitar a verdade do

próprio corpo. Ela nasceu sem um antebraço e conta que, na

infância, as outras crianças sempre faziam cara de horror. "Algumas

pessoas me diziam que era incrível eu saber amarrar tão bem os

sapatos e, o que era ainda mais mortal, outras fingiam não notar e

ninguém dizia nada." Quando uma outra criança perguntava, num

elevador por exemplo, o que havia acontecido, os pais logo a

faziam parar: "Não fique perguntando. "

Então Joan descobriu a meditação. Durante muitos anos ela

meditava com a única mão formando metade de um mudra circular,

como uma boa estudante zen. Mas ainda não tinha olhado de

verdade para si mesma. "Lembro-me da primeira vez que olhei para

o meu braço. Eu tinha vinte e cinco anos." Ela levou esse tempo

todo para criar coragem de ver o que já existia. Diz ela: "E quando

se consegue, o horror não está no corpo, mas na cabeça."

Pode ser difícil olhar de perto nossos braços e pernas, nossa

barriga e nosso peito, nosso rosto e nossa pele, nossos genitais e

nosso cabelo, mas o preço de não olhar é ainda maior: perdemos a

ligação com nós mesmos, com a terra e com a vida humana;

perdemos a sabedoria inata e instintiva. Mesmo depois de anos de

prática espiritual podemos ser como Sen-jo antes da volta, com a

felicidade oprimida pelas partes abandonadas de nós mesmos.

Um abade budista conta o que aconteceu depois que passou por

uma cirurgia e por um tratamento de câncer.

"Quando voltei, olhei para minha comunidade de um novo ponto de

vista. Vi alunos que estavam lá havia tanto tempo que praticavam

por inércia. Outros nem praticavam: eram dependentes e

precisavam de um lugar para viver. Como tinha feito os votos

bodhisattva, achava que devia cuidar de todos incondicionalmente.

Como bodhisattva, eu queria que todos ficassem. Mas o meu corpo,

que tinha enfrentado a verdade da vida e da morte, não deixou.

Mandei embora metade dos alunos. No fim, fui obrigado a dar

atenção à sabedoria do meu corpo."

Perder o contato com a vida encarnada não é um privilégio

individual. Essa perda é intrínseca à pressa e ao alheamento da

sociedade de consumo moderna. A poeta Adrienne Rich fala da dor

que se esconde na vida apressada:

O problema, até agora calado, é como viver num corpo prejudicado

num mundo onde a dor é amordaçada sem ser curada, sem ser

pranteada. O problema é juntar, sem histeria, a dor do corpo de

cada um com a dor do corpo do mundo.

Um lama tibetano ocidental conta como entrou em contato com

esse problema.

"Conheci o alheamento patológico em mim mesmo e nos outros.

Longos anos de retiro me puseram em contato com muitas coisas,

mas eu fazia parte da velha cultura budista, onde as coisas são

ignoradas, afastadas. Conheci muitos professores de meditação,

lamas e professores Vipassana que tinham problemas de saúde. É

claro que a doença é natural, faz parte da Primeira Nobre Verdade

do Buda. Só que esses professores tinham passado anos sem

cuidar do corpo. E eu? Eu me orgulhava de ser calmo e distante, de

nunca ficar aborrecido nem com raiva, de estar além do stress. Mas

e o meu corpo? Em que órgãos eu guardava aquilo tudo, em

detrimento da minha saúde? Agora, vinte e cinco anos depois,

estou começando a respeitar o meu corpo, a minha necessidade de

descanso, de exercício, para encontrar a sabedoria física perdida

há tanto tempo."

Alice Miller, cujo trabalho se concentra no resgate do nosso ser

autêntico, escreve apaixonadamente sobre o corpo.

A verdade sobre a infância fica armazenada no corpo e podemos

reprimi-Ia, mas nunca alterá-Ia. O intelecto pode ser enganado, os

sentimentos manipulados, as idéias desordenadas, o corpo tapeado

com medicamentos. Mas algum dia o corpo vai apresentar a conta

porque é incorruptível como uma criança que, ainda plena de

espírito, não aceita acordos nem desculpas, não pára de nos

atormentar enquanto fugimos da verdade.

Para atingir a plenitude, temos que resgatar o corpo - aceitando

como nossas até mesmo sua dor e sua limitação. Foi assim no caso

do praticante budista cujos pais eram sobreviventes do holocausto.

Disse ele: "Nasci em meio ao trauma e descobri que passei a vida

prendendo a respiração." Foi assim no caso da professora de yoga

que se esforçava para ter o corpo perfeito. Disse ela: "Percebi que

tinha medo de envelhecer, de perder minha beleza, de aceitar

minha fraqueza e vulnerabilidade. Eu usava a yoga para tentar

controlar minha vida." Uma rabina já tinha avançado bastante na

sua jornada quando compreendeu a necessidade de integrar o

corpo.

"As mulheres têm muitos medos em relação ao corpo. Acho que os

homens também. Em minha vida espiritual, tive de lidar com feridas

profundas nessa área. Os mais sábios ensinamentos do Judaísmo

consideram sagrados a sexualidade e o corpo: abusar do corpo é

abusar do divino. Agora, depois de tantos anos praticando a cura,

comecei a aprender yoga, movimento e danças judaicas. Percebi

que a energia do corpo é a energia de Deus. Temos que valorizá-lo,

Tudo vem através dele."

A ILUMINAÇÃO NO CORPO

Se não for vivida aqui e agora, neste corpo, a iluminação não é

genuína. É no corpo e na mente que encontramos a causa do

sofrimento e o fim do sofrimento. O despertar só é um desabrochar

para a liberdade nesta vida quando tem o corpo como base.

A iluminação no corpo não é sinônimo de acontecimentos

psicofísicos, de domínio das yogas do fogo interior, de realização de

tantras sexuais. Sim, alguns lamas tibetanos ficam sentados sem

roupa numa altitude de 6.000 metros e geram calor suficiente para

derreter a neve num raio de três metros à sua volta. E há santos

católicos com os estigmas de Cristo e milagrosos poderes de cura.

Mas disse o Buda: "Esses poderes não são o verdadeiro milagre.

Despertar para a verdade é o milagre." Iluminação no corpo é viver

com sabedoria no corpo, do jeito que ele é, hoje mesmo, nesta vida

incrível.

A freira e mestra de meditação budista Pema Chodron chama essa

compreensão de "Sabedoria de Não Fugir".

É bom lembrar que estar aqui, sentar-se para meditar, fazer as

coisas simples de todos os dias - trabalhar, andar na rua, falar com

as pessoas, comer, ir ao banheiro - é tudo o de que precisamos

para ser totalmente despertos, vivos, humanos. É bom lembrar que

este corpo, este corpo que está agora nesta sala, este mesmo

corpo que às vezes dói, e a mente que temos neste momento, são

exatamente o que precisamos para ser totalmente despertos, vivos,

humanos. Nossas emoções de agora, negativas e positivas, são o

que precisamos. É como se procurássemos por ai a maior fortuna

que se pode ter para levar uma vida decente, boa, gratificante,

energética e inspirada e a descobríssemos bem aqui.

Não é como ideal que a iluminação floresce, mas na realidade

milagrosa da forma humana, com seus prazeres e dores. Nenhum

mestre escapa dessa verdade e a iluminação não elimina a

vulnerabilidade do corpo. O Buda tinha doenças e dores nas costas.

Sábios como Ramana Maharshi, Karamapa e Suzuki Roshi

morreram de câncer, a despeito de seu conhecimento sagrado.

Esses exemplos mostram que' temos de encontrar o despertar na

doença e na saúde, no prazer e na dor, neste corpo humano como

ele é.

Como ter contato com este corpo de vida, com suas alegrias e

tristezas? A iluminação corporificada não nega nem maltrata o

corpo, mas também não se entrega aos prazeres com insensatez.

Nela, nós nos tomamos presentes para a vida que nos é dada,

respeitando o que os tibetanos chamam de "preciosa forma

humana". Tsong Khapa, o mestre tibetano, ensinou: "Este corpo

humano é mais precioso do que a mais rara gema. Cuidem do

corpo: ele é seu só desta vez... é uma coisa bela que passa." Essa

atitude respeitosa faz com que a vida do corpo seja abençoada. É o

que Galway Kinnell descreve em "São Francisco e a Porca".

O botão

representa todas as coisas,

mesmo as que não florescem,

porque tudo floresce, de dentro, ao abençoar a si mesmo;

embora às vezes seja necessário

reensinar a uma coisa o seu encanto,

pôr a mão na testa

da flor

e recontar a ela, com palavras e toques,

que ela é encantadora

até que volte a florescer de dentro, a abençoar a si mesma;

como São Francisco

pôs a mão na testa enrugada

da porca, e lhe disse com palavras e toques

bênçãos da terra sobre a porca, e a porca

se lembrou, em todo o seu volumoso comprimento,

do focinho enfiado na terra, passando pela

forragem e pela lavagem, até o caracol espiritual do seu rabo...

do longo, perfeito encanto da porca.

Um padre católico fala da gratidão e da bem-aventurança que

aprendeu através do corpo.

"Vim de uma família pobre, em que todos bebiam muito e tinham

uma vida dura; os homens tratavam o corpo como uma carroça que

a gente usa e ignora. Na Igreja piorou. Eu odiava lidar com o meu

corpo. Vivia de café, depois de uísque. Mas, de tanto observar as

pessoas simples que vinham falar comigo, de tanto ver corpos

torturados e almas torturadas, a minha fé e o meu amor superaram

todas as bobagens sobre corpo e pecado. Não precisa ser tão

difícil. Cristo ensinou que devo amar o meu inimigo. O voto de não-

violência que fiz inclui o meu corpo. Minha prática agora é: 'Não se

atormente, não incremente a dor.' É o que ensino aos outros. Adotei

uma prática de gratidão. Levanto de manhã e é cuidando do corpo

que começo. É comovente de tão simples."

Para atingir a sabedoria é preciso compreender a santidade do

corpo. Uma professora espiritual fala da luta que teve com o câncer,

muito depois de sua primeira experiência de despertar.

"Removeram um grande tumor do abdômen, e com ele todas as

certezas que eu tinha na vida. Parei de trabalhar e de ensinar.

Recorri a tudo que pudesse me ajudar a mudar o que tinha me

levado ao câncer, da acupuntura à terapia profunda. Eu me tomei

humilde diante do corpo. Isso foi há quinze anos e posso dizer que

esse foi o momento mais decisivo e o maior despertar. Eu tinha

usado meu corpo para praticar. Agora tinha que habitá-lo, respeitá-

lo e amá-lo com a compreensão, o cuidado e a força feminina que

eu havia desviado para a vida espiritual. Manter o coração no corpo

passou a ser a minha prática, que se tomou gloriosa. Nem mesmo

os primeiros despertares para a perfeição e para a graça tinham me

revelado a alegria de viver no corpo, nos sentidos, em cada

momento. Amo a minha vida de uma nova maneira. Este é o lugar

da liberdade."

NENHUMA PARTE EXCLUÍDA

Como vimos, um dos mais importantes desafios do caminho para a

iluminação no corpo está na área da sexualidade. Em geral, as

tradições religiosas nos advertem contra os perigos do

envolvimento com os sentidos, e é verdade que podemos nos

identificar demais com o corpo e seus prazeres. Nossa cultura

explorou essa possibilidade ao extremo. Mas nos circulas espirituais

é mais comum o perigo oposto: aversão, medo e inconsciência.

Existe, como sugere o Buda, um caminho do meio a ser encontrado

na vida de cada um. Uma professora de yoga parou no meio de um

alongamento difícil que estava ensinando aos alunos: "Os

esforçados, relaxem. Os sensualistas, fiquem direitos."

Jung fala da necessidade de equilíbrio entre nosso corpo animal e

sua ligação através de Eros às formas mais elevadas de espírito.

O instinto erótico é e sempre será questionável, digam o que

disserem as leis sobre o assunto. Ele pertence, por um lado, à

natureza animal do homem, que vai existir enquanto o homem tiver

um corpo animal. Por outro lado, está ligado às mais altas formas

do espírito. Mas floresce apenas quando espírito e instinto estão em

verdadeira harmonia. Quando falta um dos dois aspectos, ocorre o

dano, uma falta unilateral de equilíbrio que escorrega facilmente

para o patológico. O excesso de natureza animal desfigura o ser

humano civilizado, o excesso de cultura produz um animal doente.

As formas mais rígidas de espiritualidade condenam a sexualidade

e ponto final. Quando há mais sabedoria, é o mau uso da

sexualidade que passa a ser considerado como causa do

sofrimento. Os Dez Mandamentos nos ensinam a evitar o adultério.

Os preceitos budistas nos advertem para não causar sofrimento

com o mau uso da sexualidade. Mas o medo de fazer mal pode se

transformar em medo do corpo e da sexualidade em geral. No

entanto, um mestre sufi me disse que sua tradição ensina que "os

mestres ficam mais sexy quando ficam iluminados". E não é apenas

no sentido sexual: eles se tomam mais cheios de corpo, mais

despertos, mais vivos. Jack Engler, professor budista e psicólogo de

Harvard, falando do treinamento que fez com o renomado monge

trapista Thomas Merton, disse: "Thomas Merton era o homem mais

sexy que eu conheci."

No início dos anos oitenta, querendo compreender e respeitar a

sexualidade como parte consciente do caminho espiritual,

entrevistei mestres zen, lamas, swamis e seus alunos mais

adiantados sobre a sexualidade de cada um. Sobre isso, escrevi um

artigo para o Yoga Journal, de onde foi extraído o seguinte texto:

Como qualquer grupo da nossa cultura, suas práticas variavam.

Havia heterossexuais, bissexuais, homossexuais, exibicionistas,

monogamistas e poligamistas. Havia professores celibatários e

felizes e outros celibatários e infelizes, havia os casados e

monogâmicos e os que tinham muitos casos clandestinos; havia

professores promíscuos em relação à sexualidade; havia os que

faziam de relacionamentos conscientes um aspecto da

espiritualidade; e, o que era a maioria, havia professores que não

eram mais iluminados ou conscientes em relação à sexualidade do

que qualquer outra pessoa.

Sabemos que a sexualidade criteriosa traz intimidade, união e

entrega, mas o celibato criterioso e sagrado também. As duas

opções podem expressar amor e consciência. A iluminação

corporificada traz consciência e respeito ao corpo - e assim não nos

perdemos nos extremos da indulgência ou da auto-negação. No

tantra hindu e budista, a sexualidade é um caminho para o

despertar; na tradição judaica e na tradição sufi, ela é divina. Eros e

a sensualidade são honrados e transformados. No mesmo espírito,

o celibato pode ser honrado e transformado na santidade do

coração. É possível conhecer a força vital do corpo através dos dois

caminhos.

Este precioso corpo humano é um tesouro sagrado para a ação e

para o despertar. É sagrado o coração, sagrados os ouvidos,

sagrados os membros, sagrado o peito, sagrados os pés e as

mãos, sagrado o coração e a pele, sagrados os cabelos e os

genitais, o fígado, os pulmões, o sangue, as células mais

minúsculas e o sopro da vida.

O escritor Eduardo Galeano diz o seguinte:

A igreja diz: o corpo é um pecado.

A ciência diz: o corpo é uma máquina.

A propaganda diz: o corpo é um negócio.

O Corpo diz: sou uma festa sagrada.

Quando o precioso corpo humano é bem tratado, sua bondade

transborda para a vida. Cresce em nós o impulso de cuidar, curar,

corporificar o amor e a liberdade. Os mundos que foram separados

em nós se juntam para formar um todo.

Aos oitenta anos, pouco antes de se aposentar, Robert Aitken Roshi

falou a cem professores budistas sobre seu meio século de prática

zen, que começou numa prisão japonesa durante a Segunda

Guerra Mundial. No final, fizemos um pedido a ele: propor um koan

e dar a resposta. Ele então contou esta história: em 1951, quando

estava praticando em Nova York com o Mestre Nyogen Sensaki, o

mestre ergueu uma elegante tigela pintada com uma espiral que ia

da borda ao centro e perguntou: "Esta espiral vai de fora para

dentro ou de dentro para fora?" Esse era o koan, e contemplamos

em silêncio sua solução. Então chegou o momento da resposta. Um

tanto trêmulo, Aitken Roshi levantou da almofada e estendeu os

braços como se fosse um pássaro grande e frágil, reproduzindo a

forma da tigela com o corpo. Primeiro girou numa direção, como se

espiralasse para dentro. Depois na outra, como se espiralasse para

fora. Com todo o seu corpo, com todo o seu ser, por dentro e por

fora, ele se transformou na tigela. Foi essa a resposta.

A SABEDORIA DA ENCARNAÇÃO

Em maio de 1998, no centro de meditação Spirit Rock, organizamos

um evento beneficente para o tratamento médico de Ram Dass, que

tinha sofrido um sério derrame no ano anterior. Depois de quase um

ano de reabilitação, Ram Dass já conseguia falar, mas aos

soquinhos e procurando as palavras. No fim do dia, levaram a

cadeira de rodas para o palco para ele dizer algumas palavras.

Observando, com humor, que tinham lhe avisado que era cafona

falar em beneficio próprio - e era para isso que ele estava ali - Ram

Dass falou de sua difícil situação e da questão da identidade.

"Durante anos pratiquei, como karma yogue, o caminho do serviço.

Os livros que escrevi falam de aprender a servir, de ajudar os

outros. Agora é o inverso. Preciso que me ajudem a levantar e a ir

para a cama. Os outros me alimentam e lavam meu traseiro. E

posso dizer que é mais difícil ser ajudado do que ajudar!

Mas este é apenas um outro estágio. Parece que morri e renasci

muitas vezes. Nos anos sessenta eu era professor em Harvard, e

quando isso chegou ao fim, saí com Tim Leary espalhando a cultura

psicodélica. Nos anos setenta morri para isso e voltei da Índia como

Baba Ram Dass, o guru. Então, nos anos oitenta, passei a servir -

participei da fundação da Seva Foundation, construí hospitais,

trabalhei com refugiados e prisioneiros. Durante todos esses anos,

toquei violoncelo, joguei golfe, dirigi o meu MG. Desde que tive o

derrame, o carro está na garagem, o violoncelo e os tacos de golfe

no armário. Se eu me visse como o cara que não pode mais tocar

violoncelo, nem jogar golfe, nem dirigir e nem trabalhar na Índia, eu

sentiria uma pena terrível de mim mesmo. Mas eu não sou esse

cara. No derrame eu morri de novo e agora tenho uma nova vida

num corpo deficiente. É onde eu estou. É preciso estar aqui agora.

É preciso aceitar o currículo como ele é."

Essa é a sabedoria da encarnação. Nela, entramos de bom grado

na vida, sem medo e sem nos perder, despertos e livres naquilo que

cada momento oferece, seja o que for. Kabir, o poeta místico

indiano, escreve:

Mergulhe na experiência enquanto está vivo... O que você chama

de "salvação" pertence ao tempo antes da morte.

Aceitar a vida exige a compreensão radical de que a santidade,

Deus ou o Nirvana não são alheios à experiência, mas são sua

essência. O que buscamos é o que somos. O Sutra do Coração

ensina essa verdade na frase: "a forma não é diferente do vazio".

Simeon, o místico cristão, fala de "despertar no corpo de Cristo

como Cristo desperta no nosso".

O Buda encontrou a chave para esse coração livre e aberto depois

de anos de luta contra o corpo. Ele vagou pela Índia por seis anos,

jejuando e se entregando a extenuantes práticas ascéticas, na

batalha para vencer todos os desejos e medos corporais.

Finalmente, exausto e perto da morte, ele se deitou na terra. Surgiu

então uma lembrança de quando era menino: estava sentado sob

uma macieira no jardim do pai. Lembrou-se de que, naquela manhã

de primavera, tinha tido sem aviso uma maravilhosa sensação de

totalidade e quietude, o coração em descanso e à vontade no meio

de todas as coisas. Assombrado, ele percebeu que toda a sua

busca espiritual pela liberação tinha sido mal dirigida, tinha sido

uma luta infrutífera contra o corpo e o mundo.

Com essa visão, ele descobriu o caminho do meio, a unidade

interior que não luta contra o mundo e nem se perde no mundo. Ele

abriu o coração para o sofrimento e para a beleza da vida como ela

é. E descansou em paz. Nesse momento apareceu uma jovem que,

vendo o sábio extenuado, lhe deu a tigela de leite de arroz que

trazia. Agradecido, o Buda bebeu, renovado agora no corpo e no

espírito. Voltou então à sua meditação com uma nova compreensão

de seu caminho.

Uma versão moderna dessa história aconteceu na primeira clínica

do Doutor Jon Kabat-Zinn, no porão do centro médico da

Universidade de Massachusetts. Quando ele começou o Programa

de Redução do Stress, baseado na atenção, ele pediu que os

médicos do centro lhe mandassem os pacientes sem esperança,

que já tivessem esgotado todos os recursos terapêuticos, Como ele

me disse: "Podemos oferecer o mais eficiente dos remédios: a

verdade." Assim, pacientes com câncer, pacientes com dor,

pacientes com doenças degenerativas nos ossos e nas

articulações, pacientes com problemas nas costas que tinham

tentado de tudo em sua luta com o corpo - todos foram mandados

para ele. O Doutor Kabat-Zinn ensinou a eles uma atenção

profunda, a aceitar o que era verdade em seu corpo em vez de

tratar a doença como um inimigo a ser derrotado. Essa atenção e

essa aceitação trouxeram resultados notáveis. Alguns pacientes

ficaram curados do stress, da dor e das doenças. Outros, embora

não melhorassem totalmente, aprenderam novas maneiras de estar

com o corpo, que transformaram sua vida. Agora esse programa se

espalhou por centenas de hospitais no mundo inteiro.

CORAGEM CORPORIFICADA

Os frutos da corporificação, da plenitude, da sabedoria e da

compaixão têm um preço. Quando eu tinha sessenta e três anos,

meu professor Ajahn Chah foi internado num hospital com uma

combinação de diabetes, derrame e problemas cardíacos. Ficou

hospitalizado durante nove meses, com muitas dores e às vezes

impossibilitado de falar. Quando saiu, tinha recuperado parte de sua

capacidade e voltou a ensinar, embora de maneira mais limitada.

Fui visitá-lo num templo perto de Bangkok e vi que estava muito

mais velho e mais fraco depois dessa provação. Eu me prosternei

respeitosamente. Conversando, lembrei que ele costumava nos

exortar a refletir sobre a inevitabilidade da 'velhice, da doença e da

morte. Em voz alta, observei que o inevitável estava visivelmente

lhe acontecendo. Ajahn Chah fixou em mim um olhar penetrante e

disse: "Não diga isso com tanta frivolidade!"

A dedicação espiritual não nos torna imunes às alegrias e tristezas

da vida do corpo. Como nós, os mestres espirituais enfrentam a

fadiga, a doença e a morte. Mas a prática dedicada nos dá

ferramentas para despertar a compaixão e a consciência neste

domínio humano, ensina o coração a abraçá-lo.

Cada parte da vida é um campo fértil para a prática. Rachel Naomi

Remen, médica e curadora, fala da doença como uma passagem,

um convite para aprofundar a ligação da alma com a vida. Ela diz

que o objetivo da doença é nos despertar, nos trazer de volta para o

que é importante. Na prática espiritual, é importante não esperar

que a doença ou a morte nos despertem, mas aproveitar a vida e a

saúde que temos agora para trazer paz para o corpo, para o

coração e para a mente.

E quando não temos coragem para entrar plenamente no corpo, a

vida costuma insistir. Marcel Proust diz:

A doença é o mais ouvido dos médicos. Para a bondade e para a

sabedoria, fazemos apenas promessas; à dor nós obedecemos.

Um rabino, que havia anos dava aulas sem parar, acabou ficando

exausto e muito doente. Quando se recuperou, rezou pela bênção

de uma nova vida e jurou dedicar suas preces à santidade do corpo.

"No começo não foi fácil. Eu havia ignorado o corpo por muito

tempo. Mas percebi que o corpo é uma maneira essencial de estar

em contato com Deus. É o que nos foi dado. Todas as manhãs eu

pedia a graça de experimentar a cada momento as sensações

dadas por Deus. Seguia uma rotina de exercícios físicos e

movimentos, mas não era isso que fazia a diferença e sim a

intenção renovada a cada manhã de estar vivo, presente, com a

energia do universo no corpo. Era essa a minha prece e, nos meses

seguintes, o meu corpo se modificou. Através dessa intenção, a

vida mudou e se tornou mais bela e abençoada."

A plena valorização de cada detalhe da encarnação traz a bem-

aventurança. Um mestre zen explica:

"Meu ensinamento zen se aprofundou no sentido de estimular as

pessoas a mergulhar no mundo, na vida. Eu quero que elas

ingressem na vida, que corporifiquem a prática, que a tratem com o

coração. Cuidar da vida, deste corpo, é amá-lo e abençoá-lo.

Temos que encontrar uma forma de abençoar nossas mágoas e a

escuridão em que estamos. É preciso paciência para abençoar a

nossa vulnerabilidade às mágoas porque não nos ensinaram a ter

respeito por ela. Mas, abençoando o corpo, começamos a perceber

o que é melhor para nós. Temos o tipo de dor que é boa para nós,

as alegrias que são nossas, as experiências que conquistamos

honestamente."

Quando ouvimos o corpo, a sabedoria do corpo cresce.

Conseguimos sentir a necessidade que o corpo tem de se

movimentar e respeitar seus ciclos de repouso; conseguimos

meditar e dançar; respeitamos sua necessidade de solidão;

aceitamos seus sentidos; conhecemos seus prazeres e limitações.

Em vez de temer o corpo, suas perdas e estranha vulnerabilidade,

passamos a respeitá-lo. Quando a mandala do despertar inclui o

corpo em vez de excluí-lo, nossos dons florescem e o coração

continua livre.

O Rabino Nachman de Bratzlav disse a seus discípulos:

Para nunca ver a face do inferno, dancem com a toalha da cozinha

todas as noites ao chegar do trabalho. Se tiverem medo de acordar

a família, é só tirar os sapatos.

A coragem corporificada não espera que o espectro da doença e da

morte exija a nossa atenção. Ao contrário: ingressa de boa vontade

na existência do corpo e sacrifica falsos ideais pela realidade do

presente. Ela é tudo o que temos. Há uma história zen sobre um

discípulo ardoroso que perguntou ao mestre qual era a verdade da

iluminação. Apontando duas touceiras de bambu ali perto, o mestre

perguntou: "Está vendo os bambus da esquerda, como são altos? E

os da direita, como são baixos? Essa é a natureza deles." O

discípulo se iluminou. Aceitar a verdade é o portão para o despertar.

Neste momento, qual é a nossa natureza? Podemos aceitá-Ia

também?

CORPORIFICAÇÃO E ROUPA SUJA

Hakuin Zenji diz em sua antiga Canção de Zazen: "Todos os seres

são por natureza Buda, assim como o gelo é por natureza água. É

triste que as pessoas ignorem o que está perto e busquem a

verdade lá longe, como alguém que grita de sede no meio da

água... Na verdade, o que está faltando agora? O Nirvana está bem

aqui, diante de nossos olhos; este mesmo lugar é a pura Terra do

Lótus; este mesmo corpo é o Buda."

Para Hakuin, o portão para a vida no Nirvana é a consciência

corporificada. A santidade vem quando entramos totalmente no

momento, com atenção sincera. Todas as formas externas de

religião - templos, professores, práticas - nos chamam para o eterno

presente, nos convidam a fazer o coração a tocar cada momento.

Há uma fábula chinesa que fala de um jovem que observava um

sábio no poço do vilarejo. O velho descia o balde de madeira numa

corda e depois o puxava devagar, com as mãos. O jovem

desapareceu e voltou com uma carretilha. Chamou o velho e

mostrou como a coisa funcionava. "É só pôr a corda em volta da

roldana e içar a água girando a manivela." O velho resistiu.

"Se eu usar uma engenhoca dessas, minha mente vai se julgar

esperta. Com a mente astuta, não vou mais pôr o coração no que

faço. Logo, logo meus pulsos vão fazer tudo sozinhos. Se o meu

coração e o meu corpo não estiverem no meu trabalho, ele vai ficar

sem alegria. Se o meu trabalho ficar sem alegria, como você acha

que vai ser o gosto da água?"

A água reflete o nosso espírito. O Zen diz que uma única gota de

orvalho reflete a lua e o céu inteiro. Cada coisinha, cada momento

contribui para o todo e é também seu reflexo. Pôr uma criança na

cama, pagar uma conta, ouvir um colega de trabalho, pagar o

frentista no posto de gasolina, escrever uma carta, digitar um

memorando, almoçar com um amigo, planejar um trabalho, regar as

plantas - tudo se transforma na corporificarão do coração desperto.

E mesmo assim esquecemos dessa verdade.

Uma garotinha de seis anos perguntou à mãe o que ela fazia todos

os dias na universidade. "Sou do departamento de arte. Ensino as

pessoas a desenhar e a pintar", respondeu a mãe. Atônita, a

menina perguntou: "Quer dizer que elas esquecem?"

Quando esquecemos, o despertar nos chama para abençoar as

atividades simples de cada momento. Um lama ocidental conta que,

depois de um retiro de três anos no Tibete, foi o trabalho físico que

o ajudou a manter os pés no chão:

"Foi a coisa mais difícil manter viva a vida espiritual na enxurrada de

atividades cotidianas, na complexidade desnecessária da vida

ocidental. Nos primeiros cinco anos foi duro preservar a

Simplicidade no coração no meio de pessoas que só têm

sensibilidade para correr atrás das coisas. No começo eu me sentia

instável, quase louco. Com medo de esquecer o que tinha

aprendido, usava o trabalho físico para estabilizar minha prática e

minha mente. Vivia fazendo limpeza. Acabei me especializando em

limpar, esfregar, lavar a roupa. Como ninguém queria saber desse

trabalho, todos adoravam ter alguém tão disposto a enfrentá-Io.

Em silêncio, eu cantava um mantra de compaixão a cada prato que

lavava, a cada chão que esfregava. Fazia também uma prece para

que todos os pisos e o coração de todos os seres à minha volta

ficassem limpos, purificados e inocentes. O tempo parava como se

eu fosse parte da terra que se purifica na primavera. Era uma linda

maneira de trabalhar. As tarefas físicas mais simples nos ensinam a

ficar neste mundo de maneira sagrada."

Os hindus e os sufis dizem que tudo o que fazemos pode ser feito

em nome do Divino. Com atenção corporificada, dobramos a roupa

limpa como se dobrássemos o manto de Jesus ou de Buda,

servimos a refeição não para nós mesmos ou para a família, mas

para o Sagrado. Quando o corpo faz parte da mandala da prática,

tudo é feito com o coração e não apenas com as mãos. Uma irmã

dominicana dá a isso o nome de "Teologia da Encarnação".

"Aos sessenta anos, voltei às coisas simples que aprendi quando

era jovem. Enquanto corrijo as provas, vou rezando por cada aluno.

