democracia e uso da Água: o ideal constitucional … · democracia institucional e da justiça...
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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
LUIZ MARCELLO DE ALMEIDA PEREIRA
DEMOCRACIA E USO DA ÁGUA:
O IDEAL CONSTITUCIONAL DE JUSTIÇA COMO
NORTE PARA DECISÕES SOBRE
O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A MUDANÇA SOCIAL
MARÍLIA
2006
LUIZ MARCELLO DE ALMEIDA PEREIRA
DEMOCRACIA E USO DA ÁGUA:
O IDEAL CONSTITUCIONAL DE JUSTIÇA COMO
NORTE PARA DECISÕES SOBRE
O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A MUDANÇA SOCIAL
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito, sob orientação do Profa. Dra. Marlene Kempfer Bassoli.
MARÍLIA
2006
Autor: Luiz Marcello de Almeida Pereira
Título: Democracia e uso da água: o ideal constitucional de justiça como norte para
decisões sobre o desenvolvimento econômico e a mudança social
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de
Marília, área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e
Mudança Social, sob a orientação do Profa. Dra. Marlene Kempfer Bassoli.
Aprovado pela Banca Examinadora em ____/____/______
_________________________________________
Profa. Dra. Orientadora
__________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
__________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
Dedico este trabalho aos meus pais, Joaquim e Regina, pois se pude escrever sobre valores foi porque os mais nobres e arraigados me foram transmitidos na formação; e à Maria Lúcia, porque seus olhos me ensinam tudo que vale a pena.
Agradeço à professora Marlene, pelas generosas disponibilidade, sensibilidade e inteligência, sem as quais este trabalho não seria assim; à Maria Lúcia, por demonstrar amor das mais maravilhosas formas; às surpresas, obstáculos e dádivas do tempo, por me desviarem e imporem novas escolhas, porque sem isto o trabalho também seria diferente; à Andréia Regina e ao Joaquim, por lerem e opinarem; aos mesmos, à Regina e à Júlia, pela alegria em partilhar sabedoria comigo; às pessoas que foram importantíssimas em outras fases da minha vida, por tudo o quanto me ensinaram; à Regina, pela competência e simpatia; aos que escreveram, compuseram ou criaram obras belíssimas e profundas, das quais pude me aproveitar para a reflexão, a contemplação e a dança; ao Camillo, pelo apoio silencioso; e a todos que assumiram neutralidade.
When yer head gets twisted and yer mind grows numb When you think you're too old, too young, too smart or too dumb
And yer good gal leaves and she's long gone a-flying And yer heart feels sick like fish when they're fryin'
And you say to yourself just what am I doin' Why am I walking, where am I running
In this ocean of hours I'm all the time drinkin' And you need something special
No, but that ain't yer game, it ain't even yer race You can't hear yer name, you can't see yer face
You gotta look some other place And where do you look for this hope that yer seekin'
Where do you look for this oil well gushin'
Your feet can only walk down two kinds of roads Your eyes can only look through two kinds of windows
Your nose can only smell two kinds of hallways You can touch and twist
And turn two kinds of doorknobs You can either go to the church of your choice
Or you can go to Brooklyn State Hospital You'll find God in the church of your choice
You'll find Woody Guthrie in Brooklyn State Hospital
And though it's only my opinion I may be right or wrong
You'll find them both In the Grand Canyon
At sundown (Bob Dylan)
DEMOCRACIA E USO DA ÁGUA:
O IDEAL CONSTITUCIONAL DE JUSTIÇA COMO
NORTE PARA DECISÕES SOBRE
O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A MUDANÇA SOCIAL
Resumo:
O trabalho propõe solução interpretativa para a aplicação do princípio da função social ao uso econômico dos recursos hídricos, passando pelos princípios constitucionais da democracia institucional e da justiça social como finalidade da República. O repertório conceitual da obra do filósofo Jürgen Habermas é utilizado para apontar possibilidade de interpretação dos imperativos constitucionais da democracia e da construção de sociedade justa, de forma a permitir que seus conteúdos se influenciem reciprocamente. A partir desta relação cria-se norma dinâmica de justiça, a qual poderá informar as discussões e decisões sobre outorga de recursos hídricos. Analisam-se os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, principalmente a outorga e sua respectiva cobrança, o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e sua perspectiva democrática. Conclui-se que será inconstitucional a decisão sobre outorga ou cobrança pelo uso de recursos hídricos se: a) a norma não atentar para a função social do uso da água; b) a instituição que a criou não for democrática; e c) seus efeitos não forem de criação de sociedade justa, ou não for justa a distribuição social do poder no órgão decisório.
Palavras-chave: água; democracia; desenvolvimento econômico.
DEMOCRACY AND THE USE OF WATER:
THE CONSTITUCIONAL IDEAL OF JUSTICE AS
A GUIDELINE FOR DECISIONS ABOUT
ECONOMIC DEVELOPMENT AND SOCIAL CHANGE
Abstract:
This work proposes an interpretative solution for the application of the principle of social function to the economic usage of water resources. The concepts present in Jürgen Habermas works are used to support a possible interpretation of the constitutional principles of democracy and the building of a society ruled by justice. From this on, it is proposed a dynamic essence for justice, which may be used in debates towards decisions about the usage of water resources. The instruments of the Water Resources National Policy are analyzed, mainly the authorization for usage and the proportion of pay, the National System for Management of Water Resources and its democracy rules. The conclusion is that any decision about water use is unconstitutional if: a) the norm doesn’t obey the principle of social function of the propriety; b) the institution which originated the decision is not a democratic one; e c) the effect of the decision is not to build a society with justice, the distribution of power in the decision making institution is not one with justice.
Keywords: water; democracy; economic development.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9 1 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS 15 1.1 FINALIDADE 16 1.2 ESTRUTURA COGNITIVA 21 1.3 TIPOS DE CONFIRMAÇÃO 23 2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS 25 2.1 BENS PÚBLICOS 31 2.2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS ENQUANTO BENS ECONÔMICOS 33 2.3 DIREITO DIFUSO 36 2.3.1 Evolução das noções de titularidade e legitimidade durante a modernidade 37 2.4 DOMÍNIO DA ÁGUA 49 2.5 USO DOS RECURSOS HÍDRICOS: OUTORGA E COBRANÇA 50 2.5.1 Cobrança gera internaliazação de externalidades negativas 61 2.5.1 Função Social da Outorga 64 3 POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS 66 3.1 SISTEMA NACIONAL DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS: BREVES GENERALIDADES 67 3.2 PLANOS DE RECURSOS HÍDRICOS 68 3.2.1 Os Planos e o Ordenamento 71 3.3 DEMOCRACIA: CONCEITUAÇÃO E REGRAS GERAIS 76 3.3.1 Teorias da Democracia 79 3.4 DEMOCRACIA: DESCRIÇÃO INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS DECISÓRIOS DO SISTEMA 80 3.4.1 Contraponto: a regulação do serviço público de saneamento básico 83 3.5 DECISÕES NOS COMITÊS 88 4 JUSTIÇA E DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTAÇÕES JURÍDICAS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 90 4.1 HANS KELSEN 93 4.2 JÜRGEN HABERMAS 98 CONCLUSÃO 105 REFERÊNCIAS 107
INTRODUÇÃO
A Lei Federal 9.433/97 regulamentou o Art. 21, XIX, da Constituição da
República, estabelecendo a Política Nacional de Recursos Hídricos.
Esta política se constitui, por um lado, de um regime jurídico específico para o
uso dos recursos hídricos e, por outro lado, de uma estrutura institucional para a gestão
destes recursos. Para consecução de seus objetivos, o regime prevê instrumentos como
os Planos de Recursos Hídricos, que contém o enquadramento dos corpos d’água e se
baseiam num sistema de informações sobre o assunto, bem como na outorga dos direitos
ao uso da água e sua respectiva cobrança.
A estrutura institucional prevê um Conselho Nacional de Recursos Hídricos,
prevê Conselhos Estaduais e prevê Comitês de Bacia Hidrográfica, além das respectivas
Agências e das estruturas executivas. Também prevê a Agência Nacional de Recursos
Hídricos.
Assim, por um lado tem-se o regime da água propriamente dito, e por outro o
regime das instituições destinadas a criar e aplicar o primeiro. Tanto um quanto o outro
estão imersos no ordenamento brasileiro e subordinados à Constituição da República,
conforme a qual devem ser interpretados.
* * *
Foi comum pensar-se no Direito Ambiental a partir de uma situação idealizada,
na qual a crescente produção industrial se chocaria com os imperativos de conservação
do ambiente. Essa maneira de ver o problema leva a um dilema, estando, de um lado, as
crescentes demandas sociais por energia, serviços e produtos, e, do outro lado, o esforço
pela conservação da natureza, intacta. Assim seria forçoso concluir pela necessidade de
sacrificar a inútil beleza dos ecossistemas intocados, em prol da alimentação e provisão
de condições de vida digna a seres humanos.
Essa idealização, entretanto não se sustentou, levando o dilema entre a produção
e a conservação a ser superado por outro enfoque. Tal enfoque: os modelos em choque
hodiernamente são, por um lado, os de produção responsável e, por outro lado, a
produção desonerada de obrigações sociais. Desonerada inclusive quanto ao meio
ambiente.
Para superar essas opções, a formalização jurídica aponta para um regime de
maior liberdade, com amplo acesso ao uso dos recursos ambientais, ao lado da
desoneração, ou um regime com maiores limites ao uso destes recursos. Em termos
constitucionais, trata-se de equilibrar os princípios da livre iniciativa e os da supremacia
do interesse social, tendo por fiel o princípio da função social da propriedade. Portanto,
juridicamente, este se impõe como primeiro conceito a ser estudado, para aproximar-se
de uma compreensão mais adequada do impasse.
As decisões pois sobre a outorga e a cobrança pelo uso da água são tomadas pela
estrutura institucional mencionada acima, qual seja o Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos. O regime de tomada de decisões institucionais é
informado pelo princípio constitucional da democracia. Portanto impõe se a análise de
um segundo conceito constitucional, que se verá, bem como sua aplicação à Política
Nacional de Recursos Hídricos.
Quanto ao uso da água, poderão ocorrer dois comportamentos: regime de maior
responsabilidade, ou regime de maior liberdade. A opção entre maior ou menor
responsabilidade no uso da água é uma questão de justiça, ou seja, se é mais justo um
regime de maior responsabilidade ou outro de maior liberdade. As instituições que
criarão e aplicarão esses regimes, obrigatoriamente democráticas, terão seu desenho
criado autonomamente em cada Estado ou Bacia Hidrográfica. Assim, cada Estado ou
Bacia Hidrográfica autonomamente tomarão decisões sobre este desenho, mormente
sobre sua composição, os critérios de eleição, o estatuto interno de tomada de decisão e
o equilíbrio entre forças sociais. A avaliação dessas instituições também é uma questão
de justiça. Elas devem ser justas para que possam tomar decisões justas. Daí o terceiro
conceito constitucional relevante para o estudo, a justiça.
Para este intento, efetua se interpretação harmonizadora da Constituição, a qual
tem por resultado a proposição de ponto de conexão entre os dois primeiros conceitos,
operada pela introdução do terceiro. Trata-se de apontar modelo de democracia em que
as demandas da sociedade brasileira encontram arena institucional capaz de as traduzir
em propostas formalizadas de desenvolvimento econômico e mudança social. Os
recursos hídricos, pela universalidade de seu uso tanto no cotidiano da população
quanto nos empreendimentos econômicos, constituem incontornável objeto para a
regulamentação do desenvolvimento econômico e social brasileiros.
O que se propõe é que a interpretação harmonizadora de justiça, democracia e
função social pode enriquecer o significado dos três conceitos constitucionais, como
também se propõe que os significados reciprocamente referidos são úteis para a
interpretação da Política Nacional de Recursos Hídricos conforme a Constituição da
República. Por último, propõe-se que será inconstitucional a decisão sobre outorga
ou cobrança pelo uso de recursos hídricos se: a) a norma não atentar para a função
social do uso da água; b) a instituição que a criou não for democrática; e c) seus
efeitos não forem de criação de sociedade justa, ou não for justa a distribuição
social do poder no órgão decisório.
* * *
A água é necessária para a economia nacional, aliás, em qualquer situação,
histórica ou geográfica, na qual se conceba a produção de bens economicamente
relevantes, ela é indispensável. A vida e a dignidade da pessoa humana são
soberanamente importantes para a Constituição, o que simplifica a interpretação do
ordenamento para a formulação de decisão sobre a utilização de qualquer bem — não há
uso legítimo que ataque a vida ou a dignidade humanas. Aqui, entretanto, busca-se
desvendar a possibilidade de avaliação comparativa entre diferentes usos
economicamente relevantes (e juridicamente possíveis) dos recursos em questão,
mormente porque esta questão permite perquirir também sobre as estruturas
democráticas da Política Nacional de Recursos Hídricos.
Tanto a ponderação axiológica da função social dos usos econômicos dos
recursos hídricos, quanto da democracia das instituições que o gerem, se aproveitam da
determinação de um peso axiológico específico: a justiça. Os dois primeiros princípios,
na sua aplicação, devem ser ponderados em conjunto com outros. O que se propõe é que
a justiça, como ente axiológico, será útil tanto para a dita ponderação, para a avaliação
destes princípios, como também para determinar seus significados. A inclusão deste
valor é o caminho para a proposição de canal de comunicação entre os instrumentos e as
instituições referentes à água. A partir do primeiro objetivo da República, a construção
de sociedade “livre, justa e solidária” (Art. 3º, I, da Constituição), buscou-se interpretar
a legislação, de maneira a criar significados compatíveis com o nível constitucional do
ordenamento. Mal comparando, a justiça seria a luz da “relatividade constitucional”
entre a democracia e a função social, permitindo a determinação de seus conteúdos,
proporcionando maior densidade aos conceitos.
Para a realização do intento, primeiro, é necessário apresentar os dois vértices do
problema, quais sejam, a função social da outorga de recursos hídricos e a dinâmica
democrática das instituições do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos. Se constitucionalmente a justiça é essencial para dar unidade à Política
Nacional de Recursos Hídricos, no nível legal esta comunicação se dá a partir dos
Planos de Recursos Hídricos, formulados pelos órgãos institucionais e meios formais
para o estabelecimento dos critérios para as outorgas e cobranças. Daí a análise especial
destes instrumentos.
Assim, há três problemas incidentais. O primeiro é a aplicabilidade do
princípio da função social da propriedade à outorga de uso de água, como também à
cobrança daí decorrente. Daí a necessidade de se estudar o regime da água propriamente
dita, o que se realiza no segundo capítulo. O segundo problema incidental envolve o
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e as garantias de sua
democracia, o que se estuda no terceiro capítulo. O terceiro é estudado no quarto
capítulo, envolvendo as relações entre justiça e democracia e entre justiça e função
social da propriedade.
As outorgas serão validamente concedidas se concordantes com o ordenamento,
tanto com seu nível constitucional quanto com o legal. As instituições serão legítimas
para tomar as decisões se suas competências forem levadas a cabo de maneira também
concordante com o ordenamento. Tanto as outorgas devem estar de acordo com a
função social dos recursos hídricos, quanto as instituições devem se deixar permear pela
democracia.
A função social da propriedade é imperativo constitucional, está explícita nos
artigos 5º, XXIII; 170, III; 170, § 1º, I;180, § 2º; 184; 185, parágrafo único; e 196. Em
cada um destes casos seu significado deve ser precisado pelo interprete e esta
dissertação propõe que, no caso específico de sua aplicação com relação aos recursos
hídricos, seja útil pensar nela a partir de concepção da justiça assinalada no Art. 3º, I, da
Constituição da República.
A democracia está presente expressamente em várias flexões na Constituição.
Por conhecidos motivos históricos, ela consta, apenas literalmente, impressionantes 14
vezes no texto constitucional: no Preâmbulo, nos artigos 1º; 5º, XLIV; 17; 23, I; 34, VII,
a; 90, II; 91, caput e § 1º, IV; 127; 194, VII; 206, VI; 215, § 3º, VI; além do nome do
Título V. Sua definição clássica e a sua relação com a legitimidade do Estado e do
ordenamento estão na lapidar frase do Art. 1º, parágrafo único, da Constituição da
República. Propõe-se neste trabalho a utilidade de se atribuir significado ao termo, no
caso das instituições que gerem recursos hídricos, a partir também da justiça aludida do
Art. 3º.
Esta definição de justiça, como exposto à frente, não pode ter conteúdo
materialmente fixo no tempo ou determinado sem se levar em conta a situação histórica.
Seu conteúdo é construído pela sociedade e impulsiona as mudanças sociais que se dão
em compasso com o desenvolvimento econômico.
Como forma de organização dos conceitos — mormente das relações entre
justiça, sociedade e democracia — recorre-se à obra de Jürgen Habermas. Suas soluções
partem de concepção da sociedade tendo por base a comunicação, além de também
proporem concepção própria de método de conhecimento, o que é particularmente bem-
vindo em dissertação de mestrado.
Durante a descrição dos termos nos quais se pode compreender a outorga do
direito ao uso d’água, como também sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos,
não se menciona o corpus teórico habermasiano. Trata-se de opção pela clareza de
exposição. A introdução dos critérios e construções teóricas de Jürgen Habermas
durante a parte do trabalho que se refere ao regime da água poderia ser retoricamente
conveniente, porém sacrificaria a pretendida limpidez de explanação. Nestes capítulos
se utilizam instrumentais teóricos mais adequados às próprias finalidades, que são os do
Direito Econômico, Administrativo e Ambiental (no Capítulo Segundo) e da Teoria
Política e do Direito Constitucional (no Capítulo Terceiro).
No Capítulo Segundo, a seção 2.5 é a adição mais recente ao trabalho. Em
Janeiro de 2007 promulgou-se a Lei 11.445, de natureza nacional. Ela regulamentou o
serviço público de saneamento básico, o qual se divide em cinco atividades: a) varrição
urbana; b) coleta e processamento de lixo urbano; c) coleta e dispensa de esgoto pluvial;
d) coleta e tratamento de esgoto sanitário; e) coleta, tratamento e fornecimento de água.
Todos estes serviços têm repercussões no uso da água, se bem que estas são mais agudas
e diretas no caso dos esgotos e da rede urbana de água. Pela proximidade temática e
atualidade da regulação, é necessário esclarecer a relação entre esta Lei e o regime da
água.
O Capítulo Quarto inclui paralelo entre Jürgen Habermas e Hans Kelsen. Hans
Kelsen é a influência individual mais caudalosa no ambiente jurídico brasileiro, presente
não apenas na academia como também nas argumentações judiciais e motivações de
atos do Executivo e do Legislativo. Mesmo quando não é expressamente citado, nota-se
nos textos jurídicos o quanto as categorias expressas em suas obras se infiltraram no
vocabulário e no raciocínio dos que operam o direito em qualquer dos seus níveis. Por
incontornáveis e sobejamente conhecidos, seus modelos teóricos se apresentaram
sobremaneira úteis para dialogar com as concepções habermasianas acerca do
ordenamento.
A contraposição com Hans Kelsen se dá, entretanto, apenas no nível substantivo,
de conceitos e estruturas específicos. Não se busca comentar toda a extensão de sua
obra, selecionando-se o conteúdo trazido à dissertação pelo critério da utilidade para os
seus objetivos. A utilização dos seus conceitos e a dinâmica de sua teoria está
circunscrita da maneira mais objetiva possível, pelos mesmos imperativos de clareza e
simplicidade na exposição.
1 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS
Este trabalho se aproveita da obra de Habermas em dois sentidos, como já dito.
O repertório conceitual utilizado para se analisarem os três conceitos eleitos como
disseminadores de sentido na Política Nacional de Recursos Hídricos (justiça, função
social das outorgas e democracia das estruturas de gestão) é habermasiano, como
também é o método destas análises. Para maior transparência do discurso aqui
construído, como também por imperativo acadêmico, este método deve ser desenhado
antes de sua aplicação.
O presente trabalho, para coerência com o marco teórico adotado, desenvolve
sua argumentação como teoria crítica, com as características apontadas abaixo. Há que
se observar, entretanto, que a comunidade à qual se refere é a de acadêmicos do
universo jurídico, portanto são os critérios do Direito que importam para a aceitação
auto-reflexiva de suas conclusões. Assim, tanto os argumentos se calcam na obra de
Jürgen Habermas quanto no Direito, observando-se as regras desta ciência.
Durante a descrição do problema da função social da outorga de direito ao uso
de água (Capítulo Segundo), como também sobre a Política Nacional de Recursos
Hídricos (Capítulo Terceiro), não se faz uso freqüente do corpus teórico habermasiano.
Trata-se de opção por clareza e eficácia de exposição. A parte do trabalho que se refere
ao regime da água e de suas instituições utiliza-se mais de modelos com maior carga de
informação técnica específica das suas respectivas áreas. A opção de desenvolvimento
do trabalho não visa separar a teoria de sua aplicação, reproduzindo a dualidade
objeto/sujeito incompatível com o método crítico. Antes se mantém, durante a
exposição do regime da água, a mesma postura crítica em busca do esclarecimento do
tema e de suas ligações com as peculiaridades da sociedade brasileira — optando por
fazer isto mediante instrumentos teóricos mais apropriados. Apenas não estão
misturados assuntos os quais, apesar de relacionados, mantém unidades existenciais
distintas.
A contraposição a Kelsen se dá apenas no nível substantivo e não metodológico,
buscando-se circunscrever da maneira mais objetiva possível a utilização dos seus
conceitos e a dinâmica de sua teoria. Kelsen é incontornável, daí a opção por aproximar
a teoria de Habermas do Direito por intermédio da Teoria Pura.
Considere-se, também, que algumas das definições adotadas para termos
usualmente controvertidos se enquadram na categoria que Tércio Sampaio Ferraz Jr.
chama estipulativa, em contraposição à lexical1. Trata-se, neste caso, de fixar um
sentido dentre os vários aceitos doutrinariamente, usando como critério exclusivo a sua
utilidade para o desenvolvimento do estudo em curso. Não se buscam sentidos
verdadeiros para cada termo (caso em que se entenderiam as definições como lexicais),
mas sim adotam-se os sentidos mais adequados à terminologia utilizada pelo teórico-
leme (Jürgen Habermas), ao objeto de estudo ou ao jargão específico dos estudiosos das
áreas esquadrilhadas.
As teorias críticas se estruturam em contraposição à ciência moderna, entretanto
com foco exclusivo, em especial no caso de Habermas, no campo social. Não se disputa
a supremacia dos métodos positivistas no tocante às ciências naturais. É que o enfoque
principal das teorias críticas é a postura engajada, buscando incluir a ideologia dentre
seus principais temas e considerando o papel ideológico do discurso científico2. As
principais diferenças entre os dois grandes modelos metodológicos são listados em três
tópicos, a saber: a) suas finalidades; b) suas estruturas cognitivas; e c) os tipos de
confirmação que aceitam3.
1.1 FINALIDADE
A discussão sobre a finalidade das teorias é nuclear na teoria crítica e ajuda a
explicitar no que sua visão geral difere da ciência positivista. Para aprofundar este ponto
será útil iniciar pela idéia de interesse. As teorias positivistas se apresentam despidas de
1 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 12.
2 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 2001.
