democracia e participaÇÃo

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“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará Martha Priscylla Monteiro Joca Martins Luciana Nogueira Nóbrega Jacqueline Alves Soares Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN Lindijane de Souza Bento Almeida Formação de agenda na política de assistência social: o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação Cláudia Feres Faria Eleonora Schettini M. Cunha Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo Euzeneia Carlos A pluralidade de sociedades civis na segurança pública: deliberação e concepções de representação política no Conasp Gabriela Ribeiro Cardoso Fábio de Sá e Silva Julian Borba volume 1 | número 1 | abril-jun 2014 REVISTA DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO

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“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares organizados em torno de direitos territoriais

em meio a conflitos socioambientais no CearáMartha Priscylla Monteiro Joca Martins

Luciana Nogueira NóbregaJacqueline Alves Soares

Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN

Lindijane de Souza Bento Almeida

Formação de agenda na política de assistência social: o papel das conferências como um sistema integrado de participação e deliberação

Cláudia Feres FariaEleonora Schettini M. Cunha

Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo

Euzeneia Carlos

A pluralidade de sociedades civis na segurança pública: deliberação e concepções de representação política no Conasp

Gabriela Ribeiro CardosoFábio de Sá e Silva

Julian Borba

volume 1 | número 1 | abril-jun 2014

R E V I S T A

DEMOCRACIA EPARTICIPAÇÃO

Brasil. Presidência da República. Secretaria-Geral.Revista Democracia e Participação / Secretaria Geral. – v. 1, n. 1 (abril-jun.2014). Edição Especial– Brasília : SG, 2014-v. : il. – Trimestral.ISSN 2318-96811. Democracia. 2. Política. I. Título

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessa-riamente, o ponto de vista da Secretaria Geral da Presidência da República ou de sua Secretaria-Executiva.É permitida a reprodução dos textos desse volume e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.

© Secretaria Geral da Presidência da República 2014.

A Secretaria-Geral da Presidência da República tem como principal atribuição assessorar diretamente o governo federal e a presidenta da República no relacionamento e articulação com os movimentos sociais, entidades patronais e de trabalha-dores, o que inclui a criação e implementação de canais que assegurem a consulta e a participação popular na discussão e definição da agenda prioritária do país.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Dilma Rousseff Presidenta da República

Michel Temer Vice-Presidente da República

SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Gilberto Carvalho Ministro de Estado Chefe

Diogo de Sant´Ana Secretário-Executivo

Brisa Lopes de Mello FerrãoEditora da Revista Democracia e Participação

COMITÊ EDITORIAL DA SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Sérgio de Carvalho AlliCoordenação

Revista Democracia e Participação da Secretaria-Geral da Presidência da República. Palácio do Planalto, 4º Andar, Sala 429, Praça dos Três Poderes, Brasília-DF, 70.150-900.site:http://www.secretariageral.gov.br/revistademocraciaeparticipaçãoe-mail: [email protected]

Esta obra é licenciada sob uma licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Membros André Calixtre Brisa Lopes de Mello FerrãoEfraim Batista de Souza NetoEvanio Antonio de Araujo JuniorHerbert Borges Paes de BarrosJanaína Cordeiro de Morais Santos

Luiz Alberto VieiraManoel Messias de Souza RibeiroMaria Theresa Nichele ReginattoMaria Victoria HernandezMariana BizinotoRenato Rodrigues das GraçasSilvio Carvalho Trida

R E V I S T A

DEMOCRACIA EPARTICIPAÇÃO

volume 1 | número 1 | abril-jun 2014

Edição Especial

CONSOLIDAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO COMO MÉTODO DE GOVERNO

Os últimos anos têm sido marcados por relevantes avanços para a democracia brasileira. O país vem adotando uma nova forma de governar baseada no diálogo permanente e qualificado com os diversos segmentos da sociedade, fazendo da participação social, cada vez mais, um método de governo. Decisões estruturais e conjunturais passaram a ser objeto de interlocução com a sociedade civil e movimentos sociais. Em 2013, mobilizações populares também ganharam destaque, fortalecendo o debate sobre ques-tões fundamentais como mobilidade urbana, combate à corrupção, reforma política, e melhoria da qualidade dos serviços públicos, entre outros temas.

O que fica evidente neste momento histórico é que sem a intensa participação da sociedade, suas propostas e sua vigorosa mobilização não teria sido possível promover as importantes transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais passou o país nos últimos anos.

A participação do povo brasileiro na definição das prioridades do país conferiu qualidade e viabilizou um projeto de desenvolvimento de longo prazo. Quarenta mi-lhões de pessoas saíram da pobreza e adquiriram cidadania. Além de conquistas funda-mentais quanto à garantia de direitos sociais – emprego, renda, proteção social, educa-ção e saúde – a incorporação das propostas da sociedade nas políticas públicas federais gerou avanços relevantes às pautas emancipatórias da sociedade como a promoção da igualdade racial e de gênero, o respeito à diversidade sexual e o reconhecimento das demandas da juventude, dos idosos e das pessoas com deficiência.

Consolidar a participação como método de governo é, portanto, fundamental para a construção de sólidos mecanismos de participação social. Para além da criação, insti-tucionalização e consolidação dos espaços de participação – Conferências, Conselhos, Ouvidorias, Mesas de Diálogo, Fóruns e Audiências Públicas, entre outros – o desafio maior é aperfeiçoar esses espaços e as formas de interlocução com a sociedade por meio do debate qualificado sobre o tema.

Nesse contexto, a Secretaria-Geral da Presidência da República tem a honra de lan-çar a Revista Democracia e Participação, que visa a incentivar a reflexão e a produção de conhecimento sobre os atores, a estrutura e os mecanismos definidores da democracia participativa no Brasil e no mundo.

A revista pretende divulgar trabalhos clássicos sobre teorias democráticas e ins-trumentos de participação e artigos empíricos que exploram o desenvolvimento de novas formas e mecanismos de participação nas diversas regiões do Brasil. Também serão publicados estudos comparados e artigos sobre experiências de participação

em âmbito internacional. No processo de seleção dos artigos, além do tema, serão consideradas a diversidade regional das experiências de participação e o equilíbrio de gênero entre seus autores.

Além de promover a reflexão e a produção de conhecimento sobre participação, a revista tem como objetivo contribuir para o aperfeiçoamento das ações da Secretaria- Geral na consolidação e no fortalecimento da Política e do Sistema Nacional de Parti-cipação Social. Assim, os artigos selecionados são também subsídios para as discussões internas de governo na elaboração e desenvolvimento de suas ações.

Ao não refletir, necessariamente, o posicionamento institucional do governo, a re-vista é um locus de avaliação, crítica e inovação sobre democracia participativa que pode auxiliar a condução, pela Secretaria-Geral, do aprimoramento dos processos de inter-locução entre Estado e sociedade para cogestão da coisa pública. Trata-se de mais uma iniciativa do governo federal com vistas à consolidação dessa nova fase da democracia brasileira, na qual a participação se tornou o principal método de governar.

Gilberto CarvalhoMinistro de Estado Chefe da

Secretaria-Geral da Presidência da República

PREFÁCIO

Em comemoração ao lançamento da Política Nacional de Participação Social pelo gover-no federal, o primeiro volume da revista Democracia e Participação, edição especial, pri-vilegiou a publicação de artigos empíricos que analisam experiências de participação social no Brasil. Neste volume, os trabalhos versam sobre mecanismos e espaços institucionais de participação e sobre a atuação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil em estados de diferentes regiões do país – Espírito Santo, Ceará, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. A temática de cada artigo selecionado está diretamente relacionada a assuntos prioritários da atual agenda da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Os Povos e Comunidades Tradicionais

O primeiro artigo da revista traz uma análise comparativa entre a pluralidade de senti-dos atribuídos aos direitos territoriais pelos povos indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais e o conceito jurídico de direito territorial vigente na legislação brasileira.

A partir dos relatos e entrevistas realizadas com essas comunidades, as autoras cap-tam e exploram, sob perspectiva pluriétnica e multicultural, as diversas dimensões do que esses atores demandam como direitos territoriais. A compreensão dessas dimensões permite identificar como e por que os mecanismos jurídicos tradicionais se tornam impermeáveis às noções de normatividade dessas culturas.

A restrição do conceito de direito territorial à dimensão patrimonial faz com que o ordenamento jurídico brasileiro, indiretamente, crie mecanismos jurídicos que difi-cultam o reconhecimento do dinamismo natural da identidade dos povos indígenas e comunidades tradicionais e que impedem o processo de desenvolvimento natural dessas culturas, interferindo artificialmente na evolução e manutenção de seus traços identitá-rios. Condicionar a capacidade de ser sujeito de direitos territoriais à imutabilidade da cultura é, em última análise, um requisito que viola justamente o valor que o ordena-mento jurídico visa proteger, i.e., a identidade e a cultura desses atores.

Ao ressaltar e demonstrar a necessidade de pensar a propriedade e a territorialidade a partir do local, as autoras fornecem uma ferramenta para a construção de mecanismos jurídicos que efetivamente incorporem as noções de normatividade construídas por essas culturas a partir de um conceito de território que se constitui como expressão de suas identidades, e não como um direito de propriedade tradicional.

Os Movimentos Sociais e os Mecanismos Institucionais de Participação

A atividade por excelência da Secretaria-Geral é realizar a interlocução entre Estado e so-ciedade civil, estabelecendo arenas plurais e abertas de diálogo que garantam a autonomia

dos atores sociais em relação ao Estado. Nesse sentido, o desenho institucional dos canais de participação social deve priorizar a garantia da pluralidade e o fortalecimento da socie-dade civil, elementos fundamentais para o aprofundamento da democracia. Em vista a essa preocupação, são especialmente relevantes as pesquisas que abordam o funcionamento das diversas instâncias e mecanismos de participação existentes no Brasil e em outros países.

Assim, o segundo artigo da publicação traz uma análise dos efeitos do engaja-mento institucional das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais em instituições participativas sobre seus padrões de ação coletiva, além de expor a com-plexidade do processo de conflito e cooperação inerente à relação entre poder público e atores da sociedade civil.

A partir do estudo sobre os padrões de ação coletiva de quatro movimentos sociais do estado do Espírito Santo que utilizaram canais institucionais de participação para a defesa de suas demandas, a autora demonstra que a relação entre os movimentos sociais e as instituições políticas deve ser compreendida como um processo dinâmico, em que o Estado e a sociedade se influenciam mutuamente, de forma contínua e circunstancial.

A identificação dos elementos que caracterizam a mudança ou a manutenção do padrão de ação coletiva desses movimentos em situação de engajamento institucional, fornece instrumentos de análise que podem servir para monitorar como a interação en-tre sociedade e Estado pode contribuir para o aperfeiçoamento do desenho institucional dos variados espaços de participação. Ademais, esses instrumentos também permitem aferir se os movimentos sociais estão expostos ao risco de desarticulação e perda de sua função social no sistema democrático por meio da interação institucional com o Esta-do, e se o Estado é de fato permeável às demandas da sociedade.

Ao não adotar como pressuposto analítico a ideia de separação entre sociedade civil e Estado, sem desconsiderar, contudo, a especificidade da função social de cada ator para a democracia, o estudo explora com maior amplitude a diversidade de conexões entre movimentos sociais e sistema político, e considera certos tipos de relações entre atores coletivos e Estado que seriam ignorados sob a perspectiva de algumas teorias dos movimentos sociais. Pensar o Estado e a sociedade como resultado de um processo dinâmico e contingente de mútua constituição, amplia o leque de oportunidades de construir mecanismos de participação que podem servir para o aperfeiçoamento do Sistema Nacional de Participação Social.

As Conferências Nacionais

Outro tema caro à Secretaria-Geral é o processo de discussão das políticas públicas por meio da realização de conferências,. Ao longo dos últimos 12 anos, o governo federal realizou mais 97 conferências nacionais sobre temas de extrema relevância para o desen-volvimento do país, como saúde, educação, assistência social, direitos humanos, cultura e comunicação. Entre as instâncias de participação social, as conferências ocupam papel

de destaque. Hoje, elas são os espaços institucionais de participação que permitem a atuação do maior e mais diverso número de atores na construção de agendas de políticas públicas nacionais. Até 2014, mais de sete milhões de pessoas participaram de conferên-cias em todos os níveis de governo.

Por constituírem a etapa final de um processo de participação e deliberação que é iniciado nas esferas municipais e estaduais, as conferências nacionais permi-tem que questões regionais e locais, que merecem atenção diferenciada do governo federal, integrem o conjunto de prioridades das agendas temáticas nacionais, po-dendo contribuir para a redução das desigualdades regionais como nenhum outro espaço de participação.

Em função da importância das conferências para a construção das políticas de governo, a Secretaria-Geral da Presidência da República dá especial atenção ao aper-feiçoamento do desenho institucional dessas instâncias. Dentro dessa lógica, o tercei-ro artigo faz uma análise das conferências como sistema integrado de participação e deliberação. A descrição minuciosa das etapas das Conferências de Assistência Social - pré-conferências, conferência municipal, estadual e nacional - realizadas nos três níveis de governo e da relação de múltipla vinculação entre elas permite estabelecer comparações entre o desenho institucional de cada etapa e o impacto de seus diferentes formatos para o sistema.

A principal função das conferências, de deliberar sobre um conjunto de diretrizes que deverão pautar as ações dos três níveis de governo, de forma articulada e integrada, as torna um espaço adequado para o estudo da centralidade da interação discursiva entre diferentes atores na conformação das agendas de política públicas.

Para compreender a dinâmica de funcionamento das conferências como sistema integrado de participação, as autoras destacam a importância do perfil dos atores que fazem parte desses espaços, seus padrões de ação e o processo discursivo pelo qual defi-nem as agendas de políticas públicas.

Nas Conferências de Assistência Social, as autoras aferiram que, em cada nível fe-derativo, as conferências locais e regionais se relacionam de forma integrada e vertical e suas deliberações servem de subsídios para as etapas posteriores. Ao gerar agendas múl-tiplas, em que são definidas diretrizes para o próprio nível de governo e para os níveis ascendentes, as conferências assumem uma dinâmica que permite articular as especifici-dades do federalismo brasileiro e aferir seu impacto na formulação e implementação de políticas públicas nos três níveis de governo.

Quanto à mobilização e participação dos atores nesse sistema, ressalta-se a im-portância da participação de cidadãos sem vínculo representativo, como ocorre nas pré-conferências e na conferência nacional. Essa maior abertura à participação de todo e qualquer cidadão demonstra o potencial inclusivo das conferências.

Ao comparar os padrões de interação discursiva nas diversas etapas do sistema de conferências, as autoras observam que nas pré-conferências, na conferência municipal e estadual houve pouco debate e divergência sobre as propostas. Somente na confe-rência nacional esse padrão é alterado: a maior divergência em torno do conteúdo e dos procedimentos representativos resultou no aumento dos debates em grupos de trabalho e na plenária final.

A partir da constatação de que os fluxos de problemas e soluções que vão se con-formando, desde as etapas subnacionais até a etapa nacional das conferências, não são caracterizados por uma dinâmica discursiva em que o debate pode ocasionar mudanças nas posições dos atores e o aperfeiçoamento das proposições que irão constituir as dire-trizes das agendas públicas, podemos concluir pela necessidade de maior reflexão sobre o desenho institucional das diferentes etapas do sistema de conferências.

A hipótese explicativa para essa constatação é que o dinamismo do padrão de interação discursiva da conferência nacional pode decorrer do encontro de diferentes expectativas dos atores das 27 unidades da Federação, ausente nas etapas subnacionais. Como o padrão de interação discursiva pode indicar o grau de legitimidade e de apoio de uma determinada agenda e seu potencial de implementação, a ausência ou o déficit de interação discursiva em qualquer etapa de processos ou instâncias de participação merece grande atenção, pois podem ser um indicador de que as demandas dos atores sociais dos estados e municípios não integraram efetivamente as propostas apresen-tadas em nível nacional, comprometendo, assim, os resultados obtidos por meio do sistema de conferências.

Os Conselhos Gestores

Para que o a participação social seja ampliada, as instâncias de participação, em todos os níveis da federação, devem operar de forma a garantir que os atores sociais sejam cogestores da coisa pública. Assim, o bom funcionamento de espaços insti-tucionais de participação dos estados e municípios é essencial para a construção e consolidação da democracia participativa no país. Por essa razão, além das conferên-cias, outros canais de participação institucional devem ter uma dinâmica sistêmica de funcionamento. Nos estados e municípios, o desenho da maioria das políticas públicas inclui a constituição de conselhos como espaços institucionais de gestão participativa de recursos públicos.

Devido ao importante papel dos conselhos gestores, a Secretaria-Geral, em con-junto com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), conduz diversas pes-quisas que visam compreender os fatores determinantes para o desenvolvimento do potencial dos conselhos como espaços de participação e deliberação.

Assim, o quarto artigo apresenta reflexão sobre a necessidade de articulação entre os conselhos de saúde dos municípios da região metropolitana de Natal para a cons-

trução de um modelo de gestão compartilhada que ultrapasse os limites municipais e enfrente os problemas da região metropolitana em termos regionais e não apenas locais.

Ao fazer um estudo de caso comparando o desenho institucional e a atuação dos dez conselhos gestores de saúde dos municípios que compõe a região metropolitana de Natal, a autora demonstra que o mero fato de passar a integrar a região metropolitana não é suficiente para alterar a atuação dos conselhos gestores do âmbito local para o âmbito re-gional ou metropolitano. Portanto, a ausência de uma identidade metropolitana limitaria a possibilidade de implantação de um modelo de gestão compartilhada para solucionar os problemas de caráter metropolitano que afetam os municípios individualmente.

Duas ordens de problemas são apontadas como responsáveis por esse fato. A pri-meira está relacionada à estrutura dos conselhos municipais e a segunda à dificuldade de articulação entre eles.

A partir da comparação do desenho e da dinâmica de funcionamento de dez con-selhos de saúde, a autora constata que embora eles estejam formalmente instituídos e sua estrutura tenha sido estabelecida em conformidade com a legislação, seu poten-cial de funcionamento, como instância deliberativa e de controle, é reduzido. Como aponta a autora, a inoperância dos conselhos como espaços de participação resultaria da precariedade de sua estrutura física e administrativa, da ausência de uma cultura de participação na sociedade, do centralismo do poder executivo municipal, da crença na superioridade do conhecimento técnico dos representantes do poder público e da desi-gualdade no acesso à informação entre os membros do conselho.

Já a dificuldade de articulação entre os conselhos estaria relacionada aos embates polí-ticos, à falta de recursos próprios para solucionar problemas metropolitanos e à percepção de que o governo do estado é o responsável pelos problemas regionais e não os municípios.

Ao demonstrar que a atuação dos conselhos gestores municipais de saúde não deve se restringir ao âmbito local, mas considerar a abrangência territorial do problema a ser enfrentado, a autora ressalta a importância da construção de um sistema integrado de democracia participativa.

Na construção desse sistema, o desenho institucional dos conselhos deve ser dinâ-mico e responder aos padrões da ação dos atores que o integram de modo a garantir que esse locus de participação funcione efetivamente como instância deliberativa e de con-trole. Ademais, ele deve ser capaz de permitir a articulação entre os conselhos nos três níveis de governo e entre o mesmo nível para viabilizar o enfrentamento de problemas que ultrapassam seus limites territoriais, mas que os afetam mutuamente.

Assim como no caso dos mecanismos de participação, o entendimento das concepções de representação e dos padrões de deliberação dos diversos atores nos espaços institucionais de participação é essencial para o desenvolvimento da democracia participativa.

Uma Sociedade Civil Plural

A interlocução e mediação da relação Estado e sociedade requer amplo conhecimento sobre o perfil dos atores sociais, o conteúdo de suas demandas e suas formas de atuação. O quinto artigo da revista vai ao encontro dessa necessidade da Secretaria-Geral, ao tentar compreender as diversas concepções de representação dos atores da sociedade civil a partir de suas atuações no Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp).

Para identificar quem são os atores que representam a sociedade civil no con-selho, é utilizado o histórico de constituição e atuação temática das entidades que o compõem. O perfil desses representantes é analisado a partir do padrão de renda, esco-laridade, cor, tempo de experiência do representante como conselheiro e sua atuação anterior em outros conselhos.

Na aferição da visão dos conselheiros sobre o exercício do seu papel de represen-tantes, são oferecidos dois tipos excludentes de respostas aos atores: quem ou o que eles representam quando atuam no conselho. Alguns declaram representar a própria entida-de ou seu setor e segmento e outros afirmam representar uma causa, tema específico ou o bem comum. Os atores que deram outras respostas apontaram a impossibilidade de optar por apenas uma das categorias sugeridas pelos autores, ressaltando a necessidade de compatibilizar o ideal de bem comum com demandas específicas.

Quanto aos mecanismos que autorizam e legitimam o ofício de representante desses atores nos conselhos, foram apontados o pertencimento e vivência em re-lação ao setor e/ou à entidade, o fato de terem sido eleitos, a capacidade de argu-mentar e influenciar decisões, a qualificação profissional na área, e a identificação com o tema, entre outros. Os resultados obtidos na pesquisa levaram os autores a concluir que os conselhos são compostos por uma pluralidade de atores, com tra-jetórias e repertórios de ação distintos, que possuem diferentes demandas e graus de articulação com o Estado. Assim, a definição da sociedade civil como um ator monolítico é incompatível com a diversidade de concepções de representação dos diversos atores que a compõem. Por essa razão defende-se a ideia de um conceito plural de sociedade civil.

A exposição da complexidade inerente ao desafio de construir um conceito de sociedade civil a partir de concepções distintas e complementares de representação aponta o imenso conjunto de fatores que devem ser considerados na relação entre Estado e sociedade. As mudanças de composição dos conselhos podem indicar avan-ços ou retrocessos nos padrões de atuação dos atores sociais e o nível de abertura do sistema de democracia participativa à efetiva implementação de um modelo de cogestão da coisa pública.

Um Espaço de Reflexão e Diálogo

O debate qualificado presente nos artigos da edição comemorativa de lançamento da revista Democracia e Participação expõe a extensão do desafio e da complexidade de se coordenar as medidas de avanço na participação social. A reflexão crítica e a formulação de soluções para problemas que possam afetar direta ou indiretamente a participação da sociedade na formulação de políticas de governo tornam-se ainda mais relevantes nesse momento, com a criação da Política e do Sistema Nacional de Participação Social.

Em termos gerais, os temas abordados pelos artigos indicam que para aprimorar a participação como método de governo é fundamental reinterpretar a relação Estado- sociedade como um processo dinâmico e de mútua cooperação, em que todos os atores procuram obter os melhores resultados para si e para a coletividade. É necessário, tam-bém, tornar os sistemas político e jurídico permeáveis às noções de normatividade dos diferentes grupos que compõe o povo brasileiro, além de considerar as especificidades da estrutura federativa na criação e no aperfeiçoamento dos mecanismos e espaços de participação que integram o Sistema Nacional de Participação Social.

Ser um espaço de reflexão e diálogo qualificado sobre essas e outras questões es-senciais para a democracia participativa é o principal objetivo da revista Democracia e Participação da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Equipe da Revista Democracia e ParticipaçãoSecretaria-Geral da Presidência da República

SUMÁRIO

“QUEM DEU ESSE NÓ, NÃO PODE DAR, ESSE NÓ TÁ DADO, EU DESATO JÁ!”: MOVIMENTOS POPULARES ORGANIZADOS EM TORNO DE DIREITOS TERRITORIAIS EM MEIO A CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NO CEARÁ 15Martha Priscylla Monteiro Joca MartinsLuciana Nogueira NóbregaJacqueline Alves Soares

GESTÃO PÚBLICA E DEMOCRACIA: OS CONSELHOS GESTORES DE SAÚDE DA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN 45Lindijane de Souza Bento Almeida

FORMAÇÃO DE AGENDA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: O PAPEL DAS CONFERÊNCIAS COMO UM SISTEMA INTEGRADO DE PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO 73Cláudia Feres FariaEleonora Schettini M. Cunha

MOVIMENTOS SOCIAIS, ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL E SEUS EFEITOS: ESTUDO DE CASOS COMPARADOS NO ESPÍRITO SANTO 97Euzeneia Carlos

A PLURALIDADE DE SOCIEDADES CIVIS NA SEGURANÇA PÚBLICA: DELIBERAÇÃO E CONCEPÇÕES DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NO CONASP 133Gabriela Ribeiro CardosoFábio de Sá e SilvaJulian Borba

“QUEM DEU ESSE NÓ, NÃO PODE DAR, ESSE NÓ TÁ DADO, EU DESATO JÁ!”1: MOVIMENTOS POPULARES ORGANIZADOS EM TORNO DE DIREITOS TERRITORIAIS EM MEIO A CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NO CEARÁ

A presente pesquisa objetivou investigar, em perspectivas pluriétnicas e multiculturais, sentidos de direitos territoriais que emergem e são visibilizados em meio a conflitos socioambientais, construídos por distintos movimentos populares, no meio rural e urbano do Ceará, buscando compreender o que esses movimentos demandam como direitos territoriais, utilizando-se de pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Resultados apontam que esses movimentos requerem interpretações contra-hegemônicas ao direito estatal em perspectiva crítica e intercultural e resistem em torno de direitos anteriormente constituídos diante do direito estatal ou em comunidades e povos, significando os direitos territoriais como inerentes a um meio ambiente saudável, equilibrado e equitativamente justo, os quais podem constituir-se como um campo jurídico mais fértil à construção de equidade territorial e ambiental.

Palavras-chave: Direitos territoriais. Conflitos socioambientais. Movimentos Populares. Rural. Urbano.

Keywords: Territorial Rights. Socioenvironmental conflicts. Popular Movements. Rural. Urban.

This study investigated, in multiethnic and multicultural perspectives, meanings of territorial rights that emerge and are visualized in the midst of socioenvironmental conflicts, built by distinct movements in rural and urban areas of Ceará State, seeking to understand what these movements require as territorial rights, using bibliographical, documental and field researches. Results indicate that these movements require counter hegemonic interpretations to the state law in a critical and intercultural perspective and resist around rights previously established before the state law or in communities and peoples, giving meanings to territorial rights as inherent to a healthy environment, balanced and equally fair, which may form as a legal field more fertile to the construction of territorial and environmental equities.

Resumo: Abstract:

Martha Priscylla Monteiro Joca Martins2

Luciana Nogueira Nóbrega3

Jacqueline Alves Soares4

1. “Quem deu esse nó não pode dá/ Quem deu esse nó não pode dá/ Esse nó tá dado eu desato já/ Esse nó tá dado eu desato já/ Ô desenrola essa corrente deixa os índios trabalhar/ Ô desenrola essa corrente deixa os índios trabalhar”. A música, entoada em diversas ocasiões por Povos Indígenas no Ceará, é cantada hoje por causa de uma decisão judicial considerada pelo Movimento dos Povos Indígenas no Ceará como exemplo de decisão contrária ao direito ao território Indígena. Veja o Povo Tapeba entoando a canção na expressão do Toré, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=GbwIiAdqh7M&feature=related>. Acesso em: 30 mai. 2011.

2. Professora de Direito da Faculdade Christus (Fortaleza – Ceará). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.

3. Indigenista especializada da Funai. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.

4. Integrante do Movimento dos Conselhos Populares (MCP). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) e graduada em Direito, ambos pela Universidade Federal do Ceará.

Martha Priscylla Monteiro Joca Martins | Luciana Nogueira Nóbrega | Jacqueline Alves Soares

Revista Democracia e Participação16

1 INTRODUÇÃO

“Vivemos em Curral Velho, mas não queremos viver encurralados”; “de quem é essa terra? nossa!”; “quem deu esse nó não pode dar, esse nó tá dado eu desato já!”. As falas, vindas de movimentos populares, não homogêneos em suas crenças, valores e práticas, traduzem lutas contra-hegemônicas tecidas em torno de seus direitos territoriais.

Em diversos ecossistemas, grupos humanos estabelecem relações mais harmônicas ou mais predatórias com o meio ambiente (compreendido como ambiente natural e cul-tural), (re)construindo-o. No Ceará, assim como em outros locais do Brasil e da América Latina, essas populações e grupos sociais têm cada vez mais tensionado pelo acesso e uti-lização das fontes naturais, disputando por sentidos de desenvolvimento, os quais expres-sam distintas relações com o meio ambiente, gerando conflitos socioambientais.

Tais conflitos se manifestam quando os poderes públicos ou iniciativas privadas agem no sentido de expropriar, expulsar e privar essas diversas populações da ambiência em que vivem, empobrecendo-as e instaurando modelos de desenvolvimento que cau-sam graves impactos e desequilíbrios ao meio ambiente.

Entretanto, as populações afetadas resistem e reivindicam, organizadas em movi-mentos populares, fazendo emergir demandas que, por vezes, contrapõem-se ao pen-samento jurídico hegemônico, provocando novas significações no campo do Direito.

Compreender as violações de direitos humanos presentes nos conflitos socioam-bientais e refletir acerca dessas demandas emergentes é importante a fim de se constituir justiça e equidade ambiental, integrando as lutas sociais e ambientais e concretizando diversos direitos humanos.

Ocorre que, dentre estes, os direitos territoriais são centrais, pois, além de se consti-tuírem como meios de vivência de outros direitos, como o direito à liberdade, à alimen-tação e ao meio ambiente saudável e equilibrado, em meio a conflitos socioambientais, emergem e se insurgem contra modos de ocupação territorial que identificam a terra como propriedade exclusivista e cartorária, vivenciada em perspectiva mercadorizada, como meio de produção do sistema do capital, abrigando modos de existência humana que estabelecem relações predatórias e destrutivas com o meio ambiente.

A presente pesquisa objetivou investigar, em perspectivas pluriétnicas e multicul-turais, sentidos de direito à terra e ao território, que emergem e são visibilizados em meio a conflitos socioambientais, construídos por distintos movimentos populares, no meio rural e urbano do Ceará, buscando compreender o que esses movimentos deman-dam como direitos territoriais.

Utilizando-se de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, buscou-se identificar as resistências e reivindicações desses movimentos em torno de seus di-reitos territoriais, aplicando metodologia qualitativa, como recurso à observação

“Quem deu esse nó, não pode dar, esse nó tá dado, eu desato já!”: Movimentos populares organizados em torno de direitos territoriais em meio a conflitos socioambientais no Ceará

volume 1 | número 1 | abril-jun 2014 17

participante, grupos focais e entrevistas semiestruturadas junto a lideranças do Povo Indígena Anacé, moradores(as) do Serviluz (em Fortaleza) e moradores(as) da Comunidade de Curral Velho (de pescadores), todos situados no Ceará. Além dis-so, visibilizando a metanarrativa sobre a luta desses povos pela terra, analisaram-se histórias, canções e frases entoadas por esses movimentos.

2 COMUNIDADES DE CURRAL VELHO, SERVILUZ E ANACÉ: POVOS E POPULAÇÕES EM BUSCA DO DIREITO AO TERRITÓRIO

Este capítulo foi tecido buscando dialogar com os resultados obtidos na pesquisa de campo, com normas do ordenamento jurídico estatal ligadas aos direitos territoriais e com análises realizadas por autores diversos acerca do tema em discussão, com o fito de expressar distintas compreensões e experiências acerca dos sentidos construídos em torno dos direitos territoriais.

Iniciando-se pela comunidade de pescadores de Curral Velho, nos dois itens se-guintes passa-se a discorrer acerca da comunidade urbana do Serviluz, e, após, sobre o povo indígena Anacé.

2.1 Histórias, falas e canções de Curral Velho que traduzem as lutas em defesa do território e do ecossistema Manguezal

Curral Velho, localizada na Praia de Arpoeiras, no Município de Acaraú, no Ceará, é uma das comunidades litorâneas que subsiste, principalmente, da catação de mariscos, da pesca artesanal e da agricultura familiar, atividades que vêm sendo impactadas com o cultivo de camarão em cativeiro.5

A criação de camarão em cativeiro começou a se estabelecer em Curral Velho no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, quando se observou um crescimento mais intenso dessa atividade no Brasil. A instalação das fazendas e viveiros de camarão em cativeiro seguiu os moldes do que havia ocorrido em outros locais no Brasil: sem um ordenamento adequado, com base legal insuficiente para regular a atividade, contando com incentivos governamentais e ocasionando impactos ambientais e sociais graves, em especial por considerar as áreas de instalação vazios inabitados.

Nas narrativas de Curral Velho, os impactos da carcinicultura ocupam páginas e páginas da memória coletiva. Suas histórias e canções revelam como a chegada da

5. Além da carcinicultura, há outros empreendimentos igualmente degradadores do ecossistema manguezal e desestruturadores do modo de produção e de vida da comunidade de Curral Velho. Alguns(mas) moradores(as) apontam, entre outras ameaças possíveis, a instalação da energia eólica de modo insustentável ambientalmente e a pesca predatória. Para conhecer mais a história de Curral Velho na fala de jovens da comunidade, ver o vídeo disponível em: <http://www.portaldomar.org.br/blog/portaldomar-blog/categoria/tv-povos-do-mar/encante-do-mangue>. Acesso em: 10 jun. 2011. Ver também: <http://curralvelho.blogspot.com/>. Acesso em: 11 maio 2011; e o vídeo “O Outro Lado de Curral Velho”, disponível em: <http://vimeo.com/30245055>. Acesso em: 05 maio 2012.

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carcinicultura interferiu, de modo destrutivo, na vida da comunidade, e de como esta provocou o desequilíbrio no ecossistema manguezal.

Ante tal compreensão partilhada, a comunidade de Curral Velho mobilizou-se desde a chegada da carcinicultura, organizando ações que expressam o sentimento de defesa de seu território e do ambiente que lhes provê a vida. Os(as) moradores(as) de Curral Velho passaram a defender os direitos que consideram como sendo seus: direito à terra, ao terri-tório e de acesso aos recursos naturais do mangue, motivados pelo sentimento de defesa do ecossistema manguezal e do seu modo de vida e produção inter-relacional com o mangue.

A fim de compreendermos melhor essa relação e os significados que os moradores de Curral Velho atribuem ao direito à terra e ao meio ambiente, é preciso conhecer um pouco mais de sua história.6

Na história oral partilhada pelos membros da comunidade, não há referências ex-pressas sobre quando surgiu a comunidade de Curral Velho. Muitas pessoas com as quais conversamos tinham um discurso comum, ao dizer que seus avôs/avós contavam que os avôs/avós deles(as) já tinham nascido ali. O que se sabe é apenas que o grupo vive no local há muito tempo, sendo netos(as), bisnetos(as) dos(as) primeiros(as) moradores(as).

Embora não se tenha gravado na memória a origem do grupo, um fato foi aponta-do durante as entrevistas realizadas como marco inaugural da comunidade:

A nossa comunidade, ela surgiu com o nome que ela recebeu, Curral Velho, segundo a nossa pesquisa dentro da comunidade com os mais antigos [...]. Nós tínhamos um senhor chamado Chico Salomão, que já morreu com 92 anos, e esse senhor falou que Curral Velho teve esse nome por causa dos currais de pesca, um tipo de material que se usa na área da pesca. [...] esses currais tem uma época que eles ficam velhos, ele cai, o mar derruba, né, aí os pescadores tiram ele de dentro d’água, põe no seco e vão reformar novamente o material velho e vão utilizar outros novos. [...] então quando nós viemos ao mundo, já viemos sabendo que já existia esse nome, que a nossa comunidade já era Curral Velho.

Interessante é perceber que, para a comunidade, o batismo com o nome de Curral Velho constitui-se no fato identificado como inaugural para o grupo. Isso é revelador, pois o nome tem estreita relação com as atividades exercidas pela maioria dos moradores de Curral Velho: a pesca artesanal e a mariscagem. Nesse sentido, o marco criador da comunidade (momento em que ela recebeu um nome) é também um reforço a uma identidade do grupo, ligada à atividade tradicional que desenvolvem.

6. Os poemas, cordéis, músicas e paródias produzidos por alguns membros da comunidade são importantes registros da história oral de Curral Velho.

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Paralelamente à atividade da pesca, a comunidade vive da catação de mariscos (caranguejos, siris, ostras, búzios) e da agricultura de subsistência. A batata, o milho e o feijão são os principais produtos cultivados pelo grupo. As atividades não são excluden-tes, sendo possível que um(a) pescador(a) também seja agricultor(a).

No que tange especificamente à relação entre o espaço em que vivem e o direito de propriedade estatal, as narrativas indicam que não havia uma preocupação prévia dos(as) moradores(as) em ser proprietários das terras que ocupavam e utilizavam para suas atividades tradicionais. Não havia o intuito de titularizar as terras. De modo a compreender melhor essa relação com o território, a questão da propriedade e da titularidade da terra foi retomada em um grupo focal realizado, no qual emergiu o diálogo seguinte:

[Pesquisadora] - Vamos supor que amanhã chegasse uma pessoa aqui com um papel na mão, [...] dizendo que isso aqui tudinho é dela porque ela descobriu que herdou de um antepassado [...]. Que é que vocês diriam pra essa pessoa?[...].- Pronto. A gente teve um dos ataques que a gente fez lá na [fazenda de carcinicultura], e, e se num me engano era o dono da empresa que tava com um documento de posse... porque disse que tava se apossando: Táqui o documento, táqui, táqui. Deixa nóis vê aqui esse documento, puxamo da mão dele e rasgamo. [risos de todos] [Pesquisadora] - Mas mesmo que fosse verdadeiro?- Mermo que fosse verdadeiro...[...].- O dono da terra mora aqui há muito tempo...- ... num sabe nem se ela existia, vem tumar uma terrinha que é nossa há muito tempo...- [...] eu acho que mais importante do que o papel é você acreditar e saber que tem certeza que você realmente é que tem direito porque o direito dá direito, né? Se, se o direito deu direito pra ele, que num era nem da comunidade, porque que num dá direito a comunidade que era dali. Então, é direito pelo direito tá entendendo? E, o papel nessa hora num vale mais do que o direito, é, é como nós moradores, porque realmente a gente somos espelhos e somos, somos exemplo, e somos mais do que um papel, tá entendendo?

Para a comunidade de Curral Velho, não é o papel que confirma o título de pro-priedade. São outros elementos que não estão escritos dos quais surgem o direito à terra, tais como as relações de pertença que a comunidade detém com o território e uma absoluta consciência de que o Direito lhes dá direitos.

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Mesmo com a instalação das fazendas de criação de camarão em cativeiro, o sen-timento dos(as) moradores(as) de Curral Velho com relação ao território não mudou. Foi, antes, reforçado. E, embora haja um sentimento de que a área de manguezal per-tence à comunidade, esse sentimento não tem correlação com a ideia de propriedade como se encontra definida na dogmática jurídica. Para esta, a propriedade é um direito exclusivo do titular de usar, gozar e dispor da coisa. Para a comunidade de Curral Velho, no entanto, não há relação de exclusividade com o território, bem como o uso do terri-tório, para eles(as), pressupõe uma obrigação de cuidado com a natureza.

Conhecer essa comunidade desperta indagações sobre quais instrumentos norma-tivos estatais podem se relacionar à conservação da vida socioambiental e da diversidade biológica presentes em Curral Velho e à defesa e proteção do território em que vive essa comunidade há gerações.

2.2 As disputas pela “Esquina da Cidade” e a luta pelo território no Serviluz (Fortaleza)

As áreas litorâneas de Fortaleza (Ceará), zona de intensa valorização econômica, foram historicamente ocupadas por comunidades de pescadores, e em um segundo momento, com o incremento da migração,7 deu-se o processo de inchamento e favelização desses antigos vilarejos. Tal formação se justifica na impossibilidade de se morar na cidade cons-truída para as classes médias e ricas de Fortaleza, o que conduziu à ocupação dessas áreas.

Souza (2009b) observa que, sobretudo na década de 1950, as favelas mais populo-sas estavam localizadas em área litorânea, em terrenos de marinha, além das localizadas ao longo dos trilhos da Rede Ferroviária na parte leste da cidade. Realidade que vem se modificando com a remoção de favelas a partir dos programas de desfavelamentos que vêm sendo praticados pela Prefeitura Municipal desde 1972, tendo em vista a im-plantação de projetos de urbanização e de expansão do sistema viário, dando espaço ao mercado imobiliário formal. Apesar de todo o processo de expulsão dessas comunidades (Mucuripe, Barra do Ceará e Pirambu) pelo processo de valorização dessas praias para o veraneio (década de 1940) e habitação das classes médias e alta e para o turismo (década de 1980), ainda são significativas as resistências na região costeira.

A área conhecida como Serviluz é uma delas, lugar que não é reconhecido como bairro oficial, inserido oficialmente dentro do bairro Cais do Porto, situada na porção leste do litoral de Fortaleza. Para se entender o Serviluz, é necessário fazer uma breve digressão e descer às suas raízes mucuripenses.

O Mucuripe tinha como primeiros habitantes os índios e, posteriormente, os pes-cadores. Essa paisagem “era marcada inicialmente por jangadas, coqueiros e casas de

7. Em Fortaleza, a origem da ampla maioria dos moradores da periferia se deu, mormente, no período de 1930-1950, onde ocorreu grande afluxo de migrantes do interior do Estado devido às secas periódicas e à estrutura agrária excludente.

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pescadores, os quais viviam uma vida tranquila longe dos adensamentos urbanos e livres da intensa competição pela terra” (RAMOS, 2003).

Tendo recebido grande contingente de migrantes em épocas diversas, é, sobretudo, a partir da década de 1930 que esses trabalhadores que moravam na antiga Rua da Fren-te, hoje avenida Beira-mar (GIRÃO, 1998) vão sendo removidos para outras áreas da cidade, dentre as quais para o lugar conhecido como Serviluz. É a partir de 1940, com o início das obras para a construção do Porto do Mucuripe, só concluídas em 1952, que o Serviluz vai ter um forte crescimento populacional devido à oferta de emprego no porto e, posteriormente, nas indústrias que se instalaram na região. O Serviluz passa, então, a ser refúgio de pescadores artesanais, de prostitutas expulsas da Beira-mar e, em seguida, passa a abrigar também os trabalhadores portuários e das indústrias, especialmente da pesca de lagosta.

O lugar é resultado da contradição inerente à dinâmica urbana, fruto da segregação e da resistência de seus habitantes que ainda possuem um espaço reservado à Beira-mar: um lugar privilegiado de se viver pela beleza paisagística, pelas várias possibilidades de sustentação dada pelo mar e também um lugar de precariedade urbana, riscos de desas-tres, de incêndios e soterramento pelas areias. Todos esses elementos, fogo, vento, terra e mar estão presentes no lugar (NOGUEIRA, 2006).

Estudos importantes relatam a presença de índios urbanos (Tremembés de Al-mofala) no Serviluz e em Mucuripe (NASCIMENTO, 2009) e sobre a migração dos quilombolas de Aquiraz (Comunidades da Lagoa do Ramo e Goiabeiras), moradores da Rua da Senzala (RATTS, 2006), que nos dão uma mostra da diversidade cultural de seus habitantes que se reflete em suas relações sociais, festas, trabalho, religiosidade, há-bitos alimentares, dentre outros costumes que remetem a modos de vida não urbanos.

O trabalho da pesca é realizado com variadas técnicas. Os trabalhadores muitas vezes se dividem entre a pesca industrial e a artesanal. Com a, praticamente, extinção da lagosta pela pesca industrial, dezenas de frigoríficos que empregavam os moradores foram fechados, o que agravou as condições de vida dos moradores do bairro. A pesca artesanal ainda é uma atividade fundamental para a sobrevivência de inúmeras famílias, notadamente as mais pobres, que vivem dela diretamente ou indiretamente, como fonte alimentar fácil, barata e rica em nutrientes. De acordo com informações concedidas por entrevista realizada com moradora do bairro, existem, ainda, por volta de 800 pescado-res artesanais no Serviluz.

Já os trabalhadores industriais e portuários estão em número cada vez mais redu-zido, primeiro pelo processo de mecanização que afetou a empregabilidade de mão de

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obra nos Moinhos,8 que já era diminuta, e, mais recentemente, com o início de transfe-rência de algumas atividades do Porto do Mucuripe para o Porto do Pecém. A situação dos trabalhadores portuários encontra-se cada vez mais precarizada com mudanças nas relações de trabalho da categoria. Outros trabalhadores obtêm seus rendimentos por meio do trabalho nas barracas de praia, bares e restaurantes (na Beira-mar e na Praia do Futuro) ou sobrevive do comércio ambulante de artesanatos, alimentos e outros produ-tos. A zona de meretrício estabelecida no entorno do Farol Velho entrou em decadência. Praticamente sem demanda, os “puteiros” viraram cortiços. Neles vivem dezenas de famílias em situação de coabitação, em quartos diminutos alugados. Já as novas gera-ções de jovens nascidas no Serviluz dedicam-se a projetos sociais de artes, informática e esportes, sobretudo o surf 9 e o futebol.

Trata-se de uma área objeto de grande interesse econômico por ser vizinha à zona portuária e estar literalmente na “esquina” de Fortaleza, entre os bairros Meireles e Praia do Futuro, valorizados pelo setor turístico-imobiliário para empreendimentos residen-ciais e comerciais.

Nessa fração da cidade, vários projetos têm sido anunciados seguidamente em nome do desenvolvimento econômico, da geração de emprego e da “requalificação ur-bana”, evidenciando o acirramento da disputa entre duas lógicas distintas: a do espaço vivido e a do espaço enquanto mercadoria, em que se disputa a quem os modelos de desenvolvimento urbano irão/deveriam beneficiar.

No ano de 2009, o governo do estado anunciou o projeto chamado Estaleiro POR-MAR, que consistia numa parceira de um pool de empresas com apoio do estado do Cea-rá, que visava instalar na Praia do Titanzinho (Serviluz) um estaleiro de grande porte para atender à demanda de navios da Transpetro (empresa subsidiária da Petrobras).

Houve imediata reação da população por meio de organizações comunitárias que se uniram para empreender a resistência contra o projeto que significaria a des-truição da Praia do Titanzinho, com aterramento de mais de 1.000 km2 de mar. A luta durou até o final de 2010, quando expirou o prazo imposto pela empresa para que o município concedesse a licença de instalação, o que não podia acontecer sem alteração do Plano Diretor de Fortaleza, uma vez que este determina a área da co-munidade como Zona Especial de Interesse Social e a faixa de praia como Zona de Proteção Integral, ou seja, não edificável. Além disso, o empreendimento naquele

8. Moinhos são indústrias de produção de farinha de trigo. O Grande Moinho Cearense de propriedade do grupo empresarial M. Dias Branco e o Moinho J. Macedo são pertencentes a dois grandes grupos empresariais do Brasil e da América Latina, que são também proprietários de inúmeras glebas de terra na região da Praia do Futuro. Sob esses grupos pesa a acusação de que estes mantêm uma milícia chefiada por um coronel da reserva da polícia militar que “guarda” os terrenos contra possíveis “invasores”.

9. Praia do Titanzinho no Serviluz é conhecida mundialmente como “pico” de surf.

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local ia de encontro ao Projeto Orla,10 que foi elaborado com ampla participação das organizações locais.