Quando estou preocupada com um paciente, rezo o terço.

Adoração, agradecimento, súplica. Procuro gostar de tudo, mesmo

das coisas difíceis, até mesmo de servir diante da injustiça. É isso

que me é dado agora. Essa é a verdade. Minha vida é uma vida de

interligação, as pequenas epifanias de cada momento bem vividas.

Não confio nas grandes, quando meu ego fica todo inchado. É aqui

e agora, ou não é."

Há muitas práticas simples que nos fazem voltar para o corpo, para

o coração, para este momento: uma prece antes de atravessar cada

porta, uma reflexão antes de comer, uma pausa para respirar antes

de atender o telefone. É possível criar uma prece ou verso até para

ver televisão, diz o Mestre Zen Thich Nhat Hanh: "Vendo o noticiário

da noite, sei que é a minha história. Inspirando calmamente,

envolvo todos nós em compaixão." Quando nos lembramos da

respiração, devolvemos todas as coisas ao seu lugar no corpo.

Um estudante zen disse ao mestre: "Faltam só alguns detalhes." E

o mestre respondeu: "Mas só existem detalhes." A presença

corporificada não nos deixa esquecer de estar com uma coisa por

vez. É o que Gandhi chamava de "Monotonia Abençoada",

comparando a rotina de todos os dias ao sol e à lua em suas órbitas

regulares, aos ciclos silenciosos das estrelas e às estações. O Zen

ensina que é como assar pão: fazemos pão muitas vezes e

sentimos o sabor de cada filão. Claude Monet viveu em Giverny

durante trinta e cinco anos, pintando os mesmos nenúfares anos

após ano, à luz de cada novo dia. Olhar com o frescor dos olhos

que enxergam a luz de hoje como se fosse a primeira vez - essa é a

mente de iniciante.

Essa intimidade simples do serviço físico, real, estava no centro do

trabalho de Madre Teresa.

Eu não considero as massas responsabilidade minha; eu considero

o indivíduo. Só consigo amar uma pessoa por vez - só, uma, uma,

uma. É assim que começa. Eu comecei - escolhi uma pessoa. Se

eu não tivesse escolhido essa pessoa, talvez não tivesse escolhido

quarenta e cinco mil. O trabalho é só uma gota no oceano. Mas se

eu não pusesse a gota dentro dele, o oceano teria uma gota a

menos. Isso vale para você, é assim na sua família, é assim na sua

igreja, é assim na sua comunidade. Comece - uma, uma, uma.

Místicos, adeptos e professores dizem que é no trivial que

despertamos para o sagrado. Como diz Thomas Merton: "A vida é

simples: vivemos num mundo absolutamente transparente e o brilho

do Divino o atravessa o tempo inteiro. Essa não é apenas uma

história bonita ou uma fábula. É a verdade."

Há uma história do Oriente Médio sobre um homem que foi

confundido com um criminoso e posto na prisão. Um amigo foi

visitá-lo e lhe deu um tapete de orações. Zangado, o prisioneiro

voltou para a sua cela. Esperava ganhar uma serra ou uma faca e

tinham lhe dado aquele tapete. Mas, como era tudo o que tinha,

achou que devia usá-lo, Assim, começou a se prosternar sobre o

tapete para rezar. A cada dia que passava ele ficava mais

acostumado com o padrão do tecido, até que começou a ver ali

uma imagem interessante: era o diagrama da fechadura. Assim,

conseguiu abrir a cela e fugir.

Não é procurando que encontramos a liberdade do coração - ela

está bem aqui, tecida em cores sob nossos pés.

13

EMOÇÕES DESPERTAS E

PERFEIÇÃO COMUM

Monges, é preciso ter consciência dos sentimentos agradáveis, dos

sentimentos neutros e dos sentimentos desagradáveis; é preciso

incluir nos sentimentos a atenção dos sentimentos.

SUTRA SATIPATIHANA

Um aluno perguntou a Suzuki Roshi: "Você nos ensina a meditar só

quando meditamos, a comer só quando comemos. Será que um

mestre zen consegue ficar zangado desse mesmo jeito?" Suzuki

Roshi disse: "Quer dizer ficar zangado como uma tempestade e

pronto, passou? Ah! Quisera eu!"

SHUNRYU SUZUKI ROSHI

Em geral sou muito corajoso, só que hoje eu estou com dor de

cabeça.

TWEEDLEDUM

Como é a vida emocional depois que o despertar começa?

Segundo algumas tradições, o coração desperto é totalmente

inabalável. No Anguttara Nikaya, o Buda diz: "Assim como uma

rocha sólida não se move com o vento, nem impressões sensoriais

nem contatos de qualquer tipo, agradáveis ou desagradáveis,

desejados ou não desejados, conseguem abalar o coração de quem

realmente despertou." Isso me foi ensinado de várias maneiras.

Certa vez, a mestra de meditação Dipama Barua me viu chorando

na meditação e disse que aquela aflição era desnecessária para um

yogue. "Professores de meditação não choram", disse ela. Mas o

meu primeiro mestre de meditação, Ajahn Chah, tinha dito o

contrário: "As lágrimas fazem parte da meditação. Se você nunca

chorou profundamente, ainda não começou a meditar."

Em algumas situações, o Buda critica a aflição, dizendo que é

apego desnecessário. Mas, segundo alguns textos budistas, ele

provocava tristeza nos ouvintes "para despertar as lágrimas e a

brandura de seu coração", para que "totalmente abertos e atentos,

possam conhecer as profundezas dos ensinamentos".

Cada linhagem vê as emoções de maneira diferente. Segundo

algumas tradições, os padrões inconscientes de avidez, ódio, ilusão

e medo desaparecem completamente. Segundo outras, eles

permanecem, mas são transformados em experiências de

sabedoria e compaixão. Mas todas as tradições oferecem a

possibilidade de uma profunda liberdade de espírito. Esse espírito

inextinguível, de amor inabalável, é descoberto em meio ao poder

das emoções e tempestades da vida.

VULNERABILIDADE E CORAÇÃO TERNO

Há vários anos, alguns amigos marcaram uma apresentação do

Gyuto Tantric Choir, um famoso coral de monges tibetanos, na

prisão de San Quentin. Em seguida, o San Quentin Gospel Choir, o

coral da prisão, faria a sua apresentação. Mas, à medida que a data

foi se aproximando, os organizadores foram se dando conta da

enorme diferença cultural que teriam que enfrentar.

Os membros do coral da prisão eram todos afro-americanos, na

maioria homens grandes que levantavam pesos. Durante os anos

na prisão, tinham sido tocados pelo espírito de Jesus e nascido de

novo. Assim, suas canções falavam de sofrimento profundo e da luz

do Evangelho que tinha sido despertada neles. Os organizadores

começaram a achar que aqueles cristãos recém-despertos veriam

os monges tibetanos como meros estrangeiros pagãos. Quando os

"monges pagãos" chegaram, o contraste ficou ainda mais aparente:

era um grupo de asiáticos baixinhos usando saias marrons, que

pareciam ainda menores perto dos afro-americanos. A questão era

como superar essa diferença.

Um dos patrocinadores do evento acabou solucionando o problema

com um discurso inspirado. "Quase todos esses tibetanos que nos

visitam hoje passaram anos nas mais duras prisões. Como tiveram

a coragem de expressar suas crenças, foram presos e torturados

pelo exército comunista chinês. Mas alguns conseguiram fugir e

outros foram libertados. Então, para encontrar a liberdade, eles

atravessaram os Himalaias, as mais altas montanhas da terra.

Alguns amarravam trapos nos pés porque não tinham sapatos. Mas

continuam no exílio, forçados a viver longe de casa e da família,

sem saber se alguma vez poderão voltar. São as canções e as

preces que os faz prosseguir em meio a essa luta. É o que eles vão

cantar hoje para vocês."

No mesmo instante, os presos e os monges tibetanos se olharam

com olhos que falavam das profundezas vulneráveis da dor

humana, e encontraram compreensão. Foi de coração que um

grupo cantou para o outro e, quando a música acabou, eles se

abraçaram como irmãos de longa data.

As canções que esses homens cantaram expressavam as emoções

de seu coração. Sua voz transmitiu a luta e a capacidade de resistir,

a esperança e a aspiração pela liberdade. São os sentimentos que

nos unem e que nos põem em contato com a vida. Ser capaz de

sentir é um dos extraordinários dons da humanidade. Não suprimir

os sentimentos e nem ser enredados por eles, mas compreendê-Ios

- essa é a arte.

TRABALHAR COM AS EMOÇÕES DEPOIS DO DESPERTAR

O Buda ensinou que é preciso conhecer e aceitar toda a gama de

sentimentos - sentimentos agradáveis, neutros e desagradáveis.

Disse mais: "Tomando consciência de toda a gama de emoções" e

"vivendo os sentimentos nos sentimentos" encontramos paz no

meio deles e nos tomamos livres. Mas o processo não pára depois

de uma experiência de realização. Uma professora budista fala de

quando estudava com seu mestre zen.

"Eu estava trabalhando com koans. Só que às vezes, quando tinha

uma entrevista com o mestre, não conseguia falar do koan. Tinha

que falar das minhas emoções, de tão centrais que eram na minha

prática. Às vezes eram emoções alegres, mas em geral eram

sentimentos difíceis e conflitos com os meus pais ou no meu

relacionamento. Ele ouvia e se lamentava comigo. Dizia: 'Sei corno

é difícil. Na minha família também é assim.' Antes, eu pensava que

ele não podia dizer esse tipo de coisa. Sua abertura para sentir a

minha vida abriu o meu coração. Ele era muito humano na

disposição para estar exatamente ali."

Em 1974, conheci Robert Hall, psiquiatra e professor budista. Um

dos favoritos de Fritz Perls, participou nos anos sessenta da

fundação do Instituto de Gestalt de San Francisco. Depois criou a

Escola Lomi, um dos primeiros treinamentos a combinar trabalho

espiritual com trabalho do corpo e das emoções. Psicólogo recém-

formado, eu lhe disse que estava aprendendo a diagnosticar os

problemas dos pacientes e a decifrar sua história clínica, mas que

ainda não sabia como ajudá-los a mudar. "Eu não faço ninguém

mudar", disse ele. "Não?" perguntei incrédulo. "Não. Eu ajudo cada

um a ser o que é verdade. É dai que vem a cura."

Quem não consegue estar presente nos próprios sentimentos culpa

os outros - individualmente e coletivamente - pelos seus problemas.

Como diz James Baldwin: "Imagino que as pessoas se agarram tão

teimosamente ao ódio porque têm medo de precisar lidar com a

própria dor se o ódio acabar." Quando somos permeáveis ao que é

verdadeiro em nós, a prática avança.

Nos retiros, para chamar a atenção para a riqueza emocional, às

vezes eu lia uma lista de quinhentos sentimentos. Por exemplo:

afetuoso, ambicioso, ambivalente, divertido, antagonista, inquieto,

apático, compreensivo, polêmico, feliz, magoado, calmo, animado,

claustrofóbico, compassivo, concentrado, preocupado, curioso,

deliciado, deprimido, desanimado, compulsivo, efervescente,

temeroso, assustado, odioso, honrado, humilde, histérico, contente,

glutônico, agradecido, sério, ávido, ciumento, jovial, feliz, zangado,

satisfeito, melindrado, triste, tolo, sonolento, sóbrio, arejado,

solidário - e assim por diante.

O coração desperto é capaz de tocar com ternura todas as partes

desta incrível vida-sentimento. Quando começamos a aceitar a

extensão e o ritmo dos sentimentos, nós nos curvamos às "dez mil

alegrias e dez mil tristezas" do Tao. Aceitando as circunstâncias

internas e externas à medida que surgiam, os homens e mulheres

do Tao não "lutavam para viver. Eles aceitavam a vida como ela

era, alegremente... não tentavam, por conta própria, ajudar o Tao".

A MENTE E O CORAÇÃO

"Jóia no Lótus" é a tradução do mantra de compaixão universal "Om

Mani Padme Hum." Embora tenha muitos significados, seu

simbolismo sugere que a compaixão surge quando a jóia da mente

descansa no lótus do coração. A mente desperta tem uma clareza

de diamante. Quando essa percepção clara descansa na tema

compaixão do coração, as duas dimensões -da liberação são

realizadas.

Na psicologia budista, há uma só palavra para mente e coração:

"citta". Essa mente-coração tem muitas dimensões. Ela abrange os

pensamentos, os sentimentos, as emoções, as reações, a intuição,

o temperamento e a própria consciência. Na nossa cultura, quando

falamos da mente nos referimos apenas ao processo racional do

pensamento. Observando esse aspecto da mente, vemos uma

interminável corrente de pensamentos, idéias e histórias. Apesar de

seu valor prático, essa mente perspicaz pode nos separar do

mundo. As idéias criam com facilidade o "nós" e o "eles", o bom e o

mau, o passado e o futuro. Os pensamentos também gostam de

criar problemas imaginários. Como diz Mark Twain: "Minha vida é

cheia de infortúnios terríveis... a maioria dos quais nunca

aconteceu." Ou, nas palavras de um de meus professores, Sri

Nisargadatta: "A mente cria o abismo; o coração o transpõe."

Na psicologia budista, os sentimentos são um aspecto natural da

mente-coração, assim como os pensamentos e os impulsos. No

começo, percebemos que as experiências trazem sentimentos

agradáveis, neutros ou desagradáveis. Observando com atenção,

sem nos ater ao agradável e sem condenar o desagradável,

descobrimos que dos sentimentos básicos se origina uma gama de

emoções. Algumas pessoas acreditam que as emoções são

perigosas. Mas raramente elas são o problema: são as histórias que

criamos sobre as emoções e a pouca consciência que temos delas

que geram o sofrimento. Sem consciência, os sentimentos

dolorosos podem se corromper e se transformar em vício ou em

ódio ou degenerar para o torpor, Assim, acabamos perdendo o

contato não apenas com o que é sentido, mas com a sabedoria

essencial do coração.

Como observou Simone Weil, mística cristã do século XX: "O perigo

não é a alma ficar em dúvida, sem saber se tem pão. O perigo é,

por causa de uma mentira, ela se convencer de que não tem fome."

A primeira mulher com quem me envolvi depois de tirar o hábito de

monge foi uma amiga de faculdade que ensinava em Harvard havia

pouco tempo. No fundo, eu ainda me sentia como um monge sem

preferências, pegando o que punham na tigela de esmolar. Quando

ela me perguntava o que eu queria comer no jantar ou que filme

queria ver, eu respondia: "O que você quiser. Para mim tanto faz."

Quando ela me perguntava se eu queria viajar ou ficar em casa, eu

dizia para ela escolher. Isso a deixava louca. Não era só um sábio

desapego espiritual: ela observou que eu estava com medo do

compromisso e sem contato com o sentimento - e disse que antes

de ir para o mosteiro eu já era assim. Era verdade. Eu não sabia o

que sentia. Ela me deu uma caderneta, sugerindo que todos os dias

escrevesse dez coisas de que eu gostava ou não gostava, até

começar a perceber os meus próprios sentimentos. Recuperar os

meus sentimentos foi um processo longo, para toda a vida.

SENTIMENTOS E TEMPERAMENTO

Despertar para as emoções significa senti-Ias - apenas isso. Não é

preciso mudar os sentimentos - eles mudam sozinhos. Não é

preciso mudar de temperamento. Intuitivos ou filosóficos,

sangüíneos ou melancólicos, vamos provavelmente continuar do

mesmo jeito. Vamos ampliar nossos limites, mas o temperamento e

a personalidade quase sempre continuam iguais. Um professor

budista disse que, no começo, queria despertar para fazer uma

"transformação pessoal", mas que depois descobriu que a

transformação era "impessoal". A transformação é o desabrochar

do coração, e não uma mudança de personalidade. Esse professor

disse ainda:

"Sob vários aspectos, a transformação espiritual das décadas

passadas é diferente do que eu havia imaginado. Sou ainda a

mesma pessoa esquisita, com o mesmo estilo e maneira de ser. Por

fora, não sou aquela pessoa incrivelmente transformada e iluminada

que eu queria ser. Mas por dentro a transformação é grande.

Depois de anos de trabalho, lido de maneira mais branda com meus

sentimentos, com meus esquemas familiares e com meu

temperamento. No esforço para conhecer e aceitar minha vida, ela

se transformou e meu amor ficou maior. Minha vida era como uma

garagem entulhada, onde eu ficava trombando com os móveis e me

julgando. E agora parece que mudei para um hangar de avião que

está sempre com as portas abertas. Tenho ainda as mesmas

coisas, só que elas não me limitam como antes. Sou o mesmo, mas

agora estou livre para me mexer, até mesmo para voar."

Como já vimos, é um erro pensar que podemos fugir do karma, da

nossa história. Foi o que percebi com clareza há vinte anos num

retiro na Suíça, onde ensinei pela primeira vez. Veio gente de toda

a Europa. Quando entrevistei os alunos, procurei me abrir sem

preconceitos, sem levar em conta a cultura ou o país de cada um.

Mas, quando o retiro acabou, descobri que, nas entrevistas, quase

todos os alemães falavam de ódio e de auto-julgamento, enquanto

os franceses se atormentavam com questões existenciais de dúvida

e motivação. Por sua vez, as entrevistas dos italianos eram cheias

de emoção; gesticulando apaixonadamente, eles diziam que o

processo era penoso, belo, difícil, maravilhoso - todos eles. Cada

pessoa era ao mesmo tempo única e condicionada por um todo

cultural maior.

Despertar emocionalmente não é transformar-se numa pessoa

diferente. Somos naturalmente introvertidos ou extrovertidos,

alegres ou impacientes. Dzongsar Khyentsie Rinpoche diz: "Às

vezes, o mestre é um grande professor, mas não é

necessariamente uma grande pessoa. Ele pode ser irascível, de

convivência difícil ou exigente demais." Quando perguntaram a

Ram Dass se os anos de disciplina espiritual tinham transformado

sua personalidade, ele riu. Disse que, pelo contrário, tinha se

tomado um connoisseur das próprias neuroses.

Como o sexo, a cor do cabelo e a altura, a personalidade e o

temperamento nos são dados para toda a vida. Às vezes são

danificados na infância e restaurados pelo trabalho interior, mas

fazem parte da nossa natureza. Na psicologia budista, os tipos de

personalidade continuam iguais depois do despertar, mas são

enobrecidos pela sabedoria e generosidade do coração. Há

temperamentos que tendem ao desejo, à aversão ou à ilusão. Mas,

com o despertar, todos eles ficam mais refinados, passando a

expressar amor pela beleza, pela clareza e pela amplidão. E o

humor não é eliminado. Quando perguntaram ao Mestre Rinzai Zen

Joshu Sasaki Roshi se tinha vindo para o Ocidente para ensinar, ele

respondeu: "Eu não vim para os Estados Unidos para ensinar. Vim

para me divertir. Quero que os americanos aprendam a rir de

verdade."

Aprendemos a temer as emoções, e são muitas as idéias

equivocadas que nos prendem a esse medo. Os traumas, os

julgamentos, o medo e a vergonha que enfrentamos na infância

podem nos limitar terrivelmente. Às vezes, imaginamos que a

quietude espiritual é a melhor resposta - não sentir demais, não

ficar com raiva para não virar o barco da iluminação. A prática

espiritual mistura-se a idéias de passividade e auto-anulação. Uma

cessação da vivacidade impetuosa.

Até mesmo praticantes sinceros podem confundir um falso decoro

exterior com a tranqüilidade da liberdade interior. Há os que

acreditam secretamente que os que se permitem viver os próprios

sentimentos e desejos são vítimas da auto-indulgência, da

agressividade e da indolência. Com isso, confundem sua verdadeira

natureza com os sentimentos de um eu deficiente e pequeno. As

emoções são forças poderosas, mas não são o medo e a repressão

que vão nos libertar de seu controle - consciência é a resposta.

Tememos o poder destruidor das emoções quando não as

conhecemos de verdade. É possível ter consciência delas sem

precisar expressá-Ias em ações. Não se pode confundir as duas

coisas. Mas, para trazer o eu total para a jornada, é preciso saber o

quanto nos identificamos com nossas emoções. Temos que ver a

identidade do "corpo do medo", ver como a mágoa e a frustração da

infância, como as forças da raiva, da avidez, do orgulho e da

carência sexual foram condicionadas em nós. Experimentando

esses sentimentos à medida que entram e saem da consciência,

podemos fazer a cada um deles a pergunta: "É isso o que eu sou?"

Se acatamos os sentimentos num coração corajoso e amplo, os

sentimentos solitários, fracos, malvados e confusos vão surgir de

uma maneira nova, transformados pela aceitação.

BUDA CHOROSO, BUDA IRADO

Blindamos e defendemos o coração não apenas contra o mundo,

mas contra nós mesmos. Alguns temem a tristeza, outros temem a

alegria; alguns temem a fraqueza, outros temem a força. Há um

cartum que mostra dois generais andando pelos salões do

Pentágono. Um está cochichando no ouvido do outro: "Ontem à

noite tive um pesadelo. Sonhei que os humildes tinham herdado a

terra."

Ao contrário do Pentágono, o coração desperto não tem defesas.

Ele aceita a tristeza e a beleza da vida. O lama Chogyam Trungpa

disse: "É este coração temo e aberto que é capaz de transformar o

mundo."

A sociedade que perde a capacidade de sentir dor - de lamentar os

mortos nas batalhas, a vida desperdiçada da juventude nos guetos,

a destruição de florestas virgens e de valores nobres, o racismo que

empilha homens nas prisões - fecha o coração para a esperança.

Quem não consegue se lamentar não consegue entender as lições

do passado e usá-Ias para abrir o coração para um novo amor.

No Japão, o bodhisattva Jizo é uma das manifestações desse

coração aberto. Como São Cristóvão, Jizo protege os viajantes e as

crianças. É o santo da aflição e da renovação. Inspirada na imagem

dele, a professora zen Yvonne Rand adaptou uma cerimônia para

os pais de "bebês da água" - crianças natimortas ou abortadas -

mesmo quando a perda ocorreu num passado distante. Nessa

cerimônia, os pais rezam e fazem pequenos mantos para as

crianças que perderam e depois os oferecem para a imagem infantil

de Jizo no jardim do templo. Muitas lágrimas são derramadas nessa

ocasião, pois em geral os pais nem sabiam o que estava preso em

seu coração.

O Memorial dos Veteranos do Vietnã também é um altar público da

dor e da perda. É um dos poucos lugares da América onde homens

crescidos choram em público. Milhares de oferendas são feitas ali

todos os dias. Esses bilhetes, preces e poemas são coletados pela

Smithsonian Institution e já foram publicados em vários livros. Num

deles aparecem as seguintes notas, que são Um testemunho da

ligação entre a constatação da dor e o início da cura:

Seu nome está num muro negro na Capital. Passa muita gente o

dia inteiro. Dá para perceber quem é veterano... Ficamos ali,

olhando e chorando, sem ligar para quem nos vê chorar.

Que raiva eu tive quando o encontrei aqui, mesmo sabendo que en-

contraria. Quis tanto salvá-Ia. Eu daria minha vida se soubesse que

isso o traria de volta.

Carrego há tanto tempo a angústia da sua morte, mas agora posso

parar de procurar por você. Acho que posso começar a viver (outra

vez)...

Os templos budistas asiáticos são cheios de imagens de Budas

tranqüilos, mas há também Budas chorando e bodhisattvas irados,

imagens com espadas flamejantes que expressam o poder das

emoções depois do despertar. Até mesmo mestres como Thich

Nhat Hanh e o Dalai Lama admitem ter acessos ocasionais de

raiva. Em 1991, quando o bombardeio do Iraque o fez lembrar dos

horrores do Vietnã, Thich Naht Hanh ficou com tanta raiva que

cancelou suas aulas nos Estados Unidos. Ele escreveu que só

alguns dias depois conseguiu respirar, acalmar o coração e

transformar a raiva em tristeza e em compaixão ardente. Depois

disso, foi para os Estados Unidos e falou apaixonadamente sobre a

raiz do problema.

O Dalai Lama escreveu: "Sinto raiva em situações de grande

injustiça, mas depois penso que de nada adianta e, aos poucos,

essa raiva se transforma em compaixão." Seus ensinamentos

reconhecem que é preciso muita força para agir neste mundo, mas

os Budas irados não brandem a espada do ódio mas a de uma forte

compaixão.

No plano individual e no coletivo, há momentos para usar bem essa

espada. Eu vi um mestre zen core ano usar sua força de compaixão

com um aluno avançado que tinha se apaixonado por uma aluna

novata, que o abandonou por outro homem menos de um ano

depois. Durante vários meses, o mestre zen mostrou simpatia pela

aflição do aluno e cuidou de sua dor. Então, o mestre fez uma

viagem de nove meses para a Europa e Coréia. Na volta, conversou

com cada um dos membros da comunidade.

Quando o aluno avançado lhe disse que ainda sofria, o mestre zen

tirou da mala um rosário primorosamente entalhado e lhe deu de

presente. Depositou-o com cuidado nas mãos em concha do aluno,

que o segurou entre as suas. Então, de repente, o mestre ergueu a

mão e estapeou o aluno no rosto, gritando: "Livre-se dela!"

Com isso, o mestre fez uma reverência e saiu. Todos nós ficamos

chocados. Mas o aluno avançado mudou drasticamente depois

desse golpe: ele se livrou da dor e continuou sua vida.

Com força no coração, conseguimos reagir à gama de emoções

humanas sem ter medo dos sentimentos e sem nos identificar com

eles. Quando aceitamos os sentimentos como forças transitórias e

impessoais, ficamos livres para respeitá-los, sem que eles nos

amedrontem nem paralisem. Uma vez, Wilhelm Reich disse para

uma paciente que se esforçava para não sentir: "Você tem uma

máscara." A mulher respondeu: "Mas Doutor Reich, o senhor

também tem uma máscara." E ele disse: "É verdade, mas a

máscara não me tem."

Morrie Schwartz, que ensinava psicologia social em Brandeis, foi o

tema de um livro chamado Tuesday With Morrie, que contém seus

ensinamentos ao amigo Mitch Albom, pouco antes de morrer. Já

agonizante, ele teve uma conversa com seu aluno:

"Agora", continuou ele, com os olhos fechados, "estou me

desligando da experiência."

Desligando?

"É... Sabe o que dizem os budistas? 'Não se agarre às coisas

porque tudo é impermanente'."

Mas, espere aí, disse eu. Você não fala sempre que é preciso

experimentar a vida? Todas as emoções ruins, todas as boas? E

agora está se desligando?

"Mas isso não significa impedir que a experiência penetre em mim.

Pelo contrário, significa deixar que ela penetre em mim totalmente.

É assim que consigo deixá-Ia."

Fico perdido.

"Considere qualquer emoção - amor por uma mulher, dor por um

ente querido ou, o que estou enfrentando agora, dor e medo por

causa de uma doença mortal. Quem segura as emoções - quem

não as vive totalmente - nunca vai se desligar porque fica ocupado

com o medo. Medo da dor, medo da aflição. Medo da

vulnerabilidade que o amor acarreta.

"Mas quem mergulha nas emoções, indo até o fundo, afundando

até a cabeça, as experimenta totalmente. Sabe o que é a dor. Sabe

o que é o amor. Sabe o que é a aflição. E só então pode dizer:

'Muito bem, vivi essa emoção. Reconheço essa emoção. Agora

estou livre para me desligar dela por um momento'...

Eu sei que você acha que isso é só na hora da morte, mas é como

sempre digo. Quem aprende a morrer, aprende a viver."

PERFEIÇÃO COMUM

Na espiritualidade desenvolvida, é preciso encontrar perfeição na

não-perfeição. Seng-Tsan, fundador do Zen, ensina que a

iluminação só se manifesta quando "não temos ansiedade em

relação à não-perfeição". Com o coração, enfrentamos o mundo

como ele é, sem medo de sua beleza e de seus defeitos. Paramos

de nos esforçar para ser outra pessoa, para atingir uma felicidade

imaginada. Comi diz o sábio tibetano Gendun Rinpoche:

É a nossa busca pela felicidade que nos impede de enxergá-Ia. É

como o fim do arco-íris, que você procura mas nunca encontra, ou

como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Embora a paz e

a felicidade não existam como coisa ou lugar real, elas estão

sempre ao seu alcance e o acompanham a cada instante.

Querendo agarrar o inagarrável, você se exaure em vão. Quando

você se abrir e relaxar esse aperto, vai ver um espaço infinito -

aberto, convidativo e confortável.

Faça uso desse espaço, dessa liberdade e desse bem-estar natural.

Não continue procurando. Não se emaranhe na selva à procura do

grande elefante iluminado, pois ele já está descansando

calmamente na sua casa, na frente da sua lareira.

Robert Fulghum, autor de All I Really Need to Know I Learned in

Kindergarten, conta como terminou seu período de prática num

templo Rinzai em Kyoto, em 1969. Na última entrevista que teve

com o abade, o Mestre Zen Kohara Roshi, este não se limitou a

falar da prática da meditação, mas fez questão de frisar que não há

nada a atingir. Então falou da própria vida, do stress de dirigir um

templo tão grande, da má qualidade dos jovens monges, da

dificuldade de levantar fundos e de "lidar com mulher e filhos, que

não são" - ele sorriu - "tão 'santos' quanto eu". Continuou: "Às vezes

me dá vontade de comprar uma casinha no Havaí e ficar jogando

golfe." Sorriu outra vez.

"Eu já era assim antes de me 'iluminar'. E depois da iluminação

continua igual." Fez uma pausa para que Fulghum digerisse suas

palavras e, depois, disse-lhe para voltar para casa, onde tinha sido

"um homem sedento à procura do que beber, embora estivesse no

meio de uma correnteza, com água até os joelhos."

Sem a compreensão da perfeição comum, a espiritualidade pode

nos pôr em desacordo com a vida. Às vezes, as imagens de

perfeição que nos ensinam são destrutivas para nós. É como o

caçador esquimó que perguntou ao missionário: "Se eu nada

soubesse sobre Deus e o pecado, ainda assim iria para o inferno?"

"Não", disse o padre, "se nada soubesse, não iria." Muito sério, o

esquimó perguntou: "Então, por que me contou?"

Ficamos sempre na mesma, como Edward Espe Brown tentando

fazer biscoitos Pillsbury, tentando "fazer bonito" em vez de valorizar

os próprios biscoitos, em vez de despertar para a própria vida.

Uma seguidora do Budismo Tibetano, praticante há trinta anos,

observa:

"Com tantos anos de prática espiritual, eu ainda não me conhecia

direito. Vivia tentando ficar à altura das expectativas dos outros. O

que eu era estava enterrado, invisível. Minha família era muito

social, valorizava muito as coisas externas. Quando criança, me

ensinaram a me comportar socialmente. Foi assim que cheguei à

vida espiritual, procurando ser alguém especial, acertar. Quando

meus lamas viajavam para o Ocidente, eu assumia o papel de

anfitriã e passei dez anos organizando inúmeros retiros e eventos

beneficentes. Eu convidava todo mundo para ficar na minha casa.

