carneiro, edison. antologia do negro brasileiro

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Edison Carneiro Mensagem da Junta Francesa de Emancipação ao Imperador do Brasil em Julho de 1866 A Sua Majestade o Imperador do Brasil, Senhor! No momento em que a República dos Estados-Unidos, vitoriosa d uma guerra longa e mortífera, acaba de dar a liberdade a quatro milh de escravos; no momento em que a Espanha parece prestes a ceder ti v()~ da humanidade e da justiça, ousamos dirigir a V. M. um ardente ap 10 em favor dos escravos do vosso Império. Sabemo-lo, Senhor, e ninguém na Europa o ignora, que V. M. é po deroso no vosso Império, e a vossa força reside na administração reconh cida e no amor sincero do vosso povo. Já abolístes o tráfico; mas essa medida é incompleta; uma palavra, uma vontade de V. M. podem trazer a liberdade de dois milhões do ho mens. Podeis dar o exemplo, Senhor, e tende a certeza de que sereis aCOIII " panhado, porque o Brasil nunca olhou a servidão como uma instituiç o 1 divina. Vozes generosas levantam-se todos os anos nas assembléias, na im prensa, no púlpito, para pedir a abolição. O número de escravos é menor que o dos homens livres; e quase um terço já existe nas cidades exercendo ofícios ou servindo de criados, e é fácil elevã-los à condição de assalarln dos. A emigração dirigir-se-á para as vossas províncias, desde que a servi- dão tiver desaparecido. A obra da abolição, que deve atender aos fatos, interesses, situações, parece menos difícil no Brasil, onde aliás os CORtu mes são brandos, e os corações humanos e cristãos. Desejamos a V. M., já ilustre pelas armas, pelas letras, pela arte dt f governar, uma glória mais bela e mais pura, e podemos esperar que o Brn r sil não será por mais tempo a única terra cristã afetada pela servidão. Temos a honra de ser, de V. M., muito humildes e respeitosos servos.] (aa.) - Duque de Broglie (membro da Academia Francesa, Presid n-, te Honorário da Junta) - Guizot (idem, idem) - Laboulaye (membro dOI Instituto, presidente da Junta) - A. Cochin (idem, secretário) - Andaluzí (membro da Sociedade das Artes de Londres) - Borsier (pastor) - Prfn-l cipe de Broglie (membro da Academia Francesa) - Gaumont - UOIl ü vedau (redator do Correspondant) - Henri Martim (autor da Histoire di' France) - Conde de Mont'Alembert (membro da Academia Francesa) Henri Moreau (advogado) -- Edward de Pressensé (pastor) - Wallon (mem- bro do Instituto) - Eug. Yung (redator do Joumal des Débats). L 40 Antologia do Negro Brasileiro Uma Questão de Forma e de Oportunidade (Resposta do governo "aos senhores membros da Associação para a Abolição da Escravatura", 22 de agosto de 1866). Senhores. Tive a honra de levar ao conhecimento de S. M. o Imperador a carta na qual manifestáveis os vossos ardentes votos pela abolição da escravatu- ra no Brasil. Encarregado por S. M. de vos responder em seu nome e em nome do ~overn~ brasileiro, congratulo-me em poder-vos asseverar que as vos- ,sas intenções encontraram o mais simpático acolhimento. Cabia-vos, senhores, a vós, cujas nobres expressões se elevam sempre em favor dos grandes princípios da humanidade e da justiça, testemunhar o ard?r ~ue empenhais ~o c?liseg~imento de uma empresa tão grande co- mo ?1~cIl., e é com a .maIs VIva satisfação que o governo brasileiro viu que fuzelsJuSti~a.aos ~ntImentos pessoais de S. M. o Imperador, aos dos mem- bros do Miru~téno, bem como à tendência da opinião pública no Brasil. A emancipação dos escravos, conseqüência necessária da abolição do tráfico, não passa de uma questão de forma e de oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país o consenti- r~m, o g~ver~o brasileiro considerará como objeto de primeira importân- CIa a realização do que o espírito do Cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado. Aceitai, senhores, a segurança de minha alta consideração. Martim Francisco Ribeiro de Andrada 41

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Page 1: CARNEIRO, Edison. Antologia Do Negro Brasileiro

Edison Carneiro

Mensagem da Junta Francesa deEmancipação ao Imperador do Brasil

em Julho de 1866

A Sua Majestade o Imperador do Brasil,

Senhor!No momento em que a República dos Estados-Unidos, vitoriosa d

uma guerra longa e mortífera, acaba de dar a liberdade a quatro milhde escravos; no momento em que a Espanha parece prestes a ceder ti v()~da humanidade e da justiça, ousamos dirigir a V. M. um ardente ap 10em favor dos escravos do vosso Império.