A empresa e governo estadual alegavam que o estaleiro deveria ser instalado no Titanzinho, pois os custos seriam menores do que em qualquer outra área do estado. Para isso, porém, teria que atentar contra todo o planejamento urbano e ambiental desenvolvido em Fortaleza para aquela área litorânea da cidade. Além da comunidade, que expressou sua rejeição em audiências públicas e manifestações, outros setores sociais da cidade se opuseram ao projeto, fazendo com que os seus executores o transferissem para outro estado (Pernambuco), que ofereceu melhores vantagens locacionais e menor resistência da população para sua instalação.

Dando seguimento à estratégia de transformar Fortaleza numa “cidade empre-sarial” por meio da atração de megaeventos, como a Copa do Mundo de 2014, estão previstas inúmeras intervenções urbanas que afetarão os usos tradicionais de algumas regiões da cidade. Dentre essas intervenções, a que diz respeito diretamente ao Serviluz refere-se aos espaços de lazer e recepção de turistas que se pretende construir na Praia Mansa,11 localizada entre o Serviluz e o Porto do Mucuripe.

Segundo matéria de jornal local,12 o governo do estado pretende fazer um “com-plexo de entretenimento” com vista para o mar e uma estação de passageiros para rece-ber até três grandes navios de cruzeiro durante a Copa do Mundo de 2014. Também seria instalada uma estação do novo Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) que daria acesso direto da região da orla para o estádio de futebol Governador Plácido Aderaldo Castelo, conhecido como Castelão. Tudo isso causando flexibilizações de legislações existentes, invalidando o planejamento urbano local, gerando insegurança na posse de tradicionais moradores do entorno, fazendo abrir uma nova frente para atuação do mercado imobi-liário com o apoio do estado, que garante infraestrutura necessária aos investimentos.

A Prefeitura de Fortaleza, por sua vez, apresentou o projeto chamado Aldeia da Praia, cujo investimento não atende às prioridades da comunidade, ao contrário, visa atender aos interesses econômicos para área, beneficiando, sobretudo, os mercados imo-biliário e turístico. Apresentado oficialmente pela Prefeitura em audiências públicas desde 2010, o projeto consiste basicamente em um apanhado de velhos projetos de

10. O Projeto de Gestão Integrada da Orla Marítima (Projeto Orla) é uma ação conjunta entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no âmbito da sua Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Suas ações buscam o ordenamento dos espaços litorâneos sob domínio da União, aproximando as políticas ambiental e patrimonial, por meio da articulação entre as três esferas de governo e a sociedade.

11. A Praia Mansa é uma ilha que se criou artificialmente a partir da construção de espigões de pedra, o aterramento de parte da orla para a ampliação do complexo portuário do Mucuripe. A partir da década de 1970, esse área foi sendo habitada por famílias pescadores até serem expulsos pela Companhia Docas do Ceará e pela Capitania dos Portos alguns anos depois.

12. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/economia/2013/03/01/noticiasjornaleconomia,3014466/r-12-mi-para-elaboracao-do-projeto-na-praia-mansa.shtml>. Acesso em: 02 set. 2013.

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abertura de avenidas largas para facilitar o fluxo expresso entre Beira-mar e Praia do Futuro. Pretende, assim, criar uma via paisagística à beira da praia, margeada hoje por moradias, comércios, igrejas e equipamentos públicos que serão afetados ou removidos. Somado a isso, haverá uma intervenção “paisagística”, chamada “Jardim da Praia”, que removerá mais de mil famílias do entorno do Farol do Mucuripe (Farol Velho), além de área no mar que seria aterrada para serem construídas praças e quadras, sendo plantadas gramas e palmeiras, desconstituindo o ambiente natural e socialmente construído para substituí-lo por um ambiente artificial, homogêneo e “globalizado”.

Decorrentes dos anúncios de projetos de investimentos, os conflitos com a espe-culação imobiliária têm sido constantes, como o que está acontecendo em torno da disputa pela posse do terreno conhecido como Campo do Paulista, protagonizada pelo suposto proprietário do imóvel e a Liga Esportiva do Serviluz, mantenedora do terreno de mais de um hectare de área, organizando escolinhas e torneios de futebol.13

Diante de tantas tentativas de expropriação e segregação, próprias do modelo da cidade excludente, essa população também vem resistindo, reconstituindo laços de iden-tidade e ocupando novos espaços. O Movimento dos Conselhos Populares (MCP),14 mo-vimento social que se organiza na área, dedica-se a formas de resistência tendo como base a apropriação do espaço urbano, revelando não somente as tradicionais bandeiras do mo-vimento social urbano, como a de luta por moradia e por equipamentos e infraestrutura pública, mas também tentando também constituir formas de sociabilidade, produção e cultura insurgentes por meio de organização por territórios que lutam por autonomia.

O expoente dessa experiência foi a ocupação de um terreno anexo ao Serviluz pertencente à tradicional família proprietária de terras que atua no ramo da constru-ção civil e do comércio. A ocupação foi realizada por oitenta famílias sem-teto que tinham suas origens no Serviluz e no grande Mucuripe e que resistiram a processos de segregação para conjuntos habitacionais na periferia, sugeridos pelo poder público como solução para o déficit habitacional. Reivindicando suas raízes no local e seu direito de permanência e resistência (CASTILHO, 2011), as famílias estão a três anos lutando pela consolidação da posse da terra e construção de moradias com qualidade habitacional digna.

Além dessa experiência, o MCP tem lutado por conquistas de novos direitos que refli-tam ganhos de autonomia, como através do processo de participação popular na elaboração

13. O primeiro time organizado no bairro foi o “Paulista Esporte Clube”, que acabou batizando o campo. O mais antigo em atividade é “Londrina”, que existe desde 1974. A Liga de Futebol do Serviluz foi fundada em 1990 e conta atualmente com 16 equipes. A disputa pela posse do campo foi judicializada em ação de reintegração de posse, tendo sido expedida liminar em favor do proprietário contra a comunidade. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/fortaleza/2012/04/24/noticiasjornalfortaleza,2826665/prefeitura-promete-avaliacao-de-terreno.shtml>. Acesso em: 02 jun. 2012.

14. O Movimento dos Conselhos Populares foi fundado em 2004 e se organiza por meio de conselhos populares de bairro e assembleias da cidade em torno da construção do poder popular a partir de sua organização por territórios.

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do Plano Diretor Participativo de Fortaleza (PDP) com a aprovação da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) do Serviluz. O instituto das Zeis, criado pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001) e introduzido em Fortaleza pelo Plano Diretor Participativo (2009), visa harmonizar o desenvolvimento da cidade e a realidade dessas comunidades.15

O Serviluz foi uma das comunidades que mais mobilizou pessoas para o processo participativo de construção do Plano Diretor, tanto no âmbito do Executivo quanto do Legislativo. Depois de aprovado o PDP, foram necessários dois anos de luta, com vá-rias manifestações, para que, em junho de 2011, a prefeita assinasse decreto municipal instituindo o Conselho Gestor da Zeis-Serviluz. De acordo com o decreto, o referido conselho deveria ter sido instalado até o final de setembro de 2011. Porém, a Prefeitura inviabilizou16 a eleição do Conselho Gestor ao qual o projeto deveria ser submetido, desrespeitando o decreto (Decreto n° 12.830/2011, de 14 de junho de 2011) assinado pela própria Chefe do Poder Executivo Municipal, por não aceitar a ingerência da co-munidade no projeto Aldeia da Praia.17

Assim, moradores de diversas áreas do “bairro” decidiram dar continuidade ao processo, contra o poder público local, e continuam organizados no conselho popular discutindo o que querem e o que não querem para a “comunidade”, e forjam alternati-vas não institucionais de planejamento e gestão do seu território.

2.3 Povo indígena Anacé

Nos últimos anos, as comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, municípios da região metropolitana de Fortaleza, Ceará, vêm sendo impactadas pela construção de uma série de empreendimentos na área de infraestrutura e indústrias primárias, como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes de um projeto de-nominado Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) (Isso porque as áreas destinadas a esses empreendimentos já era ocupada por inúmeras famílias, e começaram a ser desapropriadas a partir de 1995).

15. As Zeis trazem três elementos fundamentais: 1. Definição de normas urbanísticas especiais a partir da realidade da comunidade e não impostas contra estas; 2. Segurança jurídica da posse da comunidade sobre sua área, garantindo a regularização fundiária e proibindo a expulsão/remoção; 3. Direito de os moradores participarem do planejamento e gestão das intervenções necessárias na área, por meio de um Conselho Gestor com representantes da Prefeitura e da comunidade eleitos por esta, evitando o autoritarismo estatal guiado por interesses econômicos, bem como o clientelismo dos agentes políticos que escolhem como “representantes” da comunidade pessoas ligadas ao seu projeto de poder, sendo que na maioria das vezes tais “lideranças” escolhidas não possuem legitimidade nenhuma junto à população local, impondo a vontade governamental pela manipulação ao acesso a direitos universais.

16. A representante da prefeitura se retirou da comissão eleitoral e informou aos seus membros que não daria continuidade ao processo de eleição do comitê gestor da Zeis.

17. Em maio de 2012, a Prefeitura de Fortaleza aprovou na Câmara de Vereadores projeto de lei complementar que alterou o Plano Diretor de Fortaleza, passando a permitir que os proprietários solicitem a retirada dos terrenos vazios da abrangência da Zeis de ocupação (Zeis-1). Fonte: Jornal O Povo, 25/05/2012. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/politica/2012/05/25/noticiasjornalpolitica,2845784/camara-altera-zeis.shtml>. Acesso em: 14 jul. 2012. Na visão dos movimentos sociais, vide: <http://raizesdapraia.blogspot.com.br/search?updated-max=2012-07-11T10:19:00-07:00&max-results=3>. Acesso em: 28 ago. 2012.

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A primeira onda das desapropriações, entre os anos de 1995 e 1999, teve como saldo centenas de famílias expulsas da terra, sendo algumas alojadas nos assentamentos de Novo Torém, Forquilha e Monguba, que se situam em outros municípios cearenses, como Paracuru.

Esse processo, entretanto, não se deu sem resistência. Um grupo em especial, du-rante esse período de articulação e mobilização dos(as) moradores(as) de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, para permanecer nos território de seus pais e avós, passou a se reconhecer como povo indígena Anacé,18 fazendo reviver histórias dos encantados, das danças, dos rituais, das curas, dos massacres.

Logo após a instalação dos primeiros empreendimentos, houve uma suspensão na onda de desapropriações nessa região. Impasses políticos e pressões de outros estados do Nordeste para receber as indústrias acabaram “atrasando” a conclusão do CIPP.

Entretanto, em janeiro de 2007, o Governo Federal instituiu, por meio do Decreto nº 6.025, de 22 de janeiro de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o qual, segundo o artigo 1° do Decreto, constituía-se de medidas de estímulo ao inves-timento privado, ampliação dos investimentos públicos em infraestrutura e voltadas à melhoria da qualidade do gasto público e ao controle da expansão dos gastos correntes no âmbito da Administração Pública Federal.19

Com o apoio intensivo do Governo Federal, por meio dos recursos do PAC, o projeto do Complexo Industrial e Portuário do Pecém foi retomado. Assim, de modo a liberar a área para a implantação das indústrias, o governador do estado do Ceará publicou, no Diário Oficial de 19 de setembro de 2007, o Decreto n° 28.883, o qual declarou de utilidade pública para fins de desapropriação uma poligonal equivalente a 335 km2, entre os municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, área superior ao projeto inicial do Complexo Industrial e Portuário.

18. Interessante destacar que, nesse mesmo período, moradores(as) de outras comunidades que não eram diretamente impactadas com os projetos do Complexo Industrial e Portuário do Pecém passaram a reivindicar também como indígenas da etnia Anacé. Essas comunidades, em articulação com a população Anacé, impactada pelo CIPP, passaram a lutar pelo reconhecimento de um território contínuo que integra as aldeias de Japuara, Santa Rosa, Matões, Bolso e outras.

19. Conforme consta no endereço eletrônico oficial do Programa de Aceleração do Crescimento: “está em curso no Brasil um modelo de desenvolvimento econômico e social, que combina crescimento da economia com distribuição de renda e proporciona a diminuição da pobreza e a inclusão de milhões de brasileiros e brasileiras no mercado formal de trabalho. A economia nacional reúne indicadores macroeconômicos e sociais positivos que apontam – como poucas vezes em sua história – para a possibilidade de aceleração do crescimento econômico, mantendo a inflação em níveis baixos. A política econômica do Governo Federal conseguiu estabilizar a economia, criar um ambiente favorável para investimentos, manter o princípio da responsabilidade fiscal, reduzir a dependência de financiamento externo, ampliar substancialmente a participação do Brasil no comércio internacional e obter superávits recordes na balança comercial. Agora é possível caminhar em direção a um crescimento mais acelerado e de forma sustentável, uma vez que a economia brasileira tem grande potencial de expansão. E tal desenvolvimento econômico deve beneficiar a todos os brasileiros e brasileiras e respeitar o meio ambiente. O desafio da política econômica do Governo Federal é aproveitar o momento histórico favorável do país e estimular o crescimento do PIB e do emprego, intensificando ainda mais a inclusão social e a melhora na distribuição de renda. Para tanto, o Governo Federal criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tem como um dos pilares, a desoneração de tributos para incentivar mais investimentos no Brasil”. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/pac/medidas-institucionais-e-economicas/>. Acesso em: 12 ago. 2010.

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Diante disso, iniciou-se uma nova fase de desapropriações na região de São Gon-çalo do Amarante e Caucaia. Embora essa fase tenha sido levada a cabo pelos órgãos estaduais de forma semelhante à ocorrida nos anos de 1996 a 1999, ou seja, sem garantir o direito à informação às populações impactadas, diferenciou-se desta pela resistência dos moradores, principalmente, daqueles que já se identificavam como povo indígena Anacé.

Nesse sentido, diversas estratégias passaram a ser usadas pelo grupo étnico, tais como: a) articulação com o movimento indígena estadual e nacional;20 b) articulação com outros grupos e movimentos sociais impactados por projetos de desenvolvimento;21 c) pedidos de realização de audiência pública perante a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará;22 d) articulação com a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares no Ceará (Renap-CE), que passou a acompanhar as demandas do povo Anacé;23 e) articulações com grupos de pesquisa e extensão das Universidades Estadual e Federal do Ceará (Gru-po Grãos – UECE; Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade – Tramas e o Projeto de Extensão Centro de Assessoria Jurídica Universitária – Caju – ambos da UFC); f ) formulação de representações junto ao Ministério Público Federal (MPF) no Ceará, que passou a acompanhar, por meio do analista pericial em Antro-pologia, os conflitos e as demandas do povo Anacé, com mais proximidade;24 g) ouvir

20. Nesse sentido, em 22 de setembro de 2007 ocorreu a I Assembleia do Povo Indígena Anacé, a qual reuniu os povos Tapeba, Pitaguary, Potiguara, Tabajara, Tremembé, Xucuru Kariri e Anacé para discutir o tema “Terra e impacto ambiental”, oportunidade em que foram analisados os inúmeros empreendimentos que estão instalados em terras indígenas, em especial, construção de estradas, usinas siderúrgicas, transposição do Rio São Francisco, entre outras.

21. Mencionamos, exemplificativamente, o II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado em 23 a 25 de março de 2009, em Fortaleza/CE. Na oportunidade, os(as) pesquisadores(as) e movimentos sociais articulados em torno da Rede Brasileira de Justiça Ambiental se dirigiram a São Gonçalo do Amarante e Caucaia para conhecer a dimensão dos impactos socioambientais do CIPP e se solidarizarem com a luta Anacé. O caso do Povo Anacé aqui retratado está mapeado no Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, disponível em: <http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=selecao&cod=45>; acesso em: 15 set. 2010. “Este Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil é resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Seu objetivo maior é, a partir de um mapeamento inicial, apoiar a luta de inúmeras populações e grupos atingidos(as) em seus territórios por projetos e políticas baseadas numa visão de desenvolvimento considerada insustentável e prejudicial à saúde por tais populações, bem como movimentos sociais e ambientalistas parceiros”. Informação disponível em: <http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php>; acesso em: 15 set. 2010.

22. Cita-se, nesse sentido, a audiência pública realizada na Assembleia Legislativa, em 9 de março de 2009, que contou com a presença dos índios Anacé, do chefe do Núcleo de Apoio Local da Funai, do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e de Procuradores da República no Ceará.

23. Por meio da Rede Nacional de Advogados(as) Populares (Renap), Luciana Nóbrega, que compunha a Rede, passou a acompanhar as demandas do povo indígena Anacé, a partir de setembro de 2008, quando ocorreu a II Assembleia do Povo Indígena Anacé. O trabalho desempenhado em conjunto com o grupo étnico consistia em uma assessoria ao movimento indígena, englobando a solicitação de audiências públicas, o acompanhamento de processos administrativos perante o Ministério Público Federal no Ceará, participação de reuniões, assembleias e outros momentos de articulação do movimento. Esse contato anterior de uma das pesquisadoras com os Anacé permitiu-nos ter acesso às informações necessárias para compreender a dimensão do conflito envolvendo o povo indígena e o Complexo Industrial e Portuário.

24. Ilustrando a afirmação, dos anos de 2003 a 2009 foram apresentadas pelos índios Anacé 13 representações, denúncias e solicitações perante o Ministério Público Federal no Ceará, originando 13 processos administrativos que tramitam perante o Parquet federal. Dados disponíveis em: <http://www2.prce.mpf.gov.br/prce/pr/pesquisaprocessual/pesquisa-processual/>, utilizando a palavra-chave “anacé”. Acesso em: 20 ago. 2010.

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os mais velhos e reescrever sua própria história, retomando práticas e memórias que haviam sido encobertas pelo medo da discriminação;25 h) incorporação das reflexões socioambientais, passando a demonstrar outras formas de desenvolvimento possíveis, levadas a cabo pela produção de hortaliças, pelo manejo sustentável de folhas, raízes e sementes para a produção de remédios caseiros; i) pela construção da Escola Diferen-ciada Direito de Aprender do Povo Anacé; entre outras.

Tendo em vista a pressão para a continuidade das obras do CIPP e a iminência de novas desapropriações, o Ministério Público Federal no Ceará ajuizou, em 10 de dezembro de 2009, a Ação Civil Pública n° 0016918-38.2009.4.05.8100, perante a 10ª Vara Federal no Ceará, questionando as irregularidades na implantação do CIPP, requerendo tutela jurisdicional no sentido de determinar ao Estado do Ceará que: a) se abstenha de realizar qualquer ato desapropriatório na área reivindicada pelos Anacé; b) se abstenha de proceder à remoção de indivíduos; c) não se executem quaisquer obras na área decorrentes de licenças prévias ou de licenças de instalação, como medida de resguardo do território Anacé frente à implementação dos projetos do CIPP; d) que seja assegurada a continuidade dos trabalhos de identificação, delimitação e demarcação da Terra Indígena Anacé.

Ao analisar a petição inicial ajuizada pelo MPF, o juiz federal entendeu pela neces-sidade de ouvir diversos entes. Dentre eles, a Companhia Siderúrgica do Pecém ressal-tou a importância do CIPP, aduzindo tratar-se do “maior projeto de desenvolvimento do estado do Ceará”. Com base nesses argumentos, em janeiro de 2010, proferiu-se decisão no sentido de indeferir o pedido liminar formulado pelo Ministério Público Fe-deral, entendendo o juiz federal que haveria, no caso, dano maior à economia do esta-do, pois “a suspensão da implantação dos empreendimentos já licenciados implicaria o retardamento da alavancagem do desenvolvimento do estado, traduzido no adiamento/impedimento da elevação da produção industrial”. (JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 0016918-38.2009.4.05.8100, 2010).

Pelo que foi colhido durante o trabalho de campo e reforçado pelas petições do Ministério Público Federal, a relação dos Anacé com o território habitado tra-dicionalmente contrapõe-se ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém, como território portuário regional e industrial metropolitano, atendendo à lógica de re-produção ampliada do capital mundial. O que está em jogo nesse conflito não é só o domínio sobre o território, seja ele identificado como propriedade ou como posse, mas, principalmente, um projeto que define o uso desse território e os seus elementos socioambientais. Em outras palavras, os conflitos que envolvem a cons-

25. Dentre essas práticas que foram retomadas, uma em especial merece atenção. Trata-se da retomada da dança de São Gonçalo, que havia ficado 19 anos sem ser feita. Em 2007, o grupo de dança Anacé recebeu o prêmio Culturas Indígenas, edição Xicão Xucuru, outorgado pelo Ministério da Cultura, por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural.

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trução do CIPP e os Anacé se situam, sobretudo, no campo do simbólico, da de-finição de modelos de desenvolvimento que se traduzem nas formas de produzir e gerir os recursos naturais.

Um dos principais exemplos disso diz respeito à água. Como relatado nos docu-mentos que instruem a ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, as ações previstas no Plano Diretor do CIPP mostram-se danosas ao meio ambiente e às atividades de usufruto da etnia Anacé. Como a quase totalidade dos empreendimentos industriais encontra-se inserida na área de maior diversidade de ecossistemas e pres-supõe a degradação de dunas, isso tende a prejudicar a drenagem superficial da área ocupada pelos índios, bem como a qualidade e disponibilidade do lençol freático da região, com reflexos diretos na utilização da água para consumo, irrigação e atividade pesqueira, essencial à sobrevivência do povo indígena Anacé (MEIRELES; BRISSAC; SCHETTINO, 2009).

Para os Anacé, não sendo apenas utilizada para atividades produtivas (irrigação, atividade pesqueira), a “fartura de água, água doce, água boa” no território por eles reivindicado é considerada uma das suas principais riquezas. Riqueza em um estado carente desse recurso natural. Mas não só. Os corpos d’água (lagoas, lagos, riachos) para os Anacé não são apenas “recursos”, coisas à nossa disposição. São seres e/ou morada de entes ou “morada dos encantados”, tão conhecidos nas histórias e na memória dos Ana-cé, seja no massacre na Lagoa do Banana, seja no chamado por eles de “Pai Lagamar”,26 seja nas histórias de “mães d’água”, ou nos espaços de lazer e socialização. Essas lagoas, riachos, lagos estão agora ameaçados por um projeto de desenvolvimento incompatível com essas histórias e memórias, alicerces da identidade Anacé.

3 “TERRITORIALIDADES CONVERGENTES”: UM DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE ESSAS EXPERIÊNCIAS DE RELAÇÕES TERRITORIAIS

O que esses três casos têm em comum? Curral Velho, comunidade do Serviluz e povo Anacé trazem em suas histórias expressões do conflito entre modelos distintos de pen-sar as relações com o território. Nas três breves narrativas, restou claro que, mesmo oriundas de espaços sociais distintos, essas expressões de territorialidades se convergem quando contrapostas ao modelo hegemônico de uso e apropriação dos espaços: um mo-delo socioambientalmente excludente e que busca a exaustão dos recursos. Um modelo pensado e proposto como o único possível.

Quando esses movimentos, entretanto, colocam na arena da disputa e do debate outras possibilidades de gestão dos territórios, de relação com os recursos, eles trazem à

26. Pai Lagamar” corresponde a uma área de preservação ambiental, composta por lagoas que se encontram com o mar, repleto de carnaubeiras.

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tona uma fissura na lógica moderna ocidental, deixando claro que há outras possibili-dades e que elas estão sendo gestadas à luz do dia.

Sobretudo a partir da década de 1980 e 1990, diversos movimentos e grupos sociais emergiram na esfera pública reivindicando direitos ao território e o reconhecimento de suas identidades coletivas. Autores, sobretudo do campo da Antropologia (ALMEIDA, 2008; LITTLE, 2002; OLIVEIRA, 1998), tratam desse processo de emergência políti-ca de sujeitos que tinham suas diferenças culturais negadas e sufocadas pelo processo de colonização, pelas sucessivas frentes de expansão econômica do capital sob a ideologia do desenvolvimento do país e pela própria ideia de nação construída à fina força pelo Estado brasileiro.

O processo de modernização do Brasil trouxe também consigo valores e conceitos de uma ordem político-jurídico-filosófica, produto das revoluções liberais na Europa como a noção de “Estado-nação” que vai ser determinante na tentativa de consolidação da ideia de um território e cultura homogêneos, causa e resultado da hodierna injustiça e exclusão socioterritorial existente no país. A ideia de Estado-nação – simploriamente traduzida como organização social e política de um povo (unidade biológica e cultu-ral), dotada de um território (área geográfica delimitada) e de soberania (poder que se dá para unificar o povo no interior desse território e afastar ameaças do que lhe fosse “exterior”) nada mais é do que uma “invenção”, um “artefato” histórico e recente que “toma culturas preexistentes e as transforma em nações, algumas vezes as inventa e fre-quentemente oblitera as culturas preexistentes” (HOBSBAWN, 1990 apud DUPRAT, 2007, p. 12-13).

Assim, mesmo que a ideologia do Estado-nação tenha conseguido sua implan-tação no Brasil e na América Latina, apoiada em teorias e práticas que negavam/exterminavam as diferenças socioculturais, resistências de grupos sociais específicos como índios e negros demonstraram ao longo da história e dos sucessivos processos de territorialização (OLIVEIRA, 1998) uma rica diversidade sociocultural não reco-nhecida pelo Estado brasileiro.

Resultado das contradições do próprio desenvolvimento do capitalismo antes de se remeter a resquícios de formações sociais pré-capitalistas (ALMEIDA, 2008, p. 98), esses diversos processos de expansão de fronteiras desde o Período Colonial, passando pelo Império e República, produziram e levaram à constituição de grupos sociais, que, sobretudo, lutam pela defesa e controle de suas áreas e suas formas próprias de existir, contra os avanços da acumulação capitalista que buscam a apropriação de suas terras e dos sistemas ambientais presentes em seus territórios.

Os territórios desses grupos sociais, como os pescadores, seringueiros, quilombo-las, faixinaleses, fundos de pasto, entre tantos outros, que compartilham de algumas características semelhantes (e também diversas) como as práticas comunitárias e uso

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comum dos recursos, têm existência efetiva e constituem realidades bem diferentes den-tro do território nacional que historicamente foram tornadas invisíveis pelas pretensões oficiais de homogeneidade político-cultural.

Esses grupos sociais que surgiram no passado contrapondo-se ao modelo agrário exportador, à escravidão, ao monopólio da terra, em nossa história recente e hodierna-mente, continuam emergindo diante das sucessivas investidas de espoliação.

O economista Henri Acselrad (2008) comenta que, sobretudo depois do pós-guerra, grandes projetos de apropriação do espaço implementados pelo Estado desenvolvimentis-ta articularam-se com a implantação de uma complexa estrutura industrial espacialmente concentrada. Tal modelo implicou uma importante ampliação dos espaços integrados à dinâmica do desenvolvimento capitalista (grandes obras de infraestrutura, grandes bar-ragens, projetos de mineração e irrigação para agroindustialização), em um processo de crescimento que se apoiou na concentração da renda e no esforço exportador.

Ainda segundo o mesmo autor, a concentração da posse sobre os elementos da base material da sociedade por meio de grandes projetos de apropriação do espaço e do meio ambiente material produziu grandes impactos e efeitos de desestruturação de ecossistemas, ao mesmo tempo em que os pequenos produtores, populações ribeirinhas e deslocados compulsórios foram concentrados em áreas exíguas, com terras menos férteis, intensificando ritmos da exploração de suas áreas, ocasionando, por ambos os processos conjugados, perda de biodiversidade, comprometimento de disponibilidade de água, da fertilidade dos solos etc.

Nos anos de 1990, transformações socioterritoriais associadas ao processo de in-serção subordinada do Brasil na dinâmica modernizadora e globalizante foram carac-terizadas por uma dinâmica constante de destruição e reconstrução de territórios que gerou/gera inúmeros conflitos que apontam para mudanças nos modos dominantes de apropriação do meio biofísico, com a acentuação dos padrões de desigualdade de poder sobre os recursos ambientais.

Oprimidos e despossuídos passaram a denunciar e a reivindicar no espaço público maior acesso aos recursos como água, terra fértil, estoques pesqueiros etc., denuncian-do o comprometimento de suas atividades pela queda da produtividade dos sistemas biofísicos de que dependiam e pelo aumento do risco de perda de durabilidade da base material necessária à sua reprodução sociocultural, constituindo movimentos sociais e se (re)territorializando por meio das estratégias de resistência.

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Resultados dos processos de territorialização27, o(s) território(s) garantido(s) por esses grupos, ora definido(s) como “territórios sociais” (LITTLE, 2002), ora como “ter-ritorialidades específicas” (ALMEIDA, 2008), é produto, em resumo, da espacialização das relações de poder28, dos conflitos, “apresentando delimitações mais definitivas ou contingenciais, dependendo da correlação de força em cada situação social de antago-nismo” (p.51) sendo verdadeiros territórios dissidentes enquanto expressões de práticas espaciais insurgentes29 (SOUZA, 2009a, p. 67).

A disputa pelo espaço, que não se reduz à reivindicação por terra, justifica-se no fato de que um projeto transformador de sociedade deve abranger a dimensão espacial, pois se entende que esta não é só produto social, mas também é condicionante da pró-pria produção e reprodução social. Construir outras geografias também é ter possibilida-de de instituir formas alternativas aos fundamentos ecológicos, espaciais e culturais do capitalismo ou, como definiu David Harvey defendendo sua ideia de espaços utópicos ou “de esperança”, “transcender ou reverter às formas socioecológicas impostas pela acumulação descontrolada do capital, pelos privilégios de classe e pelas amplas desigual-dades de poder político-econômico” (HARVEY, 2006, p. 262).

A reivindicação pelo direito ao território por parte desses grupos sociais faz parte de uma luta política democrática que visa ao reconhecimento de suas formas de orga-nização como fonte de poder (inclusive normativo), diante de relações sociais desiguais e opressoras em que o Estado é, na visão hegemônica, a única fonte de direitos.30

27. Segundo Alfredo Wagner: “o processo de territorialização é resultante de uma conjunção de fatores, que envolvem a capacidade mobilizatória, em torno de uma política de identidade, e um certo jogo de forças em que os agentes sociais, através de suas expressões organizadas, travam lutas e reivindicam direitos face ao Estado. As relações comunitárias neste processo também se encontram em transformação, descrevendo a passagem de uma unidade afetiva para uma unidade política de mobilização ou de uma existência atomizada para uma existência coletiva. A chamada “comunidade tradicional” se constitui nesta passagem. O significado de “tradicional” mostra-se, deste modo, dinâmico e como um fato do presente, rompendo com a visão essencialista e de fixidez de um território, explicado principalmente por fatores históricos ou pelo quadro natural, como se a cada bioma correspondesse necessariamente a uma certa identidade. A construção política de uma identidade coletiva, coadunada com a percepção dos agentes sociais de que é possível assegurar de maneira estável o acesso a recursos básicos, resulta, deste modo, numa territorialidade específica que é produto de reivindicações e de lutas. Tal territorialidade consiste numa forma de interlocução com antagonistas e com o poder do Estado” (ALMEIDA, 2008, p. 119).

28. Segundo os ensinamentos do geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2009a), o que define o território é, em primeiro lugar, o poder. Isso não quer dizer, todavia, que a cultura (o simbolismo, as identidades), a economia (trabalho, produção e circulação de bens), ou a geoecologia (os recursos naturais que contém determinada área) não sejam relevantes. Esses aspectos, inclusive, são de fundamental importância para a gênese de um território ou do interesse por tomá-lo ou mantê-lo, mas o verdadeiro motivo condutor do território é o exercício de poder: “quem domina ou influencia e como domina ou influencia esse espaço?”. Ainda segundo este autor, isso ficaria evidente, por exemplo, que um processo de territorialização/ desterritorialização mesmo tendo a ver com desenraizamento cultural ou na privação e acesso a recursos e riquezas, mas é sempre, um processo que envolve o exercício das relações de poder e a projeção dessas relações no espaço.

29. Vale destacar que os territórios dissidentes não são resultados diretos de “identidades específicas” ou de questões decorrentes da etnicidade apenas, mas de processos políticos definidos por meio de ações coletivas que podem envolver também grupos urbanos como sem-tetos, movimento hip-hop, piqueteiros etc. (o que não quer dizer também que esses grupos não se mobilizem contra etnocentrismos).

30. Essa luta, todavia, não descarta as possibilidades de ganhos institucionais no interior da sociedade burguesa-moderna-ocidental, inscrevendo novos direitos na lei, disputando o poder simbólico do direito de dizer o direito (BOURDIEU, 2010).

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Enfatizar a dimensão política do território é buscar inverter as relações assimétricas de poder que são impostas à vida de cima para baixo. O direito ao território visa, mais que o direito à “terra” (substrato material apropriável enquanto mercadoria representado juridicamente pelo instituto da propriedade) e aos recursos naturais nele inseridos, a autonomia enquanto capacidade do grupo de autogerir-se, ou “dar a si a própria lei” (SOUZA, 2009a, p. 68).

Nesses territórios, o controle do uso de seus recursos se dá por meio de normas específicas que são compartilhadas entre os participantes em condições de igualdade. Segundo o antropólogo Alfredo Wagner:

Tal controle se dá através de normas específicas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social. Tanto podem expressar um acesso estável à terra, como ocorre em áreas de colonização antiga, quando evidenciam formas relativamente transitórias características das regiões de ocupação recente. Tanto podem se voltar prioritariamente para a agricultura, quanto para o extrativismo, a pesca ou o pastoreio realizados de maneira autônoma, sob a forma de cooperação simples e com base no trabalho familiar. As práticas de ajuda mútua, incidindo sobre recursos naturais renováveis, revelam um conhecimento aprofundado e peculiar dos ecossistemas de referência. A atualização dessas normas ocorre, assim, em territórios próprios, cujas delimitações são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes (ALMEIDA, 2008, p. 29).

Em condições de liberdade, todos estão submetidos ao poder que emana da coleti-vidade, que vem sendo repassado de gerações em gerações através dos costumes, e todos são obrigados moralmente a respeitar as regras de cuja construção ele também fez parte. Essas relações mudam quando esse grupo é colocado numa posição de total heterono-mia, ou seja, desigualdade de poder diante de outros sujeitos como quando verificado numa presença concreta do Estado e dos seus projetos de “desenvolvimento”.

O direito ao território visa garantir que os próprios sujeitos decidam de forma autônoma que modelos e sentidos de desenvolvimento querem para si coletivamente, abertos a possibilidades inclusive de o elegeram segundo visões antimodernas e anticapi-talistas. Os direitos territoriais, assim como Souza tratou em relação ao desenvolvimen-to subordinado ao princípio da autonomia, reclama notoriamente uma espacialização.

O espaço social (resultado, em sua dimensão tangível, da transformação da natureza, ou do espaço natural, pelo trabalho, dimensão essa a qual devem ser acrescentadas as leituras subjetivas e intersubjetivas) não é um epifenômeno. O espaço, produto social, é um suporte para a vida em sociedade e, ao

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mesmo tempo, um condicionador dos projetos humanos; um referencial simbólico, afetivo e, também, para a organização política; uma arena de luta; uma fonte de recursos (sendo a própria localização geográfica, que é algo essencialmente relacional, um recurso a ser aproveitado). A autonomia de uma coletividade traz subentendida uma territorialidade autônoma, ou seja, a gestão autônoma, por parte da coletividade em questão, dos recursos contidos em seus territórios, que é o espaço por ela controlado e influenciado (SOUZA, 1996, p. 11).

Isso não quer dizer, por sua vez, que haja a completa separação, independência e isolamento diante do mundo, hoje global, mas, como horizonte político-jurídico pos-sível, a autonomia garantida pela concretização de direitos territoriais31 é a melhor via para gerir democraticamente os conflitos entre distintas territorializações por meio do seguinte princípio ético-político: “a autonomia de uma coletividade cessa de ser legíti-ma a partir do momento em que se constrói às custas da autonomia de outra coletivi-dade” (SOUZA, 1996, p. 10).

4 A LUTA PELO TERRITÓRIO NA COMPREENSÃO DOS MOVIMENTOS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS COM O DIREITO ESTATAL

Ponto central nas discussões travadas neste artigo diz respeito aos instrumentos de luta de que essas populações se valem para se manter no território, para fazer frente a um modelo de desenvolvimento. Um desses instrumentos destacados aqui é o que chama-mos de direitos territoriais. Mas como a legislação estatal o alberga?

No Brasil, há múltiplos instrumentos legais já consolidados no que se refere à posse e à propriedade de uma determinada gleba. No que se refere a essas territorialidades convergentes ou dissidentes, ainda estamos tateando no escuro.

Há uma dificuldade de encaixar plenamente as propostas trazidas pelos movimen-tos que ora se aproximam de uma propriedade coletiva, ora se distanciam, quando, por exemplo, apenas reivindicam usufruto de determinado recurso (aqui nos referimos à demanda de alguns movimentos de quebradeiras de coco babaçu ou de castanheiros). Algumas dessas territorialidades já estão mais bem consolidadas, como é o caso do direi-to à terra tradicionalmente ocupada para os povos indígenas. Mas o fato de existirem 14 etnias no estado do Ceará e mais de 13 mil indígenas e apenas uma terra demarcada até

31. Refletimos sobre a possibilidade de nos referirmos ao direito ao território ou a direitos territoriais. Reconhecendo não só a multiplicidade de significados dados aos territórios, mas também a direitos plurais, caleidoscópicos e interconectados que se ligam à defesa, garantia e proteção do território, como o uso e acesso às fontes naturais, à mobilidade, à alimentação, à cultura, à religião, à autonomia ligada às escolhas de modos de existência e sentidos do que se cunhou de desenvolvimento, dentre outros, preferimos, aqui, como resultado de nossos diálogos na feitura deste artigo, utilizar a expressão direitos territoriais.

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os dias atuais deixa claro que esse tema ainda não é bem resolvido, embora haja previsão dessa garantia de reserva às terras indígenas desde 1680.32

No que se refere às populações tradicionais, no Brasil, não há ainda um marco jurídico definindo o direito à terra e ao território dessas populações. Embora defenda-mos que elas também são sujeitos dos direitos assegurados pela Convenção nº 169 da OIT, que assegura em seus dispositivos o direito à terra, inexiste uma regulamentação específica para o reconhecimento dos territórios das populações tradicionais, diferindo, portanto, do que ocorre com indígenas e quilombolas. Assim, acaba-se recorrendo à lei que cria o sistema nacional de unidades de conservação, como forma de assegurar os seus territórios. O acesso à terra e o reconhecimento do direito ao território passa a ser assegurado, desse modo, como medida de conservação.

A Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), combinada com o Decreto n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, entretanto, exige a afirmação de que essas populações sejam “tradicionais” para merecer guarida legal. Dizer quais são as po-pulações “verdadeiramente tradicionais”, garantindo a estas uma proteção jurídica específica, faz pensar sobre a racionalidade que nega à maioria da população brasileira de baixa renda do meio rural e urbano o reconhecimento de uma cultura distinta e as associações possíveis entre essa racionalidade e a “autorização” de expulsar e deslocar essas comunidades, ou inviabilizar seus modos de vida por questões ambientais, a fim de promover a reprodução do capital e/ou o desenvolvimento nacional, assim como as interconexões existentes entre esse não reconhecimento e lógicas subjacentes à per-manência da estrutura fundiária brasileira.33

Investigar essas plurirrealidades é importante para vários ramos do conhecimento, não para definir as populações e grupos como indígenas, quilombolas, tradicionais ou

32. Aqui nos referimos ao Alvará Régio de 1680 que estabelecia o instituto do indigenato, que assegurava a reserva de terras aos indígenas, “naturais e senhores delas”.

33. O conceito de população tradicional era estabelecido no artigo 2°, XV, do Projeto de Lei do SNUC como “Grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável”. O dispositivo, contudo, foi vetado. Na Mensagem n° 967, de 18 de julho de 2000, enviada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, restaram consignadas as razões do veto, no seguinte sentido: “o conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil”. A mensagem também enuncia que: “De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser definidos como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o número de gerações não deve ser considerado para definir se a população é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a noção de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais”. (Mensagem n° 967 de 18 de julho de 2000. In: CONSELHO NACIONAL DA RESERVA DA BIOSFERA DA MATA ATLÂNTICA. SNUC Sistema Nacional de Unidades de conservação: texto da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, e vetos da Presidência da República ao PL aprovado pelo Congresso Nacional. 2. ed. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2000. Cadernos, n. 18).

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de outro tipo, mas sim para criar uma ambiência favorável para que essas populações e grupos possam expressar suas identidades. Nesse sentido, há de se buscar elaborar essas definições em conjunto com essas populações.

O artigo 1º, VIII, do Decreto n° 6.040/2007 determina que as ações e atividades voltadas para o alcance dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Susten-tável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPTC) deverão observar o reconheci-mento e a consolidação dos direitos dos povos e comunidades tradicionais; e o art. 3° e incisos I e V do Decreto exprimem como objetivos específicos da PNPCT garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica (I); e garantir os direitos dos povos e das comunidades tradicionais afetados direta ou indire-tamente por projetos, obras e empreendimentos (V).

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, adotada pelo Brasil pelo Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, traz dois dispositivos importantes para compreensão dos direitos enunciados aqui. Trata-se do artigo 15

1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.

e do artigo 13

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

Ademais, há de se atentar também para aspectos que devem ser problematizados da Lei do SNUC. Esta determina que, em sendo necessário, sejam desapropriadas áreas particulares incluídas nos limites dos tipos de unidades (art. 18, § 1°; art. 20, § 2°). O artigo 18, § 1º, declara que a reserva extrativista é de domínio público, e o artigo 23 da Lei do SNUC institui que a posse e o uso das áreas ocupadas pelas populações tradicio-nais nas reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável serão regulados por contrato. Ademais, o art. 18, § 2º da referida Lei determina que a

Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área [...].

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Assim, as desapropriações que fossem necessárias de pequenas propriedades, o contrato e a existência do Conselho Deliberativo, as possíveis interferências nas relações de posses individuais e familiares porventura existentes, dentre outras questões, trariam uma dinâmica que provocaria mudanças na relação da comunidade com o território.

Conforme se percebeu, a instituição de uma unidade de conservação é um cami-nho, uma possibilidade, para ver assegurado o direito ao território das comunidades tradicionais. Mas esse reconhecimento não se dá sem restrições ou condicionantes àquilo que eles vivenciam. Normatizar essa realidade é uma tarefa que pode trazer implicações sérias às múltiplas relações tecidas com o território, principalmente se essa normatização representa uma generalização de um dado localismo (de um movi-mento específico), podendo ainda ensejar, com a instituição do conselho da unidade de conservação e o plano de manejo, modos de controle externo sob as formas de representação comunitária.

Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 trazem importantes nor-matizações em relação ao direito à cultura e podem também servir de esteio para inter-pretações sobre a proteção jurídica devida pelo Estado às expressões culturais, saberes e fazeres tradicionais vivenciados por essas comunidades, promovendo, assim, a proteção à sociodiversidade brasileira.

Do ponto de vista da proteção do território de comunidades urbanas, apesar de vasta legislação que prevê o direito à moradia e à cidade dessas populações (Art. 5° da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade, Lei Federal n° 10. 257/2001) a possibilidade de regularização fundiária, quando esta ocorre,34 traz uma perspectiva politicamente limitada, pois visa inserir os territórios considerados ilegais/irregulares na cidade formal, numa espécie de subsunção à norma (e à cidade) dominante. Alguns estudos, inclusive, têm questionado certa visão de mercado que tem influenciado as práticas de regularização fundiária enquanto capitalização de uma camada social que ao adquirir a “propriedade” passa a ser consumidora em potencial, a exemplo das políticas incentivadas por instituições como o Banco Mundial. Mesmo que tais instrumentos se tornem, por vezes, estratégicos para garantir a permanência desses territórios quan-do ameaçados de deslocamentos compulsórios, a ideia de regularização e segurança da posse não escapa à hegemonia do conceito de propriedade do direito estatal e suas possibilidades ficam reduzidas, grosso modo, ao usucapião (se propriedade privada) e a concessão de uso (se propriedade do Estado).

As ZEIS parecem ampliar essa perspectiva rumo à autonomia, pois prevê que, por meio do conselho gestor, a comunidade decida sobre a gestão do seu território (tamanho

34. Normalmente, o processo de regularização fundiária trava devido à burocracia das instituições do Estado. Quando ocorre, dificilmente chega ao fim e contempla todas as dimensões: social, jurídica, urbanística e ambiental. Há pelo menos oito anos, o Serviluz aguarda a prometida regularização fundiária. Mesmo sendo a área de propriedade da União Federal, o que se supõe menos conflitos de interesses e mais agilidade, a burocracia travou completamente o processo.

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nas unidades habitacionais, proibição de venda dos imóveis), além de forçar a redução do preço da terra, afastando a especulação imobiliária. No entanto, esse instrumento tem enfrentado fortes resistências para sua efetivação, como visto no caso do Serviluz.

Encontrando dificuldades de lançar mão dos instrumentos legais existentes para garantir a permanência desses territórios, movimentos populares locais organizam pro-cessos de reterritorialização, conquistando novos espaços por meio de ocupações urba-nas, questionando o direito de propriedade e as políticas habitacionais oficiais, insti-tuindo outras fontes de direitos.

A percepção da relação desses povos e populações com o território que ocupam faz emergir, também, reflexões acerca da compreensão do espaço sob a perspectiva da propriedade. Esta é marcada pela historicidade. Seus sentidos podem advir tanto de in-terpretações à Constituição quanto do seio de populações organizadas em movimentos populares, como proponentes de Direito Insurgente e fonte de produção jurídica em um pluralismo jurídico, sobre o qual Boaventura de Sousa Santos delineia importantes pistas investigativas:

Em primer lugar, trato de demostrar que el campo del derecho em las sociedades contemporâneas y em el sistema mundo em su totalidade es um terreno mucho más complejo y rico de lo que se há assumido por la teoria política liberal. Em segundo lugar me proponho demostrar que un campo jurídico así es uma constelación de diversas legalidades (e ilegalidades) que peran em escalas locales, nacionales y globales [...].La supremacia de la escala del Estado-nación em el análisis sociojurídico no solo contribuyó a estrechar el concepto de derecho al vincularlo com la autoridade del Estado, sino que también impregnó ciertas concepciones del pluralismo jurídico com uma ideologia del derecho europeo. Este derecho, em cuanto orden estatal, no era ni empírica ni historicamente el único vigente em los territórios coloniales. Sin embargo, el pluralismo jurídico utilizado como técnica de governo permitió el ejercicio de la soberania colonial sobre los diferentes grupos (étnicos, religiosos, nacionales, geográficos, etc.), reconociendo los derechos precoloniales para manipularlos, subordinallos e ponerlos al serviocio del proyecto colonial. El reconocimiento de los derecho stradicionales por parte del derecho colonial europeo implica uma noción del derecho que, em última instancia, está sustentada em uma única fuente de validez que determina com exclusividade lo que debe ser considerado como derecho. Em esse sentido, también el pluralismo jurídico puede ser uma de las formas mediante las cuales se maniesta la ideologia del centralismo jurídico. Esa concepción del pluralismo jurídico es, hoy em día, uno de los principales legados que la expansión europea dejó a los sistema jurídicos nacionales no europeos. De esta forma, el processo de construcción nacional em las cociedades que

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de liberaron del colonialismo está también forjado por la ideologia de la centralidade y la unicidade del Estado-nación, esto es, la creencia de que la construcción del Estado moderno exige la homogeneización de las diferencias sociales y territoriales (SANTOS, 2009, p. 53-54).