Era divertido e eu vivia ocupada. Mas, embora estivesse em contato

com a riqueza espiritual tibetana, comecei a perceber que estava

vivendo a vida de outra pessoa. E comecei a ficar triste e

desapontada, não com os tibetanos, mas comigo mesma. Embora

sentisse que precisava ajudar, eu me cansei. Então comecei a me

afastar para meditar por períodos cada vez maiores. No começo eu

me sentia culpada, mas adorava a solidão. Descobri que tenho uma

natureza muito mais artística e introvertida do que imaginava.

Então, na volta de uma viagem para a Ásia, senti saudades de uma

vida comum. Comecei a dizer não para tudo. Não dava para

continuar. Mudei para o interior e comecei a viver tranqüilamente,

cuidando dos animais e do jardim, tocando piano. Agora, patrocino

sem alarde dois mosteiros em vez de viver correndo por ai na

tentativa de ser especial.

Cuidar da terra de um jeito bem simples: isso é que é natural em

mim. Eu não sabia quem eu era."

Perfeição comum é ser fiel a si mesmo, às coisas como elas são.

Cuidamos do jardim querendo que os amores-perfeitos sejam mais

altos do que os narcisos ou que as rosas não tenham espinhos?

Visitamos um jardim-de-infância querendo que as crianças se

encaixem num modelo de perfeição ou conseguimos ver que a

variedade faz a beleza dos jardins e dos seres humanos, que a

tarefa espiritual não é criar a perfeição, mas despertar para a

perfeição à nossa volta?

Como disse um lama veterano:

"A perfeição deve estar por aqui. Onde? Será que ela é a próxima

experiência ou a outra? Minha verdadeira prática é a paciência, sem

querer que nada de especial ou incomum aconteça. Quando

percebo que estou lutando e alimentando expectativas, sei que

perdi a grande perfeição.

A maior dificuldade que ainda me resta é entender que não dá para

contar com uma situação perfeita no final. Ela não existe.

Fundamentalmente, tudo é inseguro, instável. Isso não é coisa que

se aprenda rapidamente - temos que nos abandonar a essa

perfeição comum muitas e muitas vezes."

Há humildade nessa perfeição humana comum. Cada um de nós

precisa aceitar seus dons e suas fraquezas. Quem não lutou

alguma vez contra a própria humanidade? Em vez de nos

agarrarmos a uma visão de perfeição sobre-humana e inflada,

aprendemos a dar espaço para a bondade. Há beleza no que é

comum. Convidamos o coração a sentar-se na varanda para sentir

as inevitáveis idas e vindas das emoções e dos acontecimentos, as

lutas e sucessos do mundo.

Um mestre sufi diz o seguinte:

"Minha vida é complicada e ainda sofro muito, mas isso não quer

dizer nada. Isso é efêmero, é apenas uma parte da vida. Sinto

também, profundamente, o sofrimento do mundo. Faço o que

posso. No entanto, é claro que as coisas são como são. Para que

tenham alguma utilidade, minhas ações têm que partir do coração

de paz. Essa é a minha meta: revelar a paz em meio a tudo isso."

ALÉM DO LOUVOR E DA CULPA

Segundo o Tao, quem faz o bem faz também o mal; quem faz o

certo, também faz o errado. Por isso, em vez de julgar, "deixe o

coração cansado descansar". Essa é a liberdade do Tao.

Você quer melhorar o mundo?

Acho que não dá.

Se interferir, vai piorá-Ia.

Se o tratar como um objeto, vai perdê-lo.

A mestra vê as coisas como são,

sem tentar controlá-Ias.

Ela as deixa seguir o próprio curso

e reside no centro do círculo.

(Tradução de Stephen Mitchell)

A mente de perfeição comum sabe que o louvor e a culpa, o

sucesso e o fracasso, o orgulho e o auto-julgamento são

impostores, são opiniões de segunda mão sobre a nossa

experiência. Quando superamos a exaltação e a culpa, o alívio é

muito grande. Na liberdade de coração e ação que se segue, muitas

coisas se tomam possíveis.

Eis um exemplo dessa liberdade. Em algumas partes da Índia, onde

há escassez de médicos, os moradores dos vilarejos costumam

fazer vaquinhas para pagar o estudo de jovens dispostos a cursar

escolas médicas. Depois eles voltam e cuidam da comunidade.

Num pobre vilarejo na montanha, há uma tabuleta na frente do

consultório de um médico: "Doutor V. S. Krishna, não-formado,

Calcutta Medical College." Isso significa que o Doutor Krishna foi

para a escola de medicina de Calcutá mas não concluiu o curso.

Mesmo assim, voltou para casa e abriu um consultório: deixava

claro que não tinha se formado, mas mesmo assim oferecia o

conhecimento que tinha. Seu consultório estava sempre cheio.

Talvez todos nós sejamos como o Doutor Krishna - a vida humana é

feita de muitos sucessos e fracassos. Quem está dominado por

sentimentos de vergonha ou orgulho, limita a extensão do que pode

fazer, do que pode ser.

A maioria dos professores espirituais descobriu que ser

independente do louvor e da culpa é um longo processo. No

começo, são só momentos. Com a prática, aumentamos esse

tempo, ficando horas e dias livres do julgamento dos outros ou de

nosso próprio julgamento. Aprendemos a deixar que os julgamentos

se formem e se dissipem sem nos dominar. Percebemos que a vida

é muito maior e mais surpreendente do que imaginávamos. É um

descanso, é uma liberdade sentir a dança da vida sem

pensamentos críticos sobre ela. É como o homem que recebeu a

seguinte carta de uma loja:

Caro Senhor Jones,

O que os seus vizinhos vão pensar se formos obrigados a mandar

um caminhão para pegar de volta a mobília que o senhor ainda não

acabou de pagar?

A loja recebeu a seguinte resposta:

Caros Senhores,

Discuti o assunto com os meus vizinhos para descobrir o que eles

vão pensar. Todos pensam que seria uma sujeira de um mau

fornecedor e que não gostariam de ser seus clientes.

Respeitosamente,

Senhor Jones

Viver sem louvor nem culpa não significa viver sem cometer erros.

Ao setenta e seis anos, Ruth Denison é uma das mais respeitadas

professoras ocidentais de Meditação do Insight. Recentemente, seu

marido, que durante a vida inteira estudou o dharma, começou a

sofrer do mal de Alzheimer, a ponto de sair vagando pelas ruas sem

saber quem era. Para cuidar dele, Ruth saía todos os dias do centro

de meditação e ia para casa, dirigindo quatro horas na ida e mais

quatro na volta. Mesmo assim, um dia ele deixou o forno aceso e

parte da casa pegou fogo.

Nessa época, ela foi convidada a dar uma palestra num retiro em

Portland, Oregon. Exausta, ela entrou na sala com 150 alunos.

Começou a palestra fazendo-os sentir a respiração e o corpo,

atentos à experiência presente. Falou sobre essa atenção e contou

a história da doença do marido e do incêndio.

Continuou a falar sobre atenção. Então disse: "Eu já falei do meu

marido e do incêndio?" E contou tudo de novo. Falou um pouco

mais sobre atenção e, depois de algum tempo, disse: "Não posso

esquecer de falar do meu marido e do incêndio que tivemos." E

começou a contar a história pela terceira vez. Os alunos

começaram a ficar assustados e preocupados com aquela mulher

que, parecia, estava começando a mostrar ela também sinais do

mal de Alzheimer.

Várias pessoas se levantaram para sair. Mas Ruth as chamou de

volta: "Esperem! Para onde estão indo? Quero que examinem suas

expectativas. O que esperavam quando vieram aqui?" Todos

refletiram em silêncio por alguns momentos. Então ela continuou:

"Hoje vocês estão tendo a oportunidade de observar uma coisa

especial: o colapso de uma velha professora do dharma.

Nem sei o que acabei de dizer." Todos voltaram a seus lugares e

Ruth continuou a ensinar: "Vocês conseguem ficar despertos para o

que está acontecendo? Essa é a prática."

Felizmente, Ruth perdeu a memória só naquela noite, por causa da

exaustão. Depois de um descanso, sua memória e sua energia

voltaram com força total. Mas naquela noite ela demonstrou

verdadeira presença - a capacidade de tolerar qualquer coisa, até

mesmo a própria desorientação, tratando-a com consciência e

compaixão.

TORNAR-SE EXCÊNTRICO

Quando as emoções são livres e o coração se expressa sem

preocupação com a opinião dos outros, essa liberdade se estende a

todos os aspectos do caráter. Se vocês conhecessem Ruth

Denison, talvez a considerassem uma velha excêntrica.

Observando honestamente a comunidade dos professores

espirituais, vemos que eles formam um grupo excêntrico. Alguns

são estranhamente solitários, outros são publicamente

extravagantes. Alguns fazem parte do jet set espiritual, outros são

uns chatos. Alguns são conscienciosos, outros apaixonados. Não

existe um modelo. Excentricidade significa singularidade, a

liberdade de pertencer plenamente a si mesmo. Seja qual for sua

aparência, o excêntrico tem a capacidade corajosa de ser a

corporificarão de si mesmo.

O pintor Georges Braque incitou uma vez as pessoas à sua volta:

"Cabe a nós ser verdadeiros excêntricos, sem titubear." Um mestre

zen vê aí o ponto culminante do treinamento zen, sua fruição: "Ser

fiel a si mesmo e à vida."

Por um lado, nós nos centralizamos no Zen para não nos

perdermos na avidez, no ódio e na ignorância. Trata-se de um

processo purificador: aprendemos a deixar as coisas para lá, até

conseguir abrir mão de tudo. Mas depois temos que voltar e ser

autênticos, absolutamente autênticos em relação à nossa vida.

Ajahn Sumedho, o monge ocidental que fundou meia dúzia de

mosteiros a Tailândia e no Ocidente, lembra de seu primeiro

semestre como abade:

"Eu não sabia direito o que estava fazendo, nem como agir. Então,

tentei ser igual ao meu professor e, como o admirava muito, quis

dirigir o mosteiro do jeito dele. Mas não funcionou: foi um desastre,

porque eu não era ele. E então percebi que as pessoas o

admiravam porque ele era ele mesmo. E descobri que era isso que

eu devia fazer: ser eu mesmo."

Como em geral os professores espirituais são carismáticos e as

tradições interessantes, a espiritualidade envolve muita imitação no

começo. Durante algum tempo, esse é um comportamento natural.

Mas pode se tornar rígido. Quem acha que "espiritual" significa ser

calmo e imperturbável pode imitar essas qualidades com uma

atitude suave. Por outro lado, quando o mestre é licencioso e

beberrão, a comunidade pode ficar cheia de alcoólatras e de

discípulos que também querem ostentar licenciosidade. São formas

diferentes de materialismo espiritual.

Infelizmente, o mundo espiritual pode se tornar tão tacanho quanto

o resto de nossa cultura. Parece que todas as comunidades

religiosas ou espirituais têm um "pensamento de grupo"

inconsciente, um comportamento de grupo. A Irmã Claire, uma

velha freira católica, falou com tristeza de seus primeiros anos no

convento: "Minha vida interior pouco interessava para a Igreja; só a

minha fé e o meu decoro." Um aluno que saiu de uma comunidade

hinduísta, onde todos acreditavam que estavam no "melhor"

caminho, comentou: "Queríamos tanto ser hinduístas que

esquecemos de ser nós mesmos." Como diz e.e. cummings:

"Ser você mesmo num mundo que faz o possível para transformá-lo

em qualquer um significa lutar a mais dura batalha humana e nunca

parar de lutar."

Ter liberdade emocional, física e mental não é imitar, mas também

não é o contrário: expressar em ações todos os medos e

necessidades inconscientes. Como Ram Dass, que se tomou um

connoisseur das próprias neuroses, passamos a nos conhecer, mas

sem indulgência nem autopiedade. Quem tem total consciência dos

próprios sentimentos, mas não sucumbe à sua energia, tem sempre

uma escolha. Seja qual for a situação, é livre para seguir a própria

sabedoria. Quem experimentou a verdadeira liberdade abraça a

riqueza da vida como um todo.

É essa a visão ampla das mais sábias histórias humanas, do

Ramayana a Shakespeare, das játacas à Bíblia. Nessa liberdade há

uma alegria inigualável, Trudy Dixon, que editou Zen Mind,

Beginner's Mind, disse o seguinte sobre a liberdade que seu

professor Suzuki Roshi representava:

As qualidades de sua vida são extraordinárias - alegria de viver,

vigor, honestidade, Simplicidade, humildade, serenidade, alegria,

perspicácia fantástica... mas não é o fato de o mestre ser

extraordinário que deixa os alunos perplexos, intrigados e mais

profundos, mas o fato de ele ser totalmente comum. Sendo ele

mesmo, ele é um espelho para os alunos... Na sua presença vemos

o nosso rosto original, e o que vemos de extraordinário é apenas a

nossa verdadeira natureza.

A FELICIDADE DE EXISTIR

O mais amado poeta zen do Japão, Ryokan, era conhecido pela

sua sabedoria e despretensão. Como São Francisco, ele gostava

das coisas simples, das crianças e da natureza. Em seus poemas,

ele fala de suas lágrimas e de sua solidão nas longas noites de

inverno, de seu coração se alegrando com o florir da primavera, das

perdas e remorsos e da profunda confiança que tinha aprendido.

Suas emoções fluíam livremente, como as estações. Quando as

pessoas lhe faziam perguntas sobre a iluminação, ele lhes oferecia

chá. Quando ia ao vilarejo para esmolar comida e oferecer

ensinamentos, acabava brincando com as crianças. Era feliz porque

estava em paz consigo mesmo.

Por hoje acabei de esmolar: nas encruzilhadas

Caminho ao lado do Santuário Budista

Falando com algumas crianças.

No ano passado, um monge tolo.

Neste ano, nada mudou!

(Tradução de John Stevens)

A sabedoria emocional do coração é simples. Quando aceitamos os

sentimentos humanos, a transformação é notável. A ternura e a

sabedoria surgem espontaneamente. Se antes buscávamos ter

mais força que os outros, agora nossa força é só nossa; se antes

procurávamos nos defender, agora rimos. Dar espaço para a

própria dependência e para as próprias necessidades revela uma

totalidade oculta. Quando nos livramos do medo, a felicidade e o

amor despontam naturalmente, efervescentes como a água da

fonte, espalhando-se pelo nosso ser.

Ajahn jumnien, um de meus professores das selvas da Malásia, traz

esse espírito quando vem ensinar na América. Com um coração

luminoso, cheio de vitalidade e bom humor, ele fala só algumas

palavras em inglês. Quando não tem tradutor, seus ensinamentos

são muito simples, "Vazio, vazio!" diz ele. "Feliz, feliz!" Abre os

braços como se abraçasse o mundo inteiro e diz novamente:

"Vazio, vazio! Feliz, feliz!" Ele sabe que todas as coisas surgem e

desaparecem como sonhos, sabe que elas se modificam e que não

dá para tê-Ias. Aceitando essa verdade, ele vive dignamente e é

feliz.

Um professor espiritual conta a história de uma afro-americana que

participou de seu treinamento de um ano. Essa mulher tinha vivido

uma vida de trauma, pobreza, maus-tratos, morte dos pais, racismo

e doença. Divorciada, criava sozinha os dois filhos. Essas

dificuldades transbordaram de sua alma durante o treinamento. Ela

falou da luta para se educar, da luta em busca de justiça, até que

aos poucos encontrou seu caminho. Os outros participantes

também contaram suas histórias cheias de dificuldades, de mágoas,

de desafios e de lutas que cada qual travava à sua maneira.

Finalmente, no último encontro, a mulher disse: "Depois de passar

por tanta coisa, depois de todos os problemas que tive, vou fazer

uma coisa radical. Vou ser feliz."

Quando compreendemos que a liberdade do coração é possível

para nós também, podemos despertar para a nossa própria

felicidade, onde quer que seja.

14

RESPEITO AO KARMA FAMILIAR

Não há profeta sem honra, exceto em sua pátria e em sua casa.

JESUS, NO EVANGELHO DE MATEUS

Por mais que criem comunas e comunidades, a família vai sempre

voltar.

MARGARET MEAD

Uma coisa é rezar para os doentes e para os pobres, ou fazer

meditações de compaixão e amor-bondade para os seres

sencientes em geral. Outra coisa é trazer essas mesmas práticas

para a própria família e para a comunidade mais próxima.

Até mesmo Buda e Jesus tiveram problemas quando voltaram para

casa. As palavras de Jesus forram desrespeitosamente rejeitadas

pela Sua família. Então, quando Sua mãe e irmãos chegaram à

casa onde pregava,Jesus não os deixou entrar e, apontando para

os discípulos, disse: "Aqui estão a minha mãe e os meus irmãos,

porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos Céus,

esse é o meu irmão, irmã e mãe."

Da mesma forma, quando o Buda voltou para casa depois da

iluminação, foi repreendido pelo pai, que achou que ele tinha se

transformado num pedinte inconveniente. Assim, o pai e a madrasta

exigiram que ele deixasse de ser monge, trocasse de roupa e

voltasse aos deveres de príncipe. O Buda tentou esclarecê-los, mas

eles acharam que seus conhecimentos eram inúteis. Ele precisou

fazer um milagre - flutuar no ar soltando fogo e água - para

convencê-los de que tinha aprendido algo de valor.

Como Jesus, o Mestre Zen Bashô adverte: "Não dá para ensinar a

verdade na sua cidade natal. Lá só o conhecem pelos apelidos de

infância." Mas por isso mesmo é importante voltar para casa. Há

lugar melhor para uma genuína prática do coração, a mandala do

todo, do que a própria família e os próprios vizinhos? São eles o

verdadeiro campo de teste para a nossa prática porque nos

consideram sem ideais espirituais, imagem ou reputação. Minha

filha Caroline costuma chamar-me a atenção quando fico zangado,

aborrecido, quando sou descuidado ou como de qualquer jeito.

"Paaai, você não ensina que o que importa é a atenção?" ou "Paaai,

olha só o que fez. Que belo professor de meditação você é!" Às

vezes, quando estou com algum problema, ela diz: "Pai, acho que é

melhor ir meditar."

Como diz um mestre zen:

"O papel de professor espiritual pode nos prender à tarefa de

assistente iluminado: de tanto levar sabedoria e compaixão aos

outros, perdemos as relações humanas comuns. Em geral,

conhecemos os outros como alunos. Corremos o risco de nos

isolar, de nos transformar em monstros sagrados, sem o contrapeso

das relações humanas mais comuns: amigos, família e

relacionamentos. A família proporciona o melhor contrapeso."

Falando com bom humor do marido, um conhecido professor

hinduísta, disse uma devota: "Depois da última visita à Índia, meu

marido voltou para casa num estado incrível. E ficou iluminado por

seis meses, até ir visitar a mãe." Uma professora de Raja Yoga

costumava ensinar o que tinha aprendido com seu guru: "Você não

é o corpo, você não é a mente." Durante muitos anos, ensinou

essas verdades e escreveu sobre elas. Já com uma certa idade,

estava determinada a não depender de ninguém. Assim, depois de

ter uma série de derrames, reuniu os filhos e disse: "Eu não sou o

corpo." E, com a ajuda deles, tomou uma forte dose de morfina para

acabar com a vida. Dias depois, saiu do coma no hospital e, quando

voltou para casa, sua família estava uma bagunça, o que era

compreensível. Para os filhos, participar da tentativa de suicídio

tinha sido uma dura provação, que acabou trazendo à tona

ressentimentos há muito tempo esquecidos. Fiel ao seu

ensinamento - "Você não é o corpo nem a mente" - ela tinha

deixado a desejar como mãe. Passou seu último ano procurando

melhorar nesse sentido, aprendendo a cuidar da família e deixando

a família cuidar dela.

O sofrimento familiar é comum em nossa cultura, e as comunidades

espirituais costumam atrair pessoas com história familiar sofrida.

Elas vêm em busca de liberação, de cura ou de ajuda para superar

os problemas que carregam. E não são só os alunos. No Ocidente,

muitos lideres espirituais, professores de meditação, monges,

freiras e clérigos carregam profundas mágoas familiares. Talvez

esperassem, no começo, que o desapego e a paz espiritual os

eximissem de enfrentar a dor familiar.

Mas um mestre chinês adverte:

"Não confunda desapego e liberdade com fuga. Deixar a família e

os filhos para renunciar ao mundo é como fugir da própria sombra.

É um falso vazio. Não existe um lugar que seja mais ou menos

vazio do que a sua própria casa. É lá que a iluminação sempre

esteve."

Não podemos fugir da influência da família e das mágoas que ela

provoca. Por outro lado, também não dá para impor nossos ideais

espirituais à família. Uma jovem se envolveu na prática budista e

depois voltou para a casa dos pais. Lutou com o fundamentalismo

cristão de sua família por algum tempo, até que conseguiu separar

as coisas. Numa carta que enviou ao mosteiro, ela dizia: "Meus pais

me odeiam quando sou budista, mas me amam quando sou um

Buda." Essa é a nossa tarefa: despertar o Buda ao enfrentar o

karma familiar.

Quando meu pai foi internado com insuficiência cardíaca, fui ficar

com ele na CTI da Escola de Medicina da Universidade da

Pensilvânia. Como ele era biofísico e tinha dado aulas em escolas

de medicina, conhecia o equipamento que monitorava o coração.

Ele estava com muito medo de morrer, especialmente de morrer

dormindo, sem que as enfermeiras percebessem. Por isso, fazia de

tudo para não dormir. Noite após noite, ele dormia durante alguns

minutos, mas logo acordava sobressaltado e olhava ansiosamente

para o monitor para ver se seu coração ainda estava batendo.

Meu pai era um homem brilhante mas violento, dado a abusos

físicos. Todos o consideravam um homem difícil, um paranóico.

Agora, sem dormir havia dias, ele estava ainda mais fora de

controle. Mas eu tinha conseguido fazer as pazes com ele e o

amava.

Fiquei sentado ao lado dele, conversando. Como ele estava muito

ansioso e desatento, pensei em ensiná-lo a meditar. Para se

acalmar, ele tentou se concentrar na respiração e fazer uma

meditação de amor-bondade tendo os netos como foco. Foi inútil.

Quinze minutos de meditação não resolveriam setenta e cinco anos

de paranóia. Quando lhe perguntei o que achava que acontece

quando morremos, ele respondeu: "Nada." Era um cientista e não

acreditava em nada além do físico: a morte era o fim. Eu disse a ele

que, no mundo inteiro, a maioria acredita na vida depois da morte,

como indicam também os estudos sobre experiências de quase-

morte. Eu lhe falei de minha experiência fora do corpo e de

lembranças de vidas passadas, além de lhe explicar os estágios do

processo de morrer e o que ele possivelmente sentiria. Ele ficou em

dúvida. Eu disse: "Espere e vai ver só. Se for verdade, lembre-se do

que eu disse." Ele riu.

Mais tarde, já depois do horário de visitas, disse a ele que precisava

dormir um pouco. "Não vá!", ele pediu. Fiquei sentado ao lado dele

por mais uma hora: todas as vezes que ele dormia alguns minutos,

acordava sobressaltado. "Não consigo dormir. Por favor, não vá."

Fiquei feliz por fazer o que ele queria. Eu tinha aprendido a ficar

sentado e a meditar. Onze, meia-noite, uma, duas, e eu fiquei com

ele noites a fio. Não havia muito a dizer. Segurei sua mão. Ele

estava assustado e não queria saber de meditação. Nem mesmo

queria falar. Queria que eu ficasse sentado ali, sem medo, sem

rejeitar o seu medo e a sua dor, simplesmente segurando a sua

mão. Ele morreu alguns dias depois. Sou grato por ter tido a

oportunidade de ficar sentado ao lado dele nesse momento

extraordinário.

Isso é provavelmente o melhor que podemos fazer: ajudar quando

possível, assistir um ao outro com bondade, oferecer nossa

presença, mostrar a confiança que temos na vida. Na vida

espiritual, o importante não é saber muito, mas amar muito.

Em geral, quem entra na vida espiritual precisa tratar os problemas

familiares. Foram anos de trabalho consciente que me permitiram

ficar à vontade com meu pai. Enterrei meu sofrimento familiar

quando comecei a prática de meditação monástica, concentrado

que estava em ser tranqüilo, vazio e sábio. Mas lá estava ele,

esperando, influenciando a minha maneira de ser. Assim, quando

voltei para a família e para os relacionamentos íntimos, os conflitos

voltaram. E se eu tivesse permanecido na prática do ascetismo, é

provável que tivessem voltado do mesmo jeito.

Foi difícil aceitar o fato de eu ainda estar em conflito com as

emoções. Precisei da ajuda da meditação e da terapia para chegar

aos níveis mais profundos do medo, da raiva e da aflição. O

terapeuta foi essencial: uma testemunha compassiva que me

ajudou a enfrentar as imagens e os medos que carregava no corpo,

tudo o que eu não tinha conseguido enfrentar sozinho. Percebi que

condicionamentos antigos reforçavam minha estreita noção de eu.

Para lidar com o sofrimento de nosso meio familiar, eu e meus

irmãos tínhamos nos tomado deprimidos, zangados, medrosos,

cínicos, carentes ou cautelosos - cada um à sua maneira. Essas

mágoas profundas ainda existem, mas nós nos abrimos para elas e

começamos a minar o seu poder.

Na mandala da totalidade, as dificuldades, incluindo esses

problemas entre gerações, existem até que a dor do passado seja

transformada. Pouco antes de morrer, o lama Chogyam Trungpa fez

um poema dirigido a seus alunos, falando do valor do que havia

ensinado a eles e advertindo: "Eu vou continuar a assombrá-los."

Os condicionamentos familiares também continuam a nos

assombrar depois de anos de prática espiritual. A dependência, o

medo, a auto censura, a indignidade, a raiva ou a depressão que

trazemos conosco podem fazer parte do legado familiar. Essas

antigas feridas precisam ser curadas, seja num relacionamento

terapêutico, seja através da sabedoria crescente do caminho

espiritual. Precisamos ter liberdade de espírito e entender que nós

não somos a nossa história familiar.

Uma freira católica disse:

"Há muita dor e maus-tratos no passado da minha família. Na minha

vida espiritual, quase todas as grandes mudanças tiveram relação

com a vergonha. Cresci numa família de alcoólatras, pelo menos do

meu avô em diante, e a idéia que fazíamos de nós mesmos era

baseada na vergonha. Quando ela vem com força, não há prática

ou prece que funcione. Eu não me sinto bem com nada. Estou

rezando e ouço uma voz: "Você é uma desgraça em comparação

com o que poderia ser. Você não está usando seus dons. Você

deixa a desejar." Sempre deixo a desejar! Antes isso me deixava

muito mal. Mas, com uma boa terapia e muito trabalho interior,

comecei a entender. Agora sei que tenho ciclos de vergonha que

começam e pronto. Sei o que são. "Ah! É outro ciclo de vergonha!"

Chego a dar risada. Essa descoberta foi mais importante para curar

o meu coração do que os anos de esforço para ser santa."

A TOLERÂNCIA GERA A INTIMIDADE

Os ensinamentos tradicionais se concentram tanto no amor e no

seu espírito transformador que chegam a negligenciar um poder

ainda mais básico e fundamental: o coração tolerante.

Depois do êxtase do despertar espiritual, vem a realização cotidiana

na lavanderia da prática contínua. Qualquer experiência de

despertar que nos sustente nesse período traz consigo o aumento

do espírito de tolerância, da aceitação do que existe. Com

tolerância renovada, podemos encontrar a harmonia do coração. As

diferenças humanas são enormes: o ritmo, as preferências do

corpo, o senso estético, as emoções, os medos, o jeito de falar, de

amar, de descansar. São enormes as diferenças de raça, cultura,

classe e valores. Sem tolerância não há chão para nenhum

relacionamento, não há possibilidade de intimidade. Sem tolerância,

a vida familiar se torna insuportável. São drásticas as diferenças de

temperamento e personalidade. Sem tolerância, teríamos uma

sociedade em conflito perpétuo, um mundo de sectarismo e

tribalismo, de guerra e genocídio.

Não temos que gostar daqueles que toleramos, e muito menos que

amá-los. Na verdade, nem todos os professores espirituais gostam

uns dos outros e nem sempre se dão bem. Muitos mestres zen,

swamis, ajahns, sheikes, lamas e rabinos respeitados têm fortes

desentendimentos. Às vezes, um não gosta dos ensinamentos nem

do estilo do outro. Mas os mais sábios têm uma tolerância genuína,

sabendo que as razões dos outros podem ser invisíveis para nós,

que o jeito dos outros é tão digno de respeito quanto o nosso.

Tolerância não significa aceitar o que é nocivo. Assim como

podemos usar o desapego para esconder sentimentos, podemos

usar a tolerância para não enxergar a verdade ou para não tomar a

atitude necessária. Tolerância não significa fechar os olhos ao

abuso. Às vezes é preciso reagir com muita força para impedir

maiores sofrimentos. Mas, quando a ação vem do coração, até

mesmo essa força é combinada à compaixão e à compreensão.

Foi o que observei na maneira de Ajahn Chah lidar com o abade de

um mosteiro ligado ao nosso, um homem chamado Ajahn Som, que

tinha sido valentão de rua e bandido antes de se ordenar. Mesmo

como abade ele tinha a fama de ser duro e difícil, e os monges que

voltavam de seu templo geralmente se queixavam. Um dia,

perguntei a Ajahn Chah por que deixavam uma pessoa assim ser

abade. Ajahn Chah pensou um momento e disse que, embora fosse

um homem dificil, Ajahn Som tinha construído o mosteiro com as

próprias mãos, trabalhando duro numa floresta remota. Sua

dedicação espiritual estava crescendo aos poucos. Talvez nunca

chegasse a ser um monge de gravura, mas se Ajahn Chah lhe

tirasse o mosteiro, ele provavelmente voltaria às ruas. Era isso o

que eu recomendava? .

Julgamos os outros com muita facilidade. Em geral, quanto mais

perto estamos de uma pessoa, mais forte é nosso espírito crítico e

nossa frustração. É por isso que a família é uma das últimas

fronteiras do desenvolvimento espiritual.

Um antigo swami hindu me contou:

"Depois de anos de yoga na Índia, voltei para ensinar e para me

casar. Tempos depois, eu me tomei responsável por um templo.

Minhas experiências de samadhi me revelaram a bem-aventurança

de todas as coisas. Mas, para dizer a verdade, fui ficando muito

ocupado e perdendo de vista essa descoberta. Procurei meditar

mais para recuperá-Ia. No templo havia conflitos. No meu

casamento, havia brigas terríveis. Às vezes eu me perguntava se

não era um erro praticar naquela vida mundana. Nem mesmo a

meditação estava me ajudando.

Um dia, fui visitar minha família e fiquei cuidando do meu sobrinho

de três anos. Foi um dia duro para o swami e para ele. Bagunçamos

a casa. Ele teve uma crise de mau humor. Finalmente, eu o peguei

no colo e cantei melodias sânscritas. Nesse dia, percebei que é isso

que todo mundo quer: um colo, haja o que houver. A bem-

aventurança e o samadhi voltaram assim que abri meu coração."

