antologia do extase

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Pierre WeiI Antologia do Êxtase tradução Patricia Cenacchi Editora Palas Athena

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  • Pierre WeiI

    Antologia do

    xtase traduo

    Patricia Cenacchi

    Editora Palas Athena

  • SUMRIO INTRODUO GERAL SOBRE A EXPERINCIA MSTICA ............................................................. 01 A contribuio dos estados superiores da conscincia ............................................................... 02 Um testemunho pessoal Uma coletnea indita Uma esperana para o homem contemporneo Uma nova forma de conhecimento. A descoberta da unidade fundamental das tradies espirituais por uma filosofia e uma metafsica experienciais

    A ABORDAGEM TRANSPESSOAL: O OLHAR DA CINCIA SOBRE OS ESTADOS MSTICOS . 16

    Fatores do interesse crescente pela experincia transpessoal ................................................... 17

    Um novo ramo da psicologia Principais caractersticas da experincia transpessoal Algumas distines fundamentais Outros aspectos experimentais Por uma viso holstica da realidade

    COLETNEA DE TESTEMUNHOS ANTIGOS E MODERNOS ........................................................ 28

    Testemunhos ocidentais contemporneos .................................................................................... 29

    Testemunhos annimos citados por Aime Andr. Depoimento annimo citado por Lilian Silburn Richard Maurice Bucke

    Fritjof Capra Karl Jaspers Sigmund Freud Chefe Sioux Cervo Negro Arnaud Desjardins Denise Desjardins Karlfried Graf Drckheim Albert Einstein Padre Jos Incio Farah Andr Frossard Jeanne Guesn Max Jacob Wllliam James CarI Gustav Jung Sra. D.K. Krishnamurti Genevive Lafrancti Lamarttine Samuel Lambert Cinco relatos colhidos por Timothy Leary John Lilly J. S. mdico Satprem Jacques Maritain A Me (de Auroville) Milosz Anagarika Munindra Rembrandt Jean Paul Sartre Henri La Saux Lanza Del Vasto

    A VIADO BUDA ................................................................................................................................... 81

    O budismo .......................................................................................................................................... 82 Satori Bassui Khempo Jamyang Dorje Longchenpa Marpa Testemunhos de discpulos do Buda

    A EXPERINCIA DO REINO DOS CUS VIVIDA NO CRISTIANISMO ........................................... 97

    O reino ................................................................................................................................................ 98 So Joo do Alverne So Francisco de Assis Santa Teresa Dvila So Bento William Blake Jesus Cristo Padre Joo Crisstomo Santo Agostinho Jacob Boehme So Joo da Cruz Mestre Eckhart So Joo, o evangelista So Paulo Blaise Pascal Santa Teresa do Menino Jesus O eremita Julienne de Norwich Valentino.

    O HINDUISMO: IOGA E TANTRA ..................................................................................................... 117 Brahman ............................................................................................................................................. 118 Ramana Maharishi Gopi Krishna Tukaram Maharaj Muktananda Sri Ni Sargadatta Mata Raj Rabindranath Tagore Paramahansa Yogananda

  • A TRADIO JUDAICA ..................................................................................................................... 139

    Viso ................................................................................................................................................. 140 Baal-Shem Tov Discpulo de Abulfia Ezequiel Maguid Moiss Rabi Haya Rabi Simon Ren Yochai.

    A VIA MSTICA DO ISL.................................................................................................................... 155 O sufismo ........................................................................................................................................... 156 Bahauddin Omar Ibn Ul Fridh Rm "A um s busco..." Xeque Ahmad de Sarhand Bbkh de Shirz Yunus Emre.

    O TAOSMO ........................................................................................................................................ 169

    Fazer-se um com o Tao..................................................................................................................... 170 Hou Ts

  • INTRODUO GERAL SOBRE A EXPERINCIA MSTICA

  • A CONTRIBUIO DOS ESTADOS SUPERIORES DA CONSCINCIA

    UM TESTEMUNHO PESSOAL

    Cerca de vinte anos atrs, uma experincia inusitada provocou uma reviravolta em minha vida, consagrada pesquisa cientfica e ao ensino da psicologia na universidade.

    No fosse tal experincia, sem dvida, jamais teria adquirido a convico, a compreenso ou a coragem suficientes para colocar em risco minha reputao cientfica publicando esta antologia, da qual uma das vantagens ser mostrar a todos aqueles que passaram pela mesma experincia, e anseiam por comunic-la, que eles no esto sozinhos no mundo.

    Alm disso, pensamos ter reunido aqui provas considerveis de que se trata de um estado de excepcional riqueza, tanto do ponto de vista do conhecimento e da sabedoria, como do despertar de um amor ilimitado, oculto e guardado em cada um de ns, sem qualquer exceo. Esta coletnea contm as provas da existncia, em ns mesmos, de um potencial de experincia direta do real, sem a mediao de nossas funes mentais propriamente ditas, isto , para alm do pensamento, da memria ou do intelecto.

    Numa noite de Natal, estava eu reunido com amigos, participando alegremente daquela comemorao. Enquanto danava com uma amiga, dei-me conta, subitamente, de que o meu ritmo e o dela formavam uma estranha e indissolvel unidade. Jamais havia vivido algo to harmonioso; tal harmonia, por sua vez, proporcionava-me uma felicidade indescritvel.

    Pouco tempo depois, sentado diante dela, percebi, de repente, que seu rosto estava envolto por uma luminosidade azulada; um azul semelhante ao que se desprende nas soldaduras feitas com acetileno.

    A mistura do azul com a tonalidade natural de seu rosto conferia uma colorao acinzentada sua figura, o que aumentava ainda mais o carter estranho e inusitado da experincia; nesse exato momento, pensei que estava sob os efeitos de uma alucinao esquizofrnica e que deveria ser internado imediatamente. Entrei em pnico. Entretanto, como vinha praticando ioga h muitos anos, compreendi rapidamente que estava comeando a perceber a aura de minha amiga; tal compreenso me tranqilizou, possibilitando, assim, o prosseguimento da experincia.

    A colorao cinzenta era ainda mais acentuada ao redor de seu olho direito. Eu soube, ento, por uma via intuitiva, que seu olho estava enfermo; mais tarde, ela o confirmou, contando que deveria submeter-se a uma cirurgia oftalmolgica. Eu me tornara clarividente...

  • De sbito, uma luz dourada e fascinante surgiu em um dos cantos da sala; assemelhava-se a uma cortina de luz, uma verdadeira viso do gnero descrito na Bblia. Ela possua um carter sagrado e emanava qualquer coisa que me transmitia o sentimento muito claro de uma presena invisvel a meus olhos fsicos, porm perceptvel diretamente, se que posso me exprimir assim. O sentimento de algo sagrado se intensificou; entrei num estado de arrebatamento, espanto e elevao espiritual extrema.

    Depois, v partculas luminosas e cintilantes no ar, que logo identifiquei como sendo a manifestao da microestrutura subatmica. Um sentimento de poder ilimitado tomou conta de mim, e reconheci que podia penetrar, com os olhos do esprito, nos ns da madeira de pinho do chal onde me encontrava.

    Um detalhe que me parece importante: primeiro, todas essas vises eram recebidas margem de meu campo visual, isto , era preciso que olhasse de lado os objetos ou luzes em questo; e segundo, embora-me fossem externas, dei-me conta de que no poderia afirmar o carter de tais percepes: se era externo ou interno. Elas no estavam, de fato, nem dentro, nem fora: tratava-se de uma outra dimenso espacial.

    Olhando de novo para minha amiga, enxerguei cinco cabeas humanas cortadas, localizadas aproximadamente no nvel de seu abdmen; identifiquei-as como sendo de mongis ou caucsios. Minha amiga me contou que sua me era caucasiana. Porm, quando olhei novamente para seu rosto, tive a ntida impresso de enxergar a Me de Auroville, que trabalhara com Sri Aurobindo e de que o local onde me encontrava tinha qualquer coisa a ver com seu ashram ou comunidade. Dez anos mais tarde, fiquei sabendo que Michael Murphy, o fundador de Esalem em CarmeI, na Califrnia, onde eu estava naquela ocasio participara efetivamente em Auroville, na qual se inspirou para criar Esalem... Eu me perguntava sobre o significado daquela viso das cabeas cortadas. Alm de nunca ter visto nada semelhante, minha tradio cultural no tinha vnculo algum com a dos mongis. A resposta chegou um ano mais tarde, na ndia, num templo de Kali. Reconheci, subitamente, aquelas cabeas cortadas: elas formam o colar de Kali e simbolizam o desapego. Com efeito, descobri bem mais tarde a relao com sua raiz no mental, isto , na cabea. Cortar a cabea significa se separar da influncia da dualidade sujeito-objeto e da tendncia do sujeito a apegar-se aos objetos, idias ou pessoas que lhe proporcionam prazer, e a rejeitar as causas de sofrimento.

    Lembro-me agora que, poca dessa viso, eu me encontrava particularmente desapegado e aberto aos outros.

    Porm foi apenas quando conheci Kanjur Rinpoche e Tulku Pemala, dois lamas tibetanos, em Darjeeling, ao norte da ndia, que me dei conta de que os mongis eram tibetanos. Quando relatei a experincia a Tulku Pemala, ele me indagou: Quantas eram as cabeas cortadas? Depois, acrescentou: O senhor teve uma viso parcial de uma realidade muito mais ampla...

    Como nesta vida eu jamais tivera contato com esse tipo de simbolismo, reconheci pela primeira vez, em mim mesmo, a existncia dos arqutipos descritos por C.G. Jung como sendo imagens representativas de potenciais energticos, parte integrante do inconsciente coletivo. Eu me pergunto, hoje, se no se tratava de meu inconsciente individual e de uma memria arcica pessoal; eu no fora preparado para ter vises orientais. De origem judia e crist, fui criado na Alscia... Mais tarde,

  • sob a influncia de uma iniciao recebida de Muktananda, tive uma outra experincia, a da elevao da energia primordial da kundalini, prtica sobre a qual o leitor encontrar uma breve exposio terica no captulo referente s experincias hindustas. Durante vrias horas, vi unidades luminosas elevando-se ao longo de meu corpo; tratava-se de uma luz inteligente, e eu estava consciente de que ela trabalhava um bloqueio no nvel do centro energtico da garganta. Uma vez mais, tal como na experincia de Esalem, fui inundado por uma alegria imensa e por uma irresistvel disposio para auxiliar os outros a passarem por esse tipo de experincia. Um amor imenso por toda a humanidade tomou conta de mim; permaneci nesse estado de graa por vrios dias.

    Desculpo-me junto ao leitor por comear com um testemunho to pessoal, mas desejava falar diretamente ao seu corao.

    Alguns podero censurar-nos por publicar experincias ntimas, cujo carter sagrado. Sem dvida alguma, o inconveniente maior deve-se ao fato de que esta leitura pode-se constituir num obstculo queles que j esto ou querem ingressar num caminhar, o conhecimento do contedo da experincia transpessoal pode criar disposies no esprito das pessoas, bem como preconceitos capazes de impedir a experincia real, entrav-la seriamente ou, ainda, deform-la. Pode acontecer, tambm, a interveno do mental que reconhece a experincia, o que bloquearia o seu prosseguimento.