Sabemo-lo, Senhor, e ninguém na Europa o ignora, que V. M. é poderoso no vosso Império, e a vossa força reside na administração reconhcida e no amor sincero do vosso povo.

Já abolístes o tráfico; mas essa medida é incompleta; uma palavra,uma vontade de V. M. podem trazer a liberdade de dois milhões do homens. Podeis dar o exemplo, Senhor, e tende a certeza de que sereis aCOIII "panhado, porque o Brasil nunca olhou a servidão como uma instituiç o 1divina.

Vozes generosas levantam-se todos os anos nas assembléias, na imprensa, no púlpito, para pedir a abolição. O número de escravos é menorque o dos homens livres; e quase um terço já existe nas cidades exercendoofícios ou servindo de criados, e é fácil elevã-los à condição de assalarlndos. A emigração dirigir-se-á para as vossas províncias, desde que a servi-dão tiver desaparecido. A obra da abolição, que deve atender aos fatos,interesses, situações, parece menos difícil no Brasil, onde aliás os CORtumes são brandos, e os corações humanos e cristãos.

Desejamos a V. M., já ilustre pelas armas, pelas letras, pela arte dt fgovernar, uma glória mais bela e mais pura, e podemos esperar que o Brn rsil não será por mais tempo a única terra cristã afetada pela servidão.

Temos a honra de ser, de V. M., muito humildes e respeitosos servos.](aa.) - Duque de Broglie (membro da Academia Francesa, Presid n-,

te Honorário da Junta) - Guizot (idem, idem) - Laboulaye (membro dOIInstituto, presidente da Junta) - A. Cochin (idem, secretário) - Andaluzí(membro da Sociedade das Artes de Londres) - Borsier (pastor) - Prfn-lcipe de Broglie (membro da Academia Francesa) - Gaumont - UOIl ü

vedau (redator do Correspondant) - Henri Martim (autor da Histoire di'France) - Conde de Mont'Alembert (membro da Academia Francesa)Henri Moreau (advogado) -- Edward de Pressensé (pastor) - Wallon (mem-bro do Instituto) - Eug. Yung (redator do Joumal des Débats).

L 40

Antologia do Negro Brasileiro

Uma Questão de Forma e de Oportunidade(Resposta do governo "aos senhores membros da Associação para a

Abolição da Escravatura", 22 de agosto de 1866).

Senhores.Tive a honra de levar ao conhecimento de S. M. o Imperador a carta

na qual manifestáveis os vossos ardentes votos pela abolição da escravatu-ra no Brasil.

Encarregado por S. M. de vos responder em seu nome e em nomedo ~overn~ brasileiro, congratulo-me em poder-vos asseverar que as vos-

,sas intenções encontraram o mais simpático acolhimento.Cabia-vos, senhores, a vós, cujas nobres expressões se elevam sempre

em favor dos grandes princípios da humanidade e da justiça, testemunharo ard?r ~ue empenhais ~o c?liseg~imento de uma empresa tão grande co-mo ?1~cIl., e é com a .maIs VIva satisfação que o governo brasileiro viu quefuzelsJuSti~a.aos ~ntImentos pessoais de S. M. o Imperador, aos dos mem-bros do Miru~téno, bem como à tendência da opinião pública no Brasil.

A emancipação dos escravos, conseqüência necessária da abolição dotráfico, não passa de uma questão de forma e de oportunidade.

Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país o consenti-r~m, o g~ver~o brasileiro considerará como objeto de primeira importân-CIa a realização do que o espírito do Cristianismo desde há muito reclamado mundo civilizado.

Aceitai, senhores, a segurança de minha alta consideração.

Martim Francisco Ribeiro de Andrada

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Edison Carneiro

Escravos no ExércitoDecreto n? 'J72S-A, de 6 de novembro de 1866.

Hei por bem ordenar que, aos escrav~s da naçã?, que estiverem nascondições de servir no Exército, se dê gratuitamente hberdade para se em-pregarem naquele serviço; e, sendo casados, estenda-se o mesmo benefí-cio às suas mulheres.