É em casa que conquistamos de verdade a tolerância e a aceitação.

Minha mulher e eu temos temperamentos opostos e viemos os dois

de famílias complicadas. Ela é escritora. Muito quieta, tem

necessidade de solidão e de vida interior. Eu, apesar da meditação,

sou mais extrovertido. É enorme minha rede de amigos, colegas e

membros da comunidade dhármica.

Nos nossos primeiros anos juntos, meu sonho era viver no campo,

numa casa grande, com quartos para todos os amigos. Ela sonhava

com uma coisa menor. Um dia, eu reclamei e ela perguntou: "Você

não passou dez anos vivendo no campo, num centro de meditação

que tinha uma biblioteca enorme e uma cozinha ainda maior? Se é

disso que gosta, por que não volta para lá?"

Com muito cuidado e muita terapia, conseguimos superar esse

começo tempestuoso, casamos e tivemos uma bela filha. Mas nem

todas as diferenças desapareceram. Um dia, quando nossa filha era

pequena, passeávamos com ela no jardim de um centro zen. Liana

tinha me dado havia pouco tempo o livro Goddesses in Every

Woman, de Jean Shinoda Bolen, que ela já tinha lido. Sua intenção

era discutir comigo os diferentes aspectos da energia feminina e da

criação de uma filha mulher. Disse a ela que tinha gostado do livro,

especialmente dos capítulos que falavam da força das mulheres

Ártemis e da graça e beleza de Afrodite. Então, contei a ela que não

tinha simpatia especial por Réstia, uma deusa sem templo. É a

deusa do fogão e da casa, sempre presente mas invisível.

Quando eu disse isso, Liana me olhou atordoada, jogou o livro no

chão e começou a chorar. "Mas eu sou assim. Essa deusa descreve

a minha vida! Eu sabia que você nunca me amou de verdade. Eu

sabia!" E ela se virou e foi embora.

Levei alguns momentos para sentir a força de suas palavras, para

me recompor e ir atrás dela. Chocado pela verdade do que ela

havia dito e por uma torrente de descobertas, só consegui dizer:

"Sinto muito dizer que você está certa. Eu a amo, mas sem saber,

esperava que você fosse diferente." Por muito tempo eu tinha

guardado uma esperança secreta, uma idéia de que ela mudaria. E,

é claro, ela percebeu. Mas, diante da necessidade de ver a

realidade dela em vez dos meus desejos, comecei a amá-Ia como

ela é. Juntos, criamos um lar para Réstia. Agora eu saio para

trabalhar com grupos enormes e volto para casa, para uma vida em

família tranqüila e simples. Sou alimentado e protegido por minha

família e a amo como ela é, agradecendo todos os dias pela

sabedoria de minha mulher.

A família é um espelho. Na nossa companheira, nos nossos pais e

filhos, vemos nossos medos, necessidades e esperanças em escala

maior. Os relacionamentos íntimos tocam a nossa história sem

anestesia. A necessidade de carinho e as mágoas que trazemos

ficam expostas e precisam ser respeitadas.

Por isso, dizer que no fundo amamos uns aos outros não é o

suficiente. Temos de ser tolerantes e respeitosos uns com os

outros. Temos de estender à família a mesma grandeza de coração

que praticamos na prece e na consciência não-sentenciosa de

nossos estados interiores.

Uma irmã católica conta o resultado de anos de oração:

"Resultou numa coisa: na vontade de me relacionar continuamente

com o bem e com o mal, de consentir em sofrer conscientemente,

de ser o chão tolerante que recebe as lágrimas do mundo, dos que

estão distantes e dos que estão perto de mim. Minha espiritualidade

não se protege mais da raiva, da paixão ou do conflito. Isso é lixo.

Esses ensinamentos fizeram mais mal do que bem. No fim,

descobri que não existe culpa. Aplico a tudo a não-violência. Não

atormentar, não incrementar a dor em mim mesma nem fora de mim

- essa é a minha principal oração."

A tolerância cresce e a ausência de culpa diminui quando vemos as

notáveis qualidades de cada vida que tocamos. Única e singular,

cada pessoa expressa a própria natureza - mesmo as pessoas mais

difíceis vivem do melhor jeito possível.

PAIS RESPEITOSOS

Essa consideração, louvável entre adultos, é também a base para a

educação dos filhos. Outra palavra para essa tolerância é

"respeito". É o caso da história de um menino de sete anos que foi

jantar fora com os pais e um casal de amigos. A garçonete anotou

seu pedido por último: "O que você vai querer?" Ele não teve

dúvidas: "Quero um hot dog com batatas fritas." A mãe logo se

interpôs. "Ele vai querer carne assada, purê de batatas e cenoura.

E leite." Antes de ir embora, a garçonete perguntou: "Você quer

ketchup e mostarda no hot dog?" O menino olhou para os outros

sorrindo e disse: "Vocês viram? Ela sabe que eu sou de verdade."

Nossos filhos adoram respeito. Até os pequenos querem que suas

necessidades e seus medos sejam respeitados. Com respeito,

namorados, pais, colegas de trabalho, animais e árvores florescem.

O respeito é a base da criação dos filhos e da prática espiritual.

Sem consciência e sem respeito nós nos limitamos a repetir o que

nos fizeram, a agir de maneira condicionada pela criação que

tivemos. Sem respeito damos continuidade aos ciclos de mágoa,

vergonha, indignidade e abandono que possam ter existido no

nosso passado.

Sem visão espiritual, o cuidado que é natural na criação dos filhos

pode ser sobrepujado pela pressa e pelo materialismo da vida

moderna, pelos valores da mídia, pelas normas aceitas de stress e

violência. Sem atenção respeitosa, permitimos que a mídia e as

pressões modernas acelerem o crescimento de nossos filhos,

esquecendo de proteger sua dependência e vulnerabilidade. Nós

nos esquecemos de que as crianças vão ficando independentes no

próprio ritmo, quando chega a hora. Sem dar atenção ao coração,

ficamos como a geração de pais que, confiando em especialistas

leigos, se recusavam a alimentar e a pegar no colo o bebê que

chorava, embora seu instinto e o impulso do seu corpo lhes

dissesse o contrário. Com respeito, é possível oferecer aos filhos

proteção e cuidado e ao mesmo tempo estabelecer limites corretos

de comportamento. É possível transmitir o ensinamento espiritual

não apenas através de palavras, mas através da integridade da vida

diária, que revela os mais profundos valores do coração.

Nunca é tarde demais para oferecer esse respeito. Quando ficamos

adultos, devolvemos esse respeito à família. Uma mulher que vivia

como monja budista em mosteiros da Tailândia e Burma falou das

dificuldades que tinha quando visitava a família, que vivia num

bairro operário de Detroit. No geral, ela tinha se livrado das antigas

mágoas, mas sua família não compreendia nem aceitava aquela

freira de cabeça raspada. E quanto mais ela tentava falar do

dharma, mais cresciam os conflitos e as frustrações. À noite, a

família bebia cerveja e via televisão. Sempre que ela passava uma

semana desagradável com a família, acabava fugindo. Eu lhe fiz

algumas sugestões: "Por que não vai visitar seus pais sem o manto

e sem os ensinamentos? Vá como um simples membro da família e

ame-os como eles são. Pode até tomar uns golinhos de cerveja e

ver um jogo na televisão. E não fique muito tempo: no máximo três

dias." Ela seguiu as minhas sugestões. Quando a encontrei de

novo, ela sorriu: tinha funcionado.

Um mestre sufi diz:

"Para mim, o relacionamento com a família e com os amigos mais

próximos é diferente de todos os outros. Certamente é muito

diferente do papel de professor. Com minha família, tenho que

deixar que o amor e a sinceridade sigam o seu curso. Não estou à

frente nem sou o responsável. Procuro ser quem sou e ser tolerante

com a natureza deles. Há nisso uma inegável paixão, uma carga

inerente entre filhos, pais e irmãos, seja ela positiva ou negativa. Os

conflitos são maiores porque nos tocamos profundamente. Procuro

chegar ao nível do coração, à essência por trás da história."

Para Thomas Merton, tolerância é aprender a ver "a beleza secreta

do coração dos outros" sob todas as expectativas que temos em

relação a eles. Quando vemos a beleza secreta do coração dos

outros, permitimos que nossa verdadeira natureza conduza a

relação e conseguimos enxergar a centelha sagrada que ilumina a

nossa vida.

VOCÊ SERÁ TESTADO

Os mandamentos das grandes religiões do Oriente Médio - judaica,

cristã e islâmica - ensinam que "devemos honrar pai e mãe". Na

tradição chinesa e na tradição indiana, esses ensinamentos são

ainda mais enérgicos: "Nem mesmo se carregasse seus pais nas

costas daria para você retribuir pela vida que eles lhe deram." Essa

obrigação existe em todas as tradições e seu cumprimento não é

necessariamente simples.

Pais idosos, adolescentes infelizes, conflitos entre

irmãos,problemas de dinheiro, doenças na família, vícios - tudo faz

parte da vida familiar como prática contínua. Essas dificuldades são

ainda mais opressivas numa sociedade como a nossa, sem vida

comunitária, onde os idosos são fechados em asilos e onde os

adolescentes, isolados dos mais velhos, buscam a iniciação de

maneira destrutiva. Sob todos esses problemas está uma

necessidade humana essencial: o contato. Alguém disse uma vez:

"É melhor ser procurado pela polícia do que não ser procurado por

ninguém." Bem ou mal, a família é a fonte original desse contato,

oferecendo amor e responsabilidade.

As responsabilidades familiares nunca terminam. Muitos cuidam

dos pais ao longo do longo declínio provocado pelo mal de

Alzheimer, pelo câncer ou por um derrame. Outros convivem com

adolescentes difíceis ou com casos de depressão na família, ou são

obrigados a resolver conflitos conjugais e problemas de divórcio dos

irmãos ou dos filhos. Os sacrifícios impostos pela família são como

os de um mosteiro exigente, urna prática equivalente de renúncia,

paciência, constância e generosidade.

Por isso, ri quando um monge de meia-idade disse que a vida dos

monges é cheia de autodisciplina e sacrifício, enquanto a vida de

um leigo é por natureza uma vida de indulgência. Disse ele: "Não

podemos comer quando queremos, nem vestir o que queremos,

nem ir a festas, nem ter uma sucessão de amantes, nem viver uma

vida descuidada." Eu me perguntei a que vida ele se referia.

Continuando a conversa, descobri que ele tinha se ordenado com

vinte e um anos, guardando da vida dos leigos a visão de seus anos

de adolescente. Ele não compreendia que o trabalho, o casamento,

a criação dos filhos e a cidadania são formas de disciplina.

Gary Snider, professor zen, poeta e pai, escreve:

Todos nós aprendemos com o mesmo professor - a realidade... pôr

as crianças na perua escolar todas as manhãs é tão difícil quanto

cantar os sutras no salão do Buda nas manhãs frias. Uma coisa não

é melhor do que a outra, as duas podem ser muito aborrecidas e

ambas têm a virtuosa qualidade da repetição. A repetição e seus

bons resultados transformam as atividades da vida no caminho.

A vida familiar exige muito do coração e testa a nossa força mais do

que qualquer outra coisa. Uma professora me disse:

"Quando jovem, minha inspiração eram os santos. Eu queria

trabalhar com Madre Teresa na Índia, mas minha vida acabou não

sendo tão glamorosa. Depois da faculdade, fui lecionar numa escola

primária. Mas minha mãe teve um derrame e eu parei de trabalhar

para cuidar dela: durante dois anos eu lhe dei banho, cuidei das

escaras, cozinhei, paguei as contas, dirigi a casa. Às vezes eu tinha

vontade de abandonar aquelas responsabilidades e voltar à vida

espiritual. Então, numa manhã descobri que estava fazendo o

trabalho de madre Teresa, e na minha própria casa."

Em casa ou no templo, é a mesma coisa. Segundo um relato antigo,

um dia o Buda encontrou um de seus monges doente e sozinho,

enquanto os outros meditavam. O próprio Buda cuidou do monge e

depois chamou os outros para castigá-los e instruí-los. "Se vocês

não cuidam uns dos outros como uma família, quem vai fazer isso?

Monges, aqueles que estão a serviço do Buda, que estejam a

serviço dos doentes." Quinhentos anos depois, Jesus disse a seus

discípulos: "Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um

desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes." Esse

amor sabe que somos uma família e é dele que vêm todos os

outros amores da nossa vida.

Robert Johnson, analista junguiano e escritor, fala de sua primeira

viagem à Índia, há alguns anos. Tinham lhe avisado que encontraria

caos, sujeira e pobreza, mas teve uma surpresa: "Ninguém me

preparou para a imensa felicidade de quase todos os indianos." Ele

disse que na Índia o senso de realidade se amplia para abraçar

outros aspectos da vida: o sofrimento e a magnífica convivência.

Apesar das imensas dificuldades, ele se sentiu envolvido pela

amizade imediata da comunidade indiana. Seus amigos lhe

mostraram um novo sentido do amor familiar.

Se quiser ficar amigo de um indiano, pare ao lado dele - de alguém

do mesmo sexo, não se faz isso com o sexo oposto - e espere. Se

ele consentir, não sairá dali. Vai ficar parado ali e, depois de um

tempo que parece terrivelmente longo, um dos dois vai dizer ou

fazer alguma coisa, e então serão amigos pelo tempo que

quiserem, provavelmente pela vida inteira.

Assim, na Índia fiz amigos com assombrosa rapidez. Um dia fiquei

doente. Fui para um hospital indiano - um pesadelo. Eles me

disseram que era um hospital moderno, ocidentalizado. Tinham um

termômetro, que todos os pacientes usavam, um por vez. Eu objetei

e eles disseram: "Pode usar, foi lavado na torneira." Mas eu

sobrevivi.

Estou contando essa história para falar de um amigo indiano que

me considerava seu irmão de sangue - ignoro a razão, é inútil

perguntar. Uma noite, ele foi ao hospital e me disse: "Não vou

deixá-lo sozinho." E dormiu embaixo da minha cama. E noite após

noite, ou ele ou alguém que ele mandava dormia embaixo da minha

cama de hospital. Se eu estivesse num hospital da América,

ninguém poderia dormir embaixo da minha cama: seria impossível.

Um dia, eu estava com febre muito alta e meio fora de mim. Então,

Amba Shankar - era esse o nome dele - ficou de pé ao meu lado e

me contou a história de Baba.

Baba tinha um amigo. Uma vez, o amigo ficou doente e parecia que

ia morrer. Então Baba lhe disse: "Quero morrer por você: é só me

pedir que eu morro para que você possa viver. Esse é o meu

desejo, essa é a minha amizade, é assim que ela é." O amigo

concordou, Baba foi embora e morreu e o amigo continuou a viver.

Ao ouvir essa história, que parecia saída das Mil e Uma Noites, eu

voltei a mim. E ouvi Amba Shankar dizendo: "É só pedir que eu

morro e você fica bom." Fiquei sem fala. Eu não entendo coisas

assim. Mas consegui dizer: "Amba, acho que não estou tão doente

assim. Não faça nada drástico, por favor. Acho que nós dois vamos

sobreviver." E de fato sobrevivemos. Mas aquele homem tinha me

oferecido um presente sem preço - a vida dele.

Quando ouvi a história de Robert Johnson, tive saudades dessa

união, de viver sob a guarda da comunidade e das amizades do

coração. Como vivi nas antigas culturas da Índia e da Ásia, conheci

essa realidade, que se perdeu nos tempos modernos.

Mas a essência da união familiar não pode se perder. Não duvide

de seu poder. Esse amor de pais e filhos, irmãos e irmãs gera as

histórias mais incríveis: a mãe que levanta com as mãos o carro

que acabou de atropelar seu filho; o pai paraplégico que, de cadeira

de rodas, se atira na piscina e salva o filho de dois anos.

Na Argentina, a terrível ditadura militar nos anos setenta torturou,

matou e fez com que "desaparecessem" milhares de oponentes.

Sebastian Rotella fala sobre o movimento das mães, que

começaram a protestar a despeito de todos os perigos, ficando

conhecidas como as Mães da Praça de Maio.

Há vinte anos, as mães foram para a praça na frente do palácio

presidencial e enfrentaram a burocracia do horror.

As mães estavam cansadas das visitas inúteis aos capelães

militares, que usavam botas de exército sob as sotainas, e ao

"departamento de queixas", onde a ditadura proibia qualquer

pergunta sobre as pessoas que sistematicamente prendia, torturava

e matava.

Quando as mulheres se juntaram na praça, a polícia mandou que

"circulassem". Assim, as quatorze mães começaram a andar em

círculos pela praça. Continuaram a se reunir para protestar,

enfrentando cassetetes, cães policiais e os espiões, que se

infiltraram no grupo e mataram três líderes.

"Dizem que as Mães da Praça de Maio eram corajosas", disse

Maria Adela Antokolez, agora com oitenta e cinco anos, andando

com passos incertos e enorme dignidade, "mas morríamos de

medo. Aprendemos a andar com medo, a viver com medo.

Tínhamos a obrigação de encontrar nossos filhos."

As mães ainda marcham todas as quintas-feiras à tarde, pedindo

justiça. O ritual leva os transeuntes às lágrimas e aos aplausos.

Hoje, essas mulheres são idosas e frágeis. Andam de braços

dados, curvadas sob a brancura dos lenços de cabeça, um símbolo

da luta internacional pelos direitos humanos.

"Nunca encontramos nossos filhos", disse Maria Adela. "Mas na

praça fomos à escola. Contamos nossa história cinqüenta vezes.

Choramos juntas. Foi a nossa faculdade. A praça nos salvou do

hospício." Às 3h25 a praça estava deserta. E cinco minutos depois

as mães apareciam, saindo das estações do metrô, das ruas

transversais. As pessoas se aproximavam perguntando: "Quem são

vocês? Professoras, pensionistas? Por que estão protestando?" E a

notícia foi se espalhando. Cortázar estava em Paris quando ficou

sabendo do protesto das mães. E disse: "As mães estão nas ruas,

os militares já perderam."

MAIS MISERICÓRDIA NO CORAÇÃO

Enfrentar o sofrimento na família e na comunidade nos traz uma

grande tarefa: ser fiel aos nossos valores mais profundos e ainda

assim continuar abertos e vulneráveis. Tudo o que endurece e

fecha o coração nos deixa rígidos, assustados, insensíveis. Os

rancores e os medos nos tomam cada vez mais defensivos. Corno

manter o coração aberto sem perder a força e o senso de justiça?

Para isso, ternos que deixar que o coração fique forte de outra

maneira: enfrentando de boa vontade o sofrimento do mundo,

deixamos que ele aumente a nossa compaixão. Nos inevitáveis

conflitos, dores e traições, descobrimos que é possível abraçar o

poder do amor. Em meio à dificuldade, podemos parar quantas

vezes for preciso e retomar ao coração, recuperar o contato com a

força da compaixão e com a nossa vulnerabilidade.

Falando de prática da prece e da meditação, um professor sufi diz:

"Minha prática mais importante é parar e ouvir o coração. É corno

um momento de silêncio quaker. Mesmo que não consiga ficar

quieto, eu paro por dentro, saio do drama, reconheço a dor, a

agitação, a desorientação. Respiro e volto. Com minha família ou

com meus alunos, procuro voltar ao coração antes de falar, procuro

perceber o que está precisando de atenção dentro de mim. Então

eu os incluo nesse espaço do coração. Isso cria uma presença

forte, uma conexão."

Quando o momento é difícil e não conseguimos fazer isso sozinhos,

precisamos que outra pessoa nos ajude a voltar para essa verdade.

É essa a base da verdadeira amizade espiritual e da boa terapia.

Um mestre zen conta que precisou dessa ajuda quando começou a

ensinar. Ele já praticava havia trinta anos quando se tomou

formalmente um roshi. Meses depois, começou a ficar perdido e

inseguro, o que já tinha lhe acontecido uma vez.

"Desesperado, procurei um mestre zen da minha linhagem. Estava

com medo que ele condenasse a minha insegurança. Mas ele me

aceitou e me amou e expressou total confiança em mim. Ele me

ajudou a tratar o meu sofrimento e a minha confusão com firmeza e

fé. Minha mente relaxou e meu ensinamento se transformou."

Quando estamos confusos ou sofrendo, podemos achar que "não

somos espirituais". Mas o coração desperto não julga - não julga a

família, o amor, a dor, a confusão, a paixão e nem a raiva. "Muito

mal se fez por causa desse equivoco", disse um monge católico.

"Na espiritualidade desenvolvida, estamos dispostos a ter um

diálogo com a dor, com o mal e a contemplá-los nas orações. Em

situações de grande dor, é preciso sofrer conscientemente o

impacto, é preciso se tomar o chão onde as mágoas são

retrabalhadas. Isso pode ser feito com graça. Mas não pode ser

fingido. Alguém que tenha 99 por cento de boa vontade, mas ainda

está preso a 1 por cento de raiva, vai sentir apenas a raiva, que

impede a reconciliação. O coração tem que abraçar de boa vontade

a totalidade do sofrimento, para que este se transforme."

No Zen, há textos que falam de "comer a culpa", uma forma de

abraçar o sofrimento. É o que ilustra a história do cozinheiro que fez

para os monges uma sopa de tartaruga, com uma tartaruga fresca,

trazida por pescadores. Quando a sopa foi servida nas tigelas, o

roshi gritou chamando o cozinheiro. A cabeça da tartaruga, que

deveria ter sido removida, boiava na tigela do mestre. O cozinheiro

fez uma reverência para o mestre, olhou dentro da tigela, viu o

problema e, movendo os hashi com habilidade, pegou a cabeça da

tartaruga e a engoliu. Fez outra reverência para o mestre, o mestre

fez uma reverência para ele, e o cozinheiro voltou para a cozinha.

Comer a culpa exige força e compaixão. É o caso do pai que está

se divorciando e, em meio ao litígio, concede mais do que é

legalmente necessário só para poupar ao filho o sofrimento que

uma batalha legal traria. "Mesmo que seja injusto, eu quero que

esse sofrimento pare", disse um pai. "Prefiro me sacrificar agora do

que deixar que meus filhos sejam sacrificados."

A verdade é que, na vida espiritual, a consciência do sofrimento

aumenta com os anos. Vendo e conhecendo com mais clareza as

dores do mundo, não conseguimos mais ignorá-Ias. Com esse

conhecimento, vem uma compaixão cada vez mais profunda.

Por mais extremas que sejam as circunstâncias, a compaixão

sempre é possível. Uma vez, no trem de Washington para a

Filadélfia, eu me sentei ao lado de um afro-americano que havia

deixado o emprego que tinha na Índia, no Departamento de Estado,

para dirigir um centro de reabilitação para infratores juvenis no

Distrito de Colúmbia. Quase todos os jovens com quem ele

trabalhava pertenciam a gangues e tinham cometido homicídio.

Um deles, um menino de quatorze anos, matara um garoto inocente

só para fazer bonito entre os membros da gangue. No julgamento, a

mãe da vítima ficou em silêncio até o fim, quando o jovem foi

condenado pelo assassinato. Depois do veredicto, ela levantou,

olhou diretamente para ele e disse: "Vou matá-lo." Então, o jovem

foi levado para cumprir a pena de três anos numa prisão juvenil.

Depois de seis meses, a mãe do garoto assassinado foi visitar o

assassino. Como antes ele vivia nas ruas, ela foi a única visita que

ele teve. Conversaram um pouco e, antes de ir embora, ela lhe deu

dinheiro para comprar cigarros. Depois disso, ela começou a visitá-

lo cada vez com mais regularidade, levando-lhe comida e alguns

presentes. Quando a pena estava chegando ao fim, ela lhe

perguntou o que ele pretendia fazer quando saísse. Ele não tinha

idéia e ela se ofereceu para lhe arrumar um emprego na empresa

de um amigo. Então perguntou onde ele pretendia morar e, como

ele não tivesse família, ela lhe ofereceu um quarto em sua casa.

Ele morou nesse quarto durante oito meses, comeu a comida que

ela fazia e trabalhou no emprego. Então, numa noite, ela o chamou

à sala para conversar. Ele se sentou à sua frente e, depois de

alguns momentos, ela começou a falar. "Lembra-se de que no

tribunal eu disse que ia matá-lo?" "É claro que lembro", ele

respondeu. "Nunca vou me esquecer daquele momento."

"E foi o que fiz", continuou ela. "Eu não queria que o garoto que

matou meu filho continuasse vivo nesta terra. Queria que ele

morresse. Foi por isso que comecei a visitá-lo e a lhe levar coisas.

Foi por isso que eu lhe consegui o emprego e o trouxe para morar

aqui em casa. Foi assim que comecei a modificá-lo. E aquele outro

menino se foi. Então, agora que meu filho se foi e aquele assassino

se foi, quero lhe perguntar se você quer ficar aqui. Tenho espaço e

gostaria de adotá-lo, se você quiser." E assim ela se tomou a mãe

do assassino do filho, a mãe que ele nunca tinha tido.

PERDÃO E BOA INTENÇÃO

Essa história nos remete à jornada de Nachiketa e ao perdão, seu

primeiro pedido ao Senhor da Morte. Na mandala da totalidade,

somos chamados à pratica do perdão. Temos que encontrar perdão

no coração, especialmente para a família e para as pessoas mais

próximas. Só então é possível trazê-lo ao mundo. Podemos praticar

através da meditação budista ou, como Jesus nos ensinou,

"oferecendo a outra face", ou buscando a "misericórdia de Alá", mas

o importante é aprender a perdoar a nós mesmos e aos outros.

Booker T. Washington enunciou essa idéia com simplicidade: "Não

deixe que eles o humilhem a ponto de odiá-los." Perdão é a

capacidade que o coração tem de se livrar das dores do passado

para seguir em frente.

Há muito a aprender sobre desapego e amor. A família pode ser o

solo onde floresce essa sabedoria. Já ouvi muita gente dizer: "Eu

tinha medo que minha mãe morresse antes que eu conseguisse lhe

dizer o quanto a amo. Finalmente consegui." Ou: "Foram anos de

sofrimento, mas finalmente eu me reconciliei com o meu irmão." O

perdão oferece a misericórdia do coração, que a mágoa e o medo

negaram por tanto tempo.

É na ternura e na tolerância que o nosso caminho fica completo. É

na reconciliação e no amor das pessoas próximas que o espírito da

família humana cresce até abraçar nossa verdadeira família: tudo o

que vive. Despertamos como parte de uma outra família.

Ishi in Two Worlds é o notável relato de um dos últimos índios Yana,

da Califórnia, que teve a ajuda dos antropólogos Theodora e Alfred

Kroeber. Ishi conta histórias da vida do seu povo, que desapareceu

desta terra. Mas uma das histórias mais comoventes não faz parte

do livro. Ishi revelou aos Kroeber inúmeros ensinamentos e canções

a respeito da natureza, mas havia uma canção sagrada que ele

tinha jurado nunca ensinar para ninguém de fora da tribo. Era a

canção cantada para os moribundos, que lhes permitia voltar para a

família, encontrar o caminho para a terra dos ancestrais. Ninguém

de fora podia aprender esse caminho. Mas Ishi estava sozinho no

final da vida; era o último membro da tribo. Precisou, então, ensinar

seu último segredo aos Kroeber, para que eles cantassem e ele

encontrasse o caminho de volta para o seu povo.

No fim, por mais solitária e resguardada que tenha sido a nossa

vida, precisamos uns dos outros como membros de uma família.

Para encontrar o caminho, precisamos do coração e das canções

uns dos outros.

15

MUITOS IRMÃOS E IRMÃS:

AS DÁDIVAS DA COMUNIDADE

A jóia da comunidade, Sangha, deve ser igualada ao Buda e ao

Dharma...

Na verdade, a plenitude da vida sagrada é realizada através da

amizade espiritual.

BUDA

Os santos são o que são, não por causa de sua santidade, mas

porque o dom da santidade permite que admirem todo mundo.

THOMAS MERTON

Você acha que não consegue criar nada de original? Não se

preocupe. Faça uma xícara de barro para que seu irmão possa

beber.

RUMI

Histórias como a de Jesus e do Buda, dos xamãs e dos sábios,

começam em geral com uma busca solitária: sozinhos no deserto

ou na floresta, buscam a compreensão sagrada do dilema humano.

Mas as histórias continuam. Quem supera o eu individual e entra

em contato com a eternidade, volta naturalmente para a

comunidade. É perto dos outros que a realização do coração se

expressa e atinge a maturidade.

No Budismo, o praticante tem o amparo do Tesouro Triplo: Buda,

Dharma e Sangha. O Buda é uma fonte de sustento porque seu

despertar representa o potencial de todos os seres para o

despertar. A segunda fonte é o Dharma, que representa os

ensinamentos e a verdade eterna que trazem a liberação. O terceiro

tesouro, Sangha, é a comunidade de seres despertos e de todos os

que praticam o dharma.

"Sangha" significa comunidade espiritual. É um dos tesouros,

porque sem ele o despertar não se sustenta. Sangha traz os

ensinamentos e reconhece que não podemos despertar sozinhos. O

mundo da prece e da prática espiritual se sustenta através de

professores, de amigos espirituais e da comunidade. Praticando,

participamos do processo que alimenta o despertar dos outros. Os

momentos de compaixão ou compreensão que despertamos

transbordam para nossa família, para nossa comunidade, para

nosso mundo.

No Judaísmo, a comunidade do sagrado é reverenciada no minian,

o número mínimo de judeus necessário para oficiar uma cerimônia.

Ela é a sagrada comunhão dos sufis, o satsang do Hinduísmo, o

amor sagrado dos cristãos:

"Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome... " Tenha a

forma que tiver, a verdadeira comunidade é essencial na vida

espiritual.

DO ISOLAMENTO À COMUNIDADE

Um velho rabino hassidim perguntou a seus pupilos como saber

quando a noite termina e o dia começa, pois essa é a hora de

algumas preces sagradas. Disse um aluno: "É quando dá para

enxergar um animal a distância e saber se é um carneiro ou um

cachorro?" "Não", respondeu o rabino. "É quando dá para enxergar

as linhas da palma da mão?" "É quando dá para saber se uma

árvore distante é uma figueira ou uma pereira?" "Não", respondeu o

rabino. "Então quando é?" perguntaram os pupilos. "É quando

olhamos para o rosto de qualquer homem ou de qualquer mulher e

conseguimos ver que é nosso irmão ou nossa irmã. Até esse

momento ainda é noite."

À medida que a vida espiritual vai amadurecendo, passamos da

sabedoria da transcendência - a iluminação espiritual além do

mundo - para a sabedoria da imanência. Descobrimos que o

sagrado está sempre aqui. Os ciclos naturais da vida espiritual que

nos conduzem à solidão mística acabam nos trazendo de volta para

algum tipo de comunidade. Nos relatos zen, aquele que conseguiu

domar o boi sagrado tem que voltar ao mundo com suas dádivas.