    Mas por outro lado, a ignorncia e o ceticismo com respeito vida mstica so tais que somente os testemunhos e investigaes cientficas dos quais fornecemos apenas um resumo em seguida a esta apresentao permitiro convencer os mais reticentes; sobretudo tendo em vista que estes podero perceber, por conta prpria, as semelhanas entre os testemunhos. E como se um astronauta, a caminho da Lua, contasse que a Terra azul e tal informao, como de fato ocorreu, fosse confirmada por outros cosmonautas e tambm por fotos. A comparao dos testemunhos entre si e o registro fisiolgico dos indivduos em estado transpessoal so quase igualmente convincentes.

    Eis porque decidimos ir alm do primeiro argumento. De qualquer modo, a maior parte destes textos j foram publicados. O indito a reunio deles em um s volume.

    UMA COLETNEA INDITA

    Este livro destina-se, portanto, a todos aqueles que j ouviram falar da experincia mstica e dos estados superiores da conscincia, e que gostariam de entrar em contato direto com os testemunhos daqueles que verdadeiramente experimentaram tais estados. Para facilitar essa tarefa, que implicaria uma extensa pesquisa bibliogrfica ou numerosas viagens em busca de alguns de nossos contemporneos, decidimos efetuar esse trabalho para o leitor. Pela primeira vez, ao que saibamos, quer sejam as pessoas interessadas em geral, quer se trate de cientistas, filsofos, artistas ou espiritualistas, tm a seu dispor uma compilao de descries desses estados.

  • Embora tais descries no tenham seno um valor relativo posto que o inefvel constitui, em verdade, uma de suas caractersticas essenciais elas representam, para aqueles que no tiveram essa experincia, a nica maneira de se aproximar dela, at que eles prprios se empenhem num caminho. Tambm podero perceber as semelhanas existentes entre esses testemunhos, oriundos de diferentes pocas e culturas, e que se trata de um fenmeno humano de carter universal e no, como alguns gostariam de nos fazer crer, do apangio de uma tradio especfica, embora encontremos certas diferenas no enfoque ou na forma de exposio. De fato, o nico objetivo das tradies despertar nas pessoas esse estado transpessoal.

    Apesar de termos redigido uma pequena introduo, resumindo a situao atual das pesquisas em psicologia transpessoal esse novo ramo das cincias humanas especialmente dedicado a tais estados desejamos evitar influenciar o leitor com interpretaes mais profundas, que correriam o risco de se transformar em exegeses sujeitas a garantias. Porque preferimos deixar a ele a inteira liberdade de tirar suas prprias concluses, de fazer comparaes e, eventualmente, de retornar s fontes que transcrevemos esses testemunhos sem nenhuma espcie de comentrio. Alguns podero censurar-nos por isso, ficando aberta a estes a possibilidade de retomar este trabalho e de acrescentar suas prprias pesquisas.

    Portanto, gostaramos que este livro possa encorajar tais investigaes sem dvida alguma necessrias. Se, alm disso, alguns leitores encontrarem, graas a esta leitura, um novo significado para sua existncia e passarem a buscar um caminho, estaro contribuindo para nossa prpria felicidade.

    No entanto, podero perguntar alguns: qual a vantagem para o homem contemporneo imerso nesta civilizao cientfica e tecnolgica que lhe ofereceu um conforto que nem mesmo Lus XIV poderia imaginar em tomar contato com testemunhos de uma experincia interior de natureza espiritual e mstica? No estaria tudo isso ultrapassado pela investigao cientfica?

    UMA ESPERANA PARA O HOMEM CONTEMPORNEO

    Um exame mais atento dessa questo leva-nos a uma resposta mais do que

    evidente. Com efeito, observando se o que se passa no mais ntimo do corao daqueles que atingiram finalmente esse nvel de conforto tpico da poca atual, fcil comprovar que a felicidade que almejavam obter com tal conforto no foi alcanada. Alm disso, uma certa nostalgia toma conta de sua alma; a nostalgia de um paraso perdido que eles confundiram com esse conforto; continuam a buscar fora um estado de conscincia que se encontra neles mesmos. O Reino do Pai est em vs, j dizia Jesus, e Buda insistia em que o fim do sofrimento humano se encontra na descoberta da verdadeira natureza do esprito que est em ns. Esta descoberta acompanhada de um estado de paz e de uma plenitude indescritveis.

    A leitura dos testemunhos desta coletnea constitui, assim, uma garantia de que esse estado possvel, uma vez que ele sempre existiu, e, conforme se ver adiante, tende a aumentar medida que nos aproximamos do terceiro milnio. Ora,

  • justamente desse estado de Sabedoria primordial e de Amor que o homem contemporneo mais necessita. Sua neurose fundamental, qual denominamos de neurose do paraso perdido, provm justamente dessa separao resultante de um vu o vu de sis que separa nosso estado de viglia do estado transpessoal. Da rvore do conhecimento do bem e do mal, isto , da percepo dualista do real, ele capaz de regressar rvore da vida. O paraso encontra-se em ns mesmos, em cada um de ns, sem exceo. Eis a a mensagem fundamental que nos dirigem todos aqueles cujos testemunhos dessa experincia capital aqui reproduzimos; experincia que constitui o incio de uma autntica revoluo interior e se apia numa transformao de nosso sistema de valores. Quando se tocado pela graa dessa vivncia, nada mais tem importncia seno a Verdade, a Beleza e o Amor.

    Uma vez tocado pelo transpessoal, no h mais retomo possvel; preciso seguir adiante e tomar essa experincia cada vez mais permanente, transformando a numa maneira de ser na prpria vida cotidiana. Pouco a pouco, percebemos que no estamos ss, que existe uma Presena que nos guia, atravs de um aprendizado nem sempre fcil e, por vezes, doloroso. O esforo, todavia, vale a pena, pois freqentemente, aps prolongados sofrimentos morais, encontramos o verdadeiro sentido de nossa existncia, nossa verdadeira razo de ser neste planeta.

    As vantagens de tais leituras, entretanto, no terminam a. Do ponto de vista epistemolgico, h uma importante descoberta a fazer.

    UMA NOVA FORMA DE CONHECIMENTO

    Quando algum dia, no terceiro milnio, se indagar qual tenha sido a mais importante descoberta do sculo XX, a resposta no ser, sem dvida, a energia atmica, nem os universos paralelos, mas sim o estado transpessoal da conscincia, ou conscincia csmica.

    Essa descoberta constitui hoje o ponto de encontro e de convergncia da fsica moderna e da psicologia, encontro bastante inesperado quando se tem em mente a distncia aparente entre essas duas disciplinas; no obstante, os estados msticos e as perspectivas das grandes tradies espirituais da humanidade atraram a ateno de numerosos fsicos modernos.

    Ao retornar da Lua, o astronauta Edgard Mitchell declarou que mais importante do que a explorao dos espaos exteriores a investigao dos espaos interiores. Foi em conseqncia de uma experincia mstica, ocorrida durante a viagem espacial, que ele abandonou sua profisso para se dedicar a pesquisas e criar um instituto de cincias noticas.

    Ao visitar um reator nuclear na Califrnia, o grande mestre xivata Muktananda indagou ao fsico que o acompanhava: O que essa colorao azul luminosa? E este lhe respondeu: da energia pura. Muktananda disse, ento, que via essa energia o tempo todo ao redor de si, sem ter necessidade de toda aquela

  • equipagem. Um dia, ao receber Edgard Mitchell, que lhe contou sua viagem Lua, ele disse: Vou para l quando quero, sem necessidade de mquina alguma! Sabe-se hoje, graas s pesquisas em psicologia transpessoal, que tais proezas no apenas so possveis, como podem ser realizadas atravs de certos tipos de treinamento.

    Ainda que apelemos simplesmente ao nosso bom senso, evidente que se aquilo que denominamos esprito foi o que dominou a energia atmica e descobriu os princpios que nos permitem viajar para outros planetas, esse esprito, evidentemente, mais poderoso do que as energias que ele observa ou manipula. No ser, portanto, o conhecimento da natureza do esprito o verdadeiro caminho que nos possibilitar conhecer a natureza da Natureza? exatamente isso que afirmam todas as tradies espirituais ao insistirem no preceito conhece te a ti mesmo. Tomando contato direto com esse microcosmos que somos que temos acesso ao macrocosmos, pois o primeiro vem a ser uma miniatura do segundo; com efeito, eles so to inseparveis quanto o so as folhas ou os galhos de uma rvore, ou as ondas do mar.

    Ora, essas tradies foram criadas e mantidas por homens cuja qualidade excepcional deu-lhes condies de acesso a outros estados de conscincia.

    Na verdade, nosso estado de viglia semelhante ao estado de sonho, do qual precisamos despertar.

    Esse despertar foi objeto de descries de um grande nmero de pessoas de diferentes pocas e culturas. Esses testemunhos nos fazem lembrar as descries da realidade feitas pelos fsicos.

    Um dos pioneiros da psicologia transpessoal, Lawrence Le Shan1, realizou uma interessante experincia h alguns anos: misturou frases pronunciadas por fsicos de renome com frases tiradas de testemunhos de experincias transpessoais. Eis alguns exemplos:

    1. ... percebemos, cada vez mais, que nossa compreenso da natureza no pode partir de qualquer conhecimento definido; que ela no pode estar edificada sobre uma fundao rochosa, mas que todo conhecimento se encontra, por assim dizer, suspenso sobre um abismo infinito.

    2. Toda tentativa de resolver as leis da causalidade, do tempo e do espao ser v, uma vez que tal tentativa s poderia ser feita pressupondo que a existncia desses trs fatores fosse garantida.

    3. Ao buscar compreender o continuum quadridimensional, preciso um esforo no sentido de evitar uma conceitualizao em termos sensoriais ou corporais. Ele no pode ser representado dessa forma, pois as imagens desse tipo so falsas e enganosas.

    4. Se retirarmos o conceito de absoluto do espao e do tempo, isso no significa que o absoluto tenha sido banido da existncia, mas, de preferncia, que foi identificado com alguma coisa mais especfica... essa coisa fundamental o um sem segundo (mltiplo quadridimensional).

    5. A realidade ltima unificada, impessoal, e pode ser captada se a buscarmos de forma impessoal, para alm dos dados fornecidos por nossos sentidos.

  • 6. Quando se busca a harmonia na vida, jamais se pode esquecer que ns prprios somos, ao mesmo tempo, atores e espectadores.

    1. Lawrence Lo Shan, Physicists and mystics: similarities in. world view, The. Journal of Transpersonal Psychology, 1969. vol. 1, n 2..

    Ao buscar distinguir as frases pronunciadas pelos msticos e pelos fsicos, o leitor ter, sem dvida, uma idia da dificuldade desse teste, composto por sessenta e duas frases.

    Os autores dos seis exemplos acima so:

    1. Einstein 2. Vivekananda 3. Santo Agostinho 4. Max Planc 5. Preceito da doutrina sufi 6. Niels Bohr

    No de admirar, portanto, que assistamos cada vez mais a encontros entre

    fsicos e msticos. Poderamos citar Einstein e Tagore, Paoli e Jung, ou, ainda, David Bohmn e Krishnamurti.1 Poderamos mencionar tambm as numerosas conferncias de encontro entre cincia e tradio, como as de Cordoue e Sukkuba, que resultaram na Declarao de Veneza, da Unesco. Esta ltima assinada por diversos prmios Nobel, reconhece que a cincia atingiu os limites onde se revela a necessidade de sua aproximao com as tradies espirituais.