Zacarias de Góis e Vasconcelos, do meu Conselho, senador do Impé-rio, presidente do Conselho de Ministros, etc., assim o tenha entendidoe faça executar.

Palácio do Rio de Janeiro, aos seis de novembro de mil oitocentos ses-senta e seis quadragésimo quinto da Independência e do Império.

Com a rubrica de Sua Majestade o Imperador.

Zacarias de Góis e Vasconcelos

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Antologia do Negro Brasileiro

o Último RedutoPerdigão Malheiro

A emancipação imediata, isto é, declarar desde logo livres todos osescravos existentes no Brasil, é solução absolutamente inadmissível na atua-lidade, e mesmo em futuro próximo; porque o grande número de escravosque ele ainda conta (1 500 000, termo médio) é um obstáculo insuperável,visto como traria necessariamente a desorganização do trabalho, atacariaportanto a produção mais importante e a fonte mais poderosa da riquezaentre nós, introduziria a desordem nas famílias, e daria lugar a ataquesà ordem pública, desenfreando-se tão grande número de escravos, tudo comgrande dano particular e do Estado, assim como dos próprios escravos.

. .. E que destino dar a toda essa gente assim repentinamente solta dasujeição e das relações em que se achava? Deixá-Ios entregues a si, eles,incapazes no geral de se regerem por causa da escravidão em que jazerame de que seriam assim bruscamente retirados? A vagabundagem, os vícios,o crime, a prisão, a devassidão, a miséria, eis a sorte que naturalmenteos esperaria.

Não haveria em tal solução bem algum para o Estado, nem para ospróprios escravos; esse rompimento irrefletido seria antes um mal para to-dos, sob qualquer ponto de vista encarado.

Demais, seria necessário que o Estado pagasse o valor deles a seussenhores, visto como a indenização neste caso seria de inteira justiça hu-mana, porque o escravo representa um valor, uma propriedade possuídaem boa-fé e sujeita a transações, como se fora tal por natureza, em virtudeda própria lei humana, e sob a fé e garantia dela. Ora, a cifra, a que mon-taria a indenização, calculada termo médio a 800$ por cabeça (9), sobre1 500 000 escravos (termo médio da população escrava), é tal, que bastaenunciá-Ia para convencer da impossibilidade da sua execução; ela seriade 1 200 000 contos!

Se nós contássemos apenas algumas dezenas de mil escravos, eu pro-poria que o Brasil fizesse o sacrifício dessas dezenas de mil contos de réise abolisse imediatamente a escravidão, libertando-os todos. Seria um grandebenefício para o Estado; e, sendo os escravos em muito menor número,não haveria nisso os mesmos inconvenientes acima ponderados, emboraalguns ainda se pudessem dar. Esses inconvenientes seriam prevenidos ouremediados do melhor modo; e as vantagens largamente os compensariam,bem como o ônus da desapropriação. Por enquanto, porém, é solução quede forma alguma se pode admitir; nem creio que haja atualmente quema proponha ou adote.

Tem havido quem pense que o melhor é deixar ao tempo; porque, di-zem, a mortandade nos escravos, as alforrias parciais, a desproporção des-favorável nessa classe entre a mortalidade e os nascimentos, tendem a ex-tinguir os escravos; e assim a escravidão há de acabar naturalmente porsi mesma, embora em uma época que se não pode desde já precisar. Mas

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Edison Carneiro

este pensamento, conquanto em parte infelizmente verdadeiro, não o é to-talmente. Desde que se mantém o princípio perpetuador da escravidão -o nascimento, embora tenda a diminuir, não se extinguirá. Essa mesmaopinião, reconhecendo dessarte que a escravidão obsta a favorável aumen-to da população, e que ela é portanto deletéria e nociva, reforça a conve-niência e necessidade de se cuidar na sua abolição. Demais, seria deixaras coisas no statu quo, mantendo o mal com todas as suas necessárias eperniciosas conseqüências, sem prover de remédio; seria abandonar umenfermo grave à sua triste sorte, entregando-o ao destino .