Nem sempre é fácil voltar, principalmente porque nos tempos

atuais, e em nós mesmos, o espírito de verdadeira comunidade se

perdeu. A vida contemporânea é marcada pela atomização: cada

um corre numa direção. Na sociedade moderna, as forças

individualistas são visíveis: uma pessoa em cada carro, casas com

um quarto para cada pessoa, escritórios onde cada um trabalha

num terminal de computador, crianças criadas na frente da

televisão. O moderno individualismo norte-americano acarreta o que

Marian Wright Edelman chama de "sacrifício da comunidade e de

nossas crianças". Como voltar para o mercado com "as mãos

cheias de dádivas", como sugere a história do boi? Não é fácil.

Em geral, ocidentais que passam longos períodos em retiros

budistas ou hindus costumam ficar confusos e isolados. É comum

que participantes de retiros e yogues falem das dificuldades e

conflitos que encontram quando voltam para a complexidade e para

as aflições da vida moderna. A chave para unir esses mundos é a

amizade espiritual. A amizade compassiva é uma das dádivas mais

importantes que podemos oferecer a alguém.

Como diz um professor de meditação:

"Depois de cinco anos de retiro e de incríveis experiências de

meditação, voltei para Seattle. Minha perspectiva tinha mudado,

tornando-se muito diferente da perspectiva das pessoas à minha

volta. No começo, eu achava a cidade divertida mas frenética. Não

sabia como juntar o mundo interior e o exterior. Então, fui ficando

cada vez mais oprimido e sozinho, sentindo-me perdido e um pouco

maluco. Precisava muito de amigos espirituais. Quando os

encontrei, eles me ajudaram a atravessar aquele ano difícil.

Lembre-se disso quando os tempos estiverem difíceis. Não se

esqueça da amizade espiritual - é isso que eu tenho a dizer de mais

importante."

Para sustentar a vida espiritual precisamos dos olhos e do coração

uns dos outros, assim como precisamos de ajuda para produzir

alimento e abrigo. Essa

reflexão não é sem importância. Como diz Adrienne Rich:

"Autenticidade e respeito não são coisas que surgem por si

mesmas: têm que ser criadas entre as pessoas."

Sangha e a amizade espiritual assumem formas surpreendentes.

Ao longo dos anos, participei de uma série de retiros para jovens de

bairros pobres. Em geral, esses jovens são membros de gangues

que estão descobrindo um caminho para voltar desse ambiente de

desespero, racismo, pobreza e violência. É sempre um amigo, um

mentor, um benfeitor que dá início a essa volta. É alguém que, por

um momento que seja, enxerga as possibilidades do jovem: uma

avó, um funcionário da escola, um professor, um tio, um vizinho.

Quando alguém nos enxerga de verdade e nos respeita,

recordamo-nos de quem somos. Não é bom subestimar a

importância do despertar que trazemos uns aos outros.

Não são só os jovens de rua que precisam de companhia no

caminho. Encarregados de centros de retiro dizem que os

participantes em geral são famintos de amizade espiritual, o que faz

que os monges e as freiras se sintam ainda mais gratos pelas suas

comunidades. A comunidade é uma bênção.

Um lama ocidental descreve esse aspecto da prática:

"No retiro de três anos, fomos deixados juntos no centro, os quinze

participantes, como recém-casados abandonados numa região em

guerra. A intensidade foi a mesma. Viver tão perto dos outros

suaviza nossas arestas: não dá para nos enganarmos porque os

outros nos vêem com mais clareza do que nós mesmos. Esse foi

um período que trouxe muita união. De certa forma, a vida coletiva

teve tanto valor quanto as outras meditações. Um momento depois

do outro, ela deu vida aos ensinamentos de compaixão.

Agora, minha prática principal é comungar, reconhecer o espírito

vivo em todos, em tudo, e não apenas nas pessoas de paz. Vemos

a luz brilhando nos olhos de cada pessoa, em cada animal, em

cada folha, em cada flor, em cada gota de orvalho, em cada torrão

de terra. Nos mosteiros, as pessoas não são mais iluminadas do

que no resto do mundo. É igual em toda parte. A espiritualidade não

se limita ao topo das montanhas. Espiritualidade é ver o sagrado

bem aqui, celebrar e afirmar a perfeição bem agora. Quando

reconhecemos a verdade, até mesmo os inimigos nos mostram

como despertar."

A COMUNIDADE TAMBÉM É DIFÍCIL

A comunidade, por mais importante que seja para a plenitude da

vida humana, não é fácil. Viver com outras pessoas traz

dificuldades de todos os tipos. Quando nos aproximamos o

suficiente para oferecer amor e amparo, os condicionamentos

familiares, os medos, as necessidades e as limitações também se

manifestam. Ficam bem ali, diante do nosso nariz. É possível evitar

o conflito nas preces e meditações, mas na comunidade é melhor

nem tentar: o conflito é inevitável.

Ao descrever comunidades espirituais, alguns textos antigos falam

de harmonia, de "viver juntos como leite e água, olhando-se com

olhos bondosos".

Mas os relatos de problemas são mais freqüentes nesses textos

antigos. Contos hassídicos falam de conflitos entre os membros da

comunidade, entre professores e alunos. As antigas histórias cristãs

falam de conflitos e lutas na comunidade e as epístolas de São

Paulo estão cheias de conselhos para resolver esses problemas.

Os primeiros sete volumes das escrituras budistas, dedicados

inteiramente ao tópico da comunidade espiritual, trazem centenas

de relatos de conflitos entre monges e freiras, mesmo durante a

vida do Buda. Houve o primo ciumento do Buda, que tentou

assassiná-lo. Tempos depois, os monges de Kosambi tiveram uma

discussão tão séria que nem deram ouvidos ao Buda, que acabou

desistindo. Ele foi para a floresta e viveu algum tempo entre os

animais, deixando que os monges resolvessem sozinhos seus

problemas.

Uma professora hindu fala de sua relutância, sempre que chegava o

momento de entrar numa comunidade.

"Depois de anos na Índia, voltei e acabei me tomando uma líder de

retiros de yoga muito conhecida. Eu voava de uma cidade para

outra e as pessoas viviam dizendo: 'Vamos fundar uma comunidade

permanente de yoga.' Mas eu nem ouvia. Alguns amigos criaram

um ashram, mas eu continuei a viajar para ensinar. Acabei

entendendo que não queria uma comunidade, ainda mais no papel

de professora. Era uma responsabilidade muito grande, era difícil

demais ficar perto de tantas pessoas. Acho que a idéia evocava a

vida infeliz da minha família. Para mim, a proximidade era uma

coisa penosa e sufocante. Eu não estava preparada."

Querer que na comunidade todos os relacionamentos sejam ideais,

espirituais, amistosos e iluminados, é buscar o que não se pode

esperar nem da própria mente. Não é realista querer a companhia

dos outros sem sofrer. Mas quem evita os relacionamentos

próximos também sofre. Numa boa comunidade espiritual, cada um

aceita as próprias dificuldades e todos se ajudam. Às vezes somos

nós que trazemos a bênção da compreensão e do amor. Mas às

vezes, somos nós que trazemos conflito e transtornos para o grupo.

Isso também é uma dádiva e os outros podem aprender com ela.

Nessa trama desempenhamos os dois papéis, mudando

periodicamente de uni para o outro.

Quem procura uma comunidade espiritual em busca de paz vai

enfrentar o fracasso. Mas quem vê a comunidade como um lugar

para amadurecer a prática da serenidade, da paciência, da

compaixão e da convivência consciente com os outros, encontra

nela um solo fértil para o despertar. Um mestre zen coreano dizia

aos alunos que a prática na comunidade era como ficar girando

uma panela cheia de batatas até gastar as cascas.

Na comunidade, nós nos tomamos espelhos uns dos outros. Como

disse uma velha freira:

"Na minha segunda comunidade, havia apenas doze freiras. De

duas delas eu não gostava. Uma era preguiçosa e a outra absorvida

em si mesma. Um dia, depois de um ano na comunidade, eu estava

na cozinha me queixando para uma amiga, que disse: 'Elas não são

más pessoas. Do que você não gosta?' Eu disse: 'Uma é

preguiçosa e a outra cuida demais de si mesma.' Disse ela: 'E você

devia ser mais preguiçosa e cuidar mais de si mesma!'

Nossa formação espiritual era coletiva, assim como nosso

treinamento. Não tínhamos muito tempo para a prece individual e

nossa vida privada era quase toda submetida à comunidade. Sob

muitos aspectos, isso era uma provação e exigia muita confiança,

pois sacrificava muitos desejos. Não era como os treinos solitários

dos cristãos e budistas, em que cada um fica às voltas consigo

mesmo. Para nós, a comunidade vinha em primeiro lugar. Anos

depois, a pessoa emergiria daquele mundo de prece e dedicação.

Mergulhar no treinamento, aceitar a dificuldade como uma dádiva,

nos trazia o êxtase. Era uma dádiva aproximar-se com outras almas

de uma meta grandiosa.

Ainda gosto de encontrar irmãs que passaram por esse despertar

coletivo. Aprendemos a ficar juntas no nível do coração. Para ter

uma vida espiritual completa, temos de aprender a viver uns com os

outros."

Esses relatos não significam que é necessário abandonar o

emprego ou a família para ir em busca de uma comunidade

monástica. Temos oportunidade de aprender sobre comunidade o

tempo inteiro. Há outras pessoas à nossa volta que podem nos

apontar nossos preconceitos, medos e fixações e nos mostrar o

caminho para um coração aberto.

Um oficial militar que estudava meditação num curso de redução do

stress, fez essa descoberta no supermercado, num dia de grande

movimento. Ele estava na fila, logo atrás de uma mulher que

segurava um bebê. Apesar de ter só um pacotinho na mão, ela se

recusava a passar para a fila do caixa rápido. O oficial, que tinha o

hábito da impaciência, começou a ficar aborrecido com ela. E ficou

ainda mais nervoso quando a moça do caixa começou a brincar

com o bebê. A mulher chegou a dar o bebê para a outra segurar.

Ele foi ficando cada vez mais tenso, com raiva do aparente egoísmo

da mulher. Mas como tinha acabado de sair da aula de meditação,

percebeu o que estava fazendo consigo mesmo e começou a

respirar mais tranqüilamente e a relaxar. Chegou até a notar que o

bebê era bem engraçadinho. Quando chegou a sua vez de pagar, já

estava tão calmo que comentou com a moça do caixa: "Que menino

bonito!" Ela sorriu: "Obrigada. É meu. Sabe? Meu marido era da

força aérea e morreu no ano passado num desastre de avião. Agora

minha mãe toma conta do bebê e o traz aqui uma vez por dia para

me ver."

Julgamos os outros sem saber o que trazem no coração. Para

despertar para a graça e para a presença sagrada, temos que ter

por todos o respeito que teríamos por um grande professor. Os

Budas babacas, zangados, inconvenientes e apressados à nossa

volta podem nos ensinar serenidade, equanimidade e compaixão.

Somos os grãos para os moinhos uns dos outros.

Um grande amigo meu, o psiquiatra e pesquisador da consciência

Stan Grof, conta um caso que se passou pouco depois de sua

chegada aos Estados Unidos. Através do seu trabalho na Johns

Hopkins Medical School, Stan conheceu um psiquiatra de origem

indígena, que o convidou a visitar com outros médicos a sua roda

de peiote, no Kansas.

Quando chegaram, foram levados planície a dentro para conhecer o

chefe que preside as cerimônias da Igreja Americana Nativa. O

chefe já tinha concordado com a visita, mas os outros índios

estranharam a presença dos brancos. Só depois de muita conversa

e em consideração à longa viagem que tinham feito eles puderam

participar. Afinal, o preconceito contra os índios, as perdas

monumentais da cultura indígena e o genocídio nas mãos dos

brancos eram fatos recentes. Apesar de todos terem concordado

com a presença deles, um dos homens continuou agarrado à sua

raiva, achando que os brancos tinham vindo roubar o último tesouro

indígena, seu ouro espiritual. Durante a cerimônia, que durou a

noite inteira, com o estado de espírito acentuado pelo peyote e

pelos tambores, o homem ficou com os olhos fixos em Stan, que

estava sentado à sua frente na roda. Amanheceu e ele ainda não

tinha amolecido, mesmo depois de uma noite inteira de preces.

Parecia que era assim que aquilo ia terminar - num impasse.

Finalmente, na última rodada de bênçãos, o psiquiatra anfitrião

agradeceu à tribo por ter recebido os curadores brancos em seu

meio, especialmente Stan, que vivia no exílio porque os comunistas

não o deixavam voltar para sua casa na Checoslováquia. No

mesmo instante, o rosto do homem zangado mudou. Ele se

levantou, passou pela fogueira e caiu nos braços de Stan,

soluçando. Abraçou Stan e os outros, pedindo desculpas pelo seu

ódio equivocado.

Chorando, foi contando sua história. Ele tinha pilotado um

bombardeiro da força aérea na Segunda Guerra Mundial. Nas

últimas semanas da guerra, já depois da retirada dos nazistas, seu

avião tinha bombardeado sem necessidade a cidade de Pilsen, uma

das mais bonitas da Checoslováquia.

Agora o feitiço tinha virado contra o feiticeiro. Stan e os checos

nunca tinham roubado terra dos índios, mas ele, um índio

Patowatame, tinha contribuído para a destruição da terra natal de

Stan. Ele era o carrasco e o povo de Stan a vitima. Essa descoberta

foi demais para ele. Ele não parava de abraçar Stan, implorando

perdão, pedindo desculpas por sua atitude durante a cerimônia.

Então fez uma pausa para contar o que havia aprendido: "Vejo

agora que não pode haver esperança para o mundo se odiamos o

que os nossos ancestrais fizeram. Agora eu sei que vocês não são

meus inimigos, mas meus irmãos. Tudo o que aconteceu antes

pertence ao tempo dos ancestrais. Quem sabe - naquela época eu

podia estar do outro lado. Somos todos filhos do Grande Espírito.

Nossa Mãe Terra está em dificuldades e, se não trabalharmos

juntos, morreremos."

RECONHECER O BUDA UM NO OUTRO

Segundo a mitologia budista, cada nova era é servida por um Buda,

que traz ensinamentos perfeitos para o momento. Maitreya, o Buda

do Amor, é o nome dado ao próximo Buda que vai aparecer na

terra. Mas o Mestre Zen Thich Nhat Hanh disse que esse Buda

pode não aparecer em forma de uma única pessoa iluminada. Diz

ele que, como compreendemos cada vez melhor a

interdependência, "o próximo Buda pode ser o próprio Sangha".

Isso significa que, coletivamente, vamos ajudar uns aos outros a

despertar.

Um cartom de um jornal de San Francisco mostra um homem

andando na rua com uma tabuleta que diz: ':Jesus está vindo." Meio

quarteirão adiante, um homem de aparência asiática traz outra

tabuleta: "Buda Aqui Agora." Na maturidade espiritual, sabemos que

Buda e Jesus estão aqui agora em todos os que encontramos,

incluindo o homem da outra tabuleta.

Há uma prática tradicional: ver todos os seres como o Buda, ver

Cristo em cada um de nós. O Rabino Hillel dizia que há uma prática

que resume todas

as palavras sagradas: "Ame a Deus amando o próximo." É o que

explica o Mestre Zen Dogen: "Ser iluminado é ser intimo de todas

as coisas."

Completamos o círculo: voltamos à arte da prosternação, do

respeito à vida como ela é. É uma prática para estudantes, abades,

lamas, iniciantes e decanos: ver cada ser como nosso irmão ou

irmã.

A insensatez dos outros, a frustração, a culpa, o conflito, a luta e a

provação podem ser enfrentados com uma prosternação. Essas

coisas vêm a nós como Mara foi ao Buda, despertando-nos mais

uma vez para a compaixão. Disse Mahatma Gandhi: "Os únicos

diabos do mundo são os que circulam no nosso coração. É lá que a

batalha tem que ser travada."

Há vários anos, numa série de aulas que Ram Dass deu em

Oakland, os participantes discutiram a possibilidade de ver o Divino

em todas as pessoas. Depois de algumas semanas, uma mulher

levantou-se e disse que costumava pôr todos os dias algumas

moedas no chapéu de um sem-teto mas que, com as aulas, tinha

percebido que nunca olhara para ele. Essa descoberta a

surpreendeu: "Se eu o olhasse nos olhos, na semana seguinte ele

estaria dormindo no sofá da minha sala. Era disso que eu tinha

medo."

No começo temos medo. Quando nos abrimos para os outros, como

não sucumbir ao seu sofrimento? Parece impossível que caiba tanto

sofrimento no nosso coração. Ou temos medo de precisar abrir mão

de tudo, até de nós mesmos. Mas isso não é necessário. Basta a

nossa atenção e a nossa compaixão, que nos permitem incluir no

coração as alegrias e tristezas de nossos irmãos e irmãs. Quando

vemos o Buda que vive em todos os seres, a reação é sábia e

natural.

OUVIR COM COMPAIXÃO

Ouvir com compaixão é a chave para transformar o mundo. Num

ato diplomático pela paz, Gene Knudson-Hoffman, e outras pessoas

vindas de religiões diferentes, quaker, budista e judaica, fundaram o

Projeto da Atenção Compassiva. Dedicado à paz mundial, o projeto

já enviou emissários a várias partes do mundo na tentativa de

compreender personalidades isoladas e divergentes. Visitaram

Mu'ammar Qaddafi na Líbia, ouviram todos os lados envolvidos nas

revoluções da América Central, ouviram as facções mais fanáticas

da Ásia e do Oriente Médio. Eles acreditam que, dando atenção

profunda às aflições e problemas dos outros, os conflitos vão se

modificar.

No Tao, isso é "ouvir com o coração de maneira a encontrar o

Caminho". Essa compaixão, esse ouvir, abrange também as nossas

lutas. Nós nos entregamos demais só quando esquecemos que o

círculo da compaixão nos inclui também. Com sabedoria e

compaixão, descobrimos o que é certo para os outros e para nós

mesmos. Despertamos no coração a capacidade de compreender

tudo o que é humano. Percebemos que somos uma parte de tudo o

que vive. Essa verdade faz com que o coração compassivo fique

mais forte.

Vários anos depois da violenta insurreição de 1993 em Los

Angeles, eu me juntei a Malidoma Somé, Luis Rodrigues e Michael

Meade para organizar uma série de retiros multiculturais com o

objetivo de tratar da dificuldade de diálogo entre as raças. Nesses

retiros, uma centena de homens das comunidades negras e latinas

de Watts e da região oeste de Los Angeles se reuniram aos

participantes brancos para ouvir os ensinamentos, contar histórias,

falar abertamente e participar de rituais de cura. Nesses retiros, as

práticas das antigas tradições da África Oriental, dos índios norte-

americanos e dos anciãos budistas propiciaram a formação de um

terreno comum para a compreensão. Foi uma semana ardente e

apaixonada.

Um dos momentos mais acalorados foi quando um branco falou do

medo que teve quando o tumulto chegou a poucos quilômetros de

sua casa. O medo tinha sido tanto que ele comprou um revólver

para se proteger. No mesmo instante, alguns afro-americanos se

levantaram. "Quem você vai matar com esse revólver? Você sabe

que comprou essa arma para atirar nos negros!" Disse outro:

"Quem é você para falar de medo? Se quer ficar com medo, meu

irmão, é melhor olhar-se no espelho. Olhe para quem inventou a

metralhadora e as minas explosivas. Olhe para os donos das

fábricas de armas. Olhe para quem construiu as armas nucleares. E

usou essas armas. Olhe para quem trouxe vinte milhões de

pessoas para este país como escravos, para quem provocou as

maiores guerras nos últimos milhares de anos, para quem colonizou

o mundo. Se quer ficar com medo, olhe para os brancos. É melhor

vender o revólver, cara."

Vários brancos se levantaram para apoiar o homem do revólver,

falando aos gritos de defesa pessoal. Outros negros gritaram ainda

mais alto. A tensão foi aumentando. Parecia que a sala ia explodir.

Finalmente, Ralph Steele, um professor budista afro-americano de

dois metros de altura, se levantou. Em sua voz dava para ouvir os

ecos suaves da linguagem crioula de sua infância na Carolina do

Sul.

"Vivo no interior do Novo México, onde todos têm armas para caçar

e para se proteger. Mas eu não tenho arma. Já chega os tiros que

ouvi quando estava no Vietnã. Saíamos para fazer patrulhas ou

para invadir vilarejos e todos os dias alguém levava um tiro, alguém

que podia ser o meu melhor amigo. Em áreas desconhecidas,

alguns caras se assustavam ao menor movimento e começavam a

atirar. Depois a gente descobria que tinha atirado em mulheres e

crianças. Havia em nossa companhia seres humanos que gostavam

de atirar em outros seres humanos, até mesmo em mulheres e

crianças. Não sabíamos o que fazer com eles. Durante dois anos,

essa foi a minha vida.

Não é bom ter uma arma. Seja você quem for, não é bom ter uma

arma. Não é bom ter os sonhos, os pesadelos de quem usa uma

arma. Nem mesmo é bom ter a lembrança de uma arma na mão.

Depois, vive-se com isso a vida inteira."

Ralph acabou de falar e ficou olhando para a sala. Todos os outros

se sentaram. Ele tinha falado sem raiva e sem ficar na defensiva,

com uma compaixão maior do que a raiva e o medo que enchiam a

sala. Ficamos em silêncio por algum tempo.

Ouvindo com o coração, dando voz à verdade da compaixão, é

possível dirigir a energia do conflito para a paz. Em todas as

comunidades, em todos os relacionamentos, há frustração, culpa,

avidez, raiva e traição. Por mais iluminado que você seja, isso

sempre acontece. É nesse ponto que o contato com a comunidade

pode nos ajudar. Ao comparar Sangha ao Buda, Thich Nhat Hanh

nos lembra do que há de coletivo na sabedoria. Quando nós ou

nossa comunidade não conseguimos encontrar a graça da

compaixão, quem nos traz a verdadeira amizade espiritual pode

abrir os portões do céu.

É esse o poder das reuniões dos A. A., da Reunião Sufi da

Verdade, do Conselho Budista. Na nossa comunidade, conforme a

antiga tradição dos anciãos budistas, chegamos ao consenso

reunindo-nos regularmente em conselho. Acrescentamos ao

conselho o bastão dos índios norte-americanos e incentivamos a

simplicidade e a verdade espontânea. Quando surgem questões

difíceis, como resolver conflitos entre os professores, selecionar

assistentes ou estabelecer uma nova direção para o centro, nós nos

reunimos em conselho. Quem segura o bastão é ouvido sem

interrupções. Depois o bastão vai passando para os outros, para

que cada um tenha a oportunidade de falar tudo o que sente. Desse

ouvir respeitoso vem a cura, o consenso e uma nova direção. Há

anos esse conselho transmite, muito melhor do que qualquer um de

nós, a sabedoria da experiência coletiva.

Mesmo a distância, a amizade espiritual nos ampara. O analista

junguiano James Hillman fala do dissidente chinês Lu Qing, que

passou onze anos na famosa prisão nº 2 de Weinan. Durante dez

horas por dia, Lu era obrigado a ficar sentado, sem se mexer, num

banquinho de vinte centímetros de altura. Se fizesse qualquer

movimento ou falasse com os outros presos, ele apanhava. Ele

podia pôr fim a esse sofrimento: bastava assinar uma declaração

admitindo que suas idéias estavam erradas. Mas ele se recusou.

Mais tarde, quando lhe perguntaram como conseguiu ser tão forte,

Liu disse que não tinha assinado a declaração porque via sempre

diante de si o rosto dos amigos e da família. Sua ligação com essa

comunidade de seres não lhe permitiu traí-los.

O Gyari 14 é um grupo de freiras tibetanas, cuja idade varia entre

quatorze a vinte e um anos, que foram presas e espancadas pelo

exército comunista chinês por recitarem publicamente suas preces

e seus cânticos. Mas, mesmo na prisão, continuaram unidas na

determinação de cantar e de rezar livremente. Elas conseguiram

mandar para fora da prisão uma fita gravada com as preces que

cantavam, tiveram a pena dobrada, mas mesmo assim continuaram

irredutíveis. Escreveram: "Agradecemos o apoio de tantas pessoas

fora da prisão e nunca vamos esquecê-Ias." O mais notável é que

elas não rezavam para si mesmas, mas para o povo de seu pais - e

por seus captores. Num documentário que foi feito sobre sua

resistência, A Prayer for lhe Enemy, elas dizem numa carta

clandestina: "Fomos tratadas de maneira terrível. O que é certo

fazer? O que é possível fazer? Rezamos pelo inimigo."

Em nosso país, na nossa cidade, nos hospitais e nas cadeias há

muitas pessoas que precisam de nossas preces: quem está doente

e quem não está, prisioneiros e guardas. As preces dessas jovens

freiras se une às nossas. Oferecemos nossas orações;

compartilhamos a confiança na cura além de todas as aflições;

expandimos o círculo do nosso coração.

A INTENÇÃO DO CORAÇÃO

Na prática de todos os momentos, tomar consciência da intenção é

uma chave para despertar. Nossa reação a qualquer situação é

sempre precedida por uma intenção interior. A psicologia budista

ensina que a intenção é o que forma o karma. O karma, causa e

resultado de cada ação, vem das intenções do coração que

precedem cada ação. Quando as intenções são boas, o resultado

kármico é um, quando são gananciosas ou agressivas, é outro

muito diferente. Sem consciência, agimos inconscientemente por

hábito ou por medo. Mas, tomando consciência das nossas

intenções, percebemos se elas vêm do corpo de medo ou da

atenção cuidadosa.

Todas as tradições têm preces e meditações para despertar no

coração a melhor das intenções. Às vezes as intenções são gerais.

"Que as palavras da minha boca e a dedicação do meu coração

estejam a Seu serviço, Senhor." "Que cada atividade seja uma

prece." "Que meu coração ofereça amor-bondade e perdão."

"Prometo trazer o despertar para cada ser que eu encontrar em

pensamentos, palavras ou ações." A tradição judaica tem centenas

de preces que fomentam no coração a gratidão e o amor.

Mas às vezes as intenções se referem a um determinado dia ou

situação. "Que eu me lembre da respiração e me centralize todas as

vezes que surgir um conflito no dia de hoje." "Que eu trate todos os

meus colegas com bondade." "Que nesta semana eu consiga

mostrar à minha família o meu amor."

Em momentos de dificuldade, é esse ajuste da bússola do coração

que determina o resultado. Antes de falar ou de agir diante de um

desentendimento em família ou de um conflito na comunidade,

podemos tomar consciência da nossa intenção mais profunda.

Dependendo da intenção, até as palavras mais simples têm efeito

muito diferente. A pergunta "O que você quer dizer com isso?" pode

ser uma acusação ou um ato de humildade.

Observe como isso funciona numa conversa. Falamos movidos por

uma sutil vontade de controlar e de ter razão ou queremos

realmente ouvir e aprender? Quando ajustamos a mente na direção

da liberdade, as boas intenções nos ajudam a deixar para lá o que

nos bloqueia e nos fecha. Quando ajustamos o coração na direção

da compaixão, reafirmamos o amor a despeito das dificuldades.

Em vez de inflamar ainda mais uma situação ruim, descobrimos

como entrar em contato com o que é bom no outro. Sem ignorar a

dor e a injustiça, podemos buscar a sagrada beleza dos outros. A

prática espiritual pode ser muito simples: ver com olhos de

compaixão e agir com a mais sábia das intenções. Isso costuma ter

um efeito surpreendente. A esse respeito, Nelson Mandela disse o

seguinte: "Em geral, pensar bem demais das pessoas faz com que

elas se comportem melhor."

Não duvide da transformação que nasce dessa atenção consciente.

Certa vez, Ananda, ajudante e amigo do Buda, encontrou, num

poço da cidade, uma mulher sem casta. Educadamente, ele lhe

pediu um pouco d'água, mas ela ficou com vergonha e se recusou

para não contaminar com sua impureza um homem santo. Ananda

respondeu: "Eu não quero uma casta, só quero água."

Transformada por essa gentileza, com muita alegria ela seguiu

Ananda até o mosteiro. Lá, o Buda a abençoou e lhe pediu para

aceitar a gentileza de Ananda e preservar sua intenção, "deixando

que as ações de sua vida brilhem como as jóias da realeza".

É nas pequenas coisas que estão as lições do coração. É a partir

das intenções que nossa vida cresce. É quando nos abrimos uns

para os outros que nosso caminho fica completo.

COMUNIDADE É SERVIR AO DEUS AMADO

Madre Teresa "vê Cristo nos pobres e doentes". O poeta Rumi

busca o Divino "na face de tudo o que é separado". E, como sabe

que não existe nada além de Deus, ele ri e diz: "Por que lutar para

abrir uma porta entre nós quando a parede inteira é uma ilusão?" A

cada inspiração, a cada expiração, a cada bocado de comida, a

cada palavra que proferimos, expressamos o nosso interser com

tudo o que vive. Isso se tomou visível graças aos recursos de que a

tecnologia moderna dispõe, da Internet à CNN. O primeiro-ministro

de Israel, Yizak Shamir, gracejou: "A televisão tomou a ditadura

impossível e a democracia intolerável." Estamos todos nessa.

Diz um lama ocidental:

"Depois de treinar na Índia com meu guru, um Rinpoche muito

reverenciado, passei a ter muito respeito pela linhagem, pelo grupo

e pelos mestres que ele representava. Durante séculos, esses

homens tinham mantido no auge a realização budista, até que ele a

levou para fora do Tibete. Num de meus últimos dias com ele, eu

caminhava os seis quilômetros até sua casa, absorto na prática de

dar e receber compaixão, quando de repente minha compreensão

da linhagem se ampliou. A linhagem não era formada apenas por

grandes lamas, mas pelas mulheres devotadas que montavam

barracas ao lado da estrada para alimentar os peregrinos que iam

ver o lama. Pelos velhos pastores e pelos comerciantes tibetanos

que o visitavam e o sustentavam. Pela lavadeira que batia a roupa

no rio, pelo cozinheiro em sua cozinha, pelas ervas que cresciam no

jardim. O mundo estava a serviço do meu lama e ele estava a

serviço do mundo."

Existimos na mandala da totalidade em meio a um mar de Budas.

Para enxergá-los, basta abrir os olhos de amor e sabedoria.

Quando eu era jovem, meu amigo Gil Fronsdal viajou para o

Marrocos e entrou pelo deserto do Saara. Nessa ocasião, ele e um

companheiro foram recebidos numa tribo de beduínos, como era o

costume desses árabes nômades. Durante três dias eles lhes

ofereceram banquetes suntuosos e lhes dispensaram tantos

cuidados que Gil disse: "Eu me senti como se fôssemos reis." Mas

chegou a hora de agradecer e partir. Diz o meu amigo: "Quando

voltei para casa, percebi que eu não tinha entendido direito. Eram

eles a realeza; foram eles que nos mostraram a generosidade dos

reis."