3 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a escola de Frankfurt. Campinas: Papirus, 1988.
interesse, separando dele o conhecimento e se apresentando como esterilizadas de
valores. Enquanto isto, Habermas afirma que as atividades humanas são sempre
carregadas de interesse, a teoria das ciências naturais expressa o interesse humano de
dominação da natureza, de manipulação do mundo, daí sua natureza “cognoscitiva
técnico-prática”4. Já o interesse da teoria crítica é a emancipação e o esclarecimento dos
agentes sociais. Note-se desde já a contraposição entre dominação e manipulação, de
um lado, e emancipação e esclarecimento, do outro.
Emancipação e esclarecimento são processos complementares. Emancipação é
o processo que liberta os agentes sociais da coerção auto-imposta que os submete à
hegemonia alheia. Esclarecimento é o que os liberta e da ilusão trazida pela ideologia.
Na medida em que os agentes ganhem esclarecimento e, portanto, libertem-se da
ideologia, também se tornam emancipados, posto que capazes de enxergar a coerção
que impõem a si mesmos. Compreender estes processos paralelos é essencial para a
crítica à declarada finalidade das teorias científicas.
A palavra ideologia é empregada em dois sentidos, fraco e forte, conforme
distingue Bobbio5. O sentido fraco é de representação de mundo, que explica a realidade
e orienta para a ação. O conteúdo da ideologia, no vocabulário de Perelman6 são os
acordos sobre o real (fatos, verdades e presunções) e sobre o preferencial (valores,
hierarquias de valores e lugares). Os acordos sobre o real estabelecem modelo da
realidade, tanto natural quanto social, representando o mundo e a sociedade para quem a
eles adere. Os acordos sobre o preferencial estabelecem os critérios afetivos para a
tomada de decisão e orientam a ação dos indivíduos e grupos.
No sentido forte (marxista) a ideologia tem conteúdo similar à apresentada
acima, entretanto se inclui no conceito a idéia de falsidade. A ideologia é representação
4 HABERMAS, Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, p. 137.
5 STOPPINO, Mario. Ideologia. In: BOBBIO, Norberto (Org.). Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p. 585-597.
6 PERELMAN, Chaïm et al. Tratado da argumentação: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 73 et seq.
falsa do mundo, que legitima a dominação daqueles que a ela aderem. Um ponto
extremamente controverso, dentre os próprios marxistas e pós-marxistas, é relativo aos
critérios para a identificação da falsidade em uma ideologia. A posição de Habermas
está apresentada acima — ele afirma que a falsidade é determinável auto-reflexivamente
pelos agentes, ao aceitarem mesmo contrafatualmente a situação ideal de fala.
Habermas toma emprestado de Freud o conceito de ilusão (Illusion), que é
convicção nubladamente falsa, mas que satisfaz desejo (subconsciente) do agente. Ela
se difere do erro (Irritum), em que há convicção falsa do ponto de vista meramente
factual, como do delírio (Wahnidee) em que há convicção claramente falsa, mantida
porque satisfaz importante desejo do agente7. No erro não há jogos psicológicos
relevantes, o agente está enganado sobre determinado fato e quando o erro é apontado
ele se convence racionalmente do próprio engano e aceita modificar sua convicção. No
delírio é claro, para observadores externos, que o agente acredita em algo impossível,
mas sua ardente convicção tem motivadores subjetivos mais importantes que a
realidade.
Os erros comuns na sociedade são facilmente corrigidos, já que não têm maiores
conseqüências para sua estrutura. Assim acontece com fatos logo aceitos após
campanhas de esclarecimento, como os efeitos nocivos do tabaco ou os perigos
cardiovasculares do consumo alimentar excessivo de gordura. Os delírios, via de regra,
também não se mantêm por muito tempo, por serem obviamente incompatíveis com a
realidade. Entretanto as ilusões são particularmente resistentes, pelas raízes psicológicas
e pela sutileza de basearem-se em fatos sociais comprovados e de retirar deles
conclusões muitas vezes racionalmente sofisticadas, porém que terminam por subjugar
uma parte da sociedade por outra.
O processo descrito por Habermas parte de uma fase inicial, em que há, por um
lado, “falsa consciência e erro”, e por outro, “existência sem liberdade”, realidades que
se reforçam mutuamente. Na fase final elimina-se a falsa consciência (esclarecimento) e
a coerção (emancipação). Estes passos são dados pela adesão dos agentes à teoria
7 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse: com um novo posfácio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
crítica, pois ela promove a auto-reflexão, que “torna o sujeito cônscio de sua própria
gênese ou origem”,8 dissolve a objetividade auto-gerada e traz os determinantes
subconscientes da ação à consciência.
Analise-se, por hora sucintamente, a legitimidade. Genericamente, as decisões
políticas são tidas como legítimas se as instituições que as tomam forem legítimas e se
também for legítimo o processo em que elas foram tomadas. Instituições e
procedimento fazem decorrer sua própria legitimidade do regime, da legitimidade do
regime jurídico que os instituiu e este, por fim, deduz a sua legitimidade da relação
entre as convicções que o sustentam e a figuração de mundo da sociedade. Em última
análise, a legitimidade das decisões tem pouco a ver com seu conteúdo, mas com as
convicções representadas no regime político e suas raízes na visão de mundo da
sociedade. Se esta visão de mundo for ilusória, o regime político — muito embora
compatível com as convicções ideológicas da sociedade — poderá perpetuar relação
desequilibrada de poder.
Os princípios epistêmicos de uma sociedade são as “convicções secundárias
sobre [...] que tipos de convicções são aceitáveis ou inaceitáveis, e como podem as
convicções se mostrar aceitáveis ou inaceitáveis”9. Os princípios epistêmicos são os
critérios pelos quais uma sociedade se pauta para aceitar ou não determinadas
convicções (fatos ou valores). Estas convicções formam a visão de mundo partilhada em
dada sociedade, sua cultura ou ideologia (“no sentido fraco”, para Bobbio10), o que
Habermas chama figuração de mundo. É a partir dos princípios epistêmicos aos quais
aderem seus grupos sociais que os agentes interpretam as notícias, por exemplo, ou
quaisquer fatos sociais que observem.
É possível que uma figuração de mundo falsa leve a decisões radicalmente
contrárias a relevantes grupos sociais, tomadas por instituições deles materialmente
8 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse: com um novo posfácio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
9 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a escola de Frankfurt. Campinas: Papirus, 1988. 10 STOPPINO, Mario. Ideologia. In: BOBBIO, Norberto (Org.). Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p. 585-597.
repressivas e alegadamente representativas. A ilusão em relação às convicções
legitimantes do regime impede a sociedade de ver esta auto-imposição de coerção
(ilegítima). A convicção de que critérios técnicos implicam na inevitabilidade de uma
decisão impede a sociedade de criticar a oportunidade de a levar a cabo. O argumento
técnico impede a discussão por critérios sociais. É o que Habermas chama
“objetivação”, que será aprofundada quando se discutir a estrutura cognitiva das teorias.
Se a finalidade da teoria crítica é a emancipação e o esclarecimento, surge uma
dúvida importantíssima, qual seja, o critério para se dizer de uma sociedade se está ou
não esclarecida e emancipada. Em termos simples: como fundamentar a afirmação de
que determinada sociedade está no início ou ao final dos processos gêmeos? É assim
que se chega ao fundamento da Ideologiekritik habermasiana, seu argumento
transcendental, descrito abaixo.
Tenha-se por pressuposto que parte da condição humana é participar de
comunidade de fala, é parte do que nos distingue como espécie animal — somos sociais
e a comunicação que produzimos é complexa. O tipo de sociedade que formamos é
caracterizada pela comunicação verbal (mais universalmente, oral).
Para participar da comunidade (de fala) é pré-requisito a capacidade de fazer
juízo de verdadeiro/falso. Todos os agentes devem ser capazes de identificar a verdade
na comunicação alheia. É por isto que as piadas têm graça, por exemplo, ou que os
agentes podem selecionar aqueles interlocutores nos quais podem confiar e outros nos
quais é melhor não. A capacidade de fazer o juízo não significa acertar sempre, mas
apenas que para todos a distinção é importante.
O próximo passo no argumento é a afirmação de um critério universal para o
juízo de verdadeiro ou falso. Segundo este critério, um enunciado é verdadeiro se sobre
eles concordariam os agentes se o discutissem diante de toda a experiência humana e
sob circunstâncias absolutamente livres e iguais durante período indefinido de tempo.
Esta situação, de liberdade e igualdade entre os agentes, informados e ilimitados, é
chamada por Habermas de situação ideal de fala e a ela será útil referir posteriormente
durante o presente trabalho, mormente quando se dissertar sobre a democracia. A
situação ideal de fala é “[...] critério transcendental de verdade, liberdade e
racionalidade”.11
Mais ainda, é parte do argumento que todos os agentes, em qualquer tempo ou
situação, podem reconhecer a situação ideal de fala, pois a usam como critério de
verdade. Da mesma forma, os agentes assumem o valor da situação ideal de fala mesmo
contrafactualmente, isto é, mesmo quando não se realiza, ela continua sendo critério de
verdade, liberdade e racionalidade. É o critério universal de falsidade da figuração de
mundo da sociedade, portanto. Seria possível, segundo Habermas, contrapor a situação
ideal de fala à figuração de mundo que legitima regime de coação auto-imposta pela
ilusão.
Assim, a teoria crítica de Habermas teria por finalidade este processo, de
esclarecimento e de emancipação, ao expor, na figuração de mundo de determinado
grupo social, os fatores que legitimam sua opressão. A teoria revelaria a inaceitabilidade
reflexiva das convicções legitimantes da opressão.
1.2 ESTRUTURA COGNITIVA
Quanto à estrutura cognitiva, se as teorias derivadas das ciências naturais partem
do pressuposto de distinção entre si mesmas e seus objetos, já as teorias críticas se
colocam como um dos objetos de sua própria análise. Nas palavras de Habermas, as
primeiras são objetificantes e as segundas auto-reflexivas.
As teorias objetificantes não estudam a si mesmas. A astronomia descreve os
astros, mas não a evolução da própria astronomia (objeto da história) ou os critérios de
formalização de suas hipóteses (objeto da matemática). Enquanto isto as teorias auto-
reflexivas se propõem a estudar também e a si mesmas. O Direito, nesta perspectiva,
estudaria também os motivadores ideológicos de seus enunciados. Seria válido discutir,
noutro exemplo, as proposições dos jusnaturalistas a partir das conseqüências sociais da
aceitação de origem etérea para as normas jurídicas.
11 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a escola de Frankfurt. Campinas: Papirus, 1988, p. 108.
As teorias assimiladas às ciências naturais constroem um conjunto de asserções
sobre seus objetos, asserções confirmadas pelos meios próprios e que compõem o
corpus de conhecimento sobre o tema. Além de asserções desta mesma natureza, as
teorias críticas formam um outro conjunto, acerca da própria teoria, utilizando os
mesmos meios para confirmar tanto um quanto o outro conjunto.
É que o focus12 das teorias críticas inclui a ideologia (sempre no sentido fraco),
que é estruturalmente similar a uma teoria. Assim, as teorias críticas desenvolvem,
invariavelmente, arsenal teórico para o estudo de objetos como valores, convicções,
normas morais, presunções, topoi, fatos, enfim, componentes da cultura, da visão de
mundo, da figuração de mundo, da ideologia de um grupo social. Os mecanismos
descritivos e avaliadores das ideologias podem ser úteis para a auto-reflexão, a inclusão
da teoria como objeto de si mesma.
A distinção usual entre ideologia e teoria é que, se ambas explicam o mundo,
apenas as ideologias justificam os comportamentos humanos. As teorias derivadas das
ciências naturais (ou positivistas) são unânimes na exclusão dos valores de entre seus
objetos. Deixam de, abertamente, justificar e orientar comportamentos para apenas
explicar, ou descrever, os mecanismos que levam a eles. Marco inicial desta posição, O
Príncipe, de Nicolau Maquiavel, ainda é exemplo largamente citado, muito embora,
significativamente, a frase “os fins justificam os meios” não consta dos originais.
Maquiavel escreveu que “os fins são denominados pelos meios que se buscam atingir”,
pois o Príncipe não precisaria aprender com ele a justificar seus comportamentos, mas a
comportar-se de acordo com as regras do poder. No contexto dos estudos naturais
excluem-se os valores que justificam comportamentos, para focar apenas nos fatos que
os explicam. Ciência, nestes termos, não deve incluir os valores em sua fundamentação
— teoria, nos termos habermasianos, deve.
12 GOLEMBIEWSKI, Robert T. Public Administration as a Developing Discipline, New York,Decker, 1977. Apud KEINERT, Tania Margarete Mezzomo. Administração pública no Brasil: crises e mudanças de paradigmas. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2000, p. 34.
Assim, os valores passam a fazer parte mesmo da estrutura de cognição da teoria
de Habermas, incluindo-se na forma pela qual ela apreende a realidade (e orienta para a
emancipação pelo caminho do esclarecimento).
1.3 TIPOS DE CONFIRMAÇÃO
A auto-reflexão desempenha papel importante também no terceiro traço
distintivo dentre as duas categorias de teorias, os tipos de confirmação que
reconhecem, suas evidências de aceitabilidade cognitiva. As teorias positivistas partem
da observação e do experimento, enquanto as críticas têm aceitabilidade reflexiva. Isto
significa que os dados da teoria crítica, pelos princípios de Habermas, devem ser aceitos
se as convicções epistemológicas dos agentes esclarecidos se satisfizerem, ou seja, as
convicções serão reais se aceitas como verdadeiras pelos seus próprios critérios. São
suas palavras que:
[...] 'real' é o que pode ser representado em proposições verdadeiras,
ao passo que 'verdadeiro' pode ser explicado a partir da pretensão que
é levantada por um [agente] em relação ao outro no momento em que
assevera uma proposição. Com o sentido assertórico de sua afirmação,
um falante levanta a pretensão, criticável, à validade da proposição
proferida; e como ninguém dispõe diretamente de condições de
validade que não sejam interpretadas, a 'validade' (Gültigkeit) tem de
ser entendida epistemologicamente como 'validade que se mostra para
nós' (Geltung). A justificada pretensão de verdade de um proponente
deve ser defensável, através de argumentos, contra objeções de
possíveis oponentes e, no final, deve poder contar com um acordo
racional da comunidade de interpretação em geral.13
Assim, quando entre agentes esclarecidos e assumindo contrafatualmente a
situação ideal de fala, a aceitação de asserção pela comunidade é critério de aceitação
pela teoria crítica. Note-se que não há limites quanto a que tipos de argumentos ou
13 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 31.
convicções epistemológicas podem ser utilizados no desenrolar da discussão. Valores
não são aceitos apenas como objeto dos enunciados, mas também como critérios de sua
aceitação. Um enunciado pode ser recusado pela oposição de um valor ao qual a
comunidade falante adira intensamente.
2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS
Uma das constatações fundamentais, sobre as quais se assenta o presente estudo,
é a de que o conteúdo das normas jurídicas é construído a partir de decisões políticas.
Toda a estrutura do Estado Democrático de Direito é obra humana: o fluir da soberania
pelos espaços públicos de debates, pressões e convencimento; a distribuição de
competências segundo critérios federativos e funcionais; o regime jurídico da
representação e da participação; a disposição expressa ou implícita de princípios,
fundamentos e finalidades; e os instrumentos de sua materialização, com a posição
privilegiada dos direitos e garantias fundamentais. Nada disto tem outra origem que não
a atividade humana de solução para conflitos, ela mesma imersa em conflitos e objeto
de outros.
As fundamentações, motivações e justificativas de normas e institutos também
são criadas por sua função, humana, de comunicação. Destinam-se a realizar a interface
entre universos sociais adjacentes, como entre o ordenamento jurídico e a ciência do
Direito, entre a política e as normas jurídicas, entre a administração e o povo, etc.
Alguns destes discursos são juridicamente exigidos, como a motivação do ato
administrativo ou a justificação da sentença, mas mesmo estes não deixam de ter efeito
também de comunicação, mesmo que esta aí se entenda no sentido de “direito como
linguagem”14.
A postura é plenamente compatível com os conceitos habermasianos,
principalmente o de esfera pública, locus das discussões que pautam e informam os
agentes do Estado. Identificada, primeiro como instância intermediária entre a sociedade
burguesa e o Estado liberal típico15 ,a esfera pública se configura como instrumento da
14 FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 6.
15 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 152,153.
publicidade em contraposição ao segredo típico dos regimes autocráticos16. É também aí
que se exercem os direitos de informação e de liberdade de manifestação de
pensamento, típicos das democracias (dentro da perspectiva habermasiana). O direito é
fruto da formalização destas discussões e argumentos que se opõem e aliam para
construir consensos política e retoricamente estáveis.
Os institutos jurídicos e direitos não são, portanto, compreendidos como tendo
existência etérea, atemporal e independente da história, mas sim como produtos das
circunstâncias históricas que os trouxeram à existência. A linha é a mesma de José
Afonso da Silva, quando afirma que os direitos fundamentais são “históricos, como
qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. […] Sua historicidade rechaça
toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza
das coisas”17.
Ordenamento jurídico nacional é entendido como o conjunto de normas
jurídicas aplicáveis em um dado Estado, aqui se subentendendo sempre o brasileiro
quando se diz simplesmente “ordenamento”. Em termos puramente formais, é “um
sistema de normas gerais e individuais que estão ligadas entre si pelo fato de a criação
de toda e qualquer norma que pertence a este sistema ser determinada por uma outra do
sistema”18. O ordenamento nacional se divide em três grandes níveis, sendo mais
importante o constitucional (separado dos outros pelo Princípio, implícito, da
Supremacia da Constituição), seguido do legal (distinguido pelo Princípio da
Superioridade da Lei, expresso no inciso II do Art. 5º da Constituição da República) e
por fim o nível infra-legal, composto de normas de direito público e privado das mais
variadas origens. Há hierarquia entre constituições, sendo suprema a Federal; não há
hierarquia formal entre leis, embora materialmente as emanadas pela União, e de caráter
16 Idem, Ibidem. p. 235.
17 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 177.
18 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 252.
nacional, se sobreponham às estaduais e municipais; a hierarquia entre normas infra-
legais será mencionada se e quando houver necessidade.
O regime do direito de propriedade, ou das propriedades19, no Brasil é
determinado pela Constituição da República e, subordinadamente, pela legislação
infraconstitucional. Cada constituição tem autonomia semântica e organiza o sentido do
ordenamento que a ela se refere. É possível analisar a evolução histórica dos institutos,
inclusive da propriedade, como se podem estudar várias instituições sociais e mesmo
comparar economias ou direitos de culturas diferentes. Isto não significa que o Poder
Constituinte deva seguir qualquer tradição, mas apenas que elas informam os vários
sentidos culturais dos termos com os quais se constroem as constituições.
Muitas vezes, no decorrer do trabalho, é necessário discriminar entre princípios
e regras, ambos normas. Na fixação dos significados destes termos seguiu-se a forma
fixada por Canotilho, segundo quem regras “são normas que, verificados determinados
pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer
excepção”20 enquanto princípios
são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma
possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os
princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de ‘tudo
ou nada’; impõem a optimização de um direito ou de um bem
jurídico21.
A Constituição da República estabelece que “a propriedade atenderá sua função
social” no seu Art. 5º, XXIII, estabelecendo no Art. 170, III, a mesma “função social da
propriedade” como “princípio da ordem econômica”. Eros Roberto Grau, analisando as
19 GRAU Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
20 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 1177.
21 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 1177.
diferenças entre o regime da propriedade antes e depois da obrigatoriedade de atender a
função social, enxerga nesta evolução,
como afirmou André Piettre[...], a revanche da Grécia sobre Roma, da
filosofia sobre o direito: a concepção romana, que justifica a
propriedade pela origem (família, dote, estabilidade dos patrimônios),
sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica
pelo seu fim, seus serviços, sua função.22 (negrito posterior)
Trata-se de conflito entre concepções culturalmente divergentes ou, em outros
termos, entre ideologias antagônicas. A primeira, identificada com Roma, é específica
do início da modernidade, liberal e próxima do direito natural. A segunda, identificada
com a Grécia, é mais contemporânea, próxima da concepção de direito como
instrumento de organização social e da efetivação de políticas de Estado ou de
Governo23.
Em qualquer criação humana consciente a forma está subordinada à função,
mesmo que estética. Os direitos também são criação humana, também têm subordinada
suas formas às funções. Em direito, a forma é positivada em textos que limitam as
circunstâncias de tempo e espaço, requisitos, condições, procedimentos, liberdades ou
competências que estabelecem o que é aquele direito. Em Direito, a forma se expressa
no conjunto das normas jurídicas, criadas pelo interprete a partir do ordenamento, que
definem o regime do dado direito. As normas infraconstitucionais ganham significado a
partir do conteúdo deontológico atribuído à Constituição. O regime do direito à
propriedade está subordinado ao atendimento de sua função social. O desenho, a própria
essência da propriedade dos bens de produção, se define pela função social, pela
finalidade que se busca atingir pela sua instituição.
22 GRAU, Eros Roberto Elementos de Direito Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, p 113. 23 Rica explanação relacionada ao tema se encontra em FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 21-29.
Os direitos fundamentais têm funções negativas (de proibição ou dever de
abstenção pelo Estado) e positivas (de obrigação ou dever de ação pelo Estado).
Segundo Canotilho, elas são as funções de defesa ou de liberdade, de prestação social,
de proteção perante terceiros e de não discriminação24. A primeira negativa e as três
últimas positivas, segundo a classificação que anteriormente se propôs. O direito à
propriedade, segundo esta idéia, tem função de defesa da exclusividade na titularidade
de bens (perante o Estado e terceiros) e de obrigar o Estado ao empenho para prover
condições materiais do seu gozo (a todos, sem discriminação).
Além das funções imediatas, acima delineadas, a função última dos direitos
fundamentais é a de instrumentos para a persecução das finalidades da República,
determinadas pelo Art. 3º da Constituição.
O Estado congrega recursos sociais. É característica desta forma de organização
social a gestão, pelo ente político supremo, de recursos da economia. O Estado se
apropria de excedentes de produção a partir das formas pelas quais angaria seus
próprios recursos, como se apreende dos artigos 9º e 11 da Lei Federal 4.320/64. Em
verdade, a soma das receitas públicas, incluindo-se majoritariamente a carga tributária
das fazendas da União, Estados e Municípios, aumentou de 28,3% do PIB brasileiro, em
1996, para estabilizar-se mais próxima dos 35% do PIB a partir de 200125.
A mera natureza social da tributação incita ao uso público dos recursos
estatais. Se o Estado se constitui absorvendo recursos sociais (mesmo que em monta
menor que o atual 1/3 das riquezas da nação), decorre daí que deva atuar em prol desta
sociedade, que o suporta. As formas de atuação para o “bem comum” são contadas às
miríades, é mister escolher. Teóricos de todos os matizes ideológicos se debruçam sobre
o tema, nenhum olvidando que a função do Estado seja perseguir o dito “bem comum”.
24 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 383-386.
25 BRASIL, capturado no endereço http://www.planejamento.gov.br/arquivos_down/sof/estatistica/orcamento_geral_uniao.pdf, Acesso em 09/07/2006.
