deborah a. b. gemin. estratégias contemporâneas a serviço de novas percepções

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  • 7/29/2019 Deborah A. B. Gemin. Estratgias contemporneas a servio de novas percepes

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    Estratgias contemporneas a servio de novas percepes

    histria que recorremos quando temos a inteno de escrever sobre

    conceitos e teorias da arte, o saber histrico sempre surge como pilar de

    fundamentao de teorias, por originalmente possuir o estigma da verdade,

    comprovada por documentos histricos. No entanto, idias construdas sobre

    esta base sero sempre instrumentos ideolgicos, e para escaparmos desse

    destino preciso termos claro qual o olhar que lanamos sobre esse

    passado, se um olhar de venerao e admirao, que faz uma leitura literal,

    ou um olhar mstico (alegrico), que descobre o que se esconde sob o vu das

    palavras.

    Orgenes, um erudito da igreja antiga, definiu trs nveis de leitura para

    as escrituras, e que podemos entender que ainda hoje esses nveis podem ser

    reconhecidos: um literal, um moral e um mstico ou alegrico. Somente os mais

    preparados espiritualmente chegariam ao ltimo nvel, ou seja, o alegrico.

    Para justificar essa classificao recorre a uma metfora: o sentido literal

    corresponde ao corpo, o sentido moral alma, e o sentido mstico ao esprito

    da escrita, pois a escrita composta pelos mesmos elementos que o ser

    humano, corpo, alma e esprito.1 Esse tipo de classificao serviria muito organizao da igreja crist, pois somente aqueles que conheciam o sentido

    verdadeiro da escritura que poderiam guiar aqueles que por ignorncia

    ficariam com uma interpretao literal ou, na melhor das hipteses, moral.

    Portanto, a alegoria ocupa um lugar privilegiado na religio crist: ela no

    somente uma forma de interpretao, ela determina a compreenso da Histria

    da Salvao.2

    Mas para o Renascimento e o pensamento iluminista a interpretao

    alegrica no oferece nenhum fundamento seguro e, portanto, deixada de

    lado em favor de uma interpretao mais literal e mais cientfica, passvel de

    comprovao.

    1 GAGNEBIN, J eanne-Marie. Histria e Narrao em Walter Benjamin. So Paulo:Perspectiva/FAPESP. 1994 p 382 GAGNEBIN, op cit, p 39

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    Com relao crtica e construo da histria vemos a partir de

    Benjamin uma preocupao em negar a linearidade do pensamento histrico.

    Remexer no passado e trazer aquilo que ainda ele tem de atual, essencial.

    Para este filsofo a histria como construo, como atualizao, , pois

    inacabada, descontnua, sujeita a novas origens, a infinitas multifacetaes,(...)

    nunca repetio, mas movimento sincrnico avaliao do presente. 3 No

    perceber esse acmulo de camadas sobrepostas pela histria, e olhar apenas

    pela vista do vencedor, essa a grande crtica ao historicista, que procura

    manter pela cronologia a coerncia dos fatos. Para criticar a modernidade e a

    concepo de histria, segundo Ktia Muricy, Benjamin utiliza Baudelaire, cuja

    relao com a modernidade se caracteriza por uma atitude em relao ao

    tempo, e como uma tomada de posio que se ope transitoriedade. Opresente para Benjamin no apenas um tempo fugidio de transio, mas

    uma construo que determina novas relaes com o passado. 4 Portanto, a

    descontinuidade, termo muito em voga nos textos crticos da arte

    contempornea, aparece na modernidade j em Baudelaire, o que muito

    significativo, para no olharmos a arte contempornea, como muitos modernos

    olharam para a Antiguidade, de cima do pedestal da viso evolutiva.

    Nas vanguardas modernas, o movimento da arte acontece no sentido de

    ruptura com a tradio, o que pressupe a negao, a excluso do todoanterior, e normalmente o que se verifica que esse rompimento nunca

    acontece totalmente, as mudanas vo ocorrendo de maneira anacrnica. E,

    no lugar de uma suposta inovao ou avano, o que temos uma

    sobrevivncia ou permanncia das coisas, onde fragmentos do passado esto

    sempre reestruturando o presente. Vemos uma menor tendncia ao

    historicismo e uma suspenso da iluso histrica.

    A arte na modernidade se caracteriza pela repetio do idntico, pela

    perda da aura, conseqncias das novas tcnicas de fotografia e cinema, ecomo concepo faz uma crtica sociedade de consumo. Entre os heris da

    modernidade est o flneurde Baudelaire, que o desocupado que se dirige

    3 MURICY, Ktia.Alegorias na Dialti ca: imagem e pensamento em Walter Benjamin.Relume Dumar. Rio de J aneiro, 1998 p 2294 HADDOCK LOBO, Rafael. Walter Benjamin e Michel Foucault: a importncia tica dodeslocamento para uma Outra Histria. Revista Comum. Rio de J aneiro, vol 9, n 22 janeiro/ junho de 2004, p 63

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    feira e se permite no fazer nada, num mundo onde o cio no nem mais

    sequer privilgio dos poderosos. No se submetendo aos horrios, sua atitude

    mais que transgressora, uma insurreio contra o tempo da indstria, e

    tambm uma atitude de resistncia ordem de consumo da sociedade

    capitalista, ele no vai feira para comprar, ele apenas perambula, inebriado

    pela multido produtiva.5 Essa transformao do sujeito e do objeto em

    mercadoria, prprio do regime capitalista, responsvel tambm pela

    desvalorizao do mundo dos fenmenos, fato que tambm aconteceu no

    sculo XVII barroco, dois perodos onde a viso alegrica se impe como

    caracterstica. Para Benjamin a grande inspirao alegrica reside no choque

    entre o desejo de eternidade e a conscincia aguda da precariedade do

    mundo.