Servir ao Divino é admirar todos os que estão à nossa volta, vê-los

como Buda, recebê-los como Cristo. Um bom exemplo é a maneira

de agir de Ajahn Jumnien, um de meus professores. Ele admira o

Buda em todos que chegam ao templo. Muitos homens tailandeses

são ordenados, e ele recebe cada postulante com admiração. Uma

vez, um campeão de boxe local veio para ser ordenado e Ajahn

Jumnien perguntou se ele queria ser seu guarda-costas. "Eu não

precisava de guarda-costas, mas ele me guardou com tanta

dignidade que acabou se transformando num bom monge." Em

outra ocasião, chegou um homem se vangloriando de sua

habilidade como construtor. Ajahn Jumnien sorriu e disse:

"Excelente. Faz tempo que precisamos de um novo salão de

meditação. O projeto é seu." Nossa nobreza floresce quando somos

admirados e respeitados.

Anos atrás, Ram Dass foi ver seu guru, Neem Karoli Baba, para

perguntar: "Qual é a melhor maneira de ficar iluminado?" O guru

respondeu: "Ame as pessoas." Então ele lhe perguntou qual era o

caminho mais direto para o despertar e o guru respondeu: "Alimente

as pessoas. Ame as pessoas e alimente as pessoas. Sirva o Divino

em cada forma." Kabir, o místico indiano, diz: "Há apenas uma

coisa que satisfaz o meu coração... servir a Ele cada vez que

respiro."

O serviço é a expressão do coração desperto. Mas a quem

servimos? A nós mesmos. Alguém perguntou a Gandhi como ele

conseguia se sacrificar tanto pela Índia e ele respondeu: "Faço isso

por mim mesmo." Quando estamos a serviço dos outros, estamos a

serviço de nós mesmos. Nos Upanishads, isso é "Deus alimentando

Deus".

Uma comunidade espiritual deve estar a serviço de alguma coisa

maior do que ela mesma. Quando as pessoas se juntam para aliviar

o próprio isolamento e a própria solidão, para ter suas necessidades

atendidas pelos outros, elas acabam transformando-se num bando

de crianças necessitadas e a comunidade fracassa. Mas quando

sua visão e sua criatividade estão a serviço do sagrado, de Deus,

do bem comum, a comunidade se toma sábia e saudável.

Diz um mestre Sufi:

"Quando fundamos nossa comunidade, sabíamos que as pessoas

se juntam por necessidades sociais, financeiras e políticas. Mas não

queríamos que essas necessidades fossem o ponto principal da

comunidade. Nós nos juntamos para rezar e servir a Deus, para

crescer de maneira realmente espiritual, para expressar coisas mais

elevadas do que nós mesmos. Queríamos impregnar de santidade

cada parte da vida, trazer essa santidade para brilhar no mundo."

Nos Estados Unidos, as gerações passadas compreendiam essa

atitude de uma forma hoje esquecida. A história do país é cheia de

exemplos de ajuda comunitária, da divisão de comida e sementes

em tempo de fome ao companheirismo espiritual.

Em tempos de tragédia, como a enchente nas Grandes Planícies há

alguns anos, há uma efusão de ajuda mútua que supera todas as

barreiras de raça e de classe. Quando a vida volta ao "normal", as

pessoas têm a esperança de preservar o espírito que as aproximou.

As comunidades de pioneiros e imigrantes sobrevivem em nós

como uma espécie de memória genética que não nos deixa

esquecer do que podemos ser uns para os outros.

Servir uns aos outros expressa a interligação sagrada e redesperta

a unidade perdida. Assim, quando olhamos nos olhos uns dos

outros, podemos ver o Divino que brilha em todas as coisas. Uma

praticante budista que trabalhava em asilos, lembra que era mais

ligada aos pacientes moribundos do que a qualquer outra pessoa.

"No começo, eu pensava que era por serem tão vulneráveis diante

da morte. Mas depois percebi que era porque dedico a eles vários

períodos por dia de meditação de amor-bondade. Quando

oferecemos seguidamente a alguém nossos melhores votos e

nossas orações, nosso coração se modifica. Nós nos

transformamos no amor que oferecemos."

Todos nós servimos a nossos irmãos e irmãs de inúmeras

maneiras. Servimos à família, à comunidade e à terra sempre que

paramos num farol vermelho, sempre que cumprimentamos alguém,

sempre que lavamos a louça, sempre que levamos o lixo para fora.

Seja qual for a nossa função - construtor, comerciante, jardineiro,

artista, professor, agente de cura, secretário ou vendedor - é

possível agir com compaixão, é possível encontrar o espírito de

Sangha e a liberdade.

Diz o mestre indiano Meher Baba:

"A extensão do serviço não se limita a atos heróicos, a grandes

gestos e a grandes doações para instituições públicas. Quem

expressa seu amor em coisas pequenas também presta serviços.

Tanto quanto o sacrifício heróico, é serviço a palavra que anima um

coração ferido ou o sorriso que traz esperança em meio à tristeza. E

também o olhar que apaga a amargura do coração, mesmo que não

haja a intenção de servir. São coisas que parecem pequenas, mas

a vida é feita de muitas coisas pequenas. Se essas coisinhas

fossem ignoradas, a vida, além de feia, ficaria insuportável."

O SERVIÇO CAPAZ VEM DE UM CORAÇÃO CALMO

A intenção sábia e o serviço capaz precisam ser alimentados por

períodos de quietude e prece. Todas as grandes tradições têm

algum tipo de Shabat. No Ocidente, herdamos o Shabat cristão e

judaico. O dia santo dos muçulmanos é a sexta-feira, e os hindus e

budistas renovam seus votos de simplicidade na lua cheia, na lua

nova, no quarto crescente e no quarto minguante. Quando eu era

jovem, o estado de Massachusetts adotava as "Leis Azuis" do

shabat, que determinavam a interrupção de todas as atividades no

domingo. Hoje, uma geração depois, os supermercados e bancos

vinte e quatro horas funcionam sete dias por semana. A sociedade

de consumo exigiu o direito de operar sem restrições. Essa é uma

receita para a destruição total.

O espírito do serviço mútuo precisa de um terreno diferente para

crescer - precisa de momentos de recordação e de oração.

Prestando atenção aos movimentos da respiração e às batidas do

coração, percebemos que há uma pequena pausa entre um

movimento e outro, entre uma batida e outra. Para bater durante a

vida inteira, o coração precisa de quietude para se recuperar antes

de cada batida. A maturidade espiritual também exige esses

períodos de Shabat, quando saímos do tempo comercial para o

eterno.

Temos que nos tomar o santuário que buscamos. Esse processo

pode começar com um dia de Shabat ou com um período diário de

meditação e prece. Às vezes, exige períodos regulares de silêncio

no local de trabalho. Ou significa reavaliar o estilo de vida, buscar a

Simplicidade voluntária, ficar mais tempo junta à natureza ou ir a

retiros periódicos. Ou desligar a CNN e ouvir Mozart. Em certos

momentos de dificuldade ou conflito, significa respirar fundo,

acalmar as batidas do coração, ouvir em silêncio as intenções mais

profundas. Com isso, nós nos lembramos da tarefa do nosso

coração na terra. Um professor e místico cristão conta:

"Vivi muitos anos numa comunidade pequena e bem protegida.

Quando achei que tinha chegado a hora de voltar para a sociedade

e servir, comecei um processo de integração: ia e voltava. Trabalhei

em hospitais para aidéticos e doentes graves. Mas uma vez por

mês eu voltava para a comunidade com o coração cheio de

saudade do silêncio. Eu entrava na fila quando era oferecida a

dádiva da comida e sentia que cada coisa, até a mais comum, tinha

um ar sagrado. Mas é sempre assim; esse é o mistério da graça. Eu

sabia que o importante não era só a prece e a meditação. Era ficar

em silêncio, parar e respirar, abrir o coração, ver que o planeta

inteiro e tudo o que há nele é sagrado. Quero levar essa beleza

comigo para todos com quem tiver contato. Assim, volto

regularmente ao silêncio. Sei que, se parar e me lembrar disso, a

vida vai cumprir sua promessa para mim."

Os momentos de quietude revelam a melhor maneira de amar e de

servir. Parando para ouvir, entramos em contato uns com os outros,

e nasce a verdadeira comunidade.

16

DESPERTAR COM TODOS OS SERES

O verdadeiro trabalho é tomar-se nativo no próprio coração,

compreender que é nele que vivemos, que ele é o continente em

que estamos, que nossa lealdade é a estas montanhas e rios, a

estas zonas de vegetação, a estas criaturas. O verdadeiro trabalho

envolve uma lealdade que tem... bilhões de anos. O verdadeiro

trabalho é aceitar a cidadania na própria terra.

GARY SNYDER

Todas as manhãs eu acordo dividido entre o desejo de salvar o

mundo e a inclinação a saboreá-lo.

E.E. WHITE

A mandala do despertar desata a trama da vida de tal maneira que

conseguimos sentir o fio solitário da nossa respiração em conjunto

com tudo o que vive. Na Índia, isso é "ver a Rede de Indra", que

tem em cada interseção uma jóia. Cada uma dessas jóias reflete

um individuo, que se entrelaça aos outros fios da existência. Cada

vez mais profunda, essa ligação com o mundo natural se transforma

numa realidade inegável, que traz consigo responsabilidade e

alegria. O Chefe Seattle disse: "O que é o homem sem os animais?

Sem eles, os homens morreriam de uma grande solidão do

espírito."

Da mesma forma, podemos perguntar: sem a terra, como faríamos

para andar e dançar? Sem as montanhas, onde reside a neve, onde

o leopardo da neve espreitaria em segredo? Quando abrimos o

coração, a terra inteira e seus seres passam a fazer parte da nossa

prática.

PRATICAR COM AS MONTANHAS E OS RIOS

Depois que viu a estrela da manhã e despertou sob a Árvore do

Conhecimento, o Buda começou a ensinar. Preferiu começar na

floresta, sob as árvores do Parque dos Cervos de Sarnath e não na

Cidade de Benares, a doze quilômetros dali. Foi pelo deserto que

Moisés conduziu seu povo, não em busca de cidades, mas de uma

terra de leite e mel. Jesus também ia para o deserto em busca de

solidão e, embora ensinasse nas cidades, voltava sempre às praias,

aos bosques de oliveiras, aos campos e jardins. Suas palavras

eram entrelaçadas às vidas dos pastores e pescadores, do leão, do

cordeiro e dos lírios. O mundo natural faz parte da sabedoria de

todas as tradições espirituais: é um lugar de refúgio e uma

manifestação da lei sagrada e natural.

Místicos budistas e católicos ainda praticam nas montanhas e

florestas. Ajahn Buddhadasa, que fundou um grande mosteiro na

floresta, diz que o mundo natural é nosso professor.

As partes do corpo - braços, mãos, pulmões, rins - funcionam como

uma cooperativa para sobreviver. Os seres humanos, os animais,

as árvores e a terra se entrelaçam, integrados como uma

cooperativa. O sol, a lua, os planetas e as estrelas são uma

cooperativa gigante. Despertando além do interesse pessoal,

descobrimos uma ecologia natural de mente e natureza, fresca,

aberta, alegre, onde somos organicamente ligados a todas as

coisas.

Não é a primeira vez que desenvolvemos a noção de uma cultura

ecologicamente sólida. Segundo um ensinamento tradicional do

Budismo Indiano, cada pessoa deve plantar uma árvore para cada

cinco anos de vida. Ashoka, imperador da Ásia e um dos

governantes mais sábios da História, criou seu império governado

pelos princípios da interdependência.

Um dia, lamentando uma batalha sanguinária no sul da Índia,

Ashoka viu um monge que caminhava tranqüilo no sangrento

campo de batalha. Observando-o, o imperador pensou: "Eu que

tenho tudo não sou tão feliz e tranqüilo quanto esse homem que

nada tem." Ashoka se tomou discípulo desse monge e o dharma

que aprendeu transformou sua terra num reino de honradez. Os

exércitos passaram a se dedicar à paz e não à guerra. Cresceu a

tolerância religiosa, a responsabilidade moral e a renúncia. O

imperador mandou cavar poços, estimulou o vegetarianismo e a

preservação das florestas, e promulgou leis que visavam o bem-

estar das pessoas e da terra. Pilares de pedra de dois mil anos com

editais de Ashoka ainda são encontrados em muitas partes da Índia.

Infelizmente, a sabedoria, assim como o ambiente, precisa de

cuidados constantes para florescer. Depois de Ashoka, os monges

e freiras da Ásia passaram a ter uma atitude passiva em relação à

interligação com a terra, pouco ligando para o meio ambiente. Nos

vilarejos e mosteiros do sudeste da Ásia, o lixo era jogado em

qualquer lugar. Enquanto eram só cascas de banana, deu para

viver; mas com o plástico começou o pesadelo. Os ensinamentos

dos mestres visavam a mente individual, dando pouca atenção à

responsabilidade pelo mundo natural.

Mas, quando a devastação das florestas da Tailândia, do Laos e de

Burma começou a se generalizar, os monges tiveram que se tomar

ativistas para salvar da ação predatória das madeireiras os últimos

redutos de vida selvagem. Faziam cerimônias em que envolviam as

árvores mais antigas em seus hábitos, ordenando-as abades da

floresta. Hoje em dia os monges são defensores da floresta,

salvadores do meio ambiente. No Ocidente cresce o movimento

ecológico cristão. Seguindo o exemplo de freiras e padres da

América Latina, Igrejas do mundo inteiro estão começando a cuidar

da integridade do mundo natural como parte do caminho de Deus.

Um grupo de freiras fala dessas mudanças em seu convento:

"Vivemos, durante muitas décadas, deliberadamente isoladas dos

problemas do mundo. Ainda hoje não nos envolvemos em política

nem em novidades.

Mas em 1978 começamos a reciclar. Em 1983, paramos de usar

pesticidas. Agora, quase todos os alimentos são orgânicos. E

minimizamos o uso de carros e peruas. O cuidado com a terra se

infiltrou aos poucos em nossas ações e preces. Educamos os que

nos visitam. Temos irmãs que se tomaram ativistas na América

Latina. Não que nossas preces a Deus fossem alheias a tudo, mas

agora as espécies ameaçadas, a floresta tropical e os agricultores

pobres pertencem ao trabalho sagrado como parte de nós."

O domínio humano e o domínio natural não são separados. Seja

estando conscientes da responsabilidade do nosso estilo de vida

pelo aquecimento global e pela poluição dos rios, seja prestando

atenção à origem dos alimentos, temos que ter os olhos abertos

para essa interdependência. Enquanto fazemos compras no

supermercado, podemos pensar nas nuvens de chuva que trazem o

alimento, no solo úmido em que ele foi cultivado e no trabalho

humano envolvido em seu trajeto até a nossa mesa. A poeta Alison

Luterman escreve:

Os morangos são delicados demais para serem colhidos por uma

máquina. Os bem maduros se machucam até com um toque

humano pesado demais... Cada morango que você já comeu - cada

pedaço de fruta - foi colhido por mãos humanas calejadas. Cada

pedaço de torrada com geléia representa os joelhos de alguém, as

costas e os quadris doloridos de alguém, alguém com uma bandana

na cintura para enxugar o suor.

No começo, a vida espiritual costuma se concentrar na

transformação de si mesmo e nos relacionamentos humanos. Mas

tem que haver um desprendimento que nos leve à nossa identidade

com as montanhas. Um professor de yoga faz a seguinte reflexão:

"Nos anos setenta, quando eu vivia na Índia, um de meus gurus

ensinava yoga numa cidade barulhenta, suja e poluída. Ele nos

ensinava a pureza interior mas nunca mencionava a miséria que

existia à nossa volta. Meu outro guru tinha um ashram no campo,

onde aprendíamos yoga, meditação e poderosas práticas

respiratórias para transcender o mundo. Mas também ali o ambiente

era negligenciado. Chocado, percebi que a consciência ecológica e

a yoga eram mundos separados. Achávamos que bastava ser

vegetariano. Agora, levo meus retiros de yoga a locais intocados e

procuro ensinar que a pureza da mente e a pureza dos rios e do ar

são interligadas. Tomou-se necessário viver com mais cuidado e ter

uma yoga-mundo para ligar conscientemente nosso corpo ao corpo

do mundo."

Joanna Macy, ativista e professora budista, observa que é através

de uma revolução espiritual, de uma "grande virada da consciência

humana", que vai haver essa transformação ecológica.

Até os nossos cientistas percebem que não existe aparato

tecnológico, não existe computador nem projétil mágico que consiga

nos salvar da explosão populacional, do desflorestamento, da

desorganização climática, dos venenos da poluição e da extinção

indiscriminada de espécies animais e vegetais. É preciso querer

coisas diferentes, buscar prazeres diferentes, perseguir metas

diferentes daquelas que até hoje impulsionaram a economia global.

Através do despertar espiritual, os valores do consumismo se

revelam cada vez mais superficiais e falsos. A ganância e a cobiça

dão lugar ao amor e à integridade, ao desejo de viver em harmonia

com toda a criação. Nasce a vontade de viver com mais

simplicidade pelo bem do próprio coração e cresce o senso de

responsabilidade pela vida da terra.

Mas essa transformação não é automática. Em todas as áreas da

mandala do despertar, é preciso enfrentar conscientemente os

hábitos e os condicionamentos. Uma professora fala de sua luta

diária:

"O sofrimento do mundo ainda é um violento dilema para mim. Não

passa um dia sem que eu fique chocada pelo tanto que precisa ser

feito. Ensino prática da contemplação há trinta anos e acho que é

no despertar interior que está a raiz, a possibilidade de transformar

a nossa existência centralizada em si mesma em algo belo para o

mundo. Mas às vezes parece que vai tão devagar, embora eu não

espere que essa prática transforme o reino do homem. Na Índia e

no Nepal, nas circunstâncias mais pobres que se possa imaginar, vi

também a total perfeição da vida e a realidade viva da liberdade. Vi

também, e ainda vejo, que há milhões de pessoas famintas, pobres,

doentes e um incrível número de seres necessitados. Eu faço o que

posso para ajudar. Procuro viver com simplicidade. Todos os dias

eu me pergunto se estou apoiando as causas certas, fazendo as

escolhas certas, se o que faço é suficiente."

Infelizmente, os Estados Unidos continuam sendo o maior

fabricante e o maior fornecedor de armas do mundo. E sabemos

que bastaria dez por cento do que o mundo gasta no mercado

milionário das armas para alimentar todas as nossas crianças,

todas as pessoas famintas da Terra. Vimos que a poluição cada vez

maior dos lençóis de água afeta cada um de nós. No estado de

Nova York, por exemplo, uma análise do leite das mães da tribo

indígena Mohawk revelou que o corpo humano tomou-se parte dos

aterros sanitários. O que fazer?

Os valores espirituais não nos obrigam a renunciar a tudo para viver

na simplicidade monástica e nem a voltar a viver da terra.

Precisamos de líderes espirituais na política, na medicina, na

justiça, em Wall Street, nas forças policiais - em todas as áreas da

vida. No Budismo, há a história de um ser iluminado, o bodhisattva

Vimilakirti, que encarnou de propósito como um rico homem de

negócios para levar a sabedoria ao mundo do comércio. Incansável,

ele entrou nos hospitais como paciente para ensinar compaixão aos

médicos e, depois, nos bares e bordéis, sempre levando os

ensinamentos. Nenhum domínio da vida humana estava fora do

alcance da sua compaixão.

Entrar de cabeça na vida para levar a graça a todos é uma idéia

nobre. Mas podemos nos enganar, acreditando que estamos

seguindo o exemplo de Vimilakirti. As riquezas que usufruímos na

moderna sociedade ocidental têm um custo muito alto: a exploração

de outras culturas, a colonização econômica de grande parte do

mundo, a devastação ecológica de habitats e espécies. Cada vez

que andamos de carro contribuímos para a poluição do mundo

inteiro e para o aquecimento global. O preço do combustível que

usamos a cada viagem de avião é assegurado pela política de

opressão no Oriente Médio e pela destruição das pastagens dos

caribus no Alasca. Os alimentos importados que consumimos a

preço tão acessível custam caro para os agricultores e para o solo

da Guatemala e do Brasil.

Em grego antigo, despertar é "alethe". O oposto de despertar não é

mal nem ignorância, mas "lethe", sono. Mesmo depois de algumas

experiências de despertar, podemos continuar cegos às

conseqüências da moderna maneira de viver. É triste, mas a

compreensão ecológica e a interdependência não fazem parte da

maioria dos currículos espirituais tradicionais. Temos que nos

educar para enxergar o custo invisível de nossos atos, até que a

nossa vida exterior esteja em harmonia com os verdadeiros valores

do nosso coração.

Para ter dignidade nos tempos de hoje, temos que estender o

"inventário moral" ao nosso estilo de vida. O Caminho Óctuplo do

Budismo inclui Pensamento Correto, Ação Correta, Fala Correta,

Modo de Vida Correto. Será que a nossa maneira de viver - nosso

trabalho, nossa casa, nossas finanças, nossas viagens, nosso nível

de consumo, nossa participação política e social - está em harmonia

com a compreensão que temos hoje de interdependência? Em que

direção nos leva a preocupação com a terra e a compreensão da

interdependência? Como fazer para mudar, não por culpa, mas por

amor? Começamos a transformação pelo simples fato de fazer

essas perguntas.

VER COM OS ANIMAIS, OUVIR COM OS RIOS

Às vezes temos de sair da consciência que gira em torno do

humano. Com o objetivo de ampliar a consciência de interser, o

ambientalista John Seed criou um grupo de meditação chamado

"Conselho de Todos os Seres". Esses conselhos já se reuniram no

mundo inteiro. Reunidos em locais de grande beleza natural, os

participantes fazem caminhadas procurando entrar em contato com

uma determinada parte da terra - uma montanha, um rio, uma

planta, um animal, uma garça, um pinheiro, um bisão ou uma

esporinha - que tenha algo a dizer. Então, depois de fazer máscaras

ou fantasias que representem a parte da terra que escolheram, eles

voltam a se reunir em conselho.

Cada pessoa fala na voz da espécie ou do lugar que escolheu. "Sou

uma gaivota e falo pelas aves aquáticas." "Sou uma montanha e

falo pelos rios do mundo." Depois de todos se apresentarem,

começam a levar suas preocupações para o conselho. Os seres

humanos são representados por alguns membros do grupo, que

são convidados a sentar no centro e ouvir.

"Como ganso selvagem, quero dizer ao conselho que minhas

longas migrações ficaram difíceis porque os pântanos estão

desaparecendo. E a casca dos meus ovos estão finas e

quebradiças, quebram antes que meus filhotes estejam prontos

para sair. Eu acho que existe algum veneno nos meus ossos." O

conselho reflete sobre isso.

"Humanos! Eu falo como o rio, aquele que traz a vida. Vejam só o

que trago agora que vocês despejaram lixo e venenos em mim...

Agora eu transporto a doença e a morte." O conselho continua a

ouvir.

Depois que todas as outras espécies tiveram a sua vez de falar, os

humanos falam. Em geral, expressam seu pesar pela ganância da

espécie humana, que desencadeou forças agora fora de controle.

As tristezas da terra expressas no conselho reanimam a

preocupação pela sorte de todas as espécies.

Os seres humanos são convidados, então, a pedir ajuda ao vasto

mundo da natureza. Os não-humanos oferecem força e sabedoria:

as montanhas oferecem paz constante, o falcão seus olhos

sagazes, o coiote sua cri atividade brincalhona, a flor do campo um

perfume que evoca a beleza, o velho pinheiro sua persistência

incansável.

Como no conselho, em qualquer lugar é possível aprender com a

natureza. As plantas, os animais e os rios nos trazem sabedoria e

apoio' eles nos trazem o Dharma. O grande professor zen Mestre

Dogen disse uma vez: "Em cada bambu todos os Budas existem."

Mas se fosse transportado de seu país natal para o nosso quintal,

em desrespeito à sua tenacidade e beleza, esse buda-bambu logo

se transformaria no flagelo da vizinhança. Seja transportando

bambus ou represando rios, para viver com sabedoria no mundo

natural temos que respeitar seu poder e integridade, sem achar que

podemos ajustá-lo à nossa conveniência. Os monges que vivem na

floresta de tecas amam a beleza e a sombra dessas árvores, mas

também respeitam a força do tigre, o veneno da cobra e as febres

da malária que o ambiente traz. Todos são seus professores.

O CAPIM E A ÁRVORE COMO PROFESSORES

Os Anciãos da tradição da floresta nos dizem para ficar junto à

natureza. Começamos a transformar o espírito sempre que saímos

para uma caminhada e sentimos o cheiro dos loureiros depois da

chuva, sempre que paramos para admirar os marmeleiros na

primavera, os bordos em fogo no outono, um certo tom de rosa no

crepúsculo, os lírios brotando na varanda do vizinho, os últimos

ruídos dos animais antes do assombroso silêncio da noite que cai

nas montanhas. Renovamos a vida espiritual sempre que voltamos

para o mundo natural e sentimos a beleza que nos gerou e os ciclos

indômitos, muito mais vastos que os nossos planos. Dessa forma, o

cuidado pelo mundo não-humano cresce não por obrigação mas por

amor, gratidão e respeito pela trama da criação, uma incessante

santidade.

Cuidando desta terra, nós nos tomamos parte do seu despertar.

Como escreveu Ralph Emerson: "Apreciar a beleza e descobrir o

que há de melhor nos outros; deixar o mundo um pouco melhor,

seja através de um filho saudável, de um canteiro de jardim, de uma

condição social resgatada; saber que ao menos uma vida respirou

melhor porque você viveu, isso é ter tido sucesso."

Cuidar do mundo natural é uma forma de cuidar do mundo humano.

O Projeto Horta na Prisão, de Cathy Sneed, mostrou que aceitar a

interligação com a totalidade da vida traz benefícios incríveis. Em

1984, preocupada com a morte da alma de homens atrofiados pela

vida na prisão, ela criou um projeto: uma horta que seria cultivada

por todos eles. Assim, os presos da prisão municipal de San

Francisco começaram a cultivar verduras e legumes num canteiro

atrás de um dos pavilhões. Angariando fundos, ela conseguiu

comprar sementes, adubo e ferramentas.

Cultivar uma horta com as próprias mãos, eliminar insetos e pragas

e observar seu crescimento revelou o melhor nessas pessoas

rejeitadas, que viram despertar uma ligação com alguma coisa fora

de si mesmas. (Houve um machão que disse: "Não pise nos meus

bebês.") Os funcionários da prisão mal acreditavam na mudança. A

horta tomou-se tão importante para esses homens que sua vida

começou a girar em tomo dos canteiros que plantavam. De fato:

depois de sair da prisão, alguns cometiam pequenos delitos ou

violavam a condicional só para voltar a cuidar da horta...

O passo seguinte foi inevitável: uma horta para ex-prisioneiros e

hortas comunitárias para desprivilegiados em várias cidades da

região. O próprio projeto se transformou numa horta, em que se

colhiam pessoas. A oportunidade de plantar criou uma comunidade

com uma crescente preocupação pela terra. Esse foi o grande

beneficio. O cuidado dos jardineiros floresceu em seus corações

assim como nos canteiros da horta.

O mundo natural nos ensina a ter uma relação diferente com o

tempo, baseada em ritmos e ciclos diferentes dos nossos planos de

sempre. Alguns insetos vivem um único dia. Algumas plantas

florescem uma só vez num século. A mandala do despertar abrange

essas diferentes estruturas temporais e nos permite honrá-Ias em

nossa prática. Nós nos tomamos guardiões do ciclo da vida.

Os velhos índios norte-americanos ensinam que temos que planejar

"até a sétima geração". Este é um ensinamento que o antropólogo

Gregory Bateson ilustra com a história de um dos prédios da

universidade de Oxford, inaugurado em 1600. Nesse prédio, a

estrutura do telhado do salão principal era feita de enormes vigas

de carvalho, com mais de um metro de largura. Recentemente, os

encarregados da manutenção descobriram que elas estavam

começando a apodrecer. Com isso veio o dilema: como conseguir

vigas iguais nos dias de hoje?

Finalmente, alguém resolveu falar com um dos encarregados da

reserva florestal da universidade. O homem riu da pergunta. "Não

sei por que não nos procuraram antes. O construtor do prédio sabia

que as vigas iam acabar apodrecendo. Então, pediu que nossos

predecessores plantassem um bosque de carvalhos para substituí-

Ias. Essas árvores têm agora trezentos e cinqüenta anos - e troncos

do tamanho exato para as vigas."

Com atenção sincera, esse cuidado se transforma em modo de

vida. Nossos pequenos passos e preocupações se inserem numa

perspectiva mais ampla, pois sabemos que fazemos parte de um

todo incomensurável. Quando a consciência que não se limita à

vida humana, a respiração fica mais fácil, o coração passa a ter

compaixão por todos os seres vivos.

AGIR PELO BEM DE TODOS OS SERES

Na tradição budista, um bodhisattva é um ser dedicado ao despertar

universal, a trazer compaixão e sabedoria para todos os seres

vivos, leve o tempo que levar. É o que se expressa na promessa de

não entrar no domínio do Nirvana antes que a última folha de grama

possa entrar também. Antes de cada meditação, praticantes do

mundo inteiro repetem os votos de bodhisattva, para ter sempre em

mente essa intenção. Os votos começam assim: "Os seres vivos

são em número infinito; prometo servir até que todos estejam

libertados. A ignorância e a ganância são ilimitadas; prometo

transformá-Ias e erradicá-las totalmente."

A promessa de proporcionar despertar e compaixão a inúmeros

seres através dos éons é uma tarefa esmagadora. Os alunos que

fazem esses votos têm que refletir sobre seu Significado, descobrir

como vivê-los. Será que o eu, este "pequeno eu", vai ter que

percorrer o universo salvando todos os seres? Como medir o

sucesso? Como começar?

É simples: os votos de bodhisattva não se referem a uma

realização, mas a uma direção, a um rumo da intenção. Sejam

quais forem as circunstâncias - nascimento ou morte, alegria ou

tristeza - meu corpo, minha fala e minha mente seguem a direção

da compaixão e do despertar. A cada momento, vou plantar

sementes de bondade e liberação para mim e para todos os seres

vivos.

Os votos de bodhisattva não são uma medida mas um compasso,

um guia para o coração seguir. Eles passam a ser a fonte da ação,

a direção de tudo. Eles se tomam o nosso legado. Como disse

Martin Luther King Jr.: "Quero que digam que eu tentei amar e

salvar a humanidade... quero levar uma vida comprometida e leal."

Em meio à terrível tragédia do povo tibetano, o Dalai Lama falou

muitas vezes da importância desses votos. Ao longo de décadas de

dificuldades como político, líder espiritual e exemplo mundial de

não-violência, ele teve que tomar decisões enérgicas pela sua

nação e pelo seu povo. Ele admite que às vezes suas decisões não

foram as melhores, que cometeu erros. Diz ele: "Só posso contar

com minha motivação sincera." Sua motivação é fomentar a

compaixão e a liberação em cada ato. Ele se refugia na semente da

intenção que está por trás dos seus atos. Quando plantamos

sementes de bondade, acaba nascendo uma coisa bela.