... Desde que se visa não unicamente libertar os escravos por um prin-cípio, aliás bem entendido, de humanidade e caridade cristã, mas tambéme principalmente com o grande intuito de, extinguindo a escravidão, subs-tituir o trabalho escravo pelo trabalho livre, organizar assim melhor e maisnaturalmente a nossa sociedade em bem de todos e do Estado, a 'matériasobe de importância, eleva-se a uma altura que demanda exame de outrasquestões, sobretudo da ordem econômica e social. A questão, que a prin-cípio e à primeira vista se afigura simples e fácil, torna-se complexa e difí-cil por forma a exigir ainda maior cuidado na sua apreciação, e na soluçãoa dar às inúmeras dúvidas que o problema sugere .

.. .Para se obter a extinção completa da escravidão, é preciso atacá-Iano seu reduto, que entre nós não é hoje senão o nascimento. Cumpre, por-tanto, declarar que são livres todos os que nascerem de certa data em dian-te, v.g., desde o dia 25 de dezembro (Nascimento de Cristo) seguinte aoda promulgação da lei ou de outro igualmente solene e de unção religiosapara interessar a-s consciências e assinalar de modo sensível o ato: a Or-dem dos Beneditinos declarou livres todos os que nascessem de escravosda mesma Ordem desde o dia 3 de maio de 1866 em diante (Invenção daSanta Cruz). Esta emancipação do ventre, esta liberdade dos filhos, im-porta a grande justiça da revogação do odioso e injustificãvel bárbaro prin-cípio mantenedor da perpetuidade da escravidão, o célebre partus sequi-tur ventrem; e deve ser a pedra angular da reforma.

Desde que não se pode adotar a emancipação imediata, não há outromeio.

(A escravidão no Brasil)

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Edison Carneiro

Queima dos Arquivos da Escravidão(Aviso do Ministro da Fa$nda Ruy Barbosa, 1890)

Manda queimar todos os papéis, livros dematricula e documentos relativos à escravidão,

existentes no Ministério da Fazenda.

Ruy Barbosa, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fa-zenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional:

Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de suaevolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão - a instituiçãofunestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da socieda-de, inficionou-lhe a atmosfera moral;

Considerando que a República está obrigada a destruir esses vestígiospor honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidadee solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela aboliçãodo elemento servil entraram na comunhão brasileira;

Resolve:1.0 _ Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os

papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fa-zenda, relativos' ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos,filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenãrios, que deverão ser semdemora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriadô na Re-cebedoria.

2.0 _ Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp, presi-dente da Confederação Abolicionista, e do administrador da Recebedoriadesta capital dirigirá a arrecadação dos referidos livros e papéis e procede-rá à queima e destruição imediata deles, o que se fará na casa da máquinada Alfândega desta capital, pelo modo que mais conveniente parecer àcomissão.

Capital Federal, 14 de dezembro de 1890 - Ruy Barbosa

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Antologia do Negro Brasileiro

A Escravidão e a MonarquiaEdison Carneiro

I

Os Monarcas da Casa de Bragança, apesar dos seu oitenta anos detrato direto, no Brasil, com os problemas da escravidão, não passaram muitoalém do ponto a que, relutantemente, chegara D. João VI, em 1810,con-cordando com a Inglaterra na "gradual abolição" do comércio de escravos.

O tráfico de negros era uma das maiores fontes de renda, tanto de Por-tugal como do Brasil.

A aceitar os cálculos de Renato Mendonça, entraram no país, trazi-dos no bojo dos navios negreiros, 4830000 negros, da Costa d~frica eda Contracosta. Mas estes cálculos parecem muito otimistas. A impor-tação de escravos oscilava entre 20 e 30 000 negros por ano, em temposnormais, tendo mesmo chegado, nos anos posteriores ao bill Aberdeen,a .00סס6 Se havia bom vento, fazia-se a viagem entre a Costa da Mina eo Recife em 15 dias. Os navios negreiros transportavam, em média, 300negros. Quando começaram as limitações e as perseguições ao tráfico al-guns navios houve que transportassem m negros. A princípio as "peças"eram vendidas a l00$()()(),mas, com as limitações, esse preço se elevoua 300$()()()por cabeça. Assim, o carregamento de um navio negreiro nun-ca valia menos de 60 ()()()cruzados. Nestas condições, o número de escra-vos importados não podia ser tão reduzido.