O criador da expressão, Rousseau, definia este como objeto da “vontade geral” da
sociedade, entretanto Chaïm Perelman ressalta que
Querer opor, como faz Rousseau, a vontade geral, sempre reta, à
vontade de todos, freqüentemente induzida em erro, é justificar de
antemão todas as tiranias, pois é evidente que o tirano sempre conhece
melhor que o povo os “verdadeiros” interesses deste último.26
Do ponto de vista político, adiante se tratará da relação entre a teoria da
democracia e a formação destas decisões. Por ora, basta lembrar que também é
democrática a obediência isonômica às decisões legitimamente formalizadas em
ordenamento jurídico. Do ponto de vista jurídico, o caminho para se alcançar o bem
comum deve ser o indicado nas constituições, entendidas como formalizações das
decisões políticas dos titulares da soberania. Daí a legitimidade da determinação da
finalidade do ordenamento e do Estado no Art. 3º da nossa Constituição, inserida no
Título em que se encontram as “decisões políticas fundamentais que o constituinte
acolheu”.27
Todo o ordenamento deriva seu sentido dos princípios constitucionais
fundamentais, sempre em conexão com a realidade social que os atualizam. O exercício
dos direitos fundamentais é legítimo apenas enquanto não fere a sociedade. São
concedidos como forma de alcançar as finalidades que a Constituição determinou para a
República e para o ordenamento, ou seja, “se o proprietário não cumpre e não se realiza
a função social da propriedade, ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do
ordenamento jurídico, desaparece o direito de propriedade”.28
26 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 201.
27 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 95.
28 SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch. A propriedade agrária e suas funções sociais. In: SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch & XAVIER, Flávio Sant’Anna (Org.) O Direito Agrário em Debate. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1988, p. 14.
Função social da propriedade é, de maneira geral, aquela que se aproxima dos
objetivos da República, estabelecidos no citado Art. 3º da Constituição. A função social
da propriedade está ligada ao seu uso de maneiras socialmente relevantes, de forma: a) a
inserir o bem na cadeia produtiva, de maneira a obedecer aos mandamentos do Art. 170
da Constituição da República, (o desenvolvimento nacional está no inciso II do seu Art.
3º); b) a promover distribuição eqüitativa de renda, recursos ou serviços para toda a
sociedade (em obediência aos incisos III e IV do Art. 3º). Particularmente, aponta-se
aqui que o uso condizente com a função social da propriedade é aquele que leva à
construção de sociedade livre, justa e solidária (Art. 3º, I), função social é função justa,
justa para com toda a sociedade.
2.1 BENS PÚBLICOS
Assim, o bem deve ter uso, e quanto maior for este uso (desde que legítimo),
maiores serão os benefícios que dele advirão para a sociedade. Neste sentido:
Note-se que o poder público tanto pode restringir como pode ampliar
o uso de bens públicos. […] Quando amplia, está atendendo ao
princípio da função social da propriedade pública, uma vez que está
cumprindo o dever de garantir que a utilização dos bens públicos
atenda da forma mais ampla possível ao interesse da coletividade. 29
Estabelecida esta proposição, resta perquirir sobre a aplicação do mandamento à
propriedade pública, ou seja, àquela cuja titularidade é de pessoa jurídica de direito
público.
Bens públicos, por serem recursos sociais, servem inexoravelmente à finalidade
do bem comum. Cabe perquirir sobre distinções entre as categorias de bens públicos,
gênero com três espécies, segundo o Art. 99 do Código Civil: a) os bens de uso comum;
b) os de uso especial; e c) dominicais. Não interessa investigar em pormenor, no escopo
do presente estudo, os de uso especial e os dominicais, já que a água, como se verá
29 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 6, abril/maio/junho, 2006. Disponível em: <http:\\direitodoestado.com.br>. Acesso em 24 de junho de 2006.
adiante, é bem de uso comum. Entretanto sobre estes “não é demais repetir que a
destinação pública é inerente à própria natureza jurídica dos bens de uso comum do
povo […], porque eles estão afetados a fins de interesse público, seja por sua própria
natureza, seja por destinação legal”.30 Bandeira de Melo também afirma que os de uso
comum têm afetação decorrente de sua natureza, ou do “destino natural” do bem,
citando expressamente os recursos hídricos31, ou estabelecida em lei.
Pode haver, no âmbito do regime dos recursos hídricos, a outorga de seu uso por
pessoas (privadas ou públicas) diferentes dos titulares de seu domínio. Em verdade as
pessoas responsáveis pela formalização da outorga também não são titulares destes
domínios, mas o problema se resolve pela atribuição legal de competência para tanto e
pelo claro fundamento constitucional das leis em questão (Art. 21, XIX da Constituição
da República). Esta outorga deve garantir o maior uso possível dos ditos recursos,
também em decorrência do quanto já se afirmou, até o momento, sobre o direito à
função social da propriedade, ou seja,
as águas públicas podem atender a inúmeros objetivos, alguns de uso
comum, como a navegação, outros de uso privativo, como a derivação
para fins agrícolas ou industriais, ou para execução de serviço público,
como a produção de energia elétrica e o abastecimento da população,
como também podem atender simplesmente às primeiras necessidades
da vida.32
Fundamental é que estes usos se sobreponham harmoniosamente, se sucedam no
tempo e no espaço e se multipliquem. A Lei Federal 9.433/97, em consonância com o
imperativo constitucional, determina (logo em seu Art. 1º, IV) que um dos fundamentos
da Política Nacional de Recursos Hídricos seja exatamente o “uso múltiplo das águas”.
30 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 6, abril/maio/junho, 2006. Disponível em: <http:\\direitodoestado.com.br>. Acesso em 24 de junho de 2006. 31 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 557.
32 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 557.
Não obstante sua multiplicidade, alguns usos dos recursos hídricos, os mais
economicamente relevantes dentre eles, inclusive, serão outorgados. São estes usos que,
argumenta-se aqui, devem ter clara função social, sem a qual a outorga é
inconstitucional.
Mesmo com o sentido dado pelo Art. 3º da Constituição da República, o
imperativo da função social ainda guarda possibilidades bastante variadas de aplicação.
O problema fundamental é que deve haver ponte legítima entre a grande abstração
constitucional da função social da propriedade e as decisões concretas sobre a outorga
do uso da água. Argumenta-se que esta ponte deva ser a mais democrática possível, em
decorrência da própria Constituição, como também que as instituições do Sistema
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos devam sempre se vincular à
democracia nas suas decisões, e que as normas que venham a restringir a transparência e
a participação serão inconstitucionais.
2.2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS ENQUANTO BENS ECONÔMICOS
Um dado importante para a interpretação, a formulação de teorias e a atribuição
de sentido aos objetos que se estudam é a sua situação, os objetos que lhe estão
próximos, distantes e mesmo os que lhe são oponíveis, bem como a definição das
categorias nas quais se inserem. Grande parte da doutrina situa o Direito Ambiental
como parte do Direito Econômico, este sendo parte do Direito Público. É o pensamento
de Paulo de Bessa Antunes, por exemplo, ao ressaltar que o “Direito do Meio Ambiente
é dotado de instrumentos específicos que o capacitam a atuar na ordem econômica, de
molde a configurar um determinado padrão de desenvolvimento”.33
O regime jurídico da gestão dos recursos hídricos organiza a exploração dos
corpos d’água, objetivando sua distribuição social condizente com os preceitos
constitucionais, quer para consumo imediato, quer para utilização destes recursos como
insumo para a oferta de bens ou serviços. A partir desta linha de pensamento passa a
33 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 19.
fazer sentido mais profundo a presença da defesa do meio ambiente no Art. 170, VI, da
Constituição da República. É que um dos traços importantes do perfil constitucional de
desenvolvimento é, exatamente, a sustentabilidade e o respeito ao direito, das gerações
presentes e futuras, aos recursos naturais. É o prisma sob o qual se deve ser entender o
domínio dos recursos hídricos, a outorga de seu uso e a decorrente cobrança. Os
recursos hídricos são importantes para o desenvolvimento econômico do país, mas
também são recursos a se resguardarem para manutenção da vida — presente e futura.
A Constituição permite e, mesmo obriga, a intervenção do Estado na atividade
econômica. Eros Roberto Grau, após extensa e profícua discussão34 sobre a expressão
atividade econômica, propõe que ela denomine dois objetos, relacionados. Em sentido
amplo, a expressão define todas as atividades voltadas “à satisfação de necessidades, o
que envolve a utilização de bens e serviços, recursos escassos”35, incluem-se nesta
categoria tanto as atividades privadas quanto os serviços públicos. Em sentido estrito,
como sinônimo de domínio econômico, atividade econômica denomina apenas as
legadas à iniciativa privada, ainda que sob regulamentação pública.
Observando os termos estipulados por Eros Grau, tem-se que o Estado intervém
no campo da atividade econômica em sentido estrito por absorção (monopólio) ou
participação (competição). Intervém sobre o domínio econômico por direção ou
indução36. As intervenções por direção mostram-se imperativas, o Estado com elas
impõe comportamentos sob sanções negativas importantes, regendo mais ferreamente o
domínio econômico. As intervenções por indução colocam-se em outro plano, no das
sanções premiais, em que os comportamentos desejados pelo Estado são sugeridos e
estimulados.
34 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 123 et seq.
35 Idem. ibidem, p. 133.
36 Idem. ibidem, p. 159.
Pode-se ver relação entre a defesa do meio ambiente e as intervenções
econômicas hoje existentes, sob suas modalidades de absorção ou participação, direção
e indução37. As normas de utilização dos recursos hídricos incluem direção e indução,
além da possibilidade de participação, como se descreve adiante, neste trabalho. A
diferença, em relação aos recursos hídricos, é a forma como as decisões políticas são
tomadas, isto é, as formas pelas quais é possível aos administrados participar da
formação do conteúdo das normas que atribuem a competência para as intervenções.
É fundamental, para se compreenderem os limites jurídicos das decisões sobre a
gestão dos recursos hídricos, definir a titularidade do domínio destes recursos, o regime
da outorga e da cobrança por seu uso. Afinal de contas, é este o objeto das decisões e
são estas as normas que afetarão o domínio econômico e a vida cotidiana dos
administrados.
Fenômeno econômico e direito, a propriedade dos bens de produção tem regime
constitucional que se subordina à idéia de função social, já se sabe. O regime jurídico
dos recursos hídricos inclui as normas que se referem ao seu domínio, bem como
condições e eventual cobrança pelo seu uso, visando a garantia de níveis mínimos de
qualidade e quantidade que sustentem o desenvolvimento econômico e humano presente
e futuro. O regime da água está subordinado aos seus fins; a Política Nacional de
Recursos Hídricos está subordinada aos objetivos prescritos no Art. 2º da Lei Federal
9.433/97, interpretados conforme o Art. 3º da Constituição da República.
O caminho para estes objetivos deve ser desenhado democraticamente, pois é
fundamento da Política Nacional de Recursos Hídricos a gestão descentralizada,
contando com a “participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades” (Art.
1º, VI, da Lei Federal 9.433/97).
37 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 123 et seq.
2.3 DIREITO DIFUSO
A natureza jurídica da água, como um bem, como coisa juridicamente
qualificada, tem sofrido grandes alterações ao longo do tempo. Claro, o direito e o
Direito são históricos, eles se constroem a partir do contorno histórico e refletem as
contradições, valores, interesses e cultura típicos deste contorno.
Tome-se como exemplo o direito romano, com a sempre necessária observação
de que naquele contexto, “a propriedade não deve ser interpretada sob as mesmas luzes
da propriedade existente no campo e nas cidades da sociedade capitalista, pois era
diferente em significação, em uso e em finalidade”38. Primeiro a água foi considerada
res nullius, os quais seriam bens sem titularidade, apropriáveis por qualquer um. A partir
das Institutas, entretanto, ela passa a ser res communis, já que “Et quidem naturali jure
communia sunt omnium, haec, aqua profulens, et mare et per hoc litora maris -
Institutas, Livro II, TítuloI, § I.)”.
Propõe-se, entretanto, que a análise na natureza jurídica da água e outros bens
ambientalmente relevantes seja antecedida de vista d’olhos sobre a evolução do
pensamento social a partir da modernidade. É que é a partir da modernidade que os
termos e categorias se aproximam dos hodiernos, até pela continuidade na evolução dos
processos de produção econômica e das condições da vida e do pensamento.
2.3.1 Evolução das noções de titularidade e legitimidade durante a
modernidade
É fundamental ter em mente que tanto os movimentos socialistas quanto os
liberais — iniciados na Inglaterra do século XVII e que tiveram seus momentos mais
simbólicos nas Revoluções Americana e Francesa — partem do ideário iluminista39.
Assim, tanto uns quanto outros se fundamentam no uso da razão como base para
38 VÉRAS NETO, Francisco Quintanilha. Direito romano clássico: seus institutos jurídicos e seu legado. In WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 96.
39 HOBSBAWM, Erik, Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 .
entender o mundo e no abandono de explicações fundadas exclusivamente na fé.
Entendem as normas jurídicas como algo humano, mesmo na corrente inicial onde elas
ainda não eram vistas como humanamente estabelecidas, mas apenas como
humanamente inferíveis – o jusnaturalismo dito racional.
As revoluções liberais se deram no contexto histórico da superação dos últimos
vestígios do feudalismo (as monarquias de direito divino ou absolutistas) e da afirmação
do homem como medida do universo. A visão de mundo liberal foi influenciada por
estes fatos, daí a idéia de pessoa ser fundamental para toda a filosofia do direito liberal.
Com efeito, é impossível dissociar este modelo jurídico da noção de pessoa como
centro de deveres e direitos. O direito liberal parte da noção fundamental da igualdade
formal entre indivíduos, que por livre exercício de vontade criam as condições de suas
relações jurídicas. Os contratos se dão validamente entre indivíduos que dispõem de
seus direitos com base nos próprios interesses e que são protegidos por leis que os
tratam de forma igual.
Os pobres que assistiram estas revoluções viram o fim da desigualdade formal
que antes havia entre as classes sociais: nobreza, clero e o restante da população (ou o
Terceiro Estado francês). Viram também o estabelecimento de limites negativos à ação
do Estado, isto é, bens protegidos juridicamente de tal forma que o Estado não poderia
atacá-los. Entretanto ainda havia, por exemplo, a proibição de formar associações e
mesmo de se reunirem — como determinado pela lei Le Chapelier, de 1791, em plena
Revolução Francesa40 — com a justificativa de que isto desrespeitaria justamente a
igualdade formal, pois haveria negociações em que dum lado estaria apenas um homem
e, do outro, vários. Havia, assim, um déficit entre as expectativas levantadas pelo
primeiro período (liberal) e os ganhos para as camadas populares. Os movimentos
sociais que sacudiram o ocidente durante o século XVIII levaram aos movimentos do
século XIX. É que os primeiros acenaram com a possibilidade de mudanças e fizeram
ver que elas seriam possíveis através da ação social. Entretanto não trouxeram ganhos
importantes para grande parte da sociedade.
40 TULARD, Jean. História da Revolução Francesa: 1789-1799. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 365.
Os desdobramentos destas revoluções não se esgotaram no século retrasado,
entretanto. O século XX foi fértil em ordenamentos que buscaram realizar os objetivos
socialistas, nas suas versões compatíveis com a democracia ocidental, como a social-
democracia européia ou o new deal americano. Ou quando ocorreram revoluções na
tentativa de alcançar a igualdade econômica, como nos blocos da URSS e da China.
A inspiração socialista substitui a ênfase no indivíduo pela ênfase na classe
social. Os conflitos, mesmo alguns dos individuais, são vistos pela ótica social.
Protegem-se categorias sociais e prefere-se a lei (norma geral, de aplicação a toda a
sociedade) ao contrato (norma individual na gênese e na aplicação). A propriedade,
centro da maior discórdia entre as duas ideologias, mesmo na social-democracia só é
legítima enquanto cumpre funções sociais, inspiração que chegará até nossa
Constituição, inclusive. Há grande incidência de publicização de bens e serviços
essenciais.
O final da Segunda Guerra Mundial e as grandes transformações sociais
ocorridas entre o final da década de 60 e meados da posterior também propulsionaram
modificações de grande relevância no tema dos direitos fundamentais. No século
passado foram estes os fatos que mais adicionaram novas dimensões e mudanças
estruturais tanto nos próprios direitos fundamentais quanto nas formas de seu exercício
e na teoria acerca deles. Não é esse período que será tratado neste trabalho, mesmo que
também possa servir de exemplo para a pluralidade de movimentos políticos e sociais
que influenciaram em profundidade o atual perfil dos direitos fundamentais.
São os movimentos sociais que marcam uma das formas comuns de classificação
dos direitos fundamentais, em gerações. A primeira geração é identificada com as lutas
liberais, a segunda com as socialistas, a terceira e a quarta com o pós-guerra e a
contemporaneidade.
No século passado também houve a queda dos regimes do leste europeu, a
democratização de boa parte destes países e o surgimento do “pensamento único” –
dominante entre os formuladores de políticas sociais e distribuição de bens e direitos na
última década. Estes fatos estão por demais próximos no tempo para uma análise de seu
significado geral, mas, numa primeira impressão, parecem ter tido efeito mais deletério
que enriquecedor nos ordenamentos vanguardeiros. Os povos que abandonaram regimes
autárquicos para construir seu caminho rumo à democracia ganharam também o gozo de
direitos que antes não usufruíam, no entanto nenhum destes direitos é novo, nenhuma
grande alteração na teoria ou na prática dos direitos fundamentais nasceu daí. Já os
ordenamentos que iam ganhando novos direitos e construindo seu caminho rumo à
justiça social — como é o caso brasileiro, assim parece — tiveram seu andar dificultado
ou mesmo deram passos para trás durante o período.
Os movimentos que ora se chamam socialistas têm nomenclatura bastante
variada, podendo neles serem vistas nuances importantes segundo óticas específicas41.
Esses movimentos são bastante diferenciáveis segundo muitos critérios, mas é possível
ver neles três grandes características: a) oposição ao individualismo típico do
liberalismo; b) busca pela igualdade e pela construção de sociedade sem classes; c)
continuidade do movimento democrático das revoluções do século XVIII.42
O individualismo, típico do liberalismo, foi sendo criticado ao longo do século
seguinte — e até hoje o é, mesmo nos ambientes empresariais, se bem que lá com
temperos específicos. Canotilho afirma que:
“… a luta das classes trabalhadoras e as teorias socialistas (sobretudo
em Marx, em A questão judaica) põem em relevo a
unidimensionalização dos direitos do homem ‘egoísta’ e a necessidade
de completar (ou substituir) os tradicionais direitos do cidadão
burguês pelos direitos do ‘homem total’ …”43
Nos movimentos socialistas há crítica à alienação que os indivíduos sofrem no
liberalismo, a qual os divorcia de seu “verdadeiro” lugar na luta de classes. Esta crítica
41 PIRANCIOLA, Cesare. Socialismo. In BOBBIO, Norberto (org.). Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993. p. 1198.
42 BOTTOMORE, Tom, Socialismo, in OUTHWAITE, William, org., Dicionário do pensamento social
do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1996. 43 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª Edição, pg. 361. Coimbra: Almedina, 1999.
tem uma conseqüência pouco explorada e que será objeto do capítulo 5, sobre
titularidade dos direitos fundamentais e legitimidade para litigar em sua defesa.
A igualdade formal garante que todos terão o mesmo tratamento pelo
ordenamento jurídico. Ela foi conquista importante das revoluções liberais, mas foi
insuficiente. De fato, as sociedades continuavam profundamente desiguais, dando um
sentido de grande urgência às transformações que se anunciaram durante as revoluções
do século XIX.
A grande bandeira das revoluções sociais foi exatamente um aumento na
igualdade social, o que envolve a proteção especial aos hipo-suficientes. Mas como
implementar normativamente esta proteção especial sem ferir a igualdade formal? Para
tanto foi necessário coadunar uma noção socialista, das classes sociais, com uma já
presente no direito liberal, de relação jurídica.
Não é juridicamente possível criar normas que se utilizem de desigualdade
formal entre pobres e ricos. É possível, no entanto, proteger aqueles que desempenham
um papel de menor poder em relações jurídicas determinadas. Isto é, ao inflar
artificialmente o poder da parte hipo-suficiente numa determinada relação (e ao mesmo
tempo cercear o uso do poder da outra parte) produz-se igualdade real entre eles. Após
este rearranjo, as partes poderão negociar mais igualitariamente, estarão mais próximas
de situação não apenas formalmente, mas materialmente justa.
Esta igualdade material não aparece apenas como método, porém também
como finalidade do ordenamento. Ou seja, reduzir desigualdades sociais e criar
patamares mínimos de condições reais de vida digna passa a ser um objetivo implícito
ou explícito nas Constituições (como é o caso, mais contemporâneo, da brasileira).
Os movimentos socialistas mantiveram o ideal democrático do liberalismo, mas
para melhor compreensão deste tópico é necessário distinguir alguns usos do termo
democracia.
Democracia política se refere a regime político. Democrático é aquele que
permite ao povo a participação na tomada de decisão política que se formalizará na
norma jurídica e também na fiscalização de sua aplicação (principalmente pelo
executivo). A democracia social se refere à maior igualdade de condições de vida numa
determinada sociedade. Democrática é a sociedade em que há menor diferença entre os
vários grupos sociais — é nestes termos que se diz que o Brasil é um “monumento de
injustiça social” 44. Democracia econômica se faz pela igualitária distribuição dos
benefícios das atividades produtivas, a utopia comunista.
Os países soviéticos abandonaram os mecanismos da democracia política liberal
justificando-se com o argumento de que necessitavam de grande centralização de
decisões para levar seu povo à democracia econômica. Mas vários movimentos de
esquerda espalhados pelo ocidente buscaram o caminho da reforma, capitaneados pela
social-democracia. Destes últimos, alguns foram extremamente bem sucedidos e
alcançaram níveis elevadíssimos de democracia social, aliada a sólidas instituições
políticas democráticas, como os países escandinavos, a Holanda ou a Bélgica.
A mais evidente novidade, quando se comparam os ordenamentos jurídicos
anteriores às revoluções socialistas e os que foram influenciados por elas, é o
alargamento do rol dos diretos fundamentais.
O liberalismo45 trouxe os direitos individuais, com ênfase na liberdade. Assim,
os direitos incluíam a resistência à opressão, a legalidade, a presunção de inocência
criminal, a reserva legal penal, a liberdade de credo e de opinião, a liberdade de
expressão, a reserva legal tributária e a propriedade privada.
Já os direitos típicos conquistados pelos movimentos socialistas tinham ênfase
na busca pela igualdade material, pela justiça social. Suas mais típicas conquistas se
deram na relação de emprego, pré-regulamentando os contratos de trabalho com
44 HOBSBAWM, Eric, Era dos Extremos, pg. 397. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
45 Cujos documentos maiores são a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 26 de agosto de 1789, e as Emendas à Constituição americana, de 17776. In Textos Básicos sobre Derechos Humanos. Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus Cláudio Acqua Viva. APUD. FERREIRA Filho, Manoel G. et. alli. Liberdades Públicas. São Paulo, Ed. Saraiva, 1978.
cláusulas obrigatórias como o descanso semanal remunerado, o máximo de horas
trabalhadas por semana, as férias, o décimo-terceiro salário — o que trazia equilíbrio
para negociações que antes eram claramente desfavoráveis ao empregado, tendo de
barganhar sozinho estes benefícios com seu possível empregador.