    Alm disso, trata-se de um grito de alerta com respeito aplicao unilateral da tecnologia cientfica divorciada da sabedoria primordial.

    A DESCOBERTA DA UNIDADE FUNDAMENTAL DAS TRADIES ESPIRITUAIS

    O despertar desta sabedoria primordial, inseparvel do amor, constitui o

    apangio e o objetivo essencial de toda tradio espiritual seja ela hindusta, budista, islmica, crist ou judaica. At o sculo XX, a comunicao entre estas tradies era verdadeiramente pobre. Salvo raras excees, a desconfiana ou mesmo a hostilidade eram a regra, ocasionando, muitas vezes, conflitos, massacres e guerras religiosas. A partir do incio deste sculo, os dilogos e encontros entre representantes dessas diferentes tradies se multiplicam. Pouco a pouco percebemos a unidade fundamental de sua meta: o estado transpessoal. As vias que a ele conduzem constituem as diferentes metodologias, que, na prtica, no convm misturar.

  • 1. Krishnamurti, LEveil de lintelligence Stock, Paris, 1975, p. 597 e ss.

    A forma mais eloqente de demonstrar essa unidade de tradies fazer o que estamos apresentando hoje ao leitor, ou seja, reunir testemunhos oriundos de diferentes tradies a fim de compar-los entre si; este um dos objetivos essenciais da psicologia transpessoal, conforme veremos adiante. Esta descoberta de pontos comuns em tal experincia confirma plenamente o que j fora pressentido nos encontros inter-religiosos, podendo ser considerada, do ponto de vista da pesquisa, uma hiptese fundamental, que enunciamos da seguinte maneira:

    O estado transpessoal idntico em todas as tradies espirituais. Trata-se de um estado incondicionado e, portanto, independente de toda influncia cultural.

    Uma vez demonstrado, e tudo indica que est em vias de s-lo, este fato contribuir imensamente para aproximar as tradies e desenvolver atitudes de respeito e mesmo de colaborao mtua. Dessa forma, uma tradio ainda intacta pode revitalizar uma outra. Diversos monges e padres cristos afirmam terem se tornado mais cristos aps um estgio em monastrios hindustas ou budistas.

    Cerca de quarenta anos atrs, durante um colquio de estudos carmelitas de psicologia religiosa e mstica comparada, Olivier Lacombe1 j declarava:

    Estou persuadido, juntamente com R.P. Bruno, que ser do mais alto interesse repensar nossos mtodos espirituais ocidentais luz de uma reflexo aprofundada sobre as tcnicas somticas e psquicas, ou seja, do homem integral, pelas quais o Oriente cristo e no-cristo promovem as vias de uma espiritualidade sobrenatural explcita para o primeiro, e de uma espiritualidade natural ou sobrenatural implcita para o segundo.

    1. Olivier Lacombe, Technique et Comteplation, in Etudes CarmIitaines, Descle de Brouwer, Paris, 1949, p. 16.

    A presena de elementos tcnicos em nossos mtodos no duvidosa. Sua

    sistematizao cada vez mais apurada somente nos trar benefcios. Seria necessrio, tambm, investigar mais de perto esses estados complexos em que a atividade tipicamente humana e a orao transcendente se renem.

    Ao publicarmos esta coletnea de testemunhos, fazemos esse convite para investigar mais de perto esses estados complexos.

    POR UMA FILOSOFIA E UMA METAFSICA EXPERIENCIAIS

    Contudo, as vantagens de uma publicao como esta no se esgotam a.

    Alm de representar um ponto de encontro entre cincia e tradio e das tradies entre si, e de constituir, para as religies, uma retomada de sua razo de ser, acentua tambm o carter incompleto da abordagem intelectualista da filosofia contempornea.

    Tanto os pr-socrticos, quanto os hindustas ou os budistas no fazem distino nem separam a filosofia da arte e da cincia e sobretudo, da experincia espiritual.

    Enquanto nossa filosofia contempornea especialmente no que se refere

  • metafsica puramente racional e especulativa, a filosofia antiga se apoiava e inspirava na experincia transpessoal.

    Na ndia, a especulao filosfica desprovida da experincia interior vista com certo desdm pelos verdadeiros mestres.

    Eles recomendam um trip: a experincia meditativa acompanhada pela leitura de textos e a sabedoria discriminadora que permite o relacionamento das duas primeiras entre si.

    At mesmo o termo meditao significa, para o filsofo contemporneo, uma profunda reflexo intelectual. Na sua origem o termo significava, ao contrrio, o abandono do estado dualista do pensar a fim de se atingir o espao no dual da sabedoria primordial.

    Isto no quer dizer que no haja lugar para a racionalidade e para o controle do intelecto.

    Se verdade que a experincia transpessoal comea a onde a razo no mais suficiente para explicar o real, no menos verdade que a razo e a cincia tm o que dizer no campo experimental.

    Podemos mesmo afirmar que o experimental pode, em certa medida, controlar as variveis da experincia. disso que nos ocuparemos a partir de agora.

  • A ABORDAGEM TRANSPESSOAL O OLHAR DA CINCIA SOBRE OS

    ESTADOS MSTICOS

    O conhecimento cientfico, em razo de seu prprio movimento interno, atingiu os limites nos quais pode iniciar um dilogo com outras formas de conhecimento. Nesse

    sentido, e sempre reconhecendo as diferenas fundamentais entre a cincia e a tradio, constatamos no mais sua oposio, porm sua complementaridade.

    Declarao de Veneza. Unesco, Veneza, 7 de maro de 1986

    in La science aux cofins de Ia connaissance, Flin, Paris, 1987.

    Muitas pessoas de viso limitada definem a essncia da cincia como sendo um controle prudente, uma validao de hipteses, uma busca no sentido de verificar-se

    as idias de outras pessoas so corretas ou tido. Porm, como a cincia tambm uma tcnica de descobertas, seria necessrio aprender como estimular as intuies

    e vises de experincias culminantes e, em seguida, como trat-las enquanto dados. Abraham Maslow, The Farther Reaches of Human Nature,

    The Viking Press, Nova York, 1971.

    FATORES DO INTERESSE CRESCENTE PELA EXPERINCIA TRANSPESSOAL

    Ao longo das ltimas dcadas que precedem o final do sculo XX, podemos notar um interesse crescente, tanto por parte dos cientistas mais particularmente os psiclogos e antroplogos quanto das pessoas em geral por um tipo de experincia humana classificada pelos termos mais diversos, como por exemplo: xtase mstico, iluminao, nirvana, samdi, satori, reino dos cus, reino do Pai, stimo cu, debekut, experincia transcendental, me tendia, conscincia csmica.

    Cada cultura, cada civilizao, antiga ou atual, a menciona. evidente que hoje assistimos a um recrudescimento de sua manifestao, em especial nos Estados Unidos e, mais recentemente, na Europa. Tudo indica que ela no apenas o apangio de santos ou de msticos como Buda, Krishna, Moiss, Elias, Cristo ou Simon Ben Yochai, mas que acontece ou se expressa entre indivduos contemporneos que no so especialmente religiosos; os testemunhos reunidos neste volume evidenciam esse aspecto.

    Pode-se apontar diversos fatores como causas tanto do aumento do nmero desses casos como do crescente interesse geral pelo tema.

    Assinalemos, em primeiro lugar, o mal estar da humanidade perante a perspectiva de sua prpria destruio; diante dessa angstia, cada vez maior o nmero de pessoas que fazem, a si prprias, as perguntas fundamentais sobre o sentido da existncia e o lugar do homem no cosmos. E quando a pergunta se torna crucial e invade toda a existncia de um indivduo, poder deflagrar nele, por um

  • processo que se nos escapa, a entrada nesse estado de conscincia csmica. Um outro fator, este evidente, a diminuio das distncias geogrficas

    entre o Ocidente e o Oriente; a facilitao das comunicaes colocou os mestres e sbios da ndia, do Tibete, da China e do Japo ao nosso alcance. No mais necessrio viajar at eles. Eles vm a Paris, Londres ou So Francisco, criam escolas, cercam-se de discpulos e lhes comunicam um saber que aqui est quase perdido; despertam, naqueles que praticam seus ensinamentos, a sabedoria primordial oculta em cada um de ns. Seres humanos desespemdos e entediados reencontram em si prprios o sentido da vida, para alm do intelecto e da linguagem.

    Instaura-se, de maneira lenta mas segura, uma autntica terapia para os males de nossa civilizao e da humanidade, para aquilo que denominamos a neurose do paraso perdido.

    Poderamos imaginar, porm, que essa conscincia csmica, essa experincia transcendental, nada mais do que uma manifestao quimrica, uma espcie de fantasma alucinatrio, ou mesmo, como afirmam certos psiquiatras, um episdio ou crise psictica.

    neste ponto que intervm o terceiro fator: a pesquisa cientfica; ela prpria demonstra, de uma forma que poderamos considerar hoje irreversvel, que:

    Trata-se de uma fenomenologia autntica, passvel de controles experimentais rigorosos, fisiolgicos e psicolgicos.

    Sabe-se, por exemplo, aps os trabalhos de Thrse Brosse seguidos pelos de numerosos fisiologistas norte americanos que esses estados so acompanhados por modificaes do ritmo respiratrio, cardaco, eletrocutneo e eletroencefalogrfico, a tal ponto que se pode acompanhar nos grficos o incio e o trmino de uma mudana de estado de conscincia. Isto demonstra tratar-se de um fenmeno bastante real.

    O aspecto psicolgico dessas manifestaes fisiolgicas foi estudado por numerosos autores, por mtodos de anlise de contedo que permitem montar um quadro bastante preciso do conjunto e fazer um diagnstico daquilo que verdadeiramente transpessoal (ver figura 1 e quadros 1 e 2).

    As pessoas que atualmente vivenciam tal estado no apenas so normais como tambm, sobretudo no caso dos grandes mestres, apresentam uma inteligncia, ateno, memria, equilbrio emocional e senso prtico simplesmente excepcionais.

  • O REGISTRO FISIOLGICO DO ESTADO TRANSPESSOAL

    Experincias de Thrse Brosse utilizando arteiiograma, eletrocardiograma e pneurnograma (respectivamente de cima para baixo em cada um dos testes).

    Meditao de um raja-iogue visando o despertar da kundaline do samdi. (G. A. Madres, de origem ocidental, educado na ndia). 1) Artes da prtica Morfologia respiratrla indicando ira preocupao de esforo, tambm demonstrado pela hipertonia do pulso. 2) Manobras respiratrios profundas e violentas com vistas ao despertar da kundalini, com a concentrao mental sobre esta. Estimulao mecnica do traado arterial. 3) 4) 5) Samdi. Harmonia de todos os traados. Ritmos lentos indicando calma.

  • Conhecem-se, agora, os pontos comuns das diferentes tradies; essa vivncia possui um carter transcultural.

    Comea-se a descrever e a testar as variveis que permitem a elaborao de condies favorveis sua ecloso.

    Experincias clssicas de A. Kasamatsu e T Hirai com eletroencefaIogrficas de monges zen.

