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Debates em Direito Público Revista de Direito dos Advogados da União ano 12 - n. 12 - outubro de 2013

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Debates em Direito PúblicoRevista de Direito dos Advogados da União

ano 12 - n. 12 - outubro de 2013

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DEBATES EM DIREITO PÚBLICOREVISTA DE DIREITO DOS ADVOGADOS DA UNIÃOano 12 - n. 12 - ISSN 1677-8146Brasília – outubro 2013Periodicidade: anualTiragem: 1.250 exemplaresEdição: Associação Nacional dos Advogados da UniãoSHS Qd. 06 Conj. A Bl. “C” Salas 504/505 – Edifício Brasil 21 CEP 70316-109 – Brasília, DF

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Conselho editorial

Erico Ferrari Nogueira (Presidente)Armando Miranda FilhoBoni de Moraes SoaresCiro Carvalho MirandaLeonardo Albuquerque MarquesLuciano Medeiros de Andrade BicalhoLuís Henrique Martins dos AnjosMarcelo Ribeiro do ValMilton Nunes Toledo JuniorRodrigo Pereira Martins RibeiroRogério Telles Correia das NevesValeschka e Silva Braga.

diretoria da anaUni – Biênio 2013/2015

Presidente: Rommel Madeiro de Macedo Carneiro (CONJUR/MJ) [email protected]

Vice-Presidente: Carlos Luiz Weber (PU/GO) [email protected]

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diretor administrativo: Roque José Rodrigues Lage (CONJUR/MJ) adjunto: Marcos Henrique de Oliveira Góis (CONJUR/MDIC) [email protected]

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diretor de Comunicação: Leonardo Albuquerque Marques (PU/MA) [email protected]

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assessoria Parlamentar – anaUni [email protected]

assessoria de imprensa – anaUni Jornalista Responsável: (61) 8536.3112 [email protected]

Conselho FisCal da anaUni – Biênio 2013/2015

Titular: Cristiano Soares Barroso MaiaTitular: Fábio Gomes PinaTitular: Everton Pacheco SilvaSuplente: Dario Dutra Sátiro FernandesSuplente: Max Casado de Melo

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aCre – Delegado Titular: Bruno Gomes Bahia.

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Bahia - Delegado Titular: Bruno Leonardo Guimarães Godinho / Delegado Suplente: Cristiano Oliveira Sampaio Santos

CearÁ - Delegada Titular: Karla Simões Nogueira Vasconcelos / Delegada Suplente: Cristiane Caracas de Souza Cidade

distrito Federal - Delegado Titular: Adriana Pereira Franco / Delegada Suplente: Flávia do Espírito Santo Batista

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Mato Grosso - Delegada Titular: Marina Maniglia Puccinelli / Delegado Suplente: Bruno Scomparim Pereira

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Minas Gerais - Delegado Titular: Cil Farne Guimarães

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serGiPe - Delegado Titular: Francisco de Sales de Argolo / Delegado Suplente: Lyts de Jesus Santos

toCantins - Delegado Titular: João Gomes Dutra Neto / Delegado Suplente: André Luís Rodrigues de Souza

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Sumário

Apresentação ................................................................................................................ 7

Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio entre o político e o jurídico: revisitando a missão da Advocacia de Estadodiogo de Figueiredo Moreira neto .......................................................................... 9

1 Introdução .......................................................................................................... 92 Origem do conceito da divisão tripartite de poderes ........................................... 103 Releitura do conceito de separação de poderes como uma separação de funções ............................................................................................................. 114 A multiplicação democrática dos controles da sociedade sobre o Estado ............ 125 Essencialidade do novo conceito dos controles independentes, formais e informais, exercidos pela sociedade à plenitude da democracia na pós-modernidade .............................................................................................. 156 Conclusão ......................................................................................................... 16

Current Constitutional Developments in Latin Americadante Figueroa ........................................................................................................ 19