Outros direitos, agora se atendo à imprescindível reunião de pessoas, estavam de
alguma forma próximos da natureza trabalhista, como a organização sindical e a
associação, a reunião e a greve. Ainda vagamente relacionados ao trabalho vem todo o
aparato previdenciário que se construiu nos países mais avançados e que se firmou em
direitos como a aposentadoria por tempo de serviço ou por invalidez, a licença por
doença e mais recentemente a decorrente da maternidade, a indenização por acidente de
trabalho e doença a ele relacionada, o seguro desemprego e, nalguns países, a renda
mínima.
Mais distantes da relação trabalhista estão os direitos à educação, à saúde, à
moradia, à assistência social e à cultura. Eles se encaixam nos ideais socialistas de
promoção de bem-estar mínimo para proporcionar a todos real igualdade de condições
nos embates sociais — a busca pela igualdade material.
Os direitos fundamentais, antes reduzidos aos direitos individuais de abstenção
do Estado, agora incluíam uma lista enorme de direitos individuais de obrigação do
Estado, direitos coletivos e de fruição coletiva. A natureza desta mudança vai ser melhor
entendida no tópico seguinte.
Os direitos têm sempre origem social. As normas jurídicas subsistem se tiverem
sentido social. Seus conteúdos decorrem das situações sociais específicas de cada povo.
São conflitos sociais, presentes ou meramente previstos, que levam à criação de direitos
e que determinam o perfil jurídico das relações.
Os objetivos sociais para a criação de uma norma não são uniformes. Os grupos
sociais têm diferentes interesses e desiguais níveis de influência junto aos competentes
para a criação de cada norma, sendo necessário por vezes negociar ou por vezes
submeter-se dentro do jogo democrático ou mesmo em regimes autocráticos. O que se
afirma é que a norma tem seu conteúdo determinado pelos esforços eficazes (e pela
ineficácia) dos atores sociais interessados direta ou indiretamente nos conflitos cujo tipo
ideal ela busca regulamentar. Ou pelos esforços eficazes (e pela ineficácia) dos atores
sociais interessados direta ou indiretamente nos conflitos sobre os quais ela decide, no
caso de normas concretas.
Deste ponto de vista é fácil deduzir que a gênese de cada norma tem sua própria
lógica, vinculada às estratégias que lhe deram contorno. No entanto. após a edição, a
norma se destaca de sua história prévia — longe se vão os anos em que se buscava
interpretar a norma a partir da “vontade do legislador”46. Assim, cabe ao interprete
precisar o sentido jurídico das normas, inclusive e principalmente para aplicá-las aos
casos concretos. Sua tarefa é dificultada pela multiplicidade de condições históricas de
criação das normas dum determinado ordenamento, pois esta multiplicidade faz o
conjunto se aparentar sem unidade.
Após os primeiros passos o interprete precisa compatibilizar a norma com o
ordenamento, deverá inserir a norma no concerto jurídico de outras normas igualmente
em vigor. Socorrer-se-á das regras formais de solução de antinomias47. Além disto, é
necessário encontrar sentido na norma dentro de um ordenamento que também faça
sentido. A Constituição dá unidade estrutural ao ordenamento, pela distribuição de
competências, mas também dá unidade de sentido, através de seus princípios e da
finalidade que atribui ao universo jurídico.
As finalidades do ordenamento se buscam na Constituição. Ela é a norma
política por excelência, a norma que foi posta sem limites jurídicos ao seu conteúdo,
aquela em que a soberania se expressa mais legitimamente, posto que sem quaisquer
amarras formais. Portanto é na Constituição que se buscam os parâmetros para a
unidade axiomática do sistema jurídico. Entretanto não se deixe de notar que ela
46 FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.
47 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. São Paulo/Brasília: Polis/Editora Universidade de Brasília, 1989. p. 91.
também é norma jurídica, que ela também é (ao menos em Estados Democráticos)
decorrente da pluralidade social.
Neste sentido Jorge Miranda, ao classificar as constituições entre simples e
compromissórias e após afirmar que “nenhuma Constituição é absolutamente
simples”48, ensina:
“Nenhuma Constituição compromissória consiste num aglomerado de
princípios sem virtualidade de harmonização prática a cargo da
hermenêutica jurídica e sem base dinâmica de funcionamento das
instituições; em qualquer Constituição os princípios dispõem-se ou
articulam-se segundo certa orientação e, pelo menos, em nível de
legitimidade há-de haver sempre (aquando da formação ou em
momento ulterior de modificação, expressa ou tácita) um princípio
que prevaleça sobre outros” 49.
O princípio que o autor indica como prevalente é o fio condutor do processo
político, a essência do regime político. Através dele se organizam os princípios
constitucionais. Uma vez organizados e harmonizados, passam a servir de base
axiomática a toda atribuição de sentido feita pela interpretação jurídica.
Segundo o liberalismo, a finalidade do ordenamento é, primordialmente,
limitar o Estado. A definição mais simples de Estado de Direito é a daquele modelo de
organização política em que o Estado obedece a ordem jurídica. O próprio Estado não
precisa fazer quase nada, meramente manter a paz social — o artigo 2º da Declaração
francesa de 1789 reza: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
prosperidade, a segurança e a resistência à opressão”50. Essencialmente, ele deve deixar
48 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, pg. 332. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
49 Idem, ibidem.
50 In Textos Básicos sobre Derechos Humanos. Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus Cláudio Acqua Viva. APUD. FERREIRA Filho, Manoel G. et. alli. Liberdades Públicas. São Paulo, Ed. Saraiva, 1978.
que as pessoas cuidem de seus negócios, pois segundo o liberalismo a busca pelo
proveito próprio inexoravelmente acabaria por levar ao ganho da sociedade como um
todo, desde que se mantenha a ordem. O Estado e o ordenamento devem “deixar que se
faça, deixar passar”, pois mecanismos intrínsecos ao funcionamento dos mercados
operariam a mais justa distribuição de riquezas e benefícios do sistema de produção
capitalista51.
Neste sentido é que os direitos fundamentais se colocam apenas como limites à
ação do Estado52. Diante da visão liberal, direitos inclusive são muitas vezes chamados
“liberdades fundamentais”, protegidas da ação estatal. São lugares jurídicos onde o
Estado não pode ir, bens individuais que o Estado não pode atacar sem prévia permissão
legal. Se pensarmos no modelo de norma jurídica como prescrição (permissão,
obrigação ou proibição), os direitos liberais são proibições ao Estado: tais e quais
normas, tais e quais atos não serão válidos. Eles estabeleceram as premissas para a idéia
de competência como limitação ao exercício do poder. O ato jurídico, desde então, só
pode ser realizado validamente se preenchidos os requisitos formais de permissão legal:
pessoal, territorial, material, procedimental e temporal (posteriormente se adicionando o
teleológico).
As revoluções socialistas tinham como bandeira criar uma ordem social
diferente, alternativa à “exploração do homem pelo homem”. Buscava-se ou o fim do
Estado ou sua radical modificação, e do ponto de vista dos direitos fundamentais
alcançou-se uma transformação bastante importante, inclusive nos ordenamentos que
mantiveram a democracia política. As finalidades do Estado passam a ser de
proporcionar distribuição de renda e transformação social para situações de igualdade
material mais acentuada.
Os direitos fundamentais passam, naquela perspectiva da norma prescritiva, a
obrigar o Estado e não apenas proibi-lo. Mesmo as velhas liberdades (direito à
51 RIBEIRO, Renato Janine. República. São Paulo: Publifolha, 2002.
52 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002.
propriedade; direito à liberdade de ir e vir, de manifestação, de credo ou convicção;
direito à igualdade entre gêneros, raças, cores, religiões, etnias e quetais; direito à vida e
à segurança, por exemplo) passam a ser vistas como obrigações, para o Estado, de
proporcionar condições materiais de seu exercício53. Note-se que esta mudança é
radical, pois também traz profundas alterações nas formas de legitimação da ordem e do
Estado. Por maior que seja a relevância do tópico, entretanto, deve-se resistir a tratar
dele neste momento.
No liberalismo a parte da relação jurídica era sempre a pessoa (física ou
jurídica), vista como subjetividade de direitos e deveres. Dela era a titularidade de
direitos e é desta titularidade de que decorria a legitimidade para os defender em juízo.
No início, portanto, as relações jurídicas processuais decorriam das relações jurídicas
ditas “materiais” — só era possível defender-se direito próprio em nome próprio e
excepcionalmente direito alheio em nome alheio.
Foram os movimentos de inspiração socialista que permitiram a defesa de
direitos alheios em nome próprio, pelos sindicatos. Todo o ideário jurídico liberal lida
com pessoas como indivíduos livres e autônomos, ao passo que a realidade social é de
papéis sociais sendo desempenhados de maneira razoavelmente uniforme por grupos
consideráveis. As sociedades, aqui especificamente as sociedades industriais, são
determinantes de modelos culturais e econômicos de relacionamento humano. Estes
modelos de relacionamento se repetem ad infinitum e determinam modelos de
relacionamentos jurídicos aplicáveis a grande número de pessoas.
Mesmo os contratos muitas vezes têm influência nas vidas de pessoas que não os
assinaram. É inaplicável considerar os seres humanos como entes isolados. Num
ambiente com relacionamentos sociais altamente complexos deve haver uma forma de
reconhecer, juridicamente, esta complexidade e as conseqüências práticas da
estabilidade (ou instabilidade) destes relacionamentos.
53 Idem, ibidem.
Perceba-se a profundidade da transformação: por isto foi possível criarem-se
sofisticadas formas judiciais de legitimidade, como o Dissídio Coletivo brasileiro, em
que alguém defende em juízo, em nome próprio, interesse alheio — inclusive interesse
que ainda não é manifestável e não existe durante o transcurso da ação, como é o caso
de alguém que passa a fazer parte da categoria após a sentença. A legitimidade para
defesa dos direitos sociais deixa de ser dada pelo contrato para ser dada pela lei. Do
contrato apenas participam as vontades individuais enquanto a formação da lei se dá a
partir dos conflitos sociais. Trata-se de passo importantíssimo para a criação de uma
concepção muito mais democrática de direito, democrática tanto por objetivar a
democracia social quanto por aprofundar a democracia política, deslocando o foco do
contrato para a lei como norma-modelo do ordenamento.
O outro grande passo, sob este critério de abandono das premissas liberais,
demorou mais de um século para ser dado, já sob outras influências. A partir da década
de 70 do século passado a titularidade se esparramou suficientemente para aceitar a
categoria dos direitos difusos, ou direitos de titularidade difusa.
Nenhum dos grandes movimentos sociais que definiram o que chamamos
direitos fundamentais tem relevância única, esta a resposta que se buscou apontar aqui.
Não é possível enxergar uma essência liberal ou socialista ou mesmo qualquer essência
politicamente unívoca neste conjunto. Nada que não a pluralidade.
A titularidade do direito ao meio ambiente equilibrado é difusa. A legitimidade
para lutar por este direito é a chamada extraordinária.
2.4 DOMÍNIO DA ÁGUA
O Art. 1º, I, da Lei Federal 9.433/97, estabelece que a água é bem de domínio
público. O Art. 99 do Código Civil estreita a qualificação, inserindo a água dentre os
bens de uso comum do povo, em contraposição aos bens de uso especial e aos
dominicais.
O Art. 1º do Decreto 24.643/34 (Código das Águas) estabelecia que “as águas
públicas podem ser de uso comum ou dominicais”. Há que se levar em consideração,
entretanto, que os bens dominicais são alienáveis, enquanto as águas, segundo o Art. 18
da Lei 9.433/97, “são inalienáveis”. Assim, só há sentido no ordenamento se elas forem,
como o são, bens públicos de uso comum do povo, incluindo-se o dispositivo do antigo
Decreto dentre os revogados pelo Art. 57 da nova Lei. As águas pluviais, entretanto,
continuam regidas pelo Código das Águas, Art. 102 e seguintes. Quanto a isto, a “Lei
9.433/97 não modificou as sábias regras de 1934”.54
A água é, portanto, bem público de uso comum. Sua titularidade é matéria
constitucional. O Art. 20, III e VIII, da Constituição da República, estabelece quais são
as águas da União, enquanto o Art. 26, I, estabelece as águas dos Estados. Quanto às
águas superficiais, cabe observar que é da titularidade da União apenas o potencial
hidrelétrico dos corpos estaduais. Não fosse suficientemente clara a Constituição, a Lei
Federal 9.984/00, Art. 7º, § 1º, vem dizendo “quando o potencial hidráulico [de
produção de energia elétrica] localizar-se em corpo de água de domínio dos Estados ou
do Distrito Federal […]”, límpida a inferência de que o potencial é da União, enquanto a
água é do Estado (ou do Distrito Federal). Quanto às águas subterrâneas, pertencem aos
Estados.
Disposição sobre assunto relacionado é o Código Florestal (Lei Federal
4.771/65), especificamente seu Art. 2º. Um dos critérios de definição de área de
proteção permanente é a proximidade de corpos d’água (cursos de rios ou redor de
lagoas, reservatórios e nascentes). O dispositivo não altera a propriedade dos bens,
apenas atribui a eles um regime diferente. Além disto, “[...] de preservação permanente
é a flora que se encontre enquadrada dentro das condições mencionadas na lei
federal”55, mesmo que a ratio da lei seja “[...] a preservação da vegetação que protege
os cursos d’água”56.
54 MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 415.
55 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 48.
56. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 49.
2.5 USO DOS RECURSOS HÍDRICOS: OUTORGA E COBRANÇA
Outra indagação, de fundamental importância para a atividade econômica, é o
regime do uso dos recursos hídricos, ou seja, sobre os requisitos que permitem este uso,
as condições em que se pode dar e as vedações ao seu exercício. Este é o regime das
outorgas de uso dos recursos hídricos. Já que a propriedade dos recursos hídricos é
pública, sua utilização depende de ato jurídico de poder, regido por normas que
determinam competência e formalizado de maneira previamente determinada. Trata-se
de desdobramento do já dito princípio da legalidade.
A outorga permite ao Estado controlar tanto a captação de água quanto a emissão
de efluentes em seus corpos. É, portanto, instrumento fundamental para a
implementação de uma política nacional de gestão de recursos hídricos. Em par com a
discussão sobre a natureza jurídica da outorga (bem como sobre as suas limitações e
relações com os direitos dos administrados) caminha a determinação de seu papel na
implementação da Política e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos.
Norma geral é que a água deve ter usos múltiplos, ressalvadas as eventualidades
em que se devem observar prioridades. A Lei Federal 9.433/97, diz textualmente que “a
gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas” (Art.
1º, IV), entretanto em “situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o
consumo humano e a dessedentação dos animais” (Art. 1º, III). Este o fundamento para
outro mandamento constante no mesmo texto, o Art. 15, V, o qual permite a suspensão
da outorga de uso, pelo outorgante, nos momentos de escassez. Ato vinculado quanto às
condições e também quanto a seu conteúdo. Só pode haver a suspensão, em caso de
escassez, para o uso humano e dessedentação animal.
O termo outorga é utilizado tanto na Constituição da República quanto, bastante
coerentemente, nos textos infraconstitucionais sobre recursos hídricos. Sua natureza
jurídica é de ato administrativo, emanado, portanto, ao final de um procedimento
administrativo. Há que se aprofundar a discussão sobre sua categorização pelo critério
da forma (decreto, resolução, deliberação ou portaria) e de conteúdo típico (se de
permissão, autorização, concessão ou licença), dadas as diferenças entre os institutos e
suas conseqüências jurídicas. É assim que se poderá melhor definir o regime jurídico a
ser obedecido pelos empreendimentos econômicos ou sociais que dependam da outorga.
Na definição de Maria Sylvia Zanella di Pietro “autorização é o ato unilateral
administrativo e discricionário, pelo qual a Administração consente, a título precário,
que o particular se utilize de bem público com exclusividade.”57 Pode ser gratuita ou
onerosa e tem característica importantíssima para este estudo: “não é conferida com
vistas à utilidade pública, mas no interesse privado do utente”58. Daí sua maior
precariedade, transitoriedade e conteúdo de faculdade, não dever, de utilização do bem
pelo usuário. Com relação à discricionariedade, com ela concordam Hely Lopes
Meireles e Celso Antonio Bandeira de Mello, calando sobre a onerosidade ou o dever de
uso59,60, sobre todo o restante, silenciam.
Permissão de uso, ainda nas palavras de Di Pietro, é “ato administrativo
unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a Administração
Pública faculta a utilização privativa de bem público, para fins de interesse público”61. A
característica diferenciadora entre permissão e autorização é sua finalidade, daí decorre
que a primeira obriga o usuário a exercer o uso, sob pena de caducidade do ato, o que
Hely Lopes Meirelles também afirma62. Quanto ao prazo, a permissão também pode ser
qualificada, gerando, neste caso, o direito subjetivo do permissionário até o termo pré-
57 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16. ed. . São Paulo: Atlas, 2003, p. 564.
58 Idem, Ibidem.
59 LOPES MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 171.
60 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 273
61 Idem, Ibidem. p. 565.
62 Idem, Ibidem. p. 172.
fixado para a utilização. Celso Antônio Bandeira de Mello afirma a vinculação do ato,
mormente quando se trata se permissão de serviço63.
Seguindo ainda a mesma Di Pietro: “A concessão de uso é contrato
administrativo pelo qual a Administração Pública faculta ao particular a utilização
privativa de bem público, para que a exerça conforme sua destinação”.64 O caso de
emprego de concessão é aquele em que a utilização do bem é mais onerosa para o
usuário. Daí a fixação de prazos mais longos e a conseqüente necessidade de licitação.
As concessões de uso podem ser de simples uso ou de exploração; temporárias ou
perpétuas; remuneradas ou gratuitas; de utilidade pública ou privada; e autônoma ou
acessória a concessão de serviço público. Hely Lopes Meirelles chama a atenção para a
possibilidade de concessão real de uso, “transferível a terceiros por atos intervivos ou
por sucessão legítima ou testamentária”65 e o classifica como contrato administrativo,
não ato negocial.
Licença é ato que se relaciona ao exercício de uma atividade, e que envolve
“direitos, caracterizando-se como ato vinculado”66. Exatamente por envolver direitos, é
meramente declaratório, enquanto a autorização, por exemplo, é ato constitutivo. Em
todas estas características há acordo entre Hely Lopes Meirelles67 e Celso Antônio
Bandeira de Mello68.
63 Idem, Ibidem.
64 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16. ed. . São Paulo: Atlas, 2003, p. 567.
65 LOPES MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 242.
66 CRETELLA Júnior, Nelson (RT 486/18), apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2003. Pg. 220.
67 Idem, Ibidem. p. 171
68 Idem, Ibidem. p. 273.
Será útil, antes de prosseguir, ressaltar que alguns usos de recursos hídricos são
independentes de outorga. Em obediência ao princípio da legalidade, todos os
comportamentos privados sem restrição em lei são permitidos, é a interpretação
consagrada no Art. 5º, II, da Constituição da República. Como o caput do Art. 12 da Lei
9.433/97 lista os casos em que a outorga é requerida, a interpretação sistemática leva à
conclusão de que todos os usos que não constem dos incisos do dispositivo são
permitidos, independem da outorga. O administrado pode fazer tudo que a lei não
proíba. Entretanto, o inciso V, do Art. 12 ora em foco, é bastante aberto, ao dizer que
dependem de outorga “outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da
água existente em um corpo de água”. A expressão é suficientemente vaga para abarcar
quase qualquer comportamento privado de interação com qualquer “corpo de água”,
considerados os adjuntos adnominais e a amplitude do conceito de corpo de água. Daí o
sentido do § 1º do artigo mencionado logo acima, listando os casos cujo uso será
independente de outorga. Trata-se do uso para satisfação de “pequenos núcleos
populacionais” rurais (inciso I) ou considerados insignificantes (II e III) pelo
regulamento.
A outorga é ato administrativo e como tal está submetido ao princípio da
legalidade. A norma jurídica, entendida como proposição deôntica de comportamento,
comporta três operadores: proibir, permitir ou obrigar. A proibição de um
comportamento equivale à obrigação de comportamentos diferentes dele (nas mesmas
situações). A permissão expressa é definida por uma série de obrigações e proibições
que expressamente a limitam, mais aquelas advindas da interpretação do ordenamento,
enquanto a permissão tácita é limitada pelo ordenamento como um todo, mormente os
princípios constitucionais.
O inciso II do Art. 5º da Constituição da República estabelece que “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Portanto
apenas lei, abaixo das Constituições, pode inaugurar mandamentos. Apenas a lei
inaugura o ordenamento criando obrigações de ação ou abstenção, ou seja, apenas a lei
cria proibições, permissões expressas ou obrigações.
Do lado dos administrados, o princípio estabelece os contornos jurídicos da
liberdade: é livre todo comportamento que a lei deixa de proibir. A vontade privada se
forma livremente e pode decidir tanto sobre realizar ou deixar de realizar determinados
atos como também sobre o modo como levará a cabo seu intento. No âmbito privado a
liberdade (direito) se exerce a partir da vontade.
Do lado da administração, o princípio estabelece os contornos jurídicos da
competência: ao agente público é estabelecido poder e dever de comportar-se apenas da
forma como a lei obrigar ou permitir expressamente. A legitimidade se forma a partir do
ordenamento, fundamentalmente dos procedimentos previstos no ordenamento. No
âmbito público a competência (poder e dever) se exerce a partir da legitimidade.
É a este princípio da legalidade que a outorga se submete, ao que manda a
Constituição da República, no caput do Art. 37. A outorga é competência de alguém, a
qual só pode ser exercida nos termos estritos do procedimento e dos critérios legais.
Os critérios de competência são seis: pessoal, temporal, territorial,
procedimental, material e teleológica69. Com base neles pode-se descrever o perfil
jurídico da outorga no nível federal no nível estadual. Dada a variação na forma e no
conteúdo dos regulamentos e mesmo a sua ausência em alguns Estados, optou-se por
destacar um caso específico, que é o do Estado de São Paulo. O objetivo é apenas
completar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com seu nível
estadual e, portanto, não há necessidade de aprofundar e detalhar as distinções e
características da outorga em cada Estado particular. O quadro abaixo traz as
informações essenciais, discutidas a seguir.
Competência para
concessão da outorga
Âmbito Federal Âmbito Estadual – São
Paulo
Pessoal Diretoria Colegiada da
ANA, por Resolução
Superintendente do DAEE,
por Portaria
69 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos do Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 104.
Material Águas de domínio da
União
Águas de domínio do
Estado
Territorial Federação Estado de São Paulo
Temporal Indeterminada Indeterminada
Procedimental Típico de autorização De autorização ou
concessão
Teleológica Objetivos da Lei 9.433/97 e
do Plano de Bacia
Objetivos da Lei 9.433/97 e
do Plano de Bacia
Quanto à pessoa, no nível federal a competência é da Diretoria Colegiada da
Agência Nacional de Águas (ANA), como determina o Art. 12, V, da Lei Federal
9.984/00. No Estado a competência para a outorga é do Departamento de Água e
Energia Elétrica – DAEE, por determinação do regulamento da Lei 7.663/91, Decreto
41.258/96, que assim dispõe em seu Art. 2º.