    Como se pode facilmente verificar, edste uma correlao entre a freqncia das ondas

    eletroencafalogrficas e o grau de experincia da meditao zazen

    1. Relaes entre o grau de alterao de ondas EEG e o nmero de anos dedicados ao treinamento de zazen.

    Estado

    Ondas teta rtmicas IV 0 0 3

    Diminuio da freqncia alfa III 3 2 3

    Aumento da amplitude alfa II 2 1 0

    Alfa com olhos abertos I 8 1 0

    Nmero de anos de prtica 0-5 6-20 21-40

    2. Relaes entre o grau de alterao das ondas EEG e a avaliao da experincia em meditao por um Mestre de zazen.

    Estado Ondas teta rtmicas IV 0 0 3

    Diminuio da freqncia alfa III 0 7 1

    Aumento da amplitude alfa II 2 1 0

    Alfa com olhos abertos I 5 4 0

    Nvel de avaliao Baixo Mdio Elevado

    Quadros 1 e 2

    1. Ver Pierre WeiI, A Conscincia Csmica, Editora Vozes, Pelrpolis, 1990 e Lhomme sans frontires. LEspace

    Bleu, Paris, 1987.

  • UM NOVO RAMO DA PSICOLOGIA

    Este tipo de pesquisa pertence, atualmente, a um novo ramo da psicologia: a psicologia transpessoal.

    Nascida na Califrnia em 1969 como a quarta revoluo da psicologia, resultante do movimento da psicologia humanista, podemos citar, entre seus precursores, os pioneiros da psicologia moderna, como William James, Carl Gustav Jung que cunhou o termo

    transpessoal e Abraham Maslow2. Este ltimo descobriu que 70% de seus alunos haviam passado, ao menos

    uma Vez na vida, por aquilo que ele denominava de uma experincia culminante ou de pice (peak experience) que os levou a descobrir os valores do Ser, tais como o amor, a beleza, a integridade, a totalidade, a plenitude, valores preferidos por eles queles ligados mera satisfao do desejo.

    Maslow nos mostra que isto se trata de uma aspirao normal de todo ser humano, de natureza instintiva, cuja represso ou privaao, comuns em nossa poca, possui efeitos patolgicos, da mesma forma que a ausncia de vitaminas.

    PRINCIPAIS CARACTERSTICAS DA

    EXPERINCIA TRANSPESSOAL

    Anlises rigorosas e de natureza intercultural do contedo de testemunhos como os que esto reunidos neste volume permitiram a elaborao de um perfil do conjunto. Poderamos citar, entre outros (ver tambm o quadro 3):

    a vivncia do espao como abertura do Ser; a vivncia de uma luz intensa;3

    1. Para uma viso geral e um balano atual do movimento, ver a excelente obra Alm do Ego Dimenses Transpessoais em Psicologia, organizada por Roger N. Walsh e Francas Vaughan, Editora Cultrix, So Paulo, 1991.

    2. Para uma histria e definio da psicologia transpessoal, ver Pierre Weil, Introduo Psicologia Transpessoal, Editora Vozes, Petrpolis, 5 edio, 1991. 1 Ver Pierre Weil, Quelle lumire?, Troisime millnaire, ns 4 e 5, Paris, 1987.

    o carter inefvel: no h palavras para traduzir sua beleza, poder e a natureza;

    o carter imediato e sbito: a experincia acontece no momento em que menos se espera;

    a dissoluo de toda espcie de dualidade: sujeito-objeto, interior-exterior, bem-mal, verdadeiro-falso, sagrado-profano, relativo-absoluto etc.;

    a dissoluo das trs dimenses do tempo e a tomada de conse seu valor relativo, ligado ao carter discriminativo do pensamento e da memria;

    a inexistncia de um eu ou ego; manifestaes de ordem parapsicolgica acompanham a vivncia ou se

  • manifestam posteriormente a ela: fenmenos de clarividncia, telepatia, psicocinesia, encontro de seres em outra dimenso, experincia de sada do corpo fsico (ver quadro 3). Convm fazer algumas observaes com respeito s manifestaes parapsicolgicas: se bem que elas freqentemente ocorram durante ou aps os estados transpessoais, e constinuam o apangio de numerosos, seno de todos os msticos, no convm consider-las como caractersticas transpessoais. De um lado por implicarem todas um sujeito e um objeto, o que significa dizer que so de natureza dualista. De outro, porque os fenmenos parapsiclogicos surgem muitas vezes em pessoas que no tiveram nenhuma outra manifestao de ordem transpessoal, possuindo, por vezes, uma tica pouco recomendvel. Os grandes mestres, alis, no lhes atribuem nenhum valor e recomendam a seus discpulos no lhes darem importncia. Insistimos neste ponto porque h uma grande confuso a esse respeito; confunde-se o parapsicolgico e o transpessoal.

    vivncias regressivas, viso como num filme de fases da vida passada, do nascimento e da vida intra-uterina,1 de memrias ancestrais, reencamatrias, animais, vegetais, minerais, celulares, moleculares, atmicas e subatmicas;

    a convico de ter Vivido a realidade tal como ela ; mudanas de sistema de valores e de comportamento posterior; perda do medo da morte.

    Categoria Grupo Total Sonho Pr-morte Meditao Droga Psicose

    Experincia fortuita %

    Encontro de seres 54 56 67 67 24 36 45 Vivncia de luz 52 44 63 58 41 9 55 Transcendncia espaco-tempo 48 44 30 48 76 82 47,5 Carter instantneo da experincia 37 44 14 27 18 18 55

    Conhecimento imediato por revelao 35 22 23 42 47 18 45

    Sentimento de unidade eu-universo 32 11 7 52 59 9 42,5

    Alegria 32 22 30 30 35 18 40 Inefabilidade 28 33 12 27 41 9 45 Experincia de sada do corpo fsico 28 44 53 12 35 9 12,5

    Sentimento da presena de Deus 25 0 2 52 29 9 37,5 Sentimento do carter real da vivncia 24 11 19 24 24 9 37,5

    Vivncia da inexistncia do eu ou ego 20 0 16 21 35 36 15

    Quadro 3

  • Comentrios: Elaboramos tambm uma anlise de contedo de relatos de experincias

    transpessoais. Aps analisar 1.802 frases, obtidas a partir de 153 testemunhos escritos, criamos 107 categorias diferentes de respostas. Uma pesquisa assim permite traar um quadro genrico daquilo que seja a experincia transpessoal, o que permitir defini-la melhor e verificar sua existncia nos diferentes grupos, como, por exemplo, no sonho, entre os pacientes terminais, na meditao, sob influncia de substncias farmaco-psicolgicas, em casos de psicose e de experincia fortuita. A ttulo de ilustrao, apresentamos aqui uma traduo dos resultados mais freqentes sob forma de porcentagens arredondadas (ver quadro 3).

    Esta pesquisa, que no tem seno um valor de sondagem preliminar, e deveria ser refeita com um nmero maior de casos e uma amostragem mais sistemtica, permite-nos, ainda assim, perceber certas diferenas entre os grupos.

    ALGUMAS DISTINES FUNDAMENTAIS

    Nos textos que aqui apresentamos encontraremos, de uma forma ou de outra, algumas dessas caractertsticas. Pode-se a distinguir duas grandes categorias de testemunhos:

    aqueles que traduzem uma vivncia autenticamente transpessoal, na qual no existe mais o ego ilusrio e onde predomina a abertura do espao atemporal do Ser;

    aqueles nos quais existe tambm um sujeito observador de luzes, cores, seres, fenmenos parapsicolgicos etc.

    Apenas a primeira categoria pode ser considerada autenticamente transpessoal, uma vez que no-dual. A segunda pode ser considerada pr-transpessoal.

    Convm distinguir, igualmente, no nvel transpessoal, dois tipos de testemunhos: o de uma vivncia espordica ou experincia transpessoal e o que exprime uma continuidade dessa vivncia na vida cotidiana, estendendo-se, inclusive, ao sonho e ao sono profundo sem sonhos. Trata-se aqui do estado transpessoal, que nao existe seno nos seres completamente realizados, o que de fato muito raro.

    possvel falar de experincia num estado onde no existe mais nem sujeito, nem objeto, nem relao entre ambos? Nosso vocabulrio pobre nesse terreno, o que explica o emprego de metforas e simbolos que variam segundo cada cultura e escola mstica.

    1. Pierre Weil, Anlise de contedo de relatos obtidos em estado de conscincia csmica, in Psicologia Clnica e Psicoterapia,

    InterIivros, Belo Horizonte, 1977, 1(2), pp. 55-82.

  • A vivncia transpessoal considerada, na ioga, como um dos quatro estados de conscincia que so: os estados de viglia, de sonho, de sono profundo sem sonhos e o transpessoal propriamente dito.

    OUTROS ASPECTOS EXPERIMENTAIS Medies e registros fisiolgicos iniciados antes da Segunda Guerra Mundial

    por Thrse Brosse, mostram ser possvel, hoje em dia, acompanhar com preciso o incio e o trmino da experincia transpessoal. Os registros eletroencefalogrficos correspondem queles do feto, do sono profundo e do estado terminal, porm nos casos transpessoais as pessoas examinadas esto plenamente conscientes.

    A existncia desses componentes fisiolgicos uma prova da realidade dessa experincia.

    Experincia de sada do corpo (ESC): como se pode facilmente verificar, h uma semelhana entre os resultados brasileiros e os resultados brasileiros e os de outras culturas.

    Grupo brasileiro N=44 Grupo de outras culturas N=49

    Experincia de sada do corpo ESC

    Sada do corpo fsico 48 47

    Cordo ligando o corpo fsico 45 33

    Viso exterior do corpo fsico 25 43

    Translocao 32 10

    Retorno ao corpo fsico 23 29

    Viso de um corredor 10

    Cordo ligando o corpo fsico

    A outro sistema 2 6

    Carter invisvel do sistema sutil 4 4

    Quadro 4

    1. Pierre weil, A Morte da Morte, Editora Gente. So Paulo, s/d.

    O estado transpessoal pode ser induzido ou desenvolvido atravs de mtodos e tcnicas que variam segundo as escolas tradicionais. Citemos os principais: a concentrao e a meditao, determinadas danas, certas artes marciais pacificas, mtodos respiratrios, a transmutao energtica no tantrismo, diferentes tipos de ioga e determinadas disciplinas religiosas propriamente ditas. Mais recentemente, mtodos de isolamento sensorial e estudos farma-copsicolgicos tm apresentado resultados encorajadores.

    Recordemos, para terminar, os estudos comparativos entre testemunhos como os aqui apresentados e as descries da realidade feitas por pesquisadores da fsica quntica. Como mostramos h pouco, h tal semelhana entre eles que se torna difcil distinguir uns dos outros.

  • POR UMA

    VISO HOLSTICA DA REALIDADE

    Isto provm do fato de que as duas vises a da fsica quntica e a das

    tradies so de ordem holstica, e implicam no apenas uma nova lgica, como a que foi proposta por Stphane Lupasco, mas uma mudana de paradigma, caracterstica de toda revoluo cientfica.

    Esta revoluo epistemolgica acompanhada por um movimento holstico de carter transdisciplinar e transreligioso, que , sem dvida, o preldio de uma nova era.