1 Introduction ...................................................................................................... 192 What is New in Constitutional Law in Latin America? ......................................... 202.1 Re-foundational Aspirations .............................................................................. 212.2 Rupture in the Historical Relationship between the Catholic Church and the State ........................................................................................................... 222.3 Moralistic Overtone in the New Constitutional Principles .................................... 232.4 Promotion of Indigenous Causes ........................................................................ 232.4.1 Constitutional Recognition of the Multiplicity and Plurality of the New Nations... 242.4.2 Official Language .............................................................................................. 252.4.3 Aboriginal Medical Practices .............................................................................. 252.4.4 Creation of Parallel Judicial Systems for Aboriginal Peoples ................................. 263 The Traditional Family ........................................................................................ 264 Political Participation and Political Parties and Movements ................................. 265 Personal Freedoms ............................................................................................. 276 Reforms in Criminal Procedure and Sentencing ................................................. 287 Changes Affecting the Branches of Government................................................. 327.1 Executive Branch ................................................................................................... 327.1.1 Presidential Reelection ........................................................................................ 327.1.2 Other Amendments Concerning the Executive Branch ........................................ 337.1.3 Constitutional Issues Concerning the Executive Branch ....................................... 347.2 Legislative Branch .............................................................................................. 367.3 Judicial Branch ................................................................................................... 368 Constitutional Emergencies ................................................................................ 389 Economic Model ............................................................................................... 3910 Fight against Narcotrafficking and Organized Crime ........................................... 40

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11 Fight against Government Corruption ................................................................ 4112 International Law and International Relations ..................................................... 4113 Constitutional Amendment Procedures .............................................................. 4414 Conclusion ........................................................................................................ 45

Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileiraPatrícia lima sousa, antonio augusto ignacio amaral ....................................... 47

1 Introdução ........................................................................................................ 472 Patrimonialismo, burocracia e reformas gerenciais na Administração Pública brasileira: situando a accountability nesses modelos ........................................... 483 Transparência governamental no Brasil e o advento da Lei de Acesso à Informação ..................................................................................................... 534 Implementação da LAI e desafios para a Administração Pública .......................... 595 Acesso à informação e accountability vertical ..................................................... 616 Considerações finais .......................................................................................... 63 Referências ........................................................................................................ 64

Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedadeeugenio Müller lins de albuquerque .................................................................... 65

Introdução ........................................................................................................ 651 Controle da Administração Pública ..................................................................... 671.1 Controle de legalidade e de mérito. Atos vinculados e discricionários ................. 671.2 Controle interno. Controle externo ..................................................................... 701.3 Controle jurisdicional ......................................................................................... 711.4 Considerações sobre a Advocacia Pública e Controle .......................................... 732 Transformações no Direito Administrativo .......................................................... 762.1 Crise da lei formal .............................................................................................. 772.2 Constitucionalização do Direito Administrativo ................................................... 782.3 Pós-positivismo. Normatividade dos princípios ................................................... 802.4 Fim da dicotomia atos vinculados versus discricionários. Graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. Sistematização dos parâmetros de controle judicial dos atos administrativos ........................................................... 823 Controle do ato administrativo pelo Advogado Público ...................................... 843.1 Estado Democrático de Direito. Administração gerencial .................................... 853.2 Controle de legalidade. Evolução. Controle de juridicidade ................................. 883.3 Controle de juridicidade dos atos discricionários e Advocacia Pública .................. 903.4 Missão do Advogado Público e controle jurisdicional. Princípio da eficiência. Prevenção da improbidade. Controle de juridicidade e resgate do processo administrativo ................................................................................................... 923.5 Limites ao controle dos atos discricionários pelo Advogado Público .................... 94 Conclusões ........................................................................................................ 96 Referências ....................................................................................................... 98

Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra contida no artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941?Márcio Fernando Bouças laranjeira ..................................................................... 101

1 Introdução ...................................................................................................... 1012 Do tombamento segundo a legislação pátria ................................................... 103

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3 Da abrangência de interesses e o tombamento de bens públicos ...................... 1104 Conclusão ....................................................................................................... 119 Referências ...................................................................................................... 122

Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minérioValkiria silva santos Martins ................................................................................ 125