Quanto à matéria, a Lei Federal 9.984/00, em seu Art. 4º, IV, dispõe que cabe à
ANA outorgar o direito de uso “de recursos hídricos em corpos de água de domínio da
União”. Aos Estados cabe outorgar o direito de uso sobre recursos de seu próprio
domínio. Pode haver delegação, pela União, para outorga de recurso seu por Estado ou
pelo Distrito Federal, conforme o parágrafo único do Art. 14 da Lei Federal 9.433/97.
A Lei 9.433/97 estabelece que a outorga é um dos instrumentos da Política
Nacional de Recursos Hídricos (Art. 5º, III). Ora, a natureza de instrumento é de
existência submetida a finalidades alheias, sendo assim inescapável que as finalidades
da outorga são aquelas da Política, estabelecidas no seu Art. 2º, o qual se reproduz
abaixo pela importância de seus termos exatos.
Art. 2º. São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:
I) assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade
de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;
II) a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o
transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;
III) a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de
origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos
naturais.
Quanto ao procedimento serão necessárias maiores delongas, já que aqui se
encontra o perfil jurídico do instituto e, portanto, os limites de sua dinâmica. Será útil
analisar o conteúdo da decisão que realiza a outorga, seu prazo, sua forma e sua
natureza jurídica.
No nível federal a lei que criou a ANA estabelece que o ato é autorização (Art.
4º, IV). A lei estadual sobre o assunto (Lei 7.663/91), não diz qual o conteúdo do ato,
entretanto o decreto que a regulamentou (Decreto 41.258/96) o faz. Da exegese do Art.
2º do Anexo ao citado decreto, em conjunto com seu Art. 1º e os artigos 9º e 10 da lei,
mais a Portaria DAEE 717/96 é possível traçar quadro dos atos a serem utilizados.
Observa-se na legislação paulista muito mais cuidado e afinação com as definições
doutrinárias dos atos administrativos, enquanto na legislação federal a simplicidade é a
tônica.
Emite-se autorização quando o objetivo for “a implantação de qualquer
empreendimento que possa demandar a utilização de recursos hídricos, superficiais ou
subterrâneos” ou “a execução de obras ou serviços que possa alterar o regime, a
quantidade e a qualidade desses mesmos recursos”. Também se emite autorização num
segundo conjunto de casos, se houver interesse eminentemente privado na “derivação de
água do seu curso ou depósito, superficial ou subterrâneo” ou no “lançamento de
efluentes nos corpos d’água”. A regra geral, portanto, é que empreendimentos, obras,
derivações ou lançamentos terão o uso da água outorgado por autorização quando
houver interesse privado. Se houver interesse público na “derivação de água do seu
curso ou depósito, superficial ou subterrâneo” ou no “o lançamento de efluentes nos
corpos d’água”, aí se terá concessão.
A doutrina usualmente nem mesmo compara a autorização e a concessão,
tamanha a diferença que há entre ambas. Fundamentalmente, a autorização é ato
administrativo enquanto a concessão é contrato. A regulamentação da outorga do uso de
água estabeleceu, não obstante a teoria do direito administrativo, regimes um tanto
próximos para as duas, levando doutrinadores a chamar a outorga de autorização
especial.
A Lei 9.433/97, em seu Art. 16, estabelece que toda outorga de uso de água tem
prazo (sempre inferior a trinta e cinco anos, porém renovável), o que é obedecido
também pela legislação do Estado de São Paulo sobre o assunto (Lei nº 7.663/91).
Portanto trata-se de autorização qualificada. O prazo, no nível federal, pode ser distinto
nos casos em que a outorgada é “concessionária ou autorizada de serviço público ou de
energia elétrica” (Art. 5º, § 4º da Lei 9.984/00). Ainda pode haver alterações, durante a
outorga ou eventualmente ocasionando sua suspensão, em decorrência da perda da
navegabilidade do corpo (Art. 13 da Lei 9.433/97) ou eventos naturais como inundações
ou secas (Art. 4º, X, da Lei 9.984/00). No caso estadual o prazo também pode ser
diferente da regra geral, especificamente nos casos em que haja “situações
emergenciais” ou “porque fatores sócio-econômicos o justifiquem” (Art. 7º do Anexo ao
Decreto 41.258/96). Observa-se que a ressalva é pragmática, pois a autoridade que
emite a outorga é a mesma que emite a Portaria de outorga que fixa o dito prazo. Seria
possível que ela emendasse o texto normativo sempre que o caso emergencial ou a
realidade sócio-econômica assim o exigisse.
A renovação, em São Paulo, acontece por iniciativa do interessado, que deverá
protocolar requerimento com este conteúdo até seis meses antes do termo final da
outorga (Art. 12 do Anexo ao Decreto 41.258/96). Se o outorgado deixar de exercer o
uso, a outorga “perece de pleno direito” (Art. 13 do Anexo ao Decreto 41.258/96). No
nível federal ainda não há regulamentação tão precisa, todavia o Art. 5º, § 3º da Lei
9.984/00 permite a prorrogação, sempre “respeitando-se as prioridades estabelecidas
nos Planos de Recursos Hídricos”. O ato da outorga, no nível federal, estabelece
usualmente o prazo.
Resta saber se a existência dos prazos acima implica ou não em indenização no
caso de retirada extemporânea. Ora, a outorga é de direito de uso, como a legislação
repete consistentemente (Lei 9.433/97, Art. 12 e Lei 9.984/00, Art. 5º e particularmente
o § 1º do Art. 6º). O outorgado tem direito ao uso do recurso hídrico, nas condições
estabelecidas no ato da outorga. Entretanto duas questões se configuram: a) se as
restrições posteriores, a suspensão ou a retirada da outorga seriam indenizáveis; e b) se
no silêncio da outorga, é possível impor as restrições legais.
Com relação à primeira questão, parece certo que o ponto fulcral para sua
resposta está na motivação do ato administrativo que altera, suspende ou retira a
outorga. Se houver desobediência aos requisitos constitucionais ou legais no ato de
autorização ou concessão, inclusive descompasso com o Plano de Bacia, haveria
anulação, ou invalidação, do ato. Com efeitos ex tunc, a invalidação não é indenizável.
Se porventura estiver presente mera irregularidade, então seria imperativa a
convalidação do ato, face à função social do uso dos recursos hídricos.
Se o uso está de acordo com o Plano de Bacia, então o outorgante está dando
função socialmente relevante ao bem público. A Lei 9.433/97 ordena, como já se disse,
que “a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas”
(Art. 1º, IV). A Lei não estabelece faculdade, mas dever; não permite, porém obriga o
órgão gestor a proporcionar uso múltiplo. Por estes motivos é que se afirma que o ato de
convalidação é vinculado. Para obedecer à função social da propriedade pública, para
dar a ela o uso maior e mais relevante possível.
Pode ocorrer de o outorgado descumprir alguma das condições da outorga, como
captação ou emissão superiores às autorizadas ou concedidas, ausência do uso por três
anos consecutivos, emissão com qualidade ou o regime de captação distintos do
estabelecido. Nestes casos dar-se-á a sanção prescrita no ato da outorga, podendo chegar
à sua cassação (Lei 9.433/97, Art. 15, I e II). No nível estadual, O Decreto 41.258/96
estabelece a revogação em caso de “descumprimento de qualquer norma legal ou
regulamentar, atinente à espécie” (Art. 11 do Anexo ao decreto citado). Sempre, mesmo
nestes casos, devem ser levados em consideração os argumentos acima expostos,
motivadores da manutenção da outorga.
Entretanto se evento posterior, independente das vontades das partes, impedir a
continuidade do uso, poderá haver sua suspensão, caducidade ou mesmo a revogação,
sem indenização ao outorgado. O evento pode ser caso fortuito ou força maior que por
si só impossibilite a continuidade da outorga, ou que leve à alteração no Plano de Bacia
e este à impossibilidade. A caducidade se dá “porque sobreveio norma jurídica que
tornou inadmissível a situação antes permitida pelo direito e outorgada pelo ato
precedente”70, caso em que a alteração no Plano leva à retirada. A legislação paulista,
usando incorretamente o termo, estabelece a revogação se “estudos de planejamento
regional de recursos hídricos ou a defesa do bem público” apontarem para a necessidade
da retirada (Art. 11 do Anexo ao Decreto 41.258/96).
A alteração da quantidade, da qualidade ou do regime da água captada são, mais
precisamente, os fatos impeditivos. Nestes casos a autoridade deve sempre dar
prioridade aos usos mais socialmente relevantes, por força da Constituição da
República, da legislação e do Plano de Bacia. Alguns destes usos são o consumo
humano e a dessedentação animal (Lei 9.433/97, Art. 1º, III), a prevenção de grave
degradação ambiental (Art. 15, IV) ou a manutenção da navegabilidade (Art. 15, VI).
Note-se que em qualquer destes casos não haverá indenização, até porque se impõe a
decisão de salvaguardar o benefício mais geral em detrimento do mais particular, e a
vida supremamente.
De maneira sucinta, a suspensão ou retirada da outorga nunca geram
indenização, salvo se ilegais, entretanto é imperativo que estas sejam as últimas
alternativas das quais lançará mão a outorgante, optando sempre que possível pela
manutenção do uso.
À segunda questão, sobre a imposição de restrições ao uso que não constem do
ato de outorga.
Decididas as questões sobre o regime da outorga, uma última questão ainda é
nebulosa, sobre a necessidade de prévia licitação. A Lei 8.666/93, em seu Art. 2º, prevê
a licitação como procedimento prévio à concessão, desde que esta gere contrato, ou seja,
70 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 280.
desde que haja acordo de vontades entre Administração e usuário do bem. No nível
federal não se cogita da necessidade de licitação, já que o conteúdo jurídico da outorga é
autorização, ato e não contrato administrativo. A legislação do Estado de São Paulo
prevê, como se viu, a concessão nos casos de captação de água ou emissão de afluentes
em benefício de interesse público. O caso típico é o abastecimento e saneamento
urbanos. A Lei 11.445/07 estabelece, no parágrafo único do seu Art. 4º, que, para a
prestação de serviços públicos de saneamento básico, a utilização de recursos hídricos
“[...] é sujeita a outorga de direito de uso, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de
1997, de seus regulamentos e das legislações estaduais”. Portanto esta outorga, quanto
aos critérios e procedimentos legais, obedece à legislação geral sobre água, não se
constituindo caso especial.
Aí haverá licitação, todavia note-se que a concessão do serviço não é de
titularidade do DAEE — outorgante estadual do direito de uso da água. No caso
específico do abastecimento e saneamento urbanos, inclusive, a competência é comum
(Art. 23, IX da Constituição da República). Cabe ao Município a prestação do serviço,
por interpretação do Art. 30, V, também da Constituição da República, além da opção
pelo ente mais próximo “ter como objetivos e motivação a melhoria da qualidade dos
serviços e uma melhor articulação do setor com a política municipal de
desenvolvimento urbano”71.
Deve haver licitação, mas apenas para a prestação do serviço. Para a outorga ela
é inexigível, por aplicação do Art. 25 da Lei 8.666/93, vez que há “inviabilidade de
competição”. O fato é que o serviço público é principal em relação ao uso do recurso
hídrico. A administração municipal decidirá os critérios para eventual licitação do
serviço público (usualmente menor tarifa e melhor técnica sanitária). Vencida esta
licitação, a da outorga fica sem competidores.
71 VARGAS, Marcelo Coutinho. Desafios da transição para o mercado regulado no setor de saneamento In: Anuário GEDIM 2002: cidade serviços e cidadania. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 131.
2.5.1 Cobrança gera internalização de externalidades negativas
A água é essencial à vida, antes mesmo de ser essencial à vida econômica —
entretanto a economia é condição da vida humana.
A atividade econômica produz externalidades, isto é, efeitos secundários aos
objetivos propriamente produtivos. Estas externalidades são positivas, se trazem ganhos
à sociedade ou a pessoas, ou negativas, se trazem danos a bens sociais ou individuais.
Ora, o meio ambiente é bem social, é direito difuso o meio ambiente equilibrado. A
água é parte deste equilíbrio, portanto os malefícios que a atividade econômica produz
são externalidades negativas.
[...] há um tipo de depreciação não considerado nos agregados
econômicos convencionais: o decorente da degradação ambiental. O
quanto determinados fluxos de produção afetam as condições
ambientais a médio e a longo prazo [...]. Este tipo de depreciação,
supostamente, é de muito maior importância do que o dos recursos de
capital que se desgastam. Até porque o capital é, também ele, reservas
naturais transformadas.72
Um dos mecanismos de operacionalização deste fenômeno, para realizar o
desenvolvimento sustentável, é a incorporação, ou internalização, das externalidades
ambientais negativas.
Trata-se de abordagem de fundamentação econômica, via emprego de
instrumentos tributários. Baseia-se no princípio do pagamento pelo
poluidor, PPP. Os custos em que a sociedade como um todo incorre
para controlar ou remover externalidades negativas geradas por
empresas poluidoras são, no caso, ressarcidos por tributos pagos por
essas empresas. A eficácia desta categoria de controle é função direta
dos danos que a internalização dos custos da degradação ambiental
causam à capacidade de competição das empresas tributadas. O
72 ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à economia. São Paulo: Atlas, 2002. p. 588.
objetivo principal é estimular tecnologias de produção que reduzam a
zero as externalidades negativas — desonerando assim as empresas
desse custo adicional.73
Duas observações se fazem necessárias.
Primeira, que a cobrança pelo uso da água não é propriamente tributária, se bem
que, nos termos em que o raciocínio econômico se coloca, pode ter função similar, ao
onerar a produção. A natureza jurídica da cobrança é a remuneração da outorga onerosa.
O Art. 20 da Lei Federal 9.433/97 diz textualmente que “serão cobrados os usos de
recursos hídricos sujeitos a outorga”. Não se trata de tributo, indenização ou sanção
administrativa. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos, na Moção 26/2004
refere que “os recursos auferidos com a cobrança pelo uso da água – por não terem a
natureza jurídica de imposto, contribuição social e de intervenção no domínio
econômico […] não podem ser contingenciados […]”. A natureza jurídica da cobrança é
a de preço público, remuneração do uso de bem público.
Com a ressalva sobre a natureza jurídica da cobrança, um de seus efeitos é
realmente a busca, pela empresa, em desonerar-se deste custo. Com efeito, o uso da
água será mais oneroso quanto mais danoso for para o meio ambiente. A devolução de
água limpa ao meio ambiente gera cobrança menor que a devolução de água poluída.
Assim, a cobrança funciona como forma de internalização desta externalidade.
Segunda observação é que a cobrança não apenas onera o produtor, servindo
como estímulo a que use a água de maneira mais responsável. Os recursos advindos da
cobrança têm como destino fundo que financia obras e programas que recuperaram o
meio ambiente. O efeito benéfico da cobrança, desta forma, é potencializado.
Os órgãos competentes para a cobrança, no nível federal, são a ANA (Lei
9.984/00, Art. 4º, IX) e as Agências de Águas, por delegação da outorgante (Lei
9.433/97, Art. 44, III). É que a Agência de Águas só pode ser criada se tiver sua
73 ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à economia. São Paulo: Atlas, 2002. p. 383.
viabilidade financeira garantida pela cobrança (Lei 9.433/97, Art. 43, II), então no
período entre a instituição da cobrança e a criação da Agência, a ANA realiza a cobrança
e o repasse ao Comitê para a aplicação dos recursos. Após a criação da Agência é que se
dá a delegação. Resta terceira possibilidade, que é o contrato de gestão a partir do qual
se dá a delegação da competência da ANA a entidades sem fins lucrativos que tenham
recebido do Conselho Nacional de Recursos Hídricos a delegação das funções de
Agências de Água (Lei 10.881/04, c/c Lei 9.433/97, Art. 47). Note-se que esta
delegação é sempre determinada pela criação da Agência de Águas por solicitação do
Comitê de Bacia ou da delegação também solicitada pelo Comitê. É ele o órgão
competente para a iniciativa (Lei 9.433/97, Art. 43).
Os recursos financeiros arrecadados serão prioritariamente aplicados “no
financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos
Hídricos”, sendo no máximo 7,5% do total aplicados “no pagamento de despesas de
implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos” (Lei 9.433/97, Art. 22). Os Planos
serão discutidos de maneira mais profunda no capítulo Terceiro.
A Lei Estadual 12.183/04 regulamentou o assunto, estabelecendo de antemão
que a competência da “entidade responsável pela outorga do direito de uso”, hoje o
DAEE, é apenas exercida “nas Bacias Hidrográficas desprovidas de Agências de
Bacias”; criada a Agência, é ela a competente (Art. 7º). Em qualquer caso, o produto da
cobrança é depositado em fundo próprio, o FEHIDRO, já implementado no Estado. A
aplicação se dará de acordo com o decidido pelo Comitê de Bacia e pelo Conselho
Estadual (Art. 2º).
A Agência de Bacia e a Agência de Águas são órgãos correspondentes, sempre
funcionando como “secretaria executiva do respectivo ou respectivos Comitês” (Lei
9.433/97, Art. 41). É que pode haver uma única Agência para mais de um Comitê.
2.5.2 Função social da outorga
A outorga do direito de uso de bem público também deve obedecer à função
social. As normas que incidem sobre o ato de outorga são a Constituição da República, a
Lei 9.433/97, a lei que lhe der a competência e os planos de recursos hídricos, sendo
mais específico e importante para a decisão da outorga o Plano de Bacia Hidrográfica.
Tanto o Plano quanto a outorga devem permitir usos socialmente interessantes para a
água, sendo fundamental que ela seja empregada, nos seus múltiplos usos, em sua
função social.
Questão prática da maior importância é a definição, caso a caso, da função social
dos corpos d’água. Conforme se expõe no Capítulo Três, os usos de cada corpo são
definidos a partir dos planos de recursos hídricos, entretanto esta definição não resolve
por completo a questão, posto que apenas a transfere para as autoridades elaboradoras
dos planos. A definição de critério para a função social dos recursos hídricos e dos seus
usos subsiste, a não ser que se imagine que o ordenamento entregou competência aberta
ao elaborador dos planos, para decidir arbitrariamente sobre os usos de cada volume de
água.
Os critérios até o momento apresentados para a definição da função social estão
no Art. 3º da Constituição da República — inclusive no inciso I, que refere ao objetivo
de se construir “sociedade livre, justa e solidária”. O uso deve aplicar justiça no
momento de sua outorga e contribuir para construção de justiça futura. Resta definir-se
o ideal de justiça.
Em conclusão estreita, a água é bem público de uso comum do povo, sendo de
domínio da União apenas os corpos superficiais que banhem mais de um Estado ou País
e o restante de domínio dos Estados e do Distrito Federal. O direito ao uso dos recursos
hídricos é adquirido por pessoas físicas ou por outras pessoas jurídicas, de direto
público ou privado, por outorga dos entes federais ou estaduais competentes, sempre
segundo critérios legais e derivados do Plano de Bacia. A outorga federal tem conteúdo
de autorização e forma de Resolução emanada pela Diretoria Colegiada da ANA; no
Estado de São Paulo, tem conteúdo de autorização ou concessão e forma de Portaria de
competência do Superintendente do DAEE. A cobrança por este uso tem natureza de
tarifa e é de competência da outorgante ou do órgão executivo do Comitê de Bacia,
revertendo os fundos angariados para aplicação decidida por ele é pelo Conselho
respectivo.
O critério da função social deve satisfeito na elaboração dos planos e na
outorga, silentes os planos. Este critério deve ser constitucional e permitir a crítica às
decisões que concedam ou neguem outorgas.
3 POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS
A liberdade econômica é moldura de energia social bastante poderosa, capaz de
impulsionar a criação de riquezas e o aproveitamento social dos recursos naturais. É
necessário, entretanto, que ela seja tão regulamentada quanto qualquer outra liberdade,
para que seja orientada, pelas demandas sociais, na direção do desenvolvimento e não
do mero crescimento econômico. A Política Nacional de Recursos Hídricos estabelece
os caminhos, guiando as iniciativas privadas e públicas através do planejamento do uso
da água.
Os órgãos de direito público se organizam a partir de suas funções, não são
criados com competência para as definir posteriormente — regra que se aplica mesmo
no caso de o regimento interno esmiuçar mandamento contido em lei formal, ele neste
caso apenas esmiúça, não cria novidades. Portanto é a partir do desenho do Sistema
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e dos objetivos constitucionais deste
sistema que se podem compreender os Comitês de Bacia Hidrográfica.
O Art. 21, XIX, da Constituição da República, dá competência à União para a
criação de um “sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos”, bem como
para “definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. Os dois assuntos se
entrelaçam, portanto, desde sua origem constitucional. Com efeito, a outorga do direito
de uso é um dos principais instrumentos institucionais para a gestão da água e,
simultaneamente, a água é bem que não pode deixar de ser usado, essencial que é à
vida. A Lei 9.433/97 veio regulamentar o dispositivo constitucional, como sua própria
ementa diz. Para tanto, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, o qual, se tem outras funções, além da outorga, todas estão intrinsecamente
relacionadas com o uso da água e sua gestão.
Observe-se que a Lei 9.433/97 tem natureza nacional, não se aplicando apenas à
esfera administrativa da União, mas estabelecendo sistema que inclui órgãos de todas as
pessoas com capacidade política. Além disto, ela prevê a participação , na Política
Nacional de Recursos Hídricos, de pessoas jurídicas de direito público sem capacidade
política, bem como pessoas jurídicas de direito privado e até pessoas físicas. Esta
característica de participação universal é fundamental à gestão de um bem que,
transvazável por sua própria natureza, está presente em todos os lugares e em cada um
deles deve ser protegido, não podendo deixar de ser utilizado.
3.1 SISTEMA NACIONAL DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS:
BREVES GENERALIDADES
O Singreh, de acordo com o Art. 33 da mesma Lei 9.433/97, é integrado pelos
seguintes entes, numerados como na lei para referência mais fluida:
I - o Conselho Nacional de Recursos Hídricos;
IA- a Agência Nacional de Águas;
II - os Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e do Distrito Federal;
III - os Comitês de Bacia Hidrográfica;
IV - os órgãos dos poderes públicos federal, estaduais do Distrito Federal e
municipais, cujas competências se relacionem com a gestão de recursos hídricos;
V - as Agências de Água.
Os conselhos têm a função, primordialmente, de subsidiar a formulação da
Política de Recursos Hídricos e de dirimir conflitos entre os outros órgãos. O Ministério
do Meio Ambiente, através da Secretaria de Recursos Hídricos, tem competência para
formular a Política Nacional de Recursos Hídricos e subsidiar a formulação do
orçamento da União — especularmente, as secretarias estaduais responsáveis pela
matéria interferirão nos respectivos orçamentos. A ANA e órgãos estaduais têm
competência para outorgar e fiscalizar o uso de recursos hídricos, respectivamente em
relação às águas de domínio da União e dos Estados. Os Comitês de Bacia decidem
sobre o Plano de Recursos Hídricos, enquanto as Agências de Bacia funcionam como
suas secretarias executivas e escritórios técnicos.
Como afirma o texto do primeiro Plano Nacional de Recursos Hídricos,
Para a concepção das diretrizes do PNRH foram considerados alguns
princípios, inerentes à Política Nacional de Recursos Hídricos e ao
SINGREH, notadamente[: (i)] o princípio da subsidiariedade, segundo
o qual as decisões que possam ser tomadas em níveis mais próximos
às comunidades, e que não afetem a terceiros, não devem ser
submetidas a outras instâncias de decisão; e (ii) o fortalecimento do
conceito de federalismo, imprescindível para viabilizar a integração
dos interesses públicos, de forma a superar os entraves derivados da
falta de coordenação entre os diferentes domínios dos corpos hídricos
e proporcionando políticas de efetiva descentralização.74
Sob estes princípios, os quais têm conteúdos específicos no contexto da Política
Nacional de Recursos Hídricos, se organizam os órgãos citados, com suas competências
respectivas.
