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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA LUIZ MARCELLO DE ALMEIDA PEREIRA DEMOCRACIA E USO DA ÁGUA: O IDEAL CONSTITUCIONAL DE JUSTIÇA COMO NORTE PARA DECISÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A MUDANÇA SOCIAL MARÍLIA 2006

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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA

LUIZ MARCELLO DE ALMEIDA PEREIRA

DEMOCRACIA E USO DA ÁGUA:

O IDEAL CONSTITUCIONAL DE JUSTIÇA COMO

NORTE PARA DECISÕES SOBRE

O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A MUDANÇA SOCIAL

MARÍLIA

2006

LUIZ MARCELLO DE ALMEIDA PEREIRA

DEMOCRACIA E USO DA ÁGUA:

O IDEAL CONSTITUCIONAL DE JUSTIÇA COMO

NORTE PARA DECISÕES SOBRE

O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A MUDANÇA SOCIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito, sob orientação do Profa. Dra. Marlene Kempfer Bassoli.

MARÍLIA

2006

Autor: Luiz Marcello de Almeida Pereira

Título: Democracia e uso da água: o ideal constitucional de justiça como norte para

decisões sobre o desenvolvimento econômico e a mudança social

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de

Marília, área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e

Mudança Social, sob a orientação do Profa. Dra. Marlene Kempfer Bassoli.

Aprovado pela Banca Examinadora em ____/____/______

_________________________________________

Profa. Dra. Orientadora

__________________________________________

Prof.(a) Dr.(a)

__________________________________________

Prof.(a) Dr.(a)

Dedico este trabalho aos meus pais, Joaquim e Regina, pois se pude escrever sobre valores foi porque os mais nobres e arraigados me foram transmitidos na formação; e à Maria Lúcia, porque seus olhos me ensinam tudo que vale a pena.

Agradeço à professora Marlene, pelas generosas disponibilidade, sensibilidade e inteligência, sem as quais este trabalho não seria assim; à Maria Lúcia, por demonstrar amor das mais maravilhosas formas; às surpresas, obstáculos e dádivas do tempo, por me desviarem e imporem novas escolhas, porque sem isto o trabalho também seria diferente; à Andréia Regina e ao Joaquim, por lerem e opinarem; aos mesmos, à Regina e à Júlia, pela alegria em partilhar sabedoria comigo; às pessoas que foram importantíssimas em outras fases da minha vida, por tudo o quanto me ensinaram; à Regina, pela competência e simpatia; aos que escreveram, compuseram ou criaram obras belíssimas e profundas, das quais pude me aproveitar para a reflexão, a contemplação e a dança; ao Camillo, pelo apoio silencioso; e a todos que assumiram neutralidade.

When yer head gets twisted and yer mind grows numb When you think you're too old, too young, too smart or too dumb

And yer good gal leaves and she's long gone a-flying And yer heart feels sick like fish when they're fryin'

And you say to yourself just what am I doin' Why am I walking, where am I running

In this ocean of hours I'm all the time drinkin' And you need something special

No, but that ain't yer game, it ain't even yer race You can't hear yer name, you can't see yer face

You gotta look some other place And where do you look for this hope that yer seekin'

Where do you look for this oil well gushin'

Your feet can only walk down two kinds of roads Your eyes can only look through two kinds of windows

Your nose can only smell two kinds of hallways You can touch and twist

And turn two kinds of doorknobs You can either go to the church of your choice

Or you can go to Brooklyn State Hospital You'll find God in the church of your choice

You'll find Woody Guthrie in Brooklyn State Hospital

And though it's only my opinion I may be right or wrong

You'll find them both In the Grand Canyon

At sundown (Bob Dylan)

DEMOCRACIA E USO DA ÁGUA:

O IDEAL CONSTITUCIONAL DE JUSTIÇA COMO

NORTE PARA DECISÕES SOBRE

O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A MUDANÇA SOCIAL

Resumo:

O trabalho propõe solução interpretativa para a aplicação do princípio da função social ao uso econômico dos recursos hídricos, passando pelos princípios constitucionais da democracia institucional e da justiça social como finalidade da República. O repertório conceitual da obra do filósofo Jürgen Habermas é utilizado para apontar possibilidade de interpretação dos imperativos constitucionais da democracia e da construção de sociedade justa, de forma a permitir que seus conteúdos se influenciem reciprocamente. A partir desta relação cria-se norma dinâmica de justiça, a qual poderá informar as discussões e decisões sobre outorga de recursos hídricos. Analisam-se os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, principalmente a outorga e sua respectiva cobrança, o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e sua perspectiva democrática. Conclui-se que será inconstitucional a decisão sobre outorga ou cobrança pelo uso de recursos hídricos se: a) a norma não atentar para a função social do uso da água; b) a instituição que a criou não for democrática; e c) seus efeitos não forem de criação de sociedade justa, ou não for justa a distribuição social do poder no órgão decisório.

Palavras-chave: água; democracia; desenvolvimento econômico.

DEMOCRACY AND THE USE OF WATER:

THE CONSTITUCIONAL IDEAL OF JUSTICE AS

A GUIDELINE FOR DECISIONS ABOUT

ECONOMIC DEVELOPMENT AND SOCIAL CHANGE

Abstract:

This work proposes an interpretative solution for the application of the principle of social function to the economic usage of water resources. The concepts present in Jürgen Habermas works are used to support a possible interpretation of the constitutional principles of democracy and the building of a society ruled by justice. From this on, it is proposed a dynamic essence for justice, which may be used in debates towards decisions about the usage of water resources. The instruments of the Water Resources National Policy are analyzed, mainly the authorization for usage and the proportion of pay, the National System for Management of Water Resources and its democracy rules. The conclusion is that any decision about water use is unconstitutional if: a) the norm doesn’t obey the principle of social function of the propriety; b) the institution which originated the decision is not a democratic one; e c) the effect of the decision is not to build a society with justice, the distribution of power in the decision making institution is not one with justice.

Keywords: water; democracy; economic development.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9 1 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS 15 1.1 FINALIDADE 16 1.2 ESTRUTURA COGNITIVA 21 1.3 TIPOS DE CONFIRMAÇÃO 23 2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS 25 2.1 BENS PÚBLICOS 31 2.2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS ENQUANTO BENS ECONÔMICOS 33 2.3 DIREITO DIFUSO 36 2.3.1 Evolução das noções de titularidade e legitimidade durante a modernidade 37 2.4 DOMÍNIO DA ÁGUA 49 2.5 USO DOS RECURSOS HÍDRICOS: OUTORGA E COBRANÇA 50 2.5.1 Cobrança gera internaliazação de externalidades negativas 61 2.5.1 Função Social da Outorga 64 3 POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS 66 3.1 SISTEMA NACIONAL DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS: BREVES GENERALIDADES 67 3.2 PLANOS DE RECURSOS HÍDRICOS 68 3.2.1 Os Planos e o Ordenamento 71 3.3 DEMOCRACIA: CONCEITUAÇÃO E REGRAS GERAIS 76 3.3.1 Teorias da Democracia 79 3.4 DEMOCRACIA: DESCRIÇÃO INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS DECISÓRIOS DO SISTEMA 80 3.4.1 Contraponto: a regulação do serviço público de saneamento básico 83 3.5 DECISÕES NOS COMITÊS 88 4 JUSTIÇA E DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTAÇÕES JURÍDICAS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE 90 4.1 HANS KELSEN 93 4.2 JÜRGEN HABERMAS 98 CONCLUSÃO 105 REFERÊNCIAS 107

INTRODUÇÃO

A Lei Federal 9.433/97 regulamentou o Art. 21, XIX, da Constituição da

República, estabelecendo a Política Nacional de Recursos Hídricos.

Esta política se constitui, por um lado, de um regime jurídico específico para o

uso dos recursos hídricos e, por outro lado, de uma estrutura institucional para a gestão

destes recursos. Para consecução de seus objetivos, o regime prevê instrumentos como

os Planos de Recursos Hídricos, que contém o enquadramento dos corpos d’água e se

baseiam num sistema de informações sobre o assunto, bem como na outorga dos direitos

ao uso da água e sua respectiva cobrança.

A estrutura institucional prevê um Conselho Nacional de Recursos Hídricos,

prevê Conselhos Estaduais e prevê Comitês de Bacia Hidrográfica, além das respectivas

Agências e das estruturas executivas. Também prevê a Agência Nacional de Recursos

Hídricos.

Assim, por um lado tem-se o regime da água propriamente dito, e por outro o

regime das instituições destinadas a criar e aplicar o primeiro. Tanto um quanto o outro

estão imersos no ordenamento brasileiro e subordinados à Constituição da República,

conforme a qual devem ser interpretados.

* * *

Foi comum pensar-se no Direito Ambiental a partir de uma situação idealizada,

na qual a crescente produção industrial se chocaria com os imperativos de conservação

do ambiente. Essa maneira de ver o problema leva a um dilema, estando, de um lado, as

crescentes demandas sociais por energia, serviços e produtos, e, do outro lado, o esforço

pela conservação da natureza, intacta. Assim seria forçoso concluir pela necessidade de

sacrificar a inútil beleza dos ecossistemas intocados, em prol da alimentação e provisão

de condições de vida digna a seres humanos.

Essa idealização, entretanto não se sustentou, levando o dilema entre a produção

e a conservação a ser superado por outro enfoque. Tal enfoque: os modelos em choque

hodiernamente são, por um lado, os de produção responsável e, por outro lado, a

produção desonerada de obrigações sociais. Desonerada inclusive quanto ao meio

ambiente.

Para superar essas opções, a formalização jurídica aponta para um regime de

maior liberdade, com amplo acesso ao uso dos recursos ambientais, ao lado da

desoneração, ou um regime com maiores limites ao uso destes recursos. Em termos

constitucionais, trata-se de equilibrar os princípios da livre iniciativa e os da supremacia

do interesse social, tendo por fiel o princípio da função social da propriedade. Portanto,

juridicamente, este se impõe como primeiro conceito a ser estudado, para aproximar-se

de uma compreensão mais adequada do impasse.

As decisões pois sobre a outorga e a cobrança pelo uso da água são tomadas pela

estrutura institucional mencionada acima, qual seja o Sistema Nacional de

Gerenciamento de Recursos Hídricos. O regime de tomada de decisões institucionais é

informado pelo princípio constitucional da democracia. Portanto impõe se a análise de

um segundo conceito constitucional, que se verá, bem como sua aplicação à Política

Nacional de Recursos Hídricos.

Quanto ao uso da água, poderão ocorrer dois comportamentos: regime de maior

responsabilidade, ou regime de maior liberdade. A opção entre maior ou menor

responsabilidade no uso da água é uma questão de justiça, ou seja, se é mais justo um

regime de maior responsabilidade ou outro de maior liberdade. As instituições que

criarão e aplicarão esses regimes, obrigatoriamente democráticas, terão seu desenho

criado autonomamente em cada Estado ou Bacia Hidrográfica. Assim, cada Estado ou

Bacia Hidrográfica autonomamente tomarão decisões sobre este desenho, mormente

sobre sua composição, os critérios de eleição, o estatuto interno de tomada de decisão e

o equilíbrio entre forças sociais. A avaliação dessas instituições também é uma questão

de justiça. Elas devem ser justas para que possam tomar decisões justas. Daí o terceiro

conceito constitucional relevante para o estudo, a justiça.

Para este intento, efetua se interpretação harmonizadora da Constituição, a qual

tem por resultado a proposição de ponto de conexão entre os dois primeiros conceitos,

operada pela introdução do terceiro. Trata-se de apontar modelo de democracia em que

as demandas da sociedade brasileira encontram arena institucional capaz de as traduzir

em propostas formalizadas de desenvolvimento econômico e mudança social. Os

recursos hídricos, pela universalidade de seu uso tanto no cotidiano da população

quanto nos empreendimentos econômicos, constituem incontornável objeto para a

regulamentação do desenvolvimento econômico e social brasileiros.

O que se propõe é que a interpretação harmonizadora de justiça, democracia e

função social pode enriquecer o significado dos três conceitos constitucionais, como

também se propõe que os significados reciprocamente referidos são úteis para a

interpretação da Política Nacional de Recursos Hídricos conforme a Constituição da

República. Por último, propõe-se que será inconstitucional a decisão sobre outorga

ou cobrança pelo uso de recursos hídricos se: a) a norma não atentar para a função

social do uso da água; b) a instituição que a criou não for democrática; e c) seus

efeitos não forem de criação de sociedade justa, ou não for justa a distribuição

social do poder no órgão decisório.

* * *

A água é necessária para a economia nacional, aliás, em qualquer situação,

histórica ou geográfica, na qual se conceba a produção de bens economicamente

relevantes, ela é indispensável. A vida e a dignidade da pessoa humana são

soberanamente importantes para a Constituição, o que simplifica a interpretação do

ordenamento para a formulação de decisão sobre a utilização de qualquer bem — não há

uso legítimo que ataque a vida ou a dignidade humanas. Aqui, entretanto, busca-se

desvendar a possibilidade de avaliação comparativa entre diferentes usos

economicamente relevantes (e juridicamente possíveis) dos recursos em questão,

mormente porque esta questão permite perquirir também sobre as estruturas

democráticas da Política Nacional de Recursos Hídricos.

Tanto a ponderação axiológica da função social dos usos econômicos dos

recursos hídricos, quanto da democracia das instituições que o gerem, se aproveitam da

determinação de um peso axiológico específico: a justiça. Os dois primeiros princípios,

na sua aplicação, devem ser ponderados em conjunto com outros. O que se propõe é que

a justiça, como ente axiológico, será útil tanto para a dita ponderação, para a avaliação

destes princípios, como também para determinar seus significados. A inclusão deste

valor é o caminho para a proposição de canal de comunicação entre os instrumentos e as

instituições referentes à água. A partir do primeiro objetivo da República, a construção

de sociedade “livre, justa e solidária” (Art. 3º, I, da Constituição), buscou-se interpretar

a legislação, de maneira a criar significados compatíveis com o nível constitucional do

ordenamento. Mal comparando, a justiça seria a luz da “relatividade constitucional”

entre a democracia e a função social, permitindo a determinação de seus conteúdos,

proporcionando maior densidade aos conceitos.

Para a realização do intento, primeiro, é necessário apresentar os dois vértices do

problema, quais sejam, a função social da outorga de recursos hídricos e a dinâmica

democrática das instituições do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos

Hídricos. Se constitucionalmente a justiça é essencial para dar unidade à Política

Nacional de Recursos Hídricos, no nível legal esta comunicação se dá a partir dos

Planos de Recursos Hídricos, formulados pelos órgãos institucionais e meios formais

para o estabelecimento dos critérios para as outorgas e cobranças. Daí a análise especial

destes instrumentos.

Assim, há três problemas incidentais. O primeiro é a aplicabilidade do

princípio da função social da propriedade à outorga de uso de água, como também à

cobrança daí decorrente. Daí a necessidade de se estudar o regime da água propriamente

dita, o que se realiza no segundo capítulo. O segundo problema incidental envolve o

Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e as garantias de sua

democracia, o que se estuda no terceiro capítulo. O terceiro é estudado no quarto

capítulo, envolvendo as relações entre justiça e democracia e entre justiça e função

social da propriedade.

As outorgas serão validamente concedidas se concordantes com o ordenamento,

tanto com seu nível constitucional quanto com o legal. As instituições serão legítimas

para tomar as decisões se suas competências forem levadas a cabo de maneira também

concordante com o ordenamento. Tanto as outorgas devem estar de acordo com a

função social dos recursos hídricos, quanto as instituições devem se deixar permear pela

democracia.

A função social da propriedade é imperativo constitucional, está explícita nos

artigos 5º, XXIII; 170, III; 170, § 1º, I;180, § 2º; 184; 185, parágrafo único; e 196. Em

cada um destes casos seu significado deve ser precisado pelo interprete e esta

dissertação propõe que, no caso específico de sua aplicação com relação aos recursos

hídricos, seja útil pensar nela a partir de concepção da justiça assinalada no Art. 3º, I, da

Constituição da República.

A democracia está presente expressamente em várias flexões na Constituição.

Por conhecidos motivos históricos, ela consta, apenas literalmente, impressionantes 14

vezes no texto constitucional: no Preâmbulo, nos artigos 1º; 5º, XLIV; 17; 23, I; 34, VII,

a; 90, II; 91, caput e § 1º, IV; 127; 194, VII; 206, VI; 215, § 3º, VI; além do nome do

Título V. Sua definição clássica e a sua relação com a legitimidade do Estado e do

ordenamento estão na lapidar frase do Art. 1º, parágrafo único, da Constituição da

República. Propõe-se neste trabalho a utilidade de se atribuir significado ao termo, no

caso das instituições que gerem recursos hídricos, a partir também da justiça aludida do

Art. 3º.

Esta definição de justiça, como exposto à frente, não pode ter conteúdo

materialmente fixo no tempo ou determinado sem se levar em conta a situação histórica.

Seu conteúdo é construído pela sociedade e impulsiona as mudanças sociais que se dão

em compasso com o desenvolvimento econômico.

Como forma de organização dos conceitos — mormente das relações entre

justiça, sociedade e democracia — recorre-se à obra de Jürgen Habermas. Suas soluções

partem de concepção da sociedade tendo por base a comunicação, além de também

proporem concepção própria de método de conhecimento, o que é particularmente bem-

vindo em dissertação de mestrado.

Durante a descrição dos termos nos quais se pode compreender a outorga do

direito ao uso d’água, como também sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos,

não se menciona o corpus teórico habermasiano. Trata-se de opção pela clareza de

exposição. A introdução dos critérios e construções teóricas de Jürgen Habermas

durante a parte do trabalho que se refere ao regime da água poderia ser retoricamente

conveniente, porém sacrificaria a pretendida limpidez de explanação. Nestes capítulos

se utilizam instrumentais teóricos mais adequados às próprias finalidades, que são os do

Direito Econômico, Administrativo e Ambiental (no Capítulo Segundo) e da Teoria

Política e do Direito Constitucional (no Capítulo Terceiro).

No Capítulo Segundo, a seção 2.5 é a adição mais recente ao trabalho. Em

Janeiro de 2007 promulgou-se a Lei 11.445, de natureza nacional. Ela regulamentou o

serviço público de saneamento básico, o qual se divide em cinco atividades: a) varrição

urbana; b) coleta e processamento de lixo urbano; c) coleta e dispensa de esgoto pluvial;

d) coleta e tratamento de esgoto sanitário; e) coleta, tratamento e fornecimento de água.

Todos estes serviços têm repercussões no uso da água, se bem que estas são mais agudas

e diretas no caso dos esgotos e da rede urbana de água. Pela proximidade temática e

atualidade da regulação, é necessário esclarecer a relação entre esta Lei e o regime da

água.

O Capítulo Quarto inclui paralelo entre Jürgen Habermas e Hans Kelsen. Hans

Kelsen é a influência individual mais caudalosa no ambiente jurídico brasileiro, presente

não apenas na academia como também nas argumentações judiciais e motivações de

atos do Executivo e do Legislativo. Mesmo quando não é expressamente citado, nota-se

nos textos jurídicos o quanto as categorias expressas em suas obras se infiltraram no

vocabulário e no raciocínio dos que operam o direito em qualquer dos seus níveis. Por

incontornáveis e sobejamente conhecidos, seus modelos teóricos se apresentaram

sobremaneira úteis para dialogar com as concepções habermasianas acerca do

ordenamento.

A contraposição com Hans Kelsen se dá, entretanto, apenas no nível substantivo,

de conceitos e estruturas específicos. Não se busca comentar toda a extensão de sua

obra, selecionando-se o conteúdo trazido à dissertação pelo critério da utilidade para os

seus objetivos. A utilização dos seus conceitos e a dinâmica de sua teoria está

circunscrita da maneira mais objetiva possível, pelos mesmos imperativos de clareza e

simplicidade na exposição.

1 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS

Este trabalho se aproveita da obra de Habermas em dois sentidos, como já dito.

O repertório conceitual utilizado para se analisarem os três conceitos eleitos como

disseminadores de sentido na Política Nacional de Recursos Hídricos (justiça, função

social das outorgas e democracia das estruturas de gestão) é habermasiano, como

também é o método destas análises. Para maior transparência do discurso aqui

construído, como também por imperativo acadêmico, este método deve ser desenhado

antes de sua aplicação.

O presente trabalho, para coerência com o marco teórico adotado, desenvolve

sua argumentação como teoria crítica, com as características apontadas abaixo. Há que

se observar, entretanto, que a comunidade à qual se refere é a de acadêmicos do

universo jurídico, portanto são os critérios do Direito que importam para a aceitação

auto-reflexiva de suas conclusões. Assim, tanto os argumentos se calcam na obra de

Jürgen Habermas quanto no Direito, observando-se as regras desta ciência.

Durante a descrição do problema da função social da outorga de direito ao uso

de água (Capítulo Segundo), como também sobre a Política Nacional de Recursos

Hídricos (Capítulo Terceiro), não se faz uso freqüente do corpus teórico habermasiano.

Trata-se de opção por clareza e eficácia de exposição. A parte do trabalho que se refere

ao regime da água e de suas instituições utiliza-se mais de modelos com maior carga de

informação técnica específica das suas respectivas áreas. A opção de desenvolvimento

do trabalho não visa separar a teoria de sua aplicação, reproduzindo a dualidade

objeto/sujeito incompatível com o método crítico. Antes se mantém, durante a

exposição do regime da água, a mesma postura crítica em busca do esclarecimento do

tema e de suas ligações com as peculiaridades da sociedade brasileira — optando por

fazer isto mediante instrumentos teóricos mais apropriados. Apenas não estão

misturados assuntos os quais, apesar de relacionados, mantém unidades existenciais

distintas.

A contraposição a Kelsen se dá apenas no nível substantivo e não metodológico,

buscando-se circunscrever da maneira mais objetiva possível a utilização dos seus

conceitos e a dinâmica de sua teoria. Kelsen é incontornável, daí a opção por aproximar

a teoria de Habermas do Direito por intermédio da Teoria Pura.

Considere-se, também, que algumas das definições adotadas para termos

usualmente controvertidos se enquadram na categoria que Tércio Sampaio Ferraz Jr.

chama estipulativa, em contraposição à lexical1. Trata-se, neste caso, de fixar um

sentido dentre os vários aceitos doutrinariamente, usando como critério exclusivo a sua

utilidade para o desenvolvimento do estudo em curso. Não se buscam sentidos

verdadeiros para cada termo (caso em que se entenderiam as definições como lexicais),

mas sim adotam-se os sentidos mais adequados à terminologia utilizada pelo teórico-

leme (Jürgen Habermas), ao objeto de estudo ou ao jargão específico dos estudiosos das

áreas esquadrilhadas.

As teorias críticas se estruturam em contraposição à ciência moderna, entretanto

com foco exclusivo, em especial no caso de Habermas, no campo social. Não se disputa

a supremacia dos métodos positivistas no tocante às ciências naturais. É que o enfoque

principal das teorias críticas é a postura engajada, buscando incluir a ideologia dentre

seus principais temas e considerando o papel ideológico do discurso científico2. As

principais diferenças entre os dois grandes modelos metodológicos são listados em três

tópicos, a saber: a) suas finalidades; b) suas estruturas cognitivas; e c) os tipos de

confirmação que aceitam3.