Resta claro, portanto, que nessa trilha das múltiplas formas de resguardo e prote-ção das territorialidades expressadas por povos e populações indígenas, tradicionais, de ribeirinhos, comunidades urbanas, há um flanco aberto de possibilidades, inexistindo resposta pronta ou definição legal já completamente estabelecida, uma vez que toda e qualquer normatização acaba sendo redutora da realidade. É preciso, em diálogo com as comunidades, construir mecanismos que sejam permeáveis às suas dinâmicas de per-manência e mudança, sendo porosos para permitir que o ainda-não, o que estar por vir, possa aflorar quando as condições sócio-históricas se tornem mais favoráveis.

Nesse sentido, é preciso perceber o que podemos aprender com os Anacé, com a comunidade de Curral Velho e com a população no Serviluz. Como buscamos visi-bilizar, há diversas lógicas de compreensão sobre os territórios e sobre os modelos de desenvolvimento neles incidentes. Muitos desses modelos, focados nas comunidades ribeirinhas, de pescadores artesanais, indígenas e quilombolas, diferem do pensamento hegemônico que se impõe sobre esses grupos, modificando os seus modos de ser e fazer e estabelecendo novas ordens a pretexto de trazer “desenvolvimento”. Essas comunida-des, contudo, têm seus próprios processos de desenvolvimento. Elas não ficam estan-ques nas paredes de museus, atrasadas em um tempo histórico longínquo pelo qual a sociedade ocidental já passou. Elas trazem outras relações com o território, com o meio ambiente e com os demais, indicando para nós uma necessidade de se aprender com o “saber local” (GEERTZ, 2009, p. 249-356).

À semelhança do que ocorreu com os povos e populações aqui estudados, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que

[...] os grupos sociais sujeitados à desterritorialização não são vítimas passivas e expressam outras formas de existência nos lugares. Reivindicam direito à memória e a sua reprodução social. E são eles que dizem que nem tudo é fadado a virar espaço de apropriação abstrata pelo capital [...]. A defesa do lugar, do enraizamento e da memória destaca a procura por autodeterminação, a fuga da sujeição dos movimentos hegemônicos do capital e a reapropriação da capacidade de definir seu próprio destino. A direção desses movimentos [...] insiste em nomear os lugares, em definir-lhes seus usos legítimos, vinculando a sua existência à trajetória desses grupos. Não é uma luta pela fixidez dos lugares, mas sim pelo poder de definir a direção da sua mudança. (ZHOURI; OLIVEIRA, 2010, p. 445).

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Nesse sentido, a grande contribuição que os casos de Curral Velho, dos Anacé e da comunidade do Serviluz podem nos dar é fazer-nos refletir sobre a diversidade de modos de pensar o mundo e nele projetar o futuro. A discussão que se apresenta está no campo da própria definição dos projetos de desenvolvimento e dos territórios em que esses projetos encontram expressão. É preciso pensar esses conceitos, não tomando como base reflexões coloniais de um só desenvolvimento possível, o ocidental capita-lista. É preciso pensar desenvolvimento, pensar meio ambiente, pensar propriedade e territorialidades a partir do local.35

Compreender os conflitos que envolvem essas territorialidades convergentes ou dissidentes exige-nos um esforço no sentido de estranhar os conceitos hegemônicos de meio ambiente como recurso natural a ser explorado, de território como cenário da in-tervenção a ser promovida pelos projetos de desenvolvimento e de um desenvolvimento como caminho único na direção capitalista de acumulação e pilhagem de recursos sem distribuição. A resistência desses povos e populações, centrada no território, este con-siderado como uma construção ao mesmo tempo simbólica, social e material, suporte do seu ser coletivo no mundo, é também uma proposição por novas formas de compre-ender a realidade.

Nesse sentido, os significados de território e de desenvolvimento proposto pelo povo Anacé e pelas comunidades de Curral Velho e do Serviluz acentuam um caráter histórico e simbólico. Mais do que o cenário, o lugar onde se vive, se produz e se reconstrói é o território onde ocorrem as dinâmicas sociais que conectam o passado ao presente, esferas de pertencimento que tornam possíveis a construção de identidades no tempo contempo-râneo. É nesse território que se dá a retomada de controle sobre o próprio destino, sendo o suporte do presente e a referência que orienta projetos coletivos de futuro.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As histórias, falas e canções vindas de movimentos populares organizados em torno de seus direitos territoriais traduzem lutas reivindicativas e de resistência tecidas na busca pela construção de justiça e de equidade no acesso à terra no Brasil. Tais movimentos, em suas diversidades, indicam confluir alguns pontos essenciais: o questionamento da propriedade como direito absoluto e exclusivo advindo de um título cartorário; a rei-vindicação do direito à terra e em outras dimensões para além do espaço geográfico utilizado como simples produtor e como mercadoria; a busca por sentidos de desenvol-vimento vivenciados no território em que permeiam os quais estabeleçam relações não conflituosas com o ambiente natural.

35. Acerca das relações entre local e global, Andréa Zhouri e Raquel Oliveira mencionam que “a crítica ao global – como força que oprime e explora – só pode ser efetuada a partir do local, onde o conhecimento é possível e as trincheiras da resistência estão em curso” (ZHOURI; OLIVEIRA, 2010, p. 443).

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Os resultados apontam que esses movimentos demandam interpretações contra--hegemônicas ao direito estatal em perspectiva crítica e intercultural, fazendo emergir direitos insurgentes não contemplados no ordenamento jurídico estatal brasileiro e re-sistindo em torno de direitos já anteriormente constituídos em comunidades e povos. Como consequência, as lutas expressadas pelos movimentos estudados levam ao reco-nhecimento de novos direitos ou do pluralismo jurídico, bem como da necessidade de se constituir culturas jurídicas que tornem possíveis a visibilização, compreensão e concretização dessas demandas e de outras normatividades, gestadas em resistências e reivindicações por direitos territoriais, compreendidos como inerentes a um meio ambiente saudável, equilibrado e equitativamente justo, os quais podem constituir-se como um campo jurídico mais fértil à construção de equidade territorial e ambiental.

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GESTÃO PÚBLICA E DEMOCRACIA: OS CONSELHOS GESTORES DE SAÚDE DA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN

A Constituição de 1988 instituiu um novo modelo de gestão da saúde, com a organização de um sistema descentralizado, de base municipal, mas articulado de maneira a configurar um sistema único de abrangência nacional. Além da municipalização, esse sistema traz, de inovador, a participação da comunidade como um dos princípios norteadores. Como instâncias de participação popular, são instituídos os Conselhos de Saúde, nas três esferas de governo. Dentro dessa perspectiva, este artigo busca compreender até que ponto os conselhos gestores de saúde dos municípios da Região Metropolitana de Natal-RN têm sido capazes de articular ações cooperativas com vistas ao enfrentamento de problemas comuns da região metropolitana. A expectativa, portanto, é contribuir para o debate da governança metropolitana a partir da sistematização e recorte de uma literatura atualizada associada pesquisa empírica. Os dados foram coletados por meio de fontes primárias (entrevistas com os atores qualificados) e fontes secundárias. Entre as secundárias, destacam-se a pesquisa bibliográfica sobre democracia deliberativa e governança metropolitana e a pesquisa documental nos municípios da Região Metropolitana de Natal, além da análise de documentos oficiais (leis, regimentos e resoluções 2010-2011) e dos dados socioeconômicos, políticos, culturais e institucionais dos municípios.

Palavras-chave: Gestão Pública. Políticas Públicas. Participação Social. Democracia.

Keywords: Public Management. Public Policies. Social Participation. Democracy.

The Constitution of 1988 established a new model of public health care management, the organization of a decentralized system – city-based – but articulated in order to configure a unique free system nationwide. Beyond municipalization, this system brings innovative community participation as one of the guiding principles. Health councils are institutionalized for popular participation in all three spheres of government. Thus, the question that has been investigated is the extent to which health management councils of the metropolitan region of Natal/RN – with all the different municipalities – have been able to articulate cooperative actions to face of common problems? The goal, therefore, is to contribute to the debate on metropolitan governance by the systematization of the current literature and empirical research. Data were collected through primary sources –interviews with qualified actors – and secondary sources that include literature review on deliberative democracy and metropolitan governance, documentary research in the Metropolitan Region of Natal, analysis of official documents – laws, regulations and resolutions from 2010 to 2011– and socioeconomic, political, cultural and institutional data from all municipalities. 

Resumo: Abstract:

Lindijane de Souza Bento Almeida1

1. A autora é Professora Adjunta do Departamento de Políticas Públicas (Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutora em Ciências Sociais pela (UFRN).

Lindijane de Souza Bento Almeida

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1 INTRODUÇÃO

No Brasil, a ampliação da democracia para além dos mecanismos eleitorais teve maior ênfase com o início da redemocratização a partir de fins da década de 1970, quando se assiste a um intenso e complexo processo de revitalização da sociedade civil, de valoriza-ção da cidadania e de fortalecimento das instâncias públicas. Tal processo foi incentiva-do, sobretudo, pela pressão dos movimentos sociais junto ao Estado e desdobrou-se na implementação de políticas públicas descentralizadoras e na criação de instituições, tais como os inúmeros conselhos instituídos por meio de legislação nacional e que abarcam diferentes formas e atores sociais.

Os Conselhos Gestores de Políticas Públicas são inovações institucionais que se estruturam de modo a incorporar representantes da sociedade civil e do Estado, inclu-sive aquelas categorias e grupos sociais que antes estavam excluídos do espaço público institucional e do debate com os representantes do Estado. Arretche (2000) e Côrtes (2005) problematizam a visão de que estes espaços teriam uma relação direta com o aprofundamento da democracia, tentando mostrar que a concretização dos ideais de-mocráticos depende muito mais da natureza das instituições que processam as decisões do que do nível de governo encarregado da gestão das políticas. É sob essa ótica que o presente trabalho transita, tendo como tema central a questão do processo deliberativo nos conselhos e sua relação com o desenho institucional e político.

Entendemos que os diferentes arranjos institucionais influenciam o formato da participação social nos Conselhos e sinalizam alguns elementos importantes para anali-sar o processo deliberativo. As leis de criação dos Conselhos estipulam regras definindo quem pode participar e o tipo de relação entre o conselho e o poder público, criando constrangimentos ou abrindo possibilidades de participação na arena pública. Trata-se de um processo de mediação entre sociedade e Estado para a representação e participa-ção do interesse coletivo. Nesse sentido, torna-se importante conhecer os Conselhos de Saúde no âmbito de sua institucionalização, tornando-se necessário trazer informações acerca de suas atribuições e de sua composição. Para tanto, pretende-se realizar uma análise da dinâmica assumida pelos Conselhos de Saúde, uma vez que a partir dos anos 1990 se consubstanciou a transferência de responsabilidades para os governos (munici-pais e estaduais) em conjunto com a sociedade, buscando maior fiscalização e controle dos gastos públicos com vista uma ação governamental democrática e eficiente.

A Constituição de 1988 instituiu um novo modelo de gestão da saúde, com a or-ganização de um sistema descentralizado, de base municipal, mas articulado de maneira a configurar um sistema único de abrangência nacional. Além da municipalização, esse sistema traz de inovador a participação da comunidade como um dos princípios nortea-dores. Assim, a questão que levantamos para investigação é até que ponto os conselhos gestores de saúde dos municípios da Região Metropolitana de Natal (RMN) têm sido

Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN

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capazes de articular ações de cooperação e de coordenação com vistas ao enfrentamento de problemas comuns da região metropolitana? O presente artigo tem por objetivo ana-lisar comparativamente a articulação dos Conselhos de Saúde dos municípios da RMN2 com vistas ao enfrentamento de problemas comuns da região metropolitana, tentando compreender os limites e as possibilidades de uma gestão compartilhada.

A discussão em torno da democratização do Estado e da sociedade levou os estu-diosos a revisitar a teoria da democracia representativa, no que diz respeito ao papel e ao significado atribuído à participação popular e à importância de se abrir o espaço público à criação de mecanismos participativos. Do ponto de vista conceitual, será utilizado o conceito de democracia deliberativa. Esse conceito servirá como apoio para observar como, após a Constituição de 1988 e no início dos anos 1990, a semelhança no que diz respeito ao grau de organização da sociedade e o nível de interesse dos gestores mu-nicipais em realizar gestões participativas levou os Conselhos Municipais de Saúde da RMN a trajetórias semelhantes.

A categoria de pesquisa selecionada foi o estudo comparativo de casos, que se-gue os passos do método comparativo, descrevendo, explicando e comparando os fenômenos por justaposição e comparação propriamente dita (TRIVIÑOS, 1995). A opção por uma análise comparativa justifica-se como tentativa de superar uma das principais limitações de grande parte dos estudos sobre representação e/ou participa-ção já realizados no país, que tendem a restringir-se ao estudo de casos particulares. Em vista disso, o alcance de seus resultados é limitado, na medida em que dificulta possibilidades de generalização.

Os dados foram coletados por meio de fontes primárias3 (entrevistas com os atores qualificados) e fontes secundárias. Entre as secundárias, destacam-se a pesquisa biblio-gráfica sobre democracia deliberativa e governança metropolitana, e a pesquisa docu-mental nos municípios da RMN: a análise de documentos oficiais (leis, regimentos e resoluções 2010-2011) e dos dados socioeconômicos, políticos, culturais e institucio-nais dos municípios.

Nosso trabalho apresenta formulações de caráter preliminar que são expostas com o intuito de suscitar debate e na expectativa de que ajudem a elucidar as inda-gações sobre a atuação de Conselhos Municipais de Saúde pertencentes a uma região

2. Este artigo resulta da pesquisa denominada “Gestão Pública, Democracia e Participação Social: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN”, que é desenvolvida no Núcleo Natal do INCT – Observatório das Metrópoles. Esta pesquisa, em particular, é realizada em conjunto pelo Núcleo Avançado de Políticas Públicas NAPP/UFRN e por integrantes do Grupo de Pesquisa Estado e Políticas Públicas da UFRN, sendo financiada pelo CNPq (Processo nº 401464/2010-5). Ademais, esta pesquisa foi apresentada no 36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – Grupo de Trabalho Políticas Públicas (GT 29) – realizado em Águas de Lindóia/São Paulo, de 21 a 25 de outubro de 2012.

3. Nos dez Conselhos Municipais de Saúde da Região Metropolitana de Natal, foram realizadas entrevistas. O primeiro contato foi feito junto às Secretárias Executivas, caso esta não existisse ou participasse a pouco tempo do Conselho, outras pessoas foram entrevistadas. A maioria das entrevistas, até o presente momento, foi com os presidentes dos conselhos e com os representantes da sociedade civil.

Lindijane de Souza Bento Almeida

48 Revista Democracia e Participação

metropolitana, no caso a RMN. O artigo está dividido em quatro seções, contando-se com esta introdução. Na seção “A Região Metropolitana de Natal”, nosso objetivo foi dar uma noção do processo de criação dessa região e a sua importância para o desenvolvimento do estado do Rio Grande do Norte. Em seguida, demonstramos um histórico da construção dos Conselhos no que tange ao período de sua criação, à composição dos Conselhos no que se refere à natureza das instituições representa-das – governamentais ou da sociedade civil –, a estrutura de apoio ou condições de funcionamento do conselho, e uma análise das resoluções de 2010 a 2011, cujo ob-jetivo foi verificar se a atuação dos Conselhos Municipais pertencentes a uma região metropolitana se diferencia dos demais Conselhos nas suas deliberações. A seção final faz um balanço das experiências, considerando que a inexistência de uma identidade metropolitana condiciona o modo de funcionamento dos Conselhos Municipais de Saúde dos municípios da RMN a realidade municipal e não a realidade regional. Eles atuam tendo como referência o seu local de moradia, e não o contexto regional. Desse modo, os atores sociais e políticos presentes na arena decisória quando decidem não deliberam sobre problemas que ultrapassam suas fronteiras.

2 A REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL

A Região Metropolitana de Natal (RMN) foi instituída pela Lei Complementar n° 152, de 16 de janeiro de 1997, mediante iniciativa parlamentar da então deputada estadual Fátima Bezerra (PT), e promulgada pelo presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, deputado Leonardo Arruda, na mesma época em que outras o foram em diversos estados. A RMN nasceu, em 1997, com seis municípios: Ceará-Mirim, Extremoz, São Gonçalo do Amarante, Natal, Parnamirim e Macaíba. Cinco anos de-pois, em 2002, acrescentou mais dois: São José de Mipibu e Nísia Floresta. Em 2005, foi agregada a RMN o município de Monte Alegre, e em 2010 foi o município de Vera Cruz que passou a fazer parte da RMN.

A Região Metropolitana de Natal abrigava, em 2010, cerca de 1.351.004 mil pes-soas nos dez municípios que a constitui, dos quais mais de 803 mil pessoas, ou seja, mais de 50% da população residiam em Natal, de acordo com o Censo 2010 (IBGE). No quadro abaixo podemos verificar o crescimento da população dos municípios da Região Metropolitana de Natal, a partir do Censo 1991.

Gestão Pública e Democracia: os conselhos gestores de saúde da Região Metropolitana de Natal-RN

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QUADRO 1População Total da Região Metropolitana de Natal

Municípios 1991 2000 2010

Ceará-Mirim 52.157 62.424 68.141

Extremoz 14.941 19.572 24.569

Macaíba 43.450 54.883 69.467

Monte Alegre 15.871 18.874 20.685

Natal 606.887 712.317 803.739

Nísia Floresta 13.934 19.040 23.784

Parnamirim 63.312 124.690 202.456

São Gonçalo do Amarante 45.461 69.435 87.668

São José de Mipibu 28.151 34.912 39.776

Vera Cruz 7.970 8.522 10.719

Total 892.134 1.124.669 1.351.004

Fonte: IBGE (Censos).

FIGURA 1Região Metropolitana de Natal – Percentual de População Urbana e Rural

Fonte: Censo 2010 (IBGE), elaborado pelo Observatório das Metrópoles, abril/2012.

Lindijane de Souza Bento Almeida

50 Revista Democracia e Participação

A RMN vem passando por significativas transformações nas últimas décadas, com uma presença marcante, da perspectiva econômica e demográfica, no estado e no Nor-deste, e desenvolvendo um processo de transbordamento de Natal na direção de muni-cípios que integram a região metropolitana oficial. Apresentar a estrutura dessa região, seu dinamismo econômico e social, seus problemas e potencialidades não constituem em objetivos desse trabalho.4 A nossa ideia é apresentar um breve perfil da RMN, bus-cando chamar a atenção para os desafios que devem ser enfrentados para uma “gover-nança colaborativa” com vistas às soluções de problemas comuns.

O quadro social da metrópole natalense não é muito diferente do que se observa nas grandes metrópoles do país, embora se possa afirmar que ele vem tendendo a melhorar nos anos recentes. Os dados do IFDM-2009 revelam que houve uma melhora consi-derável nos indicadores sociais do Brasil nas últimas décadas, indicando também que, em 2009, o estado do Rio Grande do Norte apresentava um índice de desenvolvimento municipal de 0,6647, e a sua capital um índice de desenvolvimento municipal de 0,8012.

FIGURA 2Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM-2009) - Municípios da Região Metropolitana de Natal

Fonte: FIRJAN (2009), elaborado pelo Observatório das Metrópoles, abril/ 2012.

4. No entanto, faz-se necessário dizer que, segundo o Plano Estratégico para o Desenvolvimento Sustentável da Região Metropolitana de Natal (2006), o que caracteriza a economia da RMN é o grande peso que na sua estrutura produtiva têm as atividades terciarias, constituídas pelo comércio (varejista e atacadista) e pelas atividades dos serviços, compreendidas tanto pelos serviços públicos quanto pelos privados. Outra parte relevante está constituída pelas atividades industriais, formadas pelos importantes segmentos da extrativa mineral, da indústria de transformação, da construção civil e dos serviços industriais de utilidade pública. O restante da economia está constituída pelas atividades agropecuárias, que englobam a agricultura, a pecuária e a atividade extrativa vegetal.

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A rigor, são incipientes as iniciativas de governança metropolitana pautada na coo-peração entre os diferentes municípios que integram a RMN. O que existe é uma legis-lação que apresenta uma situação política reveladora das dificuldades de sua implemen-tação. A RMN ostenta problemas de inconsistência em sua estrutura organizacional e nos instrumentos forjados para solucionar as questões que emergem na busca de inte-gração dos entes públicos e privados. Mais grave ainda são os problemas de articulação política entre os municípios, dada a diversidade de interesses que permeia o mundo das relações políticas e administrativas no Brasil.

No âmbito dos Consórcios Intermunicipais, os municípios da RMN não apre-sentam nenhum nível de participação. Em 2009, segundo o IBGE, na área da saúde não existia nenhum tipo de consórcio público, o que atesta a frágil articulação entre os municípios para o encaminhamento de questões comuns.

Um ponto que merece destaque na legislação é a criação do Conselho de Desen-volvimento Metropolitano de Natal, vinculado à Secretaria de Planejamento Estadual. O CDMN é de caráter consultivo e deliberativo, é composto do presidente, o Secre-tário de Planejamento Estadual, os prefeitos dos municípios da RMN e uma cadeira ocupada pelo Parlamento Comum da RMN, além de contar com a abertura regimental à participação de entidades da sociedade civil organizada na contribuição de elaboração de atividades como projetos, programas e estudos, cabendo à Assembleia Legislativa do Estado e às câmaras dos municípios e de Natal a convocação destas.

A criação do CDMN revestiu-se da maior importância haja vista ser de sua competência a gestão metropolitana, dada a sua condição de conselho deliberativo. Contudo, até o presente as ações do Conselho foram limitadas a debates que somen-te reconhecem a necessidade conjunta das ações referentes aos problemas da RMN debitando ao governo estadual as dificuldades para o avanço das ações cooperadas. Apesar de surgir como uma forma positiva de gestão metropolitana, o Conselho teve até hoje uma atuação muito limitada e reduzida, na medida em que falta uma visão mais ampla e compartilhada para solução dos problemas metropolitanos, tanto por parte dos governos municipais quanto do governo estadual. A ausência de operaciona-lização de mecanismos institucionais com visão metropolitana, de articulação política com interesses metropolitanos, faz com que a chamada RMN não exista realmente no que tange ao aspecto da gestão de políticas públicas, as quais passam a ser elaboradas olhando a realidade municipal e não regional.

Permanece uma grande lacuna no que se refere às experiências de gestão com-partilhada dos problemas de interesse comum. Não existe uma implementação efe-tiva da legislação de modo a proporcionar a RMN uma gestão metropolitana aos moldes de outras existentes no Nordeste, ampliando as possibilidades de resolução de problemas, otimizando recursos e realizando um planejamento compatível com as necessidades da área em questão.

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Entre as dificuldades enfrentadas na implementação da RMN, observa-se, de início, a inexistência de uma identidade metropolitana entre os dez municípios que dela fazem parte. Prevalece ainda no governo estadual e entre os prefeitos uma visão tradicional, de municipalismo autárquico, essencialmente local, que dificulta ou se opõe à visão regional, podemos citar como exemplo a ideia do Parlamento Comum que, no início, revelou-se uma instância muito dinâmica na solução dos problemas metropolitanos em Natal, mas que não avançou, uma vez que o seu papel era tão so-mente organizar o debate e a discussão de uma agenda metropolitana que seria enca-minhada às instâncias competentes para encaminhamento e solução. A sua importân-cia consiste no seu relevante papel político na construção de um pacto territorial. Nos últimos anos, esse espaço de debate deixou de atuar e as relações intergovernamentais com vistas à realização de ações cooperativas não é algo aceito com facilidades pelos governos municipais.

A cooperação entre entes políticos integrantes da Federação tornou-se uma exi-gência constitucional institucionalizada no Brasil. Fortaleceu-se o federalismo coope-rativo, impondo-se uma articulação permanente entre União, estados e municípios, nem sempre praticada. No nível municipal, o que se observa é a ocorrência de uma “autonomia dependente” das instâncias superiores. Logo, no Brasil, a integração dos níveis de governo far-se-á por meio de negociação política. No nível metropolitano, essa negociação política pode gerar cooperação, uma vez que problemas comuns de-vem ser resolvidos no plano da política, dada a ausência de uma esfera de governo metropolitana. Dessa forma, a existência de um continuado aprendizado político, ate-nuando a competição entre municípios e fortalecendo a visão regional, aparece como extremamente necessário.

A globalização do mundo e a crise socioeconômica vêm induzindo novas mo-dalidades de ação política, com vistas a melhorar as condições de vida da população, uma vez que hoje a pobreza, o aumento do desemprego, a precarização do trabalho, a criminalidade, a violência etc. estão presentes de uma forma ainda mais ampla e preocupante nas sociedades. Diante dessa realidade, iniciou-se um processo de mudanças, tanto na esfera cultural quanto na esfera política, por meio da possibi-lidade de representação e de negociação entre os vários segmentos do Estado e da sociedade. Hoje, vivemos uma expansão da exigência democrática, com o estímulo à participação e ao debate explícito.

3 DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL

No século XX, a consolidação da democracia foi o fenômeno político mais marcante, tendo essa forma de governo se tornado a questão central na teoria política contempo-rânea. O debate em torno da democracia tem se modificado com o tempo, e foi com Alexis de Tocqueville, na primeira metade do século XIX, que uma nova avaliação em

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relação à democracia passou a vigorar no debate político nas sociedades capitalistas. Nesse período, a democracia já estava a ponto de tornar-se a forma hegemônica de organização política, tanto na Europa como nos Estados Unidos, mas foi só no século XX que ocorreu, de fato, uma expansão global da democracia como forma de governo.

No entanto ocorreram mudanças de fundamental importância no significado e na prática da democracia e houve um forte estreitamento do conceito de “soberania popu-lar”, para a existência de um consenso crescente, que avaliava positivamente formas não participativas de gestão, assim como uma rejeição dos modelos participativos, devido ao seu impacto não institucional. A concepção de Jean-Jacques Rousseau sobre a ideia de soberania popular não se tornou a forma hegemônica de entendimento da soberania durante o século XX, o que tem sido justificado pela emergência de formas complexas de administração estatal, que possibilitaram a consolidação de burocracias especializa-das, assim como hierárquicas, no interior do Estado moderno.

A teoria da “democracia competitiva” de Schumpeter foi amplamente dominante até os anos 1960, disseminando-se no senso comum, assim como influenciando vários teóricos. Entre aqueles que foram influenciados e passaram a defender as suas teses, mesmo que lhes acrescentando algumas mudanças, destacam-se Giovanni Sartori, Ro-bert Dahl, Anthony Downs e Sammuel Huntington. A partir da contribuição desses autores, nas sociedades capitalistas contemporâneas, mais especificamente nos países centrais, consolidou-se a concepção de democracia que se tornou dominante, a da de-mocracia representativa-liberal. Com esse modelo de democracia, procurou-se estabili-zar a tensão entre democracia e capitalismo.

A prioridade conferida à acumulação de capital e à limitação da participação ci-dadã (individual e coletiva), pensada com o propósito de não “sobrecarregar” demais o Estado democrático, com demandas sociais que poderiam gerar uma crise de governa-bilidade, constituíram-se nos principais traços da teoria da democracia representativa. Nesse modelo, a participação no processo de tomada de decisão está restrita à “elite” eleita pela população no processo eleitoral, a qual tem por função dirigir o processo político, uma vez que aos cidadãos eleitores cabe apenas o ato de votar periodicamente naqueles que se apresentam no mercado político, entre os competidores, como os mais qualificados para governar. Essa concepção, além de limitar a democracia ao processo eleitoral, exalta a apatia política como uma demonstração da satisfação do cidadão com a democracia. Além disso, a apatia política é considerada um fator importante tanto para impedir o acirramento das diferenças dentro da sociedade quanto para diminuir as pressões sobre o Estado, uma vez que o excesso de participação aumenta os conflitos sociais e pode gerar um excesso de demandas, a que o Estado não seria capaz de respon-der. Havia uma tendência, dos anos 1940 até a década de 1970, a considerar as crises de governabilidade como efeitos diretos do excesso de demandas, via participação política dos cidadãos, diretamente voltadas para o Estado.

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Dahl (1956), em sua teoria da democracia como poliarquia, “o governo das múlti-plas minorias”, e Sartori (1962), embora tenham dado uma ênfase maior à estabilidade do sistema democrático, partem do ataque que Schumpeter fez à teoria “clássica” da democracia e da sua tese de que a participação limitada e a apatia política têm um papel positivo num sistema de governo democrático, na medida em que ajudam a manter a governabilidade do sistema. Daí por que a teoria da democracia representativa não é suficiente para explicar os apelos por uma maior participação da sociedade no processo de tomada de decisões públicas ora vigentes em nossa realidade nem para explicar os bons resultados alcançados pelas novas formas de participação da sociedade que, nos últimos anos, vêm se consolidando.

Partimos do princípio de que as teorias que têm uma forte influência das teses schumpeterianas não conseguem explicar as novas condições de organização dos Esta-dos democráticos na atual conjuntura, no que tange à coexistência das formas de repre-sentação e participação. A partir da segunda metade do século XX, foi o debate acerca dos limites desse tipo de democracia que se tornou dominante. O debate em relação à democracia, nesse período, mudou os termos do debate democrático que se configurou no final das duas guerras mundiais, uma vez que a democracia, ao se expandir pelo mundo inteiro, começando no sul da Europa nos anos 1970 e chegando à América Latina nos anos 1980, e ao realizar novas experiências de gestão democrática, tornou ultrapassadas as análises até então existentes.

Os processos de redemocratização, ao inserir novos atores na cena política, ao aumentar a participação da sociedade — o que se revelou, principalmente, por meio da participação dos movimentos sociais —, instaurou uma disputa pelo significado da democracia e pela constituição de uma nova forma de fazer política. A partir dessa realidade, recolocou-se na agenda do debate democrático a questão da relação entre procedimento e participação da sociedade civil no interior do processo decisório.

Uma rápida incursão na literatura é capaz de demonstrar que a ideia de compatibi-lizar a democracia representativa e a participativa surge como uma alternativa para a crise que, nas últimas décadas, vem sofrendo a democracia. Os anos 1990 trouxeram à tona o apelo à participação como recurso fundante de um novo modelo de democracia, como mecanismo capaz de complementar a democracia liberal-representativa, uma vez que estabeleceria um novo padrão de relação Estado-sociedade, o qual seria capaz de apontar possíveis soluções para a profunda crise vivida pelo Estado capitalista contemporâneo. A ideia é que a democracia participativa não substitui a democracia do governo represen-tativo, mas serve como acessório para a manutenção do Estado democrático.

Os teóricos do modelo de democracia participativa, o qual ressurge na Europa durante os anos 1960, advogam a tese de que uma maior participação da sociedade na definição das políticas governamentais é de extrema importância, na medida em que possibilita maior responsabilidade do Estado perante os eleitores. Esses teóricos

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defendem a necessidade da participação cidadã no processo de tomada de decisões das políticas públicas, assim como a criação de canais de controle da sociedade sobre o Es-tado para além das instituições centrais da democracia liberal, como partidos políticos, representantes políticos e eleições periódicas.

Pateman (1992), em seu livro Participação e teoria democrática, chama a atenção para o fato de que a participação gera atitudes de cooperação, integração e comprome-timento com as decisões. Destaca o sentido educativo da participação, a qual, como prática educativa, forma cidadãos voltados para os interesses coletivos e para as questões da política. Os defensores da democracia participativa inovam com sua ênfase na am-pliação dos espaços de atuação dos indivíduos para além da escolha dos governantes e ao destacar o caráter pedagógico da participação.

Nessa teoria, a participação constitui, de um lado, uma forma de proteger os in-teresses privados e de assegurar um bom desempenho governamental, como na teoria da democracia contemporânea; de outro, ela tem uma função educativa, na medida em que, ao participar do processo decisório, os cidadãos aprendem a distinguir entre seus próprios interesses privados e o interesse público. Na teoria da Democracia Participati-va, além da função educativa, a participação tem duas outras funções: permitir que as decisões coletivas sejam aceitas mais facilmente pelos cidadãos, e promover a integração do cidadão à sua comunidade.

Os teóricos da democracia participativa defendem a tese de que há uma inter-re-lação entre os indivíduos e as instituições, uma vez que a participação tem uma função educativa e os indivíduos são afetados psicologicamente ao participarem do processo de tomada de decisão, o que só é possível a partir do momento em que eles passam a tomar parte nos assuntos públicos e a levar em consideração o interesse público. Enfim, essa teoria assinala a importância da experiência nos processos participativos. A ideia é que a participação tende a aumentar na medida em que o indivíduo participa, porque ela se constitui num processo de socialização, que faz com que quanto mais as pessoas participem, mais tendam a participar.

Em outras palavras, é participando que o indivíduo se habilita à participação, no sentido pleno da palavra, que inclui o fato de tomar parte e ter parte no contexto onde estão inseridos. Ou seja: “quanto mais os indivíduos participam, melhor capacitados eles se tornam para fazê-lo” (PATEMAN, 1992, p. 61).

Na democracia participativa há, portanto, uma exigência da participação dos cidadãos no processo de tomada de decisão em uma sociedade democrática, porque ela tem um cará-ter pedagógico no aprendizado das relações democráticas, contribuindo para a politização dos cidadãos, o que é importante para eles exercerem um controle sobre os governantes.

A democracia participativa se opõe às ideias defendidas pela teoria elitista da democracia, que concebe essa forma de governo como um mecanismo de escolha dos

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representantes políticos, equipara a dinâmica política ao jogo do mercado, reduz a participação dos cidadãos ao ato de votar em eleições periódicas e livres, e conside-ra a participação social um risco à estabilidade de qualquer governo democrático. No entanto foi essa forma de democracia, a liberal-representativa, que se expandiu globalmente, impondo a supervalorização dos mecanismos de representação sobre os mecanismos de participação da sociedade. Em contraposição, a democracia participa-tiva é um modelo de democracia que incorpora e defende a participação da sociedade civil no interior dos Estados democráticos, que busca restabelecer o vínculo entre de-mocracia e cidadania ativa.

Questionando os limites da democracia representativa, os teóricos da democracia participativa demonstram que a participação dos indivíduos nos diversos movimentos sociais, em várias partes do mundo, vem chamando a atenção para o fato de que a ação política dos cidadãos pode, de fato, contribuir para a democratização da cultura política bem como para a reinvenção dos padrões de relação Estado-sociedade. Daí por que inúmeros estudiosos da política, no Brasil e no mundo, ressaltam a necessidade de compatibilizar a democracia representativa e a participativa.

Nas últimas décadas, em nível mundial, presenciaram-se esforços notáveis de construção de novos modelos de democracia, mais republicanos e igualitários, que co-locaram em xeque o modelo reduzido de democracia representativa. Vários estudiosos do tema procuram defender uma forma de democracia mais autêntica e participativa — ou seja, um novo modelo, que tenha um conteúdo novo em termos de governo e que seja ancorado na solidariedade, na cooperação, na confiança —, embora encon-trem inúmeras dificuldades.

Nesse contexto, abriu-se um campo vasto de análises sobre o papel que a sociedade deveria ter no processo de consolidação da democracia. Nos últimos anos, especialmen-te nos Estados Unidos, a visão participativa da democracia, que emergiu nos anos 1960 vem sendo atualizada pelas teorias da democracia deliberativa (deliberative democracy) e da democracia associativa (associative democracy), que se fundamentam principalmente nas contribuições mais recentes de Habermas (1999), Cohen (1999), Bohman (1999), Cohen e Rogers (1995) e Hirst (1994), entre outros. Aqui, faz-se necessário chamar a atenção para o fato de que o que há em comum a todos esses estudos é a ideia da incor-poração do cidadão à política.

A teoria da democracia deliberativa tem como base de sustentação a ideia de que a legitimidade das decisões e ações políticas deriva da deliberação pública de coletividades de cidadãos livres e iguais. Um ponto central nesse modelo diz respeito à questão de tornar mais substantiva a democracia, no sentido de que esta signifique a abertura de espaços reais de poder de decisão para a sociedade. Dessa forma, o conteúdo desse tipo de democracia seria uma ampliação do espaço público, com a possibilidade de discussão aberta acerca das políticas públicas, e a democratização

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do processo decisório. A democracia deliberativa caracteriza-se, assim, como um processo público e coletivo de deliberação política ancorado na efetiva participação dos cidadãos nas definições relativas a assuntos de interesse público. Ela parte do princípio de que as decisões devem ser fruto de um debate público, de discussões coletivas pautadas no bem comum, as quais se devem realizar em instituições sociais e políticas criadas para o exercício efetivo dessa autoridade coletiva.

Essa vertente mais contemporânea da teoria democrática tem defendido a rele-vância do componente argumentativo, discursivo, no interior do processo delibera-tivo, uma vez que considera a ampliação do espaço público, para a participação dos setores organizados da sociedade, um elemento de fundamental importância para a estabilidade da democracia. A democracia deliberativa, da forma como a entendemos, ultrapassa a dimensão do voto e se transfere para o campo do debate político aberto entre cidadãos livres e iguais.

Em linhas gerais, a democracia deliberativa, como construção de processos de-cisórios alternativos à configuração dos mecanismos tradicionais de decisão política, está ancorada na ideia de que a participação efetiva, tanto da sociedade civil quanto do Estado, é a condição fundamental para se realizarem mudanças que possibilitem, na prática, a realização de um processo deliberativo que tenha como base de sustentação a ampliação e a qualificação da participação. Os teóricos desse modelo de democracia ressaltam a necessidade de se construir um conjunto de mecanismos organizativos que possibilitem a efetivação desse ideal democrático. A democracia deliberativa exige a formação de instituições adequadas à participação social, que, além de garantirem a abertura da participação, atuem no sentido da redução e/ou eliminação dos obstáculos a uma participação ampla, efetiva e legítima da sociedade civil nos processos decisórios. Como frisa Lüchmann (2002, p. 65),

a democracia deliberativa configura-se, portanto, como um processo de discussão e decisão pública que articula Estado e sociedade através de um formato institucional que, por sua vez, torna esta deliberação possível. Requer, portanto, uma institucionalidade que, feita e refeita através do diálogo incessante entre o público deliberante, seja um antídoto aos constantes riscos dos processos participativos, tais como a manipulação, a cooptação e o controle político e administrativo (LÜCHMANN, 2002, p. 65).

Desse modo, as instituições exercem um papel fundamental, uma vez que têm como função criar e garantir as condições de igualdade, liberdade, autonomia e forma-ção do interesse comum. De acordo com Cohen (1999, p. 79),

ao elaborar o procedimento deliberativo ideal nas instituições, procuramos, entre outras coisas, escolher instituições que focalizem o debate político no bem-comum, que formem a identidade e os interesses dos cidadãos de

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forma a contribuir para uma consciência de bem-comum e prover condições favoráveis para o exercício de poderes deliberativos necessários para se ter autonomia” (COHEN, 1999, p. 79, tradução nossa).5

Partimos do princípio de que a democracia deliberativa, uma vez que é um modelo de exercício do poder político ancorado no debate público e coletivo entre cidadãos livres e iguais, constitui-se num ideal democrático que, ao contrário da democracia liberal-representativa, defende a tese de que a legitimidade das decisões políticas advém de processos de discussão aberta, que, orientados pelos princípios da inclusão, do plu-ralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, podem realizar mudanças significativas na lógica do poder tradicional.

Portanto os teóricos da democracia deliberativa advogam a tese de que uma par-ticipação ampla deve ser considerada como um requisito necessário a qualquer Estado democrático e que deve ser incorporada como uma participação que tem como aspecto central a questão da partilha do poder de governar, uma vez que melhora os resultados das políticas e questiona a incompatibilidade entre participação e eficiência, presente no modelo de democracia liberal-representativa. Uma das principais inovações dessa forma de democracia é recuperar a relação positiva entre participação e eficiência, as quais são tomadas como elementos de significativa importância para a consolidação da democracia.

Isso porque, ao abrir o espaço de tomada de decisão, ao ampliar a participação, os cidadãos levam para as instâncias decisórias informações de fundamental importância para a definição dos problemas, na medida em que eles possuem um conhecimento mais íntimo da realidade local. Isso não significa dizer que toda e qualquer experiência participativa será capaz de produzir, como resultados, políticas públicas mais eficazes e justas, mas sim apenas aquela experiência que promova e resulte de uma participação de fato pública e democrática.

No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, as propostas de descentralização das ações governamentais começaram a efetivar-se, ressaltando a significativa importância da revalorização do papel dos governos municipais e as potencialidades da participação da sociedade em nível local, no que diz respeito à formulação e implementação das políticas públicas, e, principalmente, no que tange à fiscalização do uso dos recursos públicos.

A promulgação da Constituição brasileira insere-se em uma conjuntura so-cial e política favorável à mobilização e à participação popular e, nesse contex-to, a esfera local de governo é revalorizada politicamente e colocada como o es-paço onde a dimensão educativa da participação deve realizar-se. Os municípios

5. “in seeking to embody the ideal deliberative procedure in institutions, we seek, inter alia, to design institutions that focus political debate on the common good, that shape the identity and interests of citizens in ways that contribute to an attachment to the common good, and that provide the favorable conditions for the exercise of deliberative powers that are required for autonomy” (COHEN, 1999, p. 79).

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brasileiros foram fortalecidos do ponto de vista das relações intergovernamentais. Ampliou-se a sua participação no jogo político bem como a sua capacidade financei-ra, ainda que tenham aumentado as suas competências. No entanto, o novo desenho constitucional não levou em consideração a heterogeneidade dos municípios brasileiros. A realidade da maioria dos governos municipais era a fraca capacidade de arrecadação, a falta de organização da sociedade e a inexistência de uma base institucional que favoreces-se o novo desenho. As mudanças constitucionais, ao outorgarem maior poder e respon-sabilidade aos municípios, passam a exigir dessa esfera de governo maior capacidade para efetuá-las, mas faltam iniciativas para dotar as administrações municipais da possibilidade efetiva para desempenhar a contento o seu papel.

Como ressalta Rofman (1990, p. 17), a descentralização é um processo muito amplo, que “implica reconhecer a outros organismos existentes, ou a serem criados, atribuições totais para desempenhar funções antes reservadas ao nível central, com ple-na autonomia jurídica, funcional e financeira”. A descentralização deve, além de dotar de capacidade plena de gestão o município, incluir a ampliação da base do sistema de tomada de decisão e aproximar a função pública dos cidadãos, uma vez que não se constitui na simples transferência de competências, mas supõe, também, a distribuição do poder decisório entre o governo municipal e a sociedade.

O objetivo dos teóricos das democracias deliberativa e associativa é superar os limites do modelo de democracia liberal, enfatizando, entre outros pontos: a impor-tância de se resgatar a ideia de soberania popular, no sentido de um reconhecimento de que cabe aos cidadãos decidir acerca das questões de interesse coletivo; a relevância do caráter dialógico dos espaços públicos como formadores do interesse público; o reco-nhecimento do pluralismo cultural, das desigualdades sociais e da complexidade social; o papel do Estado e dos partidos políticos na criação de esferas públicas deliberativas; e a implementação das decisões advindas de processos deliberativos, enfatizando-se a importância do formato e da dinâmica institucional para a consolidação desse tipo de democracia. Para isso, os defensores dessas teorias incorporam elementos do modelo de democracia participativa, ancorados no princípio da ampliação da política para além dos limites impostos pela regra do sufrágio universal.

Os teóricos que formulam a concepção de democracia associativa chamam a aten-ção para o papel das associações, ou melhor, para a sua função educativa num governo democrático. Mesmo apresentando os perigos que as associações podem representar para o desenvolvimento de uma ordem democrática, tais como privilegiar os interesses específicos de seus membros, essa forma de democracia

focaliza um ideal igualitário de sociedade. A ideia central desse ideal é que os membros de uma sociedade devem ser tratados como iguais ao fixarem os termos básicos de cooperação social — incluindo as formas nas quais decisões coletivas autoritárias são tomadas, as formas como os recursos são

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produzidos e distribuídos e as formas como a vida social é mais amplamente organizada. Os principais compromissos desse ideal dizem respeito a condições justas para participação dos cidadãos no debate político e público, em uma equilibrada distribuição de recursos, e à proteção da escolha individual (COHEN; ROGER, 1995, p. 34, tradução nossa).6

Os teóricos da democracia associativa partem do princípio de que as associações ou grupos contribuem para o desenvolvimento da democracia na medida em que exercem quatro funções, a saber:

uma informação, uma representação igualitária, uma educação cidadã e um governo alternativo. [...] a participação em tais associações pode ajudar os cidadãos a desenvolverem competência, autoconfiança e uma gama maior de interesses que poderão ser adquiridos em uma sociedade política mais fragmentada (COHEN; ROGER, 1995, p. 43, tradução nossa).7

Portanto a ideia principal defendida pela teoria da democracia associativa é que as associações são de significativa importância para um governo democrático, porque elas são espaços de participação que, ao serem direcionados para o bem comum, contribuem para o desenvolvimento da democracia, uma vez que exercem um poder educativo sobre os cidadãos que delas participam, os quais passam a adquirir uma consciência cívica.

A incorporação desse referencial que recupera a dimensão da participação cidadã como elemento necessário ao processo de tomada de decisão, mesmo em se tratando de uma realidade marcada pela complexidade, pluralidade, e pelas desigualdades sociais, completa aqui a perspectiva de uma análise da democracia que pretende ressaltar a im-portância de tratar-se a democracia não como regime político, mas como um modelo de tomada de decisão, de entender-se como as decisões são tomadas no processo decisório, de quem decide os rumos e destinos das políticas públicas e de qual a democracia que queremos ter hoje consolidada em nosso país.

O processo de redemocratização vem levantando, nas últimas décadas, um ques-tionamento em relação à posição das elites, as quais atuam dentro de uma versão bastante ultrapassada de democracia. Por outro lado, com o crescimento das cidades,

6. Draws on an egalitarian ideal of social association. The core of that ideal is that the members of a society ought to be treated as equals in fixing the basic terms of social cooperation — including the ways that authoritative collective decisions are made, the ways that resources are produced and distributed, and the ways that social life more broadly is organized. The substantive commitments of the ideal include concerns about fair conditions for citizen participation in politics and robust public debate, an equitable distribution of resources and the protection of individual choice (COHEN; ROGERS, 1995, p. 34)

7. A information, a equalizing representation, a citizen education e a alternative governance. [...] “participation in them can help citizens develop competence, self-confidence and a broader set of interests than they would acquire in a more fragmented political society” (COHEN; ROGERS, 1995, p. 43).

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surgiram projetos alternativos de gestão, os quais enfatizam a necessidade da participa-ção da sociedade no interior do Estado, por causa dos vários problemas que se tinham avolumado ao longo dos anos.