    V-se, portanto, a importncia de uma coletnea de testemunhos de experincias transpessoais ou pr-transpessoais. Fizemos esta distino, em acrscimo aos motivos j expostos, a fim de responder a uma crtica justificada que poderiam nos fazer: a de colocar Jesus ou Buda em p de igualdade com outros msticos em estgio menos avanado. Esta antologia destina-se a todos aqueles que tm necessidade de formar uma idia mais precisa e mais concreta a respeito deste tema.

    1. ver Lupasco, Les Trois Matires, Julliard, Paris. s/d.

    Trata-se, certamente, de uma seleo bastante arbitrria e que no

    representa talvez o universo dos testemunhos existentes no mundo; no obstante, esforamo-nos por reunir as descries de diferentes fontes culturais, e adotamos uma classificao que abraa as grandes tradies.

    Apresentamos, para cada uma delas, textos de autoridades incontestveis, que constituem uma introduo a cada grupo.

    Comecemos pelos contemporneos, mais prximos de ns, e que pertencem a diferentes orientaes filosficas ou religiosas. 1. Marc de Smedt, in Techniques de mditation et pratiques dveil, Spiritualits vivantes. AIbin Michel, Paris, 1983.

  • COLETNEA DE TESTEMUNHOS ANTIGOS E MODERNOS

    Em geral, apenas indivduos excepcionalmente dotados e comunidades de esprito

    excepcionalmente elevadas conseguem ultrapassar num grau considervel este nvel (da concepo antropomrfica de Deus).

    Eu o denominaria sentimento religioso csmico. extremamente difcil elucidar este sentimento para algum que esteja inteiramente fora dele, sobretudo porque no

    corresponde a nenhuma concepao antropotnrfica de Deus. Os gnios religiosos de todas as pocas tm sido agraciados por este sentimento

    religioso que no conhece nenhum dogma e nenhum Deus concebido imagem do homem.

    Como o sentimento religioso csmico pode ser comunicado de uma pessoa a outra sem fazer referncia a alguma noo definida de Deus nem a qualquer teologia? Na

    minha opinio, da funo mais importante da arte e da cincia: despertar este sentimento e mant-lo vivo dentro de todos os que a ele so receptivos.

    Albert Einsteim, in ken Wilber, Quantum Quertions, Shambhala, BouIder, 1984.

  • TESTEMUNHOS OCIDENTAIS CONTEMPORNEOS

    No incio do sculo XX, em 1901, um psiquiatra canadense, Richard Maurice

    Bucke, publica o que pode ser considerado como a primeira anlise de testemunhos do que ele chama a conscincia csmica, ttulo de sua obra tomada clssica no terreno do transpessoal. Ele prprio foi um dos primeiros contemporneos a passar por uma experincia de conscincia csmica, cuja narrao encontramos nesta primeira parte consagrada aos testemunhos de nossa poca. particularmente interessante em sua contribuio o fato de que ele previu que o nmero dessas experincias e depoimentos iria aumentar durante o sculo XX. Eis textualmente o que ele diz:

    ... casos de conscincia csmica so aproximadamente cinco vezes mais freqentes do que eram h, digamos, mil anos. Isto no quer dizer que eles se tornam mais freqentes exatamente nesta proporo. Deve ter havido um grande nmero de casos nos ltimos dois mil e quinhentos anos cuja memria est completamente perdida. Mas parece quase certo que o nmero de pessoas com experincias de conscincia csmica maior no mundo moderno do que o era no mundo antigo. Este fato, relacionado com a teoria gemi da evoluo psquica ..., tende a confinnar de maneira definitiva a concluso segundo a qual certo que a conscincia de si apareceu entre os melhores espcimes de nossa raa ancestral em sua fase primordial, e tornou-se progressivamente universal evidenciando-se cada vez mais cedo no indivduo. Atualmente ela se apresenta, em mdia, por volta dos trs anos. A conscincia csmica se universalizar at que a raa inteira possua esta faculdade. A mesma raa e no mais a mesma, pois a raa da conscincia csmica no ser mais a raa que existe atualmente, da mesma maneira que a raa atual no igual quela que existia antes da evoluo da conscincia individual. A verdade simples que, durante milnios, em meio multido de seres comuns, apareceu por intervalos o incio ainda bem frgil de uma nova raa; caminhando sobre a terra e respirando conosco e ao mesmo tempo caminhando sobre uma outra terra e respirando um ar diferente do qual conhecemos pouco ou absolutamente nada, mas que constitui, no final das contas, nossa vida espiritual, da mesma maneira como sua ausncia seria nossa morte espiritual. Esta nova raa est em vias de ser gerada de ns mesmos, e em um futuro prximo ocupar e possuir a terra.1

    De fato, tudo indica que a previso de Bucke est em plena realizao. O nmero de pessoas que entram em um estado transpessoai aumenta enormemente, como o mostram investigaes realizadas recentemente nos Estados Unidos.

    Os textos de testemunhos que apresentamos neste captulo provm de fontes ocidentais, mas seus autores esto muitas vezes engajados em uma via tradicional, praticaram ou praticam uma religio; outros, ao contrrio, so agnsticos e tm sido tomados de surpresa pela experincia, sem que causa alguma possa ser invocada, o que no quer dizer que ela no exista.

    TESTEMUNHOS ANNIMOS CITADOS POR AIME ANDR

    Algumas pessoas experimentaram e perceberam em sua carne, em plena

    conscincia, sem drogas ou demncia, um estalo, um raio de luz inesperado. Lembro-me de duas mulheres que, h algum tempo, contaram-me o fato.

  • Uma era protestante, a outra, krishnamurtiana. Poderia eu, sem reservas, cont-lo tambm? 1. Rihard Maurice Bucke, Cosmic consciousness, Dutton, Nova Yorks 1969, pp. 383-384.

    No se trata absolutamente de desnudar uma alma, mas simplesmente de

    relatar a visita de Deus. Diante de um ser amado, que sofria sem esperana, a primeira gritou, cem

    aquela violncia dos que amam a Deus mas no o sabem: Pai, se tu existes, este o momento de Te manifestares. Cura minha me.

    E eis qual foi a experincia o mundo era o mundo, tornado transparente. Todos os seres e todas as coisas eram feitos de matria translcida e viva, luminosa. Um Ser sem estrutura corporal tangvel habitava a matria da qual somos tecidos. Este Ser era Amor com uma tal evidncia, que as lgrimas escorriam por seu rosto extasiado.

    A f dos primeiros anos, desaparecida por algum tempo, retornava, visvel, na percepo da presena de um Ser inefvel que no podia ser nomeado.

    Nos dias que se seguiram, um novo tratamento curou a doente... A amiga que me contou esta experincia retomou iniediatamente o caminho da Igreja, e consagrou sua vida ao servio de Deus.

    A outra mulher jamais freqentara um templo... Sua experincia foi espontnea, indescritvel, sem qualquer pedido especial, e aconteceu em um nibus. Ela acabara de passar pelo cobrador e de pagar a tarifa. Sentou-se normalmente e, de sbito, o mundo asalou diante de sua conscincia.

    As palavras que ela empregou quando me relatou a histria eram, com pouca diferena, as mesmas que haviam sido utilizadas pela mulher anterior:

    Mundo de transparncia

    Matria e Presena

    Vibraes luminosas

    Amor que se propaga

    Certeza, Evidncia

    O Mundo o corpo de Deus

    Cada um Seu tomo, infinito e precioso.

    Em nenhum momento ela perdeu o sentido das coisas. Conseguiu descer do nihus a tempo, sua parada. De p na calada, encostada a um pltano, ela soluava de alegria, inundada por suas lgrimas, resistindo ao desejo de ajoelhar-se, beijar a calada ou o menor dos seixos habitados pelo Esprito, animados pelo Pai, Energia e Presena e doce e Absoluto.

    Aime & Andr, Approche dune vie intrieure, D 3, Genebra, 1982.

  • DEPOIMENTO ANNIMO CITADO POR

    LILIAN SILBURN

    ... Tive primeiramente um sonho, ladres se esforavam para roubar-me um tesouro enterrado nos pores de minha casa.

    ... Sada do sonho, eu conservava a certeza de que sempre tivera um tal tesouro e que ele me seria em breve revelado.

    ... Meu mestre, a quem confidenciei o sonho, disse-me: Efetivamente, o tesouro est a, e voc est a ponto de descobri-lo, mas um obstculo se interpe ainda.

    Alguns dias mais tarde, pouco tempo antes de deix-lo, meu mestre me fez sentar frente a ele. Aps um profundo recolhimento, voltando conscincia, qual no foi minha estupefao: no havia nada, e no nada, eu no era mais. Impresso estranha, iluminada. Todavia, durante quase vinte anos eu havia atravessado muitos vazios: vazios inconscientes, morte dolorosa e at mesmo um aniquilamento total. Agora, era diferente, no havia mais aniquilao, despojamento, nem mesmo vazio, pois que vazio significa sempre vazio de alguma coisa, valeria dizer nada todas as vacuidades anteriormente experimentadas fundidas em uma s, inapreensvel e definitiva, pois dela no mais sa.

    A meu mestre, que me perguntava como eu me sentia, respondi: Onde estou? Em parte alguma, parece-me! e, com um sorriso indefinvel, ele aquiesceu: Sim, ns no estamos mais em parte alguma.

    A partir desse dia, as margens escarpadas, mutveis, prodigiosas, entre as quais flua precipitadamente o rio de minha vida, se desvaneceram. No havia nada mais que a imensido do mar. xtases e fenmenos extraordinrios deram lugar a uma paz simples, inabalvel, e a um enorme silncio: nada em mim, nada fora de mim, nada em Deus. Uma harmonia fluente onde habitava apenas um inefvel indeterminado.

    Uma vez descoberto o tesouro, muitas coisas me foram reveladas. E primeiramente, tomei conscincia do nada no qual vivia meu mestre. Compreendi tambm que nada a condio de toda eficincia, e em particular da mais alta de todas, a transmisso de mestre a discpulo, e por isto que a transmisso no pode ser ensinada. Com efeito, no nada e graas ao nada em seu discpulo, e nele tambm, que a graa se transmite, pois somente a ela no encontra obstculo.

    Lilian Silburn Le Vide, le rien,, labme, in Le Vide,

    Herms, Ed. Deux Ocans, Paris, 1981.

    RICHARD MAURICE BUCKE

    ... Eu me achava num estado de tranqilo aprazimento, quase passivo, sem realmente pensar, mas deixando que as idias, imagens e emoes flussem por si

  • mesmas, por assim dizer, atravs da minha mente. Sbito, sem aviso de espcie alguma, vi-me envolto numa nuvem cor de chamas. Por um instante pensei em fogo, numa imensa conflagrao em algum lugar, perto dali, na grande cidade; mas em seguida percebi que o fogo estava dentro de mim. Acudiu-me de pronto um sentido de exultao, de imensa alegria, acompanhado ou imediatamente seguido de uma iluminao intelectual, impossvel de descrever. Entre outras coisas, no somente vim a acreditar, seno vi que o universo no se compe de matria morta mas, pelo contrrio, de uma Presena viva; tomei-me cnscio, em mim mesmo, da vida eterna. No era a convico de que eu possuiria a vida eterna, mas a conscincia de que j a possua; vi que todos os homens so imortais; que a ordem csmica de tal natureza que, sem qualquer dvida, todas as coisas trabalham juntas pelo bem de cada um e de todos; que o princpio fundamental do mundo, de todos os mundos, o que chamamos amor, e que a felicidade de cada um e de todos, afinal de contas, absolutamente certa. A viso durou uns poucos segundos e desapareceu; mas sua lembrana e o sentido da realidade do que ensinou permaneceu durante o quarto de sculo que transcorreu depois disso. Conheci que era verdadeiro o que a viso mostrava. Eu atingira uma perspectiva da qual via que ela s podia ser verdadeira. Essa perspectiva, essa convico, posso dizer essa conscincia, nunca, nem mesmo durante os perodos da mais profunda depresso, se perdeu.