1 Introdução ...................................................................................................... 1252 Sustentabilidade – Mineração para esta geração e as futuras............................ 1263 Legislação minerária pertinente ao tema .......................................................... 1334 Licenciamento ambiental para lavra de minério ................................................ 1355 Autorização Ambiental de Funcionamento como instituto diferenciado do licenciamento ambiental .................................................................................. 1386 Procedimento simplificado na contramão do desenvolvimento sustentável ....... 1417 AAF em atividades minerárias – Lavra ilegal por nulidade ................................. 1468 Conclusão ....................................................................................................... 151 Referências ..................................................................................................... 153

Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico?Marco aurélio Ventura Peixoto ............................................................................ 157

1 Introdução ...................................................................................................... 1572 Contextualização histórica e previsões legais .................................................... 1583 Natureza jurídica ............................................................................................. 1624 Legitimidade e competência ............................................................................ 1645 Requisitos para a utilização do instituto ........................................................... 1666 A discutível possibilidade de utilização concomitante da suspensão e do agravo ............................................................................................................. 1687 Efeitos da decisão que defere a suspensão ....................................................... 1708 O agravo interno/regimental como via recursal................................................. 1729 A possibilidade de renovação do pedido junto às instâncias superiores ............. 17310 Suspensão coletiva .......................................................................................... 17511 Questionamentos quanto à constitucionalidade e o perigo do uso político ....... 17612 Conclusão ....................................................................................................... 178

Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011, do Senado Federal, é constitucional?daniel Pinheiro de Carvalho ................................................................................. 181

Introdução ...................................................................................................... 1811 Breve histórico sobre as polícias militares no Brasil............................................ 1822 Teor da PEC nº 102/2011 ................................................................................. 1843 Exclusividade da investigação criminal pela polícia unificada e fim do controle externo exercido pelo Ministério Público .......................................................... 1884 Provimento dos cargos das carreiras policiais unificadas ................................... 1954.1 Da inconstitucionalidade da regra que permite a ascensão funcional ................ 1954.2 Da inconstitucionalidade da transposição entre cargos com atribuições, estrutura remuneratória e requisitos de ingresso distintos ................................ 2005 Da inconstitucionalidade da cláusula que assegura aos inativos e pensionistas das carreiras policiais as garantias da paridade e da integralidade, por ofensa ao direito à igualdade ...................................................................................... 202

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6 Da desmilitarização da polícia ostensiva e unificação das polícias ..................... 203 Conclusão ....................................................................................................... 204 Referências ..................................................................................................... 206

O conflito entre o regulamento autônomo e a leiFelipe nogueira Fernandes ................................................................................... 209

1 Introdução ...................................................................................................... 2092 O poder regulamentar ..................................................................................... 2113 Espécies de regulamentos ................................................................................ 2114 O regulamento autônomo no direito brasileiro ................................................. 2135 Conclusão ....................................................................................................... 224 Referências ...................................................................................................... 225

A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho?andré Petzhold dias .............................................................................................. 227

1 Introdução ...................................................................................................... 2272 Do estado de natureza à reunião em sociedade (Estado Político) ...................... 2293 Visão atual do Estado Liberal e sua atuação ..................................................... 2314 Segurança pública na CF 88 – Preâmbulo, artigos 5º, 6º e 144 ........................ 2345 Características do direito à segurança pública .................................................. 2386 Políticas públicas – Conceito, características e consequências de sua formulação e implementação coercitiva pelo Poder Judiciário ........................... 2427 Necessidade de constante atualização de políticas de segurança pública .......... 2448 Rigidez das fases procedimentais como incompatibilidade ............................... 2469 Institutional choice – O Judiciário é a melhor instituição para decidir sobre políticas de segurança pública? ........................................................................ 24810 Considerações finais ........................................................................................ 249 Referências ...................................................................................................... 249

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Apresentação

A publicação da 12. ed. da Revista Debates em Direito Público traduz uma nova fase no processo de seleção de seus textos. A partir desta edição a Revista passou a utilizar o sistema double blind review para avaliação dos artigos. O emprego desse sistema significa maior objetividade na análise e avaliação dos textos e, consequentemente, um passo importante para melhor qualificação acadêmica da Revista.