O elevado número de escravos não trouxe vantagens materiais aos ne-gros. Havia um título, nas Ordenações Manuelinas, que regulava "de co-mo se podem rejeitar escravos ou bestas por doença ou manqueira" e atémesmo a Assembléia Constituinte de 1823 só em emenda a um parágrafoda Constituição do Império considerou brasileiros os escravos, embora nãocidadãos, porque cidadãos só poderiam ser os que tivessem rendimentoslíquidos anuais superiores "ao valor de 150 alqueires de farinha de man-dioca". A justiça era a justiça de classe, do senhor contra o escravo. Umaviso de 1853declarava: "O escravo não pode ser considerado pessoa mi-serável para que em seu lugar o Promotor Público possa agir contra quemo ofenda criminalmente". Um acórdão do Tribunal da Relação do Rio deJaneiro, em 1879,estabelecia: "Não pode o escravo dar queixa contra pes-soa alguma, ainda que seja contra aquele que o quer reduzir à escravidão' '.O tribunal da Relação de Ouro Preto, em acórdão de 1883, ia mais longe:"Não cabe recurso legal da sentença que condenou o escravo à pena demorte". Entretanto, o negro era, em certos pontosdo país, a maioria es-magadora da população. Houve um tempo, no Rio de Janeiro, em que, pa-ra 660 000 negros, havia apenas J7 000 brancos: e, na Bahia, havia 19ne-gros para cada branco ...

O aparecimento do artesanato urbano marca o início do declínio fatalda sociedade escravagista. Surgiu Eusébio de Queiroz. A colônia portu-guesa na América só se pudera manter à custa da exploração da cana-de-

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Edison Carneiro

açúcar, trabalho de negros. Mais tarde, quando a concorrência internacio-nal diminuiu os lucros desse comércio, a lavoura do café, trabalho de ne-gros, substituiu-o. No intervalo, o negro fora utilizado ainda nas bandei-ras, na redução do gentio, na mineração. Sobre os ombros do escravo afri-cano criara-se a sociedade que o esmagava. Mas, no desenvolvimento dasociedade brasileira, estava prevista a libertação do elemento servil. Vinhaem marcha ascendente o movimento abolicionista.

A lavoura do Brasil - trabalho de escravos - estava enterrada em gran-des dívidas. E já não dava lucros, mesmo em 1823, como o advertia JoséBonifãcio, na Assembléia Constituinte. Os senhores mais liberais e pro-gressistas alforriavam os seus escravos, utilizando-os no trabalho assala-riado, produtor de capital. As leis se aproximavam sempre mais do desfe-cho de 1888. Há uma linha ascendente ligando as leis da extinção do tráfi-co, do ventre livre e dos septuagenãrios ao decreto João Alfredo. Quando,sob delirantes aplausos, a consciência nacional se rejubilava com a aboli-ção total da escravatura, na verdade o governo monárquico apenas reco-nhecia um estado de fato. O negro escravo era menos de 5 % sobre a popu-lação nacional. Assim mesmo, o decreto de 1888 causou um prejuízo totalde cerca de 500 000 contos de réis, custo aproximado dos 720000 escra-vos ainda existentes no Brasil.

Esta medida custou, aos Braganças, o Trono do Brasil. À existênciada escravidão estava condicionada a da monarquia, já que Pedro II a redu-zira a simples "poder moderador", uma força neutra, que estabelecia oequilíbrio entre as ambições retr6gradas dos escravagistas e dos conserva-dores e os interesses mais profundos dos abolicionistas e dos liberais. Aação da Princesa precipitou os acontecimentos. De modo que o beijo de-positado por Patrocínio aos pés da Regente estava destinado a ser a últimahomenagem prestada à Casa Imperial. Não estava muito longe a manhãde 15 de novembro de 1889...

(De uma conferência na Faculdade de Direito da Bahia, 1937)

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Edison Carneiro

Antologia do Negro Brasileiro

o Batalhão dos Libertos

oBatalhão dos Libertos teve o seu batismo de fogo, na guerra da In-dependência da Bahia, em 2 de maio de 1823.

Esta operação - um reconhecimento em força - fez parte dos prepa-rativos para o ataque geral, marcado para o dia 3 pelo General Labatut,comandante do Exército Pacificador, contra as forças do General Madei-ra, que ocupavam a capital.