1.1 FINALIDADE

A discussão sobre a finalidade das teorias é nuclear na teoria crítica e ajuda a

explicitar no que sua visão geral difere da ciência positivista. Para aprofundar este ponto

será útil iniciar pela idéia de interesse. As teorias positivistas se apresentam despidas de

1 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 12.

2 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 2001.

3 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a escola de Frankfurt. Campinas: Papirus, 1988.

interesse, separando dele o conhecimento e se apresentando como esterilizadas de

valores. Enquanto isto, Habermas afirma que as atividades humanas são sempre

carregadas de interesse, a teoria das ciências naturais expressa o interesse humano de

dominação da natureza, de manipulação do mundo, daí sua natureza “cognoscitiva

técnico-prática”4. Já o interesse da teoria crítica é a emancipação e o esclarecimento dos

agentes sociais. Note-se desde já a contraposição entre dominação e manipulação, de

um lado, e emancipação e esclarecimento, do outro.

Emancipação e esclarecimento são processos complementares. Emancipação é

o processo que liberta os agentes sociais da coerção auto-imposta que os submete à

hegemonia alheia. Esclarecimento é o que os liberta e da ilusão trazida pela ideologia.

Na medida em que os agentes ganhem esclarecimento e, portanto, libertem-se da

ideologia, também se tornam emancipados, posto que capazes de enxergar a coerção

que impõem a si mesmos. Compreender estes processos paralelos é essencial para a

crítica à declarada finalidade das teorias científicas.

A palavra ideologia é empregada em dois sentidos, fraco e forte, conforme

distingue Bobbio5. O sentido fraco é de representação de mundo, que explica a realidade

e orienta para a ação. O conteúdo da ideologia, no vocabulário de Perelman6 são os

acordos sobre o real (fatos, verdades e presunções) e sobre o preferencial (valores,

hierarquias de valores e lugares). Os acordos sobre o real estabelecem modelo da

realidade, tanto natural quanto social, representando o mundo e a sociedade para quem a

eles adere. Os acordos sobre o preferencial estabelecem os critérios afetivos para a

tomada de decisão e orientam a ação dos indivíduos e grupos.

No sentido forte (marxista) a ideologia tem conteúdo similar à apresentada

acima, entretanto se inclui no conceito a idéia de falsidade. A ideologia é representação

4 HABERMAS, Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, p. 137.

5 STOPPINO, Mario. Ideologia. In: BOBBIO, Norberto (Org.). Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p. 585-597.

6 PERELMAN, Chaïm et al. Tratado da argumentação: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 73 et seq.

falsa do mundo, que legitima a dominação daqueles que a ela aderem. Um ponto

extremamente controverso, dentre os próprios marxistas e pós-marxistas, é relativo aos

critérios para a identificação da falsidade em uma ideologia. A posição de Habermas

está apresentada acima — ele afirma que a falsidade é determinável auto-reflexivamente

pelos agentes, ao aceitarem mesmo contrafatualmente a situação ideal de fala.

Habermas toma emprestado de Freud o conceito de ilusão (Illusion), que é

convicção nubladamente falsa, mas que satisfaz desejo (subconsciente) do agente. Ela

se difere do erro (Irritum), em que há convicção falsa do ponto de vista meramente

factual, como do delírio (Wahnidee) em que há convicção claramente falsa, mantida

porque satisfaz importante desejo do agente7. No erro não há jogos psicológicos

relevantes, o agente está enganado sobre determinado fato e quando o erro é apontado

ele se convence racionalmente do próprio engano e aceita modificar sua convicção. No

delírio é claro, para observadores externos, que o agente acredita em algo impossível,

mas sua ardente convicção tem motivadores subjetivos mais importantes que a

realidade.

Os erros comuns na sociedade são facilmente corrigidos, já que não têm maiores

conseqüências para sua estrutura. Assim acontece com fatos logo aceitos após

campanhas de esclarecimento, como os efeitos nocivos do tabaco ou os perigos

cardiovasculares do consumo alimentar excessivo de gordura. Os delírios, via de regra,

também não se mantêm por muito tempo, por serem obviamente incompatíveis com a

realidade. Entretanto as ilusões são particularmente resistentes, pelas raízes psicológicas

e pela sutileza de basearem-se em fatos sociais comprovados e de retirar deles

conclusões muitas vezes racionalmente sofisticadas, porém que terminam por subjugar

uma parte da sociedade por outra.

O processo descrito por Habermas parte de uma fase inicial, em que há, por um

lado, “falsa consciência e erro”, e por outro, “existência sem liberdade”, realidades que

se reforçam mutuamente. Na fase final elimina-se a falsa consciência (esclarecimento) e

a coerção (emancipação). Estes passos são dados pela adesão dos agentes à teoria

7 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse: com um novo posfácio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

crítica, pois ela promove a auto-reflexão, que “torna o sujeito cônscio de sua própria

gênese ou origem”,8 dissolve a objetividade auto-gerada e traz os determinantes

subconscientes da ação à consciência.

Analise-se, por hora sucintamente, a legitimidade. Genericamente, as decisões

políticas são tidas como legítimas se as instituições que as tomam forem legítimas e se

também for legítimo o processo em que elas foram tomadas. Instituições e

procedimento fazem decorrer sua própria legitimidade do regime, da legitimidade do

regime jurídico que os instituiu e este, por fim, deduz a sua legitimidade da relação

entre as convicções que o sustentam e a figuração de mundo da sociedade. Em última

análise, a legitimidade das decisões tem pouco a ver com seu conteúdo, mas com as

convicções representadas no regime político e suas raízes na visão de mundo da

sociedade. Se esta visão de mundo for ilusória, o regime político — muito embora

compatível com as convicções ideológicas da sociedade — poderá perpetuar relação

desequilibrada de poder.

Os princípios epistêmicos de uma sociedade são as “convicções secundárias

sobre [...] que tipos de convicções são aceitáveis ou inaceitáveis, e como podem as

convicções se mostrar aceitáveis ou inaceitáveis”9. Os princípios epistêmicos são os

critérios pelos quais uma sociedade se pauta para aceitar ou não determinadas

convicções (fatos ou valores). Estas convicções formam a visão de mundo partilhada em

dada sociedade, sua cultura ou ideologia (“no sentido fraco”, para Bobbio10), o que

Habermas chama figuração de mundo. É a partir dos princípios epistêmicos aos quais

aderem seus grupos sociais que os agentes interpretam as notícias, por exemplo, ou

quaisquer fatos sociais que observem.

É possível que uma figuração de mundo falsa leve a decisões radicalmente

contrárias a relevantes grupos sociais, tomadas por instituições deles materialmente

8 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse: com um novo posfácio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

9 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a escola de Frankfurt. Campinas: Papirus, 1988. 10 STOPPINO, Mario. Ideologia. In: BOBBIO, Norberto (Org.). Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p. 585-597.

repressivas e alegadamente representativas. A ilusão em relação às convicções

legitimantes do regime impede a sociedade de ver esta auto-imposição de coerção

(ilegítima). A convicção de que critérios técnicos implicam na inevitabilidade de uma

decisão impede a sociedade de criticar a oportunidade de a levar a cabo. O argumento

técnico impede a discussão por critérios sociais. É o que Habermas chama

“objetivação”, que será aprofundada quando se discutir a estrutura cognitiva das teorias.

Se a finalidade da teoria crítica é a emancipação e o esclarecimento, surge uma

dúvida importantíssima, qual seja, o critério para se dizer de uma sociedade se está ou

não esclarecida e emancipada. Em termos simples: como fundamentar a afirmação de

que determinada sociedade está no início ou ao final dos processos gêmeos? É assim

que se chega ao fundamento da Ideologiekritik habermasiana, seu argumento

transcendental, descrito abaixo.

Tenha-se por pressuposto que parte da condição humana é participar de

comunidade de fala, é parte do que nos distingue como espécie animal — somos sociais

e a comunicação que produzimos é complexa. O tipo de sociedade que formamos é

caracterizada pela comunicação verbal (mais universalmente, oral).

Para participar da comunidade (de fala) é pré-requisito a capacidade de fazer

juízo de verdadeiro/falso. Todos os agentes devem ser capazes de identificar a verdade

na comunicação alheia. É por isto que as piadas têm graça, por exemplo, ou que os

agentes podem selecionar aqueles interlocutores nos quais podem confiar e outros nos

quais é melhor não. A capacidade de fazer o juízo não significa acertar sempre, mas

apenas que para todos a distinção é importante.

O próximo passo no argumento é a afirmação de um critério universal para o

juízo de verdadeiro ou falso. Segundo este critério, um enunciado é verdadeiro se sobre

eles concordariam os agentes se o discutissem diante de toda a experiência humana e

sob circunstâncias absolutamente livres e iguais durante período indefinido de tempo.

Esta situação, de liberdade e igualdade entre os agentes, informados e ilimitados, é

chamada por Habermas de situação ideal de fala e a ela será útil referir posteriormente

durante o presente trabalho, mormente quando se dissertar sobre a democracia. A

situação ideal de fala é “[...] critério transcendental de verdade, liberdade e

racionalidade”.11

Mais ainda, é parte do argumento que todos os agentes, em qualquer tempo ou

situação, podem reconhecer a situação ideal de fala, pois a usam como critério de

verdade. Da mesma forma, os agentes assumem o valor da situação ideal de fala mesmo

contrafactualmente, isto é, mesmo quando não se realiza, ela continua sendo critério de

verdade, liberdade e racionalidade. É o critério universal de falsidade da figuração de

mundo da sociedade, portanto. Seria possível, segundo Habermas, contrapor a situação

ideal de fala à figuração de mundo que legitima regime de coação auto-imposta pela

ilusão.

Assim, a teoria crítica de Habermas teria por finalidade este processo, de

esclarecimento e de emancipação, ao expor, na figuração de mundo de determinado

grupo social, os fatores que legitimam sua opressão. A teoria revelaria a inaceitabilidade

reflexiva das convicções legitimantes da opressão.

1.2 ESTRUTURA COGNITIVA

Quanto à estrutura cognitiva, se as teorias derivadas das ciências naturais partem

do pressuposto de distinção entre si mesmas e seus objetos, já as teorias críticas se

colocam como um dos objetos de sua própria análise. Nas palavras de Habermas, as

primeiras são objetificantes e as segundas auto-reflexivas.

As teorias objetificantes não estudam a si mesmas. A astronomia descreve os

astros, mas não a evolução da própria astronomia (objeto da história) ou os critérios de

formalização de suas hipóteses (objeto da matemática). Enquanto isto as teorias auto-

reflexivas se propõem a estudar também e a si mesmas. O Direito, nesta perspectiva,

estudaria também os motivadores ideológicos de seus enunciados. Seria válido discutir,

noutro exemplo, as proposições dos jusnaturalistas a partir das conseqüências sociais da

aceitação de origem etérea para as normas jurídicas.

11 GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a escola de Frankfurt. Campinas: Papirus, 1988, p. 108.

As teorias assimiladas às ciências naturais constroem um conjunto de asserções

sobre seus objetos, asserções confirmadas pelos meios próprios e que compõem o

corpus de conhecimento sobre o tema. Além de asserções desta mesma natureza, as

teorias críticas formam um outro conjunto, acerca da própria teoria, utilizando os

mesmos meios para confirmar tanto um quanto o outro conjunto.

É que o focus12 das teorias críticas inclui a ideologia (sempre no sentido fraco),

que é estruturalmente similar a uma teoria. Assim, as teorias críticas desenvolvem,

invariavelmente, arsenal teórico para o estudo de objetos como valores, convicções,

normas morais, presunções, topoi, fatos, enfim, componentes da cultura, da visão de

mundo, da figuração de mundo, da ideologia de um grupo social. Os mecanismos

descritivos e avaliadores das ideologias podem ser úteis para a auto-reflexão, a inclusão

da teoria como objeto de si mesma.

A distinção usual entre ideologia e teoria é que, se ambas explicam o mundo,

apenas as ideologias justificam os comportamentos humanos. As teorias derivadas das

ciências naturais (ou positivistas) são unânimes na exclusão dos valores de entre seus

objetos. Deixam de, abertamente, justificar e orientar comportamentos para apenas

explicar, ou descrever, os mecanismos que levam a eles. Marco inicial desta posição, O

Príncipe, de Nicolau Maquiavel, ainda é exemplo largamente citado, muito embora,

significativamente, a frase “os fins justificam os meios” não consta dos originais.

Maquiavel escreveu que “os fins são denominados pelos meios que se buscam atingir”,

pois o Príncipe não precisaria aprender com ele a justificar seus comportamentos, mas a

comportar-se de acordo com as regras do poder. No contexto dos estudos naturais

excluem-se os valores que justificam comportamentos, para focar apenas nos fatos que

os explicam. Ciência, nestes termos, não deve incluir os valores em sua fundamentação

— teoria, nos termos habermasianos, deve.

12 GOLEMBIEWSKI, Robert T. Public Administration as a Developing Discipline, New York,Decker, 1977. Apud KEINERT, Tania Margarete Mezzomo. Administração pública no Brasil: crises e mudanças de paradigmas. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2000, p. 34.

Assim, os valores passam a fazer parte mesmo da estrutura de cognição da teoria

de Habermas, incluindo-se na forma pela qual ela apreende a realidade (e orienta para a

emancipação pelo caminho do esclarecimento).

1.3 TIPOS DE CONFIRMAÇÃO

A auto-reflexão desempenha papel importante também no terceiro traço

distintivo dentre as duas categorias de teorias, os tipos de confirmação que

reconhecem, suas evidências de aceitabilidade cognitiva. As teorias positivistas partem

da observação e do experimento, enquanto as críticas têm aceitabilidade reflexiva. Isto

significa que os dados da teoria crítica, pelos princípios de Habermas, devem ser aceitos

se as convicções epistemológicas dos agentes esclarecidos se satisfizerem, ou seja, as

convicções serão reais se aceitas como verdadeiras pelos seus próprios critérios. São

suas palavras que:

[...] 'real' é o que pode ser representado em proposições verdadeiras,

ao passo que 'verdadeiro' pode ser explicado a partir da pretensão que

é levantada por um [agente] em relação ao outro no momento em que

assevera uma proposição. Com o sentido assertórico de sua afirmação,

um falante levanta a pretensão, criticável, à validade da proposição

proferida; e como ninguém dispõe diretamente de condições de

validade que não sejam interpretadas, a 'validade' (Gültigkeit) tem de

ser entendida epistemologicamente como 'validade que se mostra para

nós' (Geltung). A justificada pretensão de verdade de um proponente

deve ser defensável, através de argumentos, contra objeções de

possíveis oponentes e, no final, deve poder contar com um acordo

racional da comunidade de interpretação em geral.13

Assim, quando entre agentes esclarecidos e assumindo contrafatualmente a

situação ideal de fala, a aceitação de asserção pela comunidade é critério de aceitação

pela teoria crítica. Note-se que não há limites quanto a que tipos de argumentos ou

13 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 31.

convicções epistemológicas podem ser utilizados no desenrolar da discussão. Valores

não são aceitos apenas como objeto dos enunciados, mas também como critérios de sua

aceitação. Um enunciado pode ser recusado pela oposição de um valor ao qual a

comunidade falante adira intensamente.

2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS

Uma das constatações fundamentais, sobre as quais se assenta o presente estudo,

é a de que o conteúdo das normas jurídicas é construído a partir de decisões políticas.

Toda a estrutura do Estado Democrático de Direito é obra humana: o fluir da soberania

pelos espaços públicos de debates, pressões e convencimento; a distribuição de

competências segundo critérios federativos e funcionais; o regime jurídico da

representação e da participação; a disposição expressa ou implícita de princípios,

fundamentos e finalidades; e os instrumentos de sua materialização, com a posição

privilegiada dos direitos e garantias fundamentais. Nada disto tem outra origem que não

a atividade humana de solução para conflitos, ela mesma imersa em conflitos e objeto

de outros.

As fundamentações, motivações e justificativas de normas e institutos também

são criadas por sua função, humana, de comunicação. Destinam-se a realizar a interface

entre universos sociais adjacentes, como entre o ordenamento jurídico e a ciência do

Direito, entre a política e as normas jurídicas, entre a administração e o povo, etc.

Alguns destes discursos são juridicamente exigidos, como a motivação do ato

administrativo ou a justificação da sentença, mas mesmo estes não deixam de ter efeito

também de comunicação, mesmo que esta aí se entenda no sentido de “direito como

linguagem”14.

A postura é plenamente compatível com os conceitos habermasianos,

principalmente o de esfera pública, locus das discussões que pautam e informam os

agentes do Estado. Identificada, primeiro como instância intermediária entre a sociedade

burguesa e o Estado liberal típico15 ,a esfera pública se configura como instrumento da

14 FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 6.

15 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 152,153.

publicidade em contraposição ao segredo típico dos regimes autocráticos16. É também aí

que se exercem os direitos de informação e de liberdade de manifestação de

pensamento, típicos das democracias (dentro da perspectiva habermasiana). O direito é

fruto da formalização destas discussões e argumentos que se opõem e aliam para

construir consensos política e retoricamente estáveis.

Os institutos jurídicos e direitos não são, portanto, compreendidos como tendo

existência etérea, atemporal e independente da história, mas sim como produtos das

circunstâncias históricas que os trouxeram à existência. A linha é a mesma de José

Afonso da Silva, quando afirma que os direitos fundamentais são “históricos, como

qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. […] Sua historicidade rechaça

toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza

das coisas”17.

Ordenamento jurídico nacional é entendido como o conjunto de normas

jurídicas aplicáveis em um dado Estado, aqui se subentendendo sempre o brasileiro

quando se diz simplesmente “ordenamento”. Em termos puramente formais, é “um

sistema de normas gerais e individuais que estão ligadas entre si pelo fato de a criação

de toda e qualquer norma que pertence a este sistema ser determinada por uma outra do

sistema”18. O ordenamento nacional se divide em três grandes níveis, sendo mais

importante o constitucional (separado dos outros pelo Princípio, implícito, da

Supremacia da Constituição), seguido do legal (distinguido pelo Princípio da

Superioridade da Lei, expresso no inciso II do Art. 5º da Constituição da República) e

por fim o nível infra-legal, composto de normas de direito público e privado das mais

variadas origens. Há hierarquia entre constituições, sendo suprema a Federal; não há

hierarquia formal entre leis, embora materialmente as emanadas pela União, e de caráter

16 Idem, Ibidem. p. 235.

17 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 177.

18 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 252.

nacional, se sobreponham às estaduais e municipais; a hierarquia entre normas infra-

legais será mencionada se e quando houver necessidade.

O regime do direito de propriedade, ou das propriedades19, no Brasil é

determinado pela Constituição da República e, subordinadamente, pela legislação

infraconstitucional. Cada constituição tem autonomia semântica e organiza o sentido do

ordenamento que a ela se refere. É possível analisar a evolução histórica dos institutos,

inclusive da propriedade, como se podem estudar várias instituições sociais e mesmo

comparar economias ou direitos de culturas diferentes. Isto não significa que o Poder

Constituinte deva seguir qualquer tradição, mas apenas que elas informam os vários

sentidos culturais dos termos com os quais se constroem as constituições.

Muitas vezes, no decorrer do trabalho, é necessário discriminar entre princípios

e regras, ambos normas. Na fixação dos significados destes termos seguiu-se a forma

fixada por Canotilho, segundo quem regras “são normas que, verificados determinados

pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer

excepção”20 enquanto princípios

são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma

possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os

princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de ‘tudo

ou nada’; impõem a optimização de um direito ou de um bem

jurídico21.

A Constituição da República estabelece que “a propriedade atenderá sua função

social” no seu Art. 5º, XXIII, estabelecendo no Art. 170, III, a mesma “função social da

propriedade” como “princípio da ordem econômica”. Eros Roberto Grau, analisando as

19 GRAU Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

20 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 1177.

21 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 1177.

diferenças entre o regime da propriedade antes e depois da obrigatoriedade de atender a

função social, enxerga nesta evolução,

como afirmou André Piettre[...], a revanche da Grécia sobre Roma, da

filosofia sobre o direito: a concepção romana, que justifica a

propriedade pela origem (família, dote, estabilidade dos patrimônios),

sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica

pelo seu fim, seus serviços, sua função.22 (negrito posterior)

Trata-se de conflito entre concepções culturalmente divergentes ou, em outros

termos, entre ideologias antagônicas. A primeira, identificada com Roma, é específica

do início da modernidade, liberal e próxima do direito natural. A segunda, identificada

com a Grécia, é mais contemporânea, próxima da concepção de direito como

instrumento de organização social e da efetivação de políticas de Estado ou de

Governo23.

Em qualquer criação humana consciente a forma está subordinada à função,

mesmo que estética. Os direitos também são criação humana, também têm subordinada

suas formas às funções. Em direito, a forma é positivada em textos que limitam as

circunstâncias de tempo e espaço, requisitos, condições, procedimentos, liberdades ou

competências que estabelecem o que é aquele direito. Em Direito, a forma se expressa

no conjunto das normas jurídicas, criadas pelo interprete a partir do ordenamento, que

definem o regime do dado direito. As normas infraconstitucionais ganham significado a

partir do conteúdo deontológico atribuído à Constituição. O regime do direito à

propriedade está subordinado ao atendimento de sua função social. O desenho, a própria

essência da propriedade dos bens de produção, se define pela função social, pela

finalidade que se busca atingir pela sua instituição.

22 GRAU, Eros Roberto Elementos de Direito Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, p 113. 23 Rica explanação relacionada ao tema se encontra em FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 21-29.

Os direitos fundamentais têm funções negativas (de proibição ou dever de

abstenção pelo Estado) e positivas (de obrigação ou dever de ação pelo Estado).

Segundo Canotilho, elas são as funções de defesa ou de liberdade, de prestação social,

de proteção perante terceiros e de não discriminação24. A primeira negativa e as três

últimas positivas, segundo a classificação que anteriormente se propôs. O direito à

propriedade, segundo esta idéia, tem função de defesa da exclusividade na titularidade

de bens (perante o Estado e terceiros) e de obrigar o Estado ao empenho para prover

condições materiais do seu gozo (a todos, sem discriminação).

Além das funções imediatas, acima delineadas, a função última dos direitos

fundamentais é a de instrumentos para a persecução das finalidades da República,

determinadas pelo Art. 3º da Constituição.

O Estado congrega recursos sociais. É característica desta forma de organização

social a gestão, pelo ente político supremo, de recursos da economia. O Estado se

apropria de excedentes de produção a partir das formas pelas quais angaria seus

próprios recursos, como se apreende dos artigos 9º e 11 da Lei Federal 4.320/64. Em

verdade, a soma das receitas públicas, incluindo-se majoritariamente a carga tributária

das fazendas da União, Estados e Municípios, aumentou de 28,3% do PIB brasileiro, em

1996, para estabilizar-se mais próxima dos 35% do PIB a partir de 200125.

A mera natureza social da tributação incita ao uso público dos recursos

estatais. Se o Estado se constitui absorvendo recursos sociais (mesmo que em monta

menor que o atual 1/3 das riquezas da nação), decorre daí que deva atuar em prol desta

sociedade, que o suporta. As formas de atuação para o “bem comum” são contadas às

miríades, é mister escolher. Teóricos de todos os matizes ideológicos se debruçam sobre

o tema, nenhum olvidando que a função do Estado seja perseguir o dito “bem comum”.

24 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 383-386.

25 BRASIL, capturado no endereço http://www.planejamento.gov.br/arquivos_down/sof/estatistica/orcamento_geral_uniao.pdf, Acesso em 09/07/2006.