Mantendo o nível do debate jurídico-acadêmico das edições an -te riores, esta edição inicia-se com as transcrições das palavras do Dr. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a partir da Conferência apre sen tada ao XIII ENAU — Encontro Nacional dos Advogados da União —, em Brasília, 08 de novembro de 2012, que trataram da evolução do con-trole de juridicidade no Estado Democrático de Direito. Em seguida, o Dr. Dante Figueroa trata das tendências e novidades constitucionais no contexto da América Latina.

Em sequência, a Dra. Patrícia Lima Sousa e o Dr. Antonio Augusto Ignacio Amaral analisam o acesso à informação e transparência governa-mental na Administração Pública brasileira. O Dr. Eugenio Müller Lins de Albuquerque, por sua vez, traz reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade. Já o Dr. Márcio Fernando Bouças Laranjeiras aborda em seu artigo a questão do tombamento dos bens públicos e a abrangência e o alcance da regra contida no Decreto-Lei nº 3.365, de 1941. Em seguida, a Dra. Valkiria Silva Santos Martins disserta sobre a autorização ambiental de funcionamento e as lavras ilegais de minério.

Já o Dr. Marco Aurélio Ventura Peixoto nos oferece contribuição relevante sobre a suspensão de liminar e as polêmicas decorrentes desse instituto. De outra parte, o Dr. Daniel Pinheiro de Carvalho aborda tema relacionado à desmilitarização da polícia, a partir da análise da Proposta de Emenda à Constituição nº 102, de 2011, do Senado Federal. O Dr. Felipe Nogueira Fernandes, por sua vez, dedica-se a tema importante no âmbito da Administração Pública ao analisar eventual conflito nor-mativo entre lei e regulamento autônomo emanado por Chefe do Poder

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Executivo. Por fim, o Dr. André Petzhold Dias tece explanações sobre a judicialização de políticas públicas relativas à área de segurança pública.

Feitas as apresentações, aproveito a oportunidade para deixar consignado meu agradecimento ao Presidente da Associação Nacional dos Advogados da União, Dr. Rommel Madeiro de Macedo Carneiro, pela confiança na assunção dessa função; ao ex-presidente do Conselho Editorial, Dr. Francisco Alexandre Colares Melo Carlos, pelo repasse das informações necessárias para a condução deste mister; aos autores e membros do Conselho Editorial, pela paciência, agilidade e excelência de suas contribuições; e, por derradeiro, à Editora Fórum, pela qualidade, profissionalismo e seriedade na condução deste trabalho.

Erico Ferrari NogueiraPresidente do Conselho Editorial

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Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio entre o político e o jurídico: revisitando a missão da Advocacia de Estado1

Diogo de Figueiredo Moreira NetoProfessor Titular da Universidade Candido Mendes. Procurador do estado do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Separação de poderes. Democracia na pós-modernidade. Controle de juridicidade.

Sumário: 1 Introdução – 2 Origem do conceito da divisão tripartite de poderes – 3 Releitura do conceito de separação de poderes como uma separação de funções – 4 A multiplicação democrática dos controles da sociedade sobre o Estado – 5 Essencialidade do novo conceito dos controles independentes, formais e informais, exercidos pela sociedade à plenitude da democracia na pós-modernidade – 6 Conclusão

1 IntroduçãoNa origem, a distinção entre interesses individuais e interesses coletivos,

que ditará a necessidade de priorizar uns ou outros, conforme as circuns-tâncias. Em consequência, surgem as confrontações entre a liberdade, con-gênita ao indivíduo, e a autoridade, conata ao grupo, que, com o tempo, passam a informar o que hoje se considera, respectivamente, conforme a prevalência que se atribua à primeira ou à segunda, respectivamente, a tônica dos regimes democráticos ou dos autocráticos.