Como os demais destacamentos avançados das tropas independentes,a segunda companhia do Batalhão dos Libertos se atirou contra as linhasportuguesas. A ação se travou nas vizinhanças do Tanque da Conceição.Os homens do General Madeira esperaram os pardos do Batalhão "em or-dem estendida" e lhes ofereceram obstinada resistência, mas finalmentetiveram de ceder terreno, fugindo em debandada e deixando oito mortosno campo de batalha, com os libertos nos seus calcanhares.

Esta escaramuça foi o acontecimento mais importante do dia.O Exército Pacificador, no dia seguinte, desfechavaa sua ofensiva, avan-

çando sobre a Cruz do Cosme, pelo Cabula e por São Gonçalo, e sobreo Tanque da Conceição. As linhas lusitanas foram destroçadas neste setore as tropas independentes levaram as suas vanguardas às vizinhanças dosentrincheiramentos da Lapinha, enquanto, mais a leste, os portugueses ti-veram de recuar as suas posições tão profundamente que, em Brotas, o co-mandante português, General Madeira, perdeu o chapéu esporeando o ca-valo, acompanhado do seu Estado-Maior, em desabalada carreira para ocentro da cidade. O inimigo perdeu cem homens, armas e equipamentos,enquanto os independentes registravam a perda de 20 homens, dos quais7 mortos.

O Batalhão dos Libertos foi criado por iniciativa do General Labatut.O comandante em chefe notava que somente homens das classes médiase das camadas populares acorriam às fileiras e, queixando-se da falta depatriotismo dos senhores de engenho do Recôncavo, que não alistavam osseus filhos no Exército Pacificador, pedia às autoridades que instassem comos senhores pela libertação dos seus escravos pardos, para com eles se for-marem dois batalhões. Com os pardos disponíveis, o General Labatut or-ganizou o batalhão dos Libertos do Imperador.

Ainda nesse mês de maio, com a deposição de Labatut, o Coronel Li-ma e Silva, novo comandante em chefe, reorganizou o comando do Exér-cito Pacificador, mandando que os Libertos do Imperador - então sob ocomando do Capitão Bulcão Limeira - servissem de "casco" para outrobatalhão, o Batalhão n.o 9.

Seis dias depois de constituído, o Batalhão n,? 9 participava, a 3 dejunho, da grande ofensiva geral contra os entrincheiramentos portugueses,que esmagou a resistência do inimigo na Cruz do Cosme, em Brotas, no

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Edison Carneiro

Rio Vermelho, na Pituba, no Alto d'Areia e no Rio de São Pedro. O Bata-lhão dos Libertos teve cinco feridos, dois gravemente, em ação provavel-mente no setor da Cruz do Cosme.

Os ataques de 3 de maio e de 3 de junho prepararam o caminho paraa entrada triunfal do Exército Pacificador, a 2 de julho de 1823, na cidadeque sitiara por cerca de um ano. Os homens do General Madeira já esta-vam embarcando, apressadamente, de volta a Portugal, nos transportes queos esperavam no porto e que a esquadra de Lord Cochrane deveria perse-guir e acossar até além de águas territoriais brasileiras. O grosso do Exér-cito Pacificador, sob o comando de Lima e Silva, entrou na Bahia pela Es-trada das Boiadas (Estrada da Liberdade), tendo como uma das suas pri-meiras unidades o Batalhão n.o 9 que, com mais outra formação, vinhachefiado pelo tenente-coronel Manuel Gonçalves da Silva. Enquanto essesdestacamentos passavam sob os arcos de flores naturais preparados pelasfreiras da Soledade, e eram recebidos sob os aplausos e as aclamações dopovo da capital libertada, o Coronel Pelisberto Caldeira, comandando ou-tras unidades do Exército Pacificador, entrava na cidade pelo lado da es-querda, pelo Rio Vermelho, completando o triunfo das armas brasileiras.

Na Bahia, o Batalhão dos Libertos - ao todo 3Z7 praças - ficou aquar-telado no Noviciado.

·0 Exército Pacificador, ao entrar na Bahia, constava de 8783 pra-ças - ou 9515 homens, contando o Batalhão do Imperador, - mas já emabril de 1823 o número de "bocas consumidoras" do xército se elevavaa 10148.

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Antologia do Negro Brasileiro

Deformações de Corpo dos Negros FugidosGilberto Freyre

Nos anúncios de negros fugidos, de que estão cheios os jornais dotempo do Império, encontra-se muito sinal de deformação de corpo do ho-mem, da mulher e do menino escravo. Deformação por excesso de traba-lho, por doença, por tatuagem, por condições anti-higiênicas de vida e tal-vez de alimentação em certas senzalas. Também cicatrizes de açoites e deferro quente .