O criador da expressão, Rousseau, definia este como objeto da “vontade geral” da

sociedade, entretanto Chaïm Perelman ressalta que

Querer opor, como faz Rousseau, a vontade geral, sempre reta, à

vontade de todos, freqüentemente induzida em erro, é justificar de

antemão todas as tiranias, pois é evidente que o tirano sempre conhece

melhor que o povo os “verdadeiros” interesses deste último.26

Do ponto de vista político, adiante se tratará da relação entre a teoria da

democracia e a formação destas decisões. Por ora, basta lembrar que também é

democrática a obediência isonômica às decisões legitimamente formalizadas em

ordenamento jurídico. Do ponto de vista jurídico, o caminho para se alcançar o bem

comum deve ser o indicado nas constituições, entendidas como formalizações das

decisões políticas dos titulares da soberania. Daí a legitimidade da determinação da

finalidade do ordenamento e do Estado no Art. 3º da nossa Constituição, inserida no

Título em que se encontram as “decisões políticas fundamentais que o constituinte

acolheu”.27

Todo o ordenamento deriva seu sentido dos princípios constitucionais

fundamentais, sempre em conexão com a realidade social que os atualizam. O exercício

dos direitos fundamentais é legítimo apenas enquanto não fere a sociedade. São

concedidos como forma de alcançar as finalidades que a Constituição determinou para a

República e para o ordenamento, ou seja, “se o proprietário não cumpre e não se realiza

a função social da propriedade, ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do

ordenamento jurídico, desaparece o direito de propriedade”.28

26 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 201.

27 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 95.

28 SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch. A propriedade agrária e suas funções sociais. In: SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch & XAVIER, Flávio Sant’Anna (Org.) O Direito Agrário em Debate. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1988, p. 14.

Função social da propriedade é, de maneira geral, aquela que se aproxima dos

objetivos da República, estabelecidos no citado Art. 3º da Constituição. A função social

da propriedade está ligada ao seu uso de maneiras socialmente relevantes, de forma: a) a

inserir o bem na cadeia produtiva, de maneira a obedecer aos mandamentos do Art. 170

da Constituição da República, (o desenvolvimento nacional está no inciso II do seu Art.

3º); b) a promover distribuição eqüitativa de renda, recursos ou serviços para toda a

sociedade (em obediência aos incisos III e IV do Art. 3º). Particularmente, aponta-se

aqui que o uso condizente com a função social da propriedade é aquele que leva à

construção de sociedade livre, justa e solidária (Art. 3º, I), função social é função justa,

justa para com toda a sociedade.

2.1 BENS PÚBLICOS

Assim, o bem deve ter uso, e quanto maior for este uso (desde que legítimo),

maiores serão os benefícios que dele advirão para a sociedade. Neste sentido:

Note-se que o poder público tanto pode restringir como pode ampliar

o uso de bens públicos. […] Quando amplia, está atendendo ao

princípio da função social da propriedade pública, uma vez que está

cumprindo o dever de garantir que a utilização dos bens públicos

atenda da forma mais ampla possível ao interesse da coletividade. 29

Estabelecida esta proposição, resta perquirir sobre a aplicação do mandamento à

propriedade pública, ou seja, àquela cuja titularidade é de pessoa jurídica de direito

público.

Bens públicos, por serem recursos sociais, servem inexoravelmente à finalidade

do bem comum. Cabe perquirir sobre distinções entre as categorias de bens públicos,

gênero com três espécies, segundo o Art. 99 do Código Civil: a) os bens de uso comum;

b) os de uso especial; e c) dominicais. Não interessa investigar em pormenor, no escopo

do presente estudo, os de uso especial e os dominicais, já que a água, como se verá

29 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 6, abril/maio/junho, 2006. Disponível em: <http:\\direitodoestado.com.br>. Acesso em 24 de junho de 2006.

adiante, é bem de uso comum. Entretanto sobre estes “não é demais repetir que a

destinação pública é inerente à própria natureza jurídica dos bens de uso comum do

povo […], porque eles estão afetados a fins de interesse público, seja por sua própria

natureza, seja por destinação legal”.30 Bandeira de Melo também afirma que os de uso

comum têm afetação decorrente de sua natureza, ou do “destino natural” do bem,

citando expressamente os recursos hídricos31, ou estabelecida em lei.

Pode haver, no âmbito do regime dos recursos hídricos, a outorga de seu uso por

pessoas (privadas ou públicas) diferentes dos titulares de seu domínio. Em verdade as

pessoas responsáveis pela formalização da outorga também não são titulares destes

domínios, mas o problema se resolve pela atribuição legal de competência para tanto e

pelo claro fundamento constitucional das leis em questão (Art. 21, XIX da Constituição

da República). Esta outorga deve garantir o maior uso possível dos ditos recursos,

também em decorrência do quanto já se afirmou, até o momento, sobre o direito à

função social da propriedade, ou seja,

as águas públicas podem atender a inúmeros objetivos, alguns de uso

comum, como a navegação, outros de uso privativo, como a derivação

para fins agrícolas ou industriais, ou para execução de serviço público,

como a produção de energia elétrica e o abastecimento da população,

como também podem atender simplesmente às primeiras necessidades

da vida.32

Fundamental é que estes usos se sobreponham harmoniosamente, se sucedam no

tempo e no espaço e se multipliquem. A Lei Federal 9.433/97, em consonância com o

imperativo constitucional, determina (logo em seu Art. 1º, IV) que um dos fundamentos

da Política Nacional de Recursos Hídricos seja exatamente o “uso múltiplo das águas”.

30 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 6, abril/maio/junho, 2006. Disponível em: <http:\\direitodoestado.com.br>. Acesso em 24 de junho de 2006. 31 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 557.

32 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 557.

Não obstante sua multiplicidade, alguns usos dos recursos hídricos, os mais

economicamente relevantes dentre eles, inclusive, serão outorgados. São estes usos que,

argumenta-se aqui, devem ter clara função social, sem a qual a outorga é

inconstitucional.

Mesmo com o sentido dado pelo Art. 3º da Constituição da República, o

imperativo da função social ainda guarda possibilidades bastante variadas de aplicação.

O problema fundamental é que deve haver ponte legítima entre a grande abstração

constitucional da função social da propriedade e as decisões concretas sobre a outorga

do uso da água. Argumenta-se que esta ponte deva ser a mais democrática possível, em

decorrência da própria Constituição, como também que as instituições do Sistema

Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos devam sempre se vincular à

democracia nas suas decisões, e que as normas que venham a restringir a transparência e

a participação serão inconstitucionais.

2.2 REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS ENQUANTO BENS ECONÔMICOS

Um dado importante para a interpretação, a formulação de teorias e a atribuição

de sentido aos objetos que se estudam é a sua situação, os objetos que lhe estão

próximos, distantes e mesmo os que lhe são oponíveis, bem como a definição das

categorias nas quais se inserem. Grande parte da doutrina situa o Direito Ambiental

como parte do Direito Econômico, este sendo parte do Direito Público. É o pensamento

de Paulo de Bessa Antunes, por exemplo, ao ressaltar que o “Direito do Meio Ambiente

é dotado de instrumentos específicos que o capacitam a atuar na ordem econômica, de

molde a configurar um determinado padrão de desenvolvimento”.33

O regime jurídico da gestão dos recursos hídricos organiza a exploração dos

corpos d’água, objetivando sua distribuição social condizente com os preceitos

constitucionais, quer para consumo imediato, quer para utilização destes recursos como

insumo para a oferta de bens ou serviços. A partir desta linha de pensamento passa a

33 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 19.

fazer sentido mais profundo a presença da defesa do meio ambiente no Art. 170, VI, da

Constituição da República. É que um dos traços importantes do perfil constitucional de

desenvolvimento é, exatamente, a sustentabilidade e o respeito ao direito, das gerações

presentes e futuras, aos recursos naturais. É o prisma sob o qual se deve ser entender o

domínio dos recursos hídricos, a outorga de seu uso e a decorrente cobrança. Os

recursos hídricos são importantes para o desenvolvimento econômico do país, mas

também são recursos a se resguardarem para manutenção da vida — presente e futura.

A Constituição permite e, mesmo obriga, a intervenção do Estado na atividade

econômica. Eros Roberto Grau, após extensa e profícua discussão34 sobre a expressão

atividade econômica, propõe que ela denomine dois objetos, relacionados. Em sentido

amplo, a expressão define todas as atividades voltadas “à satisfação de necessidades, o

que envolve a utilização de bens e serviços, recursos escassos”35, incluem-se nesta

categoria tanto as atividades privadas quanto os serviços públicos. Em sentido estrito,

como sinônimo de domínio econômico, atividade econômica denomina apenas as

legadas à iniciativa privada, ainda que sob regulamentação pública.

Observando os termos estipulados por Eros Grau, tem-se que o Estado intervém

no campo da atividade econômica em sentido estrito por absorção (monopólio) ou

participação (competição). Intervém sobre o domínio econômico por direção ou

indução36. As intervenções por direção mostram-se imperativas, o Estado com elas

impõe comportamentos sob sanções negativas importantes, regendo mais ferreamente o

domínio econômico. As intervenções por indução colocam-se em outro plano, no das

sanções premiais, em que os comportamentos desejados pelo Estado são sugeridos e

estimulados.

34 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 123 et seq.

35 Idem. ibidem, p. 133.

36 Idem. ibidem, p. 159.

Pode-se ver relação entre a defesa do meio ambiente e as intervenções

econômicas hoje existentes, sob suas modalidades de absorção ou participação, direção

e indução37. As normas de utilização dos recursos hídricos incluem direção e indução,

além da possibilidade de participação, como se descreve adiante, neste trabalho. A

diferença, em relação aos recursos hídricos, é a forma como as decisões políticas são

tomadas, isto é, as formas pelas quais é possível aos administrados participar da

formação do conteúdo das normas que atribuem a competência para as intervenções.

É fundamental, para se compreenderem os limites jurídicos das decisões sobre a

gestão dos recursos hídricos, definir a titularidade do domínio destes recursos, o regime

da outorga e da cobrança por seu uso. Afinal de contas, é este o objeto das decisões e

são estas as normas que afetarão o domínio econômico e a vida cotidiana dos

administrados.

Fenômeno econômico e direito, a propriedade dos bens de produção tem regime

constitucional que se subordina à idéia de função social, já se sabe. O regime jurídico

dos recursos hídricos inclui as normas que se referem ao seu domínio, bem como

condições e eventual cobrança pelo seu uso, visando a garantia de níveis mínimos de

qualidade e quantidade que sustentem o desenvolvimento econômico e humano presente

e futuro. O regime da água está subordinado aos seus fins; a Política Nacional de

Recursos Hídricos está subordinada aos objetivos prescritos no Art. 2º da Lei Federal

9.433/97, interpretados conforme o Art. 3º da Constituição da República.

O caminho para estes objetivos deve ser desenhado democraticamente, pois é

fundamento da Política Nacional de Recursos Hídricos a gestão descentralizada,

contando com a “participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades” (Art.

1º, VI, da Lei Federal 9.433/97).

37 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 123 et seq.

2.3 DIREITO DIFUSO

A natureza jurídica da água, como um bem, como coisa juridicamente

qualificada, tem sofrido grandes alterações ao longo do tempo. Claro, o direito e o

Direito são históricos, eles se constroem a partir do contorno histórico e refletem as

contradições, valores, interesses e cultura típicos deste contorno.

Tome-se como exemplo o direito romano, com a sempre necessária observação

de que naquele contexto, “a propriedade não deve ser interpretada sob as mesmas luzes

da propriedade existente no campo e nas cidades da sociedade capitalista, pois era

diferente em significação, em uso e em finalidade”38. Primeiro a água foi considerada

res nullius, os quais seriam bens sem titularidade, apropriáveis por qualquer um. A partir

das Institutas, entretanto, ela passa a ser res communis, já que “Et quidem naturali jure

communia sunt omnium, haec, aqua profulens, et mare et per hoc litora maris -

Institutas, Livro II, TítuloI, § I.)”.

Propõe-se, entretanto, que a análise na natureza jurídica da água e outros bens

ambientalmente relevantes seja antecedida de vista d’olhos sobre a evolução do

pensamento social a partir da modernidade. É que é a partir da modernidade que os

termos e categorias se aproximam dos hodiernos, até pela continuidade na evolução dos

processos de produção econômica e das condições da vida e do pensamento.

2.3.1 Evolução das noções de titularidade e legitimidade durante a

modernidade

É fundamental ter em mente que tanto os movimentos socialistas quanto os

liberais — iniciados na Inglaterra do século XVII e que tiveram seus momentos mais

simbólicos nas Revoluções Americana e Francesa — partem do ideário iluminista39.

Assim, tanto uns quanto outros se fundamentam no uso da razão como base para

38 VÉRAS NETO, Francisco Quintanilha. Direito romano clássico: seus institutos jurídicos e seu legado. In WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 96.

39 HOBSBAWM, Erik, Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 .

entender o mundo e no abandono de explicações fundadas exclusivamente na fé.

Entendem as normas jurídicas como algo humano, mesmo na corrente inicial onde elas

ainda não eram vistas como humanamente estabelecidas, mas apenas como

humanamente inferíveis – o jusnaturalismo dito racional.

As revoluções liberais se deram no contexto histórico da superação dos últimos

vestígios do feudalismo (as monarquias de direito divino ou absolutistas) e da afirmação

do homem como medida do universo. A visão de mundo liberal foi influenciada por

estes fatos, daí a idéia de pessoa ser fundamental para toda a filosofia do direito liberal.

Com efeito, é impossível dissociar este modelo jurídico da noção de pessoa como

centro de deveres e direitos. O direito liberal parte da noção fundamental da igualdade

formal entre indivíduos, que por livre exercício de vontade criam as condições de suas

relações jurídicas. Os contratos se dão validamente entre indivíduos que dispõem de

seus direitos com base nos próprios interesses e que são protegidos por leis que os

tratam de forma igual.

Os pobres que assistiram estas revoluções viram o fim da desigualdade formal

que antes havia entre as classes sociais: nobreza, clero e o restante da população (ou o

Terceiro Estado francês). Viram também o estabelecimento de limites negativos à ação

do Estado, isto é, bens protegidos juridicamente de tal forma que o Estado não poderia

atacá-los. Entretanto ainda havia, por exemplo, a proibição de formar associações e

mesmo de se reunirem — como determinado pela lei Le Chapelier, de 1791, em plena

Revolução Francesa40 — com a justificativa de que isto desrespeitaria justamente a

igualdade formal, pois haveria negociações em que dum lado estaria apenas um homem

e, do outro, vários. Havia, assim, um déficit entre as expectativas levantadas pelo

primeiro período (liberal) e os ganhos para as camadas populares. Os movimentos

sociais que sacudiram o ocidente durante o século XVIII levaram aos movimentos do

século XIX. É que os primeiros acenaram com a possibilidade de mudanças e fizeram

ver que elas seriam possíveis através da ação social. Entretanto não trouxeram ganhos

importantes para grande parte da sociedade.

40 TULARD, Jean. História da Revolução Francesa: 1789-1799. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 365.

Os desdobramentos destas revoluções não se esgotaram no século retrasado,

entretanto. O século XX foi fértil em ordenamentos que buscaram realizar os objetivos

socialistas, nas suas versões compatíveis com a democracia ocidental, como a social-

democracia européia ou o new deal americano. Ou quando ocorreram revoluções na

tentativa de alcançar a igualdade econômica, como nos blocos da URSS e da China.

A inspiração socialista substitui a ênfase no indivíduo pela ênfase na classe

social. Os conflitos, mesmo alguns dos individuais, são vistos pela ótica social.

Protegem-se categorias sociais e prefere-se a lei (norma geral, de aplicação a toda a

sociedade) ao contrato (norma individual na gênese e na aplicação). A propriedade,

centro da maior discórdia entre as duas ideologias, mesmo na social-democracia só é

legítima enquanto cumpre funções sociais, inspiração que chegará até nossa

Constituição, inclusive. Há grande incidência de publicização de bens e serviços

essenciais.

O final da Segunda Guerra Mundial e as grandes transformações sociais

ocorridas entre o final da década de 60 e meados da posterior também propulsionaram

modificações de grande relevância no tema dos direitos fundamentais. No século

passado foram estes os fatos que mais adicionaram novas dimensões e mudanças

estruturais tanto nos próprios direitos fundamentais quanto nas formas de seu exercício

e na teoria acerca deles. Não é esse período que será tratado neste trabalho, mesmo que

também possa servir de exemplo para a pluralidade de movimentos políticos e sociais

que influenciaram em profundidade o atual perfil dos direitos fundamentais.

São os movimentos sociais que marcam uma das formas comuns de classificação

dos direitos fundamentais, em gerações. A primeira geração é identificada com as lutas

liberais, a segunda com as socialistas, a terceira e a quarta com o pós-guerra e a

contemporaneidade.

No século passado também houve a queda dos regimes do leste europeu, a

democratização de boa parte destes países e o surgimento do “pensamento único” –

dominante entre os formuladores de políticas sociais e distribuição de bens e direitos na

última década. Estes fatos estão por demais próximos no tempo para uma análise de seu

significado geral, mas, numa primeira impressão, parecem ter tido efeito mais deletério

que enriquecedor nos ordenamentos vanguardeiros. Os povos que abandonaram regimes

autárquicos para construir seu caminho rumo à democracia ganharam também o gozo de

direitos que antes não usufruíam, no entanto nenhum destes direitos é novo, nenhuma

grande alteração na teoria ou na prática dos direitos fundamentais nasceu daí. Já os

ordenamentos que iam ganhando novos direitos e construindo seu caminho rumo à

justiça social — como é o caso brasileiro, assim parece — tiveram seu andar dificultado

ou mesmo deram passos para trás durante o período.

Os movimentos que ora se chamam socialistas têm nomenclatura bastante

variada, podendo neles serem vistas nuances importantes segundo óticas específicas41.

Esses movimentos são bastante diferenciáveis segundo muitos critérios, mas é possível

ver neles três grandes características: a) oposição ao individualismo típico do

liberalismo; b) busca pela igualdade e pela construção de sociedade sem classes; c)

continuidade do movimento democrático das revoluções do século XVIII.42

O individualismo, típico do liberalismo, foi sendo criticado ao longo do século

seguinte — e até hoje o é, mesmo nos ambientes empresariais, se bem que lá com

temperos específicos. Canotilho afirma que:

“… a luta das classes trabalhadoras e as teorias socialistas (sobretudo

em Marx, em A questão judaica) põem em relevo a

unidimensionalização dos direitos do homem ‘egoísta’ e a necessidade

de completar (ou substituir) os tradicionais direitos do cidadão

burguês pelos direitos do ‘homem total’ …”43

Nos movimentos socialistas há crítica à alienação que os indivíduos sofrem no

liberalismo, a qual os divorcia de seu “verdadeiro” lugar na luta de classes. Esta crítica

41 PIRANCIOLA, Cesare. Socialismo. In BOBBIO, Norberto (org.). Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993. p. 1198.

42 BOTTOMORE, Tom, Socialismo, in OUTHWAITE, William, org., Dicionário do pensamento social

do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1996. 43 CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª Edição, pg. 361. Coimbra: Almedina, 1999.

tem uma conseqüência pouco explorada e que será objeto do capítulo 5, sobre

titularidade dos direitos fundamentais e legitimidade para litigar em sua defesa.

A igualdade formal garante que todos terão o mesmo tratamento pelo

ordenamento jurídico. Ela foi conquista importante das revoluções liberais, mas foi

insuficiente. De fato, as sociedades continuavam profundamente desiguais, dando um

sentido de grande urgência às transformações que se anunciaram durante as revoluções

do século XIX.

A grande bandeira das revoluções sociais foi exatamente um aumento na

igualdade social, o que envolve a proteção especial aos hipo-suficientes. Mas como

implementar normativamente esta proteção especial sem ferir a igualdade formal? Para

tanto foi necessário coadunar uma noção socialista, das classes sociais, com uma já

presente no direito liberal, de relação jurídica.

Não é juridicamente possível criar normas que se utilizem de desigualdade

formal entre pobres e ricos. É possível, no entanto, proteger aqueles que desempenham

um papel de menor poder em relações jurídicas determinadas. Isto é, ao inflar

artificialmente o poder da parte hipo-suficiente numa determinada relação (e ao mesmo

tempo cercear o uso do poder da outra parte) produz-se igualdade real entre eles. Após

este rearranjo, as partes poderão negociar mais igualitariamente, estarão mais próximas

de situação não apenas formalmente, mas materialmente justa.

Esta igualdade material não aparece apenas como método, porém também

como finalidade do ordenamento. Ou seja, reduzir desigualdades sociais e criar

patamares mínimos de condições reais de vida digna passa a ser um objetivo implícito

ou explícito nas Constituições (como é o caso, mais contemporâneo, da brasileira).

Os movimentos socialistas mantiveram o ideal democrático do liberalismo, mas

para melhor compreensão deste tópico é necessário distinguir alguns usos do termo

democracia.

Democracia política se refere a regime político. Democrático é aquele que

permite ao povo a participação na tomada de decisão política que se formalizará na

norma jurídica e também na fiscalização de sua aplicação (principalmente pelo

executivo). A democracia social se refere à maior igualdade de condições de vida numa

determinada sociedade. Democrática é a sociedade em que há menor diferença entre os

vários grupos sociais — é nestes termos que se diz que o Brasil é um “monumento de

injustiça social” 44. Democracia econômica se faz pela igualitária distribuição dos

benefícios das atividades produtivas, a utopia comunista.

Os países soviéticos abandonaram os mecanismos da democracia política liberal

justificando-se com o argumento de que necessitavam de grande centralização de

decisões para levar seu povo à democracia econômica. Mas vários movimentos de

esquerda espalhados pelo ocidente buscaram o caminho da reforma, capitaneados pela

social-democracia. Destes últimos, alguns foram extremamente bem sucedidos e

alcançaram níveis elevadíssimos de democracia social, aliada a sólidas instituições

políticas democráticas, como os países escandinavos, a Holanda ou a Bélgica.

A mais evidente novidade, quando se comparam os ordenamentos jurídicos

anteriores às revoluções socialistas e os que foram influenciados por elas, é o

alargamento do rol dos diretos fundamentais.

O liberalismo45 trouxe os direitos individuais, com ênfase na liberdade. Assim,

os direitos incluíam a resistência à opressão, a legalidade, a presunção de inocência

criminal, a reserva legal penal, a liberdade de credo e de opinião, a liberdade de

expressão, a reserva legal tributária e a propriedade privada.

Já os direitos típicos conquistados pelos movimentos socialistas tinham ênfase

na busca pela igualdade material, pela justiça social. Suas mais típicas conquistas se

deram na relação de emprego, pré-regulamentando os contratos de trabalho com

44 HOBSBAWM, Eric, Era dos Extremos, pg. 397. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

45 Cujos documentos maiores são a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 26 de agosto de 1789, e as Emendas à Constituição americana, de 17776. In Textos Básicos sobre Derechos Humanos. Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus Cláudio Acqua Viva. APUD. FERREIRA Filho, Manoel G. et. alli. Liberdades Públicas. São Paulo, Ed. Saraiva, 1978.

cláusulas obrigatórias como o descanso semanal remunerado, o máximo de horas

trabalhadas por semana, as férias, o décimo-terceiro salário — o que trazia equilíbrio

para negociações que antes eram claramente desfavoráveis ao empregado, tendo de

barganhar sozinho estes benefícios com seu possível empregador.