3.2 PLANOS DE RECURSOS HÍDRICOS
Para se compreender o procedimento de formação dos critérios que informarão a
outorga do uso, é fundamental situar os Planos e o Sistema Nacional de Gerenciamento
de Recursos Hídricos no contexto da Política Nacional de Recursos Hídricos. Tanto as
outorgas quanto as correspondentes cobranças devem estar de acordo com os Planos,
daí a importância de os compreender.
Trata-se de “planos diretores que visam a fundamentar e orientar a
implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e o gerenciamento dos
recursos hídricos” (Art. 6º da Lei Federal 9.433/97). Portanto devem traduzir, em cada
âmbito geográfico, os princípios, fundamentos e objetivos da Política Nacional de
Recursos Hídricos, respeitando seu ordenamento. Além disto, são etapa de maior
materialização da Política, mais próxima da sua implantação que de sua formulação
abstrata.
74 Brasil. Plano Nacional de Recursos Hídricos. 2006.
Indicados como um dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos
pelo Art. 5º da Lei 9.433/97, estes Planos devem ser elaborados “por bacia hidrográfica,
por Estado e para o País” (Art. 8º da mesma lei). Isto significa que os planos locais
serão não só mais específicos, mas muito mais detalhados e próximos. Ressalta-se,
entretanto, que “na verdade, […] não há propriamente território federal, estadual,
distrital ou municipal; o que existe são as funções federais, estaduais, distritais e
municipais sobre o mesmo espaço geográfico”75 — portanto sobre os mesmos recursos
hídricos.
O plano do país é aprovado e tem sua execução acompanhada pelo Conselho
Nacional de Recursos Hídricos (Art. 35, IX, da Lei Federal 9.433/97). Embora não haja
previsão expressa, é decorrência do princípio federativo que a competência
correspondente, no estados, seja dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. O
plano da bacia é elaborado pela Agência de Águas (Lei 9.433/97, Art. 44, X), por
organização civil (Lei 9.433/97, Art. 47 c/c Art. 51) ou pelo órgão gestor, regulamente o
Comitê (Resolução 17/01), é aprovado por este (Lei 9.433/97, Art. 38, III) que também
lhe acompanha a execução (inciso IV do dispositivo anterior).
O Conselho Nacional de Recursos Hídricos estabeleceu, na Resolução 17/2001,
os termos de referência para elaboração dos Planos de Recursos Hídricos de Bacias
Hidrográficas. A resolução estabelece conteúdo mínimo para os planos, a articulação
entre os órgãos gestores, estaduais, comitês e a união e especialmente a “participação da
sociedade […] por meio de consultas públicas, encontros técnicos e oficinas de trabalho,
[…] fortalecendo a interação entre a equipe técnica, usuários de água, órgãos de
governo e sociedade civil, de forma a incorporar contribuições ao Plano” (Art. 6º, §1º da
Res. 17/01).
75 ALVES, Alaor Caffé. Bases Jurídicas e Administrativas para a Gestão Cooperada de Águas
de Interesse Comum à União e aos Estados Federados. Apud BRASIL. Plano Nacional de Recursos Hídricos.
Devem constar dos Planos de Bacia as “prioridades de uso dos recursos
hídricos” (Art. 8º, §2º, I); os “limites e critérios de outorga para os usos dos recursos
hídricos”; as “diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso da água”; e a “proposta de
enquadramento dos corpos d'água”. Para tanto a resolução se faz acompanhar de anexo,
de “caráter orientativo” (Art. 8º, § 4º), um “termo de referência básico”, onde todas as
determinações são esmiuçadas.
Neste termo básico, a outorga é mencionada várias vezes. A fixação das
prioridades de uso, para informar a decisão sobre a outorga, é um dos objetivos do
diagnóstico das disponibilidades hídricas da bacia. Um dos objetivos enfatizados na
organização e condução da mobilização social para o diagnóstico é “Buscar a
participação da sociedade na implementação das medidas que visem disciplinar o uso
dos recursos hídricos, em especial a outorga e a cobrança”.76
De maneira particularmente importante, o termo básico cita os instrumentos da
Política Nacional de Recursos Hídricos, os quais deverão constar do Plano de Bacia. De
interesse para este trabalho é a descrição, feita pelo termo básico, do enquadramento dos
corpos hídricos da bacia, da outorga e da cobrança. O enquadramento consiste
fundamentalmente na “indicação de trechos dos cursos de água com comprometimento
em qualidade ou quantidade[…], indicando as prioridades das diversas demandas e os
níveis de garantia que serão requeridos”77. Sobre a outorga, o Plano deverá
especificar critérios para a implementação do processo de outorga na
bacia, em detalhes compatíveis que permitam orientar o OGRH
quanto à sua aplicação na bacia hidrográfica, incluindo a previsão dos
trâmites necessários e dos documentos de formalização. Deverão ser
também analisados e propostos os tipos de uso que serão dispensados
de outorga, e os procedimentos de acompanhamento, atrelados à
76 Item A.5 do termo.
77 Item C.1.2 do termo.
operação do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos da
Bacia Hidrográfica”.78
Sobre a cobrança, o Plano deverá conter “esclarecimentos sobre o que cobrar,
como cobrar, de quem cobrar e para que cobrar o uso da água”, bem como “análise
preliminar sobre a viabilidade econômica da cobrança”.
Com relação ao Plano Nacional, após definir os objetivos estratégicos do Plano
(Capítulo 3) e do diagnóstico da situação atual (Capítulo 4), estabelecem-se diretrizes
inclusive para a tornar compatíveis os “critérios de outorga” (Capítulo 5) dos diversos
planos de bacia com os objetivos nacionais. Especificamente sobre o uso de potenciais
hidrelétricos, também aqui são estabelecidos os critérios (como determina a Lei
9.433/97, em seu Art. 12, § 2º).
Portanto no Plano Nacional trata de generalidades, enquanto o Plano de Bacia é
mais concreto e preciso, segundo o “princípio da subsidiariedade” já citado. No Plano
mais específico se estabelecem os usos hipotéticos para cada corpo d’água e também os
critérios para a decisão concreta sobre os pedidos de outorga. Não há dificuldade em
concluir que nos Planos se estabelece a função social dos recursos hídricos.
3.2.1 Os Planos e o Ordenamento
Dois princípios constitucionais organizam hierarquicamente o ordenamento
jurídico brasileiro: a) a supremacia da Constituição; e b) a superioridade da Lei. O
primeiro é implícito79, exsurge da interpretação do controle da constitucionalidade das
normas infraconstitucionais e da rigidez constitucional — nem o primeiro, nem a
segunda, subsistiriam não fosse a Constituição suprema sobre todos os outros textos do
ordenamento. O segundo é explícito no Art. 5º, II, como já se referiu no Capítulo
Primeiro, Secção, do presente estudo. Deve haver compatibilidade entre os Planos e a
78 Item C.1.2 do termo básico.
79 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 54 e ss.
Constituição da República, bem como com o nível legal do ordenamento. A análise
desta compatibilidade é a análise da constitucionalidade e da legalidade do ato.
O Art. 174 da Constituição da República ordena o planejamento da atividade
econômica pelo Estado e, como já se viu no Capítulo Segundo, Secção segunda, no
Direito Econômico se inclui o Direito Ambiental e, neste, o regime das águas.
Planejamento é “forma de ação racional caracterizada pela previsão de comportamentos
econômicos e sociais futuros, pela formulação explícita de objetivos e pela definição de
meios de ação coordenadamente dispostos”.80
O artigo revela muito sobre as opções políticas cristalizadas na atual
Constituição da República, que obriga o Estado a lançar mão também deste instrumento
para perseguir seus objetivos. O Estado deve se esforçar para diagnosticar
acertadamente as causas determinantes das mazelas sociais, prever as circunstâncias
futuras e agir concretamente para que a sociedade brasileira possa enfrentar seus
desafios que o tempo trará, bem como se aproveitar das oportunidades vindouras.
Conscientes da inevitabilidade do novo, os constituintes ainda animam os brasileiros à
reflexão e a ter seguras as rédeas do próprio destino. Não os quer prostrados, esperando
pela ação de alguma insondável invisibilidade, envolvidos em buscar apenas e
minusculamente o benefício próprio. Como ensina Eros Roberto Grau:
Precisamente a visão prospectiva se manifesta como característica do
planejamento. A visão retrospectiva, da realidade e do direito,
compatível com a perspectiva da Constituição estatutária, já não se
adequa às imposições da Constituição dirigente. Isso importa em que
o direito já não seja mais apenas a representação da ordem
estabelecida, a defesa do presente, mas também a formulação de uma
ordem futura, a antecipação do porvir.81 (sic) (grifo do original).
80 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2.000. p. 308.
81 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2.000. p. 347
Tamanha força de decisão deve se acompanhar de igual legitimidade, daí a raiz
democrática da soberania nacional, como também a dinâmica translúcida do fluxo desta
soberania pelas instituições políticas.
A última parte do caput do Art. 174 leva à conclusão de que os Planos de
Recursos Hídricos são determinantes para o setor público. Com relação ao setor
privado, apenas as outorgas consoantes com os critérios, prioridades e usos
estabelecidos no Plano são lícitas. Assim, o caráter indicativo do planejamento se
traduz, neste caso específico, em medidas concretas que direcionam e induzem o
comportamento privado. É que
Quanto às medidas de implementação do plano — se tiver havido
planejamento —, eventualmente vincularão o setor privado não
porque implementadoras do planejamento, mas sim porque
expressivas de intervenção por direção, existindo ao par de outras que
expressem intervenção por indução.82
Ao outorgar usos socialmente relevantes dos recursos hídricos, a autoridade
induz os investidores privados a concentrar inventividade, administração e recursos em
atividades alinhadas com o desenvolvimento ambientalmente sustentável (obedecendo
ao Art. 170, VI, da Constituição da República). Ao negar, suspender ou retirar a outorga,
a autoridade dirige os investidores de volta ao comportamento conforme a Constituição.
Formalmente, o Plano Nacional atual foi aprovado pela Resolução 58/2006 do
Conselho Nacional de Recursos Hídricos, pela competência legal já descrita. A mesma
lei (9.433/97) estabelece que a decisão sobre a outorga está “condicionada às
prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e respeitar a classe em
que o corpo de água estiver enquadrado” (Art. 13). Os Planos Estaduais são de
competência dos Conselhos Estaduais e os Planos de Bacia também são aprovados por
Resoluções dos respectivos Comitês. Especularmente, estes planos são determinantes
para as decisões sobre outorga nos respectivos campos de atuação. A determinação dos
82 GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica, p. 45. Apud GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 310.
critérios para a outorga pelo Plano de Bacia é mais enfática, posto que mais concreta e
direta.
A relação de determinação entre os Planos Nacional, Estaduais e de Bacias é
um tanto complexa, sendo melhor compreendida a partir dos já citados princípios
federativo e da subsidiariedade. O Conselho Nacional tem visão global, estabelecendo o
enquadramento e os usos dos recursos hídricos mais significativos e de maneira pouco
precisa, como também os critérios gerais para sua outorga e a cobrança correspondente.
No Estado e com visão intermediária, os Planos Estaduais têm papel análogo. Os Planos
de Bacia são muito mais precisos e concretos, fixando detalhes tanto do enquadramento
e uso das águas, quanto das possibilidades de outorga e cobrança.
Não há determinação legal de ordem cronológica entre os planos, podendo o
plano de determinada bacia já estar sendo implementado antes do Plano Nacional (caso
do Comitê da Bacia do Paraíba do Sul) ou mesmo antes que os estudos para o Plano
Estadual tenham sido concluídos (idem); ao mesmo tempo, são inúmeras as bacias
federais e estaduais que nem mesmo têm seus comitês formados e que, portanto,
elaborarão seus Planos bastante depois do Nacional. Isto posto, a legislação estabeleceu
forma dinâmica de harmonização dos planejamentos.
O Plano de Bacia deve se pautar pelos planos pré-existentes, se mais amplos que
ele, lhes “respeitando as diretrizes”, inclusive do Plano de Bacia de corpo d’água do
qual sua bacia é tributária (Art. 7º, II, da Resolução 05 do Conselho Nacional). É
competência do comitê a jusante “compatibilizar os planos de bacias hidrográficas”
montantes com o seu próprio (Art. 7º, IV, da Resolução 05 do Conselho Nacional).
O Art. 38, parágrafo único, da Lei 9.433/97, estabelece que cabe recurso das
decisões do Comitê para o Conselho correspondente. Dos incisos do caput do mesmo
artigo constam as competências dos Comitês, arrolando-se decisões de duas naturezas
diversas: a) de conflitos relacionados a recursos hídricos; e b) de planejamento. São
relevantes para a presente discussão o conteúdo dos incisos: II) a arbitragem de
conflitos relacionados com recursos hídricos; III) a aprovação do Plano; IV) o
acompanhamento de sua execução; e VI) o estabelecimento de mecanismos de
cobrança. Da sua posição na Lei se infere que de todas estas decisões cabe recurso ao
Conselho correspondente — Estadual para os Comitês Estaduais, Nacional para os
Federais.
Dentre as competências do Conselho Nacional (modelo normativo dos
Estaduais), que se relacionam com o tema, estão a seguir numeradas como nos incisos:
IV) deliberar sobre questões enviadas pelos órgãos inferiores, Comitês e Conselhos
Estaduais; II) arbitrar conflitos entre Conselhos Estaduais; I) a promoção de articulação
do planejamento de recursos hídricos; e X) o estabelecimento de critérios gerais de
outorga e cobrança (Art. 35, Lei 9.433/97). Também aqui é possível enxergar a
existência de decisões de natureza mais particular e outras mais propriamente de
planejamento. A partir daí, e tendo-se em vista o princípio da subsidiariedade, é que se
pode analisar com mais propriedade o alcance da competência dos Conselhos em
relação às decisões dos Comitês.
Sobre as decisões de aplicação do Plano, observa-se apenas que não dizem
respeito a caso concreto de outorga, já que a autoridade outorgante não se submete
diretamente aos Comitês ou aos Conselhos. De resto, a cadeia de recursos é intuitiva.
Com relação às decisões que constituem o Plano, há que se distinguir entre elas
pelo objeto do recurso. A autoridade superior pode decidir, no recurso, questões
envolvendo conflito entre os usos prescritos no Plano de Bacia e no Estadual ou no
Nacional, já que o órgão superior é responsável pela visão global dos recursos hídricos.
Outro objeto de recurso poderiam ser os critérios gerais de outorga ou cobrança, aí
também cabe ao órgão mais geral decidir. Entretanto aí se esgota a competência dos
Conselhos. Não cabe a eles decidir, nos recursos, sobre questão exclusivamente local, se
não houver antinomia entre esta decisão e os Planos mais gerais. O mérito político
específico das decisões locais não é analisável pelos Conselhos, em aplicação da
solução constitucional para competências partilhadas entre órgãos federativos, os
parágrafos do Art. 24 da Constituição da República.
Assim se realiza a harmonização entre os Planos. O Nacional obedece aos níveis
constitucional e legal do ordenamento, faz diagnósticos globais, prognósticos de longo e
médio prazos, estabelece normas e critérios gerais para o enquadramento, a outorga e a
cobrança. A ele devem se moldar os Planos Estaduais, como também os de Bacias
federais (diretamente) e os de Bacias estaduais (indiretamente, por via dos Estaduais).
Os Estaduais obedecem ao Nacional e tomam decisões intermediárias. Os Planos de
Bacia são precisos e detalhados, obedecendo sempre aos Planos mais amplos e aos
níveis superiores do ordenamento. Quanto às relações dos Planos com a outorga e a
cobrança, estas já foram desenvolvidas no capítulo Uallows.
As finalidades fluem, das alturas constitucionais até a concretude do ato
administrativo da outorga, através do leito do planejamento. Os Planos determinam a
função social de cada corpo hídrico.
3.3 DEMOCRACIA: CONCEITUAÇÃO E REGRAS GERAIS
A democracia vem sendo descrita pelos constitucionalistas, teóricos do Estado e
cientistas políticos de várias maneiras distintas, até pelas maneiras variadas de encarar o
conceito. Antes de buscar os limites normativos específicos do regime constitucional
brasileiro, será útil alargar, pela revisão da literatura, a gama de possibilidades e
variações dos modelos teóricos.
A democracia se opunha, idealmente, à monarquia e à aristocracia, na
antiguidade e mesmo na obra do primeiro moderno, Maquiavel, ou dos pensadores
contratualistas. Hodiernamente o modelo se opõe à autocracia, mesmo considerando-se
as variações desta83. É a última idéia de democracia que interessa, pela maior relevância
para o estudo do ordenamento brasileiro atual. A característica marcante desta é “o
aumento [do número] de sujeitos que agem politicamente, vale dizer, que colaboram
direta ou indiretamente na formação das decisões coletivas, o que tornou mais amplo,
[…] e com fronteiras mais incertas, o ‘espaço político’”84.
83 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
84 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 457
Governar é tomar decisões que determinam o comportamento da coletividade e,
portanto, quanto maior o número de pessoas que tomam estas decisões, mais
democráticas elas serão. Soberano, neste sentido, “é aquele que, qualquer de seja a
forma de governo, […] está capacitado a tomar decisões coletivas, válidas para todos os
membros daquele grupo organizado, sem vínculo de mandato”85. Este é o curso seguido
pela Constituição da República, ao dizer que o sufrágio é universal e o voto tem igual
valor para todos (Art. 14). Como também o Art. 1º, parágrafo único, afirmando a
soberania popular, é compatível com a noção de soberania relacionada a decisão.
Destas idéias mais gerais é necessário desaguar em caminhos mais firmes. Um
problema essencial é o da representação dos interesses sociais. Os regimes
constitucionais do poder tratam a situação de várias maneiras distintas, entretanto
distinguíveis entre duas categorias, que Bobbio chama representação política e
representação de interesses. A primeira se funda na noção de que o mandato político é
aberto — após eleito, o representante é livre para defender os interesses gerais, sem
compromisso de continuar defendendo apenas os interesses de seus eleitores. A segunda
estabelece algum mecanismo a partir do qual o eleito continua adstrito aos interesses
parciais de seus eleitores. O Brasil adotou a primeira opção no tocante aos agentes
políticos eleitos diretamente pelo povo, garantindo sua “irresponsabilidade política”86.
Em um dos extremos ter-se-ia a ligação direta entre eleitores indistintos e eleitos
com mandatos livres, livres para buscar os interesses gerais do povo. No outro, grupos
organizados escolhendo seus representantes e os eleitos com mandatos vinculados,
restritos a apenas defender os interesses parciais de seus eleitores. Entre os dois, as
democracias avançadas na Europa criaram sistema alternativo, com o fortalecimento de
um corpo intermediário entre o povo e o Estado, qual seja, o dos partidos políticos. Com
a fidelidade partidária e as eleições por lista fechada, os partidos quebraram a relação
única entre eleitores e eleitos em duas relações, uma entre eleitores e partidos, outra
entre estes e os eleitos, entretanto isto “não complicou o sistema da representação, mas
85 Idem, Ibidem. p. 463.
86 SIVLA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 65.
o simplificou, e, simplificando-o, tornou-o novamente possível”87. No Brasil também
temos partidos, entretanto sua debilidade é patente na legislação e nos efeitos deletérios
dela no cotidiano político.
Outro problema, ao primeiro relacionado, é o das técnicas da democracia,
mormente a escolha entre as regras de maioria ou unanimidade. A unanimidade gera
decisões negociadas, contratadas, que portanto não representam a derrota absoluta de
uma parcela do povo sobre outra. A maioria gera o que em teoria dos jogos se chama
resultado de soma zero, isto é, tudo o quanto um dos lados ganhou representa perda para
o oponente88. A maioria dos colegiados brasileiros funciona por maioria, o que é
compatível com a idéia de que a regra da unanimidade só se pode aplicar, com justiça,
em grupos sociais sem grandes desníveis de poder89, o que não é propriamente o caso
brasileiro.
3.3.1 Teorias da democracia
As teorias sobre a democracia se distinguem essencialmente, pelos seus
fundamentos axiológicos ou alegadamente técnicos (os quais não serão estudados aqui),
ou pelos critérios acima introduzidos. Canotilho expõe as teorias democrático-pluralista,
elitista e do “ordo-liberalismo” como não-normativas; seriam normativas a liberal, a
republicana, a deliberativa, a discursiva e a corporativa. As normativas “andam
estritamente associadas às discussões em torno do estado de direito, da constituição e do
constitucionalismo”90.
87 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 470.
88 DIXIT, Avinash et al. Thinking strategically: the competitive edge in business, politics, and everyday life. New York: W. W. Norton, 1993. p. 14.
89 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 441.
90 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina. p. 1320.
Destaca-se a descrição, que faz Canotilho, do modelo criado por Habermas,
chamado de democracia discursiva. Esta não se assenta “em direitos universais do
homem (direitos preexistentes na perspectiva liberal)” ou na moral (como na
republicana), mas em “regras de discussão, formas de argumentar, institucionalização de
processos — rede de discussão e negociação — cujo fim é proporcionar uma solução
nacional e universal a questões problemáticas, morais e éticas da sociedade”91.
Definindo democracia como “processo de auto-organização política da sociedade”92.
Aí há destaque para a noção de esfera pública, na qual se ventilariam as mais
relevantes discussões sociais, o que leva o sistema a “regenerar a publicidade crítica
através de formas deliberativas descentralizadas”93. Fora do Estado, traz para a
sociedade democrática a participação nas decisões e falas que estruturam a vida.
Paralelamente, nega a “identidade ético-comunitária” da visão republicana,
privilegiando o “pluralismo cultural e social”94.
Tanto Canotilho, quanto Bobbio, Habermas e outros pensadores destacam
características mínimas do regime democrático. Seriam regras a estabelecer: a) quem
está autorizado a tomar decisões (resguardada a soberania popular e o sufrágio
universal); e b) quais os processos através dos quais estas decisões se tomam; mais c) a
garantia de direitos fundamentais, com ênfase na liberdade de expressão e no direito à
informação. A ênfase nos direitos relacionados à comunicação se dá porque estes são os
que influenciam mais proximamente a qualidade das decisões (idealmente informadas e
conscientes). Isto não significa, entretanto, deixar de se considerar a importância de
outros direitos fundamentais, como a vida, a igualdade ou a liberdade.
91 Idem, Ibidem. p. 1322.
92 Idem, Ibidem. p. 1323.
93 Idem, Ibidem. p. 1323.
94 Idem, Ibidem. p. 1323.
3.4 DEMOCRACIA: DESCRIÇÃO INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS
DECISÓRIOS DO SISTEMA
Os Planos são as decisões mais importantes tomadas no Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos, tanto porque seus efeitos se estendem pelo futuro
quanto porque determinam diretamente as decisões sobre outorga e cobrança — a face
do sistema que interfere concretamente no uso da água. Por serem tão profundas e
espraiadas as suas conseqüências, os Planos devem ter grande legitimidade. Antes,
entretanto, de analisar estes elos entre legitimidade e democracia, validade e eficácia,
será útil descrever as formas de composição dos órgãos responsáveis pelo planejamento
da Política Nacional de Recursos Hídricos, bem como os procedimentos para decisão.