.. .São numerosos os casos de negros "rendidos" e "quebrados"; depretos com "veias estouradas" ou calombos no corpo; os de escravos deandar cambaio ou banzeiro; vários os de negros fugidos com máscara oumordaça de Flandres na boca. Às vezes máscaras ou mordaças fechadascom cadeado. Essas mordaças seriam menos castigo que medida profiláti-ca: contra o chamado vício de comer terra. As máscaras se usavam - in-forma em artigo nos Anais Brasilienses de Medicina o médico Gama Lo-bo - contra a voracidade por toda espécie de frutas, até as verdes, dosescravos sofrendo de oftalmia a que denominou de brasiliana. Doença queseria causada pela má alimentação em certas fazendas do Império .

.. .Outros negros aparecem nos anúncios de jornais com os olhos doen-tes: sapiranga, olhos vermelhos de cachaceiros ou de bebedeiras de fumo- e talvez de maconha - alguns cegos de um olho, outros zarolhos, vá-rios com "carne sobre os olhos".

Aparecem negros de braço esquerdo mais comprido que o direito, al-guns com seis dedos nos pés, outros faltando o dedo mindinho, velhos pu-xando pela perna, talvez inchada. Não são raros os doentes de boubas eI!lcera~,os de pés cheios de bichos, os de postemas pelo corpo, os de "fe-rldas que nunca saram" no pé ou na perna. E surgem uma vez por outraON negros lesos ou malucos, os.inclinados à violência, ou valentões, osIristonhos, sorumbáticos e calados que nem caboclos - efeito, talvez, emIlgnns casos, de influências sociais deformadoras da alma, e não apenasdo corpo.

Sem falar nos gagos e canhotos, e num ou noutro corcunda, nos ho-IIll'lIS de fala de mulher, nas mulheres de barba no queixo, nas molecasIml s - talvezbosquímanas - que quase não se distinguem dos homens,II peitos duros e pequenos contrastando com os grandes ou murchos de111, Ims negras, passam pelos anúncios de jornal pretalhões excessivamenteI ibcludos no peito, barba cerrada que nem australianos; alguns encabela-do por peito e pernas; um até de "fisionomia sevandija", "suíças e bar-1111 icabanadas", Esse excesso de cabelo acusando, talvez, mestiçagem,1111 luunita-semita, ou mais recente, do mesmo modo que o cabelo liso, co-11111 d caboclo, e o sarará, com que se apresentam outros "negros" fu-,,1110 •

Vririos os casos de esteatopigia: nádegas arrebitadas para trás, ná-

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Edison Carneiro

degas empinadas, nádegas salientes, "bunda grande". Evidência da im-portação de hotentotes e bosquímanos.

Numerosos os casos de deformações do corpo por tatuagem, sinaisde nação, marcas de fogo que não devem ser confundidas com as de ferroquente - castigo dos negros fujões. A~tatuagens africanas eram ao longodo nariz, talhos à imitação de pés de galinha, na testa e na face, talhinhosou recortes, verdadeiras rendas, pelo rosto todo. Outros negros aparecemcom tatuagem já abertas no Brasil, umas líricas, outras religiosas: cora-ções feitos com tinta azul e, no meio dos corações, iniciais; signo de Salo-mão; a cruz.

Vários pretos surgem, dos anúncios de jornal, com orelhas furadaspara argolas ou brincos, um deles, um pretalhão caçanje, de "suíças volta-das' '. Outro, de nação Congo, com uma meia lua pendurada do buraco daorelha. São também freqüentes os escravos com dentes limados.

Aparecem pretos com a cara picada de bexiga; vários banguelas outramarca de nação; alguns com dentes podres. De outros se anunciam doen-ças venéreas.

Numerosos os que apresentam nas coxas ou.nas costas, letras, sinaisou carimbo de propriedade, como hoje o gado, ou, então, marcas de surrae castigo, o corpo deformado pela crueldade dos senhores brancos; unsmanquejando, os quartos arriados em conseqüência de surras tremendas;outros com cicatriz de relho pelas costas ou nas nádegas; ou então cicatrizde anjinho, de tronco, de corrente no pescoço, de ferro nos pés, de lubam-bo no tornozelo. Alguns com queimaduras na barriga.