Outros direitos, agora se atendo à imprescindível reunião de pessoas, estavam de

alguma forma próximos da natureza trabalhista, como a organização sindical e a

associação, a reunião e a greve. Ainda vagamente relacionados ao trabalho vem todo o

aparato previdenciário que se construiu nos países mais avançados e que se firmou em

direitos como a aposentadoria por tempo de serviço ou por invalidez, a licença por

doença e mais recentemente a decorrente da maternidade, a indenização por acidente de

trabalho e doença a ele relacionada, o seguro desemprego e, nalguns países, a renda

mínima.

Mais distantes da relação trabalhista estão os direitos à educação, à saúde, à

moradia, à assistência social e à cultura. Eles se encaixam nos ideais socialistas de

promoção de bem-estar mínimo para proporcionar a todos real igualdade de condições

nos embates sociais — a busca pela igualdade material.

Os direitos fundamentais, antes reduzidos aos direitos individuais de abstenção

do Estado, agora incluíam uma lista enorme de direitos individuais de obrigação do

Estado, direitos coletivos e de fruição coletiva. A natureza desta mudança vai ser melhor

entendida no tópico seguinte.

Os direitos têm sempre origem social. As normas jurídicas subsistem se tiverem

sentido social. Seus conteúdos decorrem das situações sociais específicas de cada povo.

São conflitos sociais, presentes ou meramente previstos, que levam à criação de direitos

e que determinam o perfil jurídico das relações.

Os objetivos sociais para a criação de uma norma não são uniformes. Os grupos

sociais têm diferentes interesses e desiguais níveis de influência junto aos competentes

para a criação de cada norma, sendo necessário por vezes negociar ou por vezes

submeter-se dentro do jogo democrático ou mesmo em regimes autocráticos. O que se

afirma é que a norma tem seu conteúdo determinado pelos esforços eficazes (e pela

ineficácia) dos atores sociais interessados direta ou indiretamente nos conflitos cujo tipo

ideal ela busca regulamentar. Ou pelos esforços eficazes (e pela ineficácia) dos atores

sociais interessados direta ou indiretamente nos conflitos sobre os quais ela decide, no

caso de normas concretas.

Deste ponto de vista é fácil deduzir que a gênese de cada norma tem sua própria

lógica, vinculada às estratégias que lhe deram contorno. No entanto. após a edição, a

norma se destaca de sua história prévia — longe se vão os anos em que se buscava

interpretar a norma a partir da “vontade do legislador”46. Assim, cabe ao interprete

precisar o sentido jurídico das normas, inclusive e principalmente para aplicá-las aos

casos concretos. Sua tarefa é dificultada pela multiplicidade de condições históricas de

criação das normas dum determinado ordenamento, pois esta multiplicidade faz o

conjunto se aparentar sem unidade.

Após os primeiros passos o interprete precisa compatibilizar a norma com o

ordenamento, deverá inserir a norma no concerto jurídico de outras normas igualmente

em vigor. Socorrer-se-á das regras formais de solução de antinomias47. Além disto, é

necessário encontrar sentido na norma dentro de um ordenamento que também faça

sentido. A Constituição dá unidade estrutural ao ordenamento, pela distribuição de

competências, mas também dá unidade de sentido, através de seus princípios e da

finalidade que atribui ao universo jurídico.

As finalidades do ordenamento se buscam na Constituição. Ela é a norma

política por excelência, a norma que foi posta sem limites jurídicos ao seu conteúdo,

aquela em que a soberania se expressa mais legitimamente, posto que sem quaisquer

amarras formais. Portanto é na Constituição que se buscam os parâmetros para a

unidade axiomática do sistema jurídico. Entretanto não se deixe de notar que ela

46 FERRAZ JUNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.

47 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. São Paulo/Brasília: Polis/Editora Universidade de Brasília, 1989. p. 91.

também é norma jurídica, que ela também é (ao menos em Estados Democráticos)

decorrente da pluralidade social.

Neste sentido Jorge Miranda, ao classificar as constituições entre simples e

compromissórias e após afirmar que “nenhuma Constituição é absolutamente

simples”48, ensina:

“Nenhuma Constituição compromissória consiste num aglomerado de

princípios sem virtualidade de harmonização prática a cargo da

hermenêutica jurídica e sem base dinâmica de funcionamento das

instituições; em qualquer Constituição os princípios dispõem-se ou

articulam-se segundo certa orientação e, pelo menos, em nível de

legitimidade há-de haver sempre (aquando da formação ou em

momento ulterior de modificação, expressa ou tácita) um princípio

que prevaleça sobre outros” 49.

O princípio que o autor indica como prevalente é o fio condutor do processo

político, a essência do regime político. Através dele se organizam os princípios

constitucionais. Uma vez organizados e harmonizados, passam a servir de base

axiomática a toda atribuição de sentido feita pela interpretação jurídica.

Segundo o liberalismo, a finalidade do ordenamento é, primordialmente,

limitar o Estado. A definição mais simples de Estado de Direito é a daquele modelo de

organização política em que o Estado obedece a ordem jurídica. O próprio Estado não

precisa fazer quase nada, meramente manter a paz social — o artigo 2º da Declaração

francesa de 1789 reza: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos

direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a

prosperidade, a segurança e a resistência à opressão”50. Essencialmente, ele deve deixar

48 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, pg. 332. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

49 Idem, ibidem.

50 In Textos Básicos sobre Derechos Humanos. Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus Cláudio Acqua Viva. APUD. FERREIRA Filho, Manoel G. et. alli. Liberdades Públicas. São Paulo, Ed. Saraiva, 1978.

que as pessoas cuidem de seus negócios, pois segundo o liberalismo a busca pelo

proveito próprio inexoravelmente acabaria por levar ao ganho da sociedade como um

todo, desde que se mantenha a ordem. O Estado e o ordenamento devem “deixar que se

faça, deixar passar”, pois mecanismos intrínsecos ao funcionamento dos mercados

operariam a mais justa distribuição de riquezas e benefícios do sistema de produção

capitalista51.

Neste sentido é que os direitos fundamentais se colocam apenas como limites à

ação do Estado52. Diante da visão liberal, direitos inclusive são muitas vezes chamados

“liberdades fundamentais”, protegidas da ação estatal. São lugares jurídicos onde o

Estado não pode ir, bens individuais que o Estado não pode atacar sem prévia permissão

legal. Se pensarmos no modelo de norma jurídica como prescrição (permissão,

obrigação ou proibição), os direitos liberais são proibições ao Estado: tais e quais

normas, tais e quais atos não serão válidos. Eles estabeleceram as premissas para a idéia

de competência como limitação ao exercício do poder. O ato jurídico, desde então, só

pode ser realizado validamente se preenchidos os requisitos formais de permissão legal:

pessoal, territorial, material, procedimental e temporal (posteriormente se adicionando o

teleológico).

As revoluções socialistas tinham como bandeira criar uma ordem social

diferente, alternativa à “exploração do homem pelo homem”. Buscava-se ou o fim do

Estado ou sua radical modificação, e do ponto de vista dos direitos fundamentais

alcançou-se uma transformação bastante importante, inclusive nos ordenamentos que

mantiveram a democracia política. As finalidades do Estado passam a ser de

proporcionar distribuição de renda e transformação social para situações de igualdade

material mais acentuada.

Os direitos fundamentais passam, naquela perspectiva da norma prescritiva, a

obrigar o Estado e não apenas proibi-lo. Mesmo as velhas liberdades (direito à

51 RIBEIRO, Renato Janine. República. São Paulo: Publifolha, 2002.

52 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002.

propriedade; direito à liberdade de ir e vir, de manifestação, de credo ou convicção;

direito à igualdade entre gêneros, raças, cores, religiões, etnias e quetais; direito à vida e

à segurança, por exemplo) passam a ser vistas como obrigações, para o Estado, de

proporcionar condições materiais de seu exercício53. Note-se que esta mudança é

radical, pois também traz profundas alterações nas formas de legitimação da ordem e do

Estado. Por maior que seja a relevância do tópico, entretanto, deve-se resistir a tratar

dele neste momento.

No liberalismo a parte da relação jurídica era sempre a pessoa (física ou

jurídica), vista como subjetividade de direitos e deveres. Dela era a titularidade de

direitos e é desta titularidade de que decorria a legitimidade para os defender em juízo.

No início, portanto, as relações jurídicas processuais decorriam das relações jurídicas

ditas “materiais” — só era possível defender-se direito próprio em nome próprio e

excepcionalmente direito alheio em nome alheio.

Foram os movimentos de inspiração socialista que permitiram a defesa de

direitos alheios em nome próprio, pelos sindicatos. Todo o ideário jurídico liberal lida

com pessoas como indivíduos livres e autônomos, ao passo que a realidade social é de

papéis sociais sendo desempenhados de maneira razoavelmente uniforme por grupos

consideráveis. As sociedades, aqui especificamente as sociedades industriais, são

determinantes de modelos culturais e econômicos de relacionamento humano. Estes

modelos de relacionamento se repetem ad infinitum e determinam modelos de

relacionamentos jurídicos aplicáveis a grande número de pessoas.

Mesmo os contratos muitas vezes têm influência nas vidas de pessoas que não os

assinaram. É inaplicável considerar os seres humanos como entes isolados. Num

ambiente com relacionamentos sociais altamente complexos deve haver uma forma de

reconhecer, juridicamente, esta complexidade e as conseqüências práticas da

estabilidade (ou instabilidade) destes relacionamentos.

53 Idem, ibidem.

Perceba-se a profundidade da transformação: por isto foi possível criarem-se

sofisticadas formas judiciais de legitimidade, como o Dissídio Coletivo brasileiro, em

que alguém defende em juízo, em nome próprio, interesse alheio — inclusive interesse

que ainda não é manifestável e não existe durante o transcurso da ação, como é o caso

de alguém que passa a fazer parte da categoria após a sentença. A legitimidade para

defesa dos direitos sociais deixa de ser dada pelo contrato para ser dada pela lei. Do

contrato apenas participam as vontades individuais enquanto a formação da lei se dá a

partir dos conflitos sociais. Trata-se de passo importantíssimo para a criação de uma

concepção muito mais democrática de direito, democrática tanto por objetivar a

democracia social quanto por aprofundar a democracia política, deslocando o foco do

contrato para a lei como norma-modelo do ordenamento.

O outro grande passo, sob este critério de abandono das premissas liberais,

demorou mais de um século para ser dado, já sob outras influências. A partir da década

de 70 do século passado a titularidade se esparramou suficientemente para aceitar a

categoria dos direitos difusos, ou direitos de titularidade difusa.

Nenhum dos grandes movimentos sociais que definiram o que chamamos

direitos fundamentais tem relevância única, esta a resposta que se buscou apontar aqui.

Não é possível enxergar uma essência liberal ou socialista ou mesmo qualquer essência

politicamente unívoca neste conjunto. Nada que não a pluralidade.

A titularidade do direito ao meio ambiente equilibrado é difusa. A legitimidade

para lutar por este direito é a chamada extraordinária.

2.4 DOMÍNIO DA ÁGUA

O Art. 1º, I, da Lei Federal 9.433/97, estabelece que a água é bem de domínio

público. O Art. 99 do Código Civil estreita a qualificação, inserindo a água dentre os

bens de uso comum do povo, em contraposição aos bens de uso especial e aos

dominicais.

O Art. 1º do Decreto 24.643/34 (Código das Águas) estabelecia que “as águas

públicas podem ser de uso comum ou dominicais”. Há que se levar em consideração,

entretanto, que os bens dominicais são alienáveis, enquanto as águas, segundo o Art. 18

da Lei 9.433/97, “são inalienáveis”. Assim, só há sentido no ordenamento se elas forem,

como o são, bens públicos de uso comum do povo, incluindo-se o dispositivo do antigo

Decreto dentre os revogados pelo Art. 57 da nova Lei. As águas pluviais, entretanto,

continuam regidas pelo Código das Águas, Art. 102 e seguintes. Quanto a isto, a “Lei

9.433/97 não modificou as sábias regras de 1934”.54

A água é, portanto, bem público de uso comum. Sua titularidade é matéria

constitucional. O Art. 20, III e VIII, da Constituição da República, estabelece quais são

as águas da União, enquanto o Art. 26, I, estabelece as águas dos Estados. Quanto às

águas superficiais, cabe observar que é da titularidade da União apenas o potencial

hidrelétrico dos corpos estaduais. Não fosse suficientemente clara a Constituição, a Lei

Federal 9.984/00, Art. 7º, § 1º, vem dizendo “quando o potencial hidráulico [de

produção de energia elétrica] localizar-se em corpo de água de domínio dos Estados ou

do Distrito Federal […]”, límpida a inferência de que o potencial é da União, enquanto a

água é do Estado (ou do Distrito Federal). Quanto às águas subterrâneas, pertencem aos

Estados.

Disposição sobre assunto relacionado é o Código Florestal (Lei Federal

4.771/65), especificamente seu Art. 2º. Um dos critérios de definição de área de

proteção permanente é a proximidade de corpos d’água (cursos de rios ou redor de

lagoas, reservatórios e nascentes). O dispositivo não altera a propriedade dos bens,

apenas atribui a eles um regime diferente. Além disto, “[...] de preservação permanente

é a flora que se encontre enquadrada dentro das condições mencionadas na lei

federal”55, mesmo que a ratio da lei seja “[...] a preservação da vegetação que protege

os cursos d’água”56.

54 MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 415.

55 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 48.

56. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 49.

2.5 USO DOS RECURSOS HÍDRICOS: OUTORGA E COBRANÇA

Outra indagação, de fundamental importância para a atividade econômica, é o

regime do uso dos recursos hídricos, ou seja, sobre os requisitos que permitem este uso,

as condições em que se pode dar e as vedações ao seu exercício. Este é o regime das

outorgas de uso dos recursos hídricos. Já que a propriedade dos recursos hídricos é

pública, sua utilização depende de ato jurídico de poder, regido por normas que

determinam competência e formalizado de maneira previamente determinada. Trata-se

de desdobramento do já dito princípio da legalidade.

A outorga permite ao Estado controlar tanto a captação de água quanto a emissão

de efluentes em seus corpos. É, portanto, instrumento fundamental para a

implementação de uma política nacional de gestão de recursos hídricos. Em par com a

discussão sobre a natureza jurídica da outorga (bem como sobre as suas limitações e

relações com os direitos dos administrados) caminha a determinação de seu papel na

implementação da Política e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos

Hídricos.

Norma geral é que a água deve ter usos múltiplos, ressalvadas as eventualidades

em que se devem observar prioridades. A Lei Federal 9.433/97, diz textualmente que “a

gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas” (Art.

1º, IV), entretanto em “situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o

consumo humano e a dessedentação dos animais” (Art. 1º, III). Este o fundamento para

outro mandamento constante no mesmo texto, o Art. 15, V, o qual permite a suspensão

da outorga de uso, pelo outorgante, nos momentos de escassez. Ato vinculado quanto às

condições e também quanto a seu conteúdo. Só pode haver a suspensão, em caso de

escassez, para o uso humano e dessedentação animal.

O termo outorga é utilizado tanto na Constituição da República quanto, bastante

coerentemente, nos textos infraconstitucionais sobre recursos hídricos. Sua natureza

jurídica é de ato administrativo, emanado, portanto, ao final de um procedimento

administrativo. Há que se aprofundar a discussão sobre sua categorização pelo critério

da forma (decreto, resolução, deliberação ou portaria) e de conteúdo típico (se de

permissão, autorização, concessão ou licença), dadas as diferenças entre os institutos e

suas conseqüências jurídicas. É assim que se poderá melhor definir o regime jurídico a

ser obedecido pelos empreendimentos econômicos ou sociais que dependam da outorga.

Na definição de Maria Sylvia Zanella di Pietro “autorização é o ato unilateral

administrativo e discricionário, pelo qual a Administração consente, a título precário,

que o particular se utilize de bem público com exclusividade.”57 Pode ser gratuita ou

onerosa e tem característica importantíssima para este estudo: “não é conferida com

vistas à utilidade pública, mas no interesse privado do utente”58. Daí sua maior

precariedade, transitoriedade e conteúdo de faculdade, não dever, de utilização do bem

pelo usuário. Com relação à discricionariedade, com ela concordam Hely Lopes

Meireles e Celso Antonio Bandeira de Mello, calando sobre a onerosidade ou o dever de

uso59,60, sobre todo o restante, silenciam.

Permissão de uso, ainda nas palavras de Di Pietro, é “ato administrativo

unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a Administração

Pública faculta a utilização privativa de bem público, para fins de interesse público”61. A

característica diferenciadora entre permissão e autorização é sua finalidade, daí decorre

que a primeira obriga o usuário a exercer o uso, sob pena de caducidade do ato, o que

Hely Lopes Meirelles também afirma62. Quanto ao prazo, a permissão também pode ser

qualificada, gerando, neste caso, o direito subjetivo do permissionário até o termo pré-

57 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16. ed. . São Paulo: Atlas, 2003, p. 564.

58 Idem, Ibidem.

59 LOPES MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 171.

60 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 273

61 Idem, Ibidem. p. 565.

62 Idem, Ibidem. p. 172.

fixado para a utilização. Celso Antônio Bandeira de Mello afirma a vinculação do ato,

mormente quando se trata se permissão de serviço63.

Seguindo ainda a mesma Di Pietro: “A concessão de uso é contrato

administrativo pelo qual a Administração Pública faculta ao particular a utilização

privativa de bem público, para que a exerça conforme sua destinação”.64 O caso de

emprego de concessão é aquele em que a utilização do bem é mais onerosa para o

usuário. Daí a fixação de prazos mais longos e a conseqüente necessidade de licitação.

As concessões de uso podem ser de simples uso ou de exploração; temporárias ou

perpétuas; remuneradas ou gratuitas; de utilidade pública ou privada; e autônoma ou

acessória a concessão de serviço público. Hely Lopes Meirelles chama a atenção para a

possibilidade de concessão real de uso, “transferível a terceiros por atos intervivos ou

por sucessão legítima ou testamentária”65 e o classifica como contrato administrativo,

não ato negocial.

Licença é ato que se relaciona ao exercício de uma atividade, e que envolve

“direitos, caracterizando-se como ato vinculado”66. Exatamente por envolver direitos, é

meramente declaratório, enquanto a autorização, por exemplo, é ato constitutivo. Em

todas estas características há acordo entre Hely Lopes Meirelles67 e Celso Antônio

Bandeira de Mello68.

63 Idem, Ibidem.

64 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16. ed. . São Paulo: Atlas, 2003, p. 567.

65 LOPES MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 242.

66 CRETELLA Júnior, Nelson (RT 486/18), apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2003. Pg. 220.

67 Idem, Ibidem. p. 171

68 Idem, Ibidem. p. 273.

Será útil, antes de prosseguir, ressaltar que alguns usos de recursos hídricos são

independentes de outorga. Em obediência ao princípio da legalidade, todos os

comportamentos privados sem restrição em lei são permitidos, é a interpretação

consagrada no Art. 5º, II, da Constituição da República. Como o caput do Art. 12 da Lei

9.433/97 lista os casos em que a outorga é requerida, a interpretação sistemática leva à

conclusão de que todos os usos que não constem dos incisos do dispositivo são

permitidos, independem da outorga. O administrado pode fazer tudo que a lei não

proíba. Entretanto, o inciso V, do Art. 12 ora em foco, é bastante aberto, ao dizer que

dependem de outorga “outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da

água existente em um corpo de água”. A expressão é suficientemente vaga para abarcar

quase qualquer comportamento privado de interação com qualquer “corpo de água”,

considerados os adjuntos adnominais e a amplitude do conceito de corpo de água. Daí o

sentido do § 1º do artigo mencionado logo acima, listando os casos cujo uso será

independente de outorga. Trata-se do uso para satisfação de “pequenos núcleos

populacionais” rurais (inciso I) ou considerados insignificantes (II e III) pelo

regulamento.

A outorga é ato administrativo e como tal está submetido ao princípio da

legalidade. A norma jurídica, entendida como proposição deôntica de comportamento,

comporta três operadores: proibir, permitir ou obrigar. A proibição de um

comportamento equivale à obrigação de comportamentos diferentes dele (nas mesmas

situações). A permissão expressa é definida por uma série de obrigações e proibições

que expressamente a limitam, mais aquelas advindas da interpretação do ordenamento,

enquanto a permissão tácita é limitada pelo ordenamento como um todo, mormente os

princípios constitucionais.

O inciso II do Art. 5º da Constituição da República estabelece que “ninguém será

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Portanto

apenas lei, abaixo das Constituições, pode inaugurar mandamentos. Apenas a lei

inaugura o ordenamento criando obrigações de ação ou abstenção, ou seja, apenas a lei

cria proibições, permissões expressas ou obrigações.

Do lado dos administrados, o princípio estabelece os contornos jurídicos da

liberdade: é livre todo comportamento que a lei deixa de proibir. A vontade privada se

forma livremente e pode decidir tanto sobre realizar ou deixar de realizar determinados

atos como também sobre o modo como levará a cabo seu intento. No âmbito privado a

liberdade (direito) se exerce a partir da vontade.

Do lado da administração, o princípio estabelece os contornos jurídicos da

competência: ao agente público é estabelecido poder e dever de comportar-se apenas da

forma como a lei obrigar ou permitir expressamente. A legitimidade se forma a partir do

ordenamento, fundamentalmente dos procedimentos previstos no ordenamento. No

âmbito público a competência (poder e dever) se exerce a partir da legitimidade.

É a este princípio da legalidade que a outorga se submete, ao que manda a

Constituição da República, no caput do Art. 37. A outorga é competência de alguém, a

qual só pode ser exercida nos termos estritos do procedimento e dos critérios legais.

Os critérios de competência são seis: pessoal, temporal, territorial,

procedimental, material e teleológica69. Com base neles pode-se descrever o perfil

jurídico da outorga no nível federal no nível estadual. Dada a variação na forma e no

conteúdo dos regulamentos e mesmo a sua ausência em alguns Estados, optou-se por

destacar um caso específico, que é o do Estado de São Paulo. O objetivo é apenas

completar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com seu nível

estadual e, portanto, não há necessidade de aprofundar e detalhar as distinções e

características da outorga em cada Estado particular. O quadro abaixo traz as

informações essenciais, discutidas a seguir.

Competência para

concessão da outorga

Âmbito Federal Âmbito Estadual – São

Paulo

Pessoal Diretoria Colegiada da

ANA, por Resolução

Superintendente do DAEE,

por Portaria

69 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos do Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 104.

Material Águas de domínio da

União

Águas de domínio do

Estado

Territorial Federação Estado de São Paulo

Temporal Indeterminada Indeterminada

Procedimental Típico de autorização De autorização ou

concessão

Teleológica Objetivos da Lei 9.433/97 e

do Plano de Bacia

Objetivos da Lei 9.433/97 e

do Plano de Bacia

Quanto à pessoa, no nível federal a competência é da Diretoria Colegiada da

Agência Nacional de Águas (ANA), como determina o Art. 12, V, da Lei Federal

9.984/00. No Estado a competência para a outorga é do Departamento de Água e

Energia Elétrica – DAEE, por determinação do regulamento da Lei 7.663/91, Decreto

41.258/96, que assim dispõe em seu Art. 2º.