Paralelamente, será o enriquecimento do discurso dos valores que definirá, no espaço e no tempo, as inúmeras espécies históricas de re­gimes: tanto as efetivamente vivenciadas como aquelas hipoteticamente concebidas, que se inclinam, ora com predomínio dos valores referidos ao indivíduo, ora com prelazia dos valores referidos ao grupo.

Em todas essas experiências, porém, encontram-se sempre valores predominantes que, uma vez incorporados à ordem jurídica em sua milenar

1 Conferência apresentada ao XIII Encontro Nacional dos Advogados da União (ENAU), em Brasília, 08 de novembro de 2012.

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10 Diogo de Figueiredo Moreira Neto

evolução, ditam os limites de direito entre os protagonistas da política — a sociedade e o Estado — que nos chegaram à Modernidade.

Não obstante a diversidade de combinações políticas historica-mente experimentadas, ou mesmo as meramente concebidas, é possível distinguir um bloco de valores convergentes para a caracterização da justiça, assim entendida como síntese axiológica de um hipoteticamente justo equilíbrio que se deva alcançar entre os poderes individuais entre si, destes com os coletivos e entre os próprios coletivos, incluídos aqueles que passaram a ser formalmente atribuídos ao Estado e, por isso, cate-gorizados como poderes estatais.

Assim é que, perseguindo o ideal de justo equilíbrio entre interesses, além da demarcação precisa dos limites jurídicos, tanto da ação dos po-deres conferidos ao Estado como dos poderes retidos pelos indivíduos, tornou-se necessário definir um sistema de controle voltado à observância desses limites, assim erigido a tema nuclear para o Direito Público desde o surgimento do Estado moderno.

Neste ensaio, já posto sob a óptica pós-moderna, releva apreciar a obsolescência, entre outros conceitos que se tornaram míticos com a Modernidade, destacadamente, o da divisão de poderes, provocada pelo ressurgimento e da expansão contemporânea dos direitos humanos e da democracia, que vieram reorientar e redefinir todo o sistema de contro-le estatal, no centro do qual passou a desempenhar papel essencial a Advocacia de Estado.

2 Origem do conceito da divisão tripartite de poderesEm breves traços, remonta a Aristóteles a mais antiga discrimina­

ção das funções públicas atribuídas à polis: a deliberação sobre os assuntos públicos, a administração de sua realização e a administração da justi-ça. Esse mesmo esquema tripartite se repetiu com Maquiavel, com sua separação de funções parlamentares, reais e judiciais. Foi, porém, com Locke, que essa discriminação de funções se converteu no embrião da teoria da separação de poderes, que se integraria, com Montesquieu, com sua observação, no Livro VI do Espírito das leis, sobre a experiência in-glesa, ao destacar o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, como poderes independentes e harmônicos.

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Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 11

Assim, a expressão “poder” na língua inglesa, tal como recolhida por Montesquieu, tornar-se-ia sinédoque amplamente difundida para o enunciado da vitoriosa fórmula política destinada a incrementar a eficiência da governança pública pela especialização funcional e, simulta-neamente, promover a limitação do poder, por sua compartimentação, que, até então, estivera fortemente concentrado nos reis e caracterizando, por longo tempo, a hegemonia do absolutismo.

O amadurecimento dessa concepção se processou através das três grandes Revoluções Liberais: iniciou-se com a Revolução Gloriosa (1688-1689), a que se deve a contribuição do modelo inglês da independência do Parlamento ante a Coroa; prosseguiu com a Revolução Americana (1775-1783), com a contribuição da independência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América; e concluiu-se com a Revolução Francesa (1789-1799), que conferiu independência à Administração Pública.

Esse modelo, que, com algumas variações, seguiria a linha fundada nos conceitos de independência e de harmonia entre os poderes, inspirou a grande maioria das Constituições que se seguiram e resistiu, até mesmo, ao fatídico renascer absolutista do século XX.