Santos (2002) chama a atenção, em seu estudo, para as experiências de democracia participativa desenvolvidas nos últimos anos em países de economia periférica, ressal-tando o fato de que não há, no mundo como um todo, um só modelo de democracia, da mesma forma que não há uma só globalização, a neoliberal, como se pensava durante a maior parte do século XX.

Do ponto de vista da gestão democrática, esse autor adverte para o fato de que está surgindo uma nova forma de fazer política, na periferia desse sistema — na América Latina, na África do Sul, na Índia —, como resultado da insatisfação da sociedade com o funcionamento do modelo hegemônico de democracia liberal, em que as decisões acerca das políticas públicas, por exemplo, tomadas pela burocracia não estavam corres-pondendo às expectativas dos cidadãos, não estavam sendo eficazes, no sentido de resol-verem os problemas da sociedade, o que tem por explicação a distância dos burocratas dos problemas que afetam a sociedade. Daí a defesa da incorporação da comunidade no processo de tomada de decisões, porque esta conhece os problemas de uma forma mais ampla e pode tornar mais democráticas e eficazes as políticas públicas.

O cerne da nossa discussão diz respeito, justamente, às mudanças nas formas de gestão pública, mudanças essas que enfatizam a necessidade da participação da sociedade para além dos processos eleitorais e têm como consequência o abandono da ideia de que participação social e representação são incompatíveis. Nos últimos anos, a busca da compatibilização entre democracia representativa e democracia par-ticipativa, como um meio de enfrentar a crise do Estado e da democracia, é um fato ressaltado por muitos estudiosos da política, e várias experiências de gestão participa-tiva têm esse objetivo.

Como compatibilizar o método democrático com uma maior participação social nas decisões políticas é a questão central neste início de século, já que a teoria da demo-cracia representativa não é suficiente para explicar as inovações introduzidas na gestão pública, no sentido da ampliação dos espaços públicos, nem os seus apelos de amplia-ção da participação da sociedade civil no interior dos processos deliberativos e as novas condições de organização dos Estados democráticos, no que se refere à coexistência das formas de representação e participação.

As análises recentes sobre a democracia vêm alterando os seus enfoques, na medida em que fazem uma releitura do papel e das funções da participação social, enfatizando as questões da descentralização, do papel da comunidade e, acima de tudo, da impor-tância de mecanismos de gestão de políticas públicas de caráter democrático, participa-tivo, para um bom desempenho governamental.

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4 OS CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS

No Brasil, a Constituição, promulgada em 1988, definiu em termos legais um novo modelo de gestão, que supõe a abertura do processo decisório à sociedade organi-zada para tornar mais eficiente a prestação dos serviços públicos, assim como dá respos-tas eficazes ao quadro de carências locais. Para tanto, implantam-se novos procedimen-tos de formulação/implementação de políticas públicas de natureza social. A partir dos anos 1990, o desenho de todas as políticas sociais inclui a constituição de Conselhos Gestores, os quais significam o estabelecimento de novas relações entre governo e socie-dade, o que supõe a distribuição do poder de decisão entre ambos. Isso, porque ocorre uma ampliação da base do sistema de tomada de decisões, que passa a incorporar a sociedade organizada, com a criação dos mecanismos de participação.

A descentralização favoreceu a consolidação dos Conselhos Municipais como instân-cias responsáveis pela decisão sobre os recursos transferidos da esfera federal para a muni-cipal. No Brasil, com a implementação de políticas descentralizadoras, os municípios têm participado crescentemente de decisões sobre políticas públicas e os Conselhos Municipais, vinculados à gestão, passam a se envolver no processo de tomada de decisão; não estamos dizendo em que medida ou de que modo que eles participam das decisões, uma vez que sabemos que existe uma variação no nível de envolvimento dos diferentes representantes.

Os Conselhos Municipais e estaduais são definidos como “órgãos montados num sistema paritário de representação governo/sociedade, que teriam o papel de articular e processar os diferentes interesses e transformá-los em propostas de programas a serem incluídos na agenda local” (ANDRADE, 2009, p. 8). Isso significa dizer que esses meca-nismos de participação na gestão pública devem funcionar como “instituições mistas, for-madas em parte por representantes do Estado, em parte por representantes da sociedade civil, com poderes consultivos e/ou deliberativos, que reúnem, a um só tempo, elementos de democracia representativa e da democracia direta” (AVRITZER, 2000, p. 18).

No Brasil, a implantação dos conselhos gestores foi iniciada na área da saúde a partir da promulgação da lei que regulamentou a Reforma Sanitária em 1990, e gra-dualmente se estendeu para as outras políticas sociais. É possível considerar que não há mais dúvidas quanto à importância de instalação de Conselhos Municipais de Saúde como fórum participativo no nível municipal de governo. Apesar disso, seu potencial como espaço de participação e deliberação dos cidadãos nas decisões relacionadas com as políticas públicas da área de saúde é utilizado de forma incipiente na maioria dos pe-quenos municípios, principalmente no que se refere aos representantes dos segmentos de usuários e trabalhadores da área.

No contexto de uma região metropolitana, a existência de uma identidade metro-politana pode otimizar os recursos existentes para o aprimoramento de ações efetivas de participação e controle social. Verificamos a partir de uma análise dos Conselhos de

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Saúde da RMN as limitações que devem ser superadas, inclusive a falta de conhecimen-to acerca da inclusão do município na Região Metropolitana. A ausência de uma iden-tidade metropolitana por parte dos gestores municipais e dos cidadãos marca a falta de debate e definições sobre o tema da governança metropolitana nos Conselhos de Saúde dessa região, o que dá visibilidade a pouca importância que é dada a criação da RMN, expondo suas fragilidades e limitações que devem ser superadas para que problemas comuns sejam superados e a população possa ser a grande beneficiada.

No estado do RN, a tradição autoritária e centralizadora do exercício do poder permanece dificultando a adoção de medidas mais democráticas por parte do Executivo municipal, e a ausência de uma identidade metropolitana e de uma cultura política de-mocrática dificulta a realização de ações cooperativas com vistas à solução de problemas comuns. No Brasil contemporâneo, para atender as exigências constitucionais a gestão pública precisa contar com cidadãos capazes de produzir novas atitudes políticas, ou seja, com uma sociedade civil organizada, que apresente um bom estoque de capital social. Todos os Conselhos de Saúde da RMN não implicaram a cessão de um espaço decisório, por parte do Estado, em favor de uma forma ampliada e pública de participa-ção, elemento fundamental na concepção de democracia deliberativa.

Os depoimentos dos representantes da sociedade civil no Conselho Municipal de Saúde chamaram a atenção para o fato de que esses Conselhos foram criados para aten-der a uma exigência presente na Constituição federal, uma vez que são partes integrantes do arcabouço jurídico-institucional do setor saúde em todas as esferas e níveis. Consta-tamos, em primeiro lugar, que a criação dos fóruns foi diretamente estimulada pelas leis e normas federais que estabeleceram as regras gerais de composição e tipo de função no contexto dos respectivos sistemas de administração pública em que se inseriam.

Na área de saúde, essas normas legais e administrativas remontam a 1990 – Lei nº 8.142 (BRASIL, 1990) – e 1993 – Normas Operacionais Básicas do Ministério da Saúde de 1993 e 1996 (BRASIL, 1993; 1996). Essas normas vieram a estimular a municipalização da gestão dos serviços de saúde financiados com recursos públicos. A partir de então, os municípios poderiam passar a gerir a atenção básica – municipali-zação plena da atenção básica – ou todos os serviços de saúde financiados com recursos públicos – municipalização plena do sistema de saúde. Independentemente do tipo de enquadramento, praticamente todos os municípios do país aderiam a algum dos tipos de municipalização e neles foram criados Conselhos Municipais de Saúde.8 Essa rigidez na montagem do arcabouço institucional muitas vezes dificulta a realização do ideal democrático de ampliação da esfera pública, propiciada pela participação.

8. “O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo” (BRASIL, 1990, art. 1).

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No que se refere à ordem cronológica de criação dos Conselhos, a pesquisa em an-damento verificou que os Conselhos foram criados a partir dos anos 1990, com exceção do CMS de Natal (1986), quando se passa a exigir legalmente a sua existência para a execução das políticas sociais. A criação dos Conselhos de Saúde da RMN concentra-se no período imediatamente posterior à normatização legal ou administrativa que vin-cula a constituição de conselho à execução de novas funções e transferência de recursos financeiros para a esfera municipal da administração pública.

No que diz respeito à composição dos Conselhos de Saúde da RMN, verificamos fenômeno similar. A Lei nº 8.142 estabelece que os Conselhos de Saúde devem ter o número de usuários paritário em relação ao conjunto dos demais segmentos sociais re-presentados – gestores, prestadores e trabalhadores e profissionais de saúde. De acordo com as normas legais, os Conselhos devem deliberar sobre a política de saúde no nível correspondente da administração pública e metade de sua composição é formada por representantes de usuários, enquanto a outra metade é composta por representantes do governo, prestadores de serviço e profissionais de saúde. Os Conselhos Municipais da RMN foram formados respeitando, em grande parte, as diretrizes legais. O arcabouço institucional da área da Saúde está influindo na conformação do conselho municipal de saúde. Isso foi observado tanto no que tange ao período de criação dos fóruns, quanto no que se refere a sua composição.

Portanto, a análise dos Conselhos da RMN demonstra que os CMS são criados quase imediatamente após a legislação ou quando as normas administrativas assim o estabelecerem, e que a proporção de conselheiros governamentais e da sociedade civil obedeceu, em linhas gerais, às normas de cada área. Assim, mesmo reconhecendo que outros fatores e que os atores sociais podem ser igualmente, ou, em certos casos, até mais importantes que o arcabouço histórico-institucional, não há dúvida de que ele vem sendo seguido e condicionando as linhas gerais de atuação dos Conselhos Muni-cipais De Saúde na RMN. Os Conselhos possuem números diferentes em termos de membros, porém, distribuem seus assentos entre os representantes de modo parecido, respeitando a paridade constitucional. A representação dos usuários possui uma pro-porção de assentos semelhantes (50%), da mesma forma a representação do governo e dos prestadores de serviço (25%) e profissionais de saúde e trabalhadores têm a mesma proporção de representação (25%).

É importante chamar a atenção para o fato de que, na maioria dos municípios estudados, verificamos que os Conselhos de Saúde não se apresentam como espaços de tomada de decisões que contam com a participação efetiva dos diferentes segmentos da sociedade civil organizada. Em Natal, por exemplo, hoje o CMS conta com 16 conselhei-ros titulares, mas segundo seu regimento interno deveria ser um total de 20 conselheiros. A falta de conhecimento técnico, de acesso à informação e de infraestrutura são alguns dos problemas enfrentados pelos conselheiros para exercerem a contento o seu papel.

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Nessas arenas deliberativas, embora formalmente se definam como paritárias, na prática, existem dificuldades de se estabelecer o princípio de igualdade de participação entre os representantes do governo e os representantes da sociedade. De um lado, há o descontentamento dos governantes em relação à paridade, dada a crença em uma pseu-dossuperioridade do saber técnico. Por outro lado, existe a tradicional postura antiestado presente na tradição dos movimentos sociais, dificultando o relacionamento e originando conflitos. A partir das entrevistas realizadas constatamos que, na maioria dos Conselhos, é visível o conflito de interesses e a disputa de posições na arena decisória, dificultando o entendimento, elemento de significativa importância nos processos deliberativos.

É importante ressaltar que, dos dez municípios da RMN, apenas em Extremoz que a presidência do conselho não é escolhida de modo igual, isto é, por meio de eleição entre os membros em reunião plenária. Outro aspecto analisado foram as condições de funcionamento dos Conselhos. Desde os anos de 1990, nos dez municípios da RMN foram criados os Conselhos de Saúde, e em 2010-2011 todos estavam funcionando. A estrutura e o funcionamento dos Conselhos são semelhantes em ambos os casos: os Conselhos são compostos de plenário, mesa diretora, secretaria executiva e comissões técnicas ou temáticas. Pesquisou-se sobre a existência de sala exclusiva para o conselho e sobre a existência de funcionários trabalhando exclusivamente no apoio às atividades do conselho. De acordo com os presidentes dos Conselhos entrevistados a disponibilidade de recursos e elementos materiais (equipamentos), considerados básicos para o funcio-namento dos Conselhos de Saúde precisa melhorar, uma vez que possuem computador, mas muitos deles não possuem sede ou sala própria, linha telefônica e acesso à internet.

A falta de condições de funcionamento ressalta os desafios dos CMS para exercer de modo eficiente o seu papel de formulador e controlador das políticas de saúde. O papel social dos Conselhos é a promoção de justiça social e a melhoria do nível e si-tuação de saúde da população representada nestes espaços. Eles têm seu funcionamento limitado e condicionado pela realidade concreta das instituições e da cultura política dos municípios brasileiros. Como afirma Côrtes (2002, p. 42), “a dinâmica de funcio-namento dos fóruns está ligada à forma de coordenação do fórum e à postura do gestor em relação à participação”.

Como na Reforma Sanitária muita ênfase foi dada à necessidade de controle por parte da sociedade, os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de saúde assumem a função de fiscalizar os recursos destinados à área. A noção de controle social está diretamente vinculada à ideia de constituição de uma esfera pública democrática que possa viabilizar o controle dos governantes por parte da sociedade (accountability). Isso supõe a institucionalização de mecanismos de controle do setor público pela socieda-de, garantindo, no caso da saúde, a fiscalização não somente da parte do orçamento destinado ao setor, mas também da definição de prioridades e estratégias de ação, da localização de serviços etc.

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De acordo com os dados obtidos, o exercício de controle social sobre instituições públicas é o maior desafio enfrentado pelos fóruns de deliberação. Para que o controle realmente ocorra são necessárias mudanças profundas no aparato institucional dos go-vernos, assim como uma mudança radical no padrão da relação Estado-sociedade. As experiências analisadas têm vivenciado muitas dificuldades e a maioria das explicações para a questão tem feito referência à tradição centralizadora e autoritária dos prefeitos, a falta de cultura política participativa e aos problemas de acesso e difusão de informa-ções. Um indicador que chamou atenção nos resultados obtidos foi o “Plano Municipal de Saúde”, apenas os Conselhos de Saúde de São José de Mipibu e São Gonçalo do Amarante tinha cópia do referido plano e a maioria dos conselheiros entrevistados não tinham conhecimento da existência do Plano. Em linhas gerais, constatamos que a maioria dos conselheiros apenas referendam os Planos Municipais de Saúde, elaborados pela administração municipal, e que não há uma efetiva participação, interferência e controle dos Conselheiros na definição de prioridades do referido plano e, consequen-temente, na política de saúde dos seus respectivos municípios.

A importância da informação nos arranjos deliberativos é inconteste, uma vez que só existe participação efetiva quando todos os atores estão em pé de igualdade, as in-formações são partilhadas e discutidas. É necessário que os participantes dessas expe-riências tenham todas as informações relevantes para uma deliberação de governo. No entanto, no modelo de democracia vigente em nosso país, a burocracia detém, senão a totalidade, pelo menos a maior parte das informações necessárias ao processo decisório e esse é um fator bloqueador da participação efetiva, que inclui não somente o fato de tomar parte, mas também de ter parte no contexto onde estão inseridos.

A deliberação dos atores sociais e políticos nas arenas decisórias pressupõe a neces-sidade de garantir as informações necessárias ao debate democrático em torno da com-posição da agenda pública, mas no Estado brasileiro ainda prevalece uma concepção burocrática de gestão baseada na superioridade do saber técnico que sustenta uma elite tecnoburocrática que realimenta todo o sistema político. No interior dos Conselhos de Saúde da RMN é notória a reprodução dessa situação, uma vez que há a predominân-cia do saber técnico, o que inibe a participação do usuário ou se sobrepõe, em termos de importância às demais posições. Os secretários têm um poder de agenda superior aos demais participantes e o resultado da experiência acaba sendo o fechamento de qualquer possibilidade de deliberação democrática.

Em todos os Conselhos estudados foi atribuído um destaque à herança autoritária da estrutura de dominação patrimonialista, que marcou a formação do Estado brasilei-ro. Segundo as entrevistas realizadas com representantes dos usuários, essa herança se manifesta, ainda hoje, na manutenção de práticas oligárquicas e clientelistas nas estru-turas de governo, o que se justifica pelo hiato profundo entre normas e práticas, pela forma que se realizou a nossa revolução burguesa (NOGUEIRA, 1998). A superação

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desse hiato depende da vontade política dos governantes, da sua adesão a um modelo de gestão pública que amplie o espaço público para a participação dos atores políticos e sociais, inclusive como um mecanismo de controle das ações de governo.

As experiências por nós estudadas têm demonstrado, portanto, que os avanços em direção à institucionalização da participação, no contexto da gestão pública no Brasil Contemporâneo, estão relacionados, em grande medida, a iniciativa e ao apoio dos governantes (CÔRTES, 1996), iniciativa que vai depender do perfil ideológico das coa-lizões governistas e/ou do compromisso dos governantes com o processo de mudanças institucionais no sentido da democratização dos mecanismos de governo e de adoção de um modelo de governança democrática (DEMO, 1991).

O segundo elemento apontado pelos conselheiros como responsável pela falta de controle social por parte dos conselhos gestores foi a ausência de uma cultura política, ou, segundo Putnam (1996), de uma comunidade cívica, que implica a presença de capital social, o qual é para esse autor consequência de um longo processo histórico. Putnam (1996, p. 30-31) enfatiza que as comunidades cívicas “se caracterizam por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração”. Uma análise preliminar sobre os Conselhos Municipais de Saúde da RMN apontou para os seguintes problemas relativos à questão da participação nesses fóruns de deliberação democrática: a falta de organização da sociedade e a interferência de interesses político-partidários no interior desses fóruns de participação.

No que diz respeito à ausência de uma sociedade civil organizada e demandante de participação podemos dizer que este é um dos principais problemas que esses fóruns enfrentam para a sua realização. Nos dez municípios que compõem a RMN, contando inclusive com a capital, observamos a fragilidade da base social, uma vez que os par-tidos de esquerda não conseguiram atuar no fortalecimento dos movimentos sociais e romper a estrutura política conservadora da região. O que aconteceu, e ainda acontece, na realidade dos movimentos sociais urbanos dessa cidade é a utilização de tais mo-vimentos como elementos de fortalecimento de políticos individuais e de estruturas partidárias conservadoras.

As experiências estudadas têm demonstrado que a população da RMN não está suficientemente organizada, tampouco mobilizada, para se incorporar aos mecanismos institucionais de participação com uma identidade metropolitana em busca de uma ação coletiva, e isso representa um sério problema para uma governança colaborativa. Segundo Souza (2009), “a marca do passado” pautada na dependência dos recursos e das decisões federais e na centralização, tem dificultado mudanças no desenho institu-cional das regiões metropolitanas e na rota das políticas públicas. A inexistência de uma sociedade organizada e de mobilização da mesma na direção da resolução dos proble-mas comuns dificulta a construção de saídas de natureza coletiva.

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O que estamos presenciando na maioria dos Conselhos de Saúde da RMN é um cenário político que se caracteriza pela forte atuação dos representantes do governo e a fraca atuação dos representantes da sociedade civil. Nos municípios estudados, a possibilidade de a participação social influenciar o desenho e os encaminhamentos das políticas de saúde ainda está longe de corresponder a realidade, uma vez que a atuação da maioria dos atores sociais deixa a desejar no que diz respeito a participação social enquanto um elemento da ‘boa’ governança.9 Na realidade estudada, a identificação dos atores envolvidos nos Conselhos Municipais de Saúde da RMN e a análise do modo como atuam, demonstram que a maioria desses mecanismos de participação legitimam decisões já tomadas. Em alguns casos, verificamos que o Executivo Municipal primeiro encaminha a prestação de contas à Câmara Municipal e só depois para o Conselho. Considerando que só há participação quando o envolvido toma parte no processo de decisão política questionamos: o que dizer quando os conselheiros referendam as deci-sões já tomadas? O que dizer quando os conselheiros não têm capacidade de influenciar as decisões políticas que dizem respeito à sociedade em que vivem?

Como o objetivo desse trabalho é verificar até que ponto os conselhos gestores de saúde dos municípios da Região Metropolitana de Natal (RMN) têm sido capazes de articular ações de cooperação e de coordenação com vistas ao enfrentamento de proble-mas comuns da região metropolitana, realizamos uma análise das resoluções aprovadas em 2010 e 2011, que demonstrou a ausência de deliberações sobre problemas comuns aos municípios da RMN. A totalidade das ações deliberadas nas resoluções foi sobre a gestão da saúde no município. É interessante ressaltar que todas as deliberações tinham o município e não a região como referência.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inexistência de uma identidade metropolitana, aliada a uma cultura cívica que em-purre os cidadãos para a participação, tem dificultado a mobilização social na RMN, o que se justifica pela referência que os movimentos organizados ainda têm com a participação focalizada no imediatismo do espaço de moradia. As ações de natureza coletivas são expressões do espaço municipal, a interação quando ocorre é com as ins-tituições municipais de governo e não ultrapassam as fronteiras (do ponto de vista político) das unidades territoriais formais na direção de uma atuação mais ampla. Para uma governança colaborativa faz-se necessário estabelecer relações intergovernamentais de um novo tipo, pautadas no capital social. Como vimos, a ausência de arranjos ins-titucionais em nível estadual dificulta atitudes de cooperação entre os municípios; os

9. Concordamos com Côrtes (2002, p. 43), quando a autora ressalta que “a consolidação dos conselhos e das conferências de saúde, como espaços para os quais foram canalizadas as demandas dos movimentos popular e sindical, teve sucesso onde formou-se uma ‘policy community’ composta por uma elite de reformadores do sistema brasileiro de saúde em aliança com lideranças dos movimentos popular e sindical”.

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conflitos partidários funcionam como obstáculos poderosos a integração das ações, e o aprofundamento das relações intergovernamentais tende a ocorrer quando a sociedade, por meio de suas organizações, assume o papel de cimento dessas relações.

Por outro lado, as incertezas acerca do financiamento das ações de âmbito metro-politano, que pode gerar ou não um aumento do gasto público e da burocracia, e da perda de autonomia dos municípios vêm sendo os principais constrangimentos para a realização de ações compartilhadas. A ausência de estrutura de planejamento e de me-canismos permanentes de financiamento dos problemas comuns, na grande maioria das RM, impõe limites e desafios para uma gestão compartilhada. Constatamos, portanto, que o fato de um Conselho Gestor pertencer a uma região metropolitana não garante deliberações visando à solução de problemas comuns aos municípios que a compõem.

Na sociedade brasileira, experiências de cooperações federativas, ou melhor, de go-vernança colaborativa por construção institucional (intermunicipais) são heterogêneas e incipientes, e com a promulgação da Lei dos Consórcios Públicos, em 2005, verifica-mos retrocessos em experiências consolidadas. As variações na realidade dos municípios brasileiros, em termos de recursos financeiros, técnico e político para responder as suas responsabilidades impõem dificuldades para se estabelecer relações de cooperação, de partilha e de participação entre os diferentes atores. Não há dúvidas, também, acerca da importância que a existência os Conselhos Municipais têm tido para o aprendizado da democracia, não somente por parte dos setores da sociedade civil, mas, também, por parte dos que representam o Estado. A convivência com a diferença e com o conflito propiciam um aprendizado no sentido da busca de soluções que se produzem na discus-são e na argumentação, elementos vitais para a deliberação democrática.

A disseminação de Conselhos em praticamente todos os municípios brasileiros não significa que em todas as localidades a representação dos usuários e beneficiários de bens e serviços sociais tem sido autônoma e consistente. Alguns podem ter participação intensa de representantes do movimento popular e sindical, mas a maioria existe apenas formalmente, criados para responder à exigência legal e, desse modo, viabilizar o recebi-mento de recursos financeiros. Apesar de não garantir, por si só, a participação plena e efetiva, inicialmente idealizada pelo movimento da Reforma Sanitária, a definição legal da participação social via conselhos gestores representa uma conquista na construção da cidadania. Os CMS da RMN apresentam semelhanças no que diz respeito à ausência de uma elite política voltada a questões relacionadas à participação, ao controle social e à governança colaborativa como plataforma política. Os governos municipais não estimularam a institucionalização e organização dos Conselhos no sentido de torná-los mais autônomos e independentes do executivo municipal.

A participação, que é a base da democracia deliberativa, para existir, de fato, pre-cisa estar ancorada no debate público e coletivo entre cidadãos livres e iguais, no qual a legitimidade das decisões políticas deve emergir de processos de discussão abertos,

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que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, possam realizar mudanças significativas na lógica do poder tradicional. A consolidação de fóruns participativos pode auxiliar para a demo-cratização das instituições brasileiras, desde que a participação da sociedade no processo decisório tenha como base de sustentação a exposição das diferenças para a construção do interesse público, partindo do princípio de que este não está dado previamente, mas sua construção advém do debate e da disputa democrática de interesses, ou seja, o interesse público se constrói na arena das disputas políticas. A politização do processo de tomada de decisão ocorre quando há, de fato, uma articulação entre o Estado e a sociedade, baseada na busca do bem comum.

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FORMAÇÃO DE AGENDA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: O PAPEL DAS CONFERÊNCIAS COMO UM SISTEMA INTEGRADO DE PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO1

Este artigo objetiva analisar as conferências de assistência social como parte de um Sistema Integrado de Participação e Deliberação que tem como objetivo incluir diferentes vozes no processo de formação da agenda dessa política em diferentes níveis territoriais, do local ao nacional.

Palavras-chave: Sistema integrado de participação e deliberação. Política de assistência social. Conferências de políticas públicas. Agenda política.

Keywords: Integrated system of participation and deliberation. Social welfare policy. Public policy conference. Agenda setting.

This article aims to analyze the Social Welfare Conferences as an Integrated System of Participation and Deliberation which aims to include different voices in the agenda setting process in different territorial levels, from local to national.

Resumo: Abstract:

Cláudia Feres Faria2

Eleonora Schettini M. Cunha3

1. Parte dos dados apresentados neste artigo são oriundos da pesquisa Da constituição do interesse público à busca por justiça social: uma análise das dinâmicas participativa e deliberativa nas Conferências Municipais, Estaduais e Nacionais de Políticas Públicas, coordenada por Cláudia F. Faria e financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) à qual as autoras agradecem o apoio.2. Professora adjunta do Departamento de Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais.3. Professora adjunta do Departamento de Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais.

Cláudia Feres Faria | Eleonora Schettini M. Cunha

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1 INTRODUÇÃO

A análise de políticas públicas constitui um campo de pesquisa em permanente desen-volvimento, no qual o debate entre diferentes abordagens evidencia a complexidade e a multiplicidade de aspectos e elementos que se apresentam como relevantes para a melhor compreensão dos processos que as constituem. Não bastassem as especificidades dos processos de formulação, implementação, avaliação e mudança que ocorrem nas diferentes áreas de políticas públicas, gerando grande interesse dos estudiosos da área, as preocupações com a democratização desses processos impõem novos desafios analíticos.

A evidência de que diferentes atores buscam influenciar a formação da agenda de política por diferentes meios, envolvendo desde a tematização dos problemas públicos até a apresentação de soluções alternativas para esses problemas, é acompanhada da ampliação de esferas onde estes processos podem ocorrer. Múltiplos espaços, institucio-nais ou não, que envolvem padrões plurais de ação na formulação das diretrizes de uma determinada política pública propiciam a possibilidade da ampliação da participação desses atores, incluindo os usuários da política.

Tais espaços não constituem uma novidade no Brasil do novo século, onde diferentes áreas de políticas públicas os utilizam para articular uma pluralidade de atores nos três níveis da Federação. Um exemplo paradigmático é a área da assistên-cia social, que tem enfrentado um duplo desafio: (1) firmar-se como uma política pública que assegura direitos de proteção social, organizada em um sistema nacional, com atribuições claras para cada ente federado, articulados entre si; e (2) a constru-ção democrática e deliberativa da própria política, o que inclui a efetivação de um sistema integrado vertical e horizontalmente de participação e deliberação4 em torno da formulação de suas diretrizes.

Este artigo pretende avaliar parte desse sistema – as conferências de políticas públi-cas – por meio de uma lente analítica singular: as contribuições dos estudiosos do campo discursivo para a literatura sobre políticas públicas. Consideramos que algumas das pro-posições desse campo são de grande valia para a análise da formação e mudança da agenda de políticas públicas ao introduzir a importância da dinâmica deliberativa nesse processo. A análise do diálogo entre parte dos autores que conformam esse campo de estudo será objeto da primeira seção. As contribuições da teoria deliberativa estarão ancoradas na ideia de sistema integrado de participação e deliberação, objeto da segunda seção, que de-fende a articulação de formas distintas de ação em espaços diferenciados como produtoras de agendas de políticas mais inclusivas e legítimas.

4. A aplicação da ideia de sistema integrado de participação e deliberação para análise das instituições e espaços participativos no Brasil encontra-se em Cunha (2009); Faria et al. (2012); Almeida; Cunha (2012). A ideia de sistema integrado de participação e deliberação vertical e horizontal para o mesmo tema encontra-se em Faria (2012).

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Essa ideia constituirá a base para a análise das conferências de assistência social que ocorrem em todo o território nacional, do nível local até o nacional. A análise das dinâmicas participativa, representativa e deliberativa nessas conferências será objeto da quarta seção. O potencial dessas dinâmicas para ampliar o escopo da democrati-zação do processo de formação da agenda na política da assistência social será objeto da quinta seção, conclusiva.

2 POLÍTICAS PÚBLICAS, FORMAÇÃO DE AGENDA E DELIBERAÇÃO

Estudiosos de políticas públicas têm buscado compreender o processo de formação de agenda dos governos, observando diferentes dimensões e elementos que vão se revelando essenciais para essa compreensão. Dentre eles, há um conjunto de autores que enfatizam as dinâmicas interativas que incluem uma ampla gama de atores sociais e políticos nos processos de formulação e mudanças de políticas públicas. As ideias desenvolvidas por Heclo (1978 apud STILLMAN, 2000), talvez de forma seminal, não só evidenciam a im-portância da interação entre diferentes atores nos processos de formulação e de mudanças nas políticas públicas, mas também questionam as análises que focavam em apenas um grupo estável de atores, poderosos e facilmente identificáveis: o chamado “triângulo de ferro”, que envolve o Executivo, os Comitês do Congresso e os grupos de interesse.

Heclo (1978 apud STILLMAN, 2000) propõe incorporar às análises uma vasta rede de pessoas que interagem com o governo e que buscam influenciar e guiar suas atividades. Assim, ele introduz a perspectiva de “redes temáticas”, chamando a aten-ção dos analistas para o papel que ideias compartilhadas podem adquirir tanto para a formatação e compreensão de determinados problemas públicos quanto para as suas possíveis soluções. Concernente com a intensificação do ativismo político que marcou a década de 1970 em diferentes países e que visava influenciar, de alguma forma, a formulação das políticas públicas, ele destaca o papel desses novos atores sociais no processo de formulação destas.

Uma “rede temática” (issue network) compreende, segundo Heclo (1978 apud STILLMAN, 2000), um número muito amplo de participantes articulados entre si, movidos por um compromisso intelectual e/ou moral com alguma questão, com graus variados de comprometimento e de dependência uns dos outros. Não é possível deter-minar os limites da rede, mas é possível identificar uma movimentação constante dos participantes fora e dentro dela. Para Heclo, as redes operam em muitos níveis e as pessoas, mais que peritos técnicos, são ativistas políticos que conhecem como cada um percebe a questão que os aproxima, estando determinadas a moldar a política pública em questão. Ele também destaca a possibilidade de que essas redes gerem líderes, deno-minados de policy politicians.

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Na esteira de sua proposição, novas abordagens foram construídas, levando em conta a participação de grupos e indivíduos nos processos que geram e alteram políticas públicas. Uma das mais influentes, desenvolvida por John Kingdon (2003), busca ex-plicar o processo de definição da agenda governamental, considerado o primeiro estágio da política, por meio de um modelo interativo que destaca sua natureza dinâmica. Esta se caracteriza pela existência de três fluxos de processos – o de problemas, o de alterna-tivas e o político – que eventualmente se conectam.5

Um primeiro fluxo, o de problemas, é o processo pelo qual um determinado problema é reconhecido como crítico e passa a ocupar a atenção de tomadores de decisão. Nesse fluxo, grupos de interesse buscam, por meio de diferentes estratégias, chamar a atenção pública para a questão, no intuito de inseri-la na agenda gover-namental.6 Um segundo fluxo, o de alternativas, gera opções de solução para o pro-blema em questão, tendo papel relevante os pesquisadores, analistas e acadêmicos. Esses atores constituem o que Kingdon denomina de comunidade de políticas (2003, p.117), constituída por atores internos e externos ao governo que têm em comum o interesse por um problema de política e a interação contínua e consistente, ao ponto de conhecerem as ideias, as propostas e as atividades uns dos outros. Dentre eles, destacam-se os empreendedores de política,7 que investem energia e tempo em processos de sensibilização dos atores governamentais para a questão, apresentando e defendendo publicamente as ideias da comunidade, visando mobilizar e formar opiniões e influenciar instituições.

Um terceiro é o fluxo político, que corresponde ao processo político em si, que tem dinâmica e regras próprias, gerando eventos que são potenciais definidores de agenda, como eleições, comoção nacional ou a posse de um novo governo. Os três fluxos têm vida própria e, em momentos específicos e críticos – as chamadas janelas de políticas – eles se conectam, e problemas, soluções e oportunidade política levam a questão para a agenda política e, quiçá, para a agenda decisória. Algumas jane-las são previsíveis e até mesmo institucionais, como a revisão de legislação; outras são imprevisíveis, como quando ocorre um desastre climático ou resultado eleitoral (KINGDON, 2003, p. 229). De todo modo, janelas são pequenas e escassas, não ficam abertas por longo tempo.

5. Baseia-se no modelo de comportamento organizacional da Lata de Lixo, de Cohen; March; Olsen (1972), que explica o processo de tomada de decisão em anarquias organizadas a partir de quatro fluxos: (1) o fluxo de problemas, (2) o de escolhas, (3) o fluxo de energia dos participantes e (4) o nível de fluxo de soluções.

6. Kingdon (2003) aponta também como determinante para a constituição da agenda a vontade política dos atores políticos que querem se reeleger; a vontade dos burocratas que propõem iniciativas para promovê-los em seus cargos e os altos custos políticos, sociais e orçamentários para solucioná-lo.

7. Kingdon (2003) identifica dois tipos de empreendedores de política: os visíveis, que são aqueles que recebem considerável atenção da imprensa e do público, e os invisíveis, que formam as comunidades nas quais as ideias são geradas. Como atores visíveis, o autor sugere o chefe do Executivo, os ministros, os atores do Legislativo, a mídia, os grupos de interesse e os partidos políticos. Como invisíveis, o autor identifica os burocratas, os analistas e os acadêmicos.

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Kingdon (2003) destaca a importância das ideias quando combinadas com as jane-las de políticas, bem como o papel dos empreendedores na sua apresentação e discussão, em diferentes espaços e por diversos meios. A interação entre esses atores favorece adap-tações e mudanças, correspondentes à fluidez dos processos, desenvolvendo o seu senso de oportunidade e de antecipação de mudanças.

Essa interação, em contexto federativo, não passa despercebida do autor, que en-tende o federalismo como mais um elemento a complexificar a análise da definição de agenda, ao envolver agendas múltiplas para a mesma questão num dado momento. Não obstante, pode também possibilitar a inovação e a ação diversificada dos empreendedo-res quando encontram obstáculos em algum dos níveis (KINGDON, 2003, p. 230).

A busca por explicação das mudanças nas políticas públicas levou Sabatier e Jenkins-Smith (1999) a também focarem nas relações que se estabelecem entre dife-rentes atores de certa área ou setor, gerando o modelo de coalizão de política. Para os autores, uma coalizão de defesa é uma aliança de grupos políticos (que abarca diferentes atores), num subsistema de política pública, que compartilham interesses e ideias, em contraponto a outras coalisões. Estas competem entre si e pressionam para que suas crenças se tornem propostas de políticas públicas e entrem na agenda governamental, o que dependerá da capacidade financeira, intelectual (expertise), política (como o nú-mero de apoiadores e a capacidade de mobilização) e institucional (como a autoridade legal) que as coalizões dispuserem. As alterações na agenda de políticas públicas resulta-rão de mudanças nos padrões de interação entre coalizões no interior de subsistemas de política, gerados, em maior medida, por eventos externos ao subsistema e, em menor, por mudanças em parâmetros relativamente estáveis.

A literatura aqui brevemente descrita tem o importante mérito de oferecer aos analistas de políticas públicas elementos teóricos e empíricos que destacam o papel de um amplo conjunto de atores na determinação da agenda pública e no seu processo de mudança. Ao enfatizar alianças de diferentes grupos que compartilham interesses, ideias, valores e crenças, bem como as possíveis interações entre eles, tais abordagens ampliam, de fato, o número de participantes no processo de construção da agenda, uma vez que inclui novos atores, além dos tradicionalmente considerados – governo, burocratas, legisladores e técnicos.

Ainda assim, autores filiados ao campo discursivo de análise de políticas públicas (HAJER; WAGENAAR, 2003; FISCHER, 2003; GOODIN, 2008) ressentem da au-sência de explicações acerca dos processos em que ocorre a dinâmica interativa por meio da qual são estruturados os problemas, formadas as coalizões e mudadas as agendas, espe-cialmente aqueles que se organizam de forma participativa e deliberativa.

Para suprir essa possível lacuna, os autores deste campo enfatizam o papel da ar-gumentação na formulação de políticas. Partindo das formas de comunicação entre os

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participantes, eles analisam os processos pelos quais se definem problemas e se cons-troem estratégias de ação para solucioná-los. Aceitando o modelo dos fluxos, proposto por Kingdon, os estudiosos destacam o papel dos argumentos não só para justificar e sustentar a definição do problema, mas também para delinear alternativas e recomenda-ções, num processo discursivo que desenvolve e refina as ideias, constrói e reconstrói os problemas de políticas e suas possíveis soluções (FISCHER, 2003, p.183), possibilitan-do o que Kingdon (2003) define como “amaciamento”. Nessa direção, assumem que os argumentos envolvem relações de poder e o próprio exercício do poder, apontando para importância de se observar a inclusão (e exclusão) de alguns conteúdos, a distribuição de responsabilidades e o emprego de estratégias políticas específicas.

Não obstante, reconhecem que nesse processo discursivo constroem-se histórias normativas e prescritivas, as quais apontam uma situação problemática que demanda política pública e cursos de ação que podem resolvê-la. Os empreendedores de política desenvolvem e refinam os “quadros de políticas”, entendidos como princípios de organi-zação que governam os significados subjetivos atribuídos aos eventos sociais, construin-do metáforas geradoras que ligam os problemas a propostas de ação.

A abordagem discursiva entende que diferentes pessoas constroem diferentes ar-gumentos em uma mesma narrativa (ou política pública) e que essas perspectivas múl-tiplas geram controvérsias, que são inerentes às considerações. Nesse sentido, o foco do analista pode ser tanto o conteúdo da deliberação quanto os processos pelos quais as pessoas buscam solucionar os conflitos, em que ocorrem discursos reflexivos que pos-sibilitam aos participantes refletirem sobre a política pública, a mudança do quadro de definição de problemas ao longo do tempo e como os atores apreendem e respondem às mudanças nas situações nas quais eles mesmos se encontram (FISCHER, 2003).

O processo discursivo e reflexivo ocorre em contextos específicos, muitas ve-zes contextos aninhados, em que se compõem diferentes agendas ao mesmo tempo, como as econômicas e ambientais, o que faz com que Fischer (2003) reforce a impor-tância de se levar em conta o contexto no qual as redes temáticas, comunidades de políticas ou coalizões de defesa são formadas, bem como as formas nas quais elas se estruturam. Além de crenças, afirma o autor, narrativas, discursos e histórias contadas também constituem meios de interação que impactam o processo de descoberta e formatação dos problemas, bem como de orientação das coalizões a serem formadas.

A deliberação constitui-se, portanto, como um componente importante da inte-ração na medida em que ela pode promover contextos de “descobertas públicas” por meio de um processo de troca de argumentos e de aprendizado social sobre como es-truturar os problemas e as possibilidades públicas de resolvê-los. Ademais, adverte Fis-cher (2003), as coalisões políticas são reproduzidas e transformadas via um conjunto amplo de atores que não necessariamente se encontram face a face, mas que, por meio de suas atividades discursivas, constroem e reforçam narrativas em um determinado

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campo político (p. 106). Tais narrativas podem ser representadas pelas ideias, crenças e discursos construídos pelos atores em diferentes espaços, não demandando a presença de todos em todos os lugares.

A abordagem discursiva contribui para a análise ora desenvolvida ao chamar a aten-ção para o papel da “participação discursiva” de um conjunto amplo de atores nos pro-cessos de formulação e mudança de políticas, podendo influenciar a direção da agenda. Pensar a construção da agenda de políticas públicas como uma prática participativa e ar-gumentativa requer compreender o processo por meio do qual a participação discursiva ocorre, o que é particularmente relevante em algumas áreas de políticas públicas, como no caso da assistência social, tendo em conta a complexidade de espaços hoje existentes para a interação de diferentes atores. Exatamente por que estamos lidando com múl-tiplos atores que interagem por meio de espaços diferenciados, que se conectam tanto de forma vertical quanto horizontalmente, faremos uso de outra contribuição da teoria discursiva para a análise da formação e mudança da agenda pública: a ideia de sistema integrado de participação e deliberação.8

3 O SISTEMA INTEGRADO DE PARTICIPAÇÃO E DELIBERAÇÃO

A construção de uma abordagem discursiva para a análise de políticas públicas com-põe um cenário mais amplo que marca o debate no seio da teoria democrática acerca da deliberação. Se, num primeiro momento, as reflexões organizaram-se em torno da forma como a deliberação informa a ação dos cidadãos e de seus representantes e a sua incidência sobre a qualidade das suas escolhas políticas, logo em seguida surgiram experimentos, práticas e instituições políticas que, de alguma forma, operacionalizam as proposições teóricas, provocando novas reflexões e formulações. Nesse processo, a deliberação tem sido entendida como “um entre diversos momentos do processo polí-tico”, que ocorre tanto dentro quanto fora dos espaços institucionais e que se combina com outras formas de ação. A noção abrangente de democracia deliberativa vem sendo, portanto, substituída pela ideia de deliberação democrática (MANSBRIDGE, 2007).

No que diz respeito às formas de ação, sabe-se que participação e deliberação ope-ram por meios diferentes. Enquanto a primeira pressupõe um envolvimento direto, am-plo e sustentado dos cidadãos nas questões públicas, a segunda demanda uma reflexão qualificada sobre as preferências e escolhas políticas dos atores (PAPADOPOULOS; WARIN, 2007; COHEN; FUNG, 2004; FISHKIN, 1991). Ambas não podem ser pensadas somente no nível local, mas demandam espaços mais amplos que, por sua vez, requerem mediações entre os diferentes níveis, o que traz para o debate a questão da

8. A ideia de sistema se difere da ideia de redes pelo fato de permitir diferenciar analiticamente espaços, ações e públicos. Ver em Dryzek (2010) as consequências de tal distinção.

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escala e da representação. Compor um modelo analítico, portanto, necessariamente deve considerar tanto o problema da escala quanto a diferenciação de formas de ação, uma vez que se reconhece que as democracias requerem não só instituições, mas tam-bém participação e contestação, não só processos locais, mas também regionais, na-cionais e transnacionais. O grande desafio passa a ser como coordenar essas diferentes práticas em diferentes espaços.

Para dar conta dessa complexidade e, ao mesmo tempo, produzir um julgamento político mais crítico e informado, propõe-se um processo analítico que considere tanto a resistência e o conflito quanto o diálogo e a cooperação em diferentes espaços da socieda-de. A abordagem sistêmica possibilita compatibilizar diferentes formas de ação e comuni-cação que cumprem funções diversificadas no sistema em espaços diferentes que podem servir como inputs uns para os outros, possibilitando a formação, de baixo para cima, de um julgamento público acerca das políticas públicas em questão (FARIA, 2012).

Uma primeira formulação da ideia de sistema deliberativo coube a Mansbridge (1999), que destacou as diferentes arenas – formais e informais – onde a deliberação ocorre e a possibilidade de que os processos deliberativos atravessem múltiplas esferas discursivas e públicas, todas com a mesma relevância política, ainda que não a mesma ca-pacidade decisória. Ao retomar a ideia, Hendriks (2006) propõe um modelo de sistema deliberativo integrado, que distingue as esferas discursivas conforme a sua composição e formalidade,9 admitindo que algumas sejam mais públicas, inclusivas e estruturadas do que outras, podendo ser constituídas pelo Estado ou pela sociedade civil. A autora entende que essas esferas estão conectadas entre si, umas podendo influenciar as outras, bem como considera que o sistema também conecta cidadãos que não estão engajados em nenhum desses espaços, assegurando que todos os discursos estejam presentes na deliberação, não necessariamente de forma harmônica entre si.

De um modo geral, os proponentes da ideia de sistema deliberativo integrado10 definem-no como

um conjunto de partes diferenciadas, mas interdependentes, com funções distribuídas e conectadas de forma a construir um todo complexo. Ele requer diferenciação e integração entre as partes, alguma divisão funcional de trabalho bem como alguma interdependência funcional de forma que a mudança em um componente redundará em mudanças em outros. Ele envolve conflito e solução de problemas políticos baseado na fala.

9. Esferas macro discursivas, informais, constituídas por movimentos sociais, redes, ONGs, grupos de interesse, corporações, mídia, formadores de opinião; esferas micro discursivas, formais, integradas por parlamentares, funcionários governamentais, especialistas, juízes; esferas discursivas mistas ou híbridas, espaços formais e informais nos quais participam um misto de cidadãos, representantes de grupos de interesse, ativistas, especialistas, a mídia, funcionários do governo, parlamentares, dentre outros.

10. Especialmente Mansbridge; Parkinson (2012) e Dryzek (2010).

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A fala é uma forma de comunicação menos exigente que pode envolver desde a demonstração, a expressão e a persuasão até o próprio debate (MANSBRIDGE; PARKINSON, 2012, p. 7).

O sistema envolve tanto arenas formais de tomada de decisão quanto informais de formulação de temas e problemas concernentes ao interesse público. De forma geral, a ele são imputadas três funções principais: epistêmica, ética e democrática. A função epistêmica corresponde à produção de opiniões, preferências e decisões com base nos fatos e na lógica argumentativa, o que ocorre por meio da troca de razões acerca de questões de interesse comum. A função ética sustenta-se na produção do respeito mú-tuo, do tratamento igualitário entre os participantes, de modo que não predomine a dominação por qualquer meio. A função democrática implica a inclusão de múltiplas vozes, interesses e pretensões em bases mais igualitárias, sendo que o sistema não deve excluir nenhum cidadão, discurso ou forma de ação sem uma justificação que possa ser razoavelmente aceita por todos.