Quanto à matéria, a Lei Federal 9.984/00, em seu Art. 4º, IV, dispõe que cabe à

ANA outorgar o direito de uso “de recursos hídricos em corpos de água de domínio da

União”. Aos Estados cabe outorgar o direito de uso sobre recursos de seu próprio

domínio. Pode haver delegação, pela União, para outorga de recurso seu por Estado ou

pelo Distrito Federal, conforme o parágrafo único do Art. 14 da Lei Federal 9.433/97.

A Lei 9.433/97 estabelece que a outorga é um dos instrumentos da Política

Nacional de Recursos Hídricos (Art. 5º, III). Ora, a natureza de instrumento é de

existência submetida a finalidades alheias, sendo assim inescapável que as finalidades

da outorga são aquelas da Política, estabelecidas no seu Art. 2º, o qual se reproduz

abaixo pela importância de seus termos exatos.

Art. 2º. São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:

I) assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade

de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;

II) a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o

transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;

III) a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de

origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos

naturais.

Quanto ao procedimento serão necessárias maiores delongas, já que aqui se

encontra o perfil jurídico do instituto e, portanto, os limites de sua dinâmica. Será útil

analisar o conteúdo da decisão que realiza a outorga, seu prazo, sua forma e sua

natureza jurídica.

No nível federal a lei que criou a ANA estabelece que o ato é autorização (Art.

4º, IV). A lei estadual sobre o assunto (Lei 7.663/91), não diz qual o conteúdo do ato,

entretanto o decreto que a regulamentou (Decreto 41.258/96) o faz. Da exegese do Art.

2º do Anexo ao citado decreto, em conjunto com seu Art. 1º e os artigos 9º e 10 da lei,

mais a Portaria DAEE 717/96 é possível traçar quadro dos atos a serem utilizados.

Observa-se na legislação paulista muito mais cuidado e afinação com as definições

doutrinárias dos atos administrativos, enquanto na legislação federal a simplicidade é a

tônica.

Emite-se autorização quando o objetivo for “a implantação de qualquer

empreendimento que possa demandar a utilização de recursos hídricos, superficiais ou

subterrâneos” ou “a execução de obras ou serviços que possa alterar o regime, a

quantidade e a qualidade desses mesmos recursos”. Também se emite autorização num

segundo conjunto de casos, se houver interesse eminentemente privado na “derivação de

água do seu curso ou depósito, superficial ou subterrâneo” ou no “lançamento de

efluentes nos corpos d’água”. A regra geral, portanto, é que empreendimentos, obras,

derivações ou lançamentos terão o uso da água outorgado por autorização quando

houver interesse privado. Se houver interesse público na “derivação de água do seu

curso ou depósito, superficial ou subterrâneo” ou no “o lançamento de efluentes nos

corpos d’água”, aí se terá concessão.

A doutrina usualmente nem mesmo compara a autorização e a concessão,

tamanha a diferença que há entre ambas. Fundamentalmente, a autorização é ato

administrativo enquanto a concessão é contrato. A regulamentação da outorga do uso de

água estabeleceu, não obstante a teoria do direito administrativo, regimes um tanto

próximos para as duas, levando doutrinadores a chamar a outorga de autorização

especial.

A Lei 9.433/97, em seu Art. 16, estabelece que toda outorga de uso de água tem

prazo (sempre inferior a trinta e cinco anos, porém renovável), o que é obedecido

também pela legislação do Estado de São Paulo sobre o assunto (Lei nº 7.663/91).

Portanto trata-se de autorização qualificada. O prazo, no nível federal, pode ser distinto

nos casos em que a outorgada é “concessionária ou autorizada de serviço público ou de

energia elétrica” (Art. 5º, § 4º da Lei 9.984/00). Ainda pode haver alterações, durante a

outorga ou eventualmente ocasionando sua suspensão, em decorrência da perda da

navegabilidade do corpo (Art. 13 da Lei 9.433/97) ou eventos naturais como inundações

ou secas (Art. 4º, X, da Lei 9.984/00). No caso estadual o prazo também pode ser

diferente da regra geral, especificamente nos casos em que haja “situações

emergenciais” ou “porque fatores sócio-econômicos o justifiquem” (Art. 7º do Anexo ao

Decreto 41.258/96). Observa-se que a ressalva é pragmática, pois a autoridade que

emite a outorga é a mesma que emite a Portaria de outorga que fixa o dito prazo. Seria

possível que ela emendasse o texto normativo sempre que o caso emergencial ou a

realidade sócio-econômica assim o exigisse.

A renovação, em São Paulo, acontece por iniciativa do interessado, que deverá

protocolar requerimento com este conteúdo até seis meses antes do termo final da

outorga (Art. 12 do Anexo ao Decreto 41.258/96). Se o outorgado deixar de exercer o

uso, a outorga “perece de pleno direito” (Art. 13 do Anexo ao Decreto 41.258/96). No

nível federal ainda não há regulamentação tão precisa, todavia o Art. 5º, § 3º da Lei

9.984/00 permite a prorrogação, sempre “respeitando-se as prioridades estabelecidas

nos Planos de Recursos Hídricos”. O ato da outorga, no nível federal, estabelece

usualmente o prazo.

Resta saber se a existência dos prazos acima implica ou não em indenização no

caso de retirada extemporânea. Ora, a outorga é de direito de uso, como a legislação

repete consistentemente (Lei 9.433/97, Art. 12 e Lei 9.984/00, Art. 5º e particularmente

o § 1º do Art. 6º). O outorgado tem direito ao uso do recurso hídrico, nas condições

estabelecidas no ato da outorga. Entretanto duas questões se configuram: a) se as

restrições posteriores, a suspensão ou a retirada da outorga seriam indenizáveis; e b) se

no silêncio da outorga, é possível impor as restrições legais.

Com relação à primeira questão, parece certo que o ponto fulcral para sua

resposta está na motivação do ato administrativo que altera, suspende ou retira a

outorga. Se houver desobediência aos requisitos constitucionais ou legais no ato de

autorização ou concessão, inclusive descompasso com o Plano de Bacia, haveria

anulação, ou invalidação, do ato. Com efeitos ex tunc, a invalidação não é indenizável.

Se porventura estiver presente mera irregularidade, então seria imperativa a

convalidação do ato, face à função social do uso dos recursos hídricos.

Se o uso está de acordo com o Plano de Bacia, então o outorgante está dando

função socialmente relevante ao bem público. A Lei 9.433/97 ordena, como já se disse,

que “a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas”

(Art. 1º, IV). A Lei não estabelece faculdade, mas dever; não permite, porém obriga o

órgão gestor a proporcionar uso múltiplo. Por estes motivos é que se afirma que o ato de

convalidação é vinculado. Para obedecer à função social da propriedade pública, para

dar a ela o uso maior e mais relevante possível.

Pode ocorrer de o outorgado descumprir alguma das condições da outorga, como

captação ou emissão superiores às autorizadas ou concedidas, ausência do uso por três

anos consecutivos, emissão com qualidade ou o regime de captação distintos do

estabelecido. Nestes casos dar-se-á a sanção prescrita no ato da outorga, podendo chegar

à sua cassação (Lei 9.433/97, Art. 15, I e II). No nível estadual, O Decreto 41.258/96

estabelece a revogação em caso de “descumprimento de qualquer norma legal ou

regulamentar, atinente à espécie” (Art. 11 do Anexo ao decreto citado). Sempre, mesmo

nestes casos, devem ser levados em consideração os argumentos acima expostos,

motivadores da manutenção da outorga.

Entretanto se evento posterior, independente das vontades das partes, impedir a

continuidade do uso, poderá haver sua suspensão, caducidade ou mesmo a revogação,

sem indenização ao outorgado. O evento pode ser caso fortuito ou força maior que por

si só impossibilite a continuidade da outorga, ou que leve à alteração no Plano de Bacia

e este à impossibilidade. A caducidade se dá “porque sobreveio norma jurídica que

tornou inadmissível a situação antes permitida pelo direito e outorgada pelo ato

precedente”70, caso em que a alteração no Plano leva à retirada. A legislação paulista,

usando incorretamente o termo, estabelece a revogação se “estudos de planejamento

regional de recursos hídricos ou a defesa do bem público” apontarem para a necessidade

da retirada (Art. 11 do Anexo ao Decreto 41.258/96).

A alteração da quantidade, da qualidade ou do regime da água captada são, mais

precisamente, os fatos impeditivos. Nestes casos a autoridade deve sempre dar

prioridade aos usos mais socialmente relevantes, por força da Constituição da

República, da legislação e do Plano de Bacia. Alguns destes usos são o consumo

humano e a dessedentação animal (Lei 9.433/97, Art. 1º, III), a prevenção de grave

degradação ambiental (Art. 15, IV) ou a manutenção da navegabilidade (Art. 15, VI).

Note-se que em qualquer destes casos não haverá indenização, até porque se impõe a

decisão de salvaguardar o benefício mais geral em detrimento do mais particular, e a

vida supremamente.

De maneira sucinta, a suspensão ou retirada da outorga nunca geram

indenização, salvo se ilegais, entretanto é imperativo que estas sejam as últimas

alternativas das quais lançará mão a outorgante, optando sempre que possível pela

manutenção do uso.

À segunda questão, sobre a imposição de restrições ao uso que não constem do

ato de outorga.

Decididas as questões sobre o regime da outorga, uma última questão ainda é

nebulosa, sobre a necessidade de prévia licitação. A Lei 8.666/93, em seu Art. 2º, prevê

a licitação como procedimento prévio à concessão, desde que esta gere contrato, ou seja,

70 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 280.

desde que haja acordo de vontades entre Administração e usuário do bem. No nível

federal não se cogita da necessidade de licitação, já que o conteúdo jurídico da outorga é

autorização, ato e não contrato administrativo. A legislação do Estado de São Paulo

prevê, como se viu, a concessão nos casos de captação de água ou emissão de afluentes

em benefício de interesse público. O caso típico é o abastecimento e saneamento

urbanos. A Lei 11.445/07 estabelece, no parágrafo único do seu Art. 4º, que, para a

prestação de serviços públicos de saneamento básico, a utilização de recursos hídricos

“[...] é sujeita a outorga de direito de uso, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de

1997, de seus regulamentos e das legislações estaduais”. Portanto esta outorga, quanto

aos critérios e procedimentos legais, obedece à legislação geral sobre água, não se

constituindo caso especial.

Aí haverá licitação, todavia note-se que a concessão do serviço não é de

titularidade do DAEE — outorgante estadual do direito de uso da água. No caso

específico do abastecimento e saneamento urbanos, inclusive, a competência é comum

(Art. 23, IX da Constituição da República). Cabe ao Município a prestação do serviço,

por interpretação do Art. 30, V, também da Constituição da República, além da opção

pelo ente mais próximo “ter como objetivos e motivação a melhoria da qualidade dos

serviços e uma melhor articulação do setor com a política municipal de

desenvolvimento urbano”71.

Deve haver licitação, mas apenas para a prestação do serviço. Para a outorga ela

é inexigível, por aplicação do Art. 25 da Lei 8.666/93, vez que há “inviabilidade de

competição”. O fato é que o serviço público é principal em relação ao uso do recurso

hídrico. A administração municipal decidirá os critérios para eventual licitação do

serviço público (usualmente menor tarifa e melhor técnica sanitária). Vencida esta

licitação, a da outorga fica sem competidores.

71 VARGAS, Marcelo Coutinho. Desafios da transição para o mercado regulado no setor de saneamento In: Anuário GEDIM 2002: cidade serviços e cidadania. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 131.

2.5.1 Cobrança gera internalização de externalidades negativas

A água é essencial à vida, antes mesmo de ser essencial à vida econômica —

entretanto a economia é condição da vida humana.

A atividade econômica produz externalidades, isto é, efeitos secundários aos

objetivos propriamente produtivos. Estas externalidades são positivas, se trazem ganhos

à sociedade ou a pessoas, ou negativas, se trazem danos a bens sociais ou individuais.

Ora, o meio ambiente é bem social, é direito difuso o meio ambiente equilibrado. A

água é parte deste equilíbrio, portanto os malefícios que a atividade econômica produz

são externalidades negativas.

[...] há um tipo de depreciação não considerado nos agregados

econômicos convencionais: o decorente da degradação ambiental. O

quanto determinados fluxos de produção afetam as condições

ambientais a médio e a longo prazo [...]. Este tipo de depreciação,

supostamente, é de muito maior importância do que o dos recursos de

capital que se desgastam. Até porque o capital é, também ele, reservas

naturais transformadas.72

Um dos mecanismos de operacionalização deste fenômeno, para realizar o

desenvolvimento sustentável, é a incorporação, ou internalização, das externalidades

ambientais negativas.

Trata-se de abordagem de fundamentação econômica, via emprego de

instrumentos tributários. Baseia-se no princípio do pagamento pelo

poluidor, PPP. Os custos em que a sociedade como um todo incorre

para controlar ou remover externalidades negativas geradas por

empresas poluidoras são, no caso, ressarcidos por tributos pagos por

essas empresas. A eficácia desta categoria de controle é função direta

dos danos que a internalização dos custos da degradação ambiental

causam à capacidade de competição das empresas tributadas. O

72 ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à economia. São Paulo: Atlas, 2002. p. 588.

objetivo principal é estimular tecnologias de produção que reduzam a

zero as externalidades negativas — desonerando assim as empresas

desse custo adicional.73

Duas observações se fazem necessárias.

Primeira, que a cobrança pelo uso da água não é propriamente tributária, se bem

que, nos termos em que o raciocínio econômico se coloca, pode ter função similar, ao

onerar a produção. A natureza jurídica da cobrança é a remuneração da outorga onerosa.

O Art. 20 da Lei Federal 9.433/97 diz textualmente que “serão cobrados os usos de

recursos hídricos sujeitos a outorga”. Não se trata de tributo, indenização ou sanção

administrativa. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos, na Moção 26/2004

refere que “os recursos auferidos com a cobrança pelo uso da água – por não terem a

natureza jurídica de imposto, contribuição social e de intervenção no domínio

econômico […] não podem ser contingenciados […]”. A natureza jurídica da cobrança é

a de preço público, remuneração do uso de bem público.

Com a ressalva sobre a natureza jurídica da cobrança, um de seus efeitos é

realmente a busca, pela empresa, em desonerar-se deste custo. Com efeito, o uso da

água será mais oneroso quanto mais danoso for para o meio ambiente. A devolução de

água limpa ao meio ambiente gera cobrança menor que a devolução de água poluída.

Assim, a cobrança funciona como forma de internalização desta externalidade.

Segunda observação é que a cobrança não apenas onera o produtor, servindo

como estímulo a que use a água de maneira mais responsável. Os recursos advindos da

cobrança têm como destino fundo que financia obras e programas que recuperaram o

meio ambiente. O efeito benéfico da cobrança, desta forma, é potencializado.

Os órgãos competentes para a cobrança, no nível federal, são a ANA (Lei

9.984/00, Art. 4º, IX) e as Agências de Águas, por delegação da outorgante (Lei

9.433/97, Art. 44, III). É que a Agência de Águas só pode ser criada se tiver sua

73 ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à economia. São Paulo: Atlas, 2002. p. 383.

viabilidade financeira garantida pela cobrança (Lei 9.433/97, Art. 43, II), então no

período entre a instituição da cobrança e a criação da Agência, a ANA realiza a cobrança

e o repasse ao Comitê para a aplicação dos recursos. Após a criação da Agência é que se

dá a delegação. Resta terceira possibilidade, que é o contrato de gestão a partir do qual

se dá a delegação da competência da ANA a entidades sem fins lucrativos que tenham

recebido do Conselho Nacional de Recursos Hídricos a delegação das funções de

Agências de Água (Lei 10.881/04, c/c Lei 9.433/97, Art. 47). Note-se que esta

delegação é sempre determinada pela criação da Agência de Águas por solicitação do

Comitê de Bacia ou da delegação também solicitada pelo Comitê. É ele o órgão

competente para a iniciativa (Lei 9.433/97, Art. 43).

Os recursos financeiros arrecadados serão prioritariamente aplicados “no

financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos

Hídricos”, sendo no máximo 7,5% do total aplicados “no pagamento de despesas de

implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema

Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos” (Lei 9.433/97, Art. 22). Os Planos

serão discutidos de maneira mais profunda no capítulo Terceiro.

A Lei Estadual 12.183/04 regulamentou o assunto, estabelecendo de antemão

que a competência da “entidade responsável pela outorga do direito de uso”, hoje o

DAEE, é apenas exercida “nas Bacias Hidrográficas desprovidas de Agências de

Bacias”; criada a Agência, é ela a competente (Art. 7º). Em qualquer caso, o produto da

cobrança é depositado em fundo próprio, o FEHIDRO, já implementado no Estado. A

aplicação se dará de acordo com o decidido pelo Comitê de Bacia e pelo Conselho

Estadual (Art. 2º).

A Agência de Bacia e a Agência de Águas são órgãos correspondentes, sempre

funcionando como “secretaria executiva do respectivo ou respectivos Comitês” (Lei

9.433/97, Art. 41). É que pode haver uma única Agência para mais de um Comitê.

2.5.2 Função social da outorga

A outorga do direito de uso de bem público também deve obedecer à função

social. As normas que incidem sobre o ato de outorga são a Constituição da República, a

Lei 9.433/97, a lei que lhe der a competência e os planos de recursos hídricos, sendo

mais específico e importante para a decisão da outorga o Plano de Bacia Hidrográfica.

Tanto o Plano quanto a outorga devem permitir usos socialmente interessantes para a

água, sendo fundamental que ela seja empregada, nos seus múltiplos usos, em sua

função social.

Questão prática da maior importância é a definição, caso a caso, da função social

dos corpos d’água. Conforme se expõe no Capítulo Três, os usos de cada corpo são

definidos a partir dos planos de recursos hídricos, entretanto esta definição não resolve

por completo a questão, posto que apenas a transfere para as autoridades elaboradoras

dos planos. A definição de critério para a função social dos recursos hídricos e dos seus

usos subsiste, a não ser que se imagine que o ordenamento entregou competência aberta

ao elaborador dos planos, para decidir arbitrariamente sobre os usos de cada volume de

água.

Os critérios até o momento apresentados para a definição da função social estão

no Art. 3º da Constituição da República — inclusive no inciso I, que refere ao objetivo

de se construir “sociedade livre, justa e solidária”. O uso deve aplicar justiça no

momento de sua outorga e contribuir para construção de justiça futura. Resta definir-se

o ideal de justiça.

Em conclusão estreita, a água é bem público de uso comum do povo, sendo de

domínio da União apenas os corpos superficiais que banhem mais de um Estado ou País

e o restante de domínio dos Estados e do Distrito Federal. O direito ao uso dos recursos

hídricos é adquirido por pessoas físicas ou por outras pessoas jurídicas, de direto

público ou privado, por outorga dos entes federais ou estaduais competentes, sempre

segundo critérios legais e derivados do Plano de Bacia. A outorga federal tem conteúdo

de autorização e forma de Resolução emanada pela Diretoria Colegiada da ANA; no

Estado de São Paulo, tem conteúdo de autorização ou concessão e forma de Portaria de

competência do Superintendente do DAEE. A cobrança por este uso tem natureza de

tarifa e é de competência da outorgante ou do órgão executivo do Comitê de Bacia,

revertendo os fundos angariados para aplicação decidida por ele é pelo Conselho

respectivo.

O critério da função social deve satisfeito na elaboração dos planos e na

outorga, silentes os planos. Este critério deve ser constitucional e permitir a crítica às

decisões que concedam ou neguem outorgas.

3 POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS

A liberdade econômica é moldura de energia social bastante poderosa, capaz de

impulsionar a criação de riquezas e o aproveitamento social dos recursos naturais. É

necessário, entretanto, que ela seja tão regulamentada quanto qualquer outra liberdade,

para que seja orientada, pelas demandas sociais, na direção do desenvolvimento e não

do mero crescimento econômico. A Política Nacional de Recursos Hídricos estabelece

os caminhos, guiando as iniciativas privadas e públicas através do planejamento do uso

da água.

Os órgãos de direito público se organizam a partir de suas funções, não são

criados com competência para as definir posteriormente — regra que se aplica mesmo

no caso de o regimento interno esmiuçar mandamento contido em lei formal, ele neste

caso apenas esmiúça, não cria novidades. Portanto é a partir do desenho do Sistema

Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e dos objetivos constitucionais deste

sistema que se podem compreender os Comitês de Bacia Hidrográfica.

O Art. 21, XIX, da Constituição da República, dá competência à União para a

criação de um “sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos”, bem como

para “definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. Os dois assuntos se

entrelaçam, portanto, desde sua origem constitucional. Com efeito, a outorga do direito

de uso é um dos principais instrumentos institucionais para a gestão da água e,

simultaneamente, a água é bem que não pode deixar de ser usado, essencial que é à

vida. A Lei 9.433/97 veio regulamentar o dispositivo constitucional, como sua própria

ementa diz. Para tanto, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos

Hídricos, o qual, se tem outras funções, além da outorga, todas estão intrinsecamente

relacionadas com o uso da água e sua gestão.

Observe-se que a Lei 9.433/97 tem natureza nacional, não se aplicando apenas à

esfera administrativa da União, mas estabelecendo sistema que inclui órgãos de todas as

pessoas com capacidade política. Além disto, ela prevê a participação , na Política

Nacional de Recursos Hídricos, de pessoas jurídicas de direito público sem capacidade

política, bem como pessoas jurídicas de direito privado e até pessoas físicas. Esta

característica de participação universal é fundamental à gestão de um bem que,

transvazável por sua própria natureza, está presente em todos os lugares e em cada um

deles deve ser protegido, não podendo deixar de ser utilizado.

3.1 SISTEMA NACIONAL DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS:

BREVES GENERALIDADES

O Singreh, de acordo com o Art. 33 da mesma Lei 9.433/97, é integrado pelos

seguintes entes, numerados como na lei para referência mais fluida:

I - o Conselho Nacional de Recursos Hídricos;

IA- a Agência Nacional de Águas;

II - os Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e do Distrito Federal;

III - os Comitês de Bacia Hidrográfica;

IV - os órgãos dos poderes públicos federal, estaduais do Distrito Federal e

municipais, cujas competências se relacionem com a gestão de recursos hídricos;

V - as Agências de Água.

Os conselhos têm a função, primordialmente, de subsidiar a formulação da

Política de Recursos Hídricos e de dirimir conflitos entre os outros órgãos. O Ministério

do Meio Ambiente, através da Secretaria de Recursos Hídricos, tem competência para

formular a Política Nacional de Recursos Hídricos e subsidiar a formulação do

orçamento da União — especularmente, as secretarias estaduais responsáveis pela

matéria interferirão nos respectivos orçamentos. A ANA e órgãos estaduais têm

competência para outorgar e fiscalizar o uso de recursos hídricos, respectivamente em

relação às águas de domínio da União e dos Estados. Os Comitês de Bacia decidem

sobre o Plano de Recursos Hídricos, enquanto as Agências de Bacia funcionam como

suas secretarias executivas e escritórios técnicos.