3 Releitura do conceito de separação de poderes como uma separação de funções

A necessidade de expandir o modelo tripartite assomou justamente com a geral convicção de que a fórmula não havia logrado proteger as sociedades das autocracias absolutistas que haviam proliferado e tornado o século XX em um sinistro intermezzo histórico de holocausto e sangue.

Com efeito, havia se confiado que as limitações introduzidas pelo modelo tripartite, dotadas dos contrapontos parlamentar e judicial insti-tuídos, seriam suficientes para refrear a histórica tendência à hipertrofia patológica dos governantes executivos, constantemente intentada por Chefes de Estado carismáticos e manipuladores perversos das raras ins-tituições de controle político, então extremamente vulneráveis, quando não apenas decorativas.

Mas os horrores de duas Guerras Mundiais, a que se seguiria ain-da uma “Guerra Fria”, mas não menos letal e angustiante, no curso das quais a pessoa humana de pouco ou nada valia ante os despóticos donos do poder, exauriu essa ingênua confiança, tendo sido a dura lição de

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12 Diogo de Figueiredo Moreira Neto

que necessitaram os povos exaustos e exangues da Europa, a começar dos mais atingidos sacrificados — Itália e Alemanha — para conseguir ultrapassar o modelo superado.

Era necessário recomeçar pela revisão do vínculo entre sociedade e Estado, não mais como uma relação de sujeição, mas como uma relação de serviço, devolvendo ao indivíduo a condição de cidadão e não de súdito, mudança se processou, a partir do término da Segunda Guerra Mundial, com o processo juspolítico de transformação do modelo tri-partite clássico, na busca do almejado equilíbrio entre o poder político e seu controle jurídico.

Como o simples controle político, que havia sido alcançado com a instituição dos processos eletivos para a escolha dos governantes se tinha mostrado insuficiente, a sociedade demandava novos canais instituciona li­zados de controle, notadamente para evitar uma perigosa recidiva das devas-ta doras ideologias autoritárias e totalitárias do século XX, garan tindo o primado da pessoa humana e, paralelamente, canalizando ordei ra mente as emergentes e crescentes demandas das sociedades pós-modernas.

Esse novo modelo haveria, assim, de multiplicar e de aperfeiçoar os canais participativos da cidadania, para tanto instituindo novas funções constitucionalmente independentes da sociedade, que operassem harmonicamente dentro do próprio aparelho de Estado.

4 A multiplicação democrática dos controles da sociedade sobre o Estado

O atingimento do almejado equilíbrio — entre os poderes individu-ais entre si, destes com os coletivos e entre os próprios coletivos, incluídos aqueles formalmente atribuídos ao Estado e, por isso, categorizados como poderes estatais — necessitava não apenas de uma ampliação dos controles sociais sobre o Estado, como a garantia de sua efetividade, o que só se obteria satisfatoriamente dotando­os de novas expressões próprias do poder estatal, quebrando e expandindo o provecto — e já mítico — conceito tripartite.

Porém essas novas funções a serem introduzidas não deveriam estar atreladas a orientações e interesses partidários, senão que, por serem lídi-mas expressões de valores fundantes da sociedade como um todo, deveriam, à semelhança das funções jurisdicionais, ser exercidas com independência político­partidária, ou seja, como funções neutrais.

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Assim, no novo modelo, o controle sobre o Estado administrador se desdobra: o antigo, exercido pelos tradicionais controles internos a cargo das funções legislativas e executivas, ambas política e partidariamente orientadas e cometidas a órgãos próprios do Estado, e o novo, secundo, exercido por controles externos a cargo de funções de fiscalização, promoção e defesa de interesses constitucionalmente assegurados, tanto cometidas e exercidas formalmente, por órgãos independentes da sociedade, política e partidariamente neutrais, instituídos no próprio aparelho de Estado, como, informalmente, pela cidadania, fora do aparelho de Estado.

Como se depreende, a pluralização, bem como a especialização desses novos controles — politicamente neutros e capilarmente dissemi-nados por todo o corpo social —, passa a desempenhar papel essencial, não apenas para manter a legalidade estrita da ação estatal, como, inova-doramente, também a sua legitimidade e licitude, atuando como sistemas formais e informais de proteção da juridicidade.