    6

    A Alegoria se instala mais duravelmente onde o efmero e o eterno

    coexistem mais intimamente.7 Por isso a alegoria justamente floresceu no

    barroco e em Baudelaire, no primeiro, dilacerada entre os dogmas religiosos e

    a cruel imanncia do poltico e em Baudelaire que estava dividido entre a

    viso de uma vida anterior harmoniosa e a conscincia de uma modernidade

    devoradora.8 Talvez a sua apario na arte contempornea se d pelo fato de

    estar na fenda entre a necessidade da arte de manter-se como produto, como

    mercadoria, e ainda como uma instituio autnoma, e a impossibilidade desteafastamento frente s novas tecnologias e ao papel do observador, que alm

    de interagir passa a ser co-produtor das obras, que para os olhares mais

    superficiais parecem cada vez mais efmeras e impalpveis.

    Foi em 1964 que Artur Danto forjou o termo Mundo da Arte e delegou a

    ele a tarefa de reconhecimento do que ou no objeto de arte, visto a

    dissoluo dos critrios estticos, que de uma maneira mais confortvel

    estabeleciam os valores artsticos at o modernismo.9 A principal dificuldade

    em denominarmos arte contempornea, e por conseqncia o termo ps-

    5MURICY, op cit, p 204

    6GAGNEBIN, op cit, p 43

    7 BENJ AMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemo. Traduo Srgio Paulo Rouanet.Ed. Brasiliense. So Paulo, 1984. p 2478 GAGNEBIN, op cit, p 449 J IMENEZ, M. Ps-modernidade, filosofia analtica e tradio europia. Fronteiras: arte,critica e outros ensaios. porto Alegre : editora da UFRGS, 2003. p 77.

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    moderno, ocorre porque com relao s definies, a arte moderna tem seus

    limites muito mais ntidos e para Baudelaire est inscrita nos projetos das

    vanguardas artsticas e dos ismos sucessivos desde o impressionismo, o que

    no ocorre com a arte contempornea, como explica J imenez: enquanto a

    modernidade rica em significaes histrica, poltica, ideolgica, social e

    artstica, o termo contemporneo, ao contrrio unicamente temporal no

    designa a priori nada alm da pertinncia do tempo presente, atual.10 H na

    modernidade uma busca pela verdade na obra, uma tentativa de resgatar a

    aura, e a autoria, como categorias indispensveis arte, percebemos, portanto,

    uma certa resistncia s mudanas que o contexto apresentava. Com a

    variedade de condutas e processos da arte que segue o perodo moderno,

    sentimos tambm que houve uma indefinio da crtica, no entanto, a arte ps-moderna no pode ser considerada a-histrica, apoltica, ou vazia de

    significaes, como aponta J imenez, o que h uma escassez de discusses

    sobre como esses processos se colocam frente ao sistema de capital em que

    esta arte est inserida. E, tambm isso nos demonstra a dificuldade em

    assimilar o novo conceito de histria j apontado por Benjamin no incio do

    sculo XX. Conceber dialeticamente a histria para Benjamin, compreender

    que cada poca prope-se como inteiramente nova e cria um passado tambm

    novo.11

    A partir do sculo XX a recodificao da arte como denomina Hal

    Foster, est imbricada na abertura de fazeres e procedimentos que o perodo

    ps-industrial proporciona, o que Rosalind Krauss chama de o colapso da

    diferenas, ou seja das oposies entre as formas naturais e no naturais,

    estados conscientes e inconscientes, realidade e representao, poltica e

    arte....12 Os meios artsticos mais tradicionais pintura, escultura e gravura

    no foram totalmente negados, mas a eles foi permitido agregarem-se outros

    fazeres, imprprios para a arte at ento, e prprios do mundo cotidiano. A arte

    torna-se um espao hbrido, onde a pluralidade se faz presente pela adoo de

    novos meios e processos alheios sua especificidade. Atribui-se a fuso das

    10 J IMENEZ, op cit, p 59 60.11 MURICY, op cit, p 23212 KRAUSS, R. Apud FOSTER, H. Recodificao: Arte, Espetculo, Poltica Cultural .Traduo Duda Machado, Casa Editorial Paulista. So Paulo, 1996. p261.

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    esferas da arte e do resto do mundo - cincia, produo industrial, capital e

    mdias - em grande parte fotografia, colagem e ao readymade de Duchamp.

    Para entendermos os caminhos tomados pela arte aps as vanguardas

    modernas muitos tericos e crticos se debruaram sobre os novos objetosartsticos que no se enquadram nos critrios de valorao adotados at o

    sculo XIX. Vrios autores apontam o pluralismo, a liberdade de condutas e a

    mescla das esferas artstica e no artstica como os responsveis pela crise da

    crtica e da esttica na arte contempornea, pois como pensar os objetos

    artsticos e procedimentos atuais. Para Foster o artista aparece como um

    manipulador de signos mais do que um produtor de objetos, e o espectador,

    um leitor ativo de mensagens mais do que um contemplador passivo da

    esttica ou o consumidor do espetacular. 13 Esse espectador a quem Foster sedirige aquele capaz de fazer a leitura mstica ou alegrica, ou seja, chegar

    ao terceiro nvel de leitura do texto visual que a obra lhe apresenta. O artista

    perde o poder de gnio criador, se transforma em um propositor de textos, de

    conceitos, e utiliza para isso todos os meios disponveis. A especificidade da

    arte no est mais em seus processos e tcnicas, mas sim naquilo que

    proposto como experincia e relao entre obra e espectador, uma arte que

    no somente feita para os sentidos, mas que se volta para o pensamento,

    como queria Duchamp.