Como afirma o texto do primeiro Plano Nacional de Recursos Hídricos,

Para a concepção das diretrizes do PNRH foram considerados alguns

princípios, inerentes à Política Nacional de Recursos Hídricos e ao

SINGREH, notadamente[: (i)] o princípio da subsidiariedade, segundo

o qual as decisões que possam ser tomadas em níveis mais próximos

às comunidades, e que não afetem a terceiros, não devem ser

submetidas a outras instâncias de decisão; e (ii) o fortalecimento do

conceito de federalismo, imprescindível para viabilizar a integração

dos interesses públicos, de forma a superar os entraves derivados da

falta de coordenação entre os diferentes domínios dos corpos hídricos

e proporcionando políticas de efetiva descentralização.74

Sob estes princípios, os quais têm conteúdos específicos no contexto da Política

Nacional de Recursos Hídricos, se organizam os órgãos citados, com suas competências

respectivas.

3.2 PLANOS DE RECURSOS HÍDRICOS

Para se compreender o procedimento de formação dos critérios que informarão a

outorga do uso, é fundamental situar os Planos e o Sistema Nacional de Gerenciamento

de Recursos Hídricos no contexto da Política Nacional de Recursos Hídricos. Tanto as

outorgas quanto as correspondentes cobranças devem estar de acordo com os Planos,

daí a importância de os compreender.

Trata-se de “planos diretores que visam a fundamentar e orientar a

implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e o gerenciamento dos

recursos hídricos” (Art. 6º da Lei Federal 9.433/97). Portanto devem traduzir, em cada

âmbito geográfico, os princípios, fundamentos e objetivos da Política Nacional de

Recursos Hídricos, respeitando seu ordenamento. Além disto, são etapa de maior

materialização da Política, mais próxima da sua implantação que de sua formulação

abstrata.

74 Brasil. Plano Nacional de Recursos Hídricos. 2006.

Indicados como um dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos

pelo Art. 5º da Lei 9.433/97, estes Planos devem ser elaborados “por bacia hidrográfica,

por Estado e para o País” (Art. 8º da mesma lei). Isto significa que os planos locais

serão não só mais específicos, mas muito mais detalhados e próximos. Ressalta-se,

entretanto, que “na verdade, […] não há propriamente território federal, estadual,

distrital ou municipal; o que existe são as funções federais, estaduais, distritais e

municipais sobre o mesmo espaço geográfico”75 — portanto sobre os mesmos recursos

hídricos.

O plano do país é aprovado e tem sua execução acompanhada pelo Conselho

Nacional de Recursos Hídricos (Art. 35, IX, da Lei Federal 9.433/97). Embora não haja

previsão expressa, é decorrência do princípio federativo que a competência

correspondente, no estados, seja dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. O

plano da bacia é elaborado pela Agência de Águas (Lei 9.433/97, Art. 44, X), por

organização civil (Lei 9.433/97, Art. 47 c/c Art. 51) ou pelo órgão gestor, regulamente o

Comitê (Resolução 17/01), é aprovado por este (Lei 9.433/97, Art. 38, III) que também

lhe acompanha a execução (inciso IV do dispositivo anterior).

O Conselho Nacional de Recursos Hídricos estabeleceu, na Resolução 17/2001,

os termos de referência para elaboração dos Planos de Recursos Hídricos de Bacias

Hidrográficas. A resolução estabelece conteúdo mínimo para os planos, a articulação

entre os órgãos gestores, estaduais, comitês e a união e especialmente a “participação da

sociedade […] por meio de consultas públicas, encontros técnicos e oficinas de trabalho,

[…] fortalecendo a interação entre a equipe técnica, usuários de água, órgãos de

governo e sociedade civil, de forma a incorporar contribuições ao Plano” (Art. 6º, §1º da

Res. 17/01).

75 ALVES, Alaor Caffé. Bases Jurídicas e Administrativas para a Gestão Cooperada de Águas

de Interesse Comum à União e aos Estados Federados. Apud BRASIL. Plano Nacional de Recursos Hídricos.

Devem constar dos Planos de Bacia as “prioridades de uso dos recursos

hídricos” (Art. 8º, §2º, I); os “limites e critérios de outorga para os usos dos recursos

hídricos”; as “diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso da água”; e a “proposta de

enquadramento dos corpos d'água”. Para tanto a resolução se faz acompanhar de anexo,

de “caráter orientativo” (Art. 8º, § 4º), um “termo de referência básico”, onde todas as

determinações são esmiuçadas.

Neste termo básico, a outorga é mencionada várias vezes. A fixação das

prioridades de uso, para informar a decisão sobre a outorga, é um dos objetivos do

diagnóstico das disponibilidades hídricas da bacia. Um dos objetivos enfatizados na

organização e condução da mobilização social para o diagnóstico é “Buscar a

participação da sociedade na implementação das medidas que visem disciplinar o uso

dos recursos hídricos, em especial a outorga e a cobrança”.76

De maneira particularmente importante, o termo básico cita os instrumentos da

Política Nacional de Recursos Hídricos, os quais deverão constar do Plano de Bacia. De

interesse para este trabalho é a descrição, feita pelo termo básico, do enquadramento dos

corpos hídricos da bacia, da outorga e da cobrança. O enquadramento consiste

fundamentalmente na “indicação de trechos dos cursos de água com comprometimento

em qualidade ou quantidade[…], indicando as prioridades das diversas demandas e os

níveis de garantia que serão requeridos”77. Sobre a outorga, o Plano deverá

especificar critérios para a implementação do processo de outorga na

bacia, em detalhes compatíveis que permitam orientar o OGRH

quanto à sua aplicação na bacia hidrográfica, incluindo a previsão dos

trâmites necessários e dos documentos de formalização. Deverão ser

também analisados e propostos os tipos de uso que serão dispensados

de outorga, e os procedimentos de acompanhamento, atrelados à

76 Item A.5 do termo.

77 Item C.1.2 do termo.

operação do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos da

Bacia Hidrográfica”.78

Sobre a cobrança, o Plano deverá conter “esclarecimentos sobre o que cobrar,

como cobrar, de quem cobrar e para que cobrar o uso da água”, bem como “análise

preliminar sobre a viabilidade econômica da cobrança”.

Com relação ao Plano Nacional, após definir os objetivos estratégicos do Plano

(Capítulo 3) e do diagnóstico da situação atual (Capítulo 4), estabelecem-se diretrizes

inclusive para a tornar compatíveis os “critérios de outorga” (Capítulo 5) dos diversos

planos de bacia com os objetivos nacionais. Especificamente sobre o uso de potenciais

hidrelétricos, também aqui são estabelecidos os critérios (como determina a Lei

9.433/97, em seu Art. 12, § 2º).

Portanto no Plano Nacional trata de generalidades, enquanto o Plano de Bacia é

mais concreto e preciso, segundo o “princípio da subsidiariedade” já citado. No Plano

mais específico se estabelecem os usos hipotéticos para cada corpo d’água e também os

critérios para a decisão concreta sobre os pedidos de outorga. Não há dificuldade em

concluir que nos Planos se estabelece a função social dos recursos hídricos.

3.2.1 Os Planos e o Ordenamento

Dois princípios constitucionais organizam hierarquicamente o ordenamento

jurídico brasileiro: a) a supremacia da Constituição; e b) a superioridade da Lei. O

primeiro é implícito79, exsurge da interpretação do controle da constitucionalidade das

normas infraconstitucionais e da rigidez constitucional — nem o primeiro, nem a

segunda, subsistiriam não fosse a Constituição suprema sobre todos os outros textos do

ordenamento. O segundo é explícito no Art. 5º, II, como já se referiu no Capítulo

Primeiro, Secção, do presente estudo. Deve haver compatibilidade entre os Planos e a

78 Item C.1.2 do termo básico.

79 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 54 e ss.

Constituição da República, bem como com o nível legal do ordenamento. A análise

desta compatibilidade é a análise da constitucionalidade e da legalidade do ato.

O Art. 174 da Constituição da República ordena o planejamento da atividade

econômica pelo Estado e, como já se viu no Capítulo Segundo, Secção segunda, no

Direito Econômico se inclui o Direito Ambiental e, neste, o regime das águas.

Planejamento é “forma de ação racional caracterizada pela previsão de comportamentos

econômicos e sociais futuros, pela formulação explícita de objetivos e pela definição de

meios de ação coordenadamente dispostos”.80

O artigo revela muito sobre as opções políticas cristalizadas na atual

Constituição da República, que obriga o Estado a lançar mão também deste instrumento

para perseguir seus objetivos. O Estado deve se esforçar para diagnosticar

acertadamente as causas determinantes das mazelas sociais, prever as circunstâncias

futuras e agir concretamente para que a sociedade brasileira possa enfrentar seus

desafios que o tempo trará, bem como se aproveitar das oportunidades vindouras.

Conscientes da inevitabilidade do novo, os constituintes ainda animam os brasileiros à

reflexão e a ter seguras as rédeas do próprio destino. Não os quer prostrados, esperando

pela ação de alguma insondável invisibilidade, envolvidos em buscar apenas e

minusculamente o benefício próprio. Como ensina Eros Roberto Grau:

Precisamente a visão prospectiva se manifesta como característica do

planejamento. A visão retrospectiva, da realidade e do direito,

compatível com a perspectiva da Constituição estatutária, já não se

adequa às imposições da Constituição dirigente. Isso importa em que

o direito já não seja mais apenas a representação da ordem

estabelecida, a defesa do presente, mas também a formulação de uma

ordem futura, a antecipação do porvir.81 (sic) (grifo do original).

80 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2.000. p. 308.

81 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2.000. p. 347

Tamanha força de decisão deve se acompanhar de igual legitimidade, daí a raiz

democrática da soberania nacional, como também a dinâmica translúcida do fluxo desta

soberania pelas instituições políticas.

A última parte do caput do Art. 174 leva à conclusão de que os Planos de

Recursos Hídricos são determinantes para o setor público. Com relação ao setor

privado, apenas as outorgas consoantes com os critérios, prioridades e usos

estabelecidos no Plano são lícitas. Assim, o caráter indicativo do planejamento se

traduz, neste caso específico, em medidas concretas que direcionam e induzem o

comportamento privado. É que

Quanto às medidas de implementação do plano — se tiver havido

planejamento —, eventualmente vincularão o setor privado não

porque implementadoras do planejamento, mas sim porque

expressivas de intervenção por direção, existindo ao par de outras que

expressem intervenção por indução.82

Ao outorgar usos socialmente relevantes dos recursos hídricos, a autoridade

induz os investidores privados a concentrar inventividade, administração e recursos em

atividades alinhadas com o desenvolvimento ambientalmente sustentável (obedecendo

ao Art. 170, VI, da Constituição da República). Ao negar, suspender ou retirar a outorga,

a autoridade dirige os investidores de volta ao comportamento conforme a Constituição.

Formalmente, o Plano Nacional atual foi aprovado pela Resolução 58/2006 do

Conselho Nacional de Recursos Hídricos, pela competência legal já descrita. A mesma

lei (9.433/97) estabelece que a decisão sobre a outorga está “condicionada às

prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e respeitar a classe em

que o corpo de água estiver enquadrado” (Art. 13). Os Planos Estaduais são de

competência dos Conselhos Estaduais e os Planos de Bacia também são aprovados por

Resoluções dos respectivos Comitês. Especularmente, estes planos são determinantes

para as decisões sobre outorga nos respectivos campos de atuação. A determinação dos

82 GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica, p. 45. Apud GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 310.

critérios para a outorga pelo Plano de Bacia é mais enfática, posto que mais concreta e

direta.

A relação de determinação entre os Planos Nacional, Estaduais e de Bacias é

um tanto complexa, sendo melhor compreendida a partir dos já citados princípios

federativo e da subsidiariedade. O Conselho Nacional tem visão global, estabelecendo o

enquadramento e os usos dos recursos hídricos mais significativos e de maneira pouco

precisa, como também os critérios gerais para sua outorga e a cobrança correspondente.

No Estado e com visão intermediária, os Planos Estaduais têm papel análogo. Os Planos

de Bacia são muito mais precisos e concretos, fixando detalhes tanto do enquadramento

e uso das águas, quanto das possibilidades de outorga e cobrança.

Não há determinação legal de ordem cronológica entre os planos, podendo o

plano de determinada bacia já estar sendo implementado antes do Plano Nacional (caso

do Comitê da Bacia do Paraíba do Sul) ou mesmo antes que os estudos para o Plano

Estadual tenham sido concluídos (idem); ao mesmo tempo, são inúmeras as bacias

federais e estaduais que nem mesmo têm seus comitês formados e que, portanto,

elaborarão seus Planos bastante depois do Nacional. Isto posto, a legislação estabeleceu

forma dinâmica de harmonização dos planejamentos.

O Plano de Bacia deve se pautar pelos planos pré-existentes, se mais amplos que

ele, lhes “respeitando as diretrizes”, inclusive do Plano de Bacia de corpo d’água do

qual sua bacia é tributária (Art. 7º, II, da Resolução 05 do Conselho Nacional). É

competência do comitê a jusante “compatibilizar os planos de bacias hidrográficas”

montantes com o seu próprio (Art. 7º, IV, da Resolução 05 do Conselho Nacional).

O Art. 38, parágrafo único, da Lei 9.433/97, estabelece que cabe recurso das

decisões do Comitê para o Conselho correspondente. Dos incisos do caput do mesmo

artigo constam as competências dos Comitês, arrolando-se decisões de duas naturezas

diversas: a) de conflitos relacionados a recursos hídricos; e b) de planejamento. São

relevantes para a presente discussão o conteúdo dos incisos: II) a arbitragem de

conflitos relacionados com recursos hídricos; III) a aprovação do Plano; IV) o

acompanhamento de sua execução; e VI) o estabelecimento de mecanismos de

cobrança. Da sua posição na Lei se infere que de todas estas decisões cabe recurso ao

Conselho correspondente — Estadual para os Comitês Estaduais, Nacional para os

Federais.

Dentre as competências do Conselho Nacional (modelo normativo dos

Estaduais), que se relacionam com o tema, estão a seguir numeradas como nos incisos:

IV) deliberar sobre questões enviadas pelos órgãos inferiores, Comitês e Conselhos

Estaduais; II) arbitrar conflitos entre Conselhos Estaduais; I) a promoção de articulação

do planejamento de recursos hídricos; e X) o estabelecimento de critérios gerais de

outorga e cobrança (Art. 35, Lei 9.433/97). Também aqui é possível enxergar a

existência de decisões de natureza mais particular e outras mais propriamente de

planejamento. A partir daí, e tendo-se em vista o princípio da subsidiariedade, é que se

pode analisar com mais propriedade o alcance da competência dos Conselhos em

relação às decisões dos Comitês.

Sobre as decisões de aplicação do Plano, observa-se apenas que não dizem

respeito a caso concreto de outorga, já que a autoridade outorgante não se submete

diretamente aos Comitês ou aos Conselhos. De resto, a cadeia de recursos é intuitiva.

Com relação às decisões que constituem o Plano, há que se distinguir entre elas

pelo objeto do recurso. A autoridade superior pode decidir, no recurso, questões

envolvendo conflito entre os usos prescritos no Plano de Bacia e no Estadual ou no

Nacional, já que o órgão superior é responsável pela visão global dos recursos hídricos.

Outro objeto de recurso poderiam ser os critérios gerais de outorga ou cobrança, aí

também cabe ao órgão mais geral decidir. Entretanto aí se esgota a competência dos

Conselhos. Não cabe a eles decidir, nos recursos, sobre questão exclusivamente local, se

não houver antinomia entre esta decisão e os Planos mais gerais. O mérito político

específico das decisões locais não é analisável pelos Conselhos, em aplicação da

solução constitucional para competências partilhadas entre órgãos federativos, os

parágrafos do Art. 24 da Constituição da República.

Assim se realiza a harmonização entre os Planos. O Nacional obedece aos níveis

constitucional e legal do ordenamento, faz diagnósticos globais, prognósticos de longo e

médio prazos, estabelece normas e critérios gerais para o enquadramento, a outorga e a

cobrança. A ele devem se moldar os Planos Estaduais, como também os de Bacias

federais (diretamente) e os de Bacias estaduais (indiretamente, por via dos Estaduais).

Os Estaduais obedecem ao Nacional e tomam decisões intermediárias. Os Planos de

Bacia são precisos e detalhados, obedecendo sempre aos Planos mais amplos e aos

níveis superiores do ordenamento. Quanto às relações dos Planos com a outorga e a

cobrança, estas já foram desenvolvidas no capítulo Uallows.

As finalidades fluem, das alturas constitucionais até a concretude do ato

administrativo da outorga, através do leito do planejamento. Os Planos determinam a

função social de cada corpo hídrico.

3.3 DEMOCRACIA: CONCEITUAÇÃO E REGRAS GERAIS

A democracia vem sendo descrita pelos constitucionalistas, teóricos do Estado e

cientistas políticos de várias maneiras distintas, até pelas maneiras variadas de encarar o

conceito. Antes de buscar os limites normativos específicos do regime constitucional

brasileiro, será útil alargar, pela revisão da literatura, a gama de possibilidades e

variações dos modelos teóricos.

A democracia se opunha, idealmente, à monarquia e à aristocracia, na

antiguidade e mesmo na obra do primeiro moderno, Maquiavel, ou dos pensadores

contratualistas. Hodiernamente o modelo se opõe à autocracia, mesmo considerando-se

as variações desta83. É a última idéia de democracia que interessa, pela maior relevância

para o estudo do ordenamento brasileiro atual. A característica marcante desta é “o

aumento [do número] de sujeitos que agem politicamente, vale dizer, que colaboram

direta ou indiretamente na formação das decisões coletivas, o que tornou mais amplo,

[…] e com fronteiras mais incertas, o ‘espaço político’”84.

83 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.

84 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 457

Governar é tomar decisões que determinam o comportamento da coletividade e,

portanto, quanto maior o número de pessoas que tomam estas decisões, mais

democráticas elas serão. Soberano, neste sentido, “é aquele que, qualquer de seja a

forma de governo, […] está capacitado a tomar decisões coletivas, válidas para todos os

membros daquele grupo organizado, sem vínculo de mandato”85. Este é o curso seguido

pela Constituição da República, ao dizer que o sufrágio é universal e o voto tem igual

valor para todos (Art. 14). Como também o Art. 1º, parágrafo único, afirmando a

soberania popular, é compatível com a noção de soberania relacionada a decisão.

Destas idéias mais gerais é necessário desaguar em caminhos mais firmes. Um

problema essencial é o da representação dos interesses sociais. Os regimes

constitucionais do poder tratam a situação de várias maneiras distintas, entretanto

distinguíveis entre duas categorias, que Bobbio chama representação política e

representação de interesses. A primeira se funda na noção de que o mandato político é

aberto — após eleito, o representante é livre para defender os interesses gerais, sem

compromisso de continuar defendendo apenas os interesses de seus eleitores. A segunda

estabelece algum mecanismo a partir do qual o eleito continua adstrito aos interesses

parciais de seus eleitores. O Brasil adotou a primeira opção no tocante aos agentes

políticos eleitos diretamente pelo povo, garantindo sua “irresponsabilidade política”86.

Em um dos extremos ter-se-ia a ligação direta entre eleitores indistintos e eleitos

com mandatos livres, livres para buscar os interesses gerais do povo. No outro, grupos

organizados escolhendo seus representantes e os eleitos com mandatos vinculados,

restritos a apenas defender os interesses parciais de seus eleitores. Entre os dois, as

democracias avançadas na Europa criaram sistema alternativo, com o fortalecimento de

um corpo intermediário entre o povo e o Estado, qual seja, o dos partidos políticos. Com

a fidelidade partidária e as eleições por lista fechada, os partidos quebraram a relação

única entre eleitores e eleitos em duas relações, uma entre eleitores e partidos, outra

entre estes e os eleitos, entretanto isto “não complicou o sistema da representação, mas

85 Idem, Ibidem. p. 463.

86 SIVLA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 65.

o simplificou, e, simplificando-o, tornou-o novamente possível”87. No Brasil também

temos partidos, entretanto sua debilidade é patente na legislação e nos efeitos deletérios

dela no cotidiano político.

Outro problema, ao primeiro relacionado, é o das técnicas da democracia,

mormente a escolha entre as regras de maioria ou unanimidade. A unanimidade gera

decisões negociadas, contratadas, que portanto não representam a derrota absoluta de

uma parcela do povo sobre outra. A maioria gera o que em teoria dos jogos se chama

resultado de soma zero, isto é, tudo o quanto um dos lados ganhou representa perda para

o oponente88. A maioria dos colegiados brasileiros funciona por maioria, o que é

compatível com a idéia de que a regra da unanimidade só se pode aplicar, com justiça,

em grupos sociais sem grandes desníveis de poder89, o que não é propriamente o caso

brasileiro.

3.3.1 Teorias da democracia

As teorias sobre a democracia se distinguem essencialmente, pelos seus

fundamentos axiológicos ou alegadamente técnicos (os quais não serão estudados aqui),

ou pelos critérios acima introduzidos. Canotilho expõe as teorias democrático-pluralista,

elitista e do “ordo-liberalismo” como não-normativas; seriam normativas a liberal, a

republicana, a deliberativa, a discursiva e a corporativa. As normativas “andam

estritamente associadas às discussões em torno do estado de direito, da constituição e do

constitucionalismo”90.

87 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 470.

88 DIXIT, Avinash et al. Thinking strategically: the competitive edge in business, politics, and everyday life. New York: W. W. Norton, 1993. p. 14.

89 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 441.

90 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina. p. 1320.

Destaca-se a descrição, que faz Canotilho, do modelo criado por Habermas,

chamado de democracia discursiva. Esta não se assenta “em direitos universais do

homem (direitos preexistentes na perspectiva liberal)” ou na moral (como na

republicana), mas em “regras de discussão, formas de argumentar, institucionalização de

processos — rede de discussão e negociação — cujo fim é proporcionar uma solução

nacional e universal a questões problemáticas, morais e éticas da sociedade”91.

Definindo democracia como “processo de auto-organização política da sociedade”92.

Aí há destaque para a noção de esfera pública, na qual se ventilariam as mais

relevantes discussões sociais, o que leva o sistema a “regenerar a publicidade crítica

através de formas deliberativas descentralizadas”93. Fora do Estado, traz para a

sociedade democrática a participação nas decisões e falas que estruturam a vida.

Paralelamente, nega a “identidade ético-comunitária” da visão republicana,

privilegiando o “pluralismo cultural e social”94.

Tanto Canotilho, quanto Bobbio, Habermas e outros pensadores destacam

características mínimas do regime democrático. Seriam regras a estabelecer: a) quem

está autorizado a tomar decisões (resguardada a soberania popular e o sufrágio

universal); e b) quais os processos através dos quais estas decisões se tomam; mais c) a

garantia de direitos fundamentais, com ênfase na liberdade de expressão e no direito à

informação. A ênfase nos direitos relacionados à comunicação se dá porque estes são os

que influenciam mais proximamente a qualidade das decisões (idealmente informadas e

conscientes). Isto não significa, entretanto, deixar de se considerar a importância de

outros direitos fundamentais, como a vida, a igualdade ou a liberdade.

91 Idem, Ibidem. p. 1322.

92 Idem, Ibidem. p. 1323.

93 Idem, Ibidem. p. 1323.

94 Idem, Ibidem. p. 1323.

3.4 DEMOCRACIA: DESCRIÇÃO INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS

DECISÓRIOS DO SISTEMA

Os Planos são as decisões mais importantes tomadas no Sistema Nacional de

Gerenciamento de Recursos Hídricos, tanto porque seus efeitos se estendem pelo futuro

quanto porque determinam diretamente as decisões sobre outorga e cobrança — a face

do sistema que interfere concretamente no uso da água. Por serem tão profundas e

espraiadas as suas conseqüências, os Planos devem ter grande legitimidade. Antes,

entretanto, de analisar estes elos entre legitimidade e democracia, validade e eficácia,

será útil descrever as formas de composição dos órgãos responsáveis pelo planejamento

da Política Nacional de Recursos Hídricos, bem como os procedimentos para decisão.