    Citao extrada de um texto que precedeu o livro clssico de Bucke, Cosmic Consciousness, Filadltla, 1961. Tambm se encontra na obra de William James, As Variedades da Experincia Reigiosa,

    Editora Cultrix, So Paulo, 1991, pp. 249-250.

    FRITJOF CAPRA

    H cinco anos experimentei algo de muito belo, que me levou a percorrer o caminho que acabaria por resultar neste livro. Eu estava sentado na praia, ao cair de uma tarde de vero, e observava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempo o ritmo de minha prpria respirao. Nesse momento, de sbito, apercebi-me intensamente do ambiente que me cercava: este se me afigurava como se participasse de uma gigantesca dana csmica. Como fsico, eu sabia que a areia, as rochas, a gua e o ar a meu redor eram feitos de molculas e tomos em vibrao e que tais molculas e tomos, por seu turno, consistiam em partculas que interagiam entre si atravs da criao e da destruio de outras partculas. Sabia tambm que a atmosfera da Terra era permanentemente bombardeada por chuvas de raios csmicos, partculas de alta energia e que sofriam mltiplas colises medida que penetravam na atmosfera. Tudo isso me era familiar em razo de minha pesquisa em Fsica de alta energia; at aquele momento, porm, tudo isso me chegara apenas atravs de grficos, diagramas e teorias matemticas. Sentado na praia, senti que minhas experincias anteriores adquiriam vida. Assim, vi cascatas de energia csmica, provenientes do espao exterior, cascatas nas quais, em pulsaes rtmicas, partculas eram criadas e destrudas. Vi os tomos dos elementos bem como aqueles pertencentes a meu prprio corpo participarem desta dana csmica de energia. Senti o seu ritmo e ouvi o seu som. Nesse momento compreendi que se tratava da Dana de Shiva, o Senhor dos danarmos, adorado pelos hindus.

    Esse momento foi seguido por inmeras outras experincias semelhantes

  • que me auxiliaram, gradativamente, a compreender que comea a emergir da Fsica moderna, em harmonia com a anliga sabedoria oriental uma nova e consistente viso de mundo.

    Fritjof Capra, O Tao da Fsica, Editora Cultrix, So Paulo, 1988, pp. 13-14.

    KARL JASPERS

    Creio que eu prprio causei a doena. Na tentativa de penetrar o outro mundo encontrei seus guardies naturais, a personificao de minha prpria fraqueza e falhas. Julguei a princpio que esses demnios fossem habitantes desprezveis do outro mundo, que podiam brincar comigo como se eu fosse uma bola, porque penetrei naquelas regies despreparado e me perdi. Mais tarde pensei serem partes isoladas de minha prpria mente (paixes) que existiam prximo de mim, no espao livre, alimentando-se de meus sentimentos. Acreditava que todos os demais os possussem tambm, embora sem perceb-lo, graas iluso protetora e bem sucedida do sentimento de existncia pessoal. Julguei que a ltima fosse um artifcio da memria, complexos de idias etc., uma boneca bonita de se olhar, mas sem qualquer contedo real.

    No meu caso, o self pessoal tornam-se poroso por causa do consciente obscurecido. Por seu intermdio eu queria aproximar-me das fontes mais sublimes da existncia. Deveria Ter me preparado para isto durante um perodo prolongado de tempo, invocando em mim um self mais elevado, impessoal, j que o nctar no e para lbios mortais. Agia de modo destrutivo sobre o self do animal humano, dividindo-o em partes que gradualmente se desintegravam. A boneca estava quebrada de fato e o corpo dilacerado. Eu forara o acesso fonte vital e a ira dos deuses cara sobre mim. Percebi demasiado tarde a interveno de elementos escusos. Passei a reconhec-los depois que j haviam adquirido demasiado poder. Impossvel recuar. Eu possua ento o mundo dos espritos que desejara ver. Os demnios subiram dos abismos, como o guardio Crbero, negando entrada aos no iniciados. Resolvi encetar a luta de vida ou morte. Isto significava para mim, no final, a deciso de morrer, j que precisava renunciar a tudo que mantinha o inimigo, mas isto era tambm tudo o que me conservava a vida. Eu queria penetrar a morte sem enlouquecer e coloquei-me diante da Esfinge: Ou entras no abismo, ou entro eu.

    Ocorreu ento uma iluminao. Jejuei e assim penetrei na verdadeira natureza dos meus sedutores. Eram proxenetas e enganadores do meu querido self pessoal, que parecia, tanto quanto eles, uma coisa do nada. Um self maior amplo e mais compreensivo emergiu e eu pude abandonar a anterior personalidade com todo o seu squito. Vi que essa personalidade anterior jamais poderia penetrar nas regies transcendentais e senti uma dor terrvel, um golpe aniquilador, mas fui salvo, os demnios encolheramse, desapareceram, pereceram. Uma nova vida comeou para mim e de ento em diante senti-me diferente das outras pessoas. Um self consistindo de mentiras convencionais, enganos, auto-iluses, imagens da memria, um self exatamente como o dos outros tornou a crescer em mim, mas por detrs e acima erguia-se um self mais amplo e mais compreensivo, que me impressionou, sendo dotado de algo eterno, imutvel, imortal e inviolvel e que desde ento tem

  • sido meu protetor e refgio. Acredito que seria bom para muitos conhecerem esse self mais elevado e saberem que h gente que alcanou este objetivo por meios mais tranqilos.

    Jaspers comenta: Tais auto-interpretaes so evidentemente feitas sob a influncia de

    tendncias ilusrias e profundas foras psquicas. Originam-se de experincias intensas, e a riqueza dessa experincia esquizofrnica chama a ateno tanto do observador como do paciente ponderado que no considere tudo isto como unia simples mistura catica. Mente e esprito encontram-se presentes tanto na vida psquica mrbida como na sadia. Mas as interpretaes desse tipo devem ser despojadas de toda importncia causal. Tudo o que podem fazer lanar luz sobre o contedo e lev-lo a qualquer espcie de contexto.

    Ronald D. Laing, A Poltica da Experincia, Editora Vozes, Petrpolis, 1974, pp. 100-102.

    SIGMUND FREUD

    Comentrio de uma carta de Romain Rolland ... Existem certos homens que no contam com a admirao de seus

    contemporneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizaes completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multido. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido no s s discrepncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas aes, como tambm diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente no so to simples assim.

    Um desses seres excepcionais refere-se a si mesmo como meu amigo nas cartas que me remete. Enviei-lhe o meu pequeno livro que trata a religio como sendo uma iluso, e ele me respondeu que concordava inteiramente com esse meu juzo, lamentando, porm, que eu no tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Esta, diz ele, consiste num sentimento peculiar, que ele mesmo jamais deixou de ter presente em si, que encontra confirmado por muitos outros e que pode imaginar atuante em milhes de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar como uma sensao de eternidade, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - ocenico, por assim dizer. Esse sentimento, acrescenta, configura um fato puramente subjetivo, no um artigo de f; no traz consigo qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia religiosa de que se apoderam as diversas igrejas e sistemas religiosos, por eles veiculado para canais especficos e, indubitavelmente, tambm por eles exaurido. Acredita ele que uma pessoa, embora rejeite toda crena e toda iluso, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento apenas nesse sentimento ocenico.

    As opinies expressas por esse amigo que tanto respeito, e que outrora j

  • louvara a magia da iluso num poema, causaram-me no pequena dificuldade. No consigo descobrir em mim esse sentimento ocenico. No fcil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus sinais fisiolgicos. Onde isso no possvel e temo que tambm o sentimento ocenico desafie esse tipo de caracterizao , nada resta seno cair no contedo ideacional que, de forma mais imediata, est associado ao sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer significar, com esse sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um dramaturgo original e um tanto excntrico ao seu heri que enfrenta uma morte auto infligida: No podemos pular para fora deste mundo. Isso equivale a dizer que se trata do sentimento de um vnculo indissolvel, de ser uno com o mundo externo como um todo. Posso observar que, para mim, isto parece, antes, algo da natureza de uma percepo intelectual, que na verdade pode vir acompanhada de um tom de sentimento, embora apenas da forma como este se acharia presente em qualquer outro ato de pensamento de igual alcance. Segundo minha prpria experincia, no consegui convencer-me da natureza primria desse sentimento; isso, porm, no me d o direito de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas. A nica questo consiste em verificar se est sendo corretamente interpretado e se deve ser encarado como a fons et origo de toda a necessidade de religio.

    Nada tenho a sugerir que possa exercer influncia decisiva na soluo desse problema. A idia de os homens receberem uma indicao de sua vinculao com o mundo que o cerca por meio de um sentimento imediato que, desde o incio, dirigido para esse fim, soa de modo to estranho e se ajusta to mal ao contexto de nossa psicologia, que se torna justificvel a tentativa de descobrir uma explicao psicanaltica isto , gentica para esse sentimento.

    ... No consigo pensar em nenhuma necessidade da infncia to intensa quanto a da proteo de um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelosentimento ocenico, que poderia buscar algo como a restaurao do narcisismo ilimitado, deslocado de um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, at o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por trs disso, mas, presentemente ainda est envolto em obscuridade.

    Posso imaginar que o sentimento ocenico se tenha vinculado religio posteriormente. A unidade com o universo, que constitui seu contedo ideacional, soa como uma primeira tentativa de consolao religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece a amea-lo a partir do mundo externo. Permitam-me admitir mais uma vez que para mim muito difcil trabalhar com essas quantidades quase intangveis. Outro amigo meu, cuja insacivel vontade de saber o levou a realizar as experincias mais inusitadas, acabando por lhe dar um conhecimento enciclopdico, assegurou-me que, atravs das prticas de ioga, pelo afastamento do mundo, pela fixao da ateno nas funes corporais e por mtodos peculiares de respirao, uma pessoa pode de fato evocar em si mesma novas sensaoes e cenestesias, consideradas estas como regresses a estados primordiais da mente que h muito tempo foram recobertos. Ele v nesses estados uma base, por assim dizer fisiolgica, de grande parte da sabedoria do misticismo. No seria difcil descobrir aqui vinculaes com certo nmero de obscuras modificaes da vida mental, tais como os transes e os xtases. Contudo, sou levado a exclamar, como nas palavras do mergulhador de Schiller:

  • ...Es freue e sich, Wer da atmet im rosigten Licht! [Regozije-se aquele que aqui em cima respira, na rsea luz! Schiller, Der

    Taucher.]

    Sigmund Freud, O Mal-Estar na Civilizao in Freud, coleo Os Pensadores, Abril Cultural, So Paulo, 1978, pp. 131-132, 137-138.