    Com a hibridizao da arte contempornea e a idia, em alguns

    aspectos ingnua, de que tudo permitido, assistimos crticos e tericos se

    esforando para dar conta dos novos conceitos e caractersticas desses

    procedimentos to abrangentes e ramificados. Cdigo, smbolo, mito, simulacro

    e alegoria so alguns dos substantivos adicionados ao vocabulrio da arte na

    tentativa de explicar os novos objetos artsticos. A partir da definio de

    alegoria de Walter Benjamin alguns tericos como Benjamin Buchloh e Craig

    Owens apontam como procedimentos alegricos na arte contempornea: a

    apropriao, a colagem, a montagem e a fotografia. Com base nestas

    discusses sobre alegoria este texto tem a inteno de confrontar os

    13FOSTER, H. op.cit. p 140. O captulo Signos Subversivos trata com bastante clareza a

    mudana de papel do artista e suas escolhas.

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    procedimentos alegricos de Benjamin com o pensamento de Nicolas Borriaud,

    para quem a ps-produo a forma contempornea do jogo da arte.14

    O grande valor dos pensamentos de Walter Benjamin para os nossos

    dias se d pelo deslocamento que provocam no prprio conceito de histria

    atravs de uma nova noo de tempo, com discursos fragmentados e

    alegricos, colagens e citaes. Benjamin denunciou a tirania da razo, e

    tambm se dedicou rdua tarefa de deslocar os eixos do pensamento, ao

    invs de utilizar um discurso crtico deixou as alegorias falarem por si, assumiu

    as colagens e citaes e, com isso, enfraqueceu completamente o primado do

    logos. Portanto ele construiu uma filosofia a-sistmica, onde uma memria de

    cacos que rene vida pessoal e histria. A filosofia como experincia

    coletiva, como borbulhar de imagens dialticas, e como uma retomada dosfragmentos. E, atravs do uso da linguagem alegrica, pde corroer as bases

    do discurso da razo, justo pela contaminao metafrica que promoveu. 15

    No pretendemos colocar a alegoria como a grande descoberta da arte

    contempornea e, muito menos apont-la como procedimento indispensvel

    arte do sc XX e XXI, mas fazermos um questionamento sobre os conceitos

    que a cercam, desde sempre, como uma resposta s mudanas, inclusive da

    filosofia, no pensar a histria e no reavaliar sistematicamente nossas maneiras

    de ver o mundo e construir imagens para ele.

    Alegoria, esse novo velho conceito

    Etimologicamente alegoria deriva do grego , allos, "outro", e

    , agoreuein, falar na gora, ou melhor, falar em pblico. uma

    representao figurativa que transmite um outro significado ao literal. Ou seja,

    dizer uma coisa para significar outra.

    A partir do sentido etimolgico da palavra, Sergio Paulo Rouanet na

    apresentao da Origem do Drama Barroco Alemo, formula uma pergunta

    14 BORRIAUD, Nicolas. Post produccin. La cultura como escenario: modos en que el artreprograma el mundo contemporneo. Traduo Silvio Mattoni.Adriana Hidalgo Editora.Buenos Aires, 2004. p 1515 HADDOCK LOBO, op cit. p 64 e 70

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    central: se a alegoria a figura pela qual, falando de uma coisa, queremos

    significar outra, qual a outra coisa significada pela alegoria barroca? A que ele

    responde como sendo a concepo barroca da histria.16 Plagiando a

    pergunta de Rouanet, mas transportando-a ao nosso contexto, pergunto: Qual

    a outra coisa significada pela alegoria contempornea? A priori o que podemos

    responder que ela se apresenta como procedimentos na contemporaneidade,

    como mostram os textos de Buchloch e Craig Owens, e tambm como

    estratgias para J ose Luiz Bra. Mas apontar qual a concepo de arte que a

    alegoria nos apresenta na contemporaneidade ser a nossa tentativa.

    Quando pensamos em arte, no conseguimos fugir das noes de

    imagem e representao. A arte contempornea, na tentativa de tocar o real,

    de unir realidade e arte, assume a responsabilidade de trabalhar com aquiloque o mundo a apresenta. Mas, segundo Lacan, esse acesso ao real

    impossvel. Temos acesso realidade pelo olhar, pelo toque, mas ela

    mediada pelo imaginrio e tambm pelo simblico. O real ou, o Noumeno de

    Kant, aquilo que no conseguimos atingir. Portanto a arte continua

    trabalhando com os smbolos, continua sendo uma representao. A alegoria

    trabalhada sempre a partir do simblico daquilo que j foi transformado em

    representao. Algo para dizer o outro, o inatingvel, nunca completamente

    conhecido. No entanto, smbolo e representao se confundem, assim comoeram confundidos os conceitos de alegoria e smbolo no sculo XVII, o mesmo

    conceito equivocado de smbolo da arte clssica e romntica, que Walter

    Benjamin tenta restabelecer, na mesma medida em que restaura a alegoria,

    quando esta nem era considerada uma categoria esttica.Como tal, a alegoria

    ressurge da necessidade da crtica em dar conta das estratgias artsticas

    utilizadas pelos artistas modernos e contemporneos.

    Benjamin prope a alegoria como a categoria crtica indispensvel para

    a compreenso de fenmenos estticos pra os quais o conceito de smbolo jno teria eficcia terica.17 Para esclarecer esse conceito de alegoria, Walter

    Benjamin desvincula-a do conceito de smbolo ao qual esteve atrelada.