Também surgem dos anúncios negros com o corpo deformado não porcastigo ou surra dos senhores, mas pelos golpes ou "talhos que deram emsi" - na garganta ou no peito. Tentativas fracassadas de suicídio, nos mo-mentos de banzo ou de raiva.

Grande número de pretos fugidos apresentam deformações daspernase da cabeça, algumas das quais devem ser atribuídas ao hábito das mãesescravas trazerem os molequinhos de mama escanchados às costas durantehoras e horas de trabalho; também à dormida em esteira, sobre o chão du-ro das senzalas. Mas é também admissfvel que parte dessas deformaçõesacusem possíveis efeitos de raquitismo ... O fato é que os anúncios de ne-gros fugidos, no Jornal do Comércio, do Rio, no Diário de Pernambuco,no Diário do Rio de Janeiro, em outras gazetas brasileiras do tempo doImpério, por n6s examinadas, estão cheios de negros de "pernas cambaias","joelhos tocando um no outro", "pernas tortas para dentro", "joelhos me-tidos para dentro", "pernas e braços exageradamente finos", "zambos",arqueados, peitos estreitos, cabeças puxadas para trás ou achatadas de la-do. O fato de virem da África para o Brasil, em viagens que duravam me-ses, e aos magotes, uns por cima dos outros, nos porões úmidos, tantosnegros ainda moleques e até molequinhos, toma admissivel que fossemefeitos de raquitismo algumas daquelas freqüentes deformações das per-nas e da cabeça. Também o regime de trabalho e de alimentação em certasfazendas e para certo número de escravos - trabalho desde quase a ma-

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Antologia do Negro Brasileiro

drugada até o sol posto, debaixo de telheiros acachapados, e acrescido dealimentação deficiente e de dormida no chão, em senzalas úmidas e fecha-das - talvez favorecesse o raquitismo, apesar de todo o desfavor dostr6picos. .

Resta salientar nos anúncios de jornal de escravos fugidos as deforma-ções de corpo por especialização, vamos dizer, profissional e por precoci-dade ou excesso de trabalho. São inúmeros os casos de deformação profis-sional das mãos, dos pés, da cabeça, do corpo inteiro do negro. Váriosnegrinhos, meninos de dez, doze anos, já aparecem de croa na cabeça, nãorapada com todo o ritual como a dos meninos brancos que iam estudarpara padre, mas feita à força pelo peso de carretos brutos: tabuleiro, tijolo,nrcia, pipa, barril. "Croa na moleira de carregar areia", diz-se de doismolequinhos fugidos de uma casa do Recife em 1830, cada um com sua• roa de marúrio. E felizes os que s6 carregavam à cabeça areia ou tijolo.

Há casos de negros com os dedos dos pés torados por serem amassa-dores de cal e a cal lhes ter aberto feridas e comido os dedos; outros ded dos e munhecas inteiras comidas - talvez pelas moendas dos engenhos.Vrírios de "mãos muito calejudas e tortas" por serem carpinteiros; ofi-('llIs de alfaiate com os dedos deformados pela agulha, alguns com o dedopl 'lIdode debruar tamancos; outros de "dedos da mão com calos de amassarp u", Quase todos de pés e mãos enormes, deformados pelo trabalho.

Os anúncios de negros fugidos... apresentam o negro importado da1II'a para o Brasil não como o elemento cacogênico ou transmissor de

dI!( uças e males africanos, de que tanto se fala, mas desprestigiado nasu ( qualidades eugênicas e nas suas virtudes nativas por deformações, na

1IIIIId • maioria, de causas nitidamente sociais e brasileiras: excesso de tra-li Illio m plantações e em casas burguesas, às vezes má dormida, má ali-1111 ulaç' o e más condições de vida nas senzalas, castigos, vícios, aciden-11 11 trabalho, precocidade no esforço bruto.

1\11I eontraste com esse negro socialmente patol6gico - sem desco-1111" (IIIIOS, é claro, casos de portadores de taras e de doenças africanas,11111 1111 numero bem menos significativo que os portadores de doençasI 1\ o aqui adquiridos - passam, em grande número, pelos anúncios,I 1111 1 idmiravelmente eugênicas: negros e negras fortes, altas, bonitas,111 111 li II lil de corpo, os dentes alvos e perfeitos.

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