Estes dados foram pesquisados e estão descritos com o maior detalhamento
possível. Foi necessário tal cuidado porque grande parte das conclusões do presente
estudo se referem exatamente ao desenho da democracia nestas instituições.
Os Comitês de Bacia podem ser federais ou estaduais, com as mesmas funções,
mas composições e organizações distintas.
Os Comitês federais são criados por decreto do Presidente da República,
carecendo de personalidade jurídica própria e constituindo descentralização
administrativa. Paralelamente, as funções de Agências de Águas podem ser exercidas
por entidades (listadas no Art. 47 da Lei 9.433/97) com personalidade jurídica, o que
garante maior autonomia à Bacia.
O procedimento de criação corre junto ao Conselho Nacional de Recursos
Hídricos, competente para a decisão substancial sobre o mérito. A proposta, deverá ser
subscrita por Secretários de Estado em cuja área de competências estejam os recursos
hídricos (ao menos 2/3 dos atingidos), Prefeitos (40%), entidades usuárias (ao menos 5),
e entidades civis (ao menos 10, porém o Conselho pode aceitar redução justificada deste
número, até 3) (Art. 9º da Resolução 05 do Conselho Nacional). Além da caracterização
da bacia e da indicação da diretoria provisória, a proposta se fará acompanhar de
“justificativa circunstanciada da necessidade e oportunidade de criação do Comitê”
(Art. 10 da Resolução 05 do Conselho Nacional).
Não obstante a presença de requisitos formais, a dita justificativa indica a
discricionariedade da aprovação da proposta pelo Conselho Nacional. Ele pode optar
por não aprovar a criação do Comitê, não obstante a presença dos requisitos formais.
Além disto não há, no regime específico, menção à possibilidade do Presidente da
República decidir discricionariamente pela não criação do Comitê, entretanto dois
pontos têm importância. Primeiro não há prescrição de prazo entre a aprovação e o
decreto. Em segundo, cabe à Presidência realizar sempre a análise da
constitucionalidade e da legalidade dos atos administrativos, podendo o procedimento
ser devolvido ao Conselho Nacional para melhor instrução.
A composição dos comitês é estabelecida no Art. 39 da Lei 9.433/97 e pelo Art.
8º da já citada Resolução 05 do Conselho Nacional. O número dos membros que
representam o Executivo das pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e
Municípios) que se situam no território do comitê é de no máximo quarenta por cento
do total. A quantidade relativa mínima de representantes de entidades civis é de 20%. A
de usuários é de 40%, porém a redação do dispositivo da Resolução deixa vago se este é
o mínimo, o máximo ou, alternativa que tem sido obedecida, a quantidade exata. O
número exato de membros, seu total e sua distribuição, bem como a forma como são
indicados e a duração de seus mandatos, é estabelecido no regimento interno de cada
comitê, alterado apenas pela votação de 2/3 dos seus membros.
Duas peculiaridades se impõem. Se na área do comitê se incluem terras
indígenas, representantes seu e da FUNAI se incluirão. Se a bacia incluir corpo d’água
transfronteiriço (é o termo usado pela Lei), dentre os representantes do Executivo da
União haverá um advindo do Ministério das Relações Exteriores.
Quanto aos usuários, a Resolução 05 impõe a sua classificação em uma de seis
categorias (usando alíneas no lugar dos incisos que seriam corretos): a) abastecimento
urbano; b) indústria; c) irrigação e uso agropecuário; d) hidroeletricidade; e)
hidroviário; f) pesca, turismo, lazer e outros usos não consuntivos. O critério de uso
consuntivo ou não, como a gradação entre usos mais ou menos consuntivos, é o da água
que retorna ao corpo — sem cuidado com a qualidade do retorno. Assim, a pesca e o
turismo (como também o uso hidroviário e a geração de eletricidade) não são
consuntivos porque não é retirada água da represa ou rio para seu exercício. A irrigação
é uso altamente consuntivo (de 80% a 90% da água não volta), enquanto a indústria
(20%) e o abastecimento urbano (10%) são pouco consuntivos.
Dentre os usuários, deve haver a participação de pelo menos três setores, sendo
que os setores relevantes devem ter no mínimo 4% e no máximo 20% do total dos
votos. A distribuição de representantes entre os setores usuários deve ser decidida pelos
próprios usuários, não pelo Comitê. Uma regra é bastante importante: o arranjo desta
distribuição será alcançado por consenso, levando em conta o total de uso outorgado e
cobrado de cada setor.
Quanto às entidades civis, são aquelas apontadas no Art. 47 da Lei 9.433/97,
sempre mantendo a numeração original: I) consórcios e associações intermunicipais de
bacias hidrográficas; III) organizações técnicas e de ensino e pesquisa com interesse na
área de recursos hídricos; IV) organizações não-govemamentais com objetivos de
defesa de interesses difusos e coletivos da sociedade; V) outras organizações
reconhecidas pelo Conselho Nacional ou pelos Conselhos Estaduais de Recursos
Hídricos.
Estas entidades, como também as usuárias, se elegem entre seus pares, isto é, o
Comitê não escolhe quem deve vá participar, estando aberto para acolher quem a
sociedade lhe enviar. A sociedade é a representada, portanto tem o ônus de enviar os
seus mais significativos e hábeis representantes. É exemplo o regimento do Comitê da
Bacia do São Francisco, que no seu Art. 6º, § 4º, estabelece que “o processo de escolha
dos membros titulares e suplentes representantes do poder público municipal, dos
usuários e das organizações civis, dar-se-á mediante eleição e terá ampla e prévia
divulgação”.
As decisões são tomadas na forma disposta nos regimentos internos, sendo
necessário observar que eles variam bastante. Há os que prescrevem a decisão por
maioria simples (é o caso do CEIVAP), enquanto a maioria dos outros aceita esta
solução, porém recomenda o consenso (como o CPJ). Diferentemente de muitos o
CBHSF força a decisão mais próxima possível do consenso ao estabelecer decisões com
maioria qualificada de dois terços dos presentes. O quorum para início de reuniões é
sempre da metade ou eventualmente da maioria absoluta dos membros.
Vale a pena notar que, muito embora os regimentos estejam preparados para
eventuais disputas (a democracia pressupõe o conflito, não o evita), a maioria dos
estudados recomenda a tomada de decisão por aclamação ou consenso. De resto, têm
aquilo que todo regimento de órgão colegiado têm (dos Centros Acadêmicos ao Senado
Federal): questões de ordem, normas sobre retirada de pontos de pauta, vistas que adiam
as discussões e assim por diante.
3.4.1 Contraponto: a regulamentação do serviço público de saneamento
básico
A Lei 11.445/07 veio regulamentar o serviço público de saneamento básico, já
estabelecendo, no seu Art. 4º, que “Os recursos hídricos não integram os serviços
públicos de saneamento básico”. Com efeito, apesar da proximidade temática, fática,
econômica, é mais útil estudar a regulamentação do saneamento básico estabelecendo
contraponto ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Antes,
porém, cumpre apresentar o sistema geral da Lei 11.445/07, bem como a forma de
regulamentar alguns temas específicos. Depois ressaltar-se á a intersecção entre ela e o
regime da água. Por último se estabelecerão comparações entre um regime e o outro.
Saneamento básico, segundo o inciso I do Art. 3º da lei citada, envolve serviços
enquadrados em quatro grandes categorias:
a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infra-
estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água
potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos
instrumentos de medição;
b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infra-estruturas
e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e
disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações
prediais até o seu lançam,ento final no meio ambiente;
c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de
atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta,
transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e
do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias
públicas;
d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: conjunto de
atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de drenagem
urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o
amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das
águas pluviais drenadas nas áreas urbanas;
É simples ver que todas as categorias de serviços de saneamento básico têm a
ver com a água. Mesmo a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos estabelecem
uso de água. Os resíduos sólidos precisam ser tratados e seu destino final deve ser de tal
forma preparado, que não haja indevido vazamento e contaminação de lençóis freáticos
ou corpos d’água superficiais. A varrição diminuirá a quantidade de resíduos urbanos a
serem levados pelas águas pluviais aos rios.
O saneamento básico requer uso de água, o que leva a Lei 11.445/07 a
estabelecer, no parágrafo único do seu Art. 4º, que, para a prestação de serviços públicos
de saneamento básico, a utilização de recursos hídricos “[...] é sujeita a outorga de
direito de uso, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997, de seus
regulamentos e das legislações estaduais”. Portanto esta outorga, quanto aos critérios e
procedimentos legais, obedece à legislação geral sobre água, não se constituindo caso
especial.
A lei não estabelece a titularidade de cada um dos serviços, entretanto a única
celeuma a este respeito é a que cerca o fornecimento de água potável. É dos municípios
a titularidade do serviço de recolhimento de resíduos sólidos, de os esgotos sanitário e
pluvial. Mesmo o abastecimento de água é bastante razoável determinar que seja
desenvolvido pelo município. Da sistemática constitucional se apreende que, sendo
local o serviço, todo ele baseado em atividades locais de captação de água, tratamento e
distribuição, só pode ser titular o Município, nunca o Estado Federado ou a União. A
falta de disposição categórica sobre o assunto apenas dá à discussão um fôlego um
pouco maior, entretanto não se vislumbra outro desfecho que não o reconhecimento da
titularidade municipal para todos estes serviços.
A Lei 11.445/07 regulamenta extensamente a prestação dos serviços por pessoas
que não integrem a administração do titular. Com efeito, a leitura da dita lei poderia
levar um desconhecedor da realidade brasileira a pensar que o mercado está quase
inteiro em mãos privadas, tamanha a ênfase nos contratos entre titulares e prestadores.
Não é o caso, muito embora haja realmente uma parcela significativa das fornecedoras
de água potável que não fazem parte da administração municipal. Estas são as
companhias estaduais, não privadas.
Aqui iniciam as diferenças entre o enfoque dos dois regimes. O Sistema
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos tem uma importante ênfase
democrática, de gestão transparente de recursos públicos. Não se pode dizer que a Lei
11.445/07 dê a mesma atenção a estes princípios.
O Art. 2º, incisos IX e X, até mencionam que são princípios fundamentais dos
serviços de saneamento a “transparência das ações, baseada em sistemas de informações
e processos decisórios institucionalizados” e o “controle social”. Entretanto as
obrigações, ao Estado, de permitir a participação da sociedade, são mínimas e de
relevância duvidosa.
O próprio Capítulo VII, que trata “da participação de órgãos colegiados no
controle social”, indica, no caput de seu único artigo (47), que o controle “[...] poderá
incluir a participação de órgãos colegiados de caráter consultivo [...]” (grifo posterior).
Não há obrigatoriedade da participação social direta e mesmo quando ela se der, poderá
ter natureza apenas consultiva, nunca decidindo. Para mais fria análise, todavia, atente-
se aos dois momentos cruciais de decisão: o planejamento e a regulamentação do
serviço.
Todo Plano parte de um diagnóstico sólido e imparcial da realidade, por um
lado, e de decisões politicamente legitimadas, por outro. Estas duas bases estabelecem,
seguramente, de onde se parte e para onde se vai. O Plano faz a ponte entre a realidade e
os objetivos constitucional e legitimamente estabelecidos.
A Lei 11.445/07, entretanto, estabelece que o Plano pode ser elaborado “[...] com
base em estudos fornecidos pelos prestadores de cada serviço”. Assim se perde a
primeira base. É o prestador que desenha o cenário sobre o qual o planejador atuará.
Não há obrigatoriedade de se estabelecer um órgão independente para a elaboração dos
estudos (como o são os órgãos consultivos dos Comitês de Bacia).
O Plano servirá para determinar onde é necessário maior investimento, onde o
serviço precisa ser melhorado e onde os índices de qualidade e quantidade de prestação
estão aquém ou além do previsto. Mas a Lei permite que o planejador aceite os dados
fornecidos pelo próprio prestador como única fonte de informações. Em metáfora
judiciária, é como se apenas uma das partes pudesse requerer provas, juntar
documentos, bem como indicar perito e assistente seus.
Sobre a decisão política que daria norte ao planejamento, a lei estabelece à
população papel também muito menor que o reservado a ela no regime do Sistema
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. O planejador precisa apenas divulgar
suas propostas e estudos através de audiências e consultas públicas (Art. 19, § 5º). Não
voto, não há garantia de constituição democrática do auditório, não há mínimas
garantias de construção de qualidade e representatividade na participação popular.
Propõe-se a comparação desta situação com o regime de gestão dos recursos
hídricos. De acordo com a Lei 9433/97 (com a diferença de apenas um dia, exatamente
dez anos anterior à 11.445/07), o planejamento parte de diagnóstico realizado pelos
órgãos executivos dos Comitês ou Conselhos. Garante-se, desta forma, a transparência
na coleta dos dados e na elaboração do modelo de realidade que será base para as
decisões políticas de planejamento. Já se garante, assim, isenção, no lado da elaboração
dos fatos.
As decisões que nortearão o planejamento são tomadas por um Comitê ou
Conselho, cujas composições já estão estabelecidas legalmente e que sempre contarão
com representantes legítimos da sociedade organizada. Qualifica-se, desta forma, o
colegiado responsável pelas decisões, garantindo-se que ele terá legitimidade e
conhecimento de causa para decidir segundo os interesses ali representados. É a forma
como a Política Nacional de Recursos Hídricos se afasta do argumento tecnicista, o
qual, na sua raiz, é negação do debate democrático.
Mais um passo, na análise das diferenças entre um e outro modelo, à
regulamentação. O regime do saneamento básico não estabelece nem mesmo como
objetivo ou princípio a participação democrática na regulação e fiscalização da
prestação dos serviços.
O Capítulo V da Lei 11.445/07 desaloja a sociedade de qualquer participação
nestas atividades, garantindo apenas o “amplo acesso a informações sobre os serviços
prestados” (Art. 27, I), “na forma das normas legais, regulamentares e contratuais”
(Art. 27, caput) (grifo posterior). Entretanto este direito às informações é limitado ainda
por uma referência a “documentos considerados sigilosos em razão de interesse público
relevante, mediante prévia e motivada decisão”. Quem toma esta decisão é o próprio
órgão regulador, em cuja composição não se garante qualquer participação democrática.
Resta a via do judiciário, apenas.
A prestação dos serviços tem, segundo a própria lei, “dimensões técnica,
econômica e social” (Art. 23, caput) sendo competência da entidade reguladora (em
toda aparência mais uma agência) editar normas relativas a todas estas dimensões (Art.
23, caput). Entretanto, garantida sua “independência decisória”, a entidade reguladora
decidirá com “transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade”.
À presente dissertação foi oportuna a promulgação da Lei 11.445/07, pela
possibilidade de contraponto, sob um dos seus critérios fundamentais de análise
jurídica: a democracia. Como se vê, esta não é uma característica importante para o
regime do saneamento.
3.5 DECISÕES NOS COMITÊS
Os Comitês de Bacia Hidrográfica permitem ampla discussão dos vários
assuntos sob sua competência, entre todos os interessados. Como classificam os
participantes já por seus interesses na gestão dos recursos hídricos, estes se tornam
claros e os conflitos se mostram para ser decididos pelos critérios políticos a serem
debatidos.
Os comitês têm corpos técnicos à sua disposição, além de contar com as
Agências de Bacia, suas secretarias executivas. Mas as decisões se dão pela discussão
aberta, não há submissão da política à técnica ou desta àquela. Um dos limites objetivos
para a aplicação da regra da maioria, segundo Bobbio, é exatamente a verdade técnica.
Pelo seu conteúdo, a ela não se aplica a decisão democrática, isto é, não se pode decidir
politicamente assuntos exclusivamente científicos. Entretanto este é delicadíssimo,
posto que, “no limite, o triunfo da tecnocracia seria a derrota total da democracia”95.
Por outro lado, a noção discursiva de democracia exige que os debates alcancem
maturidade e incluam os agentes não técnicos. A solução, nos Comitês, é o dito corpo de
assessores e as secretarias executivas. Sem impor suas razões científicas (razão
instrumental, com interesse no domínio, segundo Habermas), os corpos técnicos
informam os membros dos Comitês, de modo a permitir decisões mais firmemente
fundamentadas, sem abrir mão da representação de interesses.
A representatividade, nos Comitês, é próxima do que acima se descreveu como
representatividade de interesses parciais. Não se busca trazer para os Comitês um retrato
o mais fiel possível da sociedade, com as idiossincrasias e peculiaridades de cada grupo
social, organizado ou não. Trata-se de fazer presentes os interesses mais importantes e
relacionados com o tema da água, seu uso e a tutela da manutenção de sua qualidade e
quantidade.
Os Comitês, assim, se configuram como instituição para percepção e assimilação
das demandas sociais, de maneira que elas possam informar as decisões que nortearão o
desenvolvimento econômico.
95 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 445.
4 JUSTIÇA E DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTAÇÕES
JURÍDICAS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A função social da propriedade, tanto quanto outras locuções e princípios
constitucionais, é caracterizada por sua plasticidade semântica96, 97. Outro destes
termos é a democracia, ao qual se dará trato neste capítulo.
Estas expressões têm significados próprios, mas seus significados estão abertos a
interpretações que realizam sua atualização histórica. Cada aplicação destes princípios
os atualiza ao dotá-los de cargas substantivas e afetivas. Estas atualizações não excluem
outras, lícitas em aplicações noutros campos do direito ou até no mesmo âmbito, quer
sincrônicas, quer em tempos passados ou futuros. Há uma dinâmica própria na
concreção destes princípios e termos semanticamente maleáveis, o que é bastante
diferente, contudo, de considerá-los vazios. Dois são os processos que fixam seus
significados: a) a interpretação direta e harmonizadora do texto constitucional; e b) as
balizas dadas pelo ambiente histórico de sua interpretação e aplicação.
Estes processos são as energias que dão movimento e vida aos textos legais para
criar, a partir deles, as normas que ajudam a construir a sociabilidade típica do povo
brasileiro — como também ajudam a alterar esta tipicidade para alcançar novas e mais
justas relações. Os conflitos sociais se espelham nas divergências sobre os sentidos dos
princípios constitucionais e, mais especificamente, sobre a seleção destes sentidos a
partir de critérios de justiça — nem sempre explícitos.
É aí reside que uma das maiores dificuldades na crítica política às instituições, a
qual se repete na crítica ao ordenamento. A esta crítica usualmente subjaz um conceito
de justiça, mas poucas vezes ele é expresso, até mesmo pelo tanto que esta precisão
96 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 96 et seq.
97 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 18 et seq.
pode enfraquecer a argumentação98. É, mesmo implícito, este conceito de justiça que se
aplica ao ordenamento para dizer se é ou não adequado para fundamentar decisões
justas. Como também este conceito se contraporá às instituições para dizer se o seu
desenho as leva à produção de justiça social ou apenas repetem formas de dominação.
Juridicamente, o questionamento sobre a justiça deve se fazer dentro de
critérios próprios do ordenamento. No tema em pauta neste trabalho, viu-se a utilidade
de aplicar algum conceito de justiça à Política Nacional de Recursos Hídricos, pelo
quanto se enriqueceria a interpretação de dois de seus pontos fulcrais: a função social da
outorga de uso e a democracia das instituições de gestão de recursos hídricos.
Responder à primeira questão, sobre a justiça das múltiplas definições de função
social da propriedade, pressupõe enfrentar o mesmo problema de quem responde à
segunda questão, sobre a justiça das instituições que aplicam a Constituição e criam as
normas infraconstitucionais, concretas ou abstratas. Especificamente, a questão da
justiça deve se colocar na fonte da definição jurídica da função social, como também da
definição da democracia.
Não se trata de estabelecer um critério perene de justiça, alheio às vicissitudes da
história. O critério de justiça, em conformidade com o ordenamento brasileiro, não está
alheio à história, nem advêm do passado ou da tradição. Porque a Constituição obriga as
instituições brasileiras, a República brasileira, a construir “sociedade livre, justa e
solidária” (Art. 3º, I). A justiça futura, que para ser alcançada depende de esforços
contínuos, este é o conceito de justiça que deve, constitucionalmente deve, irrigar as
interpretações jurídicas atuais.
Eis o critério jurídico para crítica valorativa das normas do ordenamento,
entretanto ainda lhe falta substância. Os conflitos sociais se dão também por choque
entre modelos de sociedade justa, como pelos caminhos até a utopia — modelos que,
nunca é demais frisar, são legítimos enquanto correrem dentre as margens determinadas
98 PERELMAN, Chaïm. Teoria da Argumentação: a nova retórica. Nova Fronteira: São Paulo, 2000.
pela Constituição. Ocorre que estes modelos são todos válidos, portanto, o que não
auxilia na formulação de critério que estabeleça qual a validade dos conceitos de justiça
eventualmente propostos.
Há utilidade, para o desenvolvimento do trabalho, em qualificar os critérios de
justiça em formais, materiais ou procedimentais. Os critérios materiais, ou concretos,
têm conteúdo substantivo, como alguns dos apresentados por Perelman em sua análise
do tema: “a cada qual segundo seus méritos”99 ou “a cada qual a mesma coisa”100. Estas
formulações da justiça são fechadas, apresentam critério definido de antemão do que é
justo (o mérito ou a igualdade absoluta, nos exemplos acima).
Já os critérios formais envolvem uma formulação muito mais abstrata e
universal, aplicável a quaisquer casos que se apresentem, entretanto sua abertura
esclarece menos que os critérios materiais. O exemplo também advém de Perelman:
“princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser
tratados da mesma forma”.101 A terceira categoria proposta neste trabalho é a
procedimental. Com isto se quis referir as formulações que apontam a indicação do
justo a um procedimento ou instituição, como em: “justo é o que o Papa afirmar como
justo”. Não sendo tão fechadas quanto as formulações concretas, as procedimentais
garantem maior certeza que as meramente formais.
Saber da juridicidade da determinação da função social do uso de recursos
hídricos é problema que não se pode separar do questionamento (jurídico) sobre a
dinâmica institucional do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. As
análises dos dois objetos confluem, não há como separá-las uma da outra ou da questão
que as une — a justiça.
99 PERELMAN, Chaïm. A ética e o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 21.
100 Idem. ibidem, p. 20.
101 Idem. ibidem, p. 19.
4.1 HANS KELSEN
Dentro dos parâmetros estabelecidos pela teoria de Hans Kelsen, não se
considera a justiça como critério para crítica científica à norma jurídica — mesmo que
construída por critérios desta mesma ciência. As relações entre fatos e normas se dão em
outro nível, dentro do modelo kelseniano. O tema é estudado a partir de duas duplas de
conceitos: a) legitimidade e efetividade; e b) validade e eficácia. A primeira dupla se
refere ao ordenamento, incluindo-se aí as instituições criadas por ele, enquanto a
segunda se refere a normas singulares.