    16 Texto de Apresentao de Srgio Paulo Rouanet para Origem do Drama Barroco Alemode Walter Benjamin. Ed. Brasiliense. So Paulo, 1984. p 37.17 MURICY, op cit. p 160

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    Portanto a teoria da alegoria de Benjamin muito mais do que constituir a

    categoria-chave para a compreenso do barroco literrio alemo o sculo XVII,

    quer constituir-se como uma categoria esttica capaz de dar conta das

    caractersticas da sua contemporaneidade artstica.18 Faz-se necessrio, no

    entanto, retomar a discusso dos conceitos de smbolo e alegoria feitos por

    Benjamin para entendermos qual a concepo de alegoria que nos interessa

    para pensarmos a arte contempornea.

    Para a arte dos sculos XVII e XVIII o conceito de smbolo muito mais

    aceito em detrimento da alegoria, pois o smbolo mais imediato e

    corresponde a uma feliz coincidncia do sentido enquanto a alegoria mais

    hermtica, e deficiente, pois o verdadeiro sentido nunca alcanado, como

    defendiam os pensadores Goethe e Moritz. Porm, antes de Benjamin, GeorgeSteiner j havia discorrido sobre a equivocada conceituao de smbolo,

    categoria da qual toda a esttica clssica e romntica ope ao conceito de

    alegoria.

    Mas, para Benjamin a questo no de opor o smbolo alegoria, e

    muito menos diminuir sua importncia, mas sim de restabelecer os dois

    conceitos sem enaltecer um em detrimento do outro como tinha sido feito at

    ento. Para o autor o smbolo um conceito incapaz de dar conta das

    questes da arte, pois aponta para a eternidade da beleza enquanto aalegoria ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de

    perseverar na temporalidade e na historicidade para construir significaes

    transitrias.19

    Para Benjamin esse conceito de smbolo que por muito tempo foi

    utilizado, e que denomina como usurpador da filosofia da arte, nada tem em

    comum com o conceito autntico que est situado na esfera da teologia. O

    problema nesta viso equivocada de smbolo, que ele aponta

    imperiosamente para a indissociabilidade de forma e contedo, [e] passa afuncionar como legitimao filosfica da impotncia crtica, que por falta de

    rigor dialtico perde de vista o contedo, na anlise formal, e a forma, na

    18ibid p159

    19 GAGNEBIN, op cit. p 45

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    esttica do contedo.20 Benjamin trabalha levando em conta a indissoluo

    das relaes de forma/contedo, sensvel/supra-sensvel e fenmeno/idia,

    que so interdependentes, e mostra onde reside a falha da crtica moderna, no

    privilgio ora da forma e ora do contedo.

    O smbolo , a alegoria significa; o primeiro faz fundir-se significante e

    significado, a segunda os separa, no entanto, um paradoxo encontra-se na

    dissoluo do sujeito clssico onde significante e significado coincidem, e essa

    decomposio da significao vai se transformar em uma onipotncia arbitrria,

    ao contrrio, o alegorista melanclico inventa cada vez mais sentidos (...) nas

    suas mos os objetos perdem sua densidade costumeira e se dispersam numa

    multiplicidade semntica infinita.21 O smbolo instantneo e eterno na

    instantaneidade, e a alegoria sucessiva, acmulo, sobreposio decamadas, de sentido e saberes. O conhecimento alegrico tomado pela

    vertigem, no h mais ponto fixo, nem no objeto e nem no sujeito.22 A alegoria

    possibilita a reabilitao da temporalidade e da historicidade em oposio ao

    smbolo que encarna um ideal de eternidade.

    Se o objeto se torna alegrico sob o olhar da melancolia, ela o priva de suavida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por toda a eternidade, entregueincondicionalmente ao alegorista, exposta sua graa ou sua desgraa. Vale dizer, oobjeto incapaz, a partir desse momento, de ter uma significao, de irradiar umsentido; ele s dispe de significao que lhe foi atribuda pelo alegorista. Este acoloca dentro dele e chega at seu fundo: isto no uma realidade psicolgica, massim ontolgica. Em suas mos, a coisa se transforma em algo de diferente, ela seconverte na chave do domnio de um saber oculto e, como emblema desse saber, ele avenera. Nisso reside o carter escritural da alegoria.23

    A utilizao de procedimentos alegricos por parte dos artistas

    contemporneos fruto da reabilitao da histria e da temporalidade que a

    alegoria promove, visto que a noo da obra de arte como eterna e aurtica se

    desfaz na modernidade. Portanto, a alegoria aparece ora como sintoma, ora

    como causa ou ainda efeito, mas o que interessa que ela denuncia a

    precariedade das verdades estanques da arte romntica e clssica. Na tradio

    filosfica clssica, a alegoria foi depreciada, no entanto, a interpretao

    alegrica vai nascer nos textos filosficos, por causa da distncia histrica

    20 BENJ AMIN, op cit. p18221GAGNEBIN, op cit, p 47

    22 GAGNEBIN, op cit, p 4123 BENJ AMIN, op cit. p 205-206

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    que separa os leitores do texto literal. As escolas cnica e esticas vo deslocar

    a responsabilidade da interpretao do escritor para o leitor. Portanto a leitura

    e no mais a escrita que determinar o sentido certo, o sentido literal no o

    sentido verdadeiro. Esta importncia interpretao ser retomada pela

    tradio crist, o que J eanne-Marie Gagnebin chama de gesto interpretativo.

    Considerando uma das caractersticas da alegoria: a mudana de

    significado, percebe-se que possvel estend-la para qualquer objeto

    artstico, na medida em que o referente praticamente nunca est presente, e ao

    objeto artstico resta a recolocao de significado. O risco que se corre neste

    sentido tornar o conceito muito abrangente e assim perder sua significncia,

    o mesmo que acontece com a noo de que tudo permitido.