    CHEFE SIOUX CERVO NEGRO

    Ento eu estava de p na montanha mais alta, e abaixo de mim, ao meu redor, encontrava-se o arco completo do mundo. E enquanto eu pernanecia l, de p, vi mais do que sou capaz de dizer e compreendi mais do que vi; pois eu via de maneira sagrada as formas de todas as coisas no Esprito e a forma de todas as formas tais como elas devem viver juntas como um nico ser.

    E eu vi que o arco sagrado de meu povo era um dos numerosos arcos que formavam um crculo, to amplo quanto a luz do dia e a luz das estrelas, e em seu centro crescia uma poderosa rvore florida para abrigar todas as crianas de uma s me e de um s pai. E vi que isso era sagrado.

    Ento, enquanto estava l de p, dois homens chegavam do leste, a cabea frente como flechas em pleno vo, e entre eles surgiu a estrela da amora. Aproximaram-se, deram-me uma erva e declamam: Com isto sobre a terra voc poder incumbir-se de qualquer coisa e realiz-la. Era a erva da estrela da aurora, a erva da compreenso, e eles me pediram que a deixasse cair sobre a terra. Eu a vi cair e quando ela atingiu o soto criou razes, cresceu e floresceu, quatro flores em um caule, uma azul, uma branca, uma escarlate e uma amarela, e os raios que originavam espalharam-se em direo aos cus de tal fonna que todas as criaturas os viram e em lugar algum havia escurido.

    Jos e Miriam Argelles, Mandala,

    Shambhala Berkeley e Londres, 1972, p. 114.

    ARNAUD DESJARDINS

    O que se passou naquela manh e na manh seguinte foi alm daquilo que se pode esperar ou supor da lenda misteriosa e fascinante que sempre, mais ou menos, cercou os lamas tibetanos. Cruzando uma pequena varanda de madeira que circundava uma casa bastante modesta, penetramos em um aposento quase escuro e sentamo nos de frente para o leito coberto de tapetes que se encontra em todos os quartos de todos os rinpochs [mestres realizados]. Na penumbra, eu distinguia a forma de um homem sentado, imvel, que emanava uma luminosidade, como uma espcie de vaga fosforescncia, e cujos olhos pareciam luminosos na penumbra.Volltei-me para Sonam, cuja posio, menos afastada da pequena porta, tornava o um pouco mais ntido. Ele olhava para o lama, mas seus olhos no tinham

  • nenhum brilho particular. Virei-me ento para Kangyur Rinpoch e tornei a ver aquela mesma luminosidade e sobretudo seus olhos, que pareciam estar acesos no escuro. Ele me fitava e senti nascer em mim, e depois crescer, uma emoo excepcional, indescritvel. Pude apenas perceber que Sonam deixava o aposento e depois tive a impresso de que nada mais no mundo existia alm dessa presena na sombra e eu mesmo. A intensificao e a acelerao de minha vida psquica, pensamentos e sentimentos, transcendiam toda experincia descritvel. Todas as lembranas, todas as imagens, todas as possibilidades apresentavam-se de uma s vez. Eu possua dez, cem crebros que funcionavam ao mesmo tempo. Talvez aqueles que quase se afogaram e reviveram sua existncia inteira em poucos segundos tenham conhecido uma experincia semelhante. Eu era capaz de manter dez raciocnios de uma s vez, viver dez cenas de lembranas (e lembranas, ah! completamente esquecidas) ao mesmo tempo. Depois, tudo parou de funcionar, mas isto no era nem a inconscincia, nem o vazio dos desmaios. A conscincia e o despertar eram absolutos, aquela era a experincia do verdadeiro silncio, beyond the mind [alm da mente], transcendendo o pensamento e a individualidade, o nome e a forma, o tempo e o espao e, sobretudo, a dualidade.

    Sonam disse-me: I saw you were in deep meditation with the guru and I Ieft the room [Vi que voc estava em meditao profunda com o guru e sai do aposento]. E ele me contou que isso que ele denominara de meditao com o guru havia durado cerca de uma hora. Desejoso de confirmar minha opinio sobre Kangyur Rinpoch, convenci Sonam a retardar em um dia nossa partida. Na manh seguinte, o mesmo fenmeno se reproduziu, igualmente intenso e prolongado, e seu efeito devia durar vrios dias e desaparecer progressivamente. Desaparecer completamente? No, a lembrana, a marca daquela experincia ou de outras, da mesma ordem so indelveis. Mas no menos verdade que o estado excepcional, o nvel de conscincia, no so duraveis. De repente, aparece: Vivo neste momento uma experincia sublime, miraculosa, e no momento seguinte tudo est perdido.

    DENISE DESJARDINS

    Stimo dia Respiro profundamente com todo o meu flego. Meu diafragma se abre, se

    dilata cada vez mais. Aum ao expirar,tat ao inspirar completamente,1 em seguida um tempo de intervalo. Respirando assim, parece-me, com o aum, criar a manifestao, que com o tat retorna a mim e torna-se novamente o no-manifesto, o vazio. Depois uma passagem de um vazio a um outro vazio, e eu mergulho no interior desse centro, um pouco direita do peito. E um abismo no delimitado, a tranqilidade do fundo dos mares, uma noite que nada vem interromper, sem comeo e sem fim.

    No h palavras para descrever esta grandeza sem medida, onde no existe mais nem tu nem eu, mas uma ampla plenitude, em mim, que no mais eu, que no est nem no exterior nem no interior.

    Esta respirao continua. Com o aum, sinto-me devolver toda dificuldade, todo pensamento, como a mar que quando se retira varre tudo o que est sobre a praia, conduzindo o mais ao longe. Assim me abandonam meu desespero, Iryamani, meu filho, minha me e meu pai.

  • Tudo se desvanece e se apaga como fantasmas irreais, inteis e incmodos, sombras sem consistncia levadas pelo aum de minha respirao.

    Somente permanece este maravilhoso vazio tecido de plenitude. Meu corpo tambm est fluido, leve, areo; apenas fumaa sem densidade, uma sombra que se desloca como uma nuvem no ar. Ele pode-se movimentar sem movimento, em todos os sentidos, levantar-se sem esforo, sem dificuldade. Eu o percebo fora de mim, dentro desta perspectiva informal. Ele inconsistente, desencarnado. Em que ele me concerne? Ele no tem nada de mim, de eu. Aboliu-se a distino entre o que est em mim e fora de mim.

    Apenas uma ampla vacuidade onde se desloca um fantasma de corpo evanescente, irreal, que se apaga e desaparece.

    O Nada que contm todas as coisas. 1. o inverso da Respirao que Shariputra realizava habitualmente.

    O Vazio que plenitude. Somente .

    Denise Desjardins, De Naissance em naissance -

    Tmoignage sur une vie antrieure, La Table Ronde, Paris, 1977.

  • KARLFRIED GRAF DURCKHEIM

    Experincia do SER (o perodo de Munique) Com o fim do perodo militar iniciaram-se meus estudos. A atrao pessoal

    exercida por Max Weber fez-me escolher inicialmente a economia poltica. Depois de algum tempo, uma mudana de cabea orientou-me em direo filosofia. A fenomenologia ocupava naquela poca um lugar de destaque com os cursos de Alexandre Pfnder, aluno de Husserl. O primeiro curso tratava sobre a obra de Bergson A Evoluo Criadora.

    Os encontros que realizei durante os primeiros anos de estudos tiveram grande importncia. Sobretudo aquele, decisivo, com minha futura esposa, Enja von Hattingberg. Graas a ela, entrei bastante cedo em contato com a psicanlise. Alm disso, ela me aproximou de todo um crculo de amigos. Minha esposa era ligada, entre outros, poetisa Elisabeth Schmidt-Pauly, a Rainer Maria Rilke, Richard Wilhelm, Wilhelm Otto, Ludwig Klages, Else Lasker-Schler, Ferdinand Weinhandl, Otto Zopf. Entre todos eles, o desastre de 1918 havia despertado algo de novo. Reconheci depressa, eu tambm, que naqueles anos do ps-guerra minha preocupao era o problema de um homem novo, O impacto de um determinado acontecimento fez-me reconhecer nesta questo no apenas uma necessidade geral de nosso tempo, mas tambm a obrigao de fazer dela o centro de minha vida. Este acontecimento, para mim capital, foi tambm o primeiro encontro de meus vinte e quatro anos com Lao Ts.

    Isto se passou no ateli do pintor Willi Geiger. Minha futura esposa, que era sua amiga, abriu ao acaso o Tao Te King, e comeou a ler o dcimo primeiro aforismo:

    Trinta raios sustentam o eixo de uma roda Mas o vazio que h nele que cria a natureza da roda. Os vasos so feitos de argila Mas o vazio que h neles que faz a natureza do vaso. E aquilo foi inesperado. Enquanto o escutava, fui atingido por uma revelao

    sbita. O vu se rasgou: eu fora despertado. Eu havia experimentado aquilo. Todo o resto era e no obstante no era mais, era este mundo e ao mesmo tempo transparente para um outro. Eu mesmo tambm era e no era a um s tempo. Eu estava preenchido, capturado. No obstante, completamente presente. Feliz e como que vazio de sentimentos, muito distante e todavia profundamente imerso nas coisas. Eu havia experimentado aquilo de um modo evidente, como o impacto de um raio, e claro, como um dia de sol; aquilo, que era totalmente incompreensvel. A vida continuava, a vida de antes, e no entanto j no era a mesma. Havia a espera dolorosa de mais Ser, uma promessa profundamente sentida. E ao mesmo tempo foras crescendo at o infinito e a aspirao no sentido de um compromisso com o qu?

    Esse estado excepcional durou o dia inteiro e uma parte da noite. Ele me marcou definitivamente. Eu vivenciara aquilo que atravs dos sculos testemunharam muitos homens, que em um momento qualquer de suas vidas tiveram essa experincia. Ela os atingiu como um relmpago. Ela os ligou para

  • sempre corrente da verdadeira vida. Ou antes, ela lhes tornou perceptvel a fonte de uma grande felicidade e ao mesmo tempo de sofrimento que experimentamos quando essa corrente interrompida. Mas tambm uma experincia inseparvel de um compromisso com a via interior. Repetida depois por vrias vezes, embora com menos fora, ela continua a servir de ponto de referncia para indicar, para mim e para outros, a direo acertada de conhecimento e de trabalho.

    Tudo o que encontrei desde ento orienta-se na direo de um p lo preciso. Que Mestre Eckhart tenha mais tarde entrado em minha vida no tem nada de surpreendente. No me separei mais de seus tratados e de seus sermes. Seu contedo uma espcie de eco multiplicado do grande apelo que ressoava dentro de mim. Ainda hoje, suficiente uma nica frase de Mestre Eckhart para que eu me sinta novamente penetrado por uma grande corrente. Eu percebo o mesmo tom, ainda que atravs de outros registros, em Rilke, em Nietzsche e sobretudo na primeira leitura dos escritos budistas. A doutrina de que a natureza do Buda est presente em cada homem, pareceu-me imediatamente evidente. J naquele momento uma questo me preocupava: Mestre Eckhart, Lao Ts, o Buda, a grande experincia que os havia atingido no era fundamentalmente a mesma?

    Karlfried Graf Drkheim, Pratique de Iexperience,spiritueIle,

    d. du Rocher, Monaco, s/d.