Para responder aos possíveis conflitos derivados da realização simultânea dessas três funções, sugere-se uma “ecologia deliberativa”, por meio da qual se analise o sistema como um todo, e não pelas suas partes. Decisões democráticas legítimas serão alcançadas sempre que elas foram dialogicamente gestadas em um contexto de respeito mútuo entre os cidadãos e por intermédio de um processo inclusivo de escolha coletiva. Esse tipo de legitimidade pode facilitar a cooperação que, por sua vez, promove a deliberação. No entanto, toda vez que esse círculo virtuoso se quebrar, formas não dialógicas de ação, como o protesto, podem contribuir para restaurar essa dinâmica ao denunciarem a falta de publicidade ou a fraqueza da deliberação em cumprir suas promessas (MANSBRIDGE; PARKINSON, 2012, p. 31-32). A proposta, portanto, considera uma dinâmica sobreposta, em que essas formas podem operar, e frequentemente o fazem, concomitantemente. A ideia é que uma pluralidade de espaços, com diferentes padrões de ações, pode contribuir para a formação das capacidades deliberativas em diferentes graus.

Essa ideia de sistema possibilita ainda apreender a natureza dinâmica e a multi-dimensionalidade da deliberação democrática (BÄCHTIGER et al., 2009), uma vez que admite que a articulação entre arenas e atores diversos e dispersos no tempo e no espaço traz diferentes contribuições à deliberação. A legitimidade dessas arenas reside na capacidade de realizar processos deliberativos públicos e inclusivos, alimentando os debates mais amplos (PARKINSON, 2006; WARREN, 2007; MENDONÇA, 2008).

Publicidade, reciprocidade, inclusividade e controle são os princípios que devem balizar as trocas no interior do sistema. No entanto, se nem todas as suas práticas conseguem alcançar tais princípios, elas precisam ser justificadas tendo tais condições como padrão crítico. É nesse sentido que se defende que, mesmo quando as partes não

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alcançam as condições deliberativas requeridas, o todo será mais legítimo quanto mais se aproximar dessas mesmas condições.

Pensar a participação e a deliberação numa perspectiva sistemicamente integrada tem como pressuposto que os diferentes espaços de deliberação oferecem contribuições importantes para a política pública e a conexão que estabelecem entre si permite a cons-trução de um discurso público que circula nas diferentes arenas. A legitimidade das de-cisões tomadas nessas arenas, portanto, decorre das trocas que ocorrem por meio de pro-cessos deliberativos que se cruzam devido às interações sociais. Interessante observar que essa troca de discursos não é, necessariamente, um diálogo, podendo haver conflito entre as arenas, conforme lembram Hendriks (2006) e Thompson (2008). A legitimidade das decisões, portanto, ocorre de forma diferida e difusa e decorre do processo contínuo de interação entre as diferentes arenas, onde estão presentes vários tipos de representantes, ativados por diferentes grupos de representados (PARKINSON, 2006), o que permite pensar em termos de escala.

A ideia de sistema integrado de participação e deliberação aplica-se às conferências de políticas públicas realizadas no Brasil, uma vez que elas envolvem uma gama dife-renciada de atores sociais e políticos que visam construir coletivamente uma agenda de política pública. Essa dinâmica ocorre por meio de diferentes padrões de ação que envolvem, simultaneamente, a participação, a deliberação e a representação no interior de contextos específicos, caracterizados por múltiplas esferas, mas cujo objetivo final é a produção de uma agenda pública que sensibilize o poder público acerca de suas necessidades, gerando uma agenda governamental e, de modo mais incisivo, decisória.

4 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

Pode-se afirmar que o processo constituinte que gerou a Constituição Federal de 1988 foi a mais importante janela de política para a área da assistência social, uma vez que possibilitou que as consequências da questão social fossem percebidas como um grave problema público, a ser resolvido pelo Estado brasileiro por meio de ações públicas de proteção social sem a exigência de contribuição prévia.11 A comunidade de política dessa área dispunha de propostas e alternativas de ação que incluíam desde a mudança do pa-radigma da atenção – assistência social como direito de todos os cidadãos e não benesses e filantropia – até a forma de construção e fiscalização da política – que incluía a ideia de participação da sociedade.

A Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), promulgada em 1993, prevê que a política se organize na forma de um sistema nacional, tanto para a prestação de

11. A íntegra dos argumentos relativos à formação histórica da política de assistência social encontra-se em Cunha (2009) e da sua especificidade pós 1988 encontra-se em Sátyro; Cunha (2011).

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serviços quanto para a concretização da participação, estabelecendo conselhos e conferências, ambos nos três níveis de governo, como os espaços de sua viabilização. No entanto, somente em 2003, a IV Conferência Nacional deliberou pela efetiva-ção do Sistema Único de Assistência Social (Suas), o que foi regulado pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004, e pela Norma Operacional Básica do Suas (NOB-Suas), em 2005.

Essas regulações especificam as funções da assistência social, instituem padrões de referência para as atividades, definem o papel dos níveis de governo, organizam a pres-tação de serviços pela rede (que inclui as organizações privadas), estabelecem critérios de financiamento, instituem sistemas de monitoramento e avaliação da política e, o que é mais específico para a análise que nos propomos, reforçam a existência e o fun-cionamento de instâncias de articulação (Fóruns), de pactuação (Comissões Intergesto-res Tripartite/CIT e Bipartite/CIB) e de deliberação (Conselhos e Conferências). Esses diferentes espaços de participação e deliberação devem operar de forma concomitante e interdependente, constituindo um sistema integrado. Além desses, podem-se iden-tificar outros espaços não descritos nas normas, como fóruns específicos da sociedade civil, grupos de trabalho eventuais e Casas Legislativas, denotando a complexidade das interações e da dinâmica discursiva. As possibilidades de participação e deliberação nesse sistema também são complexas: uma primeira está relacionada à própria esfera discursiva; uma segunda ocorre no mesmo nível de governo, envolvendo diferentes esferas discursivas (por exemplo, conselho, conferência, fórum, Poder Legislativo no nível municipal); uma terceira acontece entre os níveis, articulando um mesmo tipo de arena envolvendo dois ou três níveis de governo, como é o caso das CIB e CIT ou os colegiados que reúnem gestores municipais e gestores estaduais, conselheiros munici-pais e estaduais e mesmo as conferências, que são organizadas de forma articulada entre si (ALMEIDA; CUNHA, 2012; CUNHA, 2012).

Essa emaranhada malha participativa e deliberativa também indica que os fluxos deliberativos podem ocorrer em diferentes direções, a depender da articulação entre os diversos espaços (ALMEIDA; CUNHA, 2012). Analisar o processo de formação de agenda num sistema intricado como esse requer um esforço analítico que incorpo-re novos elementos, para além daqueles desenvolvidos até então. É preciso entender o potencial de processos democráticos de decisão, que incorporam diferentes atores que deliberam entre si, para serem geradores de fluxos – de problemas, de alternativas e políticos – que venham a intervir na formação de agendas governamentais. O estu-do das conferências de assistência social constitui um primeiro passo nessa direção, reforçando a proposição apresentada inicialmente de que não é possível formular agendas de políticas públicas legítimas olhando apenas para um conjunto restrito de atores políticos e sociais.

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5 AS CONFERÊNCIAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

As conferências nacionais de assistência social constam no artigo 18 da Loas, que prevê sua realização, a cada quatro anos, por convocação ordinária do conselho nacional, com a atribuição de avaliar a situação da política e propor diretrizes que venham a aperfeiçoá-la, objetivo que é também o das conferências dos níveis estadual e municipal. A primei-ra conferência realizada após a promulgação da Loas ocorreu em 1995 e, desde então, ocorreram oito delas, a última em 2011, o que indica a ocorrência regular de momentos de revisão da política, janelas previsíveis, nos termos de Kingdon (2003), bem como a existência de eventos realizados extraordinariamente, para além do prazo previsto em lei. A Conferência Nacional é precedida de conferências estaduais e estas, por sua vez, são precedidas de conferências municipais e/ou regionais. Essa dinâmica tem se mantido desde a primeira conferência, assim como a escolha de uma temática que orienta as de-liberações, embora as regras e os procedimentos deliberativos tenham mudado ao longo desse tempo como decorrência do processo de aprendizado ensejado por esta dinâmica.

A análise das conferências de assistência social como sistema integrado de partici-pação e deliberação (FARIA, 2012) focará parte do processo deliberativo, que ocorreu no município de Belo Horizonte e no estado de Minas Gerais e que culminou com a realização da VIII Conferência Nacional de Assistência Social, convocada extraordi-nariamente para realizar-se no mês de dezembro de 2011, em Brasília, cujo tema foi “Consolidar o Suas e valorizar seus trabalhadores”.

5.1 A participação nas conferências de assistência de social

Participaram das conferências de assistência social cidadãos sem vínculo representati-vo, cidadãos com vínculo representativo (cidadãos-delegados), observadores e convi-dados (autoridades governamentais, acadêmicas e culturais, bem como acompanhan-tes de pessoas com deficiência). Nas chamadas pré-conferências, realizadas no âmbito municipal e de amplitude distrital, é mais comum a participação do cidadão sem vínculo representativo, ao passo que nas etapas posteriores participam prioritariamen-te cidadãos-delegados, com direito a voz e a voto. Convidados e observadores só têm direito a voz. Cidadãos-delegados são paritariamente divididos entre representantes da sociedade civil (50%) e do governo (50%), sendo que a sociedade civil envolve usuá-rios, membros de entidades prestadoras de serviços e trabalhadores da área, e o governo é representado pelos gestores públicos.

Entre os delegados, existem os eleitos e os natos. Os primeiros não necessariamente precisam apresentar uma trajetória na área, basta estarem presentes no processo e se can-didatarem. Já os natos, necessariamente, possuem um vínculo com instituições da área (geralmente o conselho do nível de governo), ou seja, membros de movimentos sociais, entidades, associações e autoridades governamentais, vinculadas à política em questão.

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5.2 Os processos deliberativos das conferências: do local ao nacional

A partir das orientações gerais, emanadas pelo Conselho Nacional quando da convoca-ção da Conferência Nacional, estados e municípios organizam suas próprias conferên-cias, estabelecendo cronogramas e processos diversificados para realizar as deliberações. Esse processo prevê um fluxo deliberativo e representativo em que os resultados de cada etapa são encaminhados em forma de propostas e de cidadãos-delegados para a etapa seguinte, subsidiando as discussões e as decisões a serem tomadas pelos participantes nas etapas subsequentes (FARIA et al., 2012).

5.2.1 As pré-conferências de assistência social de Belo Horizonte

As pré-conferências do município de Belo Horizonte (BH)12 foram realizadas em espaços que ofertam serviços da política de Assistência Social, como os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), Centros de Referência Especializada de Assistência Social (Creas) e Espaço BH Cidadania. Elas tiveram a duração de um dia e envolveram um total de 2.039 pessoas, sendo 79% da sociedade civil, 6% do governo municipal, 7% de observadores e 9% de outros. A dinâmica das pré-conferências iniciava-se com o credenciamento dos participantes, que receberam crachás de identificação e material in-formativo para subsidiar sua participação, nele incluídas as deliberações da conferência anterior, realizada em 2009. Em seguida era instalada a plenária, coordenada por uma Mesa Diretora, e realizada uma apresentação cultural, em que o tema e a importância do processo conferencista e do controle social foram reforçados de maneira lúdica, atenden-do a uma demanda da conferência anterior.

A seguir foi proferida uma palestra sobre o tema e os subtemas13 da conferência e um balanço das deliberações aprovadas na Conferência de 2009, bem como das ativida-des já realizadas no município. Esse balanço constitui uma peça importante do processo deliberativo, na medida em que permite a aferição daquilo que foi deliberado nos anos anteriores e do que foi efetivamente cumprido, conectando tempos e espaços e servindo de norte para a construção de novas proposições.

A atividade seguinte ocorreu nos Grupos de Trabalho (GT), formados aleatoria-mente por 30 a 48 participantes, um coordenador e um relator, este indicado pela Ge-rência de Políticas Sociais, órgão municipal responsável pela condução das pré-conferên-cias. Foram organizados, pelo menos, quatro GTs, correspondentes às quatro diretrizes a

12. As pré-conferências, em Belo Horizonte, são denominadas de Conferência Distrital de Assistência Social (CDAS). Foram realizadas nove CDAS, uma em cada Região administrativa da cidade, sendo que para o estudo foram observadas as do Barreiro, Noroeste, Leste, Oeste, Pampulha e Venda Nova, o que corresponde a 70% das realizada.

13. O tema e os subtemas das conferências são definidos pelo Conselho Nacional de Assistência Social e divulgados na convocação e no regulamento da Conferência Nacional. A partir deles são deliberadas as diretrizes de cada conferência para o seu nível de governo e para os níveis subsequentes.

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serem discutidas. Em todos os grupos ocorreram dois processos: a elaboração e aprovação de três propostas (conforme o subtema em debate) e a eleição dos delegados para a Con-ferência Municipal.

De um modo geral, o processo deliberativo envolveu a apresentação de propostas e pedidos de destaques (que visavam rejeitar ou alterar uma proposta), seguidos de justi-ficação pública sobre a posição assumida, e, por fim, a decisão, que geralmente ocorria por meio de votação, possibilitando que a aferição ocorresse por meio de contagem ou contraste de crachás. De modo geral, os Grupos elaboraram e aprovaram suas propostas por meio de (1) discussão seguida de aceitação da maioria, (2) aceitação sem discussão, (3) rejeição pela maioria e (4) discussão seguida de reformulação. Os GTs constituíram o primeiro momento de efetiva deliberação14 entre os participantes dado que todos os presentes tiveram que discutir, justificar e decidir sobre um conjunto de propostas rela-tivas às diretrizes previamente estabelecidas. Neste sentido, o número de participantes, bem como a presença de coordenadores e regras para estruturarem o processo delibera-tivo impactou positivamente a qualidade do debate.

Quanto à eleição de delegados, o único pré-requisito era ser morador da regional onde ocorria a pré-conferência, o que evidencia claramente a possibilidade de amplia-ção da comunidade de atores que participam da definição das diretrizes dessa política. A regra previa que para cada três participantes seria eleito um delegado. O procedi-mento de escolha variou entre as pré-conferências analisadas. Os mecanismos mais usuais foram: (1) os participantes manifestavam o interesse em ser representante da regional na Conferência Municipal; (2) se o número de inscritos não ultrapassasse as vagas disponíveis, os candidatos eram considerados delegados (3) se o número de candidatos fosse superior ao número de vagas, havia votação.

Findos os trabalhos dos GTs, era instalada a plenária final, para a apreciação e aprovação das propostas, oriundas dos grupos, bem como a apresentação dos delegados eleitos para a Conferência Municipal. Nesse momento, os participantes tinham mais uma chance de destacar as propostas aprovadas nos grupos, oferecer publicamente jus-tificativas para suas posições e convencer os demais sobre a validade de suas posições com base tanto em argumentos racionais quanto em apelos emocionais, o que poderia gerar mudanças de preferências baseadas na fala. Não obstante, em nenhuma das pré-conferências acompanhadas foi pedido destaque e realizada qualquer modificação nas propostas, sendo todas aprovadas na íntegra como vieram dos GTs.

Encerrada a Pré-Conferência, ocorria a eleição dos conselheiros do Conselho Regional de Assistência Social (Coras) e a apresentação dos candidatos a representantes de usuários

14. Estamos definindo deliberação aqui nos termos de Mansbridge et al. (2012, p. 7), ou seja, como um processo que envolve conflito e solução de problemas políticos baseado na fala enquanto uma forma de comunicação menos exigente que pode envolver desde a demonstração, a expressão e a persuasão até o próprio debate.

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no Conselho Municipal de Assistência Social. Esse processo evidencia como as interações entre as múltiplas arenas que compõem esta política ocorrem, uma vez que participantes de conferências podem passar a integrar conselhos regional ou municipal, possibilitando a extensão da deliberação das conferências para outros espaços.

5.2.2 A IX Conferência Municipal de Assistência Social de Belo Horizonte

A IX Conferência Municipal de Assistência Social de Belo Horizonte15 ocorreu durante dois dias. Prevista para receber 1.000 pessoas, contou com a participação de 1.146 pessoas entre delegados eleitos nas pré-conferências, convidados e autoridades públicas representantes do Executivo e do Legislativo. Os participantes foram credenciados e identificados por crachá e, nesse momento, receberam material de apoio à delibera-ção, como a programação da conferência, resoluções do Conselho Municipal, a Matriz Consolidada dos Relatórios das nove pré-conferências, organizada conforme as quatro diretrizes discutidas, e o crachá. Em seguida, os participantes puderam assistir, à sua escolha, a uma das quatro palestras proferidas, referentes aos subtemas da conferência.

Logo após foi instalada a plenária inicial e realizada a solenidade de abertura, com a presença de várias autoridades públicas, inclusive o prefeito do município. A atividade seguinte foi a votação do Regimento Interno (RI) cujas regras balizam todo o processo da Conferência. Esperava-se que a leitura desse documento gerasse um conjunto de polêmi-cas a serem resolvidas mediante os pedidos de destaque, os debates públicos, bem como de votação. No entanto, a aprovação do RI ocorreu sem nenhum debate e foi seguida de uma palestra, proferida por representante do Ministério do Desenvolvimento Social.

A atividade seguinte foi a realização de quatro plenárias temáticas (PTs), cada uma composta, em média, por 170 participantes. A dinâmica contou com uma palestra inicial, proferida por convidados, membros do Executivo, Legislativo e de conselhos, seguida de debates coordenados por representantes do governo que, junto com os pa-lestrantes, respondiam às perguntas. Em seguida houve a eleição de um relator, que teve como tarefa registrar a discussão e os destaques das propostas a serem encaminhadas à plenária final, num total de cinco para cada nível de governo e atinente a uma das diretrizes da conferência. Cada plenária contou com um coordenador, que, a seu crité-rio, organizou a leitura das propostas contidas no consolidado das pré-conferências de assistência social, bem como a apresentação de destaques das mesmas.

Em geral, os debates das plenárias temáticas foram resolvidos por meio de discus-são, apesar do número de participantes. Isso foi possível porque aqueles que discorda-vam de alguma proposta, após o destaque, reuniam-se em pequenos grupos e debatiam

15. Belo Horizonte realizou uma conferência a mais do que o nível nacional, no início dos anos 1990, como uma estratégia de mobilização dos diferentes atores para a organização da política de assistência social no município.

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uns com os outros até chegarem a uma proposta que atendesse a maior parte deles. Após esta dinâmica de negociações deliberativas,16 as propostas eram votadas em plenária. Em apenas uma PT todas as propostas foram destacadas e alteradas, e, como não houve negociação, elas foram votadas, sendo encaminhadas para a plenária as que obtiveram mais votos até completar a quota permitida.

Na plenária final, conduzida pela mesa de coordenação, as propostas produzidas nas plenárias temáticas foram transmitidas em telão, lidas publicamente e votadas em blocos, por diretriz. Foram permitidos apenas dois destaques para cada proposta à me-dida que elas iam sendo lidas, com tempo determinado para suas justificativas. Essa dinâmica foi justificada com base tanto na argumentação de que as propostas já tinham sido debatidas e negociadas nas Plenárias Temáticas quanto no constrangimento tem-poral. Resultaram do processo vinte propostas, cinco de cada subtema, referentes aos três níveis da Federação.

As eleições de delegados para a Conferência Estadual e para as duas vagas de conse-lheiros titulares, representantes dos usuários no Conselho Estadual de Assistência Social (Ceas-MG), marcaram o último momento da plenária final. O processo de seleção dos delegados da sociedade civil foi realizado em auditórios separados por segmento – usu-ários, trabalhadores e entidades – uma vez que os seis representantes do Governo foram eleitos antes da conferência, em uma reunião destinada para este fim. As duas vagas para conselheiros titulares do segmento representante dos usuários foram pleiteadas por trin-ta participantes. A dinâmica dessa eleição envolveu apresentação e justificativa pública dos candidatos seguida de votação em cada um.

5.2.3 A IX Conferência Estadual de Assistência Social

A IX Conferência Estadual de Assistência Social foi precedida por 766 conferências municipais (89,8% dos 853 municípios mineiros) e Encontros Regionalizados que con-gregaram vários municípios. Realizada durante dois dias, em Belo Horizonte, contou com a participação de 280 municípios, representados por 895 pessoas das 1.200 pre-vistas. Dessas, 36% representavam a sociedade civil, 41% eram do governo (estadual e municipais) e 23% eram convidados / observadores / outros.

Primeiramente os participantes foram credenciados e identificados por crachás e receberam material de apoio, que consistia em uma cartilha sobre a Conferência com programação, proposta de regimento interno, resoluções e balanço sobre as ações reali-zadas desde a conferência anterior. Os participantes também foram previamente desig-nados, de forma aleatória, para GTs e oficinas.

16. As negociações deliberativas, diferentes das formas de negociações democráticas, são baseadas preponderantemente na justificação mútua e não na ameaça e demais formas de poder (MANSBRIDGE, 2007).

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A plenária inicial contou com uma solenidade de abertura, a formação da mesa de coordenação e a votação do Regimento Interno. Assim como na Conferência Munici-pal, o RI foi aprovado na integra pelos participantes, sem destaques e debates. À votação do RI, seguiu-se a apresentação do Painel Temático intitulado “Avaliação da Gestão e do Controle Social no estado de Minas Gerais” que realizou o balanço da política no estado e os desafios a serem superados. Após as palestras, houve o debate com tempo de três minutos regimentais para cada pronunciamento.

Na sequência ocorreu a eleição dos representantes da sociedade civil para o Con-selho Estadual de Assistência Social de MG. O processo consistiu na apresentação oral dos candidatos, na eleição, na apuração e no anúncio dos eleitos. Posteriormente à eleição, ocorreram as oficinas simultâneas que tinham como objetivo a apresentação das diretrizes a serem discutidas na conferência.

No segundo dia de Conferência, foram constituídos 20 Grupos de Trabalho (GTs), com seus respectivos coordenadores e relatores, cada um composto, em média, por 40 participantes. Eles tinham a função de debater e elaborar três propostas relacionadas a cada diretriz para os níveis estadual e nacional, totalizando 24 propostas.

O debate no interior dos GTs foi marcado por diferentes tipos de argumentos, ora baseados em conhecimento técnicos, ora em experiências pessoais cuja solução ocorreu por meio de aclamação e/ou de votação das propostas. Para proferirem seus pontos de vistas, os integrantes do grupo levantavam o crachá e pediam destaques, mas não foi estabelecido nenhum critério para as intervenções, como tempo de fala.

A eleição de delegados para a Conferência Nacional ocorreu após a realização dos GTs e antes da plenária final. O regulamento previa o número de vagas conforme o porte dos municípios e algumas para conselheiros estaduais. As eleições ocorreram simultanea-mente em espaços diferenciados por porte de município e por segmento. A regra eleitoral previa dois minutos para a apresentação e justificação da candidatura e votação entre os candidatos, sem a participação do público da conferência. Os delegados com maior nú-mero de votos seriam eleitos titulares, seguidos dos suplentes.

Na plenária final, ocorreu a leitura das propostas elaboradas pelos GTs e consolidadas pela comissão de relatoria, considerando as dez propostas que apareceram como prioritárias nos grupos, assim como os dez resultados para cada subtema e por nível de governo. As propostas contidas no consolidado foram apresentadas em telões, discriminadas pelos GTs de origem. A dinâmica de discussão e votação das propostas consistia em leitura e destaques das propostas por subtema e nível de governo. A regra previa que os destaques fossem apre-sentados na medida em que fossem requeridos, e não havendo as propostas, o subtema seria automaticamente aprovado. As propostas para o âmbito estadual tiveram nove destaques e para o nível federal tiveram 14 destaques. Após a votação das propostas e moções, foram apresentados os delegados eleitos para a VIII Conferência Nacional de Assistência Social.

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5.2.4 A VIII Conferência Nacional de Assistência Social

A VIII Conferência Nacional de Assistência Social, último momento do processo ana-lisado, ocorreu durante quatro dias, em Brasília, e contou com a participação de 1.820 pessoas oriundas de todos os estados brasileiros. Delas, 34% representavam a sociedade civil, 32% representavam governos (municipais, estaduais, federal), 16% eram convida-dos e/ou observadores e 19% eram de outro tipo (como acompanhantes de pessoas com deficiência) ou não foram identificados. Ressalta-se a grande quantidade de representantes de minorias, como indígenas, quilombolas, líderes do movimento negro, pessoas com deficiência, representantes de povos fronteiriços e refugiados.

Inicialmente, os participantes realizaram credenciamento, receberam crachás de identificação e material de apoio, contendo a programação, a proposta de RI, textos, resoluções do conselho nacional, referentes ao ano de 2011, e o caderno de deliberações com a consolidação das propostas enviadas pelos estados. Uma primeira mesa, compos-ta por autoridades, realizou a solenidade de abertura da conferência.

A atividade seguinte foi a instalação da mesa de coordenação e o início da plená-ria, ainda que muito esvaziada. Após a leitura do RI, a mesa abriu para os destaques. Ao contrário das conferências precedentes, nesta o RI foi destacado e houve apresen-tação de justificativas, que resultaram na mudança de redação em dois dos quatro artigos destacados.

Após a aprovação do RI, uma nova Mesa foi composta, dando inicio a uma série de apresentações, realizadas por autoridades públicas e por especialistas do governo e de universidades, que apresentaram um balanço crítico das conferências estaduais e da situação da gestão e do controle social no Suas. A última foi uma conferência magna realizada pela ministra da pasta da assistência social.

No segundo e terceiro dias de conferência aconteceram os Painéis Temáticos, cons-tituídos por palestras referentes aos quatro eixos da conferência, seguidos de discussões em 23 GTs. Os participantes foram previamente indicados, de forma aleatória, pela Comissão Organizadora, assim como a coordenação, sendo a relatoria escolhida no início dos trabalhos do Grupo. A média de participantes em cada GT era de 45 pessoas. O consolidado das propostas para o nível nacional, oriundas das conferências estaduais, subsidiou os trabalhos desses grupos, que leram, destacaram, discutiram e votaram as que deveriam ser deliberadas pela plenária final.

Ao final do dia, foram realizadas 25 Oficinas Simultâneas para que os participan-tes, que as escolhiam livremente, pudessem aprimorar seus conhecimentos acerca dos subtemas da conferência e seu eixo central. No segundo dia dos GTs, as coordenadorias, premidas pelo tempo, tiveram que impor algumas mudanças nas suas dinâmicas, sendo exigida maior precisão na discussão, destaque e votação das propostas.

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A plenária final teve suas regras alteradas, por exigência dos participantes. Os desta-ques foram lidos publicamente, com identificação de quem os realizou, e discutidos um a um, independentemente do tempo necessário para isso, antes de se votarem as propostas. Essa nova dinâmica atrasou o processo deliberativo, mas melhorou muito sua qualidade, embora tenha havido um esvaziamento da plenária no final do processo. Foi decidido, em plenária, suspender a eleição para conselheiros nacionais que deveria ocorrer nesta fase, assim como ocorreu nas anteriores.

O número de destaques realizados na Conferência Nacional, assim como a decisão de não realizar a eleição de conselheiros, mostra o nível de conflito que essa conferência congrega, ao contrário das anteriores, ao juntar em um mesmo espaço diferentes delega-ções oriundas do Brasil inteiro. As deliberações da Conferência Nacional foram sistema-tizadas e tornadas resolução do Conselho Nacional, sendo-lhes dada ampla publicidade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou analisar as conferências de assistência social à luz de parte da literatura sobre políticas públicas e deliberação democrática. Seguindo um conjunto de autores que defendem a ampliação do perfil de atores que participam simultaneamente da determi-nação da agenda pública e do seu processo de mudança (HECLO, 1978; KINGDON, 2003; SABATIER; JENKINS-SMITH, 1999), bem como daqueles que defendem a im-portância de um tipo particular de interação entre esses atores, a interação deliberativa baseada em argumentos estruturados, falas e/ou narrativas (FISCHER, 2003; HAJER; WAGENAAR, 2003; GOODIN, 2008), buscamos na primeira e segunda seções deste artigo estabelecer um diálogo entre estas duas abordagens. Entendemos que a análise de políticas públicas se constitui em um campo em permanente desenvolvimento, o que torna possível compatibilizar saberes distintos com o propósito de tentar dar conta da complexidade do fenômeno que se busca analisar: a formação e a mudança de agenda em política pública que se organiza em diferentes espaços deliberativos, particularmente, a política de assistência social.

Para tal, privilegiamos na investigação desse fenômeno, um processo específico: a dinâmica das conferências de políticas públicas, percebidas como janelas de políticas previsíveis, cuja função primordial é deliberar sobre um conjunto de diretrizes que de-verão pautar as ações dos três níveis de governo, de forma articulada e integrada. Acre-ditamos que as conferências em geral, e a de assistência social em particular, constituem um lócus importante para avaliar uma das proposições deste artigo: a centralidade da interação discursiva entre diferentes atores na conformação de uma agenda pública na área da assistência social.

Exatamente por estarmos lidando com atores e espaços diferentes, tanto vertical quanto horizontalmente, utilizamos a ideia de sistema integrado de participação e

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deliberação oriunda dos debates no interior do campo discursivo da democracia como ferramenta para a análise das dinâmicas das conferências. Entender as conferências como um sistema integrado de participação e deliberação que gera agendas públicas nos três níveis de governo nos levou a analisar o processo pelo qual esse sistema vai sendo formado mediante múltiplas vinculações. Para tal, foi descrita cada conferência, seus atores, bem como os diversos padrões de ação neles desenvolvidos: participação, deliberação e representação, o que possibilitou aferir a composição da comunidade de atores que fazem parte desses espaços, seus padrões de ação, bem como o processo pelo qual conformam discursivamente a agenda de política nessa área.

Constatou-se, em primeiro lugar, que a dinâmica das conferências de assistência social assume uma forma integrada em que as partes são verticalmente conectadas e funcionam como inputs umas para as outras. Seus objetivos e temas são os mesmos, nos diferentes níveis de competências, oferecendo subsídios para as conferências posteriores através da participação e do debate acerca do temário proposto. Esse arranjo busca dar solução às especificidades do nosso federalismo e seu impacto na formulação e imple-mentação da política, gerando agendas múltiplas, que são concomitantemente sobre-postas e articuladas, uma vez que a cada etapa são definidas diretrizes para o próprio nível de governo e para o(s) ascendente(s).

Do ponto de vista da mobilização e da participação dos atores nesse sistema, é possível afirmar que o conjunto de atores tende a se ampliar uma vez que nas pré-conferências a participação de cidadãos comuns, sem vínculo representativo nas di-versas instituições e fóruns participativos que conformam esta política, é incentivada. Esta, aliás, apresenta-se como a etapa que mais congregou pessoas. Ademais, na etapa nacional, foi possível perceber, in loco, um número razoável de pessoas que estavam participando pela primeira vez destes espaços.17 Isso aponta para o potencial inclusivo desses espaços, nos quais couberam diferentes argumentos e tipos de fala para a inclu-são e justificação de problemas e de soluções. Notamos que nos níveis subnacionais predominaram depoimentos e o apelo pessoal na justificativa de interesses e perspec-tivas, ao passo que na etapa nacional este tipo de argumentação muda, cedendo lugar para justificativas mais técnicas e politizadas em todos os segmentos.

Também foi possível verificar que, na medida em que muda a escala, o padrão de ação se altera e a representação assume um papel mais proeminente, uma vez que os participantes vão assumindo o papel de representantes formalmente eleitos nas dife-rentes etapas. A dinâmica representativa, construída ao longo do processo conferen-cista, impulsiona a conexão entre as partes por meio da eleição dos delegados, bem como por meio da seleção dos temas, conformando aquilo que estamos denominando

17. Na plenária inicial, o presidente do CNAS solicitou que aqueles que participavam pela primeira vez de uma Conferência Nacional se identificassem, evidenciando que mais da metade dos presentes estava nessa condição.

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de representação discursiva (DRYZEK; NIEMEYER, 2008), em que temas, ideias e propostas são representadas e selecionadas de uma etapa para outra.

Do ponto de vista organizacional, a mudança de escala impacta a organização e os recursos. Enquanto nas pré-conferências a dinâmica é menos estruturada, justificando a ausência de RI, da Comissão Organizadora, das regras para o debate, assim como do uso do destaque, na medida em que ascendemos territorialmente, a tendência é aumen-tar a organização desses espaços em função da presença de uma pluralidade de atores, de demandas e da melhor forma de formulá-las. Ainda com relação à organização dos processos, foi possível constatar a realização de várias palestras e painéis, em todas as conferências, proferidas por membros da comunidade de política, o que possibilitou qualificar o debate, bem como contribuiu para o refinamento dos argumentos e das proposições que foram consideradas nas deliberações finais e que indicarão as priorida-des a serem inseridas na agenda pública.

No caso da política em análise, a assistência social, embora possamos afirmar que o nível organizacional das etapas cresça com a mudança de escala, o mesmo não pode ser afirmado quanto aos padrões de interação discursiva. Nas pré-conferências, Conferência Municipal e Estadual houve pouca discussão, embora o conteúdo das propostas assim o requeresse. Esta afirmação pode ser corroborada pelo número quase inexistente de destaques nas plenárias iniciais, nos GTs e nas plenárias finais nessas etapas, bem como pela pouca contestação quanto aos regimentos internos e às propostas. O padrão se altera apenas na Conferência Nacional, onde o conflito em torno de procedimentos represen-tativos e do conteúdo de algumas propostas gerou muita polêmica nos GTs e na plenária final, como retratado na quarta seção deste artigo.

É possível afirmar, portanto, que embora existam fluxos de problemas e de soluções que vão se conformando das pré-conferências até a Conferência Nacional, nas etapas subnacionais, no estado de Minas Gerais, esses fluxos não foram caracterizados por uma dinâmica essencialmente discursiva, onde a troca de argumentos e as justificações geram contestações e, no limite, mudanças de preferências. O que se observou nessas etapas foi mais uma consagração daquilo que foi proposto por outras instituições e fóruns par-ticipativos desta política e que conformam o que denominamos de sistema integrado horizontal de deliberação e participação. No nível nacional a dinâmica muda: destaques, justificações públicas e o voto passam a ser mais utilizados para resolver situações, de cunho procedimental ou substantivo, mais conflituosas, evidenciando uma dinâmica mais deliberativa nas plenárias e nos GTs.

É possível (e bem provável) que essa nova dinâmica decorra do encontro de múl-tiplos padrões de discussão provenientes das vinte e sete unidades da Federação, o que envolve uma diversidade de condições e instituições conformadoras da política de as-sistência social no Brasil.

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Com base no estudo realizado, é possível afirmar que a análise da dinâmica que caracteriza a formação e a mudança das agendas de políticas públicas em processos democráticas que se organizam de forma participativa e deliberativa pode em muito contribuir para o campo de análise de políticas públicas. A dinâmica discursiva tanto pode indicar o grau de legitimidade e de apoio de uma determinada agenda, bem como o potencial de implementação dessa agenda em arranjos federativos.

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MOVIMENTOS SOCIAIS, ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL E SEUS EFEITOS: ESTUDO DE CASOS COMPARADOS NO ESPÍRITO SANTO1

Este artigo avalia os efeitos do engajamento institucional de movimentos sociais em instituições participativas sobre os padrões de ação coletiva, em suas dimensões organizacional, relacional e discursiva. Os efeitos institucionais nos movimentos sociais são examinados por meio do método comparativo, aplicado a quatro casos localizados no Espírito Santo, ao longo de três décadas (1980-2010). São eles: Federação das Associações de Moradores da Serra (Fams), Conselho Popular de Vitória (CPV), Centro de Defesa de Direitos Humanos da Serra (CDDH) e Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente (Acapema). A análise estabelece correlações entre as mudanças nos padrões de ação coletiva e os efeitos do engajamento institucional, e levanta novas hipóteses explicativas das mudanças e continuidades na ação coletiva ao longo do tempo, no que tange à: complexificação organizacional, pluralização das redes sociais e interações cooperativas e contestatórias na relação sociedade-Estado.

Palavras-chave: Movimentos sociais. Engajamento institucional. Instituições participativas. Padrões de ação coletiva. Relação sociedade-Estado.

Keywords: Social movements. Institutional engagement. Participatory institutions. Patterns of collective action. Relationship between society and state.

This article examines the effects of institutional engagement of social movements in participatory institutions on patterns of collective action regarding to organizational, relational and discursive dimensions. Institutional effects in social movements are examined through the comparative method applied to four cases located in the Espírito Santo over three decades (1980-2010). These are: Federation of Neighborhood Associations of Serra, Popular Council of Vitória, Center for the Defense of Human Rights of Serra and Capixaba Association of Environmental Protection. The analysis establishes correlations between changes in patterns of collective action and the effects of institutional engagement and raises new hypotheses of changes and continuities in collective action over time toward to: organizational complexity, pluralization of social networks and cooperative and contention interactions in the relationship between society and the state.

Resumo: Abstract:

Euzeneia Carlos2

1. Este artigo apresenta resultados da tese de doutoramento da autora, intitulada “Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos organizacionais, relacionais e discursivos” (CARLOS, 2012).

2. Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), doutora em Ciência Política (FFLCH/USP) e mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva (NDAC) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). E-mail: [email protected].

Euzeneia Carlos

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No Brasil, nas duas últimas décadas, é notória a institucionalização de formas diversas de participação e representação que incentivaram o engajamento de movimentos sociais e atores da sociedade civil na esfera estatal, seja na elaboração e monitoramento de po-líticas públicas, seja na sua gestão e implementação (AVRITZER, 2008; TATAGIBA, 2004). Arranjos participativos se multiplicaram no nível municipal, estadual e nacional, como os orçamentos participativos, os conselhos de políticas públicas, as conferências, os planos diretores participativos, as comissões e comitês temáticos, os grupos de tra-balho e programas governamentais. Nesse processo histórico, a participação “tornou-se progressivamente [...] parte da linguagem jurídica do Estado e atingiu patamares de institucionalização ímpares não apenas no país, mas em outras democracias” (GURZA LAVALLE, 2011, p. 13).

Neste artigo, o engajamento dos movimentos sociais na política institucional é identificado pela sua inserção nessas Instituições Participativas (IPs). As IPs constituem “formas diferenciadas de incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na deliberação sobre políticas” (AVRITZER, 2008, p. 45), cujo conceito abrangente per-mite a análise conjunta dos diferentes processos institucionais mediante os quais cida-dãos interferem nas decisões, implementação e monitoramento de políticas públicas (PIRES; VAZ, 2010).

Este artigo analisa os efeitos do engajamento institucional dos movimentos sociais em IPs sobre seus padrões de ação coletiva. Especificamente, avalia quais mudanças os movimentos sociais, constituídos no bojo do processo de redemocratização do país, vivenciaram em decorrência de seu engajamento em arranjos participativos, no que concerne às dimensões organizacional, relacional e discursiva da ação coletiva.

A categoria de análise “padrões de ação coletiva” (PACs) corresponde a modalida-des de ações que orientam o comportamento dos movimentos como atores políticos em face das instituições e do Estado em geral. Naturalmente, não existe um padrão homogêneo ou um modelo de ação unitário que represente os atores societários e que sirva de paradigma da ação dos movimentos sociais, tendo em vista a complexidade e heterogeneidade da sociedade civil (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006). Os movimentos sociais são aqui compreendidos como coletividades formadas por uma pluralidade de atores sociais, individuais e organizacionais, ligados em modelos de inte-ração, com base em identidades compartilhadas construídas mediante relações de con-flito e cooperação (DIANI, 2003; MELUCCI, 1996).

As Teorias dos Movimentos Sociais (TMS) oferecem as abordagens mais influentes acerca das implicações do engajamento de atores societários nas instituições governa-mentais, quais sejam: a Teoria dos Novos Movimentos Sociais e a do Processo Político. No país, a Teoria dos Novos Movimentos Sociais (MELUCCI, 1989; TOURAINE, 1988) orientou a maioria dos estudos acerca da emergência dos chamados movimentos sociais urbanos, no período de transição do regime autoritário do final das décadas de

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1970 e 1980. No entanto, essa abordagem gradualmente foi substituída pela Teoria da Sociedade Civil, no contexto de estabilização do regime democrático, de eleição de governos de esquerda e de institucionalização de arranjos participativos nos governos locais (GURZA LAVALLE, 1999; ALONSO, 2009). Tal deslocamento teórico amar-gou a continuidade daquele campo de estudos desenvolvido no período de transição política, bem como obstou a análise da relação entre movimentos, Estado e instituições políticas no contexto democrático.

O enfoque da teoria da Sociedade Civil ampliou o lócus de movimento social para uma variedade de atores e organizações societais e ofereceu aporte teórico para a compreensão das instituições participativas, dos sujeitos sociais atuantes, dos formatos institucionais e seus impactos para a democratização do Estado. Esses estudos con-duziram ao mapeamento dos fatores condicionantes da sustentabilidade dos arranjos participativos, enfatizando o papel da tradição associativa na estruturação das práticas de participação (AVRITZER, 2002; BAIOCCHI, 2005), a interseção entre os projetos políticos governamentais e os da sociedade civil (DAGNINO, 2002), e o desenho insti-tucional dos arranjos participativos (LÜCHMANN, 2002; FUNG; WRIGHT, 2003).

Na Teoria da Sociedade Civil, a análise dos efeitos das instituições participativas, à exceção de trabalho seminal de Marquetti (2003), somente recentemente tem ganhado fôlego. Esses estudos têm contribuído para a avaliação dos impactos das IPs sobre a atuação dos governos e a produção de políticas públicas (PIRES, 2011; AVRITZER, 2010; ISUNZA VERA; GURZA LAVALLE, 2010). Contudo, ainda são raros aqueles que analisam os efeitos do engajamento nas instituições participativas sobre os atores da sociedade civil, em particular, no padrão de ação coletiva dos movimentos sociais que se inserem nesses espaços como relevante via de acesso ao poder público e de mediação da interação com o Estado.

Com efeito, a análise do engajamento dos movimentos sociais nos arranjos parti-cipativos, nas agências estatais e nos partidos políticos, e das suas implicações para os atores coletivos foram eclipsadas no âmbito da teoria da sociedade civil. A ocultação dos movimentos sociais nessa literatura é atribuída à mudança nas categorias analíticas empregadas, nos estudos da década de 1980, cuja ênfase numa concepção “restritiva da sociedade civil” gerou uma ocultação artificial dos movimentos e o sobredimensio-namento do papel de outros atores societários (GURZA LAVALLE; CASTELLO; BI-CHIR, 2004). No cenário em que muitos ativistas e movimentos sociais se inserem em órgãos do governo e partidos políticos, a ocultação também pode ser explicada pela sua limitação analítica à compreensão da relação dos movimentos com o sistema político, dado o pressuposto de separação entre as esferas da sociedade civil e do Estado.

No âmbito internacional, a teoria do Processo Político deu continuidade ao campo de estudos próprio e consagrou as principais teses acerca dos efeitos da inserção de ato-res coletivos na política institucional, bem como da institucionalização dos movimentos

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sociais (McADAM; TARROW; TILLY, 2001). Nessa abordagem, a institucionalização do movimento é concebida como a sua integração às estruturas do Estado, a mudança no repertório de confronto e a busca de benefícios concretos por meio da negociação e acordo (TARROW, 1997). Segundo esse enfoque, a institucionalização do movimento, decorrente do engajamento societário nas instituições políticas, afeta a sua estrutura organizacional. Os efeitos esperados no movimento são de complexificação da sua es-trutura organizacional, expressos pela rotinização, burocratização e profissionalização da ação coletiva (MEYER; TARROW, 1998; KRIESE, 1995; PIVEN; CLOWORD, 1979; McCARTHY; ZALD, 1973). Nessa teoria, a complexificação organizacional do movimento traria como consequências a mudança em seus objetivos de fundação, a desmobilização dos militantes, a cooptação dos ativistas e a sua transformação em gru-pos de interesse ou partidos políticos.

Essa teoria dos movimentos sociais, todavia, não oferece chaves interpretativas ade-quadas às mudanças nos padrões de ação coletiva dos movimentos sociais em interação com as instituições participativas. Em primeiro lugar, esse aporte teórico considera um único modelo de organização dos movimentos sociais e apenas um formato das institui-ções políticas. Nesse caso, negligencia tanto a diferenciação nos padrões organizacionais dos movimentos, que podem variar de modelos altamente formalizados e complexos a padrões com baixo grau de formalização e complexificação organizacional, quanto a inovação no formato das instituições, cujo desenho pode combinar mecanismos de par-ticipação direta e representativa no processo de elaboração e implementação de políticas públicas. Em segundo lugar, a análise dos efeitos do engajamento institucional sobre os movimentos sociais é restrita a sua estrutura organizacional e ignora outras dimensões da ação coletiva – como a relacional e a cultural – imprescindíveis à compreensão dos padrões da ação coletiva. Desse modo, ignora mudanças na dinâmica relacional do movimento e a diversificação das suas redes de relações sociais, assim como os processos discursivos de significação e reconfiguração da linguagem de relação com o Estado. Fi-nalmente, essa abordagem interpreta as mudanças na ação coletiva como homogêneas e não possui explicação para as variações e heterogeneidades nos padrões da ação coletiva de movimentos sociais inseridos em instituições governamentais.

Em suma, é possível afirmar que as teorias dos movimentos sociais pressupõem uma separação entre estes e a política institucionalizada e analisam a sociedade e o Estado a partir de categorias estanques, autônomas e dicotômicas, limitadas à explicação dos efei-tos das interações entre atores societários e institucionais sobre os PACs dos movimentos sociais. Tanto a Teoria do Processo Político, ao enfatizar a ação coletiva como conflito po-lítico com os “detentores de poder” (McADAM; TARROW; TILLY, 2001; TARROW, 1997), quanto a Teoria dos Novos Movimentos Sociais, ao ressaltar a descontinuidade e novidade destes em relação às modalidades tradicionais da política (MELUCCI, 1989; TOURAINE, 1988), dificultam o reconhecimento do caráter coconstituinte, de influ-ência mútua e de interpenetração entre movimentos sociais e Estado. O pressuposto

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analítico da separação entre sociedade civil e Estado inibe esses teóricos de explorar a di-versidade de conexões entre os movimentos e o sistema político, mantendo invisíveis cer-tos tipos de relações entre atores coletivos e o Estado (VON BÜLLOW; ABERS, 2011).

Neste trabalho, sustenta-se que a relação entre os movimentos sociais e as insti-tuições políticas requer uma compreensão dinâmica que acentue os aspectos de co-constituição entre a sociedade e o Estado, como esferas que interagem e se influenciam mutuamente em um processo contínuo e circunstancial, cujas fronteiras são imprecisas e enevoadas (SKOCPOL, 1992). Essa perspectiva é particularmente relevante à análi-se de movimentos institucionalmente inseridos – institutionally embedded – (EVANS, 1995), na medida em que concebe sociedade e Estado como produto de um processo dinâmico e contingente de mútua constituição.