    A idia de que os conceitos de arte contempornea e ps-modernismoso muito abrangentes, e essa necessidade de delimitar conceitos e dar conta

    do objeto artstico, talvez ainda seja um resqucio do modo de ver a arte a partir

    da tica do modernismo, onde os pressupostos estavam definidos e existiam

    parmetros que podiam ser verificados com o olho. Como ento podemos

    criar estratgias, ou critrios estticos de leitura desses trabalhos?

    Por outro lado precipitado dizer que a arte contempornea tornou-se

    um emaranhado de coisas, onde o sentido se encontra no conceito e deve ser

    pensada pelo seu vis filosfico, social e poltico, apenas. A linguagem plstica ainda o meio do artista, mas seu texto visual tornou-se mais denso e menos

    literal. Por isso aparece a necessidade de se usar termos como o da alegoria,

    que podem indicar questes e caminhos abordados pelo processo do artista. O

    conceito para ps-modernidade defendido por Hal Foster o ps-estruturalista,

    que redefine teoricamente o artefato, onde o que era obra modernista se

    torna texto ps-modernista, esta concepo ps-modernista do artefato

    tambm defendida por J ameson, e enfatiza a descontinuidade, a alegoria, o

    mecnico, o hiato entre o significante e o significado, o lapso na significao, a

    sncope na experincia do sujeito.24 A ao do artista no mais um gesto

    especfico arte, o modus operandi deve ser entendido como significativo

    24J AMESON, apud FOSTER, op.cit. p 176.

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    desde a sua escolha, e como processo traduz conceitos importantes ao

    trabalho.

    O espao de representao foi alargado e a especificidade cedeu lugar

    aos novos procedimentos, que resultam em objetos inespecficos de acordo

    com J os Luiz Bra, que utiliza tambm o conceito de alegoria para os

    processos contemporneos. De acordo com ele so trs os pilares para as

    estratgias alegricas: os achados da arte conceitual, da arte minimal e da pop,

    sobre os quais retomaremos a discusso mais adiante.

    Em alguns dos procedimentos mais utilizados a partir do modernismo

    a fotografia, a colagem e o readymade podemos constatar uma semelhana:

    a apropriao. Para que o novo objeto artstico acontea, em parte ou no todo,

    a atitude do artista apropriativa. A fotografia se apropria de uma imagem doreal, de um instante, de um referente. A colagem parte da apropriao de

    pedaos, objetos da esfera do cotidiano e at mesmo de um referente histrico

    da arte, para ento compor uma obra. E o readymade por si j pressupe a

    apropriao.

    Para muitos artistas contemporneos o gesto de apropriao de

    Duchamp foi inaugural de uma atitude de observao e escolha perante o

    mundo, e no mais de uma postura distante do artista, como gnio criador.

    Para Fabio Noronha uma certa idia de apropriao, ou melhor, de escolha, a prpria medida da arte. Para ele a reproduo um procedimento clssico

    na arte. Historicamente a arte j se mostrou como representao, sublimao,

    retrato da realidade, idealizao da realidade, j se firmou como discurso

    poltico, religioso, mas sempre manteve uma relao com algo fora dela,

    mesmo quando no modernismo se pretendia auto-referente, ainda assim era

    uma representao dela prpria. Portanto, sob essa perspectiva sempre houve

    em maior ou menor grau um gesto de apropriao do artista. No entanto, para

    Borriaud, a histria da apropriao comea com o readymade, e sua virtude

    reside na discusso do processo criativo, j que desvia a ateno para o olhar

    que o artista lana sobre o objeto em detrimento de qualquer habilidade

    manual. O ato de escolha que funda a operao artstica: dar um novo

    conceito um objeto uma produo. Assim a definio da palavra CRIAR

    completada por Duchamp: inserir um objeto num novo cenrio, o considerar

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    como um personagem dentro de um relato. Ele j tinha a intuio do

    surgimento de uma cultura do uso: o observador faz o quadro, o sentido

    nasce de uma colaborao, uma negociao entre o artista e o espectador. O

    que Borriaud chama de comunismo formal.25

    Esse gesto transfere para a esfera da arte o processo capitalista de

    produo trabalhar a partir do trabalho acumulado. O gesto se assemelha ao

    do comerciante cujo trabalho consiste transferir, ou transportar o objeto de um

    lugar (fbrica) a outro (consumidor). Para Duchamp o consumo um meio de

    produo.

    A primeira virtude do readymade estabelecer uma equivalncia entre

    consumir e produzir, apropriar-se e fabricar. Pois um vestido s um vestido se

    usado, uma casa vazia no uma casa. O ato do consumo que tornarealmente o produto em produto.26 Borriaud cita Wittgenstein: Dont look for the

    meaning, look for the use. Pensamento que se aproxima de Deleuze, com a

    idia do funcionamento. O que nos interessa como uma coisa funciona

    mquinas desejantes. No interessa a essncia, ou o conceito, mas o

    funcionamento as engrenagens, os fluxos. Para Deleuze o conceito deve dizer

    o acontecimento e no mais a essncia. Outro conceito importante em Deleuze

    e que cabe aqui sobre a histria, pois a idia de que o homem produto do

    seu tempo tem que ser abolida, s assim podemos fazer conexes maisconsistentes.

    A atitude de dar novos significados que surgiu com a colagem, e

    segundo Grosz, tinha o objetivo de dizer em imagens, o que seria descartado

    pelos censores se ns o dissssemos em palavras. Ou seja, a imagem usada

    como subterfgio, procedimento semelhante ao dadasmo e outros movimentos

    como pop, que utilizam a imagem como crtica ao sistema, instituio, s

    questes prprias da arte. A teoria da alegoria de Benjamin baseada na

    noo marxista do fetichismo e da mercadoria27, do objeto que se tornamercadoria, e da mercadoria que tomada como emblema, como nos

    25 BORRIAUD, Nicolas. Post produccin. La cultura como escenario: modos en que el artreprograma el mundo contemporneo. Traduo Silvio Mattoni.Adriana Hidalgo Editora.Buenos Aires, 2004. p 1726 BORRIAUD, op cit, p 21- 22.27 BUCHLOH, B. Procedimentos alegricos: apropriao e montagem na arte contempornea.Revista do p rograma de ps-graduao da EBA UFRJ, ano VII, nr 7 2000. p.180.