    ALBERT EINSTEIN

    A emoo mais bela que podemos experienciar a mstica. Ela a propagadora de toda verdadeira arte e cincia. Aquele para quem essa emoo estranha ... est, por assim dizer, como morto. O que impenetrvel para ns existe realmente, manifestando-se como a mais alta sabedoria e a mais radiante beleza, que nossas entorpecidas aptides podem compreender somente em suas formas mais primitivas este conhecimento, esta sensibilidade, est no centro da verdadeira religiosidade. Neste sentido, e unicamente nele, perteno classe dos homens devotamente religiosos.

    In Ken Wilber, Up from Eden, Shambhala, Boulder, 1983.

    PADRE JOS INCIO FARAH

    (Testemunho recolhido pelo autor, pessoalmente, em 17 de outubro de 1974)

    Dia 9 de novembro de 1961, entre dez e onze horas da manh, no momento em que se preparava meu enterro; trs mdicos cardiologistas do Prontocor que trabalhavam na Avenida Barbacena estavam em torno de mim e cuidavam de meus ltimos momentos. Minha enfermeira particular, Srta. Zeni Mendona, ajoelhada ao meu lado, recitava a Litania da Santa Virgem. Um dos mdicos chorava.

    Quando se recitava a invocao Salas Infirmorum, senti-me carregado e um

  • outro mundo todo feito de luz e de uma alegria indizvel se abriu diante de mim. Sentia-me feliz, to feliz que no via mais nada do que se passava em torno de mim. No sentia mais as dores do meu corao (tivera um enfarte). Chorava de alegria; sentia-me realizado.

    De repente, um velho capuchinho se aproximou de mim, barba longa, veio em minha direo e se curvou; senti sua barba roar meu rosto, um perfume desconhecido na terra exalava de toda a sua pessoa; fitou-me, abraou-me e disse: Sou Frei Leopoldo; venho te trazer uma mensagem, meu irmo; teu exlio ainda no acabou; vivers ainda o suficiente para continuar minha obra na terra; mas sofrers muito na terra; tem confiana e coragem. Beijou-me e desapareceu como que evaporando-se. Nesse momento, abri os olhos e vi a triste cena, emocionante, descrita acima.

    Senti-me triste, porque vi escapar a felicidade que tanto desejei em minha vida; senti a presena de Cristo na luz fulgurante que me contornava. Tinha a impresso de possu-lo, e que ele preenchia todo o meu ser.

    De volta realidade terrestre, senti de novo o vazio e a primeira palavra que pronunciei, decepcionado pela dura realidade: O que que h? Por que choram? Tenho fome, dem-me algo a comer.

    minha volta, a alegria era geral; em mim, era a tristeza e eu o deixo adivinhar por qu...

    In Pierre Weil, Conscincia Csmica,

    Editora Vozes, PetrpoIis, 1991, pp. 21-22.

    ANDR FROSSARD

    Desde logo estas palavras so-me insufladas: vida espiritual. No so ditas, no as formo eu, ouo-as como se fossem pronunciadas

    perto de mim, em voz baixa, por uma pessoa que v o que ainda no vejo. A ltima slaba desse preldio murmurado apenas atingiu em mim a margem

    do consciente e comea a avalancha ao inverso. No digo que o cu se abre. No se abre, projeta-se, subitamente se ala, silenciosa fulgurao, dessa insuspeitvel capela na qual estava misteriosamente incluso. Como descrev-lo com estas palavras demissionrias, que recusam seus servios e ameaam interceptar meus pensamentos para consign-los ao armazm das quimeras? O pintor ao qual fosse dado entrever cores desconhecidas, com que cores as pintaria? um cristal indestrutvel, de uma infinita transparncia, de uma luminosidade quase insustentvel (um grau a mais me aniquilaria) e talvez azul, um mundo, outro mundo, de um brilho e uma densidade que devolvem o nosso s sombras frgeis dos sonhos inacabados. Ele a realidade, ele a verdade, eu a vejo na margem obscura em que estou retido. H no universo uma ordem, e no seu pice, para l desse vu de bruma resplandecente, a evidncia de Deus, a evidncia feita presena e a evidncia feita pessoa daquele que um momento antes eu teria negado, chamado pelos cristos Nosso Pai, e deles ouo que suave de uma

  • suavidade que nenhuma outra iguala, que no a passiva qualidade s vezes designada por esse nome e sim uma suavidade ativa, explosiva, sobrepassando toda violncia, capaz de despedaar a pedra mais dura e, mais duro do que a pedra, o corao humano.

    Andr Frossard, Deus Existe Eu O Encontrei,

    Record, Rio de Janeiro - So Paulo, s/d, pp. 157-158.

    JEANNE GUESNE

    A tempestade brame como uma fera ferida.., as nuvens escuras varrem o

    cu riscado pela fulgurao dos relmpagos que iluminam os baluartes rochosos das montanhas.

    O estrondo surdo do trovo, multiplicado pelo eco da montanha, enche o ar ao repercutir sobre os rochedos, despertando em mim uma estranha alquimia de pensamentos e emoes. Recebo a tempestade chicoteante como o embate de uma identidade com os elementos desencadeados, e ela me envia sua mensagem:

    O instante presente no um valor temporal, mas uma intensidade a experimentar, um estado radiante como o amor, O real no pode ser conhecido exteriormente. Ele deve ser vivido em uma ultrapassagem desconcertante para a noo conceitual que temos de ns mesmos e do mundo. As frmulas verbais no conseguem traduzir a realidade.

    O materialismo considera o mundo da matria como a nica realidade, e a conscincia como um resultado de processos fsicos. O idealismo nega a realidade do mundo material e confere ao esprito a realidade ltima. Cada um desses sistemas de pensamento exclui o outro como se fosse irreal. No obstante, parece evidente que sua incompatibilidade no passa de um artifcio.

    A fsica ultrapassou h muito tempo este dilema mostrando que a matria e a energia podem transformar-se uma na outra.

    O esprito e a matria so os dois plos de uma mesma fora, e apenas a posio do observador decide se h matria ou esprito. No h direito sem avesso, alto sem baixo, exterior sem interior, esprito sem matria etc. Uma coisa s matria ou esprito em relao a outra coisa. E ainda aqui, minhas experincias fora do corpo provaram-me que estas palavras no so seno termos que significam uma analogia, uma maneira pela qual as coisas se revelam a ns, e mais nada. No cometamos o erro de esquecer sua relatividade,

    Sinto que existe um poder de cura espiritual no contato com os grandes ritmos da natureza, contato que estabeleceu em mim uma praia de luz, desfazendo a bruma espessa de meu monlogo habitual.

    Assim, cada instante do tempo torna-se uma porta a ser aberta, uma soleira a se transpor. Eu sou o peixe prisioneiro na rede, e a nica evaso possvel torna-se o ato de deixar a condio de ser do peixe. Responder ao apelo da vida que h nas criaturas tomar conscincia da escravido causada pela identificao com nossa selva interior. Abrir a porta, transpor a soleira.

  • Eu sou a percepo daquilo e minha percepo no tem limite fora daquele que lhe impe meu intelecto. A f , para mim, a certeza irracional da presena. Tenho f nesta harmonia que me contm e me penetra, mesmo quando ignoro as leis de sua manifestao. existir verdadeiramente no interior de um campo de foras do qual tomo emprestada, sem o saber, toda a energia que me anima, de forma que cada impresso sentida multiplicada ao infinito. Vivo intensamente o instante e o lugar do encontro com a presena, simultaneamente em mim e fora de mim.

    Atravs de minha inteligncia racional, sou espectador da natureza. Atravs de minha abertura intuio no racional, participo de sua atividade a cada instante, em um estado de sensibilidade universal.

    Os racionalistas lgicos menosprezam o carter irreal da intuio. Os partidrios desta denunciam os limites da lgica. Na realidade, uma no exclui a outra.

    A descoberta mais extraordinria que fiz fora de meu corpo que tudo o que posso ver nesse estado emana de mim. Mais exatamente, que eu sou o centro de tudo o que constato como existente e sou igualmente sua totalidade. Eu sou o que conheo.

    Poder-se-ia objetar que tudo isto subjetivo, mas eu no posso tomar conscincia de objeto algum, de nenhum fato, que no seja subjetivo. um erro de apreciao que faz descobrir um hiato imaginrio entre um mundo que chamo exterior-objetivo e um outro interior-subjetivo, uma vez que eles constituem precisamente os dois plos de um movimento perptuo, onde um provoca e determina as emoes e os pensamentos dentro do outro. ... Sua aparente dualidade resolvida na tomada de conscincia de sua interdependncia.

    Fao experincias de percepo-associao fora de meu corpo, mas no fora de mim. Eu as realizo fora do personagem que vejo habitualmente no espelho e cujo rosto figura em minha cdula de identidade, mas no fora daquilo que nele sente, que pensa, que age...

    O mistrio do Quem sou eu? no um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser vivida. E este mistrio o maravilhamento daquela idade de ouro da infncia que nada pode esgotar. o canto eterno da criao, presente em cada parcela do criado.

    Nosso grande erro viver sempre no nvel das palavras e esquecer que elas simplesmente representam a traduo de nossa sensao da realidade, mas no a prpria realidade. Ns no percebemos seno sensaes que estabelecem relaes entre si. Esquecendo a relatividade de nossas tradues verbais, ns as ornamentamos com uma autenticidade que elas de maneira alguma possuem.

    A evidncia de minhas experincias, sua vivncia, destruram em mim as muralhas das falsas certezas, providas de ambies sem sentido, de inquietaes inteis, verdadeiras doenas da alma.

    Jenne Guesn, La conscience dtre ici et maintenant,

    d, Arista-LEspace BIeu, Paris, 1983.

  • MAX JACOB

    Depois de tirar meu chapu, eu me preparava, como bom burgus, para calar os chinelos quando lancei um grito. Havia um Hspede na parede. Ca de joelhos, meus olhos se encheram subitamente de lgrimas. Um inefvel bem estar desceu sobre mim, e permaneci imvel sem compreender. Em um minuto, vivi um sculo. Pareceu-me que tudo me foi revelado. ... Instantaneamente tambm, depois que meus olhos encontraram o Ser inefvel, senti-me despojado de minha carne humana, e apenas duas palavras me preenchiam: morrer, nascer. ... Aps a desapario da imagem sagrada, eu escutava uma multido de vozes e palavras muito nitidas, muito claras e sensatas, que me mantiveram desperto durante toda a tarde e toda a noite, sem que eu sentisse necessidade de qualquer coisa alm da solido.

    Paul Misraki, Plaidoyer pour lextraordinaire, Mame, Paris, 1969.

    WILLIAM JAMES

    Retomando minha prpria experincia, todas estas formas de conscincias

    convergem em direo a uma espcie de insight ao qual no posso evitar de atribuir um certo significado metafsico. Seu ponto principal invariavelmente a reconciliao. E como se os opostos do mundo, cujo carter contraditrio e cnnflitante provoca todas as nossas dificuldades e perturbaes, se dissolvessem na unidade. Como espcies, elas pertencem a um nico e ao mesmo gnero, mas uma destas espcies, a mais nobre e a melhor, ela mesma o gnero, e impregna e absorve seus opostos em si me