Estes dados foram pesquisados e estão descritos com o maior detalhamento

possível. Foi necessário tal cuidado porque grande parte das conclusões do presente

estudo se referem exatamente ao desenho da democracia nestas instituições.

Os Comitês de Bacia podem ser federais ou estaduais, com as mesmas funções,

mas composições e organizações distintas.

Os Comitês federais são criados por decreto do Presidente da República,

carecendo de personalidade jurídica própria e constituindo descentralização

administrativa. Paralelamente, as funções de Agências de Águas podem ser exercidas

por entidades (listadas no Art. 47 da Lei 9.433/97) com personalidade jurídica, o que

garante maior autonomia à Bacia.

O procedimento de criação corre junto ao Conselho Nacional de Recursos

Hídricos, competente para a decisão substancial sobre o mérito. A proposta, deverá ser

subscrita por Secretários de Estado em cuja área de competências estejam os recursos

hídricos (ao menos 2/3 dos atingidos), Prefeitos (40%), entidades usuárias (ao menos 5),

e entidades civis (ao menos 10, porém o Conselho pode aceitar redução justificada deste

número, até 3) (Art. 9º da Resolução 05 do Conselho Nacional). Além da caracterização

da bacia e da indicação da diretoria provisória, a proposta se fará acompanhar de

“justificativa circunstanciada da necessidade e oportunidade de criação do Comitê”

(Art. 10 da Resolução 05 do Conselho Nacional).

Não obstante a presença de requisitos formais, a dita justificativa indica a

discricionariedade da aprovação da proposta pelo Conselho Nacional. Ele pode optar

por não aprovar a criação do Comitê, não obstante a presença dos requisitos formais.

Além disto não há, no regime específico, menção à possibilidade do Presidente da

República decidir discricionariamente pela não criação do Comitê, entretanto dois

pontos têm importância. Primeiro não há prescrição de prazo entre a aprovação e o

decreto. Em segundo, cabe à Presidência realizar sempre a análise da

constitucionalidade e da legalidade dos atos administrativos, podendo o procedimento

ser devolvido ao Conselho Nacional para melhor instrução.

A composição dos comitês é estabelecida no Art. 39 da Lei 9.433/97 e pelo Art.

8º da já citada Resolução 05 do Conselho Nacional. O número dos membros que

representam o Executivo das pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e

Municípios) que se situam no território do comitê é de no máximo quarenta por cento

do total. A quantidade relativa mínima de representantes de entidades civis é de 20%. A

de usuários é de 40%, porém a redação do dispositivo da Resolução deixa vago se este é

o mínimo, o máximo ou, alternativa que tem sido obedecida, a quantidade exata. O

número exato de membros, seu total e sua distribuição, bem como a forma como são

indicados e a duração de seus mandatos, é estabelecido no regimento interno de cada

comitê, alterado apenas pela votação de 2/3 dos seus membros.

Duas peculiaridades se impõem. Se na área do comitê se incluem terras

indígenas, representantes seu e da FUNAI se incluirão. Se a bacia incluir corpo d’água

transfronteiriço (é o termo usado pela Lei), dentre os representantes do Executivo da

União haverá um advindo do Ministério das Relações Exteriores.

Quanto aos usuários, a Resolução 05 impõe a sua classificação em uma de seis

categorias (usando alíneas no lugar dos incisos que seriam corretos): a) abastecimento

urbano; b) indústria; c) irrigação e uso agropecuário; d) hidroeletricidade; e)

hidroviário; f) pesca, turismo, lazer e outros usos não consuntivos. O critério de uso

consuntivo ou não, como a gradação entre usos mais ou menos consuntivos, é o da água

que retorna ao corpo — sem cuidado com a qualidade do retorno. Assim, a pesca e o

turismo (como também o uso hidroviário e a geração de eletricidade) não são

consuntivos porque não é retirada água da represa ou rio para seu exercício. A irrigação

é uso altamente consuntivo (de 80% a 90% da água não volta), enquanto a indústria

(20%) e o abastecimento urbano (10%) são pouco consuntivos.

Dentre os usuários, deve haver a participação de pelo menos três setores, sendo

que os setores relevantes devem ter no mínimo 4% e no máximo 20% do total dos

votos. A distribuição de representantes entre os setores usuários deve ser decidida pelos

próprios usuários, não pelo Comitê. Uma regra é bastante importante: o arranjo desta

distribuição será alcançado por consenso, levando em conta o total de uso outorgado e

cobrado de cada setor.

Quanto às entidades civis, são aquelas apontadas no Art. 47 da Lei 9.433/97,

sempre mantendo a numeração original: I) consórcios e associações intermunicipais de

bacias hidrográficas; III) organizações técnicas e de ensino e pesquisa com interesse na

área de recursos hídricos; IV) organizações não-govemamentais com objetivos de

defesa de interesses difusos e coletivos da sociedade; V) outras organizações

reconhecidas pelo Conselho Nacional ou pelos Conselhos Estaduais de Recursos

Hídricos.

Estas entidades, como também as usuárias, se elegem entre seus pares, isto é, o

Comitê não escolhe quem deve vá participar, estando aberto para acolher quem a

sociedade lhe enviar. A sociedade é a representada, portanto tem o ônus de enviar os

seus mais significativos e hábeis representantes. É exemplo o regimento do Comitê da

Bacia do São Francisco, que no seu Art. 6º, § 4º, estabelece que “o processo de escolha

dos membros titulares e suplentes representantes do poder público municipal, dos

usuários e das organizações civis, dar-se-á mediante eleição e terá ampla e prévia

divulgação”.

As decisões são tomadas na forma disposta nos regimentos internos, sendo

necessário observar que eles variam bastante. Há os que prescrevem a decisão por

maioria simples (é o caso do CEIVAP), enquanto a maioria dos outros aceita esta

solução, porém recomenda o consenso (como o CPJ). Diferentemente de muitos o

CBHSF força a decisão mais próxima possível do consenso ao estabelecer decisões com

maioria qualificada de dois terços dos presentes. O quorum para início de reuniões é

sempre da metade ou eventualmente da maioria absoluta dos membros.

Vale a pena notar que, muito embora os regimentos estejam preparados para

eventuais disputas (a democracia pressupõe o conflito, não o evita), a maioria dos

estudados recomenda a tomada de decisão por aclamação ou consenso. De resto, têm

aquilo que todo regimento de órgão colegiado têm (dos Centros Acadêmicos ao Senado

Federal): questões de ordem, normas sobre retirada de pontos de pauta, vistas que adiam

as discussões e assim por diante.

3.4.1 Contraponto: a regulamentação do serviço público de saneamento

básico

A Lei 11.445/07 veio regulamentar o serviço público de saneamento básico, já

estabelecendo, no seu Art. 4º, que “Os recursos hídricos não integram os serviços

públicos de saneamento básico”. Com efeito, apesar da proximidade temática, fática,

econômica, é mais útil estudar a regulamentação do saneamento básico estabelecendo

contraponto ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Antes,

porém, cumpre apresentar o sistema geral da Lei 11.445/07, bem como a forma de

regulamentar alguns temas específicos. Depois ressaltar-se á a intersecção entre ela e o

regime da água. Por último se estabelecerão comparações entre um regime e o outro.

Saneamento básico, segundo o inciso I do Art. 3º da lei citada, envolve serviços

enquadrados em quatro grandes categorias:

a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infra-

estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água

potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos

instrumentos de medição;

b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infra-estruturas

e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e

disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações

prediais até o seu lançam,ento final no meio ambiente;

c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de

atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta,

transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e

do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias

públicas;

d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas: conjunto de

atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de drenagem

urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o

amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das

águas pluviais drenadas nas áreas urbanas;

É simples ver que todas as categorias de serviços de saneamento básico têm a

ver com a água. Mesmo a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos estabelecem

uso de água. Os resíduos sólidos precisam ser tratados e seu destino final deve ser de tal

forma preparado, que não haja indevido vazamento e contaminação de lençóis freáticos

ou corpos d’água superficiais. A varrição diminuirá a quantidade de resíduos urbanos a

serem levados pelas águas pluviais aos rios.

O saneamento básico requer uso de água, o que leva a Lei 11.445/07 a

estabelecer, no parágrafo único do seu Art. 4º, que, para a prestação de serviços públicos

de saneamento básico, a utilização de recursos hídricos “[...] é sujeita a outorga de

direito de uso, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997, de seus

regulamentos e das legislações estaduais”. Portanto esta outorga, quanto aos critérios e

procedimentos legais, obedece à legislação geral sobre água, não se constituindo caso

especial.

A lei não estabelece a titularidade de cada um dos serviços, entretanto a única

celeuma a este respeito é a que cerca o fornecimento de água potável. É dos municípios

a titularidade do serviço de recolhimento de resíduos sólidos, de os esgotos sanitário e

pluvial. Mesmo o abastecimento de água é bastante razoável determinar que seja

desenvolvido pelo município. Da sistemática constitucional se apreende que, sendo

local o serviço, todo ele baseado em atividades locais de captação de água, tratamento e

distribuição, só pode ser titular o Município, nunca o Estado Federado ou a União. A

falta de disposição categórica sobre o assunto apenas dá à discussão um fôlego um

pouco maior, entretanto não se vislumbra outro desfecho que não o reconhecimento da

titularidade municipal para todos estes serviços.

A Lei 11.445/07 regulamenta extensamente a prestação dos serviços por pessoas

que não integrem a administração do titular. Com efeito, a leitura da dita lei poderia

levar um desconhecedor da realidade brasileira a pensar que o mercado está quase

inteiro em mãos privadas, tamanha a ênfase nos contratos entre titulares e prestadores.

Não é o caso, muito embora haja realmente uma parcela significativa das fornecedoras

de água potável que não fazem parte da administração municipal. Estas são as

companhias estaduais, não privadas.

Aqui iniciam as diferenças entre o enfoque dos dois regimes. O Sistema

Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos tem uma importante ênfase

democrática, de gestão transparente de recursos públicos. Não se pode dizer que a Lei

11.445/07 dê a mesma atenção a estes princípios.

O Art. 2º, incisos IX e X, até mencionam que são princípios fundamentais dos

serviços de saneamento a “transparência das ações, baseada em sistemas de informações

e processos decisórios institucionalizados” e o “controle social”. Entretanto as

obrigações, ao Estado, de permitir a participação da sociedade, são mínimas e de

relevância duvidosa.

O próprio Capítulo VII, que trata “da participação de órgãos colegiados no

controle social”, indica, no caput de seu único artigo (47), que o controle “[...] poderá

incluir a participação de órgãos colegiados de caráter consultivo [...]” (grifo posterior).

Não há obrigatoriedade da participação social direta e mesmo quando ela se der, poderá

ter natureza apenas consultiva, nunca decidindo. Para mais fria análise, todavia, atente-

se aos dois momentos cruciais de decisão: o planejamento e a regulamentação do

serviço.

Todo Plano parte de um diagnóstico sólido e imparcial da realidade, por um

lado, e de decisões politicamente legitimadas, por outro. Estas duas bases estabelecem,

seguramente, de onde se parte e para onde se vai. O Plano faz a ponte entre a realidade e

os objetivos constitucional e legitimamente estabelecidos.

A Lei 11.445/07, entretanto, estabelece que o Plano pode ser elaborado “[...] com

base em estudos fornecidos pelos prestadores de cada serviço”. Assim se perde a

primeira base. É o prestador que desenha o cenário sobre o qual o planejador atuará.

Não há obrigatoriedade de se estabelecer um órgão independente para a elaboração dos

estudos (como o são os órgãos consultivos dos Comitês de Bacia).

O Plano servirá para determinar onde é necessário maior investimento, onde o

serviço precisa ser melhorado e onde os índices de qualidade e quantidade de prestação

estão aquém ou além do previsto. Mas a Lei permite que o planejador aceite os dados

fornecidos pelo próprio prestador como única fonte de informações. Em metáfora

judiciária, é como se apenas uma das partes pudesse requerer provas, juntar

documentos, bem como indicar perito e assistente seus.

Sobre a decisão política que daria norte ao planejamento, a lei estabelece à

população papel também muito menor que o reservado a ela no regime do Sistema

Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. O planejador precisa apenas divulgar

suas propostas e estudos através de audiências e consultas públicas (Art. 19, § 5º). Não

voto, não há garantia de constituição democrática do auditório, não há mínimas

garantias de construção de qualidade e representatividade na participação popular.

Propõe-se a comparação desta situação com o regime de gestão dos recursos

hídricos. De acordo com a Lei 9433/97 (com a diferença de apenas um dia, exatamente

dez anos anterior à 11.445/07), o planejamento parte de diagnóstico realizado pelos

órgãos executivos dos Comitês ou Conselhos. Garante-se, desta forma, a transparência

na coleta dos dados e na elaboração do modelo de realidade que será base para as

decisões políticas de planejamento. Já se garante, assim, isenção, no lado da elaboração

dos fatos.

As decisões que nortearão o planejamento são tomadas por um Comitê ou

Conselho, cujas composições já estão estabelecidas legalmente e que sempre contarão

com representantes legítimos da sociedade organizada. Qualifica-se, desta forma, o

colegiado responsável pelas decisões, garantindo-se que ele terá legitimidade e

conhecimento de causa para decidir segundo os interesses ali representados. É a forma

como a Política Nacional de Recursos Hídricos se afasta do argumento tecnicista, o

qual, na sua raiz, é negação do debate democrático.

Mais um passo, na análise das diferenças entre um e outro modelo, à

regulamentação. O regime do saneamento básico não estabelece nem mesmo como

objetivo ou princípio a participação democrática na regulação e fiscalização da

prestação dos serviços.

O Capítulo V da Lei 11.445/07 desaloja a sociedade de qualquer participação

nestas atividades, garantindo apenas o “amplo acesso a informações sobre os serviços

prestados” (Art. 27, I), “na forma das normas legais, regulamentares e contratuais”

(Art. 27, caput) (grifo posterior). Entretanto este direito às informações é limitado ainda

por uma referência a “documentos considerados sigilosos em razão de interesse público

relevante, mediante prévia e motivada decisão”. Quem toma esta decisão é o próprio

órgão regulador, em cuja composição não se garante qualquer participação democrática.

Resta a via do judiciário, apenas.

A prestação dos serviços tem, segundo a própria lei, “dimensões técnica,

econômica e social” (Art. 23, caput) sendo competência da entidade reguladora (em

toda aparência mais uma agência) editar normas relativas a todas estas dimensões (Art.

23, caput). Entretanto, garantida sua “independência decisória”, a entidade reguladora

decidirá com “transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade”.

À presente dissertação foi oportuna a promulgação da Lei 11.445/07, pela

possibilidade de contraponto, sob um dos seus critérios fundamentais de análise

jurídica: a democracia. Como se vê, esta não é uma característica importante para o

regime do saneamento.

3.5 DECISÕES NOS COMITÊS

Os Comitês de Bacia Hidrográfica permitem ampla discussão dos vários

assuntos sob sua competência, entre todos os interessados. Como classificam os

participantes já por seus interesses na gestão dos recursos hídricos, estes se tornam

claros e os conflitos se mostram para ser decididos pelos critérios políticos a serem

debatidos.

Os comitês têm corpos técnicos à sua disposição, além de contar com as

Agências de Bacia, suas secretarias executivas. Mas as decisões se dão pela discussão

aberta, não há submissão da política à técnica ou desta àquela. Um dos limites objetivos

para a aplicação da regra da maioria, segundo Bobbio, é exatamente a verdade técnica.

Pelo seu conteúdo, a ela não se aplica a decisão democrática, isto é, não se pode decidir

politicamente assuntos exclusivamente científicos. Entretanto este é delicadíssimo,

posto que, “no limite, o triunfo da tecnocracia seria a derrota total da democracia”95.

Por outro lado, a noção discursiva de democracia exige que os debates alcancem

maturidade e incluam os agentes não técnicos. A solução, nos Comitês, é o dito corpo de

assessores e as secretarias executivas. Sem impor suas razões científicas (razão

instrumental, com interesse no domínio, segundo Habermas), os corpos técnicos

informam os membros dos Comitês, de modo a permitir decisões mais firmemente

fundamentadas, sem abrir mão da representação de interesses.

A representatividade, nos Comitês, é próxima do que acima se descreveu como

representatividade de interesses parciais. Não se busca trazer para os Comitês um retrato

o mais fiel possível da sociedade, com as idiossincrasias e peculiaridades de cada grupo

social, organizado ou não. Trata-se de fazer presentes os interesses mais importantes e

relacionados com o tema da água, seu uso e a tutela da manutenção de sua qualidade e

quantidade.

Os Comitês, assim, se configuram como instituição para percepção e assimilação

das demandas sociais, de maneira que elas possam informar as decisões que nortearão o

desenvolvimento econômico.

95 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2.000. p. 445.

4 JUSTIÇA E DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTAÇÕES

JURÍDICAS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A função social da propriedade, tanto quanto outras locuções e princípios

constitucionais, é caracterizada por sua plasticidade semântica96, 97. Outro destes

termos é a democracia, ao qual se dará trato neste capítulo.

Estas expressões têm significados próprios, mas seus significados estão abertos a

interpretações que realizam sua atualização histórica. Cada aplicação destes princípios

os atualiza ao dotá-los de cargas substantivas e afetivas. Estas atualizações não excluem

outras, lícitas em aplicações noutros campos do direito ou até no mesmo âmbito, quer

sincrônicas, quer em tempos passados ou futuros. Há uma dinâmica própria na

concreção destes princípios e termos semanticamente maleáveis, o que é bastante

diferente, contudo, de considerá-los vazios. Dois são os processos que fixam seus

significados: a) a interpretação direta e harmonizadora do texto constitucional; e b) as

balizas dadas pelo ambiente histórico de sua interpretação e aplicação.

Estes processos são as energias que dão movimento e vida aos textos legais para

criar, a partir deles, as normas que ajudam a construir a sociabilidade típica do povo

brasileiro — como também ajudam a alterar esta tipicidade para alcançar novas e mais

justas relações. Os conflitos sociais se espelham nas divergências sobre os sentidos dos

princípios constitucionais e, mais especificamente, sobre a seleção destes sentidos a

partir de critérios de justiça — nem sempre explícitos.

É aí reside que uma das maiores dificuldades na crítica política às instituições, a

qual se repete na crítica ao ordenamento. A esta crítica usualmente subjaz um conceito

de justiça, mas poucas vezes ele é expresso, até mesmo pelo tanto que esta precisão

96 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 96 et seq.

97 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 18 et seq.

pode enfraquecer a argumentação98. É, mesmo implícito, este conceito de justiça que se

aplica ao ordenamento para dizer se é ou não adequado para fundamentar decisões

justas. Como também este conceito se contraporá às instituições para dizer se o seu

desenho as leva à produção de justiça social ou apenas repetem formas de dominação.

Juridicamente, o questionamento sobre a justiça deve se fazer dentro de

critérios próprios do ordenamento. No tema em pauta neste trabalho, viu-se a utilidade

de aplicar algum conceito de justiça à Política Nacional de Recursos Hídricos, pelo

quanto se enriqueceria a interpretação de dois de seus pontos fulcrais: a função social da

outorga de uso e a democracia das instituições de gestão de recursos hídricos.

Responder à primeira questão, sobre a justiça das múltiplas definições de função

social da propriedade, pressupõe enfrentar o mesmo problema de quem responde à

segunda questão, sobre a justiça das instituições que aplicam a Constituição e criam as

normas infraconstitucionais, concretas ou abstratas. Especificamente, a questão da

justiça deve se colocar na fonte da definição jurídica da função social, como também da

definição da democracia.

Não se trata de estabelecer um critério perene de justiça, alheio às vicissitudes da

história. O critério de justiça, em conformidade com o ordenamento brasileiro, não está

alheio à história, nem advêm do passado ou da tradição. Porque a Constituição obriga as

instituições brasileiras, a República brasileira, a construir “sociedade livre, justa e

solidária” (Art. 3º, I). A justiça futura, que para ser alcançada depende de esforços

contínuos, este é o conceito de justiça que deve, constitucionalmente deve, irrigar as

interpretações jurídicas atuais.

Eis o critério jurídico para crítica valorativa das normas do ordenamento,

entretanto ainda lhe falta substância. Os conflitos sociais se dão também por choque

entre modelos de sociedade justa, como pelos caminhos até a utopia — modelos que,

nunca é demais frisar, são legítimos enquanto correrem dentre as margens determinadas

98 PERELMAN, Chaïm. Teoria da Argumentação: a nova retórica. Nova Fronteira: São Paulo, 2000.

pela Constituição. Ocorre que estes modelos são todos válidos, portanto, o que não

auxilia na formulação de critério que estabeleça qual a validade dos conceitos de justiça

eventualmente propostos.

Há utilidade, para o desenvolvimento do trabalho, em qualificar os critérios de

justiça em formais, materiais ou procedimentais. Os critérios materiais, ou concretos,

têm conteúdo substantivo, como alguns dos apresentados por Perelman em sua análise

do tema: “a cada qual segundo seus méritos”99 ou “a cada qual a mesma coisa”100. Estas

formulações da justiça são fechadas, apresentam critério definido de antemão do que é

justo (o mérito ou a igualdade absoluta, nos exemplos acima).

Já os critérios formais envolvem uma formulação muito mais abstrata e

universal, aplicável a quaisquer casos que se apresentem, entretanto sua abertura

esclarece menos que os critérios materiais. O exemplo também advém de Perelman:

“princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser

tratados da mesma forma”.101 A terceira categoria proposta neste trabalho é a

procedimental. Com isto se quis referir as formulações que apontam a indicação do

justo a um procedimento ou instituição, como em: “justo é o que o Papa afirmar como

justo”. Não sendo tão fechadas quanto as formulações concretas, as procedimentais

garantem maior certeza que as meramente formais.

Saber da juridicidade da determinação da função social do uso de recursos

hídricos é problema que não se pode separar do questionamento (jurídico) sobre a

dinâmica institucional do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. As

análises dos dois objetos confluem, não há como separá-las uma da outra ou da questão

que as une — a justiça.

99 PERELMAN, Chaïm. A ética e o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 21.

100 Idem. ibidem, p. 20.

101 Idem. ibidem, p. 19.

4.1 HANS KELSEN

Dentro dos parâmetros estabelecidos pela teoria de Hans Kelsen, não se

considera a justiça como critério para crítica científica à norma jurídica — mesmo que

construída por critérios desta mesma ciência. As relações entre fatos e normas se dão em

outro nível, dentro do modelo kelseniano. O tema é estudado a partir de duas duplas de

conceitos: a) legitimidade e efetividade; e b) validade e eficácia. A primeira dupla se

refere ao ordenamento, incluindo-se aí as instituições criadas por ele, enquanto a

segunda se refere a normas singulares.