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    readymades, atos alegricos que redimem o objeto, desvalorizando-o como

    mercadoria. O ato alegrico aqui se apresenta por associar a criao a um

    objeto annimo produzido em srie. O princpio da apropriao

    essencialmente alegrico, j que consiste numa confiscao, e quase sempre

    na anulao do sentido e separao do significante e significado.

    O Minimalismo para J os Luiz Bra uma das bases das estratgias

    alegricas na arte contempornea. Para o autor, o lugar que corresponde e

    determina a forma em que a experincia artstica pode ser pensada como

    sensata surge de maneira geral como procedimento alegrico. Na arte minimal

    a nova obra tridimensional se caracteriza por sua definitiva e inapelvel

    suspenso da funo representacional. Um objeto especfico, no pretende ser

    nada mais que ele mesmo, pretende carecer estrita e absolutamente denenhum outro referente que si prprio.28 Esta viso apesar de greenberguiana,

    caracterizada pela auto-referncia, para o autor um dos apoios das

    estratgias alegricas, e se apresenta como a suspenso de sentido. E,

    justamente o cruzamento entre essa economia de representao e as atitudes

    que aparecem em Duchamp e na arte Pop que so entendidos como

    impulsionadores de uma experincia alegrica. Ao ready-made Bra atribui a

    cobrada de conscincia da inscrio escritural do ato criador e a iluminao da

    sua significncia como potencial virtual a ser percebido pelo receptor. E, ArtePop a conscincia da convergncia que se produz entre o sistema de

    representao e os sistemas dos objetos que nela se encontram sob a forma

    generalizada de mercadoria.

    Outra caracterstica da alegoria que aparece nos procedimentos de

    apropriao e montagem, trazer para o presente algo do passado. A alegoria

    funciona nesta fenda entre presente e passado. Para Owens essa capacidade

    para resgatar do esquecimento histrico aquilo que ameaa desaparecer a

    maior caracterstica da alegoria.29 O procedimento alegrico permite ao artistauma reinterpretao do passado para que este no seja esquecido e para que

    o presente se relacione historicamente.

    28BREA, J ose Luiz. Nuevas estrategias alegri cas. Madrid. Editorial Tecnos, S.A. 1991, p 4729 OWENS, C. O Impulso Alegrico: sobre uma teoria do p s-modernismo. Revista domestrado de Hist ria da Arte EBAUFRJ, Rio de J aneiro, 2 semestre. 2004. p 113.

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    O que muito interessante em Borriaud justamente sua denominao

    de ps-produo, termo que ele empresta da produo cinematogrfica, e, num

    gesto no mais que alegrico, institui de valor para os processos artsticos.

    Ps-produo um termo relacionado ao vdeo, ao cinema e

    televiso, e se refere a um conjunto de processos executados sobre um

    material j gravado. Montagem, efeitos sonoros, edio, etc, na arte atual

    cada vez maior o nmero de artistas que no trabalham mais sobre a matria

    bruta, podendo abolir a distino tradicional entre produo e consumo,

    criao e cpia, ready-made e obra original.30 Essa nova definio para o ato

    de criao coincide com a definio de alegoria de Benjamin. O prefixo POST

    significa uma atitude - as operaes ou processos consistem em inventar

    protocolos de uso para os modos de representao e as estruturas formaisexistentes. Trata-se de se apoderar de todos os cdigos da cultura, das

    formalidades da vida cotidiana e de todas as obras do patrimnio mundial e

    faz-los funcionar. Apropriar-se e habit-las.31

    Para Buchloh as caractersticas essenciais do procedimento alegrico

    so a fragmentao e o desgaste do significado convencional que so

    seguidos por atos de atribuio intencional de sentido que geram a experincia

    potica dos processos lingusticos fundamentais.32 A fragmentao,

    identificada por Benjamin como o emblema alegrico por excelncia estpresente nas runas histricas, preservadas para afirmar o processo

    irreversvel de dissoluo e decadncia, essa fragmentao pode ser

    encontrada no site specific. Para Owens frequentemente este tipo de trabalho

    aspira uma monumentalidade histrica, mas, preserva da histria somente os

    aspectos que contribuem para a criao do cdigo na obra. E, para esses

    trabalhos so acrescentados novos dados como a documentao fotogrfica, j

    que normalmente apenas dessa maneira que a obra vista pela maioria dos

    espectadores, revelando portanto o potencial alegrico da fotografia. Comouma arte alegrica, ento a fotografia poderia representar nosso desejo de fixar

    o transitrio, o efmero, em uma imagem estvel e estabilizante. 33

    30 BORRIAUD, op cit, p 0731 BORRIAUD, op cit, p 1432 BUCHLOH, op cit. p 197.33OWENS, op.cit. p 115.

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    As caractersticas dos procedimentos alegricos com base na

    concepo de Walter Benjamin so:

    - apropriao e subtrao do sentido;

    - fragmentao e justaposio dialtica dos fragmentos;