Neste artigo, a análise das mudanças nos PACs considera quatro movimentos sociais localizados na região metropolitana do Espírito Santo, examinados por meio do méto-do comparativo de estudo de casos (PETERS, 1998; GEORGE; BENNETT, 2004): Federação das Associações de Moradores da Serra (Fams), Conselho Popular de Vitória (CPV), Centro de Defesa de Direitos Humanos da Serra (CDDH) e Associação Capixa-ba de Proteção ao Meio Ambiente (Acapema). A análise comparativa desses movimentos foi processada em dois níveis: (1) comparação intertemporal (cross-time), e (2) compa-ração entre os casos (cross-case). A comparação cross-time das trajetórias ao longo de um continuum intertemporal de três décadas (1980-2010) considerou a variação nos PACs em dois contextos analíticos, denominados Tempo 1 (T1) e Tempo 2 (T2). Compreende o T1 o contexto de redemocratização da década de 1980, e o T2, o período de criação das instituições participativas nos governos, sobretudo a partir de 1990. A comparação cross-case, por sua vez, possibilitou a verificação das regularidades nos PACs, ao mesmo tempo em que dimensionou as variações e heterogeneidades na ação dos movimentos.

O exame das regularidades e variações nos PACs, em ambos os níveis de compara-ção, foi controlado por uma compreensão densa dos casos, favorecida por perspectiva multi-method, que conduziu a um desenho de pesquisa que combinou instrumentos do método qualitativo e quantitativo, a saber: (1) pesquisa documental no acervo das organizações dos movimentos; (2) entrevista em profundidade com atores-chave; e (3) survey de questionário semiestruturado aplicado a 100 militantes e ex-militantes, se-lecionados por meio de amostra não aleatória que considerou a posição de centrali-dade do ator no movimento.3 Na análise geral, os dados provenientes dos diferentes instrumentos metodológicos foram agrupados em torno de temas, a fim de verificar a triangulação das evidências e promover a validação dos resultados a partir de linhas convergentes de investigação (YIN, 2005).

3. Agradeço ao Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia do Município de Vitória-ES (Facitec), pelo financiamento da pesquisa de campo e aos pesquisadores que atuaram nessa etapa do estudo.

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Este artigo segue estruturado em três seções: a primeira trata do nível de engajamen-to institucional dos movimentos sociais nas instituições participativas; a segunda, dos efeitos da inserção institucional nos PACs, em suas dimensões organizacional, relacional e discursiva; e, finalmente, a terceira seção estabelece correlações entre as mudanças nos PACs e o engajamento na política institucional, bem como levanta novas hipóteses expli-cativas das mudanças e continuidades na ação coletiva ao longo do tempo.

1 MOVIMENTOS SOCIAIS E ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL

Os movimentos sociais analisados insurgiram no contexto de transição do regime auto-ritário da década de 1980. A Fams e o CPV, autodenominados “movimento popular”, emergiram com a finalidade de organizar, coordenar e fortalecer o movimento de bairro e reivindicar melhorias sociais e urbanas ao poder público municipal, o primeiro na Ser-ra e o segundo em Vitória. Atualmente, possuem uma estrutura federativa com 125 e 124 associações de moradores, respectivamente, e suas principais realizações correspon-dem a setores das políticas sociais, nas áreas de saúde, infraestrutura urbana, transporte coletivo, educação, moradia e meio ambiente, além da criação de IPs na gestão pública.

Esses movimentos populares contaram com a atuação de uma rede de relações so-ciais, influentes em sua gênese organizacional e discursiva, como Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), partidos políticos de esquerda, a exemplo do Partido dos Trabalhadores (PT), sindicatos trabalhistas, comissões de direitos humanos, grupos de mulheres e de jovens, Equipe de Apoio aos Movimentos Populares e ONGs, como a Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e o Cecopes (Centro de Educação e Comunicação Popular D. João Batista).4

O CDDH, uma organização do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), surgiu no município da Serra, como movimento de coordenação da ação mobilizadora de outros movimentos sociais e organizações civis, atuando na defesa dos direitos humanos e fomentando a criação de associações, sindicatos trabalhistas e outras formas de organização popular, em nível municipal e estadual. O CDDH foi inicial-mente criado como comissão de direitos humanos da Igreja Católica e composto por integrantes das CEBs e militantes de movimentos locais, sobretudo pastorais sindicais e associações de moradores. Promoveu diversas ações unificadas entre forças sociais e políticas, articulando com o Conselho Pastoral de Carapina (Copaca), a Fams, o PT, sindicatos, ONGs e outros movimentos de direitos humanos. Suas conquistas compre-endem áreas das políticas de direitos humanos, como criança e adolescência, violência, saúde, educação, moradia, bem como a implementação de IPs nos governos.

4. Para uma análise da atuação de instituições religiosas e de organizações societais na formação dos movimentos sociais, no final da década de 1970 e anos 1980, especialmente de setores da Igreja Católica, de partidos políticos de esquerda e de organizações não governamentais ver Doimo (1995), Sader (1988) e Landim (1995).

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A Acapema, fundada em Vitória, constitui um movimento ambientalista de âmbito estadual. Atua na articulação e promoção de campanhas mobilizatórias em prol da manutenção do equilíbrio ecológico e na oposição aos grandes projetos de expansão industrial e desenvolvimento econômico, no fomento à criação de unida-des de conservação ambiental e na criação e cumprimento de legislação de caráter conservacionista. Na década de sua fundação, estabeleceu vínculos com redes de relações sociais que atuaram como suporte e apoio às ações desenvolvidas, caracteri-zada, sobretudo, por entidades civis e movimentos sociais e, em menor proporção, por instituições do sistema político, como partidos políticos, órgãos do governo e instituições religiosas.

No contexto pós-transição, as novas oportunidades de participação na elaboração das políticas e no controle da ação governamental que emergiram da criação das IPs inauguraram um cenário de engajamento desses movimentos sociais em instituições do Estado e de relação direta com agências governamentais. No município da Serra, as IPs foram introduzidas a partir de 1997, pela coligação partidária PDT-PT-PSB, que seguiu por quatro mandatos consecutivos (1997 a 2012). Em Vitória, por sua vez, os arranjos participativos foram implementados pelo governo do PT (1989-1992), segui-do por três governos do PSDB (1993 a 2004) e, mais recentemente, por duas gestões do PT (2005 a 2012).

O engajamento institucional dos movimentos sociais se caracteriza pela densidade dos arranjos participativos que atuam, pela diversidade das áreas de políticas públicas e dos formatos de participação institucionalizada que se inserem, pela durabilidade de sua inserção nas instituições de participação e pelo nível de deliberação nos espaços par-ticipativos frente aos representantes governamentais. A mensuração desses critérios de densidade, diversidade, durabilidade e de deliberação compreende os diferentes níveis de engajamento institucional.5

O componente densidade diz respeito à quantidade de instituições participativas nas quais se inserem os movimentos sociais em foco, quais sejam, orçamento partici-pativo, conselhos de políticas públicas, fóruns ou conferências setoriais, comissões ou comitês, programas e convênios governamentais. O critério diversidade corresponde à pluralidade ou variedade das áreas de políticas públicas e de formatos de participação institucionalizada em que os movimentos se encontram inseridos. O critério durabili-dade identifica a continuidade ou interrupção da inserção de movimentos sociais em instituições participativas ao longo de quatro a seis gestões governamentais, possibi-litando avaliar a relação entre essa permanência e a intensidade do seu engajamento nas agências dos governos. O componente deliberação considera a possibilidade dos

5. O uso das variáveis – densidade, diversidade, durabilidade e deliberação – é uma adaptação daquele encontrado em Pires e Vaz (2010). Por esses autores, as variáveis são utilizadas para mensurar o nível de institucionalização da participação em municípios brasileiros.

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movimentos de sustentar posições e propostas nos arranjos participativos frente aos representantes governamentais e de efetivamente deliberar nesses espaços enquanto um elemento que qualifica seu nível de engajamento institucional.

Esses elementos classificatórios do nível de engajamento institucional em IPs – densidade, diversidade, durabilidade e deliberação – remetem não somente à habilidade e predisposição do movimento a arquitetar seu “encaixe institucional” (HOUTZA-GER, 2004), mas igualmente às oportunidades e aos constrangimentos do contexto político da sua inserção, isto é, os projetos políticos dos governos, as alianças e clivagens partidárias, as relações entre o Executivo e o Legislativo.

A análise comparada do nível de engajamento institucional dos movimentos so-ciais aponta a existência de dois subgrupos: o primeiro formado pela Fams, CPV e CDDH e o segundo, pela Acapema. Considerando a quantidade de IPs que atuam, ou seja, a densidade da sua participação, o primeiro grupo de movimentos apresenta alta densidade e o último, uma baixa densidade. A Fams possui representação em 16 conselhos municipais de políticas públicas, o CPV em 24 conselhos, e o CDDH ocu-pa assentos de representação da sociedade civil em 10 conselhos, dos quais dois são estaduais. Esses três movimentos participam, ainda, do orçamento participativo e de outras esferas institucionalizadas de participação e representação. Segundo essa medida, a Acapema apresenta baixa densidade nas IPs, atuando em um conselho de políticas em nível municipal e três conselhos no âmbito estadual.

Considerando a variedade das áreas de políticas públicas e de formatos de partici-pação institucionalizada acionados pelos movimentos sociais, ou seja, a diversidade das instituições participativas nas quais eles se inserem, o primeiro grupo de movimentos (Fams, CPV e CDDH) apresenta alta diversidade, e o segundo (Acapema), uma baixa diversidade. Os conselhos gestores de atuação da Fams compreendem significativa va-riedade nas áreas de políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, política urba-na, habitação, turismo, segurança, assistência social, cultura, direitos de gênero e etário, entre outras). O CPV também atua em uma variedade de áreas de políticas públicas (saúde, educação, meio ambiente, plano diretor urbano, habitação, transporte, turismo, esporte, segurança, assistência social, direitos humanos, cultura, direitos da mulher, do idoso, além de várias áreas de programas específicos). No caso do CDDH, as áreas de políticas públicas também são diversificadas (saúde, assistência social, direitos da mulher, do idoso, da pessoa com deficiência, cidade, antidrogas, segurança alimentar, direitos humanos e gestão de segurança pública). Ao contrário desses três movimentos que caracterizam alta diversidade nas áreas de políticas públicas, a Acapema atua so-mente nas áreas de meio ambiente e de saúde, retratando um caso de baixa diversidade das instituições participativas.

O critério de diversidade considera, por fim, a variedade dos formatos de par-ticipação institucionalizada, que dizem respeito à abrangência do conjunto das IPs

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de inserção societal. Esse componente é particularmente inovador, pois enfatiza a multiplicidade de formas institucionalizadas de participação que incentivam o en-gajamento de movimentos sociais e atores da sociedade civil na esfera estatal. No caso dos movimentos que se caracterizam por alta diversidade de IPs (Fams, CPV e CDDH), o seu engajamento ocorre não somente nos arranjos participativos comu-mente enfatizados, como os conselhos de políticas públicas, o orçamento participa-tivo e as conferências setoriais, mas envolve outros formatos e procedimentos de atu-ação institucional, como o plano diretor urbano e o plano plurianual participativo, as comissões e comitês temáticos e os convênios governamentais de implementação e gestão de programas de políticas. Por sua vez, na Acapema, a atuação institucional é circunscrita aos conselhos de políticas públicas e conferências setoriais, caracteri-zando, comparativamente, um movimento de baixa diversidade dos arranjos institu-cionalizados de participação.

No que se refere à durabilidade da inserção dos movimentos nas IPs, é avaliada a sua longevidade ao longo de quatro a seis gestões governamentais, qualificada em termos de durabilidade contínua e durabilidade descontínua. A aplicação do critério de durabilidade mantém a classificação dos movimentos focada em dois subgrupos – de um lado, Fams, CPV e CDDH e, de outro, Acapema. O primeiro grupo, em geral, ca-racteriza uma inserção contínua e sem interrupções nos arranjos participativos ao longo do tempo, ao passo que o segundo apresenta uma durabilidade descontínua. A durabi-lidade descontínua do engajamento da Acapema nas IPs, ainda que guarde relação com os projetos políticos governamentais, é justificada pelos atores pela sua baixa efetividade na concretização de seus objetivos.

Por fim, o componente deliberação complementa os critérios de mensuração do nível de engajamento institucional dos movimentos em arranjos participativos de po-líticas públicas. A deliberação compreende, aqui, a possibilidade do movimento de sustentar posições e propostas nas instituições participativas frente aos representantes do governo e de efetivamente deliberar nesses espaços, medida em termos de grau de satisfação. Na Fams, no CPV e no CDDH predomina a avaliação de “regularmente satisfeito”, quanto as suas possibilidades de deliberar efetivamente nos arranjos partici-pativos. No caso da Acapema, prevalece entre os militantes a percepção de “pouco sa-tisfeito”. De modo geral, os militantes argumentam que essas avaliações das limitações em sustentar suas posições e decisões no debate público dos arranjos institucionaliza-dos de participação são procedentes, dado dois fatores principais, o descumprimento do governo de muitas deliberações dos representantes societais e a fragilidade decisória do movimento nessas esferas públicas.

O nível de engajamento institucional dos movimentos sociais – nos critérios den-sidade, diversidade, durabilidade e deliberação – é sintetizado no Quadro 1.

Euzeneia Carlos

106 Revista Democracia e Participação

QUADRO 1Movimentos sociais e nível de engajamento institucional pós 1990

Movimentos SociaisInstituições participativas Nível de Engajamento

institucionalDensidade Diversidade Durabilidade Deliberação

Fams Alta Alta Contínua Regular Alta intensidade

CPV Alta Alta Contínua Regular Alta intensidade

CDDH Alta Alta Contínua Regular Alta intensidade

Acapema Baixa Baixa Descontínua Baixa Baixa intensidade

Fonte: Elaboração própria.

Em suma, os movimentos sociais se diferenciam conforme o nível de engajamento institucional. Comparativamente, a Fams, o CPV e o CDDH caracterizam um engaja-mento institucional de alta intensidade, na medida em que as instituições participativas em que atuam retratam densidade e diversidade alta, durabilidade contínua e delibera-ção regular. Por sua vez, a Acapema caracteriza um movimento de engajamento institu-cional de baixa intensidade, dado que os seus arranjos participativos são de densidade e diversidade baixa, de durabilidade descontínua e de deliberação baixa.

2 EFEITOS DO ENGAJAMENTO INSTITUCIONAL NOS PADRÕES DE AÇÃO COLETIVA

2.1 Efeitos organizacionais nos PACs dos movimentos sociais

De acordo com teorias dos movimentos sociais, o engajamento de atores societários nas instituições políticas compreende um processo de institucionalização da ação co-letiva que afeta sua estrutura organizacional (TARROW, 1997; MEYER; TARROW, 1998). A maioria dos teóricos ressalta que os movimentos emergem como formações espontâneas e não formalizadas e assimilam a sua formalização organizacional como decorrente da sua inserção na política institucional. Grosso modo, o contexto de in-serção nas agências governamentais e nas instituições políticas produziria efeitos de complexificação organizacional nos PACs, os quais incidiriam sobre a sua estrutura funcional, os seus objetivos e demandas, as suas estratégias de ação e sobre a sua dinâ-mica de mobilização interna.

Este artigo demonstra que o engajamento institucional em IPs e agências go-vernamentais produz efeitos de complexificação organizacional nos PACs, os quais incidem sobre a sua estrutura funcional, objetivos, estratégias de ação e dinâmica de mobilização interna. A comparação entre os diferentes movimentos sociais comprova, no entanto, a existência não somente de padrões e regularidades na ação coletiva, mas também de heterogeneidades e variações nos padrões organizacionais.

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2.1.1 Efeitos na estrutura funcional

Nas TMS o engajamento de atores societários nas instituições do Estado produz mu-danças na sua estrutura funcional. Contudo, a análise dos movimentos sociais, neste trabalho, aponta a ocorrência tanto de mudanças quanto de continuidades, comparati-vamente ao seu contexto de fundação.

Os padrões de mudança na estrutura funcional são verificados na Fams, CPV e CDDH. No contexto de fundação, esses movimentos apresentaram estrutura organi-zacional formalizada e descentralizada; as suas reuniões ocorreram com periodicidade predefinida e com registro em livro de atas; o seu funcionamento interno obedecia a regras do estatuto social e a diretoria era eleita anualmente ou bianualmente em assembleia geral ou congresso do movimento. Comparativamente, no contexto pós-transição, o processo de complexificação organizacional que incide sobre a estrutura funcional desses três movimentos é caracterizado pela especialização funcional, profis-sionalização e pelo financiamento público e privado, os quais assinalam mudanças nos seus PACs ao longo do tempo.

O efeito de especialização funcional compreende a criação de novos órgãos na estrutura organizacional, a melhor precisão na atribuição destes e a sua adequação à atuação nas instituições participativas de políticas públicas, no acompanhamento das atividades dos conselheiros de políticas e dos delegados do OP, assim como no gerenciamento de programas e convênios governamentais. No contexto de inserção institucional, a especialização das funções desses movimentos visa ajustar a sua es-trutura funcional às suas múltiplas possibilidades de participação e representação na elaboração e implementação de políticas públicas, ampliando a sua atuação em setores que favorecem maior conhecimento sobre o funcionamento da máquina pública e o modus operandi do Estado.

O efeito de profissionalização é caracterizado pela integração de profissionais tem-porários – remunerados ou voluntários – no interior da organização desses movimen-tos, voltados ao suporte técnico ou jurídico nas áreas de secretaria, comunicação, con-tabilidade, advocacia, ou ainda, nas de assistência social e psicológica. Nesse processo de complexificação organizacional, o financiamento das atividades foi incrementado por recursos dos setores público ou privado ou da sociedade civil, mediante convênios, termos de parceria, cooperação técnica, contratos, entre outros. A diversificação dos mecanismos de autossustentação financeira dos movimentos possui consequências para o seu padrão funcional, na medida em que, demandando maior aquisição de conheci-mentos técnicos especializados, aumenta a necessidade de assessoria de profissionais e de especialização temática. A mudança na estrutura organizacional dos movimentos é extensiva aos cursos de qualificação das lideranças, cujo escopo tornou-se mais técnico e especializado, com ênfase, por um lado, na elaboração e implementação de programas

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e projetos sociais, na captação de recursos financeiros e na prestação de contas e, por outro, na formação de conselheiros e delegados das IPs de políticas públicas.

O padrão de mudanças na estrutura funcional desses movimentos sociais no Espírito Santo, caracterizado pela especialização das funções, pela profissionalização e pelo financiamento público e privado, parece conformar uma tendência em muitas organizações da sociedade civil no contexto democrático e de reconfiguração das rela-ções com o Estado. Gurza Lavalle e Bueno (2011) identificaram na ecologia organi-zacional da sociedade civil, em São Paulo e na Cidade do México, um padrão similar de diversificação e modernização funcional, compreendendo diferentes repertórios, estratégias e habilidades de atores societários para ampliar a sua influência na agenda política. A essas distintas competências e capacidades de novos atores da sociedade civil para influenciar as políticas públicas os autores nomeiam “diferenciação funcio-nal”, enquanto uma estratégia de fortalecimento institucional de êxito assumido por muitos atores, no universo das organizações sociais.

Todavia, o processo de complexificação organizacional não é homogêneo e comum a todos os movimentos institucionalmente inseridos. Comparativamente àqueles que apre-sentam mudanças em sua estrutura funcional, a Acapema se caracteriza por continuidades ao longo do tempo, não tendo desenvolvido processos de complexificação de sua estrutu-ra organizacional. Nesse movimento ambientalista, a dinâmica organizacional permanece pouco formalizada e organizada internamente, com reuniões sem periodicidade predefi-nida, com registro em atas inconstante e funcionamento instável. Esse movimento não sofreu o efeito de especialização funcional, nem de profissionalização e as suas fontes de financiamento são incertas e restritas à contribuição dos associados.

2.1.2 Efeitos nos objetivos

As TMS comumente associam o engajamento dos atores societários nas agências e ins-tituições do Estado a mudanças no seu objetivo fundacional (KRIESI, 1995). Não obs-tante, a análise comparada dos movimentos sociais aqui estudados aponta um padrão de mudanças e continuidades em três casos (Fams, CPV e CDDH) e de continuidade em pelo menos um deles (Acapema).

No contexto de inserção institucional, a mudança nos objetivos da Fams, do CPV e do CDDH é caracterizada pela incorporação de novas finalidades ao objetivo funda-cional. De modo geral, os objetivos acrescidos dizem respeito à elaboração e gestão de políticas públicas em áreas sociais e de direitos humanos; à implementação de progra-mas e projetos governamentais de políticas; e ao estabelecimento de convênios, colabo-rações e parcerias com órgãos públicos, setores privados ou da sociedade civil.

O padrão de mudanças e continuidades nos objetivos dos movimentos, pre-dominante na maioria dos casos institucionalmente engajados, não é passível de

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generalização para o caso da Acapema. Esse movimento ambientalista apresenta con-tinuidade em seu objetivo ao longo do tempo, não tendo acrescido novas finalidades ao seu intuito fundacional, qual seja, o de congregar pessoas e entidades em prol do combate contra as formas de depredação do meio ambiente capazes de afetar o equilíbrio ecológico.

As demandas ou áreas de trabalho dos movimentos igualmente apresentam mu-danças e continuidades, comparativamente ao contexto de fundação. Os movimentos sociais em foco apresentam regularidade quanto aos efeitos nas demandas no contexto pós-transição. Na Fams, CPV, CDDH e Acapema a continuidade nas demandas diz respeito à área de trabalho introduzida em sua fundação e consolidada, ao longo do tempo, como bandeira fundamental dos atores coletivos. No caso da Fams e do CPV, a continuidade compreende a demanda por políticas sociais; do CDDH, a defesa de direitos humanos; e, da Acapema, os impactos dos grandes projetos industriais e a pro-teção de áreas de conservação ambiental.

Nesses movimentos, a mudança mais expressiva em sua área de atuação no contexto democrático é a demanda por participação popular na gestão pública. Nesse contexto, a centralidade das instituições participativas na vida dos movi-mentos moveu-os em direção à esfera estatal, ampliando a sua atuação em novas oportunidades de participação e representação na elaboração de políticas públicas e nas agências governamentais. Nesses movimentos sociais, engajados na política institucional, as suas demandas históricas e fundamentais se diversificaram, com a absorção das mudanças em sua área de atuação.

No contexto de engajamento institucional, a mudança no objetivo do movimen-to constitui efeito esperado na literatura especializada. No entanto, esses estudiosos desconsideram que a mudança nos objetivos pode significar o acréscimo de novas finalidades associadas ao objetivo fundacional. Conforme demonstra os casos da Fa-ms-CPV-CDDH, essa mudança no objetivo do movimento pode não suprimir ou anular aquele estabelecido no momento da sua fundação, podendo ser mantido ou combinado aos novos objetivos do contexto democrático. Desse modo, o objetivo inicial da Fams e do CPV, qual seja, o de congregar as associações de moradores e as entidades comunitárias em prol da solução dos seus problemas e o de lutar por melhores condições de vida, bem como, no caso do CDDH, o de defender a vida e a dignidade humanas permaneceram objetivos inalterados ao longo das suas trajetórias, ainda que acrescidos de novas finalidades de associação. Os novos propósitos acres-cidos aos objetivos de fundação expressam novos interesses dos atores no contexto democrático, que ampliam e diversificam a sua atuação na defesa de políticas sociais e de direitos humanos.

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2.1.3 Efeitos nas estratégias de ação

Nas TMS os movimentos sociais são comumente concebidos como protesto público, e o uso de estratégia de ação institucionalizada é compreendido por esses teóricos como decorrente da integração do movimento à política institucional. Essa aborda-gem supõe uma separação entre movimentos e política institucional e analisa a ação coletiva a partir de estruturas cíclicas e dicotômicas: outsider-insider, contention-ins-titucionalização. Tal enfoque desconsidera a interpenetração entre os movimentos e as instituições e ignora que os primeiros possam constituir relações e formar alianças com partidos políticos, grupos religiosos e agências do Estado e, ao mesmo tempo, combinar uma multiplicidade de formas de ação em sua trajetória.

A análise da trajetória dos movimentos sociais em foco demonstrou que, no en-caminhamento dos seus objetivos e demandas ao poder público, as coletividades com-binam uma pluralidade de estratégias de ação, seja atividades formais de exposição das reivindicações (ofícios a órgãos públicos, audiências com autoridades, ação judicial), seja repertórios contenciosos e disruptivos (manifestação pública, passeata, ocupação de área pública ou abaixo-assinado, manifesto, carta aberta ou ato público e vigília), ou ainda, a formação de alianças com partidos políticos, políticos e ex-lideranças (ou militantes) do movimento nas agências estatais. Em maior ou menor medida, a di-versidade de estratégias de ação foi combinada ao longo do tempo pela Fams, CPV, CDDH e Acapema, percorrendo conjunturas de transição do regime autoritário e de restabelecimento das instituições democráticas. Grosso modo, a combinação entre formas diversas de ação é contingente e dinamizada pela relação sociedade-Estado de cada contexto histórico.

Evidências de movimentos sociais que combinam, no contexto democrático brasileiro, estratégias formalizadas e disruptivas de ação para encaminhar deman-das ao poder público também foram encontradas por Tatagiba (2010) e Feltran (2010). De acordo com Abers, Serafim e Tatagiba (2011), essa variedade de formas de participação de movimentos sociais e de relação com o Estado compreende um “repertório de interação”, no qual se inclui um conjunto de rotinas: participação institucional, lobby, protesto, política de proximidade ou de relação direta e ocu-pação de cargos públicos. Tais repertórios de interação “envolvem muito mais do que experiências formais de participação institucionalizada: incluem também outras práticas de diálogo e conflito entre Estado e movimentos sociais que são utilizadas em combinação com a participação em arenas formalmente instituídas” (ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2011, p. 24-25).

O reconhecimento da multiplicidade de estratégias de ação e de interação do movimento com o Estado, no contexto democrático, constitui relevante contribuição à literatura especializada. Isto é, indica que o movimento engajado em instituições

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participativas combina essa a uma diversidade de outras estratégias ou repertórios de atuação, na finalidade de expressar as suas reivindicações e propostas ao poder público e influir na agenda política. Em complemento, este trabalho se propôs a identificar a regularidade e padrão na ação coletiva dos movimentos sociais, no contexto de in-serção na política institucional, dado que cada momento histórico enseja uma forma predominante de ação.

Na década de 1980, no conjunto das múltiplas modalidades de ação dos movi-mentos analisados, a ação direta ou disruptiva constituiu a estratégia predominante dessas coletividades, alcançando êxito em diversas circunstâncias desse período. Essa estratégia foi percebida como mecanismo eficiente de visibilidade e de pressão frente ao não reconhecimento do poder público da legitimidade do movimento como represen-tante dos interesses dos grupos organizados da sociedade civil.

Esse PAC dos movimentos apresentou mudanças nas estratégias no contexto de engajamento institucional, comparativamente ao cenário da sua fundação, isto é, o seu repertório de ação sofreu efeitos no contexto pós 1990, contexto esse de redemocrati-zação do país, de acesso às instituições políticas e de criação de arranjos participativos nas agências do Estado. No cenário pós-transição, os movimentos permaneceram com-binando em seu repertório de ação, atividades formais, atividades disruptivas e alianças políticas, no entanto, ocorreram significativas mudanças quanto à centralidade de cada uma delas no contexto democrático. Ou seja, as estratégias formais de encaminhamento das deliberações ao poder público tornaram-se predominantes em todos os movimen-tos examinados, em detrimento da redução das atividades disruptivas ou de protesto público. Esse novo padrão aponta transformações nas estratégias de ação em direção à preponderância do uso de repertórios rotinizados e previsíveis, os quais contrastam com o ciclo de mobilização pretérito e caracterizam o processo de formalização das suas modalidades de ação. O padrão de formalização das estratégias de ação é caracterizado, ainda, pelo significativo aumento de alianças e apoios da elite política, dos partidos políticos e de ex-militantes (ou militantes) em cargos comissionados no governo, que passa a ocupar a posição de segunda estratégia mais importante, particularmente nos movimentos com alta intensidade de engajamento institucional.

Em suma, o contexto democrático de engajamento nas instituições participativas produziu efeitos sobre os PACs no sentido da predominância de medidas formais, rotinizadas e previsíveis, assim como da formação de alianças com a elite política, em prejuízo do protesto público. A formalização das estratégias dos movimentos sociais, e suas modalidades institucionalizadas de ação, é um efeito do contexto de inserção institucional esperado ou previsto pela teoria especializada. De acordo com esses te-óricos, a mudança no repertório de confronto, privilegiando-se modalidades institu-cionalizadas de ação, é compreendida como decorrente da integração do movimento à estrutura do Estado.

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2.1.4 Efeitos na mobilização interna

A análise da mudança organizacional nos movimentos em foco aponta significativos deslocamentos na mobilização interna. No contexto posterior a 1990, em compara-ção à década de 1980, os movimentos sociais reduziram a frequência das reuniões e assembleias internas, e a sua percepção de participação no planejamento e na execu-ção das atividades comuns e na tomada de decisões coletivas decresceu. Por outro lado, relevante incremento no associativismo civil e na pluralização das esferas de mobilização foi verificado.

No contexto democrático de engajamento institucional, os movimentos sociais têm combinado a atuação no interior da sua organização (reuniões, assembleias, encontros e congressos) com a participação em instituições do Estado (conselhos gestores de políti-cas públicas, orçamento participativo, conferências setoriais, plano diretor urbano, plano plurianual, comissões, comitês e programas governamentais), além da participação em se-minários e fóruns de outros movimentos e entidades da sociedade civil. Nesse cenário, as novas oportunidades de participação e representação no desenho das políticas que ascen-deram dos arranjos institucionais inovadores possibilitaram a pluralização, diversidade e densidade das arenas de mobilização desses movimentos.

A conjugação de múltiplas funções nessas esferas de mobilização e de participa-ção societal guarda relação com a sobrecarga dos militantes e a redução da frequência dos encontros e atividades no interior da organização do movimento, em privilégio do tempo dedicado às instituições participativas. É mister ressaltar que os efeitos na mobilização (em particular, a redução das atividades internas da organização) cons-tituem mudança esperada na literatura, na medida em que esta associa a inserção do movimento na política institucional com desmobilização, desradicalização e centra-lização (PIVEN; CLOWORD, 1979; McCARTHY; ZALD, 1973; KRIESE, 1995; TARROW, 1989). Todavia, esses estudos negligenciam as possibilidades de diversifi-cação da vida associativa no contexto de institucionalização dos canais de mediação da relação sociedade-Estado e tomam como inesperadas as inovações nas modalidades de mobilização dos movimentos.

Esses analistas, em geral, seguem o “modelo de oligarquização das organizações de massas”, de Robert Michels (1962), segundo o qual toda e qualquer organização abriga em si a tendência inexorável para a oligarquia e centralização burocrática. No entanto, o modelo organizacional de Michels compreende organizações grandes, centralizadas e burocráticas e não explica a dinâmica de mudança organizacional de grupos de base, nem de modelos organizacionais diversificados (TARROW, 1997). A maioria dos teó-ricos considera um único modelo de organização e ignora a variedade de padrões orga-nizacionais dos movimentos sociais (CLEMENS, 2010). A heterogeneidade dos mo-vimentos contempla tanto modelos mais centralizados, burocratizados e profissionais,

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quanto padrões descentralizados e de bases, organizações internamente democráticas e de dinâmicas inovadoras. A variedade nos padrões organizacionais depende do movi-mento social, do contexto político e, ainda, do arranjo institucional em que se inserem.

As mudanças organizacionais nos movimentos sociais analisados não os asseme-lham a organizações tradicionais, com estruturas burocráticas, liderança centralizada e desmobilizada – contrariando a inexorabilidade da “lei de ferro da oligarquia” –, na medida em que combinam um padrão de organização complexo e formalizado com uma dinâmica de mobilização e participação. Nesses movimentos, apesar da redução da frequência dos encontros e atividades internas, a mobilização fora relativamente mantida pela atuação dos militantes na tomada de decisões e na realização de funções na organi-zação, e pela sua participação em uma multiplicidade de arranjos institucionalizados de elaboração de políticas públicas. A recente desmobilização verificada na Acapema, com padrão de engajamento institucional baixo, parece mais associada à perda de ativistas do quadro social do que à formalização organizacional.

É preciso considerar que a correlação usual entre complexificação organizacional e desmobilização se baseia em uma noção estreita de mobilização, limitada à compre-ensão das formas de ação dos movimentos no contexto de inserção institucional. Os teóricos comumente concebem a mobilização coletiva como protesto público ou ação direta disruptiva, ignorando as novas modalidades de ação e práticas coletivas do con-texto democrático. Desse modo e considerando a diversidade dos repertórios de ação coletiva, é possível afirmar que os movimentos sociais declinaram suas atividades de protesto nas duas últimas décadas, mas não se desmobilizaram, dado a emergência de novas formas de participação que mantêm a atividade do movimento. A criação de IPs tem incentivado a emergência de novas associações civis e o revigoramento da vida as-sociativa (BAIOCCHI, 2005; AVRITZER, 2002), diversificando as arenas de atuação e a densidade das atividades dos movimentos.

Considerando a expansão do associativismo civil e a pluralização das esferas de participação, o que explicaria essa mobilização societal no contexto de engajamento institucional? Esse aparente paradoxo pode ser hipoteticamente explicado pela espe-cificidade das instituições participativas nas quais se inserem tais movimentos. Os ar-ranjos participativos se diferem das instituições tradicionais por inovarem no formato das instituições, combinando mecanismos de participação direta e representativa no processo decisório de elaboração e implementação das políticas públicas. De acordo com essa hipótese, o desenho inovador das instituições participativas geraria novas oportunidades de participação no desenho das políticas para grupos tradicionalmente excluídos do processo político, favorecendo a mobilização dos atores coletivos e au-mentando a sua propensão à participação no contexto democrático de inserção ins-titucional. Diversos estudos acerca das instituições participativas, no país e alhures, enfatizam a relevância do seu desenho inovador para a expansão do associativismo e da

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participação societal. Do mesmo modo, o estudo de Katzenstein (1998) do ativismo feminista na política institucional ressalta que diferentes habitat institucionais geram variações nas formas de ação coletiva e, nesse sentido, que o ativismo configura dife-rentes padrões organizacionais em diferentes instituições e que a sua trajetória varia dependendo do arranjo institucional em que se insere.

2.2 Efeitos relacionais nos PACs dos movimentos sociais

A ação coletiva de movimentos sociais é significativamente formada por relações entre indivíduos, grupos, organizações e instituições, aos moldes de uma complexa estrutura de redes que conecta uma multiplicidade de atores. Todavia, a grande variedade de redes sociais existentes na estruturação da ação coletiva é quase sempre ignorada nas teorias dos movimentos sociais, tendo o tema recebido tratamento mais adequado da abordagem relacional (EMIRBAYER, 1997; DIANI, 2003; MISCHE, 2008). Nesse enfoque, as relações sociais estabelecidas por indivíduos, atores coletivos, associações e instituições constituem o elemento por excelência de estruturação da vida social, sendo a ação coletiva constituída em um contexto de relações múltiplas, dinâmicas e mutáveis.

É mister ressaltar que, neste estudo, a dimensão relacional do PAC se restringe à rede de relações interorganizacionais dos movimentos sociais. A análise compa-rada evidencia que, em diferentes contextos político-institucionais, a rede de rela-ções sociais dos movimentos em foco é composta por múltiplas organizações tanto institucionais quanto societárias. O padrão de vínculos sociais desses movimentos contempla relações com instituições governamentais, partidárias e religiosas, de um lado, e ligações com sindicatos trabalhistas, movimentos sociais e entidades da socie-dade civil, de outro. Em grande medida, a articulação entre instituições e entidades societais se vale das múltiplas formas de envolvimento social dos militantes ou, nos termos de Mische (2008), das suas “afiliações sobrepostas” que ativam uma rede múltipla de atores e organizações.

A rede de relações sociais dos movimentos se caracteriza pelo múltiplo pertenci-mento a diferentes segmentos institucionais e da sociedade civil, isto é, por “relações sobrepostas” ou “múltiplas relações”. O reconhecimento dessa multiplicidade de ato-res na rede de relações do movimento constitui relevante contribuição às teorias dos movimentos sociais. Isso, pois, a maioria dos estudiosos tende a eclipsar os seus vín-culos com as instituições do sistema político, no contexto fundacional, assim como a sobrepujar os laços com outros movimentos e organizações da sociedade civil no cenário de engajamento na política institucional. A contraposição entre movimentos e instituições políticas, típica das teorias dos movimentos sociais, impede os estudio-sos de considerarem as relações sociais dos atores coletivos em sua diversidade e com-plexidade, obstruindo o estudo das interconectividades entre movimentos sociais, partidos políticos e Estado.

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A análise da mudança no repertório de vínculos dos movimentos sociais, ao lon-go do tempo, aponta significativos deslocamentos na intensidade das conexões dessas coletividades. O contexto de engajamento institucional, de atuação nos arranjos par-ticipativos e nos programas governamentais, introduziu efeitos na densidade de laços sociais nos diferentes segmentos que compõem a rede de relações do movimento.

Comparativamente, a transformação mais significativa foi a intensificação das re-lações com órgãos governamentais, que configurou um novo padrão de vínculos entre movimentos e governos, na Fams, no CPV e no CDDH. O repertório de relações desses movimentos institucionalmente inseridos, além de adicionar de modo expressivo vínculos com instituições governamentais, mantém relações com partidos políticos a al-tas proporções. Os partidos políticos de esquerda, sobretudo o PT, desempenharam pa-pel de relevo na formação desses movimentos sociais, com os quais foram estabelecidas alianças de apoio mútuo que influíram de modo decisivo em sua gênese organizacional e discursiva, tendo as agremiações partidárias na rede de relações dos movimentos se diversificado no contexto pós-transição.

Esse padrão relacional, significativamente composto por instituições governamen-tais e partidárias, todavia, não é passível de verificação na Acapema. A inserção institu-cional desse movimento ambientalista nos arranjos participativos veio desacompanhada da tendência de ampliação dos vínculos com a esfera estatal do contexto posterior a 1990. Nesse aspecto, a Acapema apresenta continuidades em sua rede de relações pre-térita que prescindiu de maiores interconexões com agências do governo e partidos políticos em sua gênese. A análise da densidade nessas relações enfatiza regularidade no subgrupo CPV-Fams-CDDH, caracterizada por alta proporção de vínculos com órgãos governamentais e partidos políticos, comparativamente à baixa proporção de relações com ambos os segmentos na Acapema.

O repertório de vínculos com movimentos sociais ou entidades da sociedade civil, ao mesmo tempo, apresenta proporção crescente ao longo do tempo na Fams, CPV e CDDH. Na década fundacional, a relação com redes de movimentos e organizações sociais contribuiu significativamente para a articulação dos atores e a coordenação da ação coletiva, em geral, mobilizados em inúmeros eventos de protesto público em prol de causas comuns. No contexto de intensificação da interação dos movimentos com a política institucional, o incremento dos laços com segmentos societais potencialmente contribui para a ação articulada dos atores, ampliando suas possibilidades de influência na agenda política, ainda que a existência desses vínculos não determine a capacidade do movimento de coordenação da ação.

A Acapema desenvolveu uma rede de relações peculiar quanto à centralidade dos movimentos e organizações não governamentais. Seus vínculos com uma multiplicida-de de movimentos ambientalistas, populares e culturais que constituíram fonte de sus-tentação às ações desenvolvidas no contexto da sua emergência, decresceram de modo

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expressivo. Conquanto laços sociais com “outras entidades ou instituições não gover-namentais”, relevantes no cenário fundacional, permaneceram relativamente estáveis ao longo do tempo e apresentaram leve acréscimo.

Por fim, o repertório de relações dos movimentos com grupos religiosos e sindica-tos caracteriza mudanças ao longo do tempo, em prejuízo desses segmentos na maio-ria dos casos. A dinâmica de relações com instituições religiosas, particularmente com segmentos da Igreja Católica, foi expressiva na década de 1980 e influiu sobremaneira na formação organizacional e discursiva dos movimentos populares e do movimento de direitos humanos, tendo sido menos influente no movimento ambientalista. No contexto pós 1990, a interconexão com os grupos religiosos sofreu redução drástica na Fams, no CPV e na Acapema, do mesmo modo que declinaram os seus vínculos com os sindicatos trabalhistas. De modo geral, essa tendência de arrefecimento das relações com os segmentos progressistas da Igreja Católica foi anunciada como decorrente de transformações internas à instituição (DOIMO, 1995), assim como diversos estudiosos verificaram mudanças no “novo sindicalismo” (COLBARI, 2003).

Contudo, o CDDH representa um movimento que contraria a tendência de re-dução extrema nos vínculos com instituições religiosas e sindicais, tendo mantido o vínculo com grupos religiosos em proporção elevada da rede de relações pretérita; além disso, a conexão com sindicatos permaneceu como indicador significativo. De fato, o padrão relacional no movimento dos direitos humanos no contexto democrático de inserção institucional é singular, cujas transformações ao longo da sua trajetória condu-ziram à maior diversificação e pluralização da sua rede de relações sociais. Isso, pois, ao mesmo tempo em que aumentou os vínculos com instituições do governo, movimentos sociais e outras organizações não governamentais, manteve significativa a relação com outros segmentos da rede pretérita, como grupos religiosos, sindicatos e partidos polí-ticos. A pluralização da rede de relações do CDDH, em que pese a expressiva inclusão de segmentos tanto institucionais quanto societários, potencialmente contribui para a ampliação da sua capacidade de influência na política institucional; hipoteticamente, isso equivale a dizer que quanto maior a diversificação da rede de relações, maior a ha-bilidade dos atores para influenciar politicamente a agenda pública.

2.3 Efeitos discursivos nos PACs dos movimentos sociais

Os estudos acerca das interações entre movimentos sociais, Estado e instituições políticas são limitados à noção de institucionalização da ação coletiva, segundo a qual a inserção na política institucional implica rotinização, inclusão e marginalização e cooptação. Essa perspectiva assume visão homogeneizante dos padrões de institucionalização: ativistas e autoridades aderem a um modelo previsível de ação, atores sociais institucionalizados têm acesso ao sistema político, são cooptados, mudam as suas reivindicações e perdem a sua autonomia, ao passo que são oprimidos e marginalizados aqueles que evitam os compromissos da política institucional (TARROW, 1997; MEYER; TARROW, 1998).

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No entanto, esses estudiosos desconsideram que a relação entre movimentos so-ciais e Estado seja mais complexa e multifacetada (DOOWON, 2006), ao ignorarem que as mudanças e reconfigurações na ação coletiva, ao longo do tempo, são heterogê-neas e multidimensionadas, que os padrões de interação sociedade-Estado são variados e que podem combinar elementos aparentemente contraditórios, como a cooperação e a contestação ou a cooperação e a autonomia. Neste estudo, a análise dos efeitos nos PACs dos movimentos sociais, no contexto democrático demonstra a configuração de diversos padrões de interação com os governos que caracterizam tanto mudanças quan-to continuidades no discurso da relação sociedade-Estado.

No contexto de inserção nas instituições participativas, a mudança mais signifi-cativa foi a emergência do discurso de cooperação com a esfera governamental, que conformou um novo padrão de interação entre movimento social e Estado, especifi-camente na Fams, no CPV e no CDDH. Esse padrão de interação cooperativo con-trasta com aquela concepção pretérita do período de transição do regime autoritário e de redemocratização da década de 1980, a saber, de antagonismo, de oposição e de enfrentamento dos poderes instituídos. Nesse contexto de emergência dos movimen-tos, o padrão de interação com o Estado foi descrito mediante categorias de conflito e contestação, marginalização e não reconhecimento, repressão e embate, em geral, motivados pela linguagem de movimento autônomo e independente das instituições políticas e do Estado.

O engajamento institucional desses movimentos sociais em arranjos participativos e agências governamentais estabeleceu uma nova concepção de relação com o Estado, em que pese o recuo da predominância das categorias de conflito e oposição e a emergência de categorias de cooperação, parceria, proximidade e diálogo. Mas, o que significaria co-operação? Mais precisamente, o que caracterizaria um padrão de interação cooperativo?

São relevantes as contribuições de Giugni e Passy (1998) à noção de relação coo-perativa entre atores coletivos e a esfera estatal. De acordo com os autores, cooperação é entendida como “a relação entre duas partes baseada na concordância quanto aos fins de uma dada ação, que envolve uma colaboração ativa com o objetivo de atingir cada finalidade” (GIUGNI; PASSY, 1998, p. 84). A cooperação se distingue do protesto e da oposição, na medida em que a primeira se caracteriza pela concordância quanto aos fins da ação e, a segunda representa desacordo com as prioridades, decisões e políticas governamentais. Os autores definem a cooperação a partir do nível pragmático da con-cordância, isto é, quando a relação de colaboração se converte em ações concretas. Essa cooperação se distingue por três formas: consulta, quando os atores não institucionais colaboram com informações relevantes à tomada de decisões; integração, quando os atores agem na implementação de decisões mediante a atuação em comitês, grupos de trabalho ou agências governamentais; e delegação, quando o Estado transfere a respon-sabilidade para o movimento no nível operacional.

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Desse modo, a cooperação se estabelece no plano da solução de problemas sociais e da contribuição com o Estado na elaboração, implementação ou execução de políticas públicas, em que movimentos sociais colaboram com o seu conhecimento e informação sobre dada política pública. Duas ressalvas são necessárias na noção de cooperação aqui adotada: (1) a concordância quanto aos fins da ação raramente é completa, dada a assime-tria de poder e de interesses entre os atores societais e os estatais; (2) a cooperação com o Estado na elaboração, implementação e execução de políticas públicas não é extensiva ao nível do consenso quanto às políticas governamentais.

O padrão de interação cooperativo dos movimentos com a esfera estatal é caracte-rizado pelo estabelecimento de relações de colaboração e parceria na elaboração de po-líticas públicas e na implementação e execução de programas do governo. Para essas coletividades, a relação de cooperação e colaboração com o Estado favorece o resultado de suas ações, na medida em que atores societários obtêm acesso aos órgãos públicos e a espaços institucionais e alcançam o reconhecimento da sua legitimidade pelo governo. Em outros termos, relações de proximidade e cooperação com os governos são relevantes ao atendimento das reivindicações do movimento, ao estabelecimento do diálogo e da proposição, à representação e participação nas instituições participativas, à discussão, fis-calização e acompanhamento de políticas públicas, e à gestão de programas e convênios governamentais. Em suma, as interações colaborativas têm como consequências o aten-dimento a demandas históricas do movimento e a influência política na agenda pública.

Por outro lado, esse padrão de relação cooperativo expõe os movimentos a riscos di-versos à sua capacidade de comportamento crítico e autônomo, conforme reconhecem os militantes: risco de dependência e submissão, de atrelamento e cooptação; de perda da autonomia, de distanciamento da base social; de impedimento de ações contrárias e críticas ao governo; de vinculação da imagem do movimento com a do governo; e risco de perda da capacidade de discussão e proposição. No contexto de engajamento na política institucional, de um lado, o estabelecimento de interações cooperativas na relação sociedade-Estado favorece o acesso ao ambiente institucional, aos agentes go-vernamentais e a influência na agenda política; de outro, o excesso de colaboração e de vínculos institucionais com o Estado pode reduzir o potencial de pressão e influência do movimento e favorecer a perda de autonomia e a dependência dos atores societais.