Para servir todos o seres, temos de ter em mente uma verdade

essencial: nunca é tarde para começar. A sabedoria transforma a

pesada pressão do tempo, a responsabilidade por todas as coisas.

Adquirimos perspectiva, uma visão mais ampla. O controle não é

nosso. Nos relacionamentos, na comunidade, na terra, é provável

que nem estejamos vivos para ver as mudanças que buscamos -

somos plantadores de sementes. Quando as sementes de nossas

ações são generosas e sinceras, é certo que trarão frutos nutritivos

para todos os seres. O que já passou não importa: podemos

começar de novo. E só dá para começar aqui e agora, e o agora é a

semente de tudo o que está por vir. Responsabilidade e

criatividade: só isso é necessário. A motivação sincera nos leva a

fazer perguntas sábias e a cuidar do que amamos com sabedoria a

longo prazo. É o cuidado de um fazendeiro pelo seu pomar, de um

pai pelo seu filho. É a perspectiva do ancião, do sábio, fruto de uma

vida de dedicação espiritual. Diz um professor de meditação:

"É como se a minha vida espiritual fosse um cavalo lerdo. No

começo, eu tinha muitas ambições. Aqui e na Ásia, tentei praticar

extensivamente, galopar. Eu estava atrás da iluminação. Atingi o

êxtase, a bem-aventurança, estados místicos, descobertas incríveis

- tudo isso aconteceu. Mas só serviu para me despertar para o que

eu precisava fazer. Para ser realmente feliz, tive que diminuir a

marcha do cavalo, descer para a terra e levar a vida de acordo com

meus valores. Depois de muita meditação e trabalho interior, dei

uma virada de cento e oitenta graus: voltei-me para o mundo.

Percebi que as florestas, os oceanos, os paridas e a biosfera

dependem de mim como eu dependo de tudo. Tomei-me um ativista

espiritual e era como tal que ensinava, escrevia, vivia. Tive algum

sucesso, mas precisei diminuir a marcha do cavalo mais uma vez,

porque a ambição tinha voltado de outro jeito.

Agora compreendo melhor a renúncia. Não é preciso viver em

mosteiros e renunciar à vida. Estamos aqui para aprender as lições

desta vida humana. O que importa é a renúncia à ganância e à

ambição, ao caráter autocentrado do nosso tempo. O controle não é

nosso. Temos que ser pacientes, deixar que nossas ações sejam

ditadas por um coração simples e puro e pelas circunstâncias. Tudo

de bom vem disso."

AÇÃO APROPRIADA, QUIETUDE APROPRIADA

O mundo natural nos ensina a fazer e a não fazer. As árvores dão

frutos e hibernam; lontras, ursos e trutas pintadas dormem e

acordam; o dia se alterna com a noite, e o verão com o inverno. Se

não nos esforçamos o tempo todo para realizar as intenções

bodhisattva, achamos que somos preguiçosos. Mas a comunidade

dos seres nos diz que sem os meses frios de hibernação não pode

haver maçãs. A quietude, o não fazer, o ouvir, são tão essenciais

quanto a ação na mandala da vida desperta.

Thomas Merton nos adverte:

Deixar-se levar por um sem-número de preocupações, submeter-se

a exigências demais, comprometer-se com muitos projetos, querer

ajudar tudo e todos já é sucumbir à violência dos nossos tempos.

Às vezes é preciso marchar, às vezes é preciso meditar, rezar. As

duas coisas trazem o coração e o mundo de volta para o equilíbrio.

Para agir com sabedoria, temos de equilibrar compaixão com

equanimidade, a capacidade de deixar que as coisas sejam como

são. Apaixonado, o coração é tocado pelas tristezas do mundo, mas

é preciso lembrar que não temos a responsabilidade de consertar

todos os erros do mundo - só os que podemos consertar. Caso

contrário, seremos tomados pela mania de grandeza, como se

fôssemos os salvadores da humanidade à nossa volta.

A compaixão e a equanimidade entram em harmonia quando

vivemos na realidade do presente. É muito simples. A atenção e a

compaixão são mais eficazes quando se dirigem a uma pessoa por

vez, a um momento por vez. Senão somos esmagados por todos os

problemas que precisam de solução: os dilemas dos parentes e da

comunidade, as injustiças e o sofrimento do mundo inteiro.

A compaixão é mais real nos detalhes, na reação a este momento

imediato. Mesmo em situações globais é assim. É nos detalhes que

a misericórdia do coração se amplia. Seja no caso da doença de um

vizinho ou de uma campanha mundial contra as minas explosivas

ou a destruição das florestas, cada dia, cada passo é como respirar,

uma prática que expande o coração. Nossa verdade floresce a cada

pequeno passo que damos.

Diz um professor de meditação:

"Depois de trinta anos meditando, parece que cinqüenta anos de

prática é pouco tempo. Agora minha perspectiva é mais ampla - vai

além desta vida. Meu compromisso é simples: eu me dedico à

iluminação, que é a mais alta aspiração. O tempo não importa. O

importante é ensinar que a liberdade total é possível, para que cada

ato do cotidiano seja iluminado por essa possibilidade, por essa

verdade."

Cada prece e cada ato consciente contribui para a cura do todo.

Disse Gandhi:

Eu acredito na unidade essencial de tudo o que vive. Acredito,

portanto, que quando uma pessoa avança espiritualmente, o mundo

inteiro avança; quando uma pessoa cai, o mundo cai na mesma

medida.

No domínio da ação, nem todo gesto tem de ser grandioso. Os

pequenos atos também são importantes, como mostra a história do

velho que caminhava numa praia do México depois de uma

tempestade muito forte. As ondas tinham atirado na areia milhares

de estrelas-do-mar, que o velho devolvia ao mar, uma a uma. Um

transeunte que o observava perguntou: "O que você está fazendo?"

"Estou tentando ajudar essas estrelas-do-mar", respondeu o velho.

"Mas a areia está coberta de estrelas; não faz diferença jogar

algumas de volta na água", argumentou o outro. "Faz diferença para

esta aqui", respondeu o velho, jogando outra estrela-do-mar no

oceano.

TESTEMUNHA DA JUSTIÇA

De certa forma, o mais radical dos atos políticos é a mudança no

coração. Para vencer a ganância, o racismo, a exploração, o ódio e

o sofrimento, para harmonizar nossa vida com a terra, temos que

entender que a crise fundamental está na consciência humana. A

cura do mundo não depende apenas de meios políticos e

econômicos. já vimos que os revolucionários de uma geração

podem ser os opressores da geração seguinte, que o poder político

gera ganância e desilusão. Temos que enfrentar de frente as forças

da exclusão, da ganância e do ódio, e aprender a viver em paz, com

o coração livre. Se não, como esperar isso dos outros?

A sabedoria nos diz que a trajetória humana sempre foi feita de

ganhos e perdas, tristeza e alegria, ganância e generosidade, feiúra

e beleza. Mesmo assim, não dá para ignorar os gritos de agora.

Com o coração em paz, aceitamos a responsabilidade de aliviar o

sofrimento, sejam quais forem as circunstâncias. As preces e a

meditação nos dão firmeza, coragem e capacidade de reagir.

Ficamos cada vez mais cientes de que não dá para ser cúmplice

dos abusos do mundo. Como diz William Faulkner:

Há certas coisas que você jamais poderá aceitar. Há certas coisas

que você tem que se recusar a aceitar. Injustiça, abuso, desonra e

humilhação. Por mais jovem ou por mais velho que você seja. Nem

por glória nem por dinheiro na mão. Nem pela foto no jornal nem

por dinheiro no banco. Simplesmente, recuse-se a aceitá-Ias.

Às vezes, a reação mais eficiente é testemunhar com coragem, o

que por si só isso já inicia a transformação. A professora budista

Joanna Macy fala do trabalho de capacitação que realizou em uma

das cidades mais próximas do reator nuclear de Chernobyl. Antes, a

área em volta de Chernobyl não era conhecida por causa da usina

nuclear mas pelas belas florestas e montanhas. Durante muitos

séculos, as pessoas que lá viviam passeavam pelas montanhas,

faziam piqueniques, colhiam cogumelos, pescavam, caçavam e

cortavam lenha. Agora, em casa e no trabalho, selam janelas e

portas com fita adesiva e não podem sair por causa do risco da

radiação. Tudo o que lhes restou são as fotografias da floresta na

parede.

Num encontro com líderes da comunidade, Joanna perguntou

quando poderiam voltar à floresta. "Nem no tempo dos nossos

tataranetos e nem do tempo dos tataranetos deles!" Levaria

séculos. Fez-se o silêncio.

Então, uma mulher levantou e perguntou, zangada, por que Joanna

e a equipe dela estavam remexendo nessa tristeza. Joanna

continuou em silêncio. Finalmente, um homem falou: "Pelo menos

podemos dizer aos nossos filhos que contamos a verdade." Depois

de outro silêncio, uma mulher disse: "Esses visitantes vieram juntar-

se a nós com um propósito: testemunhar o nosso sofrimento. Agora

vão voltar para suas comunidades e contar a história para que

outros saibam o que aconteceu. Não podemos deixar que esse

envenenamento da terra aconteça em outro lugar, com os filhos de

outras pessoas." Com esse comentário, a amargura de cada um se

transformou no trabalho do bodhisattva.

Uma respeitada psicóloga que conheço trabalha nas Nações

Unidas com refugiados das ditaduras do mundo inteiro. Às vezes

ela não consegue dormir, perseguida pelas histórias de tortura dos

refugiados do Afeganistão, de Uganda, do Haiti, da Guatemala, de

Burundi, da Bósnia e de tantos outros países. É demais para o

coração humano suportar.

Como não dá para suportar sozinha essas tristezas, ela construiu

um altar em seu local de trabalho, com imagens de Kwan Yin, a

deusa da compaixão, de Jesus, de Buda e da Virgem Maria.

Acrescentou imagens de deuses haitianos, um pergaminho árabe

com passagens do Alcorão e imagens de deuses complacentes da

África e da América Latina. Não faltam também algumas flores e

frutas. Todos os dias ela evoca os deuses dos ancestrais de todas

as linhagens da terra. Ela reza para que seus espíritos a amparem

e amparem os que levam seus sofrimentos para ela.

Assim ela sente que não precisa carregar esse fardo sozinha. O

altar expressa não apenas a sua dedicação, mas a dedicação das

grandes forças de compaixão em todo o mundo. A verdade da

interdependência traz responsabilidade, mas traz também

companheirismo e consolo. Não trabalhamos sozinhos pela

mudança: os grandes poderes da existência trabalham conosco.

À medida que o despertar se aprofunda, aumenta a reverência e a

prece. Um altar pode ser a expressão de um coração dedicado. O

ritual de recorrer a um altar já é um profundo ato de rededicação.

Cada vez que nos prosternamos despertamos para a realidade de

que não estamos sozinhos. Cada vez que meditamos e rezamos,

cantamos ou servimos, vamos além da noção estreita de eu,

lembramos que todos os seres despertam juntos. Às vezes, como

bodhisattva, temos que agir com firmeza para deter o sofrimento. Às

vezes, a atitude mais elevada é servir de testemunha; às vezes

nossa intenção traz sucesso; outras vezes temos de testemunhar o

nosso fracasso.

Uma das histórias da vida do Buda fala da hostilidade entre

Kapilivatthu, o pais onde vivia o clã Shakia, o povo do Buda e

Magadha, um pais vizinho.

Quando o povo Shakia percebeu que o rei de Magadha planejava

um ataque, imploraram que o Buda intercedesse. Ele concordou e

fez várias propostas de paz. Mas o rei de Magadha não quis saber:

não conseguiu esfriar a cabeça e resolveu atacar.

Nesse dia, o Buda meditava sozinho sob uma árvore morta ao lado

da estrada que levava a Kapilivatthu. Vindo pela estrada com seu

exército, o rei de Magadha viu o Buda sentado sob a árvore

desfolhada em pleno sol. E perguntou: "Por que você está sentado

embaixo dessa árvore morta?" O Buda respondeu ao rei: "Eu me

sinto bem até mesmo embaixo desta árvore morta porque ela

cresceu no meu belo pais nativo." Essa resposta tocou o coração

do rei. Percebendo a dedicação que os Shakyas tinham pela sua

terra, ele recuou com seu exército. Mas, em outra ocasião, esse

mesmo rei se sentiu provocado e, dessa vez, seu exército destruiu

Kapilivatthu. O Buda ficou de lado e observou.

O fato de nos transformar na paz que buscamos pode mudar uma

situação. Mesmo quando fracassamos, podemos continuar fiéis à

nossa atitude de compaixão. Podemos, como Martin Luther King Jr.,

tomar o partido da verdade.

Eu ainda acredito que tomar o partido da verdade é a maior coisa

do mundo. É o objetivo da vida. O objetivo da vida não é ser feliz. O

objetivo da vida não é buscar o prazer e evitar a dor. O objetivo da

vida é fazer a vontade de Deus, haja o que houver.

Quando dedicamos a vida ao testemunho da verdade, nosso

coração se toma irreprimível. É o que mostra a história de uma

velha freira tibetana, que me foi contada por um fotógrafo. Presa

pelo exército chinês, essa freira ficou quinze anos numa prisão,

sofrendo torturas de todos os tipos. Quando finalmente a soltaram,

ela foi para a Índia. Esse fotógrafo, interessado em retratos de

velhos tibetanos, quis fotografar o rosto enrugado da freira. Ao olhar

pelas lentes da câmera, viu que seus lábios murmuravam orações.

Curioso, ele lhe perguntou como tinha agüentado provações tão

terríveis. Ela respondeu que nunca deixava de dizer suas orações

de compaixão por todos os seres. Quando estava sendo torturada,

rezava pelos torturadores. Quando eles viam que ela estava

mexendo os lábios, colavam sua boca com fita adesiva. Quando

viam a fita se movendo, colavam mais camadas por cima. Mas suas

orações não paravam. E quando terminava a tortura, suas orações

continuavam. Ela rezava pelo bem-estar de todos em qualquer

situação. Essa era a sua verdadeira libertação, o brilho irreprimível

de seu Verdadeiro Ser.

NOSSA DÁDIVA PARA A TERRA

Antes do despertar, nossa alegria é usar as coisas desta terra;

depois da graça do despertar, nossa alegria é prestar serviço às

coisas desta terra. Quanto maior a sabedoria, mais a vida é um ato

criativo, um ato de serviço. Essa compreensão não exclui ninguém.

É essa a sua beleza. Na cultura tradicional de Bali, não há uma

palavra que signifique "artista"; as pessoas "criativas" não são um

grupo específico; não existe a noção de pessoas que servem

opondo-se à de pessoas que não servem. Todos têm de oferecer

seus dons e cada ato está a serviço dos deuses. Tocar uma música

sagrada, dançar, pintar, cantar, contar histórias, entrar em transe

místico e, rezar equivalem a cozinhar uma refeição, fazer uma

plantação, conduzir uma carroça. Tudo é valorizado, todos os seres

têm contato com os deuses.

Cada um de nós tem um dom a oferecer à terra; nós nos

oferecemos à trama da vida o tempo inteiro. Em geral, não

valorizamos as sementes das pequenas contribuições, esquecendo

que vão dar frutos no ambiente maior de tudo o que vive. Com o

despertar, vemos que todas as ações afetam o todo.

Essa visão transforma a nossa vida. Há uma história perene que

capta essa verdade. Em visita a uma pedreira na Europa, um

homem ficou observando os trabalhadores: eles cortavam pedras

que pareciam destinadas às torres de uma enorme construção ali

perto. Ele perguntou a um deles o que estava fazendo. O homem

respondeu, cansado: "Meu trabalho é cortar e retirar as pedras."

Então perguntou ao outro: "O que você está fazendo?" O homem

respondeu: "Sou um cortador de pedras trabalhando para sustentar

minha família." Um terceiro homem, que fazia o mesmo trabalho,

olhou alegremente para ele e disse: "Estou construindo uma

catedral." Quando vemos que a terra é a nossa catedral, nossos

olhos se abrem para uma felicidade secreta em tudo o que

fazemos. Todos os cortadores de pedra contribuíam para uma

grande obra. A única diferença é que um deles sabia disso.

Seja pela ação política, pelo trabalho nas escolas, pela meditação,

seja por passar um ano inteiro nos galhos de uma sequóia - como

fez uma jovem chamada Julia "Butterfly" Hill para impedir o abate

de sequóias centenárias em Humboldt County - temos de contribuir

com a nossa voz, com o nosso jeito de agir. Nossos dons podem se

manifestar na educação de crianças, na lei, no comércio, na

música, na informática ou na jardinagem. Não importa qual seja o

tijolo da construção, mas que a nossa voz, única e singular, esteja

em harmonia com um propósito vivo.

Se não conseguimos lembrar da nossa parte na construção da

catedral, de oferecer nossos dons, de contribuir com a nossa voz, a

vida se toma uma grande tristeza. Quando perde essa visão, o

espírito encolhe e morre. Essa escolha existe até nas tarefas mais

simples. Vi cobradores do pedágio da Ponte Golden Gate evocar o

espírito de São Francisco para dar as boas-vindas a cada carro que

entra na cidade. A expressão de um dom não precisa ser grandiosa.

Quem escreve poesia não precisa escrever dez volumes e ganhar

um prêmio nacional. O agricultor da Ásia que vive da escassa terra

da família pode trabalhar com uma canção nos lábios, pode levar

suas preces inspiradas para a mesquita, pode emprestar sua voz

poética ao vilarejo. Nesse caso, ele também está transformando o

mundo.

Um professor de meditação chama o impacto das pequenas

contribuições de "efeito trim-tab", Quando um transatlântico atinge

certa velocidade, seu impulso é tão grande que não dá para mexer

o leme. Então, é feita uma série de ajustes nas abas da borda do

leme - chamadas trim-tabs. Essas pequenas mudanças vão

alterando a direção do navio até que seja possível mover o leme e

mudar o curso da navegação. Como as trim-tabs, os nossos atos,

por pequenos que sejam, mudam o curso da vida à nossa volta.

Usar a nossa vida para aproximar o mundo da compaixão e afastá-

lo do sofrimento é a única coisa que importa.

Os dons são bênçãos dos ancestrais, dos deuses, da criativa

inteligência da vida. Se estamos abertos, nossos dons nos

escolhem assim como nós os escolhemos. No começo, basta ouvir.

No silêncio, livres do clamor e da sofreguidão da moderna cultura

de consumo, ouvimos o intimo sussurrar do que devemos fazer.

Essa voz nos diz se é para começar um projeto de jardim, escrever

uma carta para a Anistia Internacional, confortar uma criança que

chora, contribuir com mais uma pedra para a catedral que não

vamos chegar a ver terminada.

Há um ditado dos índios Ojibway que diz: "Às vezes eu saio por aí

com pena de mim mesmo, e enquanto isso percorro o céu levado

pelos ventos." Quando despertamos, percebemos que somos

levados por esses ventos, pelo Espírito Santo, pelo Tao, pelo

Dharma, pelo sagrado rio da vida. Percebemos que pertencemos a

esta terra. Somos a pessoa certa e estamos no lugar certo para

despertar, no lugar que nos foi dado para servir.

Essa compreensão traz tranqüilidade e gratidão. São tantas as

bênçãos que recebemos: o alimento da terra, a escuridão do céu

estrelado, o calor da amizade, a criatividade das artes, a mudança

das estações, a capacidade de ter compaixão. Cabe a nós

agradecer pelas dádivas da vida nesta terra linda, protegê-Ia,

celebrá-Ia e oferecer nossos próprios dons.

É isso que você deve fazer: ame a terra, o sol e os animais,

despreze as riquezas, dê esmola a todos os que pedem,

defenda os parcos e os loucos,

devote seus rendimentos e seu trabalho aos outros, odeie os

tiranos,

não discuta a respeito de Deus,

seja tolerante e paciente com as pessoas...

reexamine tudo o que lhe disseram na escola

ou na igreja ou em qualquer livro,

recuse o que insulta a sua alma,

e seu corpo vai se tomar um grande poema.

Walt Whitman

17

O RISO DO SÁBIO

Como tudo é apenas

exatamente como é,

podemos muito bem cair na risada.

LONG CHEN PA

O fim de toda a nossa procura

Vai ser chegar onde começamos

E ver o lugar pela primeira vez.

T. S. ELOT

Meu amigo James Baraz conta que viajou para a Índia para passar

um tempo com o guru H. W. L. Poonja. Poonja era conhecido por

sua liberdade de espírito, pela energia que transmitia a seus

discípulos e pela sua risada jovial. James, que praticava meditação

havia vinte anos, era um professor budista muito querido. Querendo

crescer ainda mais e desejoso de ter um contato mais profundo com

o coração da vida espiritual, ele foi para a Índia. Depois de alguns

dias de conversa com o mestre, James explicou que o treinamento

budista tinha lhe dado atenção, compaixão e sabedoria, mas que

não lhe tinha ensinado muita coisa sobre a graça. Estava

desorientado. Como saber se estava recebendo a graça do guru,

como procurá-Ia? Os outros discípulos ouviam com atenção.

O mestre olhou para James e riu, achando graça na pergunta.

"Você ensina numa comunidade dedicada à vida espiritual, tem

uma família saudável na Califórnia, um lugar lindo, está na Índia

cercado de irmãs e irmãos devotados ao caminho. Agora está

meditando, falando com o mestre, e ainda pergunta onde encontrar

a graça?" Riu de novo. "Você está mergulhado na graça até o

pescoço."

Todos nós estamos mergulhados na graça até o pescoço. Estamos

envolvidos pelo calor do sol e pelo abraço brilhante da neve; somos

alimentados pelas águas doces da chuva; estamos vivos no grande

mistério. Em quaisquer circunstâncias, temos capacidade total para

despertar. Com coração aberto e mente aberta, descobrimos uma

grande paz, uma presença amorosa nas coisas como elas são.

Descansando na consciência simples do presente, o coração se

toma íntegro. Quando aceitamos a corrente da vida, a iluminação e

a graça surgem naturalmente. Não é uma conquista; é sabedoria

viva.

Como diz Suzuki Roshi: "Quando compreendemos a verdade

eterna de que 'tudo muda' e nela encontramos serenidade, estamos

no Nirvana." Cada momento desse despertar traz sensibilidade para

a tragédia e para a beleza. Quando precisamos de força, lá está

ela; quando precisamos de flexibilidade e submissão, lá estão elas.

Ficamos à vontade nesta vida incrível.

O REPOUSO NO MISTÉRIO

Dentro no Grande Mistério que é,

nada possuímos.

O que é então essa rivalidade que sentimos,

antes de passar, um por vez, pelo mesmo portão?

Rumi (Tradução de Moyne e Barks)

O mistério da vida contém a infinita escuridão do céu da noite

iluminada pelas distantes órbitas de fogo, a casca enrugada de uma

laranja que solta sua fragrância ao nosso toque, as profundezas

insondáveis dos olhos da amada. Nenhuma história da criação,

nenhum sistema religioso consegue descrever ou explicar direito

essa riqueza e essa profundidade. O mistério é tal que ninguém

sabe ao certo o que vai acontecer daqui a uma hora.

Do ponto de vista do mistério, não existe um caminho fixo. Na

verdade, nem existe um caminho, pois isso seria situá-lo no domínio

do espaço e do tempo. Mas tempo e espaço também são um

mistério - o passado que desapareceu, o futuro só imaginado, o

presente tão fluido quanto a água. Despertar não é fixar nem

segurar, mas gostar do que está aqui. Essa verdade liberta o

coração da sofreguidão. O mistério que nos gerou se transforma

numa dança.

Os sábios hindus chamam essa dança de "lila", a dança eterna da

vida. Para os místicos cristãos e judeus, ela é a mente de Deus, um

jogo do Divino, enquanto, para os budistas, o nascimento e a morte

são ondas no oceano da consciência: aparecem e logo

desaparecem, como um sonho.

Essa verdade está sempre conosco. Quem entra em contato com

essa realidade eterna, está curado. Isso acontece quando, perdidos

no melodrama da vida, sucumbimos ao medo ou à saudade, ao

amor ou ao ciúme, à raiva ou ao júbilo. De repente, ouvimos uma

voz dizer: "Essa me pegou!" Então, damos uma risada e estamos

livres.

Foi essa a idéia que Ram Dass me passou quando voltou para casa

depois do derrame. Eu lhe telefonei e perguntei como estava. Ainda

falando devagar, ele respondeu: "Foi uma viagem." Ele explicou

que, nas semanas mais difíceis, tinha contado com suas orações e

com seu guru. Então, falando com dificuldade, ele me agradeceu

pelo belo retrato do sábio Ramana Maharshi que eu lhe havia dado

no hospital. Achei que seria uma boa fonte de inspiração, pois

Ramana ensinava principalmente através do silêncio. Como

retribuição, Ram Dass me ofereceu um retrato do seu guru, Neem

Karoli Baba. Então disse devagar: "É como figurinhas de jogadores

de beisebol... eu troco um... um... Neem Karoli Baba... e... um...

Mickey Mantle... por um... Ramana Maharshi... e um Ted Williams."

Ele riu com gosto e eu ri aliviado porque percebi que, apesar de

todas as seqüelas do derrame, Ram Dass estava muito bem.

O sábio Hermes Trismegisto ensina esta meditação como forma de

lembrar da verdade eterna da vida humana:

Sinta que você ainda não nasceu, que está no útero, que é jovem,

que é velho, que morreu, que está no mundo além-túmulo. Capte na

mente tudo isso de uma só vez, todos os tempos e os lugares

expandidos a todas as qualidades e magnitudes juntas, e você

começará a ver o jogo do Divino.

Este poema dá o mesmo recado em forma moderna.

Vida Reversa

A vida é dura,

toma muito do seu tempo,

todos os fins de semana,

e no fim o que você ganha?

A morte, que bela recompensa.

Acho que o ciclo da vida está ao contrário.

Você devia primeiro morrer, ficar livre disso.

Depois viver vinte anos num asilo de velhos.

Ser posto para fora quando ficar jovem demais.

Ganhar um relógio de ouro, ir trabalhar.

Trabalhar quarenta anos até ser

jovem e poder gozar sua aposentadoria.

Ir para a faculdade,

festejar até estar preparado para o colégio.

Então virar criança, brincar,

não ter responsabilidades,

virar um menininho ou uma menininha,

voltar para o útero,

passar seus últimos nove meses flutuando.

E terminar como um brilho nos olhos de alguém.

A religião quer explicar o mistério do nosso nascimento neste

mundo; a meditação e a prece procuram nos abrir para ele. A

sabedoria celebra esse mistério e a compaixão ama isso tudo - o

brilho nos olhos de cada ser.

Quando eu estava na oitava série, meu professor de ciências

perguntou: "Se o nosso sistema solar, do Sol à órbita de Plutão,

fosse do tamanho desta bola de beisebol, de que tamanho seria o

resto da nossa galáxia?" "Do tamanho de uma montanha", disse um

aluno. "Do tamanho da cidade?" arriscou outro. "Não", disse o

professor. "Comparada a esta bola, a galáxia é maior do que o pais

inteiro." Hoje em dia, nossos telescópios conseguem enxergar cem

bilhões de galáxias assim e não temos idéia do que existe além

delas.

O mistério nos cerca num milhão de espécies de insetos, no milagre

da fala, através do qual meus pensamentos fazem vibrar o ar e o

transformam em palavras, batem no seu tímpano e despertam

imagens na sua imaginação. Tudo isso acontece através do

mistério da consciência. A ciência o reconhece, a meditação se

abre para ele, mas ninguém consegue explicá-Ia de verdade.

"Tudo isso é criação da mente", começa o Buda. Rabindranath

Tagore elabora: "Em geral, achamos que a mente é um espelho

que recebe impressões exatas do mundo exterior, sem perceber

que ela é o principal elemento da criação." Senão, como explicar o

resultado do estudo duplo-cego que Randolf Byrd realizou na escola

de medicina da Universidade da Califórnia? Segundo ele, os

pacientes que, sem saber, eram objeto das orações de outras

pessoas, se recuperavam mais depressa do que os outros. A

consciência é a fonte da experiência, o jogo do próprio mistério. A

vida espiritual nos abre para a experiência direta dessa verdade.

O professor budista e diretor de asilo Rodney Smith fala da visita

que dois filhos fizeram ao pai, que estava muito doente e perto da

morte. Eles tinham acabado de saber que seu tio, o irmão mais

novo do pai, morrera num acidente. Deviam contar ao pai? Depois

de alguma consideração, decidiram não perturbar sua morte

tranqüila com notícias trágicas. Entraram juntos no quarto do pai

para ver como ele estava. Depois de alguns minutos, o pai

perguntou: "Vocês não têm uma coisa para me contar?" "Como

assim?" perguntaram os filhos. "Sobre o meu irmão que morreu."

Eles ficaram assombrados. "Como você soube?" "Fiquei

conversando com ele a manhã inteira." Então, passaram algum

momentos juntos, compartilhando seu amor e, logo depois, o pai

morreu.

Histórias assim podem nos dar a certeza de que há vida além do

corpo. Mas temos que tomar cuidado para não explicar o mistério

com tanta facilidade. As imagens do céu cristão, os ensinamentos

hindus sobre a reencarnação ou os domínios tão bem descritos no

Livro Tibetano dos Mortos podem nos levar a acreditar que

compreendemos o mistério da morte. Mas, quando chega, a morte

continua desconhecida.

Stephen Levine, que durante anos fez um trabalho inovador em

asilos, conta a história de uma criança com câncer terminal. Já

perto da morte, o menino começou a flutuar entre os mundos.

Várias vezes sua respiração parou. Voltando de um desses

momentos de quase-morte, ele abriu os olhos brilhantes e, quando

conseguiu falar, disse que tinha visto uma luz e entrado num túnel.

Stephen estava acostumado a ouvir esse tipo de coisa. Mas não

estava acostumado a ouvir o que o menino disse em seguida:

"Então vi Rafael, que quis me ajudar." Não Rafael o arcanjo, mas

Rafael, a Tartaruga Ninja, uma das sábias e benevolentes

Tartarugas Mutantes, famosas na época e importantes para o

menino. Essa figura tinha vindo para conduzi-lo ao além.

Será que isso significa que, perto da morte, vemos apenas ilusões

da nossa mente? Ou será que significa que a luz que nos aguarda

atravessa as imagens de que gostamos, sejam elas quais forem?

Não dá para saber. A morte continua sendo um mistério.

Perguntaram a um mestre zen o que acontece quando morremos, e

ele respondeu: "Não sei." "Mas você não é um mestre zen?"

insistiram. "Sou, mas não um mestre zen morto."

Uma vez, perguntaram a Thoureau o que ele pensava sobre a

morte e o além, e ele respondeu de um jeito bem americano: "Um

mundo de cada vez."

A SABEDORIA DO NÃO SABER

Sabedoria não é saber, mas ser. Os místicos cristãos ensinavam os

buscadores a entrar na Nuvem do Não Saber com o coração

confiante. O coração sábio não é o que compreende tudo, mas o

que consegue tolerar a verdade de não saber. A sabedoria cria vida

na presença do mistério, quando o coração está aberto, sensível,

totalmente receptivo. Dessa simples presença, dessa empatia,

desse amor, dessa receptividade, nascem todas as coisas.