    - separao do significante e significado.34

    Ou seja, prticas artsticas que demonstram uma vontade de inscrever

    a obra de arte no interior de uma rede de signo e significaes, ao invs de

    consider-la como uma forma autnoma e original. 35

    A partir da demonstrao de que a alegoria no frvola tcnica de

    ilustrao por imagens mas expresso, como a linguagem e como a escrita,

    significa que Benjamin confirma, no mbito da filosofia da arte, as suas

    intuies no campo da linguagem e da escrita sobre a relao indissolvelentre o sensvel e o supra-sensvel ou, entre fenmenos e idias. O conceito

    teolgico de Revelao articula a indissolubilidade do sensvel e do supra-

    sensvel toda obra de arte seria revelao. Compreender a alegoria como

    expresso no cindiria como seria o caso na sua compreenso como

    ilustrao - o sensvel e o supra-sensvel.36 Benjamin compara a alegoria

    maneira como os hierglifos esto para escrita, pois estes complexos de sinais

    que garantem a validade sagrada -, pois a escrita alfabtica, enquanto

    combinao de tomos grficos est afastada... da escrita sagrada. O quevale dizer que quanto mais complexa a linguagem mais valor impe ao

    sagrado, alm de dificultar a compreenso queles que no tem acesso a esta

    linguagem. O mesmo se passa com o Barroco externamente e estilisticamente

    na contundncia das formas tipogrficas como no exagero das metforas a

    palavra escrita tende expresso visual. No se pode conceber nenhum

    contraste mais flagrante com o smbolo artstico, o smbolo plstico, a imagem

    da totalidade orgnica, que esse fragmento amorfo que constitui a escrita visual

    do alegrico.37 Na mo do alegorista a coisa se transforma em algo diferente,atravs da coisa o alegorista fala de algo diferente, ela se converte na chave de

    34 BUCHLOH, op cit, p 179.35 BORRIAUD, op cit, p 1336 MURICY, op cit p16337 BENJ AMIN, op cit, p 197-198

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    um saber oculto, e como emblema desse saber ele a venera. Nisso reside o

    carter escritural da alegoria.38

    A atitude apropriativa se encontra tambm na citao, outro

    procedimento comum arte, quando artistas se reportam imagens artsticas

    do passado, Uma das finalidades da citao , segundo Carla Damio em um

    ensaio sobre Benjamin, a interrupo proposital de um texto em sua

    linearidade ou continuidade, pretendendo, com isso, despertar no leitor o

    pensamento reflexivo e no a empatia ou simpatia autocolante s idias do

    autor.

    Para Benjamin as citaes so como salteadores no caminho, que

    roubam a convico daqueles que passeiam esmo. No tem inteno de

    reverenciar o passado, j que a imagem recuperada do passado tem seusentido destrudo e passa a valer na maneira como se relaciona com o

    presente. No h repetio vazia, mas destruio do sentido em seu contexto

    original; sentido que pode, porm ser redimido na condio que se constitui no

    presente. 39

    A montagem citada como mtodo por Benjamin, ou melhor, recurso

    metodolgico, tambm est associada tcnica da citao, do mosaico, de

    constelao, de alegoria. Ela se aproxima do recurso artstico utilizado pelos

    dadastas e pelos cubistas. A montagem nos meios expressivos, como artesvisuais, literatura e cinema, se ope idia de organicidade da obra de arte.

    Sua utilizao filosfica significa a interrupo da nsia totalizante do

    pensamento sistemtico, incapaz de dar conta dessa pretenso em uma

    realidade cuja vida se tornou presa do fragmentrio e da temporalidade

    avassaladora.40

    As estratgias alegricas defendidas por Bra so:

    - Estratgias de justaposio: transparncias, assemblage, montagens,

    (instalaes)- Estratgias de deslocamento: apropriacionismo, ready-mades

    - Estratgias de suspenso: ocultacionismo. No-enunciao.

    38BENJ AMIN, op cit, p 205

    39 DAMIO, Carla Milani.A Coroao do anti -subjetivismo. Revista Cult 106, ano 9,setembro 2006. Editora Bregantini. p 57 e 5840 DAMIO, op cit p 59

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    Com relao as duas primeiras estratgias os conceitos de J ose Luiz

    Brea se aproximam muito das caractersticas alegricas propostas por

    Benjamin e discutidas por Craig Owens e Buchloch. Mas, quando se refere s

    estratgias de suspenso retorna minimal e a noo de objetos especficos

    colocados por J udd para na verdade caracteriz-los como alegricos. Vejamos:

    Tem-se aqui a forma alegrica em estado puro: o objeto minimal no se refere

    a outro, no enuncia nada que no seja a si mesmo (e nesta medida,

    certamente um objeto especfico), mas alegoria de seu prprio estatuto e

    dimenso alegrica, alegoria da alegoria, apresentao do mesmo espao da

    representao - em seu grau zero certamente.41 No entanto, as estratgias de

    suspenso, ou no enunciao, caracterizam a separao do significante e

    significado. Enquanto as estratgias de deslocamento so referentes aosprocedimentos de apropriao e caracterizam a subtrao de sentido. E,

    finalmente as estratgias de justaposio trabalham com a fragmentao das

    montagens e das instalaes e se caracterizam pela justaposio dialtica de

    seus fragmentos. O que podemos entender a partir dessa relao to prxima

    de pensamentos da arte contempornea a presena inegvel desses

    processos, procedimentos, estratgias, enfim, atitudes alegricas, que por uma

    necessidade do contexto se constituem como prticas presentes e constantes.

    Ela (a alegoria) um esquema, e como esquema um objeto do saber,mas o alegorista s pode ter certeza de no o perder quando o transforma em

    algo de fixo: ao mesmo tempo imagem fixa e signo com o poder de fixar.42

    Os procedimentos alegricos da ps-produo se referem a reprogramar

    obras existentes apropriao histrica , a habitar estilos e formas

    historizadas, e fazer uso das imagens, da moda e das mdias.