A consciência dos ativistas de que as relações de proximidade e cooperação com o Estado trazem consigo riscos de dependência e perda de autonomia, entretanto, não significa necessariamente que esses riscos se realizem, ou que modelos coopera-tivos na relação sociedade-Estado sejam dependentes a priori. Endossar essa posição, significaria partir de uma compreensão homogênea da ação coletiva que desconsidera a diversidade das configurações sociais e as possibilidades de invenção criativa, como o fazem as combinações dicotômicas que assimilam a cooperação à cooptação e a contestação à autonomia.

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Nos movimentos analisados, o padrão de interação cooperativo comporta ambas as categorias – dependência e autonomia. Na Fams e no CPV a relação de colaboração com as instituições governamentais tem obstado um posicionamento crítico e independente dos atores coletivos, ainda que os militantes associem esse padrão ao êxito nos resultados das suas ações e ao acesso à esfera política. A fragilidade do sentimento de autonomia nas interações de cooperação com o Estado, nesses dois movimentos, são autoidentificadas por categorias de dependência, submissão e atrelamento. Nesses termos, ambos os movi-mentos configuram um padrão de interação cooperativo e dependente. É necessário assina-lar que dependência é aqui entendida como a frágil capacidade de sustentar posições de modo independente dos interesses dos atores estatais e da agenda política governamental e não se confunde com cooptação, isto é, com a mudança de objetivos dos militantes.

No CDDH, diferentemente, os atores identificam a autonomia na relação de co-operação com o Estado e, unanimemente, não correlacionam categorias de dependên-cia e submissão para qualificar essa relação com a esfera governamental. Nesse caso, configura-se um padrão de interação cooperativo e autônomo. Essa análise comparativa comprova que não há contradição, a priori, entre cooperação e autonomia e que ambos podem ser combinados um mesmo padrão de ação coletiva, afinal, “institucionalização e independência pode parecer antitético, mas pode ser complementar” (DOOWON, 2006, p. 185). Nessa relação entre movimentos sociais e instituições políticas, a autono-mia é entendida nos termos de Tatagiba (2010, p. 68): como a “capacidade de determi-nado ator de estabelecer relações com outros atores (aliados, apoiadores e antagonistas) a partir de uma liberdade ou independência moral que lhe permita codefinir as formas, as regras e os objetivos da interação, a partir dos seus interesses e valores”.

O padrão de interação cooperativo e autônomo do CDDH é mais propenso à contes-tação, embate e denúncia de políticas governamentais em situações de não reconhecimento ou não implementação de demandas defendidas pelo movimento, comparativamente ao padrão de interação da Fams e do CPV. No movimento dos direitos humanos, relações conflitivas com o Estado são circunstancialmente acionadas em prol da garantia de políticas de seu interesse, conforme demonstraram as campanhas mobilizatórias contra a impuni-dade e corrupção no aparato estatal e o sistema prisional capixaba, nas décadas de 1990 e 2000, ao passo que a Fams e o CPV reduziram significativamente a contestação e o conflito, nesse período. A contestação no padrão de interação do CDDH é expressa, ainda, pelo uso de canais e fóruns alternativos à arena política institucionalizada, como a ação judicial e o acesso a organizações nacionais e internacionais de direitos humanos, sendo muitas das suas proposições de cunho contestatório e contrário aos interesses de governos. Na trajetória do movimento dos direitos humanos, essas iniciativas complementares de ação possibilitaram a pluralização das arenas para a participação e entendimentos políticos, na medida em que o movimento considera a multiplicidade de esferas públicas para atuação, sejam espaços institucionais ou não institucionais; ou, nos termos de Goldstone (2003), uma combinação entre política institucionalizada e não institucionalizada.

Euzeneia Carlos

120 Revista Democracia e Participação

O CDDH desenvolveu habilidades em combinar formas criativas de ação e nego-ciação política, voltadas ao equilíbrio entre a estabilidade e previsibilidade das interações institucionalizadas e cooperativas e o ambiente instável e incerto produzido por relações contestatórias e de confrontação. Esse movimento dos direitos humanos representa um “padrão de interação híbrido” que conjuga cooperação, autonomia e contestação, cujas partes são acionadas circunstancialmente no contexto histórico e político.

Por sua vez, a análise das transformações na trajetória da Acapema aprofunda a atenção para a heterogeneidade e a variação nos PACs dos movimentos sociais, no contexto pós-transição. Comparativamente à Fams-CPV-CDDH, esse movimento ambientalista apresenta expressiva continuidade no seu discurso da relação socie-dade-Estado, tendo preservada a sua linguagem de contestação e de autonomia na relação com o Estado e se recusado às interações cooperativas e de parceria com a institucionalidade política.

No cenário de inserção nas instituições participativas, a Acapema configurou um padrão de interação contestatório, não colaborativo e de limitado engajamento nas agências do Estado, sendo de baixa densidade e diversidade os canais de parti-cipação em que atuaram e descontínua a durabilidade da sua representação nestas esferas. Esse padrão de relação não cooperativo é caracterizado, ainda, pela não inte-gração do movimento a comitês ou órgãos públicos de implementação de políticas públicas e pela sua não adesão a programas e convênios governamentais que delegam a execução de políticas às organizações da sociedade civil. Por fim, o caráter conten-cioso da sua relação com o Estado é qualificado pelo uso de fóruns alternativos à concretização de suas ações, a exemplo da ação civil pública junto ao poder judici-ário, acessados como arenas de vocalização de demandas e proposições conflitivas e contrárias aos interesses de governos.

O padrão de interação contestatório da Acapema, definido pelos militantes como combatente e denuncista, nutre a permanência do seu posicionamento autônomo e crítico em relação às instituições políticas e o setor privado, e se mantém cético quanto às possibilidades de conjugação da autonomia ao modelo cooperativo de relação socie-dade-Estado. A combinação entre contestação e autonomia no repertório de interação desse movimento é uma articulação esperada na literatura especializada, conquanto ela tenha circunscrito esse padrão ao movimento não engajado na política institucional. Esses teóricos também associam o modelo de ação contestatório e autônomo à exclusão e marginalização do processo político e, ao fazê-lo, ignoram que, em circunstâncias de articulação à ampla rede de organizações societais, o movimento pode compensar os limites ao êxito de sua ação, provocado pelo acesso restrito às instituições políticas, e contrarrestar essa predestinação.

Alguns estudiosos têm identificado casos similares de movimentos ambientalis-tas, no país, que se inserem de modo diverso nas instituições governamentais e que

Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo

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variam significativamente na sua forma de atuação e no seu nível de autonomia. De acordo com Acselrad (2010, p. 106), a maioria dos estudos enfatiza ora a “substitui-ção do ambientalismo contestatório por um ecologismo de resultados, pragmático e tecnicista”, ora a ocorrência de um “movimento de neutralização das lutas ambien-tais, empreendido por organismos internacionais, empresas poluidoras e governos”. A despeito da predominância na transformação no ambientalismo brasileiro nos anos 1990, no sentido da diferenciação funcional, da profissionalização e do financiamen-to público e privado, há, no entanto, casos menos numerosos de “ecologismo comba-tivo”, para usar o termo do autor.6 Nesse padrão de atuação contestatório, ao qual se assemelha o da Acapema, os atores societários buscam preservar a crítica ao modelo de desenvolvimento econômico e se envolver na discussão das políticas públicas de modo crítico e independente.

A Acapema escapa à tendência de relações de cooperação e parceria com a es-fera governamental e o setor privado, comumente desenvolvidas por organizações ambientalistas e societárias no contexto democrático. Para esses ambientalistas, as relações cooperativas e de colaboração pressupõem alianças e sistemas de reciproci-dade que são inconciliáveis com a defesa da causa socioambientalista, em que pese o seu discurso de “entidade de contestação do modelo político econômico existente” e de incompatibilidade entre os propósitos do movimento e os interesses governamen-tais. Justificam, ainda, que o estabelecimento de relações de parceria e cooperação com o governo gera riscos de dependência e submissão do movimento aos interesses governamentais, dado os processos de atrelamento e de cooptação a que se exporiam que tornariam a capacidade de crítica e de combate dos ambientalistas minimizada e a sua autonomia comprometida. No reverso, o estabelecimento de relações de não cooperação e conflito com o governo garantiria ao movimento o posicionamento au-tônomo, o exercício do questionamento e da crítica na defesa dos interesses coletivos. A significativa presença do ideal de autonomia na identidade do movimento afeta a sua decisão em não cooperar com o governo, conforme defende Medeiros (2008) no estudo de ONGs brasileiras.

Resumidamente, a comparação dos efeitos na dimensão discursiva dos PACs dos quatro movimentos sociais, no contexto pós 1990, aponta a ocorrência de três padrões de interação sociedade-Estado: (1) o padrão de interação cooperativo e dependente; (2) o padrão de interação cooperativo, autônomo e contestatório ou padrão de inte-ração híbrido; e (3) o padrão de interação contestatório e autônomo. O Quadro 2 sumariza, comparativamente, esses três padrões de ação coletiva, suas configurações e respectivos movimentos.

6. Ver também Losekann (2011), que enfatiza a variação na forma como os atores de organizações ambientalistas agem na esfera institucional e, em alguns casos, conjugam inserção institucional com autonomia.

Euzeneia Carlos

122 Revista Democracia e Participação

QUADRO 2Comparação dos padrões da relação sociedade-Estado pós 1990.

MovimentosSociais

Padrões de interação sociedade-Estado

Cooperação Dependência Contestação Autonomia

Fams-CPV        

CDDH        

Acapema        

Fonte: Elaboração própria.

3 EFEITOS INSTITUCIONAIS NOS MOVIMENTOS SOCIAIS: MUDANÇAS E CONTINUIDADES

No contexto posterior a 1990, os PACs dos movimentos sociais sofreram significativa transformação. Este artigo demonstrou que os movimentos sociais mudam ao longo do tempo e que tal mudança afeta as dimensões organizacionais, relacionais e discur-sivas dos PACs. Estas transformações se correlacionam ao contexto de engajamento institucional nas IPs e a seus efeitos, ainda que essa correlação não explique parte relevante das variações achadas.

Os padrões de complexificação organizacional – especialização funcional, profis-sionalização, financiamento público e privado, formalização das estratégias de ação e mobilização interna – caracterizam mudanças nos movimentos institucionalmente inseridos. No entanto, as teses da institucionalização dos movimentos não possuem explicação para muitas dessas mudanças e falham ao ignorarem as variações nos padrões organizacionais e ao conceberem a complexificação organizacional como decorrente estritamente da inserção das coletividades na política institucional.

Em primeiro lugar, a especialização da estrutura funcional, a profissionalização e o financiamento de atividades dos movimentos sociais compreendem um padrão com regularidade na maioria dos casos, todavia, não é extensivo a todos os movimentos que experimentam processos de engajamento institucional. Desse modo, ainda que o engajamento dos atores societários nas instituições do Estado produza incentivos à complexificação da sua estrutura funcional, existem variações entre os movimentos que apontam continuidades. Em segundo lugar, a mudança nos objetivos dos movimentos não implica em sua transformação em grupo de interesse ou partido político, mas sig-nifica o acréscimo de novas finalidades ao objetivo fundacional que expressam novos interesses no contexto democrático.

Em terceiro lugar, ainda que a formalização das estratégias de ação se correlacione ao contexto de engajamento institucional, é preciso ponderar que: (1) as estratégias formalizadas e de formação de alianças políticas constituem parte do repertório de ação

Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo

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dos movimentos desde a sua fundação; (2) as ações disruptivas ou de protesto público sofrem o efeito de redução em todos os movimentos sociais, independentemente do seu nível de engajamento institucional; e (3) existe variação na proporção em que o protes-to público é reduzido no contexto democrático e alguns movimentos conjugam, com indicadores expressivos, estratégias rotinizadas e contenciosas.

Em quarto lugar, a associação entre inserção dos movimentos na política insti-tucional e desmobilização não é inequívoca. Comumente se ignora a variedade de padrões organizacionais dos movimentos, bem como o engajamento em institui-ções de formato inovador. Conforme tratado, a inserção em arranjos participativos produz incentivos à emergência de novas formas de mobilização das coletividades e impacta significativamente a expansão do associativismo civil e a pluralização das suas esferas de participação.

Os padrões de vínculos sociais, correspondente à dimensão relacional dos PACs, receberam pouca atenção das TMS. A rede de relações sociais dos movimentos, em di-ferentes contextos político-institucionais, caracteriza-se pelo “múltiplo pertencimen-to” a diferentes segmentos institucionais e da sociedade civil – órgãos governamentais, partidos políticos, grupos religiosos, sindicatos, movimentos sociais e entidades civis. No contexto de engajamento institucional, deslocamentos significativos ocorreram na densidade das conexões com esses segmentos, assinalado pela ampliação das relações com órgãos governamentais, manutenção de vínculos com partidos políticos, e cres-cimento dos laços com movimentos e entidades civis. Por outro lado, as variações achadas apontam que o aumento da relação com instituições governamentais e parti-dos políticos define um padrão relacional predominante nos movimentos, ainda que incomum a um dos casos.

Especialmente nesse aspecto, o argumento de que os efeitos relacionais nos PACs são decorrentes do nível de engajamento institucional dos movimentos pode ser com-plementado pela hipótese de correlação com a sua gênese relacional. Os significativos vínculos com partidos políticos de esquerda e instituições religiosas na fundação dos movimentos com alta intensidade de engajamento teriam aumentado a sua propensão a interação com instituições governamentais e partidárias no contexto democrático; ao passo que o repertório de relações pouco afeito à interação com partidos políticos e segmentos religiosos na fundação do movimento incidiria negativamente sobre a sua propensão a interagir com agências do governo e partidos políticos, no cenário pós-transição. Conforme comprovou Houtzager (2004), a interação de movimentos com instituições do sistema político no contexto de fundação, como o PT e a Igreja Católica, aumenta a sua propensão a interagir com instituições políticas no contexto democráti-co, na medida em que essas funcionaram como “incubadoras institucionais” para o mo-vimento social contencioso, favorecendo o aprendizado institucional dos movimentos e o reconhecimento dos atores institucionais como interlocutores válidos.

Euzeneia Carlos

124 Revista Democracia e Participação

Finalmente, os padrões de interação sociedade-Estado, concernentemente à dimen-são discursiva dos PACs, são caracterizados pelos discursos da relação do movimento com o Estado. As TMS desprivilegiaram essa análise cultural dos movimentos institu-cionalmente inseridos, como também conceberam o engajamento desses na estrutura do Estado como cooptada e desradicalizada. A perspectiva dicotômica dessas aborda-gens impede o reconhecimento das variações nos padrões de interação e da combi-nação de elementos supostamente contraditórios na ação coletiva – cooperação-con-testação e cooperação-autonomia –, sendo inadequada à compreensão das interações heterogêneas e multifacetadas.

Os padrões de interação – cooperativo e dependente, cooperativo e autônomo, contestatório e autônomo – caracterizam tanto transformações quanto continuidades nos discursos da relação dos movimentos com o Estado. O nível de engajamento insti-tucional dos movimentos pode ser levantado como hipótese explicativa dessa diferen-ciação, na medida em que há correlação entre a intensidade do engajamento dos atores coletivos nas agências governamentais e a sua propensão a desenvolver relações coope-rativas e de parceria com a política institucional. Essa hipótese coincide com as teses predominantes nas TMS, pelas quais se compreende a cooperação na relação socieda-de-Estado como decorrente da institucionalização do movimento. Contudo, a assimila-ção entre o padrão de interação e o engajamento institucional parece insuficiente para explicar porque alguns movimentos cooperam com a esfera governamental e outros a contestam. Ademais, a literatura especializada sequer prevê que os movimentos sociais podem acionar, circunstancialmente, a cooperação e a contestação e, assim, estabelecer um padrão de interação híbrido.

Evidências deste estudo apontam que o repertório de interação com o Estado não é determinado somente pelo contexto político-institucional, mas é igualmente afetado pela gênese do movimento e pela sua rede de relações sociais pretérita. Em outras pa-lavras, existiria uma correlação entre o padrão de interação dos atores societais com o Estado no contexto democrático e a sua gênese relacional. Ou seja, a significativa pre-sença de vínculos sociais com partidos políticos de esquerda e instituições religiosas na fundação do movimento aumentaria a sua propensão a desenvolver interações coopera-tivas com a esfera estatal, no contexto democrático. O contrário é verdadeiro, sendo, o repertório de vínculos pouco afeito a relações com partidos políticos e grupos religiosos na fundação do movimento reduziria a sua propensão a estabelecer interações colabo-rativas com agências do governo no cenário pós-transição. Resumidamente, a relação com o sistema político na gênese do movimento favorece o aprendizado institucional e o reconhecimento da interlocução com atores estatais.

De modo complementar, a demanda clamada pelo movimento igualmente se cor-relaciona ao seu padrão de interação com o Estado. De acordo com essa terceira hipó-tese, o estabelecimento de relações cooperativas ou contestatórias com a esfera estatal

Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo

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variaria conforme a demanda defendida pelo movimento e a permeabilidade do Estado a ditas políticas. Movimentos com reivindicações e propostas negociáveis e permeá-veis à agenda governamental tenderiam a interações cooperativas com o governo, ao passo que movimentos que defendem clamores considerados não negociáveis e que constituem ameaças para o governo são menos propensos a colaboração e tenderiam a contestação e ao conflito, tendo em vista a incompatibilidade de propósitos e interesses. A demanda do movimento também explicaria o padrão de interação híbrido. Hipote-ticamente, movimentos sociais que elaboram demandas tanto negociáveis e permeáveis à estrutura do Estado quanto temáticas de trabalho inconciliáveis com interesses do governo tenderiam a desenvolver padrões de interação que combinam, circunstancial-mente, a cooperação e a contestação.

Em última análise, este estudo demonstrou que as transformações nos PACs dos movimentos sociais, no contexto de engajamento nas instituições participativas, são configuradas no bojo de processos de ressignificação da relação sociedade-Estado. A compreensão das regularidades e variações nesses padrões de ação coletiva re-quer a consideração das configurações tanto institucionais quanto societárias, isto é, não somente do contexto de engajamento institucional, mas, igualmente, da gênese dos movimentos.

Euzeneia Carlos

126 Revista Democracia e Participação

O Quadro 3 sintetiza a análise empreendida ao longo do artigo.

QUADRO 3Síntese da comparação dos efeitos institucionais nos padrões de ação coletiva (PACs) no contexto pós 1990: organizacionais, relacionais e discursivos

EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs - ESTRUTURA FUNCIONAL

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FAMS CPV CDDH ACAPEMA

MUDANÇA:Complexificação da estrutura organizacional (estatuto social de 1996 e 2003) caracterizada por:

1) Especialização funcional: criação de novos órgãos, maior precisão em sua atri-buição e a sua adequação à participação nas instituições de políticas públicas e ao gerenciamento de programas e convênios governamentais; criação de secretarias popu-lares de políticas públicas, nas áreas de educação, meio ambiente, segurança e saúde; mudança do regime de coordenação geral para presidência; redução do número de representantes por associação de moradores no congresso para cinco delegados; a demanda por cursos de qualificação políti-ca das lideranças populares absorveu um escopo mais técnico e especializado.

2) Profissionalização: absorção de profissionais temporários e remunerados no interior da organização, voltados ao suporte técnico e jurídico, nas áreas de secretaria, comunicação, contabilidade e advocacia.

3) Financiamento público e privado das atividades mediante convênios e termos de parceria, firmados com ór-gãos do governo municipal e do setor privado, somado as contribuições das filiadas.

MUDANÇA:Complexificação da estrutura organizacional (estatuto social de 1998 e 2003) caracterizada por:

1) Especialização funcional: criação de novos órgãos e o seu amoldamento à dis-cussão de políticas públicas e ao modus operandi do Estado; criação da diretoria de departamentos voltada a especializar a estrutura funcional à participação nos conselhos institucionais de políticas públicas; criação da função de representantes regionais voltada a adequar a estrutura do movimento ao acompanhamento do or-çamento participativo e das atividades dos delegados nas regionais administrativas.

2) Profissionalização: absorção de profissionais temporários e remunerados no interior da organização, voltados ao suporte técnico e jurídico nas áreas de secretaria, comunicação, contabilidade e advocacia.

3) Financiamento das atividades por convênios com órgãos do governo municipal e do setor privado, além das contribuições das associações filiadas.

MUDANÇA:Complexificação da estrutura organizacional (estatuto social de 2000) caracterizada por:

1) Especialização funcional: criação de novos órgãos, a melhor precisão em sua atri-buição, e a sua adequação à atuação nas instituições participativas e agências go-vernamentais; transformação da diretoria executiva em conselho diretor, composto por cinco coordenações descentralizadas; os cursos de qualificação política de lideranças populares passou a enfatizar a formação de conselheiros e delegados dos arranjos participativos.

2) Profissionalização: absorção de profissionais vo-luntários e remunerados para suporte técnico aos trabalhos desenvolvidos, nas áreas de secretaria, jurídica, contábil, administrativa e assistência social e psicológica.

3) Financiamento das ativi-dades por convênios, termos de parceria e de cooperação técnica, firmados com órgãos do governo municipal, esta-dual ou federal ou do setor privado ou da sociedade civil, além das contribuições existentes de organizações sociais e religiosas de âmbito nacional e internacional.

CONTINUIDADE: A estrutura organizacional permanece com inexpressiva especialização funcional, formalização e organização interna; reuniões sem perio-dicidade predefinida, com registro em atas inconstante e funcionamento instável.Não absorção de profissio-nais remunerados.

Suas fontes de financiamen-to são incertas e restritas à contribuição dos associados. Permanece sem sede própria e infraestrutura de funciona-mento precária.

Continua

Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo

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EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs - OBJETIVOS E DEMANDAS

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MUDANÇA:Incorporação de novas finali-dades ao objetivo fundacional (estatuto social de 2003 e 2008), ao qual foi acrescido da proposição, elaboração e implementação de programas e projetos de políticas públicas e da formação de parcerias com órgãos públicos ou privados ou da sociedade civil, voltados às lutas comuns do movimento.

Acréscimo das demandas por participação popular na ges-tão pública e por organização, articulação e fortalecimento do movimento.

CONTINUIDADE:Continuidade no objetivo inicial de congregar as associações de moradores e entidades comunitárias em prol da solução de seus problemas e de lutas por melhores condições de vida social, econômica, política, cultural e ambiental.

Continuidade nas demandas com a permanência das po-líticas sociais como principal área de trabalho.

MUDANÇA:Incorporação de novas finalidades ao objetivo fundacional (estatuto social de 1998 e 2003), a saber: estabelecer colaboração com órgãos públicos, setores pri-vados ou da sociedade civil e a realização de convênios voltados à implementação de programas e projetos de políticas públicas.

Acréscimo das demandas por participação popular na gestão pública e por organi-zação, articulação e fortaleci-mento do movimento.

CONTINUIDADE:Continuidade no objetivo inicial de congregar as associações de moradores e entidades comunitárias em prol de melhorias nas condições de vida social, econômica, política, cultural e ambiental.

Continuidade nas áreas de trabalho: as políticas sociais permanecem como sua temática fundamental.

MUDANÇA:Mudanças nos objetivos, ca-racterizada pela incorporação de novos segmentos sociais e novas finalidades ao objetivo fundacional (estatuto social de 2000).

Foram acrescidos novos objetivos voltados à elaboração e gestão de políticas públicas nas áreas de direitos humanos, justiça, segurança, educação, saúde e assistência social.

A mudança na deman-da mais expressiva é a emergência do clamor por participação popular na gestão pública.

CONTINUIDADE:Continuidade no objetivo inicial de defesa da vida e da dignidade humana, sem distinção de nacionalidade, credo, cor, sexo, orientação sexual, idade, ideologia, raça e etnia, o qual permanece inalterado.

Continuidades em suas áreas de trabalho: a defesa de direitos humanos permanece sendo sua área de trabalho fundamental, seguida pela demanda por organização, articulação e fortalecimento do movimento.

MUDANÇA:Mudança nas demandas: a defesa de políticas ambientais e a participação na gestão pública emergem como principais mudanças em suas áreas de trabalho.

CONTINUIDADE:Continuidade nos obje-tivos, sem acréscimo de novas finalidades ao intuito fundacional de congregar pessoas e entidades em prol do combate às formas de depredação do meio ambiente capazes de afetar o equilíbrio ecológico.

Continuidades nas áreas de trabalho: os impactos dos grandes projetos industriais e a proteção de áreas de conservação ambiental permanecem como as de-mandas mais importantes.

Continua

Continuação

Euzeneia Carlos

128 Revista Democracia e Participação

EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs – MOBILIZAÇÃO INTERNA

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FAMS CPV CDDH ACAPEMA

MUDANCA:Alterações na dinâmica de mobilização interna do movimento, com a redução da frequência das reuniões e da percepção de participação no planejamento e na execução das atividades, e na tomada de decisões.

CONTINUIDADE:Incremento no associativismo civil, com a emergência de novas associações de moradores; e a pluralização de suas esferas de mobilização, caracterizada pela participação no interior da organização (reuniões, assembleias e congressos) e a atuação nas instituições participativas (conselhos de polí-ticas públicas, orçamento participativo, conferências setoriais, plano diretor urbano e plano plurianual).

MUDANCA:Alterações na dinâmica de mobilização interna do mo-vimento, com a redução da frequência das reuniões e da percepção de participação no planejamento e na execução das atividades, e na tomada de decisões.

CONTINUIDADE:Emergência de novas modali-dades de mobilização e de participação nos arranjos participativos.

O movimento passou a combinar a participação no interior da organização (reuniões e assembleias) com a atuação nas IPs (conselhos de políticas públicas, confe-rências setoriais, comitês e programas governamentais), além da participação em seminários e encontros do MNDH e nos fóruns de redes de movimentos.

MUDANCA:Alterações na dinâmica de mobilização interna do mo-vimento, com a redução da frequência das reuniões e da percepção de participação no planejamento e na execução das atividades, e na tomada de decisões.

CONTINUIDADE:Emergência de novas esferas de mobilização e de parti-cipação nas IPs de políticas públicas. Interrupção da par-ticipação nessas instituições participativas em meados dos anos 2000, seguida de desarticulação dos militantes e de desmobilização do movimento.

EFEITOS ORGANIZACIONAIS NOS PACs - ESTRATÉGIAS DE AÇÃO

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MUDANÇA:Formalização das estratégias de ação caracterizada pela redução das ativida-des de protesto público (manifestações, passeatas, atos públi-cos, abaixo-assinado) e pelo aumento das ações formalizadas (ofícios a órgãos públicos, audiências com autoridades do governo, ação judicial) e das alianças políticas (políticos, partidos políticos e militantes em car-gos públicos), tendo as duas últimas tornadas predominantes.

Essa mudança aponta a prevalência de mecanismos de ação formais, rotineiros e previsíveis, típicos de um processo de formalização das estratégias de ação, intensificada na última década, dado a ausência de iniciativas mobilizatórias ou de campanhas de protesto público promovida pelo movimento, cujo último registro remete a década de 1990.

MUDANÇA:Formalização das estratégias de ação caracterizada pela redução das ativida-des de protesto público (manifestações, passeatas, atos públi-cos, abaixo-assinado) e pelo aumento das ações formalizadas (ofícios a órgãos públicos, audiências com autoridades do governo, ação judicial) e das alianças políticas (políticos, partidos políticos e militantes em car-gos públicos), tendo as duas últimas tornadas predominantes.

CONTINUIDADE:Relativa continuidade nas estratégias de ação, na medida em que o movimento mantém o uso de atividades disruptivas e contenciosas, combinada às ações formais ou institucionalizadas, mesmo que em menor proporção se comparado à década de sua fundação.

A formalização das estratégias de ação é traço predominante do seu PAC, porém, esse é combinado a eventos mobilizatórios de repercussão signifi-cativa no cenário estadual e nacional, ao longo das décadas de 1990 e 2000, a exemplo da campanha contra a im-punidade e a violência e da campanha contra a violação dos direitos humanos no sistema prisional capixaba.

MUDANÇA:Formalização das estratégias de ação caracterizada pela redução das ativida-des de protesto público (manifestações, passeatas, atos públi-cos, abaixo-assinado) e pelo aumento das ações formalizadas (ofícios a órgãos públicos, audiências com autoridades do governo, ação judicial) e das alianças políticas (políticos, partidos políticos e militantes em car-gos públicos), tendo as duas últimas tornadas predominantes.

Esse repertório de ação formal, rotineiro e previsível é preponderante no contex-to pós 1990.

CONTINUIDADE:Continuidade na modalidade de ação judicial, a qual se manteve estável ao longo do tempo.

Continua

Continuação

Movimentos sociais, engajamento institucional e seus efeitos: estudo de casos comparados no Espírito Santo

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EFEITOS DISCURSIVOS NOS PACs – RELAÇÃO SOCIEDADE-ESTADO

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MUDANÇA:Padrão de interação cooperativo carac-terizado pelo deslocamento no discurso de relação sociedade-Estado, com a substituição das categorias de conflito e oposição pelas de cooperação, colabo-ração e parceria.

As interações cooperativas com a esfera governamental são autopercebidas como favoráveis à influência na agenda pública, ao atendimento de suas demandas históricas e ao acesso aos órgãos públicos.

O discurso de autonomia das institui-ções políticas perde a ênfase do período de emergência do movimento, sendo frágil a sua percepção de autonomia nas relações cooperativas com o governo, conformando um padrão de interação cooperativo e dependente.

MUDANÇA:Padrão de interação cooperativo carac-terizado pelo deslocamento no discurso de relação sociedade-Estado, com a substituição das categorias de conflito e oposição pelas de cooperação, colabo-ração e diálogo.

As interações cooperativas com a esfera governamental são autopercebidas como favoráveis à influência na agenda pública, ao atendimento de suas demandas históricas e ao acesso aos órgãos públicos.

CONTINUIDADE:Continuidade no discurso de auto-nomia das instituições políticas e de contestação no sistema de relação sociedade-Estado, conformando um padrão de interação, ao mesmo tempo, cooperativo, autônomo e contestatório ou padrão de interação híbrido.

CONTINUIDADE:Continuidade no discurso de relação sociedade-Estado, qual seja, de antagonismo, autonomia e de recusa às interações cooperativas com a esfera governamental e instituições partidárias.

Discurso contestatório, combatente, denuncista e de comportamento autô-nomo e crítico na relação com o Estado e o poder econômico.

Discurso de que as interações colabo-rativas com instituições públicas ou privadas são nefastas à identidade do movimento, conformando um padrão de interação contestatório e autônomo.

Fonte: Elaboração própria.

EFEITOS RELACIONAIS NOS PACs – REDE DE RELAÇÕES SOCIAIS

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MUDANÇA:Deslocamentos na intensida-de dos vínculos sociais com os segmentos institucionais e societais.

A mudança mais significativa é o incremento dos vínculos com órgãos governamentais, seguida pelo aumento dos laços com movimentos e entidades civis, pela manu-tenção dos níveis elevados de relação com partidos políticos e, pela redução dos vínculos com segmentos religiosos e sindicais.

MUDANÇA:Deslocamentos na intensida-de dos vínculos sociais com os segmentos institucionais e societais.

A mudança mais significativa é o incremento dos vínculos com órgãos governamentais, seguida pelo aumento dos laços com movimentos e entidades civis, pelo leve decréscimo das conexões com partidos políticos e pela significativa redução dos laços com instituições religiosas e sindicatos.

MUDANÇA:Deslocamentos na intensida-de dos vínculos sociais com os segmentos institucionais e societais.

A mudança mais significativa é o incremento dos vínculos com órgãos governamentais, seguida pelo aumento dos laços com movimentos e entidades civis e, ainda, pelo aumento da relação com outras instituições ou entidades; e pelo leve decréscimo das conexões com partidos políticos.

CONTINUIDADE:Continuidade significativa nos vínculos sociais com grupos religiosos e sindicatos de sua rede pretérita.

Nesse movimento ocorre maior diversificação e plura-lização da rede de relações sociais.

MUDANÇA:Deslocamentos na rede de relações sociais, caracterizada pela redução da intensidade dos vínculos com movimentos e entidades societários; e relativa estabilidade quanto aos vínculos com outras entidades ou instituições não governamentais.

CONTINUIDADE:Continuidade na rede de relações sociais, quanto aos vínculos menos expressivos com instituições do Estado, como órgãos do governo, grupos religiosos e, sobretu-do, partidos políticos.

Continuidade na centra-lidade dos movimentos sociais, entidades e outras instituições no conjunto de sua rede de relações.

Continuação

Euzeneia Carlos

130 Revista Democracia e Participação

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A PLURALIDADE DE SOCIEDADES CIVIS NA SEGURANÇA PÚBLICA: DELIBERAÇÃO E CONCEPÇÕES DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NO CONASP

O artigo propõe-se a contribuir com os novos debates sobre participação, examinando a presença e a atuação da “sociedade civil” nas instituições participativas e, para tanto, considera como lócus de análise o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp). O enfoque principal está nas concepções de representação política, ou seja, na forma como as concepções de representação política são compreendidas e evocadas pelas diversas organizações da sociedade civil com atuação no Conasp, nas duas gestões compreendidas entre 2010 e 2012. Este exercício permite ainda relacionar as proposições teóricas já clássicas como as de Pitkin (1967) com os debates mais contemporâneos que revigoram as discussões sobre representação, a exemplo das contribuições de Urbinati (2006; 2010) e o conceito de representação como advocacy. De um ponto de vista empírico, isso se traduz em um aprofundamento e uma caracterização das associações, redes e movimentos que integraram o Conasp no período analisado. A pesquisa revela que, mais do que uma sociedade civil monolítica, há uma pluralidade de trajetórias, repertórios de ação, demandas e grau de articulação com o Estado. A complexidade é ainda maior quando a atuação das “sociedades civis” é compreendida de modo relacional com a percepção dos outros segmentos que integram o conselho.

Palavras-chave: Representação. Participação. Conselho Nacional. Segurança Pública. Sociedade Civil.

Keywords: Representation. Participation. National Council. Public Security. Civil Society.

This article wishes to contribute to the contemporary debates on participation, by examining the presence and the agency of the so-called civil society within participatory institutions. In particular, we use empirical, multi method research to look at the workings of the National Council for Public Security (Conasp) in Brazil. Our main focus is on the visions of political representation among civil society organizations that have participated in the Conasp – i.e., in the way such organizations have understood and evoked political representation during the two Council terms comprised in the 2010-2012 timeframe. We examine these visions in light of the literature on political representation, ranging from Pitkin’s (1967) classical theoretical propositions to Urbinati (2006; 2010) contemporary contributions and the notion of representation as advocacy. Our inquiry reveals that way beyond a monolithic civil society there is a myriad of trajectories, repertoires of action, demands, and degrees of relationship with the state. The complexity is even bigger when the agency of members of civil society organizations is examined in relationship with the agency of members from other segments that constitute the Conasp.

Resumo: Abstract:

Gabriela Ribeiro Cardoso1

Fábio de Sá e Silva2

Julian Borba3

1. Mestra em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnica em Assuntos Educacionais na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: [email protected].

2. PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA); técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); professor substituto de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).

3. Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba

134 Revista Democracia e Participação

1 INTRODUÇÃO

Nas duas últimas décadas consolidou-se no Brasil um sistema participativo desenhado para promover a participação dos cidadãos nas decisões de políticas públicas (SÁ E SILVA; LOPEZ; PIRES, 2010). A institucionalização da participação tem marcado a agenda de pesquisas nas ciências sociais, de tal modo que já se delineia um cenário pós-participativo permeado por novos desafios analíticos, tais como: arranjos institu-cionais que operam como lócus da participação; legitimidade dos atores e do processo de representação extraparlamentar verificado naqueles espaços; e efeitos das práticas participativas sobre as políticas públicas, ou seja, “efetividade” da participação social (GURZA LAVALLE, 2011; AVRITZER, 2011; PIRES, 2011).

Esses desafios tornam-se ainda mais instigantes em um campo como o da segu-rança pública, no qual as iniciativas de institucionalização da participação são extrema-mente recentes em comparação com outras áreas. Nesse contexto, verifica-se não apenas a presença e a emergência de novos atores (sociedade civil, trabalhadores e gestores), desenhos institucionais e processos de participação (a convocação da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública com Cidadania – 1ª Conseg, em 2009, e a reforma do Conselho Nacional de Segurança Pública – Conasp, em 2010), mas também a histórica tensão entre a perspectiva da ampliação da democracia em que se baseia a institucionali-zação da participação e a cultura autoritária e tendente ao fechamento que incide sobre o setor da segurança pública (PERALVA, 2000).

Com base em análises qualitativas e quantitativas de dados primários (IPEA, 2013; SÁ E SILVA; DEBONI, 2012; CARDOSO, 2012), o presente artigo propõe-se a contribuir com os novos debates sobre participação, examinando a presença e a atuação da “sociedade civil” nas instituições participativas e tomando como lócus de análise o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp). O enfoque principal está nas concepções de representação política, ou seja, na forma como a condição de representante é compreendida e evocada pelas diversas organizações da sociedade civil com atuação no Conasp, nas duas gestões compreendidas entre 2010 e 2012.4 Esse exercício permite ainda relacionar as proposições teóricas já clássicas, como as de Pi-tkin (1967) com os debates mais contemporâneos que revigoram as discussões sobre representação, a exemplo das contribuições de Urbinati (2006; 2010) e do conceito de representação como advocacy.

O artigo está dividido em três partes, além desta introdução. Inicialmente apre-sentamos algumas linhas do debate teórico sobre representação política. Na sequência, realizamos uma breve caracterização do Conasp, das entidades da sociedade civil e

4. Como adiante será explicitado, essas duas gestões têm natureza e composição distintas, o que inclusive torna possível elaborar, para o período em questão, uma análise comparada, enriquecendo a discussão proposta neste artigo.

A pluralidade de sociedades civis na segurança pública: deliberação e concepções de representação política no Conasp

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dos conselheiros que dele participam, com destaque para o histórico e objetivo de cada uma. Na terceira parte, analisamos as concepções de representação que circulam no Conasp, com enfoque nas organizações que nele atuam em nome do segmento da “sociedade civil”.

2 CONCEPÇÕES TEÓRICAS DE REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: BASES PARA UMA AVALIAÇÃO DA ATUAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NO CONASP

Ao tratarmos de representação política, é necessário mencionar, ainda que brevemente, as contribuições de Pitkin (1967). Em obra seminal, a autora aborda visões representa-ção que têm tido grande reverberação no debate contemporâneo, as quais se tornaram um marco para a discussão da temática.

Pitkin inicia examinando o que considera duas visões formalísticas de representa-ção: a visão da autorização e a visão da accountability. A visão da autorização é forma-lística por definir a representação “em termos de uma transação que ocorre no início, antes que a representação vigente comece” (PITKIN, 1967, p. 39, tradução nossa), ou seja, é um tipo de representação que foca mais no que antecede a representação do que no conteúdo desta propriamente dito. Para diversos teóricos da autorização, a representação é como uma “caixa-preta” formatada no momento da outorga do poder, sendo que se os limites do poder outorgado são excedidos, ela se extingue. Não há como o mandatário representar “bem” ou “mal”, não há outros deveres associados à representação. Visão distinta da autorização é a da accountability, para cujos teóricos o representante deve ser alguém que presta contas, ou seja, responde aos outros pelo que faz (PITKIN, 1967, p. 55).

Assim, enquanto para os teóricos da autorização o representante é livre (ou, quando muito, limitado pelos termos originais de um contrato), para os teóricos do accountability, um representante representa na medida em que está sujeito à reeleição ou ao fim de seu mandato.

A accountability é considerada um corretivo da perspectiva da autorização, visto que aquela atribui direitos aos representados, mas não destina lugar para as obrigações e mecanismos de controle dos representantes. No entanto, Pitkin considera que as duas visões são formalísticas justamente porque o critério da representação está fora da ativi-dade pela qual esta se dá. Uma enfoca no momento que antecede o início da represen-tação e a outra que ocorre depois, em como termina. Porém, nenhuma das duas trata do que ocorre durante a representação, de como é esperada a ação de um representante, se ele representa bem ou mal.

Outra concepção de representação abordada por Pitkin, que expressa uma vi-são completamente diferente da formalística, é a de tipo descritivo. Essa perspectiva argumenta que o legislativo deve ser selecionado como uma composição capaz de

Gabriela Ribeiro Cardoso | Fábio de Sá e Silva | Julian Borba

136 Revista Democracia e Participação

corresponder a toda a nação, um retrato exato da população. Trata-se mais de ser alguém do que fazer algo. Em síntese:

Para estes autores, representação não é agir com autoridade, ou agir antes de ser responsabilizado, ou qualquer outro tipo de agir em absoluto. Pelo contrário, ela depende das características dos representantes, sobre o que ele é ou como é, trata-se mais de ser algo do que fazer algo. O representante não age pelos outros, ele está pelos outros, pela virtude da correspondência ou conexão entre eles, a semelhança ou o reflexo (PITKIN, 1967, p. 61, tradução nossa).

A representação descritiva proporcionalista considera um modo de representar muito diferente dos teóricos formalistas, ou seja, envolve representar por “standing for”, “agir por” alguém ou algo que está ausente, tendo em vista a correspondência de carac-terísticas entre o representante e o representado. É um modo de representar que pode ser chamado de representação descritiva, na qual uma pessoa torna-se responsável pelas demais em função da semelhança que guarda com estas.

A representação como “agir por”5 preocupa-se, desse modo, com a natureza da re-presentação, com o que acontece durante a representação, sua substância e conteúdo. Essa visão possibilita discutir as obrigações do representante como um agente e a repre-sentação como princípio de ação. Dentre as características de agir pelos outros, está o fato de não agir por impulso, mas sim pela ação deliberada, ou seja, pelo que já foi decidido. A representação significa ainda agir de um modo responsivo em relação ao interesse do representado de modo que não haja conflito. Por fim, o dever do representante consiste na tarefa dual de perseguir tanto o interesse local quanto o nacional. A representação substantiva existe apenas onde os interesses e as decisões não são escolhas arbitrárias.

Na conclusão de sua obra, Pitkin aponta que uma visão correta e completa da representação depende do entendimento adequado do que a representação significa, pois cada visão de representação possui hipóteses e implicações. Pitkin (1967) apresenta uma importante contribuição para a definição de representação política ao considerá-la como “agir por”; mas entende que o sistema representativo deve cuidar do interesse público e ser responsivo à opinião pública. Por isso, a autora considera que a forma e a substância são os dois grandes e indispensáveis ânimos para a vida social e política, sendo necessária a articulação de ambos. Isso porque para assegurar a substância da representação é necessária a institucionalização. O conceito de representação é, então, uma contínua tensão entre o ideal e o conquistado, mas esta tensão não deve conduzir a abandonar o ideal ou a institucionalização para a vida política.

5. Dando continuidade à representação como “agir por”, Pitkin apresenta os argumentos de duas correntes teóricas: (1) os teóricos do mandato – que fazem o que os seus eleitores desejam; (2) os teóricos da independência – que ressaltam a importância de ter liberdade para decidir de acordo com o seu próprio julgamento.

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No debate mais recente, Philips (2001) ressalta que, na dinâmica corrente da repre-sentação, valorizam-se mais as preferências e crenças dos eleitores que as características dos representantes. Neste sentido, dialoga com Pitkin, que critica a representação descritiva ao apontar a importância da dimensão formal (institucional) da representação (a autorização e accountability). A qualidade da representação normalmente é vista como dependente de mecanismos mais firmes de responsabilização e prestação de contas, mas tais argumentos nem sempre se comprometem com a questão da exclusão política.

A preocupação central de Philips é com os mecanismos que permitem associar a representação justa à presença política e que reivindicam mudanças no nível político. Assim, Philips destaca as demandas por presença política de grupos que se reconhecem como marginalizados ou excluídos – grupos étnicos que almejam maior inclusão polí-tica. Trata-se de colocar em discussão “a separação entre quem e o quê é para ser repre-sentado” (PHILIPS, 2001, p. 272, grifo nosso).

Ainda entre os autores que se destacaram no revigoramento do debate recente sobre representação está a cientista política italiana Urbinati (2006). Essa autora desen-volve a compreensão de que a democracia representativa não é um substituto imperfeito para a democracia direta, mas sim consiste em um primado para expandir a democracia.

Urbinati (2006) propõe-se a realizar uma redescoberta do termo representação, sem perder de vista uma perspectiva genealógica que trate dos diferentes sentidos atri-buídos ao conceito.6 Consequentemente, Urbinati argumenta que a democracia repre-sentativa não é um paradoxo ou uma alternativa para algo tornado impossível contem-poraneamente. Para tanto, propõe que enxerguemos a representação como um processo político que articula a sociedade e o Estado, além de ser um componente essencial da democracia. Nesse sentido, a autora ressalta que:

A representação política transforma e expande a política na medida em que não apenas permite que o social seja traduzido no político; ela também promove a formação de grupos e identidades políticas. Acima de tudo, ela modifica a identidade do social, uma vez que, no momento em que as divisões sociais se tornam política ou adotam uma linguagem política, elas adquirem uma identidade na arena pública de opiniões e tornam-se mais inclusivas ou representativas de um espectro mais largo de interesses e opiniões (URBINATI, 2006, p. 219).

6. Urbinati identifica três teorias da representação ao tratar do governo representativo nos seus duzentos anos de história: a perspectiva jurídica, a perspectiva institucional e a perspectiva política. A teoria jurídica é a mais antiga e denomina-se jurídica porque trata a representação como um contrato privado. Nesse modelo, a relação entre representante e representado está de acordo com a lógica individualista e não política, a representação não é um processo. A perspectiva política da representação rompe com os modelos anteriores e cria uma categoria nova ao conceber a representação de modo dinâmico ao invés de estático. Assim sendo, Urbinati aponta que Pitkin reformula o conceito de representação política (no sentido de agir em nome de).

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138 Revista Democracia e Participação

A partir das contribuições de Mill, que ligou governo representativo, representação proporcional e o caráter agonístico da assembleia, Urbinati desenvolve o conceito de representação como advocacy. Enquanto para Rousseau o cidadão deveria formar a sua opinião sozinho, sem influência de paixões extremas, Mill defendeu o debate público e o processo deliberativo. Mill supõe, portanto, a representação como uma instituição com-plexa, com diversas camadas de ação política. Dessa forma, a representação é compreen-dida como uma “linha de ação, mais do que um ‘simples ato’ – uma prática de interação política entre cidadãos que vai muito além do ato de votar” (URBINATI, 2010, p. 66).

A representação como advocacy apresenta dois componentes: “a ligação ‘apaixonada’ do representante com a causa dos eleitores e a relativa autonomia de juízo do representante” (URBINATI, 2010, p. 77). Os representantes como advocates não são apenas partidários, mas também deliberadores. Além disso, a advocacy não é um partidarismo cego, no qual um advocate precisa ser imparcial como um juiz, pois este possui vínculos com os seus “clientes”. O advocate7 deve aderir à causa que defende, é a ideia de um defensor apaixo-nado, uma identificação pela identidade dos ideais e dos projetos. A representação como advocacy faz parte do modelo agonístico da política que valoriza a importância do conflito.