Um professor hindu conta que, com o tempo, passou a confiar, não

no conhecimento, mas no amor.

"Tenho que deixar para lá essa necessidade de saber tanto. O que

dá para saber é tão pouco - a santidade à nossa volta é tão grande.

Agora eu confio na Simplicidade, na simplicidade e no amor."

Meu professor Ajahn Chah costumava reagir às perguntas, planos e

idéias das pessoas com um sorriso. Ele dizia: "Mai neh." Essa frase

significa: "É incerto, não é?" Ele compreendia a sabedoria da

incerteza, a verdade da mudança e se sentia bem em meio a elas.

Um professor sufi me disse:

"O mais maravilhoso do processo do desabrochar espiritual é ser

tão cheio de imprevistos. Estudei os textos sagrados durante anos,

mas nunca soube o que estava para acontecer. Houve experiências

incríveis, fui arrebatado por possibilidades além do meu

conhecimento. E aprendi que a experiência nunca é como

pensamos que será. Saber disso é a verdadeira sabedoria."

A verdade é que não sabemos. Nem o Papa, nem o Rabino de

Jerusalém, nem mesmo a sua mãe sabe o que vai acontecer

amanhã. Nem nós. Simplesmente não sabemos.

O mestre zen coreano Seung Sahn treina seus alunos para viver no

que ele chama de "mente que não sabe". Pergunta a eles: Quem é

você? Onde está a sua mente? O que é consciência? De onde você

veio? Os alunos respondem que não sabem e ele diz: "Pois

guardem essa mente que não sabe." Descansem nela, confiem

nela. Assim como no caso da Nuvem do Desconhecido e do

"desaprender" do Tao, a sabedoria cresce quando nós nos abrimos

para a verdade do não saber.

É um prazer falar com alguém que não sabe tudo, que tem a mente

aberta e vontade de ouvir. Nessa mente há uma presença deliciosa,

há receptividade e humildade. O Terceiro Patriarca zen diz o

seguinte: "Se você quer conhecer a verdade, basta parar de

alimentar opiniões." No mais antigo dos textos budistas, o Sutta

Nipata, o Buda levanta essa questão, terminando com uma bem-

humorada cutucada nos que têm opiniões:

Vendo infelicidade em visões e opiniões, sem adotar nenhuma,

encontrei paz interior e liberdade. Quem é livre não se agarra a

visões nem discute opiniões. Para um sábio, não há superior,

inferior nem igual; não há lugares em que a mente possa se fixar.

Mas os que se prendem a visões e opiniões andam pelo mundo

aborrecendo as pessoas.

Antes eu não entendia o Significado disso. Depois de praticar em

mosteiros, comecei a organizar retiros. Nessa época, eu tinha

muitas idéias. Minha prioridade era ensinar às pessoas princípios

budistas que lhes permitissem superar a avidez, o ódio e a ilusão e

desenvolver a atenção e a compreensão. Eu queria que as pessoas

compreendessem a própria avidez, que se livrassem da ganância,

da raiva, do ódio e da confusão, achando que era isso que traria a

transformação. À medida que amadureci, fui percebendo que é

muito mais simples.

Sobre a avidez e a sofreguidão, sob a necessidade de

compreender, está o que chamamos de "corpo de medo". Na raiz

do sofrimento está um coração pequeno, assustado, com medo de

confiar no rio da mudança, de se abandonar a este mundo em

mutação. Esse coração pequeno e fechado luta sofregamente para

controlar o imprevisível. Mas nunca dá para saber o que vai

acontecer. Com sabedoria, deixamos que esse não saber se

transforme numa forma de confiança. Nós nos apoiamos no que

Jocelyn King, budista veterana, chamou de o "Chão Firme do

Vazio". Chogyam Trungpa fala de abandonar o território do ego e

confiar na ausência de chão, de razão. São João da Cruz diz o

seguinte: "Se um homem quer ter confiança na estrada que trilha,

tem que fechar os olhos e andar no escuro."

Terry Dobson era um dos maiores mestres de arte marcial do

Ocidente. Quando estudava Aikidô em Tóquio, treinou também com

um mestre carpinteiro. Passou um ano varrendo serragem, afiando

ferramentas e observando. Quando recebeu os primeiros pedaços

de madeira para trabalhar, vendaram-lhe os olhos. Levou meses

aprendendo a aplainar, lixar e aparelhar a madeira usando apenas

o tato. Essa foi uma das experiências mais memoráveis de seus

tempos no Japão, um aprendizado do corpo e do coração, que se

integrou não apenas à prática da carpintaria, mas também do

Aikídô.

Sabedoria não é informação, mas uma presença constante, uma

abertura intuitiva do corpo e do coração. Na sabedoria, o corpo de

medo se esvai e o coração descansa. Como o amor, a sabedoria

não precisa de explicação. Como o Tao, traz harmonia e bem-estar.

É por isso que Ryokan, o amado poeta zen, respondia às perguntas

dos visitantes sobre iluminação e sobre a natureza do bem e do mal

dizendo: "Tenho apenas a tranqüilidade do meu eremitério para

oferecer em resposta."

AS PRÁTICAS DE SABEDORIA

Na mandala da totalidade, descobrimos que o coração desperto

está disposto a se abrir a todas as dimensões da vida. Mas, com os

anos, o que acontece com a prática da prece, da contemplação, da

devoção, dos cantos, da meditação ou dos rituais de yoga? De

certa forma, nada acontece. Continuamos a praticar do mesmo jeito

e até com mais cuidado e dedicação: essas práticas continuam

sendo um ingrediente importante da vida sagrada. Por outro lado,

praticamos de maneira radicalmente diferente.

Com a maturidade espiritual, a base dessas práticas deixa de ser a

ambição, o idealismo e o desejo de autotransformação. É como se

o vento mudasse e o cata-vento - ainda centralizado no mesmo

ponto - apontasse agora em outra direção: para este momento. Não

lutamos mais para atingir um destino espiritual nem ansiamos por

um mundo diferente do que temos. Estamos em casa. E, em casa,

varremos o chão, fazemos refeições nutritivas e cuidamos dos

convidados. Depois de compreender as verdades eternas da vida, o

que resta a fazer além de praticar?

Se a nossa prática era a prosternação, continuamos a nos

prosternar, despertos para uma reverência por tudo o que vive. Se

nossa prática era a oração, rezamos agora por amor a todos os

seres. Se nossa prática era a meditação ou a dança sagrada,

meditamos ou dançamos para expressar o coração desperto.

Além disso, a prática constante é necessária. Ainda podemos ficar

perdidos, confusos, presos nas dificuldades da vida moderna. A

prática constante nos purifica, nos dá firmeza, nos faz lembrar do

que é verdadeiro. As práticas diárias nos ajudam a manter o

equilíbrio, a cuidar do corpo, a manter o coração aberto, a fortalecer

a capacidade de oferecer amor. Praticar é como limpar a casa. Não

limpamos a casa uma vez só e pronto: essa é uma tarefa constante.

Mas é também um prazer viver numa casa limpa, que homenageia

quem entra. Mas não somos a casa e, por mais ambiciosa que seja

a limpeza, ela não modifica a natureza da nossa vida. Praticamos

para expressar o despertar, não para atingi-Ia.

Diz uma freira:

"Quando olho para as irmãs mais velhas, o que mais admiro é o seu

bom coração. Elas servem, trabalham, rezam e ensinam como

quando eram garotas, mas têm agora uma beleza diferente.

Naquela época, estávamos todas cheias de ardor, querendo ser

virtuosas e dignas de Deus, esperando encontrar alguma coisa

especial nesta vida sagrada. Agora rezamos porque gostamos de

rezar, ensinamos e trabalhamos com bondade e amor. É simples e

natural, uma forma de distribuir a alegria de Deus."

Frank Ostaseski, que dirigiu por muitos anos o asilo do Centro Zen

de San Francisco, conta uma história simples que fala de sabedoria

e confiança:

Um dia antes de morrer, John estava num coma agitado. O rosto

estava cheio de tensão, a cabeça muito para trás, os músculos da

garganta duros e contraídos. Respirava com muito esforço. Era

claramente um outro estágio da morte, mas parecia que tinha

alguma coisa presa. Um famoso professor com experiência nessas

coisas disse que seu espírito estava tentando deixar o corpo e que

eu tinha que tocar o topo da cabeça dele para indicar o caminho.

Um médico me disse para aumentar a dose de morfina para relaxar

a respiração. Um terapeuta corporal me disse para pressionar

certos pontos dos pés para aliviar a tensão. Fiz tudo isso, mas nada

mudou.

Instintivamente, quis envolvê-lo com o meu corpo. Subi na cama e

aninhei John em meus braços. Fiquei balançando de um lado para

outro e cantar cantigas de ninar para ele. Não do tipo convencional,

elas que a gente vai inventando na hora. Palavras e sons

misturados ao acaso, sem fazer muito sentido - apenas "canções de

amor", costumo dizer. Todos os pais já fizeram isso para um filho

doente assustado.

Enquanto cantava em seu ouvido e beijava-lhe a testa, minhas

mãos descobriram o que fazer, embora eu não tivesse um objetivo

em mente.

Meus dedos acariciaram sua garganta e seu rosto e minha mão

espalmada fez movimentos circulares sobre seu coração. Perdemos

a noção do tempo. Eu senti que ele afundava em mim, meu corpo

amparando o que havia sobrado de sua forma ossuda. Finalmente

sua garganta começou a relaxar e sua cabeça veio mais para a

frente. Seus olhos se abriram. Estavam aliviados.

Depois eu me perguntei se havia agido bem. Talvez tivesse sido

melhor seguir o conselho do professor. Será que eu o tinha trazido

de volta de um estado de quase-morte? Será que eu havia

interrompido algum processo de liberação? Não sei ao certo. Só sei

que, sem ternura no coração, não dá para ser livre.

A CRIANÇA DO ESPÍRITO

Depois de nos fazer passar por muitas aventuras, a jornada

espiritual nos trouxe de volta para onde estamos agora. Rumi e

Nietzsche usam três imagens poéticas para descrever essa jornada:

o camelo, o leão e a criança. Esses estágios do caminho não

passam de aspectos do desabrochar da consciência: a cada

momento, contemos os três. Mas são também passos progressivos

do caminho.

O camelo representa a entrega inicial, a dedicação, a disposição

para ajoelhar, para carregar dignamente o nosso fardo, para

enfrentar a desolação, para viajar para terras distantes. Nos

estágios do camelo, ficamos disponíveis para o espírito através da

humildade, da prece, da repetição e do trabalho braçal. O respeito

por cada passo difícil nos leva a um lugar seguro aqui na terra. A

devoção traz a cura, o coração paciente alimenta a compaixão. O

camelo nos dá a base da dignidade.

Quando descobrimos que o coração consegue enfrentar qualquer

situação, as alegrias e tristezas da existência, despertamos para a

liberdade. Então, o leão dourado se manifesta com um rugido. Da

boca do leão sai a intrépida voz da verdade, a libertação do coração

irrestrito. O reino é nosso. Nesse estágio, deixamos de ser

buscadores: encontramos, para lá do pequeno eu, a certeza da

graça e uma plenitude eterna.

Dizem que o Buda falava com um rugido de leão. O leão ruge com

o corpo inteiro e, até mesmo no zoológico, esse som silencia todos

os outros animais. Depois de vinte anos numa jaula, essa voz ainda

grita: "Não sou um animal de zoológico." O leão, como um rei ou

rainha, vive em bem-aventurança real e total liberdade de coração.

A realeza do leão concede a graça a tudo com o que tem contato.

No último estágio, o leão dá lugar à criança, a uma inocência

original. É a Criança do Espírito, para quem todas as coisas são

novas. Para essa criança divina há admiração, tranqüilidade e um

coração alegre. A criança fica à vontade na realidade do presente,

capaz de usufruir, de reagir, de perdoar e de dividir a graça de estar

viva.

Através da criança, a jornada nos traz de volta para testemunhar

com assombro e amor o desabrochar natural de tudo o que vive. O

Buda declara: "Este mundo e o coração puro que o percebe são

luminosos." Quando nós nos deixamos abrir para a inocência, toda

a existência se toma sagrada.

Thomas Merton descreveu o momento em que abriu os olhos dessa

maneira:

Então, foi como se de repente eu visse a beleza sagrada do

coração de todos, onde nem o pecado nem o desejo chegam, o

âmago de sua realidade, a pessoa que cada um é aos olhos de

Deus. Se ao menos todos se vissem como realmente são. Se ao

menos víssemos uns aos outros dessa maneira, não haveria

guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância... Acho que

haveria só um problema: nós nos lançaríamos por terra para

venerar uns aos outros.

A inocência da visão infantil é celebrada em todas as tradições. Os

hindus tratam do aspecto infantil de Deus nas histórias em que o

Senhor Krishna é uma criança sagrada que toca flauta entre as

ordenhadoras e as flores. O Cristianismo celebra o nascimento de

Cristo Menino perto do solstício do inverno e tem imagens do

Menino Jesus nos braços de Sua mãe. O místico Angelus Silesius

ensina: "Se você fizer no coração uma manjedoura para o Seu

nascimento, então Deus vai se tomar criança nesta terra outra vez."

Todos os anos, os budistas da Tailândia e do Laos jogam água nos

monges do mosteiro, banhando cada um deles como se fosse o

Buda Menino que acabou de nascer.

Ajahn Chah dizia que, para atingir essa inocência, basta confiar na

mente original. Ele ensinava que a Mente Original está sempre aqui

- é o silêncio entre os pensamentos, a consciência fundamental,

clara, desobstruída e pura. É estar aberto antes e depois da

experiência, acatando o sofrimento e a alegria com compaixão

ilimitada. Um koan zen nos põe na direção dessa Mente Original:

"Mostre o rosto que você tinha antes de seus pais nascerem."

VER COM OS OLHOS DO MOMENTO

No coração inocente nada se repete. Quando o filósofo grego

Heráclito disse que não dá para entrar duas vezes no mesmo rio,

ele sabia também que não dá para encontrar duas vezes a mesma

pessoa, que a palavra "pão" não faz justiça à forma e à textura do

pão, ao momento em que passamos manteiga numa fatia para levá-

Ia à boca. Rumi festeja esse frescor:

Senhor, hoje o ar cheira bem, direto dos mistérios

dos pátios internos de Deus.

Uma graça como a de roupas novas atiradas no jardim,

remédios de graça para todos.

As árvores em prece, os pássaros em louvor.

Não dá para prever como a consciência do mistério vai redespertar

em nós, ou em que forma. Há muito tempo, eu vivia com um de

meus primeiros amores e seus filhos, Seth e Chani. Quando as

crianças tinham três e cinco anos, o circo Ringling Brothers chegou

à cidade. Comprei ingressos para nós bem perto do picadeiro, na

segunda fileira.

As crianças gostaram dos palhaços e dos tigres. Os outros números

- a corda bamba, os ilusionistas, os contorcionistas, os cavalos

ensinados - não pareceram tão extraordinários aos olhos delas.

Mas então vieram os elefantes e seus domadores vestidos com

plumas e lantejoulas. Eles deram duas voltas no picadeiro,

chegando bem perto de nós. Então pararam, enquanto o mestre-de-

cerimônias falava. De repente, o grande elefante, bem à nossa

frente, começou a fazer xixi: uma cachoeira jorrou na areia,

formando uma poça gigante. Os olhos das crianças se arregalaram.

E então o elefante começou a fazer cocô. Esferas enormes, do

tamanho de bolas de boliche, caíram pesadamente no chão, uma

por vez, plop, plop, plop. E a cada uma delas a emoção crescia.

As crianças falaram do circo durante muito tempo. E o que

contavam e recontavam era a história do elefante. Foi o número de

circo mais extraordinário de todos.

É a própria vida que é extraordinária, cada momento é único. O Zen

respeita esse mistério como ele é - uma coisa de cada vez. Como

ensina Kodo Rishi: "Você não come para fazer cocô, você não faz

cocô para produzir adubo." Com os mesmos olhos de sabedoria,

não praticamos a meditação ou a prece para criar uma realidade

especial. Comer, andar, falar, ver, respirar, defecar - cada coisa é

extraordinária em si mesma.

Esse coração inocente, a nossa Natureza Búdíca, a Criança do

Espírito, o Sagrado interior nunca se degrada nem se perde. Nunca

nasce e nunca morre. Ver dessa maneira é ver, como diz o Tao,

"com os olhos livres dos anseios". Quando despertamos o coração

inocente, encontramos o nosso verdadeiro lar. À vontade,

celebramos as maravilhas simples de cada dia.

O Mestre Zen Dogen nos diz:

A vida de um dia é suficiente para comemorar. Mesmo que você

viva só um dia, se estiver desperto, esse único dia é imensamente

superior a uma interminável vida de sono... Se numa vida de cem

anos esse dia se perde, será que você vai tocá-lo outra vez com as

mãos?

A RISADA DO SÁBIO

A antiga cidade de Kyoto é o lar dos mais primorosos mosteiros do

Japão. Muitas pessoas vão para lá em peregrinação para sentir os

jardins de pedras, para se prosternar nos templos ou para tomar

chá perto de seus santuários. Um dia, durante uma visita, o poeta

zen Bashô escreveu estas linhas:

Mesmo em Kyoto,

Ouvindo o canto do cuco

Tenho saudades de Kyoto.

Essa saudade sagrada é a de voltar para onde estamos e "ver o

lugar pela primeira vez". Voltamos, então, à nossa verdadeira

natureza. Sri Nisargadatta tinha o costume de rir e perguntar: "Por

que não confia? Você está na sua própria casa." Dizia ainda:

"Pensar em renunciar ao mundo é um erro. Você não precisa

renunciar ao mundo, mas renunciar apenas ao esforço e ao medo.

Você renuncia aos pequenos prazeres pelo prazer maior do Divino."

O I Ching diz: "Uma revolução deve alegrar o coração das

pessoas." Entregar-se ao despertar é um ato revolucionário, uma

transformação do mundo. Mahaghosananda, do Camboja, ensina

que, mesmo em meio ao sofrimento do próprio povo, é possível

manter o coração feliz. Ele explica que o objetivo da prática budista

é despertar no coração a compaixão e a benevolência, haja o que

houver. Se não dá para ser feliz, qual é a utilidade da prática? E é

na sabedoria do coração aberto e sereno que acatamos todas as

formas deste mundo com compaixão e ternura, sabendo que elas

aparecem só uma vez. Repousamos em sua fonte perene, na graça

eterna de onde tudo vem.

Os tibetanos sussurram essa sabedoria sagrada nos ouvidos dos

moribundos: "Lembre-se da luz, da luz pura da qual vem tudo o que

há no universo, para a qual tudo volta, para a natureza original da

sua mente. Essa é a sua verdadeira natureza, é a sua casa."

Essa sabedoria é cantada na prece da unidade do Judaísmo, é

adorada no Espírito Santo do amor cristão, é celebrada no Brahman

eterno pelos hindus e é a essência do Tao.

Se você não conhece a fonte,

você tropeça na confusão e na tristeza.

Se sabe de onde vem,

você se toma naturalmente tolerante,

desinteressado, divertido,

bondoso como uma avó,

digno como um rei.

Mergulhado na maravilha do Tao,

você sabe lidar com tudo o que a vida traz,

e então, quando a morte vem, você está preparado.

(Tradução de Stephen Mitchell)

Quando encamamos essa verdade, a vida se toma uma bênção.

Compaixão, compreensão, uma liberdade alegre toca tudo o que

encontramos. Uma radiância de amor sai de nós como as plantas

que brotam nas frestas do cimento. Ficamos como os antigos bules

de chá chineses. Dizem que quando um bule de chá é usado por

uma família chinesa durante cem anos ou mais, não é mais

necessário pôr chá dentro dele. Basta pôr água, que o bule faz o

chá sozinho.

Como o bule, nós somos a fonte. Deixando de lado a ambição e o

medo, nós voltamos para casa. Sem imitação, nós nos tomamos

quem somos. Nosso ser fica à vontade, nosso coração se abre.

Alegria e liberdade de espírito enchem os nossos dias.

Uma história que tem esse espírito me foi contada por um amigo

que assistiu à palestra do Dalai Lama sobre a Roda do Tempo

Tibetana, no Madison Square Garden. Como essa é uma das

práticas Vajrayana mais elevadas, foi introduzida por um ritual

complexo e respeitoso. Pintaram mandalas de areia.

Montaram para o Dalai Lama um trono muito elegante, coberto com

tapetes e brocados. Quando a multidão se acomodou, um grupo

colorido de lamas e monges começou a entoar cânticos sagrados,

acompanhados pelo som de sinos tibetanos, címbalos e grandes

cometas montanhesas. O Dalai Lama entrou, andou pelo carpete e

subiu para ocupar o lugar do Dharma, no topo do trono. Para deixar

o assento mais confortável, os organizadores tinham empilhado

colchões cobertos de brocado. O Dalai Lama sentou-se, afundou e

pulou. Um sorriso iluminou o rosto dele. Pulou de novo e sorriu mais

ainda. E na frente de milhares de alunos, antes de falar coisas

elevadas sobre a Roda do Tempo e a criação do mundo, o Dalai

Lama ficou pulando nos colchões, feliz como uma criança.

Para terminar este livro, eu reverencio a plenitude de cada um de

vocês, a verdadeira natureza de vocês. Que a jornada os conduza

para casa. Que possam repousar na graça, na compaixão natural e

num coração liberto. Em tempos de alegria ou tristeza, no êxtase ou

lavando a roupa suja, que vocês sejam felizes. Que os que lerem as

palavras deste livro encontrem liberdade e alegria. Que o amor de

vocês traga beneficio a todos os seres. E que, em meio a tudo isso,

vocês se lembrem de pular no colchão.

Quanto a mim, só conheço milagres.

WALT WHIIMAN

AUTORIZAÇÕES

Agradecemos aos seguintes editores e autores pela autorização de

reproduzir partes do excelente conteúdo de seus livros: Open

Secret: Versions of Rumi, traduzido [para o inglês] por Coleman

Barks.

Reproduzido com permissão da Threshold Books, Aptos, Califórnia.

Agradecimentos a Robert Bly e Michael Meade pelas versões orais

de onde foram extraídas as histórias de Baba Yaga e da Princesa

Aris, e a Coleman Barks pelas imagens do camelo, do leão e da

criança, que aparecem em seu livro de traduções de Rumi chamado

Feeling the Shoulder of the Lion, Threshold Books, Aptos,

Califórnia, 1991.

New and Selected Poems, de Mary Oliver. Copyright © Mary Oliver,

1992.

Reproduzido com permissão de Beacon Press, Boston.

The Gold Cell, de Sharon Olds. Copyright © Sharon Olds, 1987.

Reproduzido com permissão de Alfred A. Knopf, uma divisão da

Random House, Inc.

Selected Poems of Rainer Maria Rilke, edição e tradução [para o

inglês] de Robert Bly. Copyright © Robert Bly, 1981. Reproduzido

com permissão de HarperCollins Publishers, Inc.

Teachings of the Buddha, de Jack Kornfield. Trechos de "Fíre

Sermon", de Mahavagga, p. 42; "The Eye of Wisdom", "Sutra of

Forty-Two Sections", p. 132; "Song of Zazen", p. 205. Reproduzido

conforme negociações com Shambhala Publications, Inc., Boston.

Poemas de Symeon o Novo Teólogo e Angelus Silesius em The

Enlightened Heart, de Stephen Mitchell, Copyright © Stephen

Mitchell, 1989. Reproduzido com permissão de HarperCollins

Publishers, Inc.

As linhas de Ernily Dickinson foram reproduzidas com permissão

dos editores e curadores do Arnherst College e extraídas de The

Poems of Emily Dickinson, Ralph W. Franklin, ed., Cambridge,

Mass.: Belknap Press da Harvard Universíty Press. Copyright ©

Presidente e Conselheiros do Harvard College, 1998.

Copyright © Presidente e Conselheiros do Harvard College, 1951,

1955, 1979.

Returning to the Source, de Wilson Van Dusen. Reproduzido com

permissão da Real People Press.

AB linhas "I lay on the bowsprit..." são extraídas de Long Day's

Journey into Night, de Eugene O'Neill. Copyright © 1956. Editado

pela Yale Üníversity Press.

One Robe, One Bowl: The Zen Poetry 01 Ryokan, tradução [para o

inglês] de John Stevens, com permissão de Weatherhill, Inc., Nova

York.

Heart of the Enlightened, de Anthony de Mello. Copyright © The

Center for Spiritual Exchange, 1989. Usado com permissão da

Doubleday, uma divisão da Random House, Inc.

The Kabir Book, de Robert Bly. Copyright © Robert Bly, 1971, 1977.

Reproduzido com permissão da Beacon Press.

Excerto de "The Continuing Adventures of Bhagawan Das", de

Linda Johnson.

Reproduzido em Yoga International, NovembrojDezembro de 1995.

The Selected Poetry of Rainer Maria Rilke, edição e tradução [para

o inglês] de Stephen Mitchell. Copyright © Stephen Mitchell, 1982.

Reproduzido com permissão da Random House, Inc.

Agradecimentos ao Ajahn Sumedho, do Mosteiro Amaravati,

Inglaterra, pela transcrição de Cittaviveka.

A história de Milarepa e os demônios foi extraída de The Jewel in

the Lotus, de Stephen Batchelor. Reproduzido com permissão do

autor.

Agradecimentos a Wendy Johnson do Green Gulch Zen Center por

"Sitting Together Under a Dead Tree".

"Shakespeare in Cyberspace", de Robert H. Bell e William R. Kenan

Jr. Publicado pela Williams Alurnni Review. Reproduzido com

permissão dos autores.

The Experience of No Self, de Bemadette Roberts. Copyright ©

1982. Reproduzido com permissão da autora.

Excertos de Tao Te Ching, tradução de Stephen Mitchell. Copyright

© Stephen Mitechell, 1988. Reproduzido com permissão de

HarperCollins Publishers, Inc.

Tales of a Magic Monastery, de Theophane the Monk. Copyright ©

Theophane the Monk, 1981. Reproduzido com permissão de The

Crossroad Publishing Company.

Tomato Blessings and Radish Teachings, de Edward Espe Brown.

Copyright © 1997. Reproduzido com permissão do autor.

Excerto de "Little Gidding" em Four Quartets, de T. S. Ehot.

Copyright © T. S. Ehot, 1942, renovado em 1970 por Esme Valerie

Ehot. Reproduzido com permissão de Harcourt, Inc.

Same-Sex Love and the Path to Wholeness, de Robert H. Hopcke.

Copyright © 1993. Reproduzido conforme negociações com a

Sharnbhala Publications, Inc., Boston.

The Wisdom of No Escape, de Perna Chõdrõn. Copyright © 1991.

Reproduzido conforme negociações com a Sharnbhala Publications,

Inc., Boston.

"Saint Francis and the Sow" em Three Books, de Galway Kinnell.

Copyright © Galway Kinnell, 1993. Reproduzido com permissão de

Houghton Mifflin Co. Publicado anteriormente em Mortal Acts,

Mortal Words (1980). Todos os direitos reservados.

Walking Words. Copyright © Eduardo Galeano, 1993. Tradução ©

[para o inglês] de Mark Fried, 1995. Publicado por W. W. Norton

and Co., Inc. Reproduzido com permissão de Susan Bergholz

Literary Servíces, Nova York. Todos os direitos reservados.

lt Was on Fire When I Lay Down on lt, de Robert Fulghum.

Copyright © Robert Fulghum, 1988, 1989. Reproduzido com

permissão da Villard Books, uma divisão da Random House, Inc.

"Mothers of the Plaza de Mayo", de Sebastian Rotella. Copyright ©

Los Angeles Times, 1997. Reprodução autorizada.

As linhas "Os morangos são delicados demais... " são extraídas de

"What We Carne For" de Alison Luterman, publicado pela Sun

Magazine. Reproduzido com permissão da autora.

Coming Back to Life: Practices to Reconnect Our Lives, Our World,

de Joanna Macy e Molly Young Brown, 1988, New Society

Publishers, Cabriola Is., BC VOR 1XO, Canadá.

"Reverse Living" me foi passado por um aluno num retiro.

Procuramos por todos os meios identificar o autor, sem sucesso. Se

alguém souber quem é, por favor entre em contato com Jack

Kornfield para que se faça um agradecimento.

Trecho de uma palestra dada por Frank Ostaseski, fundador do Zen

Hospice Project, Com permissão do autor.

Natural Great Perfection, edição do Lama Surya Das. Copyright ©

Snow Lion Publications, 1995. Reproduzido com permissão do

autor.

Agradecimentos a Sarah Wellinghoff por organizar as autorizações.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, uma prosternação de verdadeira gratidão pelos

relatos pessoais de quase uma centena de mestres zen,

professores de meditação, lamas, freiras, monges, padres, rabinos,

swamis e estudantes cujas histórias aparecem neste livro. Essas

histórias, alteradas apenas para preservar a privacidade dos

envolvidos, são todas verdadeiras. Como as entrevistas foram

confidenciais (para que os entrevistados tivessem mais liberdade),

não posso citar nomes, mas o brilho da entrega à jornada espiritual

impregna as palavras. Obrigado a todos, queridos e respeitados

amigos.

Em seguida, minha profunda gratidão a Evelyn Sweeney, que aos

oitenta anos trabalhou durante três meses nestas páginas,

transcrevendo, digitando e editando com imenso cuidado. Sem a

dedicação incansável de Evelyn, este livro não estaria em suas

mãos.

Jane Hirshfield é a editora-chefe deste volume e é uma bênção

trabalhar com ela. É uma poeta de coração e uma mestra que edita

com caneta e espada, agraciando estas páginas com a sua

compreensão clara do Caminho.

Toni Burbank, minha sábia editora da Bantam, esteve sempre

presente com recomendações sensatas e generosas. No mundo

editorial, é um privilégio raro contar com a compreensão e o

incentivo de uma mentora como ela.

Sou grato também por tudo o que aprendi ao longo dos anos com

meus colegas-professores: os dezesseis membros do Conselho de

Professores de Spirit Rock, Ajahn Amara, Guy Armstrong, James

Baraz, Sylvia Boorstein, Eugene Cash, Deborah Chamberlin-Taylor,

Sally Clough, Howard Cohn, Anna Douglas, Gil Fronsdal. Robert

Hall, Phillip Moffitt, Wes Nisker, Mary Orr, John Travis e Julie

Wester. Os meus antigos colegas, Stan e Christina Grof, Michael

Meade, Malidoma Somé e Luis Rodriguez, Joseph Goldstein e

Sharon Salzberg, Ram Dass e Stephen Levine, assim como o

crescente círculo de amigos-professores de todas as linhagens.

E agradeço especialmente à minha mulher e à minha filha, Liana e

Caroline. Seu amor e sabedoria me confortam o tempo inteiro.

Jack Kornfield

Spirit Rock Center

2000