    O discurso antiecltico se identifica com a teoria de Greenberg, para

    quem a histria da arte se configura num relato linear, teleolgico, e onde cada

    obra do passado se define por sua relao com as anteriores e com as queseguem. Garantindo assim uma noo evolutiva, de melhora. Esta teoria

    pensa a histria da arte como um duplo da investigao cientfica excluindo,

    portanto, toda a cultura dos pases no ocidentais. E criando uma obsesso

    41 BREA, op cit, p 5942BENJ AMIN, op cit, p 206

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    pelo novo. O ecletismo portanto criticado por no permitir uma idia de

    sentido nico e linear. Tanto para Yves Alain Bois e Lyotard somente a

    historizao das formas pode nos preservar do cinismo e do nivelamento raso

    do ecletismo. Para eles o ecletismo serve ao consumo, ideologia da

    sociedade ps-industrial. 43No entanto o que se ope a esse ecletismo burro?

    Greenberg, Darwin? Para Borriaud a resposta est em passar da cultura de

    consumo para uma cultura de atividade.

    O artista aquele que se move entre os signos e responsvel pelas

    formas do funcionamento social. Uma tomada de conscincia como cidado

    das condies de trabalho, dos problemas ecolgicos, enfim, de toda a sorte de

    problemas causados pela era industrial e ps-industrial. A sabotagem, o desvio

    e a pirataria pertencem a essa Cultura da atividade. Nenhuma imagem pblicadeve gozar de impunidade por qualquer motivo que seja44 A arte representa

    um contra-poder. Porque a arte est sempre comprometida.

    O artista recarrega as imagens e formas de sentido. A cultura mundial

    serve como uma caixa de ferramentas, das quais o artista se serve como num

    espao narrativo aberto.

    A arte uma forma de uso do mundo, uma negociao infinita de

    pontos de vista... um atividade que consiste em produzir relaes com o

    mundo, materializando de uma forma ou de outra seus vnculos com o espaoe com o tempo45

    Mas assim: todo o ato de criar alegrico? Bem comecemos pela

    pergunta, que deveria ser reformulada e, no lugar da palavra criar, usar outra

    que d conta desses novos processos, que esto mais relacionados com

    estratgias e processos, do que com tcnicas de criao, no sentido divino do

    termo.

    Montagem, apropriao atitudes alegricas. Trabalhos a servio de um

    discurso que defendem uma tese, ou uma posio crtica perante o mundo.Isso funo a arte tem funo?

    43BORRIAUD, op cit, p 120

    44 BORRIAUD, op cit, p 12245 BORRIAUD, op cit, p 123

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    Algumas consideraes

    Qualquer procedimento artstico, medida que vai sendo assimilado,

    tem cada vez a tendncia maior de se transformar em norma de atuao, em

    regra. A arte no conta com nenhum procedimento especfico e eterno. Para

    Benjamin descontinuidade igual incoerncia.

    A articidade da obra de arte no reside no procedimento utilizado, e sim

    em sua maneira particular de incidir em nossa maneira de conceber o mundo e

    nos relacionarmos com ele. Essa incidncia pode ser verificada em sua

    capacidade de para estabelecer uma descontinuidade na percepo, que est

    inevitavelmente condicionada pelo que culturalmente entendemos como

    realidade. a tcnica artstica consistiria em inventar procedimentos que dedeseu significado (que em si poderia considerar-se j um intervalo que altera a

    natureza da ordem do discursivo), abririam intervalos de sentido. Esta

    necessidade de continua inveno mostra que a arte s arte dentro de um

    contexto.

    Com relao ao espao podemos afirmar que o espao da arte

    contempornea no linear, assim como o tempo no contnuo, portanto, os

    saltos temporais e espaciais esto presentes tanto na forma como nos

    conceitos da arte. Estes saltos so as descontinuidades das relaes entre ascoisas e as idias,.Benjamin fala que descontinuidade igual incoerncia,

    pois no permite um raciocnio retilneo e cronolgico. E isso no privilgio da

    arte, mas do contexto onde ela se instaura, basta ver todos as ferramentas que

    a tecnologia digital nos coloca: ciber-espaos, hipertextos etc.

    O que podemos concluir, ou melhor, considerar o fato que essa

    aparente funo social da arte aparece justamente nos procedimentos, que so

    muito mais complexos e se apropriam do cotidiano, dando uma superficial

    impresso de que a arte passa a fazer parte do mundo real. No entanto,permanece a mesma dificuldade de entendimento, para o leigo, que na frente

    de um Matisse, no conseguia ver nada alm de cores e criticar a

    despretensiosa representao fidedigna da imagem, porque na verdade

    naquele momento como hoje, se busca uma verdade atravs da imagem, e de

    um significado traduzvel pela forma. A percebemos um equvoco, que nunca,

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    nem Matisse, nem os contemporneos tem a inteno de dizer alguma

    verdade, percebemos que essas estratgias ou procedimentos alegricos

    acontecem inclusive por uma vontade do artista em escapar da traduo, ou

    da determinao da obra como um smbolo, estanque, temporal, fixo. A arte

    contempornea prope enunciados, descontinuidades, desvios, para que no

    caminho percorrido pelo espectador ele possa estabelecer as relaes que o

    artista percebeu, e assim participar desse processo de construo, imerso no

    funcionamento do trabalho. Portanto, pensar que a arte tem um papel social a

    cumprir, e que essas novas aes artsticas so importantes por isso, muito

    pouco para uma rea do conhecimento que trabalha na dialtica do

    sensvel/supra-sensvel, da idia e do fenmeno.

    A alegoria uma demonstrao de que a nova relao do homem com ahistria, proposta por Benjamin, se consolida nesses procedimentos, onde h

    uma fragmentao, suspenso e justaposio do tempo e do espao e

    precisamos de novas estratgias para apresentar novas percepes.

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