A Teoria Pura do Direito comporta duas possibilidades de interferência do

mundo dos fatos no ordenamento. A primeira é a análise do conflito contido entre

facticidade e validade, ou seja, a análise da influência da política (submetida pelo

ordenamento) na criação, ou aplicação, do direito. Ressalta-se que, para Hans Kelsen,

não se distinguem os atos de criação e aplicação, pois sempre que se cria uma

determinada norma válida está-se também aplicando o ordenamento superior a ela. Da

mesma forma, sempre que se aplica o ordenamento produzir-se-á norma concreta a

partir dele. Ou, “se deixarmos de lado os casos limite […] todo ato jurídico é

simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma,

de uma norma inferior”.102 Isto posto, à descrição kelseniana da facticidade na aplicação

das normas jurídicas.

Sem estabelecer um conteúdo normativo de justiça, Hans Kelsen aceita que ela,

em qualquer formulação racional ou afetiva, tenha influência na criação da norma

inferior a partir do quadro estabelecido pelas superiores. A aplicação do direito não é ato

isento de considerações alheias ao ordenamento, a interpretação erudita não é suficiente,

muito embora seja necessária. Seria impossível levar a cabo “a tarefa de que se propõe,

[confiando exclusivamente] nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas

102 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 253.

(certas)”.103 A aplicação do direito é processo que envolve dois cursos de ação, de

naturezas distintas, desembocando em um ato de conhecimento e o outro político.

O ato de conhecimento é a construção do “quadro normativo”, da “moldura da

norma jurídica”, isto é, do espaço de ações lícitas. A partir da interpretação racional do

ordenamento, dos silogismos jurídicos, o criador de normas estabelece seu campo de

possibilidades. A escolha dentre estas possibilidades é o ato de vontade, informado

inclusive pela idéia de justiça deste “interprete autêntico”104. As “normas de Justiça”

informam a decisão política, parte da determinação de conteúdo das normas jurídicas,

mas não são influenciadas pelo ordenamento senão no campo da retórica. À ciência

jurídica é possível discutir o ato de conhecimento, já que este se encontra exatamente

em seu campo de ação, mas nunca o ato de vontade — já que este é essencialmente

político, muito embora produza direito.

Assim, as energias sociais, as demandas ou pressões fáticas, elas encontram

canal institucional próprio — juridicamente válido. O espaço de decisão política na

criação da norma permite a validação jurídica do mundo extrajurídico. Ao mesmo

tempo, ela permite que o ordenamento se atualize continuamente, mantendo contato

com a realidade social. Reconhecendo-se que as citadas energias sociais nunca são

unívocas, porém fruto de conflitos entre grupos sociais antagônicos ou entre a

hegemonia social e interpretação ultrapassada da norma superior, a criação da norma

inferior contém os citados conflitos ao absorver sua solução no ordenamento.

Antes de se formalizar em norma, a solução se civiliza em justiça; ou, noutros

termos, como passo para a adequação ao ordenamento, a solução deve se adequar aos

valores nele contidos. A justiça aparece como interface entre facticidade e validade.

A análise mais global é a do conflito incontido entre validade e facticidade. Esta

descrição da justiça é estabelecida a partir do confronto em que “o princípio da

103 Idem. Ibidem. p. 368.

104 Idem. Ibidem. p. 369.

legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade”105, ou seja, o choque entre a

norma posta e a realidade social. Nos termos kelsenianos, a legitimidade de uma norma,

mesmo uma emenda constitucional, é dada pela efetividade do ordenamento pré-

existente, ou, no caso específico de uma nova constituição, pela falta desta efetividade.

Havendo condições políticas de manutenção do ordenamento, sendo ele ainda efetivo

(aplicado coercitivamente com perspectiva de alcance universal), também serão

legítimas suas normas particulares. Ausentes estas condições, ou presentes as condições

de efetividade de outra Constituição, a anterior perde legitimidade.

Entretanto a teoria de Hans Kelsen é infinitamente mais sofisticada que a mera

redução do direito à força, ou da validade à efetividade, produz “a formulação

cientificamente exata da antiga verdade de que o Direito não pode, na verdade, existir

sem a força, mas que, no entanto, não se identifica com ela. É [...] uma determinada

ordem (ou ordenação) do poder”.106

Como referido acima, os termos efetividade e legitimidade, aplicados na análise

do conjunto do ordenamento, são então substituídos por eficácia e validade na análise,

mais miúda, sobre normas. Contudo mantém-se a mesma dicotomia, objeto da

investigação em curso, entre facticidade e validade, entre o socialmente justo e o

juridicamente correto. A validade tem critérios próprios, advindos do ordenamento e

analisáveis a partir de elementos formais — a validade pertence ao mundo do dever-ser.

A eficácia é social, formulada como a característica da norma que é, ao mesmo tempo,

obedecida e não aplicada, desobedecida e aplicada — pertence ao mundo do ser. A

eficácia é condição da validade, porém nunca seu fundamento. Todavia, a “eficácia é

condição no sentido de que uma ordem jurídica como um todo eu uma norma jurídica

singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes”.107

105 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 226.

106 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 232.

107 Idem. ibidem, p. 320.

As vicissitudes do cotidiano, as relações sociais, a vida, como visto acima, tem

duas largas entradas na enseada jurídica. Por um lado, não há norma que se crie senão

sob impacto da política, da facticidade, porém enquanto o ordenamento for efetivo este

influxo é subordinado aos critérios de validade — primeiro o ato de conhecimento,

depois, complementarmente, o ato político. Por outro lado, a eficácia se impõe requisito

da norma, de sua validade, porém o fundamento desta validade não se encontra na vida,

senão no próprio ordenamento.

Há um canal para a facticidade dar vida ao ordenamento — ou construir outro,

mais legítimo. A estrutura kelseniana aponta para a necessidade do aplicador/criador das

normas continuar tomando decisões políticas afinadas com a facticidade. Quando se

afasta da sua fonte, as normas que cria perdem eficácia, o ordenamento inteiro seca, se

enfraquece e rui. Aproxima-se, assim, do elogio à democracia pela sua estabilidade,

afinal de contas “‘Justiça’ significa a manutenção de uma ordem positiva através de sua

aplicação escrupulosa”.108

Para além da Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen analisa o que chama os “tipos

de constituição”: autocracia e democracia. Seu fundamento para a democracia é a

liberdade. Adotando-a como critério para distinção entre um tipo e outro, afirma que “a

liberdade política, isto é, a liberdade sob a ordem social, é a autodeterminação do

indivíduo por meio da participação na criação da ordem social”109, participação esta que

se dá na democracia. Na autocracia haveria “escravidão”, pois “os sujeitos estão

excluídos da criação da ordem jurídica, e a harmonia entre a ordem e as suas vontades

não é garantida de modo algum”.110 Enquanto a democracia garante liberdade, ela

também garante estabilidade, exatamente por garantir a harmonia entre a ordem e a

vontade individual.

108 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 21.

109 Idem. ibidem, p. 279.

110 Idem. ibidem, p. 278.

Ressalta que o tipo ideal de democracia é a direta, deplorando que esta forma é

impossível senão em assembléias pequenas e indicando o caminho inexorável da

representação. Entretanto, a representação pela maioria inclui problemas inescapáveis

para a construção da paz, pois aí “o conceito de justiça transforma-se […] em ordem

social que protege determinados interesses, ou seja, aqueles que são reconhecidos como

dignos dessa proteção pela maioria dos subordinados a essa ordem”.111

Finda esta pequena incursão nos conceitos apresentados e organizados por Hans

Kelsen, já se tem, a partir de sua obra, um norte para as questões do presente trabalho: a

democracia é o caminho para a legitimidade, para a manutenção da efetividade do

ordenamento. Mas qual democracia? Muito embora se descrevam rudimentos de uma

teoria da constituição democrática, as relações entre facticidade e validade não são

objeto da Teoria Pura, não sendo descritas senão pelos prismas apontados acima. Não se

apresenta, tão pouco, um modelo prescritivo de democracia, com requisitos mínimos

para a classificação de regimes existentes.

Assim, numa análise estritamente kelseniana, quaisquer usos prescritos pelos

Comitês de Bacia para os corpos d’água sob sua competência, desde que usos

compatíveis com os mandamentos dos níveis superiores do ordenamento, seriam válidos

— supondo efetivo o ordenamento que lhe deu esta competência. Quanto à justiça, ela é

na democracia a justiça da maioria, dos interesses da maioria.

4.2 JÜRGEN HABERMAS

Jürgen Habermas desenvolve extensivamente as imbricações entre facticidade e

validade ao longo de obra de utilidade capital para o presente estudo112. Mesmo assim,

foi também necessária a referência a outros trabalhos do mesmo autor ou de seus

comentadores mais voltados para os temas aqui presentes.

111 KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 4.

112 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

Antes de tomar o problema específico do fundamento da democracia e da

justiça, será útil ganhar alguma familiaridade com a teoria do agir comunicativo, ainda

que superficialmente. O primeiro conceito a ser compreendido é o de mundo da vida

— lebenswelt, no original. É o espaço onde se dá a existência humana, em geral, e

especialmente onde se dão suas interações, vistas como atos de comunicação. As

comunicações se dão em três níveis, sempre: a) o mundo das coisas, da matéria; b) o

mundo das normas sociais, das estruturas sociais, não necessariamente jurídicas; e c) o

mundo pessoal, onde se desenrolam os eventos psicológicos ou existenciais de cada

indivíduo.

Cada comunicação expõe as verdades do sujeito que comunica, no tocante à sua

concepção do mundo das coisas, como também certa coerência existencial, ou seja,

aquela tocante ao seu mundo pessoal, além das normas e valores aos quais se submete.

Para esta comunicação ser considerada válida, ela deve atender a estas três dimensões

da “verdade proposicional, da veracidade subjetiva e da correção normativa”.113 Ainda

não se trata especificamente de validade jurídica, mas da avaliação que os outros

sujeitos fazem das comunicações de cada um. Assim, descarta-se como inválida a

comunicação mentirosa (quanto ao mundo das coisas), inverossímil (inconsistente com

vida daquele que comunica), ou incorreta (contrária aos valores e normas sociais). Estes

critérios de validade das comunicações, isto é, as objetividades, as subjetividades e as

instituições do mundo da vida, são aquilo que no Capítulo Primeiro desta dissertação se

chamou de princípios epistemológicos.

Assim como há comunicações que funcionam submetidas a estes critérios,

também há comunicações sobre eles. Tanto num como noutro caso Jürgen Habermas

afirma ser possível pressupor o objetivo de entendimento mútuo entre os sujeitos,

chamando às comunicações com este objetivo real de ações comunicativas, em

contraposição às ações estratégicas, realizadas apenas como meio para um fim distinto

dela. Nas ações estratégicas a parte se utiliza da comunicação para algum fim, que

pode ser até mesmo ausente da situação, mas a boa-fé implícita no ato de comunicar-se

113 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 21.

permanece. A ação estratégica referida anteriormente é orientada para o sucesso e nela

se estabelece uma relação sujeito-objeto. O agente vê todos os outros componentes da

situação como objetos, mesmo outros sujeitos. Enquanto isto, a ação comunicativa é

orientada para a compreensão mútua e as relações são estabelecidas na perspectiva

sujeito-sujeito.

Pelos critérios de validade se estabelece a crítica às falas dos atores na

sociedade. Assim se podem criticar as comunicações das empresas, dos líderes

sindicais, dos partidos ou tendências políticas e do Estado. O autor dá o nome específico

de discurso (Diskurs) à comunicação que busca afirmar “pretensões de validade”. Este

tipo de comunicação é de importância nuclear para a teoria de Jürgen Habermas, pois é

ele que, se realizado sempre em situação ideal de fala, garante a possibilidade de crítica

social mais profunda. No Diskurs é possível discutir os critérios para a crítica à

comunicação, nos seus três níveis.

Haverá, como já afirmado no Capítulo Primeiro, crescente esclarecimento

quanto mais próxima estiver a sociedade da situação ideal de fala — com este

esclarecimento advindo a proporcional emancipação. Com liberdade para abordar

qualquer assunto e discuti-lo sem qualquer coação, dispondo do conhecimento

acumulado e de tempo ilimitado, sujeitos em pé de igualdade poderiam criticar tanto as

falas quanto os critérios de validade apresentados uns aos outros. Assim se libertariam

de toda e qualquer amarra ideológica e correspondente opressão social, inclusive sendo

capazes de estabelecer critério de justiça aplicável a si mesmos.

Após o excurso conceitual, retorne-se o leme ao principal. Jürgen Habermas

apresenta dois fundamentos tradicionais para a legitimidade, o liberal e o

republicano114, complementarmente, associa a estes modelos também suas perspectivas

sobre a eficácia do ordenamento. Como já se viu em Hans Kelsen, o fundamento para a

legitimidade ou a validade não se confunde com a efetividade ou a eficácia.

114 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

No pensamento liberal a legitimidade se funda na liberdade, mormente a

liberdade econômica. Assim, o Estado e o ordenamento fundam sua legitimidade pela

manutenção da dos direitos (ou liberdades) fundamentais. Enquanto houver garantia do

exercício destes direitos há legitimidade. Como se trata de direitos no sentido de

liberdades, apenas se tomam os direitos fundamentais no sentido negativo, mencionado

no Capítulo Segundo. A eficácia, dentro desta perspectiva, é dada inteiramente pela

aplicação coercitiva do ordenamento pelo Estado.

Nas teorias de matiz republicano trata-se de manter, criar ou recriar a

comunidade política. Embora em contexto distinto, Canotilho ensina que a legitimidade

republicana funda-se no “compromisso ético-político referente a uma identidade

colectiva no seio da comunidade”.115 Enquanto houver garantias de manutenção da

comunidade, haveria legitimidade, entretanto esta manutenção é qualificada pela ação

estatal para a garantia dos direitos no sentido positivo. Nesta perspectiva a eficácia é

reforçada pela intensa adesão dos sujeitos à estrutura cultural e institucional da

comunidade.

A generalização da ação comunicativa (que visa o entendimento) favorece o

afloramento de intensa adesão a normas sociais, valores e ideais de justiça, os quais se

tornam coerentes e coesos pelo mesmo processo de comunicação em situação ideal de

fala. Neste ambiente cultural seria previsível a pouca necessidade de aplicação

coercitiva de sanções jurídicas pelo Estado, já que as sanções sociais seriam

particularmente efetivas.

A generalização da ação estratégica (que visa o sucesso) favorece

relacionamentos menos pautados por uma ética específica. A liberdade em relação às

balizas culturais, e mesmo a baixa confiabilidade das comunicações alheias, leva à

necessidade de maior firmeza na aplicação das sanções jurídicas pelo Estado.

115 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Lisboa: Almedina, s/ data, p. 1321.

Jürgen Habermas afirma que sociedades complexas precisam das duas fontes de

eficácia. Elas não podem se fiar apenas na validade (comunicativa) das normas porque

nelas se confrontam culturas bastante variadas, relacionando-se de muitas formas, desde

aberto antagonismo até sincretismos múltiplos. Nesta situação, as instituições e normas

ganham legitimidade na medida em que incorporam a “razão comunicativa”,116 a

perspectiva de discussão em busca do entendimento, aliada à aplicação coercitiva das

normas.

Dadas estas condições específicas, persiste o problema da construção de ideal

substantivo de justiça, o qual daria unidade material de significado ao ordenamento.

Considere-se quanto a este propósito a situação ideal de fala, com sujeitos esclarecidos e

emancipados. A idéia não aponta para um conceito estático de justiça, antes aponta para

um ideal procedimental e, sobretudo, para uma situação de construção democrática da

justiça. A situação ideal de fala não apenas é compatível com os objetivos da República

brasileira como dá unidade de significados aos pontos aqui destacados na Política

Nacional de Recursos Hídricos.

Jürgen Habermas resolve o problema da justiça das normas deslocando-o para a

legitimidade das instituições que as criam e aplicam. O movimento não é original,

vendo-se em Weber, por exemplo, um precedente117 bastante comentado. Entretanto não

dá carta branca às instituições (como faz Hans Kelsen), não são quaisquer instituições

que, alcançando efetividade, têm legitimidade. Qualifica estas instituições, afirmando

legítimas apenas aquelas que permitem comunicações livres entre iguais em processo de

esclarecimento e emancipação. Fundamenta a legitimidade em uma teoria comunicativa

bastante sofisticada,

De acordo com o princípio [da democracia segundo a teoria] do

discurso, podem pretender validade as normas que poderiam encontrar

116 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

117 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 150.

o assentimento de todos os potencialmente atingidos, na medida em

que estes participam de discursos racionais. Os direitos políticos

procurados têm que garantir, por isso, a participação de todos nos

processos de deliberação e de decisão relevantes para a legislação, de

modo a que a liberdade comunicativa de cada um possa vir

simetricamente à tona, ou seja, a liberdade de tomar posição em

relação a pretensões de validade criticáveis.118

Embora se identificando pela estreita ligação entre legitimidade e validade nas

duas obras, nota-se que por cursos bastante diversos correm as teorias de Hans Kelsen e

Jürgen Habermas. Neste último as normas são entendidas como comunicação, não como

enunciados imperativos distintos da situação fática, como no primeiro. Ao descrever a

norma como discurso, Jürgen Habermas não pode deixar de considerar as

condicionantes sociais de sua produção, como também e principalmente de sua

aplicação. Para Hans Kelsen importa exclusivamente que o ordenamento seja efetivo,

para então declará-lo legítimo; para Jürgen Habermas importa especular como o

ordenamento se torna efetivo.

Esclareça-se, antes de prosseguir, o conceito habermasiano de facticidade, como

também as relações entre seu significado e o da efetividade kelseniana. Facticidade é

idéia que se liga ao mundo da vida. Quando o autor se refere à facticidade ele está se

reportando ao mundo material onde se desenvolvem os eventos que constituem a

realidade social. No âmbito da facticidade é que se configura a efetividade.

A análise da validade da norma, para Hans Kelsen, tem fundamento exclusivo no

próprio ordenamento, se bem tem por requisito a eficácia (a qual também se desenvolve

no universo fático). Para Jürgen Habermas os critérios de validade são fáticos, ou “o que

é válido precisa estar em condições de comprovar-se contra as objeções apresentadas

factualmente”. Objeções que, já se viu, pertencem ao mundo da vida. Em Hans Kelsen o

juízo de validade se refere sempre à norma. A legitimidade se refere ao ordenamento —

que se identifica com as instituições. Para Jürgen Habermas os mesmos critérios de

118 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 164.

validade podem se aplicar às instituições e, de maneira um tanto complexa, a validade

das instituições se comunica com a validade das normas.

A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para

dois lados: De um lado, a carga da legitimação da normatização

jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os

procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade,

institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da

liberdade comunicativa significa também que o direito é levado a

explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor.119 (sic).

O escrutínio da facticidade, buscando a validade das instituições pela

comunicação esclarecida e emancipada entre os sujeitos, vai garantindo também a

validade e a eficácia das normas. É que quanto maior a legitimidade das instituições

(sua validade), maior também a eficácia, já que menos combatida será a aplicação

coercitiva do ordenamento.

De maneira bastante simplificada, quanto maior a abertura institucional, quanto

mais democráticas forem as instituições, maior a certeza de ampla comunicação sobre

as normas que irão criar e aplicar. As instituições serão mais justas quanto mais

democráticas — tomando por critério de democracia a abertura para participação na

discussão sobre as decisões que irá tomar. As normas serão mais justas quanto maior sua

aceitação discursiva — tomando por critério a adesão pela população esclarecida e

emancipada.

Segundo explica a teoria de Jürgen Habermas, a democracia das instituições

garante a eficácia das suas decisões.

Os Comitês de Bacia Hidrográfica são mais radicalmente democráticos que o

Legislativo. Disto não decorre que suas normas sejam hierarquicamente superiores,

pelos critérios formais da hierarquia do ordenamento, porém garante que são também

119 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 168.

mais eficazes. A determinação da função social das outorgas de direito de uso de

recursos hídricos deriva da democracia institucional sua justiça — como também deriva

do ordenamento sua validade formal.

CONCLUSÃO

No início do trabalho se propôs que a interpretação harmonizadora de justiça,

democracia e função social pode enriquecer o significado dos três conceitos

constitucionais, como também se propôs que os significados reciprocamente referidos

são úteis para a interpretação da Política Nacional de Recursos Hídricos conforme a

Constituição da República, posto que a estrutura de decisão do Sistema Nacional de

Gerenciamento de Recursos Hídricos aponta o sentido que as demandas sociais desejam

dar ao desenvolvimento econômico e à mudança social. Como também que seria

inconstitucional a decisão sobre outorga ou cobrança pelo uso de recursos hídricos

se: a) a norma não atentar para a função social do uso da água; b) a instituição que

a criou não for democrática; e c) seus efeitos não forem de criação de sociedade

justa, ou não for justa a distribuição social do poder no órgão decisório.

Analisaram-se questões fulcrais do regime dos recursos hídricos, desenhando-se

concepção da outorga (como de sua respectiva cobrança) plenamente compatível com a

idéia de função social do uso da água. Os usos econômicos dos recursos hídricos são

vários, podendo-se determinar, de antemão, quais serão mais adequados para cada corpo

de água. Os principais critérios seriam o quão consuntivos são estes usos; o quão

poluidores; e qual a agressividade da intervenção ambiental necessária. É clara questão

de justiça determinar, em cada caso, o equilíbrio entre as interferências no meio-

ambiente e os ganhos econômicos e sociais decorrentes do uso proposto. A função

social do uso privado do recurso hídrico seria a mais justa para a sociedade — titular

última do bem público.

Vê-se fundamental a determinação da justiça para o preenchimento do

significado de função social. De particular importância é a fixação de significado para o

termo no Art. 3º, I, da Constituição da República (“sociedade livre, justa e solidária”).

Observou-se então a característica democrática da regulamentação da tomada de

decisão, pelos Comitês de Bacia Hidrográfica, sobre o planejamento do uso

economicamente relevante dos recursos hídricos. Pode-se ver a maneira como flui a

representatividade pelo Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,

alcançando seus principais órgãos decisórios e insuflando suas normas com a

legitimidade decorrente da proximidade com os anseios sociais.

Pelos conceitos presentes na obra de Jürgen Habermas foi possível concluir que

a democracia é o caminho constitucional para a manutenção da legitimidade do

ordenamento, como de sua eficácia. Discutiu-se a idéia de justiça tanto a partir da obra

de Jürgen Habermas quanto de Hans Kelsen, para analisar a possibilidade de adoção do

significado habermasiano e sua compatibilidade com as interpretações usuais do

ordenamento brasileiro e de sua Constituição. A concepção adotada é a de justiça como

ideal atualizado pela democracia — quanto mais democrática a sociedade, mais justas

seriam suas decisões, posto que mais equilibrados estariam os argumentos dos vários

agentes sociais. Justiça, assim, tem mais a ver com a garantia de processos sociais de

decisão que com a fixação de ideais platônicos.

A partir da concepção proposta de justiça, pode-se interpretar a determinação da

função social do uso dos recursos hídricos de forma a manter o ordenamento aberto,

para que as demandas sociais possam ditar o ritmo e o caminho para o desenvolvimento

econômico e para as mudanças na própria sociedade. O uso da água será mais

compatível com sua função social quanto mais justo for, para a sociedade como um

todo. A justiça se determina pelo quão permeável o processo decisório foi para a

democracia.

Daí que será inconstitucional a decisão sobre outorga ou cobrança pelo uso de

recursos hídricos se: a) a norma não atentar para a função social do uso da água; b) a

instituição que a criou não for democrática; e c) seus efeitos não forem de criação de

sociedade justa, ou não for justa a distribuição social do poder no órgão decisório.

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