Destacamos ainda que, no debate brasileiro, é possível encontrar importantes re-ferências para a compreensão da representação política nas experiências participativas. A representação desempenhada por organizações da sociedade civil é objeto das análi-ses de Gurza Lavalle, Castello e Houtzager (2006), os quais ressaltam a relevância de abordar a representação e a participação de modo relacionado. Posteriormente, outros pesquisadores dedicaram-se a tratar da representação no interior das experiências par-ticipativas como Luchmann8 (2007), Borba e Luchmann (2010), Avritzer (2007) e Almeida (2010). Eles desenvolveram os conceitos de representação por entidades ou organizações sociais, representação por afinidade9 e autorização contingente.10 Tais con-ceitos, como veremos, podem ser de grande utilidade para se examinar a atuação da “sociedade civil” em um órgão como o Conasp.

7. Entretanto Urbinati considera a figura do representante-advocate como “peculiar a uma democracia cuja sociedade civil não encarna plenamente os princípios democráticos” (URBINATI, 2010, p. 87), o que necessita ser mais bem explorado.

8. A abordagem desenvolvida por Luchmann (2007) visa combinar as relações de participação e representação que ocorrem no interior das experiências participativas, fenômeno denominado como representação no interior da participação.

9. De modo geral, trata este tipo de representação como fruto de uma “relação variável no seu conteúdo entre os atores e os seus representantes”, ou seja, uma legitimidade que se dá pelo tema (AVRITZER, 2007, p. 457).

10. Almeida (2010) analisa as práticas da representação política, com enfoque nos conselhos municipais de saúde. Assim, vale-se das contribuições de Pitkin para cunhar o conceito de autorização contingente, pois se trata de um poder derivado, na medida em que é transmitido por outros poderes constituídos. Em síntese, o exercício da representação aparece relacionado com outros poderes: “Ademais, nos conselhos, o mandato e a capacidade de ‘agir em nome’ de públicos, temas e/ou perspectivas é sempre dependente do poder político, em termos de disposição de partilha do poder decisório e capacidade de implementação das políticas deliberadas, o que reforça a incerteza do componente da autorização” (ALMEIDA, 2010, p. 136). Almeida acrescenta que a representação nos conselhos de políticas públicas depende de um tipo de autorização que pode contribuir para a legitimação daqueles que possuem afinidade com o tema, o que por sua vez recebe a influência da própria definição dos métodos de escolha para os representantes, que podem ou não “autorizar pessoas que tenham afinidade e relação com o tema” (ALMEIDA, 2010, p. 136).

A pluralidade de sociedades civis na segurança pública: deliberação e concepções de representação política no Conasp

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3 O CONASP E SUAS SOCIEDADES CIVIS: OBJETO, MÉTODOS E ESCOPO DA ANÁLISE

O Conasp foi criado por meio do Decreto nº 98.936/1990, ou seja, na esteira – ao menos aparente – da promulgação da Constituição de 1988. Originalmente, tratava-se de colegiado de cúpula, não envolvendo participação da sociedade civil, orientação mantida na reforma operada por meio do Decreto nº 2.169/1997.11 A partir de 2007, começou a ganhar força, no Ministério da Justiça (MJ), a ideia de se reformar o Con-selho. A proposta foi impulsionada, afinal, com a realização da I Conferência Nacional de Segurança Pública (1a CONSEG).

De fato, a convocação da 1a CONSEG, em 2008, foi acompanhada da formação da Comissão Organizadora Nacional (CON). Essa comissão era formada por atores dos três segmentos de representação reconhecidos pela Conferência e, mais tarde, pelo pró-prio Conasp: (1) trabalhadores da segurança pública12, (2) sociedade civil e (3) gestores dos três entes federados e dos três poderes. Tanto na CON quanto no Conasp, esses segmentos se dividiam na proporção de 30%, 40% e 30%, respectivamente.

A CON funcionou até o final da etapa nacional da Conseg, em agosto de 2009, quando, amadurecida a decisão política do MJ de reformar o Conasp, foi transformada em versão transitória deste Conselho (Decreto nº 6.950/2009), processo para o qual, afinal, acabou servindo de fiadora. Essa versão transitória recebeu mandato de um ano, tendo por objeto a definição de critérios, regras e procedimentos eleitorais do Conasp “definitivo”. Assim é que, em 2010, ocorreram as eleições para os representantes dos tra-balhadores e da sociedade civil que integrariam a primeira gestão do Conasp “definitivo”.

A análise constante deste artigo recai sobre esses dois momentos de existência do Conasp e resulta de pesquisas empíricas (IPEA, 2013; SÁ E SILVA; DEBONI, 2012; CARDOSO, 2012) que envolvem entrevistas, análise das recomendações apro-vadas pelo conselho (mecanismo relevante para tratar das deliberações produzidas do órgão); observação das reuniões; e aplicação de questionários (surveys), primei-ramente aos conselheiros do Conasp “transitório”, em 2010 e, posteriormente, aos

11. O início desta seção está baseado em Sá e Silva e Deboni (2012). Os membros permanentes, na composição de 1990, eram: Ministério da Justiça (presidente); Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP); Diretor-geral do Departamento de Polícia Federal (DPF); e Secretários estaduais de segurança pública. Os membros permanentes na composição de 1997 eram: Ministério da Justiça (presidente), Secretário nacional de segurança pública, Presidentes dos conselhos regionais de segurança pública, Inspetor-geral das PMs, Diretor-geral do DPF, Diretor-geral do Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF), Presidente nacional dos chefes da Polícia Civil, Presidente do Conselho Nacional de Comandantes-Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (CNCG). Em ambas as configurações, OAB e Ministério Público Federal eram membros convidados.

12. São exemplos dessa categoria: Oficiais da Polícia Militar, Praças da Política Militar, Agentes Penitenciários, Policiais Rodoviários Federais, Policiais Civis, entre outros.

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conselheiros da primeira gestão do Conasp “definitivo”, em 2012.13 A análise das atas também rendeu insumos relevantes, pois estas constituem um material bastante rico e possuem um grau de detalhamento que foge ao padrão de registro observado em outros conselhos. Três questões orientam a discussão pretendida: quem atua como representante da sociedade civil; quem ou o que tais representantes representam; e que mecanismos embasam esse ofício de representação. As próximas seções exprimem os resultados dessa investigação.

3.1 Quem atua como representante (I): organizações, movimentos e redes da “sociedade civil”

Inicialmente apresentamos uma caracterização geral e um breve histórico dos fóruns, re-des de movimentos sociais e entidades da sociedade civil que integram o Conasp na versão “definitiva”. Essas informações são relevantes para a compreensão tanto da diversidade da sociedade civil no Conselho e no campo da segurança pública de um modo mais geral quanto para analisar as próprias concepções de representação política aí envolvidas.

Movimento Nacional de Direitos Humanos

Fundado em 1982, constitui, com o Gajop, o Iser e o Inesc, uma das organizações da sociedade civil mais antigas a integrar o Conasp. Na sua origem, possui relação com a Igreja Católica e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que durante a ditadura militar atuavam na defesa de presos políticos. Nesse contexto, emergiram os Centros de Direitos Humanos do país. Como ressaltou entrevistada:14

A gente é um saldo daquelas entidades que têm origem nas comunidades eclesiais de base, naquela época em que a igreja é uma teologia da libertação, entendeu? ... Então a gente tem... é como eu disse, é diferente de outras ONGs que se profissionalizam, mas não tem uma visibilidade, uma credibilidade uma história, não arrastam uma história como a gente. (Entrevista a Cardoso, 2012).

É interessante ressaltar a ênfase que a representante do MNDH no Conasp atribui à própria história do MNDH em diferenciação às demais entidades que compõem o órgão. Conforme consta no site, o MNDH (2012) tem atuado nas seguintes frentes: campanha nacional de combate à tortura; produção de estudos e pesquisas; intervenção nas políticas públicas (planos nacionais de direitos humanos); lobby e advocacy. Com relação ao lobby e

13. Os dados de 2010, coletados nas pesquisas de Sá e Silva e Deboni (2012) e Ipea (2013) contêm entrevistas com 36 (trinta e seis) conselheiros(as), sendo 25 (vinte e cinco) titulares e 11 (onze) suplentes. Já os dados de 2011, coletados na pesquisa de Cardoso (2012), contêm entrevistas com 32 (trinta e dois) conselheiros(as), dos quais 23 (vinte e três) eram titulares e 09 (nove) suplentes. Especialmente neste ano, é relevante a participação dos suplentes, tendo em vista a divisão de cadeiras entre alguns trabalhadores(as) e entidades da sociedade civil.

14. Entrevista concedida por representante do MNDH [dez. 2011]. Entrevistadora: Gabriela Ribeiro Cardoso. Joinville, 2011. 1 arquivo .mp3 (2h e 02 min.)

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advocacy, atuou nas mobilizações pela Constituição de 1988, assim como pela aprovação de leis como a que tipifica o crime de tortura e a proteção às testemunhas. Assim, é rele-vante observar que o MNDH mobiliza o conceito de advocacy para designar uma de suas formas de atuação, uma das vertentes teóricas consideradas neste artigo.

Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop)

Criado em 1981, em Recife (PE), fruto da iniciativa de advogados que desejavam trabalhar com educação jurídica popular. No período de elaboração da Constituição de 1988, o Gajop participou das discussões sobre os novos direitos fundamentais. Em 1995, criou o Programa Estadual de Apoio e Proteção a Vítimas, Testemunhas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita), com o intuito de colaborar com a redução da impunida-de. Possui como objetivo “contribuir para a democratização e o fortalecimento da Socie-dade e do Estado, na perspectiva da vivência da cidadania plena e da indivisibilidade dos Direitos Humanos” (ALMEIDA, 2011).

Instituto de Estudos da Religião (Iser)

Possui origens vinculadas ao Iset (Instituto Superior de Estudos Teológicos), fundado em 1970. Foi criado em 1973, com o objetivo de realizar estudos no campo da moral, da educação, da cultura e da religião. Em 1980, expandiu a sua atuação para as ações e projetos de intervenção social. Com a agenda bastante sensível às questões da cidadania, a partir da década de 1990 também passa a abordar questões ambientais e a atuar em conjunto com outras ONGs em temas como racismo, direitos humanos e defesa dos meninos de rua.

Em 1993, “desempenha um papel fundamental no processo de criação do Movi-mento Viva Rio, nascido e desenvolvido no próprio espaço institucional do Iser” (ISER, 2012). Suas atividades atuais possuem os seguintes eixos temáticos: religião e espaço pú-blico; sociedade e relações sustentáveis; e violência, segurança pública e gestão de conflitos.

Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

Fundado em 1979, constitui-se em uma das entidades mais antigas que integra o Conasp. É uma organização não governamental que possui como missão “contribuir para o aprimoramento da democracia representativa e participativa visando à garantia dos direitos humanos, mediante a articulação e o fortalecimento da sociedade civil” de modo a influenciar nos espaços de governança. As temáticas prioritárias de atuação são: democracia, parlamento e sociedade; direitos humanos e igualdade; infância e juventude; orçamento público e justiça tributária; política socioambiental; política indígena; política internacional e integração regional; reforma agrária e soberania ali-mentar; segurança pública (INESC, 2012).

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Viva Rio

Fundada em 1993 por representantes da sociedade civil, possui como missão “promover a cultura de paz e viabilizar a inclusão social” (VIVA RIO, 2012). Surgiu em resposta a duas grandes tragédias cariocas: o massacre de oito meninos em frente à Igreja da Calendária e a execução de 21 moradores da favela de Vigário Geral. Em 1994, participou da primeira mobilização pela coleta de armas de fogo com a campanha “Rio, desarme-se” e, posteriormente, contribuiu para a elaboração do Estatuto do Desarmamento. Atua nas áreas da segurança, meio ambiente, saúde, educação, artes e esportes. Na área da segurança, possui como um dos principais projetos o Controle de Armas, temática discutida em Reunião do Conasp realizada na sede da instituição em 2011, quando foi aprovada a Recomendação n. 01, de 10/06/2011, que trata da Campanha do Desarmamento. Essa deliberação reco-mendava ao Ministro da Justiça a divulgação e o esclarecimento para a população, por diversos meios de comunicação, sobre os riscos da posse de armas.

Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais

Criada em 1995, atualmente constitui-se na maior rede LGBT na América Latina. Conta com 253 organizações formais nos diferentes estados do país e possui as seguin-tes linhas de atuação:

o monitoramento da implementação das decisões da I Conferência Nacional LGBT; o monitoramento do Programa Brasil Sem Homofobia; o combate à homofobia nas escolas; o combate à Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis; o reconhecimento de Orientação Sexual e Identidade de Gênero como Direitos Humanos no âmbito do Mercosul; a advocacy no Legislativo, no Executivo e no Judiciário; a capacitação de lideranças lésbicas em direitos humanos e advocacy; a promoção de oportunidades de trabalho e previdência para travestis; a capacitação em projetos culturais LGBT (ABGLT, 2012).

Convém mencionar que no site da organização é possível encontrar referência à sua atuação em conferências nacionais que, de algum modo, envolveram as demandas LGBT; em conselhos LGBT nos três níveis federativos; assim como em frentes par-lamentares e diferentes projetos de lei. Assim, existe a possibilidade de identificar um repertório15 amplo de ação política da entidade, que perpassa por diferentes estratégias e arenas. Na 14ª Reunião Ordinária do Conasp, realizada em dezembro de 2011, o

15. Luchmann (2011), ao analisar as novas práticas de representação política sustentadas pelas associações, mobiliza o conceito de repertório de Charles Tilly e por isso desenvolve uma concepção que vê complementaridades e não somente conflitos entre as práticas associativas. Desse modo, a atuação de representação institucional combina-se com outras atividades políticas e sociais.

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representante da ABGLT Márcio Marins realizou interessante exposição no pleno, para que os(as) demais conselheiros(as) compreendessem de modo mais profundo as temáticas relevantes para o movimento e as suas diversas formas de incidência.16

Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais

Criada em 1991, reúne organizações que lutam contra os diferentes tipos de discri-minações e desigualdades e visa à radicalização da democracia. É uma associação forma-da por um conjunto de organizações da sociedade civil e visa articular os movimentos sociais no Brasil em prol dos direitos humanos, democracia e justiça.

Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos

Nasceu da articulação das entidades que se reuniam para organizar e preparar as conferências nacionais de direitos humanos. A partir de 2000, passou a reunir-se para além das conferências e possui os seguintes objetivos: ampliar as organizações da so-ciedade civil que atuam na defesa dos direitos humanos; apoiar os fóruns estaduais e municipais de direitos humanos; garantir a autonomia da sociedade civil; e combater as diferentes formas de discriminação, partilhando de uma concepção bastante ampliada de direitos humanos (FENDH, 2012).

Coletivo de Entidades Negras (CEN)

Criado em 2005, visa agregar a experiência da tradição, os terreiros, os movimen-tos urbanos e a juventude negra. Assim constitui-se como “um esforço do povo negro para que a nossa sociedade melhore” (CEN BRASIL, 2012).

Fórum Nacional de Juventude Negra

É resultado da articulação dos fóruns estaduais de juventude negra que busca incluir os jovens das periferias e das comunidades marginalizadas nos processos de participação social. Possui como principal diretriz “o combate ao racismo sob todas as suas formas de expressão, especialmente no que diz respeito à violência contra jovens negros e negras nas diversas regiões brasileiras” (FOJUNEBA, 2012). Nessa direção, realiza a campanha nacional contra o extermínio da juventude negra.

A recomendação n. 02 do Conasp, aprovada em 10 de junho de 2011, foi pro-posta pelo fórum e destaca o crescente número de homicídios e o encarceramento de

16. Conforme citação extraída da Ata da Reunião: “Então ... eu trago um pouco do que é o movimento LGBT, o que é que lésbicas, gays, travestis e transexuais passam no Brasil e pelo que nós trabalhamos. É uma forma de nos conhecermos melhor. Assim como temos que conhecer o trabalho que é feito na Maré, como é que são os trabalhos feitos nas comunidades, nas associações de classe que temos aqui, como é que está funcionando todas as áreas” (CONASP, 2011, p. 148).

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jovens negros no país, sugerindo a “busca de soluções e definição de responsabilidades setoriais em relação às políticas públicas de combate à violência letal contra a juven-tude negra” (p. 2). A temática dos homicídios contra jovens negros foi debatida na reunião de agosto de 2011, quando vários conselheiros cobraram avanços nas ações do Pronasci.17 Nas reuniões de 2011, este tema mobilizou grande parte dos representantes da sociedade civil18.

Rede Desarma Brasil

Criada em 2005 com o “... objetivo de ampliar e melhorar a Campanha de Entrega Voluntária de Armas no Brasil”, no contexto das discussões geradas pelo Referendo do Desarmamento. Agrega mais de 50 organizações de todas as regiões do país que buscam consolidar o Estatuto do Desarmamento (REDE, 2012).

Conselho Federal de Psicologia (CFP)

Constitui-se na única entidade representante da sociedade civil no Conselho que tem caráter classista, tendo sido constituída para a defesa dos interesses de uma cate-goria profissional. Nacionalmente, porém, o CFP tem histórico recente de várias ma-nifestações em relação a sistema prisional, tratamento sem segregação a usuários de entorpecentes, educação, democratização das comunicações, população em situação de rua, entre outras temáticas (CFP, 2012).

Pastoral Carcerária

Possui como missão ser a “presença de Jesus Cristo e da Igreja Católica no cárcere e promover a valorização da dignidade humana” (PASTORAL, 2012). A coordenação nacional foi criada em 1988 e os esforços da pastoral voltaram-se à conscientização da sociedade sobre a situação do sistema penitenciário, à criação de políticas públicas vol-tadas aos direitos humanos e à promoção da dignidade humana.

Redes de Desenvolvimento da Maré e Observatório das Favelas

Possui como missão “promover a construção de uma rede de Desenvolvimento Territorial por meio de projetos que articulem diferentes atores sociais comprometidos

17. Como se pode observar da crítica do representante do Inesc no Conasp nos debates sobre o Plano Plurianual: “A gente tem 50 milhões de vítimas nesse país, mais de 50% destas vítimas são negros, a maioria são jovens, há uma caracterização da violência letal que já no Pronasci e não aparece aqui. Não há nenhuma medida específica com relação à violência contra jovens negros. [...] Eu não vi nenhum diagnóstico ainda, que o Pronasci ou mesmo a campanha do desarmamento tenham influenciado na redução dos homicídios.” (Ata da 12ª Reunião Ordinária do Conasp).

18. No entanto, ao mesmo tempo em que a recomendação foi aprovada pelo Conasp, o Conselho teve notícia de que um “plano de articulação nacional para a redução dos homicídios dolosos” elaborado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública havia sido rejeitado pela Presidência da República.

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com a transformação estrutural da Maré” e desenvolver ações nos espaços populares que sejam capazes de interferir “lógica de organização da cidade e combatam todas as formas de violência” (REDES, 2012). O Observatório das favelas, criado em 2001, constitui-se em uma organização social de pesquisa, consultoria e ação pública formada por profissionais oriundos de espaços populares. O Observatório visa “afirmar uma agenda de Direitos à Cidade, fundamentada na ressignificação das favelas, também no âmbito das políticas públicas” (OBSERVATÓRIO, 2012).

Esta breve explanação das entidades e movimentos sociais que integram o Conasp já permite identificar uma pluralidade de sociedades civis no campo da segurança pública. Trata-se de uma sociedade civil não coesa, composta de organizações com perfis diferentes, os quais eventualmente conflitam, como ressalta a representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos ao mencionar o processo eleitoral para o Conasp biênio 2011-2012:

Eu acho que ele [o processo eleitoral] foi muito positivo no sentido de que a gente conseguiu ampliar a participação popular no CONASP. A entrada do Gajop, da pastoral carcerária, da juventude negra. Tudo isso fortaleceu a nossa base de intervenção no CONASP. São entidades que historicamente tem uma atuação em nível nacional forte na defesa de direitos humanos na área de segurança pública, mas que não tinham voz no CONASP né. Porém por outro lado nós não temos uma sociedade civil coesa, nós temos uma sociedade civil com perfis diferentes dentro do CONASP. Temos entidades muito mais voltadas para um espaço de, talvez, conciliação seja uma palavra forte, mas muito mais alinhadas com o status quo vigente na segurança pública do que outras como nós que temos um combate direto com a questão do homicídio, da discriminação, da violência, né? E isso provoca uma determinada divisão. (Entrevista a Cardoso, 2012).

Assim, a representante do MNDH descreve uma divisão da sociedade civil em duas linhas gerais de organizações: as alinhadas com o status quo vigente da segurança pública; e as que se dedicam a uma postura de combate mais direto em relação a temas de discriminação e violência. No que se refere à política do desarmamento, por exem-plo, nota-se divisão, com entidades como o MNDH reivindicando prioridade para o combate à violência institucional, oriunda do próprio Estado.

A política do desarmamento não é uma política que esteja na cabeça da pauta de entidades como o movimento negro, da juventude negra, é... pastoral carcerária, não é uma prioridade pra nós movimentos de defesa de direitos humanos. Porque, a não ser tirar a arma do contexto da cultura ... Ela não contribui para construção de uma política pública diferenciada, porque boa parte da violência da qual a gente é vítima, é a violência institucional. É a violência que vem das polícias, que vem das forças organizadas do

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aparelho de segurança do Estado. Não basta simplesmente desarmar, tem que saber de onde é que vêm as armas, porque que o crime organizado tem arma, quem é que tá vendendo essas armas que são privativas do exército... isso a política do desarmamento não faz. (Entrevista a Cardoso, 2012).

Em reunião do Conasp, o representante da Pastoral Carcerária também explicitou a preocupação que a entidade possui com a questão da violência policial, assim como o nexo entre deliberações tomadas no âmbito do Programa Nacional de Direitos Hu-manos (PNDH 3, oriundo de Conferência Nacional de Direitos Humanos) com as temáticas em debate no Conasp.

Nós que somos do Fórum Nacional de Ouvidores, a gente tem uma preocupação com isso [penas restritivas de liberdade aos policiais militares], isso é muito forte, mas também temos uma preocupação sobre a questão da violência policial, das arbitrariedades policiais contra à sociedade. Na verdade é um papel da ala da ouvidoria da Pastoral Carcerária, no caso que eu represento, porque eu vivenciei isso tanto dentro quanto fora das prisões. E ainda nesse final de ano, o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos, tomaram uma decisão muito importante, que foi evitar aquela portaria interministerial sobre o uso da força. Isso aí eu acho que foi um avanço significativo, mas que tava lá previsto já no PNDH3 e outros documentos [...] Nós temos hoje um PNDH3 que no seu eixo 4 tem tudo, tem tudo sobre política de segurança pública que foi produzido ou quase tudo, tá lá com os compromissos firmados, com as recomendações. Então eu acho que a gente tem que se apropriar disso, porque às vezes a gente tá fazendo coisa aqui e parece desconhecer tudo o que ta lá. (Representante da Pastoral Carcerária, Reunião Conasp, conforme notas de Cardoso, 2012)

Essa diferença e (eventual conflito) de posições pode ser explicada, em larga me-dida, pela trajetória de cada organização ou conjunto de organizações. Os movimentos sociais e entidades criadas nas décadas de 1970 e 1980 possuem um vínculo forte com o processo de redemocratização brasileiro. Tal vínculo se reflete, por exemplo, no histórico do Movimento Nacional de Direitos Humanos, no qual se destaca na defesa dos presos políticos; além de entidades como Iser e o Inesc, que contribuíram para a articulação e o fortalecimento da sociedade civil ainda neste período de abertura política.

A partir da década de 1990, destaca-se a criação de ONGs e movimentos contra a violência urbana, impulsionados também pelo crescimento da criminalidade, prin-cipalmente em São Paulo e Rio de Janeiro (PAVEZ et al., 2012). Como aponta Gohn (2010, p. 55), esta foi uma característica importante dos anos 1990 que cada vez mais tem ganhado força; se organiza em “bairros e representa um clamor da sociedade civil

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na área da segurança pública, na busca de proteção à vida do cidadão no cotidiano”. Espelhando essas diferenciações entre as trajetórias, o tema da violência urbana assu-me nuances diferentes nas manifestações da sociedade civil no Conasp: pela promo-ção de uma cultura de paz via Campanha do Desarmamento, como propõe a Rede Desarma Brasil e o Viva Rio; pela ressignificação do território e do sentido atribuído às favelas, como postula o Observatório das Favelas; ou por projetos com caráter de intervenção social para melhorar as condições sociais de certas comunidades, como sustentam as Redes da Maré.

A pluralidade da sociedade civil ganha traços ainda mais nítidos quando se examina as mudanças na representação deste segmento na passagem do Conasp “transitório” para o Conasp “definitivo” (2010-2012), indicadas no Quadro 1, abaixo. Destaca-se, nesse caso, uma maior aproximação entre os direitos humanos e a segurança pública, assim como o distanciamento de setores mais tradicionais e influentes como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (ALVES; MONTEIRO, 2011; SÁ E SILVA; DEBONI, 2012). Outro dado importante consiste na maior importância adquirida por movimentos identitários oriundos das demandas LGBT, de juventude, e questão racial – os movimentos que mais cresceram desde a década de 1990 (GOHN, 2010). Trata-se, aqui, da vitória de uma parcela, dentro da variedade de formas e posições que forma o todo da “sociedade civil”.

QUADRO 1Composição do Conasp, versões “transitória” e “definitiva” (segmento sociedade civil)

Sociedade civil – Conasp “transitório” Sociedade civil – primeira gestão do Conasp definitivo

Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) Manteve-se

Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH)

Manteve-se; divide assento com a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong)

Rede Desarma Brasil Manteve-se

Rede F4Manteve-se como Observatório de Favelas do Rio de Janeiro; divide assento com Redes de Desenvolvimento da Maré (Redes)

Viva Rio Manteve-se

Instituto Sou da Paz Não eleito; assume o Fórum Nacional de Juventude Negra (Fonajune)

Grande Oriente do Brasil Não eleito; assume o Coletivo de Entidades Negras (CEN Brasil)

Fórum Brasileiro de Segurança PúblicaNão eleito; assume o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop)

OAB Não eleito; assume a Pastoral Carcerária Nacional (Asaac)

Instituto São Paulo Contra a Violência Não eleito; assume o Conselho Federal de Psicologia (CFP)

RenaespNão eleito; assume a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (ABGLT)

Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic)Não eleito; assumem p Instituto de Estudos da Religião (Iser) e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

Fonte: SE/Conasp/MJ. Elaboração de Sá e Silva; Deboni (2012).Nota: 1 A substituição das organizações, destacada no estrato inferior do quadro, não é direta – ou seja, as organizações mencionadas na coluna da direita (primeira gestão do Conasp “definitivo”) não substituem diretamente as organizações mencionadas na coluna da esquerda, que compuseram o Conasp “transitório”. O objetivo do desenho do quadro foi indicar as mudanças ocorridas.

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Sá e Silva e Deboni (2012) chamam a atenção para a ação articulada, no processo eleitoral, das entidades Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH), Observatório das Favelas (pre-sente no Conasp “transitório” como Rede F4) e Inesc. Tais autores reputam esta ação como “decisiva para as mudanças ocorridas na composição de fóruns e de entidades da sociedade civil no Conasp ‘definitivo’” (2012, p. 35). De todo modo, como eles próprios anotam, não é possível desprezar os efeitos do desenho institucional sobre os resultados desse processo eleitoral, “a começar pelo número de cadeiras”:

A composição do Conasp “definitivo” é mais reduzida que a do “transitório”, cujo número de cadeiras havia sido herdado da CON. As 37 cadeiras no Conasp “transitório”, que comportavam 46 organizações distintas, foram reduzidas para 30, mantendo-se a mesma proporcionalidade da CON para cada segmento, qual fosse, 40% para sociedade civil, 30% para trabalhadores e 30% para gestores. Assim, a composição definitiva do Conasp tem 12 cadeiras para a sociedade civil, nove para os trabalhadores e nove para os gestores. Esse “enxugamento” na composição do colegiado impôs a necessidade de diversas concertações entre os segmentos nele representados, uma vez que não havia espaço para acomodar as 46 organizações participantes da CON no contexto da formação de chapas para a eleição do Conasp “definitivo” (SÁ E SILVA; DEBONI, 2012, p. 35).

De fato, além de oferecer um número menor de vagas para representantes em com-paração ao Conasp “transitório”, o edital de eleição do Conasp “definitivo” estabeleceu os seguintes critérios para as entidades da sociedade civil que desejassem concorrer:

• Ter personalidade jurídica própria e estar regularmente constituídas e re-gistradas há no mínimo 2 (dois) anos;

• Ter entre os seus objetivos a promoção da segurança pública, dos direi-tos humanos, da cultura de paz, ou ainda a prevenção da violência ou da criminalidade;

• Possuir atividades reconhecidas com impacto nacional ou internacional, comprovadas mediante pesquisas na área da segurança pública, ou pre-miações, ações, participação em instâncias de âmbito nacional ou inter-nacional, ou ainda mediante a apresentação de 03 (três) cartas de entida-des e/ou redes nacionais que atestassem a aptidão da entidade na área de segurança pública; e

• Não ter finalidade lucrativa.

Para os fóruns, redes e movimentos sociais era necessário apresentar também uma Carta de Indicação subscrita por ao menos 3 (três) entidades com personalida-

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de jurídica e que fazem parte da rede, fórum ou movimento. O mesmo edital vetou a participação, no processo eleitoral de entidades, fóruns, redes, movimentos que fossem estatais ou estivessem submetidos a um regime de direito público (com exce-ção de conselhos profissionais); que tivessem sede fora do território nacional; ou que estivessem ligadas à área de segurança privada. Este posicionamento inviabilizou a candidatura de instituições acadêmicas e de pesquisa, ao mesmo tempo em que pos-sibilitou a candidatura bem-sucedida do Conselho Federal de Psicologia (ALVES; MONTEIRO, 2010)

É possível, portanto, compreender a influência do edital de eleição na configuração de uma autorização contingente e no fortalecimento de entidades vinculadas com a temá-tica dos direitos humanos e com a promoção da cultura de paz. Já a inserção de entidades e movimentos identitários, que não estava explícita no edital, parece ter resultado da ação concertada entre as entidades e movimentos “autorizados” e suas redes de ação.

3.2 Quem atua como representante (II): os(as) conselheiros(as)

Apresentam-se a seguir algumas características gerais do perfil dos conselheiros. A maior parte dos(as) conselheiros(as) nos dois períodos se declarou branca, com a média de 60%; entretanto, na composição de 2011 o número de conselheiros que se declararam “pretos(as)” aumentou consideravelmente (11%). Esse aspecto é inte-ressante, pois aponta para uma diversificação no perfil dos representantes, possuindo assim relevância para a dimensão descritiva da representação e as concepções que res-saltam uma política de presença (PHILIPS, 2001).

Os conselheiros possuem alta escolaridade, já que a grande maioria possui mais do que o ensino superior completo (97%), quadro este que permanece semelhante no Conasp biênio 2011-2012 (93%). Entretanto, a renda dos(as) conselheiros(as) tem uma alteração mais intensa, tendo em vista que no Conasp “transitório” ine-xistiam integrantes na faixa de renda entre R$ 1.501,00 e R$ 2.500,00 (mil qui-nhentos e um e dois mil e quinhentos reais). As rendas mais elevadas, acima de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), apresentam um declínio de 89% para 75%. No Co-nasp 2011-2012, gestores(as) e trabalhadores(as) possuem as rendas mais elevadas, enquanto os integrantes da sociedade civil concentram-se nas faixas mais baixas. De qualquer modo, a renda dos(as) conselheiros(as) é bem maior do que a renda média da população brasileira e se assemelha aos resultados observados em outras pesquisas sobre conselhos gestores.

Uma mudança significativa do Conasp “transitório” para o “definitivo” consis-tiu no tempo de experiência como conselheiro(a), pois o percentual de conselhei-ros(as) que ocupavam esta posição há mais de um ano cresceu 28%. Enquanto em 2010 predominaram os(as) conselheiros(as) com menos de um ano de experiência (67%), em 2011 a situação se inverte. Ao mesmo tempo em que ocorreu a renovação,

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principalmente no segmento da sociedade civil, a memória da Comissão Organiza-dora Nacional (CON) é presente para parte considerável do Conselho e em diversos momentos foi retomada.

No que se refere à atuação em outros conselhos, em 2010 observou-se que 31% dos(as) conselheiros(as) participavam e 11% já haviam participado de outros con-selhos. Em 2011, eleva-se o percentual de conselheiros(as) que participaram pela primeira vez, sendo que diminuiu o número de participantes em outros conselhos (19%). Embora por vezes criticado na literatura, a participação em outros conselhos é interessante, na medida em que possibilita um acúmulo de experiências em institu-cionalidades participativas, o que esteve presente em diversas discussões no Conasp. Nesses casos, a trajetória de outros conselhos foi constantemente evocada, tanto para refletir sobre o caráter recente da institucionalização da participação e da relação com a sociedade civil e os movimentos sociais na segurança pública, como para observar nestas outras experiências processos que de alguma forma possam ser “inspiradores”.

3.3 Quem ou o quê os representantes representam

A visão que os(as) conselheiros(as) possuem sobre o exercício da representação no Co-nasp foi tratada de modo mais específico pelo seguinte questionamento: Quem ou o quê representa prioritariamente no Conasp? Nesta questão, os(as) conselheiros(as) podiam responder uma única alternativa. Embora as opções de resposta e a redação da questão não sejam exatamente as mesmas para os anos de 2010 e 2011, esta questão merece ser analisada levando também em consideração o cruzamento por segmento.

No Conasp “transitório”, a grande maioria dos(as) conselheiros(as) declarou não se orientar por nenhum interesse específico, seguindo apenas as suas convicções pes-soais (61%). Os interesses do setor que os(as) conselheiros(as) representam vieram na sequência, com 20% das respostas. Já os interesses dos movimentos sociais organizados em função de temas específicos obtiveram apenas 11% das respostas. Essa dimensão da representação como vinculada a uma causa ou tema relaciona-se ao conceito de re-presentação como advocacy desenvolvido por Urbinati que descreve o(a) representante como o(a) defensor(a) apaixonado(a) de uma causa.

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GRÁFICO 1Interesses que defende prioritariamente (2010)

Interesses de redes ou movimentos organizados em função de temas ou problemas específicos 11%

Intereses do meu setor 20%

Interesses da minha instituição 8%

Nenhum interesse espcífico, sigo apenas as minhas convicções pessoais 61%

Fonte: Sá e Silva; Deboni (2012); Ipea (2013).Org.: Autores.

No Conasp biênio 2011-2012 ocorreu uma modificação grande na compreensão sobre o quê ou quem os(as) conselheiros(as) representam. Como retrata o gráfico 2, metade afirmou representar o bem comum e, na sequência, uma causa ou tema espe-cífico (19%), um setor ou segmento (13%) e a própria organização (9%). Alguns(al-gumas) conselheiros(as) sentiram dificuldade em responder esta questão e, ao opta-rem pela resposta “outros”, ressaltaram a necessidade de se compatibilizar um ideal de bem comum com demandas específicas, como expressaram as seguintes respostas de representantes da sociedade civil: “O bem comum, levando-se em consideração os setores mais vulneráveis”; “Penso que esta causa ou tema específico é complementar a ideia de bem comum”19.

19. Convém mencionar que pesquisadores do Ipea apresentaram relatório sobre o Conasp em agosto de 2011 para os(as) conselheiros(as) no pleno e abordaram as respostas expressas no gráfico 1 sobre o predomínio de interesses pessoais. Este acontecimento pode ter influenciado na maior reflexividade nas respostas dos conselheiros, pois os dados aqui referidos resultam de questionário aplicado a esse mesmo pública, ainda que em reuniões posteriores. De qualquer modo, é necessário citar que os resultados obtidos em 2011 assemelham-se aos encontrados em outros conselhos nacionais, conforme os dados do Projeto Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros, desenvolvido pelo Ipea (IPEA, 2012a; 2012b).

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GRÁFICO 2Quem ou o quê representa prioritariamente no Conasp?

A sua própria organização 9%

Outros 9%

Um setor ou segmento 13%

Uma causa ou tema específico 19%

O bem comum 50%

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores.

O gráfico 2 é interessante, tendo em vista que retrata quem ou o quê os (as) con-selheiros(as) representam de acordo com o segmento. O “bem comum” é mais citado pela sociedade civil (54,5%) e pelos gestores (50%); já a representação de causa ou tema específico (27,3%) assim como de um setor ou segmento (27,3%) predomina entre os(as) trabalhadores(as). Convém mencionar que, entre os(as) representantes da sociedade civil, ninguém citou o fato de representar um segmento. Quando se trata de representar a própria organização, destacam-se os(as) gestores(as) (25%). Era uma expectativa desta pesquisa que a representação de uma causa ou tema estivesse priori-tariamente relacionada à sociedade civil, o que não foi evidenciado na análise empírica.

A pluralidade de sociedades civis na segurança pública: deliberação e concepções de representação política no Conasp

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GRÁFICO 3Quem ou o quê representa no Conasp por segmento (2011)?

50,0%

12,5% 12,5%

25,0%

0,0%

45,5%

27,3% 27,3%

0,0% 0,0%

54,5%

18,2%

0,0%

9,1%

18,2%

O bem comum Uma causa ou tema específico

Um setor ou segmento

A sua própria organização

Outros

Gestor Trabalhador Sociedade civil

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores.

3.4 Que mecanismos embasam o ofício da representação

Por quais mecanismos os(as) representantes sentem-se aptos(as) para o exercício da re-presentação? Para responder, os(as) conselheiros(as) foram indagados(as) sobre distintos modos de representação.

Dentre esses modos está o pertencimento e vivência em relação ao setor – o que corres-ponde à concepção de representação descritiva e enfoca na ideia de ser alguém, na seme-lhança com o representado mais do que na capacidade de fazer algo. Essa abordagem do pertencimento é retomada na argumentação de Philips (2001, p. 273) que ressalta esta dimensão: “representação adequada é, cada vez mais, interpretada como implicando uma representação mais correta dos diferentes grupos sociais que compõem o corpo de cida-dãos, e noções de representação ‘típica’, ‘especular’ ou ‘descritiva’, portanto, têm retornado com força renovada”. Assim, Philips (2001, p. 272) destaca as demandas por presença política, de grupos de que se reconhecem como marginalizados, excluídos, grupos étnicos que almejam maior inclusão política. Trata-se de colocar em discussão “a separação entre quem e o quê é para ser representado”.

Outro tipo de autorização mencionado refere-se ao eleitoral, que consiste em um mecanismo vinculado à concepção padrão de representação. Na sequência, foram

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incluídas a capacidade de argumentar e influenciar decisões e a qualificação profissional, que remetem à abordagem de recursos. Por fim, a identificação do representante com o tema, que se refere ao conceito de representação como advocacy de Urbinati.

O pertencimento e vivência em relação ao setor foi o mais citado, com 75% das respostas. Em seguida vieram as eleições (50%); a capacidade de argumentar e influen-ciar decisões (46,9%); a qualificação profissional na área (46,9%); e a identificação com o tema (46,9%). Contudo, as respostas necessitam ser analisadas de modo mais detalhado com o cruzamento por segmento.

GRÁFICO 4Por meio de quais mecanismos você se considera autorizado para representar a sua organização/entidade?

3,1

46,9

46,9

46,9

50

75

96,9

53,1

53,1

53,1

50

25

Outros

Identificação com o tema

Qualificação profissional na área

Capacidade de argumentação e

influenciar decisões

Eleições

Pertencimento e vivência em

relação ao setor/organização

Sim Não

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores.

Conforme retrata o gráfico 5, o argumento eleitoral possui grande peso para a socie-dade civil, pois consiste no mecanismo de autorização mais citado neste segmento, com 90,9%. Esse aspecto revela a importância que o processo eleitoral de 2010 possui na atu-al composição do Conasp, assim como o fato de a eleição para a sociedade civil ter sido

A pluralidade de sociedades civis na segurança pública: deliberação e concepções de representação política no Conasp

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disputada, demandando articulações. Em contrapartida, entre os(as) trabalhadores(as), as eleições possuem uma relevância menor, com 36,4% de respostas, o que pode ser um reflexo de que para os(as) trabalhadores(as) as principais categorias profissionais já estão consolidadas na forma de sindicados e associações. Esta dimensão reforça o argumento do tipo diferenciado de representação desempenhado pelos(as) trabalhadores(as).

GRÁFICO 5Eleições

25,0%

36,4%

90,9%

75,0%

63,6%

9,1%

Gestor Trabalhador Sociedade civil

Sim Não

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores.

Para os(as) trabalhadores(as), o argumento do pertencimento e vivência em relação ao setor de representação apresenta grande força, somando assim 81,8%. Entre os(as) gestores(as), o pertencimento e a vivência constituem-se em um forte mecanismo de autorização, com 75%, sendo mais relevantes que a capacidade de influenciar decisões e a própria qualificação profissional. Na sociedade civil, este tipo de autorização é o segundo mais citado, com 63,6%, o que também demonstra a importância da pro-ximidade entre representante e representado(a) nos moldes apresentados por Philips. De qualquer modo, seria interessante um estudo mais aprofundado sobre as entidades da sociedade civil que se vinculam mais a este tipo de representação.

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GRÁFICO 6Pertencimento e vivência

75,0% 81,8%

63,6%

25,0% 18,2%

36,4%

Gestor Trabalhador Sociedade civil

Sim Não

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores

A capacidade de influenciar decisões possui maior peso para os(as) representantes da sociedade civil, que soma o mesmo percentual do argumento de pertencimento e vivência (63,6%). Assim, é interessante observar que este tipo de autorização vincula-se com a valorização do caráter de conflito da política, de interesses que estão em disputa e, nesse contexto, a capacidade de debate possui destaque. De modo distinto, trabalha-dores(as) e gestores(as) apresentam um percentual menor com 36,4% e 37,5%.

GRÁFICO 7Capacidade de influenciar decisões

37,5% 36,4%

63,6% 62,5% 63,6%

36,4%

Gestor Trabalhador Sociedade civil

Sim Não

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores.

A pluralidade de sociedades civis na segurança pública: deliberação e concepções de representação política no Conasp

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A identificação com o tema é o mecanismo de autorização mais relevante para os(as) representantes da sociedade civil, com 63,6%, estando no mesmo patamar do pertencimento e vivência na área, o que indica a existência de dimensões diferenciadas da representação política para este segmento. Tal aspecto pode reforçar a observação da existência de uma pluralidade de sociedades civis inseridas no Conasp.

GRÁFICO 8Identificação com o tema

50,0%

27,3%

63,6%

50,0%

72,7%

36,4%

Gestor Trabalhador Sociedade civil

Sim Não

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores.

A qualificação profissional apresenta maior relevância para os(as) gestores(as), com 50%. Mesmo assim, entre os(as) trabalhadores(as) a qualificação profissional é um atributo com mais de destaque que as eleições e a capacidade de influenciar de-cisões. Para os(as) representantes da sociedade civil, este mecanismo de autorização possui menor importância. De qualquer modo, convém lembrar que a escolaridade dos(as) conselheiros(as) é altíssima.

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GRÁFICO 9Qualificação profissional

50,0%

45,5% 45,5%

50,0%

54,5% 54,5%

Gestor Trabalhador Sociedade civil

Sim Não

Fonte: Cardoso (2012).Org.: Autores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando dados quantitativos e qualitativos coletados em pesquisas recentes a res-peito do Conasp, este artigo buscou contribuir para discussões contemporâneas sobre a participação social, dando ênfase às concepções de representação política presentes entre as organizações da sociedade civil com assento no Conselho no período de 2009 a 2012. Se desde as primeiras experiências democráticas é possível observar a emergência e o embate entre teorias sobre a representação política, o advento e a proliferação de instituições como conselhos, conferências, orçamento participativo e outras renovam o horizonte no qual se dá o exercício desta prática social e política e convidam a novos testes daquele rico repertório teórico elaborado para explicá-la e legitimá-la.

Examinando: (1) quem são os representantes (organizações e conselheiros), atuan-do em nome do segmento “sociedade civil” do Conasp; (2) o que eles dizem represen-tar; e (3) em que eles pretendem embasar esse ofício de representação (em suma, quais as concepções de representação política mantidas por esses atores), foi possível verificar um quadro complexo. Esta complexidade se revela ainda mais quando a atuação da “sociedade civil” é compreendida de modo relacional com a percepção dos outros seg-mentos (trabalhadores e gestores) que integram o conselho.

Entre os(as) representantes, da “sociedade civil” as eleições foram o mecanismo de representação mais citado, com 90,9%, o que a torna distinta de outros segmentos,

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inclusive aqueles em que poderia haver igual disputa pela condição de representante, como o dos trabalhadores. O argumento do pertencimento e vivência20 foi o segundo mais citado, com a capacidade de influenciar decisões e a identificação com o tema, de maneira distinta, mais uma vez, dos segmentos de gestores e de trabalhadores. É necessário refletir sobre como estes aspectos se relacionam no exercício cotidiano da representação. Ao mesmo tempo em que existe uma relação de afinidade entre repre-sentante e representado, existe a identificação com o tema e uma preocupação com a capacidade de influenciar decisões, que remete ao conflito político ou até mesmo à capacidade de debate. Em síntese, a representação como advocacy guarda maior cone-xão com a representação da sociedade civil, mas em articulação com a representação descritiva e a perspectiva dos recursos.

Analisar essa variedade na representação da sociedade civil passa por compre-ender este segmento em perspectiva plural, reconhecendo que ele é integrado por movimentos sociais e entidades com perfis diferenciados. Existem movimentos cria-dos nas décadas de 1970 e 1980, com forte atuação durante o regime ditatorial e a transição democrática. Existem entidades constituídas nesse mesmo período, mas que se dedicaram a pesquisas, bem como à articulação da sociedade civil. Já outras entidades e movimentos criados a partir da década 1990 possuem relação com o processo de criação e fortalecimento das ONGs em contextos de luta contra o au-mento da criminalidade – viés que se expressa em diferentes propostas de agenda para o Conasp por parte dessas organizações, tais como: construção de uma cultura de paz, ressignificação do sentido atribuído às favelas e reivindicação por projetos e intervenções de caráter social nessas comunidades ou em favor de públicos vulnerá-veis. Destacam-se ainda, mas múltiplas conexões da “sociedade civil” com demandas de movimentos identitários (movimento negro, LGBTT, etc.), parcela que adquiriu grande proeminência no Conselho em tempos recentes.

Os dados revelam, assim, que mais do que uma sociedade civil monolítica há uma pluralidade de trajetórias, repertórios de ação, demandas e graus de articulação com o Estado entre os conselheiros pertencentes a esse segmento. É na permanente disputa por espaço, balizada por aspectos do desenho institucional do Conselho, que também se constroem as concepções de representação política mobilizadas por esses conselheiros, cujos contornos são suficientemente distintos dos demais atores, mas nem por isso pouco complexos.

20. Para o aprofundamento deste argumento, as reflexões de Pierre Rosavallon (2009) são relevantes, na medida em que o autor enfatiza a emergência de uma legitimidade de proximidade que está vinculada com a política de presença.

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