A Teoria Pura do Direito comporta duas possibilidades de interferência do
mundo dos fatos no ordenamento. A primeira é a análise do conflito contido entre
facticidade e validade, ou seja, a análise da influência da política (submetida pelo
ordenamento) na criação, ou aplicação, do direito. Ressalta-se que, para Hans Kelsen,
não se distinguem os atos de criação e aplicação, pois sempre que se cria uma
determinada norma válida está-se também aplicando o ordenamento superior a ela. Da
mesma forma, sempre que se aplica o ordenamento produzir-se-á norma concreta a
partir dele. Ou, “se deixarmos de lado os casos limite […] todo ato jurídico é
simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma,
de uma norma inferior”.102 Isto posto, à descrição kelseniana da facticidade na aplicação
das normas jurídicas.
Sem estabelecer um conteúdo normativo de justiça, Hans Kelsen aceita que ela,
em qualquer formulação racional ou afetiva, tenha influência na criação da norma
inferior a partir do quadro estabelecido pelas superiores. A aplicação do direito não é ato
isento de considerações alheias ao ordenamento, a interpretação erudita não é suficiente,
muito embora seja necessária. Seria impossível levar a cabo “a tarefa de que se propõe,
[confiando exclusivamente] nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas
102 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 253.
(certas)”.103 A aplicação do direito é processo que envolve dois cursos de ação, de
naturezas distintas, desembocando em um ato de conhecimento e o outro político.
O ato de conhecimento é a construção do “quadro normativo”, da “moldura da
norma jurídica”, isto é, do espaço de ações lícitas. A partir da interpretação racional do
ordenamento, dos silogismos jurídicos, o criador de normas estabelece seu campo de
possibilidades. A escolha dentre estas possibilidades é o ato de vontade, informado
inclusive pela idéia de justiça deste “interprete autêntico”104. As “normas de Justiça”
informam a decisão política, parte da determinação de conteúdo das normas jurídicas,
mas não são influenciadas pelo ordenamento senão no campo da retórica. À ciência
jurídica é possível discutir o ato de conhecimento, já que este se encontra exatamente
em seu campo de ação, mas nunca o ato de vontade — já que este é essencialmente
político, muito embora produza direito.
Assim, as energias sociais, as demandas ou pressões fáticas, elas encontram
canal institucional próprio — juridicamente válido. O espaço de decisão política na
criação da norma permite a validação jurídica do mundo extrajurídico. Ao mesmo
tempo, ela permite que o ordenamento se atualize continuamente, mantendo contato
com a realidade social. Reconhecendo-se que as citadas energias sociais nunca são
unívocas, porém fruto de conflitos entre grupos sociais antagônicos ou entre a
hegemonia social e interpretação ultrapassada da norma superior, a criação da norma
inferior contém os citados conflitos ao absorver sua solução no ordenamento.
Antes de se formalizar em norma, a solução se civiliza em justiça; ou, noutros
termos, como passo para a adequação ao ordenamento, a solução deve se adequar aos
valores nele contidos. A justiça aparece como interface entre facticidade e validade.
A análise mais global é a do conflito incontido entre validade e facticidade. Esta
descrição da justiça é estabelecida a partir do confronto em que “o princípio da
103 Idem. Ibidem. p. 368.
104 Idem. Ibidem. p. 369.
legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade”105, ou seja, o choque entre a
norma posta e a realidade social. Nos termos kelsenianos, a legitimidade de uma norma,
mesmo uma emenda constitucional, é dada pela efetividade do ordenamento pré-
existente, ou, no caso específico de uma nova constituição, pela falta desta efetividade.
Havendo condições políticas de manutenção do ordenamento, sendo ele ainda efetivo
(aplicado coercitivamente com perspectiva de alcance universal), também serão
legítimas suas normas particulares. Ausentes estas condições, ou presentes as condições
de efetividade de outra Constituição, a anterior perde legitimidade.
Entretanto a teoria de Hans Kelsen é infinitamente mais sofisticada que a mera
redução do direito à força, ou da validade à efetividade, produz “a formulação
cientificamente exata da antiga verdade de que o Direito não pode, na verdade, existir
sem a força, mas que, no entanto, não se identifica com ela. É [...] uma determinada
ordem (ou ordenação) do poder”.106
Como referido acima, os termos efetividade e legitimidade, aplicados na análise
do conjunto do ordenamento, são então substituídos por eficácia e validade na análise,
mais miúda, sobre normas. Contudo mantém-se a mesma dicotomia, objeto da
investigação em curso, entre facticidade e validade, entre o socialmente justo e o
juridicamente correto. A validade tem critérios próprios, advindos do ordenamento e
analisáveis a partir de elementos formais — a validade pertence ao mundo do dever-ser.
A eficácia é social, formulada como a característica da norma que é, ao mesmo tempo,
obedecida e não aplicada, desobedecida e aplicada — pertence ao mundo do ser. A
eficácia é condição da validade, porém nunca seu fundamento. Todavia, a “eficácia é
condição no sentido de que uma ordem jurídica como um todo eu uma norma jurídica
singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes”.107
105 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 226.
106 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 232.
107 Idem. ibidem, p. 320.
As vicissitudes do cotidiano, as relações sociais, a vida, como visto acima, tem
duas largas entradas na enseada jurídica. Por um lado, não há norma que se crie senão
sob impacto da política, da facticidade, porém enquanto o ordenamento for efetivo este
influxo é subordinado aos critérios de validade — primeiro o ato de conhecimento,
depois, complementarmente, o ato político. Por outro lado, a eficácia se impõe requisito
da norma, de sua validade, porém o fundamento desta validade não se encontra na vida,
senão no próprio ordenamento.
Há um canal para a facticidade dar vida ao ordenamento — ou construir outro,
mais legítimo. A estrutura kelseniana aponta para a necessidade do aplicador/criador das
normas continuar tomando decisões políticas afinadas com a facticidade. Quando se
afasta da sua fonte, as normas que cria perdem eficácia, o ordenamento inteiro seca, se
enfraquece e rui. Aproxima-se, assim, do elogio à democracia pela sua estabilidade,
afinal de contas “‘Justiça’ significa a manutenção de uma ordem positiva através de sua
aplicação escrupulosa”.108
Para além da Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen analisa o que chama os “tipos
de constituição”: autocracia e democracia. Seu fundamento para a democracia é a
liberdade. Adotando-a como critério para distinção entre um tipo e outro, afirma que “a
liberdade política, isto é, a liberdade sob a ordem social, é a autodeterminação do
indivíduo por meio da participação na criação da ordem social”109, participação esta que
se dá na democracia. Na autocracia haveria “escravidão”, pois “os sujeitos estão
excluídos da criação da ordem jurídica, e a harmonia entre a ordem e as suas vontades
não é garantida de modo algum”.110 Enquanto a democracia garante liberdade, ela
também garante estabilidade, exatamente por garantir a harmonia entre a ordem e a
vontade individual.
108 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 21.
109 Idem. ibidem, p. 279.
110 Idem. ibidem, p. 278.
Ressalta que o tipo ideal de democracia é a direta, deplorando que esta forma é
impossível senão em assembléias pequenas e indicando o caminho inexorável da
representação. Entretanto, a representação pela maioria inclui problemas inescapáveis
para a construção da paz, pois aí “o conceito de justiça transforma-se […] em ordem
social que protege determinados interesses, ou seja, aqueles que são reconhecidos como
dignos dessa proteção pela maioria dos subordinados a essa ordem”.111
Finda esta pequena incursão nos conceitos apresentados e organizados por Hans
Kelsen, já se tem, a partir de sua obra, um norte para as questões do presente trabalho: a
democracia é o caminho para a legitimidade, para a manutenção da efetividade do
ordenamento. Mas qual democracia? Muito embora se descrevam rudimentos de uma
teoria da constituição democrática, as relações entre facticidade e validade não são
objeto da Teoria Pura, não sendo descritas senão pelos prismas apontados acima. Não se
apresenta, tão pouco, um modelo prescritivo de democracia, com requisitos mínimos
para a classificação de regimes existentes.
Assim, numa análise estritamente kelseniana, quaisquer usos prescritos pelos
Comitês de Bacia para os corpos d’água sob sua competência, desde que usos
compatíveis com os mandamentos dos níveis superiores do ordenamento, seriam válidos
— supondo efetivo o ordenamento que lhe deu esta competência. Quanto à justiça, ela é
na democracia a justiça da maioria, dos interesses da maioria.
4.2 JÜRGEN HABERMAS
Jürgen Habermas desenvolve extensivamente as imbricações entre facticidade e
validade ao longo de obra de utilidade capital para o presente estudo112. Mesmo assim,
foi também necessária a referência a outros trabalhos do mesmo autor ou de seus
comentadores mais voltados para os temas aqui presentes.
111 KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 4.
112 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
Antes de tomar o problema específico do fundamento da democracia e da
justiça, será útil ganhar alguma familiaridade com a teoria do agir comunicativo, ainda
que superficialmente. O primeiro conceito a ser compreendido é o de mundo da vida
— lebenswelt, no original. É o espaço onde se dá a existência humana, em geral, e
especialmente onde se dão suas interações, vistas como atos de comunicação. As
comunicações se dão em três níveis, sempre: a) o mundo das coisas, da matéria; b) o
mundo das normas sociais, das estruturas sociais, não necessariamente jurídicas; e c) o
mundo pessoal, onde se desenrolam os eventos psicológicos ou existenciais de cada
indivíduo.
Cada comunicação expõe as verdades do sujeito que comunica, no tocante à sua
concepção do mundo das coisas, como também certa coerência existencial, ou seja,
aquela tocante ao seu mundo pessoal, além das normas e valores aos quais se submete.
Para esta comunicação ser considerada válida, ela deve atender a estas três dimensões
da “verdade proposicional, da veracidade subjetiva e da correção normativa”.113 Ainda
não se trata especificamente de validade jurídica, mas da avaliação que os outros
sujeitos fazem das comunicações de cada um. Assim, descarta-se como inválida a
comunicação mentirosa (quanto ao mundo das coisas), inverossímil (inconsistente com
vida daquele que comunica), ou incorreta (contrária aos valores e normas sociais). Estes
critérios de validade das comunicações, isto é, as objetividades, as subjetividades e as
instituições do mundo da vida, são aquilo que no Capítulo Primeiro desta dissertação se
chamou de princípios epistemológicos.
Assim como há comunicações que funcionam submetidas a estes critérios,
também há comunicações sobre eles. Tanto num como noutro caso Jürgen Habermas
afirma ser possível pressupor o objetivo de entendimento mútuo entre os sujeitos,
chamando às comunicações com este objetivo real de ações comunicativas, em
contraposição às ações estratégicas, realizadas apenas como meio para um fim distinto
dela. Nas ações estratégicas a parte se utiliza da comunicação para algum fim, que
pode ser até mesmo ausente da situação, mas a boa-fé implícita no ato de comunicar-se
113 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 21.
permanece. A ação estratégica referida anteriormente é orientada para o sucesso e nela
se estabelece uma relação sujeito-objeto. O agente vê todos os outros componentes da
situação como objetos, mesmo outros sujeitos. Enquanto isto, a ação comunicativa é
orientada para a compreensão mútua e as relações são estabelecidas na perspectiva
sujeito-sujeito.
Pelos critérios de validade se estabelece a crítica às falas dos atores na
sociedade. Assim se podem criticar as comunicações das empresas, dos líderes
sindicais, dos partidos ou tendências políticas e do Estado. O autor dá o nome específico
de discurso (Diskurs) à comunicação que busca afirmar “pretensões de validade”. Este
tipo de comunicação é de importância nuclear para a teoria de Jürgen Habermas, pois é
ele que, se realizado sempre em situação ideal de fala, garante a possibilidade de crítica
social mais profunda. No Diskurs é possível discutir os critérios para a crítica à
comunicação, nos seus três níveis.
Haverá, como já afirmado no Capítulo Primeiro, crescente esclarecimento
quanto mais próxima estiver a sociedade da situação ideal de fala — com este
esclarecimento advindo a proporcional emancipação. Com liberdade para abordar
qualquer assunto e discuti-lo sem qualquer coação, dispondo do conhecimento
acumulado e de tempo ilimitado, sujeitos em pé de igualdade poderiam criticar tanto as
falas quanto os critérios de validade apresentados uns aos outros. Assim se libertariam
de toda e qualquer amarra ideológica e correspondente opressão social, inclusive sendo
capazes de estabelecer critério de justiça aplicável a si mesmos.
Após o excurso conceitual, retorne-se o leme ao principal. Jürgen Habermas
apresenta dois fundamentos tradicionais para a legitimidade, o liberal e o
republicano114, complementarmente, associa a estes modelos também suas perspectivas
sobre a eficácia do ordenamento. Como já se viu em Hans Kelsen, o fundamento para a
legitimidade ou a validade não se confunde com a efetividade ou a eficácia.
114 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
No pensamento liberal a legitimidade se funda na liberdade, mormente a
liberdade econômica. Assim, o Estado e o ordenamento fundam sua legitimidade pela
manutenção da dos direitos (ou liberdades) fundamentais. Enquanto houver garantia do
exercício destes direitos há legitimidade. Como se trata de direitos no sentido de
liberdades, apenas se tomam os direitos fundamentais no sentido negativo, mencionado
no Capítulo Segundo. A eficácia, dentro desta perspectiva, é dada inteiramente pela
aplicação coercitiva do ordenamento pelo Estado.
Nas teorias de matiz republicano trata-se de manter, criar ou recriar a
comunidade política. Embora em contexto distinto, Canotilho ensina que a legitimidade
republicana funda-se no “compromisso ético-político referente a uma identidade
colectiva no seio da comunidade”.115 Enquanto houver garantias de manutenção da
comunidade, haveria legitimidade, entretanto esta manutenção é qualificada pela ação
estatal para a garantia dos direitos no sentido positivo. Nesta perspectiva a eficácia é
reforçada pela intensa adesão dos sujeitos à estrutura cultural e institucional da
comunidade.
A generalização da ação comunicativa (que visa o entendimento) favorece o
afloramento de intensa adesão a normas sociais, valores e ideais de justiça, os quais se
tornam coerentes e coesos pelo mesmo processo de comunicação em situação ideal de
fala. Neste ambiente cultural seria previsível a pouca necessidade de aplicação
coercitiva de sanções jurídicas pelo Estado, já que as sanções sociais seriam
particularmente efetivas.
A generalização da ação estratégica (que visa o sucesso) favorece
relacionamentos menos pautados por uma ética específica. A liberdade em relação às
balizas culturais, e mesmo a baixa confiabilidade das comunicações alheias, leva à
necessidade de maior firmeza na aplicação das sanções jurídicas pelo Estado.
115 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 1321.
Jürgen Habermas afirma que sociedades complexas precisam das duas fontes de
eficácia. Elas não podem se fiar apenas na validade (comunicativa) das normas porque
nelas se confrontam culturas bastante variadas, relacionando-se de muitas formas, desde
aberto antagonismo até sincretismos múltiplos. Nesta situação, as instituições e normas
ganham legitimidade na medida em que incorporam a “razão comunicativa”,116 a
perspectiva de discussão em busca do entendimento, aliada à aplicação coercitiva das
normas.
Dadas estas condições específicas, persiste o problema da construção de ideal
substantivo de justiça, o qual daria unidade material de significado ao ordenamento.
Considere-se quanto a este propósito a situação ideal de fala, com sujeitos esclarecidos e
emancipados. A idéia não aponta para um conceito estático de justiça, antes aponta para
um ideal procedimental e, sobretudo, para uma situação de construção democrática da
justiça. A situação ideal de fala não apenas é compatível com os objetivos da República
brasileira como dá unidade de significados aos pontos aqui destacados na Política
Nacional de Recursos Hídricos.
Jürgen Habermas resolve o problema da justiça das normas deslocando-o para a
legitimidade das instituições que as criam e aplicam. O movimento não é original,
vendo-se em Weber, por exemplo, um precedente117 bastante comentado. Entretanto não
dá carta branca às instituições (como faz Hans Kelsen), não são quaisquer instituições
que, alcançando efetividade, têm legitimidade. Qualifica estas instituições, afirmando
legítimas apenas aquelas que permitem comunicações livres entre iguais em processo de
esclarecimento e emancipação. Fundamenta a legitimidade em uma teoria comunicativa
bastante sofisticada,
De acordo com o princípio [da democracia segundo a teoria] do
discurso, podem pretender validade as normas que poderiam encontrar
116 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
117 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 150.
o assentimento de todos os potencialmente atingidos, na medida em
que estes participam de discursos racionais. Os direitos políticos
procurados têm que garantir, por isso, a participação de todos nos
processos de deliberação e de decisão relevantes para a legislação, de
modo a que a liberdade comunicativa de cada um possa vir
simetricamente à tona, ou seja, a liberdade de tomar posição em
relação a pretensões de validade criticáveis.118
Embora se identificando pela estreita ligação entre legitimidade e validade nas
duas obras, nota-se que por cursos bastante diversos correm as teorias de Hans Kelsen e
Jürgen Habermas. Neste último as normas são entendidas como comunicação, não como
enunciados imperativos distintos da situação fática, como no primeiro. Ao descrever a
norma como discurso, Jürgen Habermas não pode deixar de considerar as
condicionantes sociais de sua produção, como também e principalmente de sua
aplicação. Para Hans Kelsen importa exclusivamente que o ordenamento seja efetivo,
para então declará-lo legítimo; para Jürgen Habermas importa especular como o
ordenamento se torna efetivo.
Esclareça-se, antes de prosseguir, o conceito habermasiano de facticidade, como
também as relações entre seu significado e o da efetividade kelseniana. Facticidade é
idéia que se liga ao mundo da vida. Quando o autor se refere à facticidade ele está se
reportando ao mundo material onde se desenvolvem os eventos que constituem a
realidade social. No âmbito da facticidade é que se configura a efetividade.
A análise da validade da norma, para Hans Kelsen, tem fundamento exclusivo no
próprio ordenamento, se bem tem por requisito a eficácia (a qual também se desenvolve
no universo fático). Para Jürgen Habermas os critérios de validade são fáticos, ou “o que
é válido precisa estar em condições de comprovar-se contra as objeções apresentadas
factualmente”. Objeções que, já se viu, pertencem ao mundo da vida. Em Hans Kelsen o
juízo de validade se refere sempre à norma. A legitimidade se refere ao ordenamento —
que se identifica com as instituições. Para Jürgen Habermas os mesmos critérios de
118 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 164.
validade podem se aplicar às instituições e, de maneira um tanto complexa, a validade
das instituições se comunica com a validade das normas.
A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para
dois lados: De um lado, a carga da legitimação da normatização
jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os
procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade,
institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da
liberdade comunicativa significa também que o direito é levado a
explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor.119 (sic).
O escrutínio da facticidade, buscando a validade das instituições pela
comunicação esclarecida e emancipada entre os sujeitos, vai garantindo também a
validade e a eficácia das normas. É que quanto maior a legitimidade das instituições
(sua validade), maior também a eficácia, já que menos combatida será a aplicação
coercitiva do ordenamento.
De maneira bastante simplificada, quanto maior a abertura institucional, quanto
mais democráticas forem as instituições, maior a certeza de ampla comunicação sobre
as normas que irão criar e aplicar. As instituições serão mais justas quanto mais
democráticas — tomando por critério de democracia a abertura para participação na
discussão sobre as decisões que irá tomar. As normas serão mais justas quanto maior sua
aceitação discursiva — tomando por critério a adesão pela população esclarecida e
emancipada.
Segundo explica a teoria de Jürgen Habermas, a democracia das instituições
garante a eficácia das suas decisões.
Os Comitês de Bacia Hidrográfica são mais radicalmente democráticos que o
Legislativo. Disto não decorre que suas normas sejam hierarquicamente superiores,
pelos critérios formais da hierarquia do ordenamento, porém garante que são também
119 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 168.
mais eficazes. A determinação da função social das outorgas de direito de uso de
recursos hídricos deriva da democracia institucional sua justiça — como também deriva
do ordenamento sua validade formal.
CONCLUSÃO
No início do trabalho se propôs que a interpretação harmonizadora de justiça,
democracia e função social pode enriquecer o significado dos três conceitos
constitucionais, como também se propôs que os significados reciprocamente referidos
são úteis para a interpretação da Política Nacional de Recursos Hídricos conforme a
Constituição da República, posto que a estrutura de decisão do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos aponta o sentido que as demandas sociais desejam
dar ao desenvolvimento econômico e à mudança social. Como também que seria
inconstitucional a decisão sobre outorga ou cobrança pelo uso de recursos hídricos
se: a) a norma não atentar para a função social do uso da água; b) a instituição que
a criou não for democrática; e c) seus efeitos não forem de criação de sociedade
justa, ou não for justa a distribuição social do poder no órgão decisório.
Analisaram-se questões fulcrais do regime dos recursos hídricos, desenhando-se
concepção da outorga (como de sua respectiva cobrança) plenamente compatível com a
idéia de função social do uso da água. Os usos econômicos dos recursos hídricos são
vários, podendo-se determinar, de antemão, quais serão mais adequados para cada corpo
de água. Os principais critérios seriam o quão consuntivos são estes usos; o quão
poluidores; e qual a agressividade da intervenção ambiental necessária. É clara questão
de justiça determinar, em cada caso, o equilíbrio entre as interferências no meio-
ambiente e os ganhos econômicos e sociais decorrentes do uso proposto. A função
social do uso privado do recurso hídrico seria a mais justa para a sociedade — titular
última do bem público.
Vê-se fundamental a determinação da justiça para o preenchimento do
significado de função social. De particular importância é a fixação de significado para o
termo no Art. 3º, I, da Constituição da República (“sociedade livre, justa e solidária”).
Observou-se então a característica democrática da regulamentação da tomada de
decisão, pelos Comitês de Bacia Hidrográfica, sobre o planejamento do uso
economicamente relevante dos recursos hídricos. Pode-se ver a maneira como flui a
representatividade pelo Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,
alcançando seus principais órgãos decisórios e insuflando suas normas com a
legitimidade decorrente da proximidade com os anseios sociais.
Pelos conceitos presentes na obra de Jürgen Habermas foi possível concluir que
a democracia é o caminho constitucional para a manutenção da legitimidade do
ordenamento, como de sua eficácia. Discutiu-se a idéia de justiça tanto a partir da obra
de Jürgen Habermas quanto de Hans Kelsen, para analisar a possibilidade de adoção do
significado habermasiano e sua compatibilidade com as interpretações usuais do
ordenamento brasileiro e de sua Constituição. A concepção adotada é a de justiça como
ideal atualizado pela democracia — quanto mais democrática a sociedade, mais justas
seriam suas decisões, posto que mais equilibrados estariam os argumentos dos vários
agentes sociais. Justiça, assim, tem mais a ver com a garantia de processos sociais de
decisão que com a fixação de ideais platônicos.
A partir da concepção proposta de justiça, pode-se interpretar a determinação da
função social do uso dos recursos hídricos de forma a manter o ordenamento aberto,
para que as demandas sociais possam ditar o ritmo e o caminho para o desenvolvimento
econômico e para as mudanças na própria sociedade. O uso da água será mais
compatível com sua função social quanto mais justo for, para a sociedade como um
todo. A justiça se determina pelo quão permeável o processo decisório foi para a
democracia.
Daí que será inconstitucional a decisão sobre outorga ou cobrança pelo uso de
recursos hídricos se: a) a norma não atentar para a função social do uso da água; b) a
instituição que a criou não for democrática; e c) seus efeitos não forem de criação de
sociedade justa, ou não for justa a distribuição social do poder no órgão decisório.
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