Assim é que a Constituição brasileira ostenta hoje rica diversificação de funções de controle neutrais, além da tradicionalmente exercida pelo Judiciário, com suas características próprias de ser passivo e terminativo. São elas:

1. As funções neutrais constitucionalmente independentes de fisca-lização contábil, financeira e orçamentária, para a tutela da lega-lidade, legitimidade e economicidade da gestão administrativa,2 e da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência da gestão pública, categorizadas como atividades de zeladoria e controle, cometidas ao sistema de Tribunais de Contas;3 4

2. As funções neutrais constitucionalmente independentes de con-trole da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, de custódia da autonomia da instituição, do cumprimento do estatuto da magistratura e da observância dos princípios da Administração Pública, de promoção de justiça em casos de crime contra Administração Pública e abuso de autoridade e atribuições

2 Art. 70, caput, CF.3 Arts. 70 a 75, CF.4 Art. 37, caput, CF.

Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 13

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14 Diogo de Figueiredo Moreira Neto

correlatas,5 categorizadas como de zeladoria, controle e promoção de justiça e cometidas ao Conselho Nacional de Justiça;

3. As funções neutrais constitucionalmente independentes de con-trole da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais dos seus membros, de custódia da autonomia funcional e administrativa dessa institu-ição e da observância dos princípios da Administração Pública, e atribuições correlatas,6 categorizadas como de zeladoria e con trole e cometidas ao Conselho Nacional do Ministério Público;

4. As funções neutrais constitucionalmente independentes e defi-nidas como essenciais à justiça, categorizadas como de controle, zeladoria e promoção de interesses juridicamente qualificados de toda natureza, cometidas, respectivamente, conforme a espe-cificidade dos interesses, aos membros de quatro complexos or-gânicos distintos: do Ministério Público,7 da Advocacia de Estado,8 9 da Advocacia10 e da Defensoria Pública;11 e

5. As funções neutrais constitucionalmente independentes, cate-gorizadas como de controle, zeladoria e promoção de interesses específicos relativos à inconstitucionalidade de lei ou ato nor-mativo federal ou estadual ou à constitucionalidade de lei ou ato normativo federal,12 bem como em concursos públicos de ingresso na magistratura,13 no Ministério Público14 e nas procu-radorias dos Estados e do Distrito Federal,15 cometidas à Ordem dos Advogados do Brasil.

5 Art. 103-B, §4º, CF.6 Art. 130-A, §2º, CF.7 Art. 129, CF.8 Art. 131, CF (da União) e art. 132, CF (dos Estados e do Distrito Federal).9 Não obstante a Constituição nomear apenas a advocacia de Estado da União, dos Estados-membros e

do Distrito Federal, também a advocacia de Estado dos Municípios e a das autarquias de todos os níveis federativos estão nela implícitas: 1º - porque, sendo idênticas as funções, impõe-se a isonomia de tratamento; 2º - porque o constituinte não teve intenção em discriminar, fechando um elenco taxativo, mas somente de dar destaque institucional às nominadas; 3º - porque todos seus exercentes, uma vez providos por investidura pública, como tal, gozam da mesma fé pública, que impõe ser reconhecida, como comanda o art. 19, II, CF.

10 Art. 133, Constituição da República Federativa do Brasil.11 Art. 134, Constituição da República Federativa do Brasil.12 Art. 103, VII, Constituição da República Federativa do Brasil.13 Art. 93, I, Constituição da República Federativa do Brasil.14 Art. 129, §3º, Constituição da República Federativa do Brasil.15 Art. 132, caput, Constituição da República Federativa do Brasil.

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5 Essencialidade do novo conceito dos controles independentes, formais e informais, exercidos pela sociedade à plenitude da democracia na pós-modernidade

Redirecionados todos os controles examinados de proteção à pessoa humana, com sua vida e dignidade, resulta que a sua expressão política democrática tornou-se constitucionalmente essencial.

Com efeito, leitura atenta da Carta põe este valor em evidência, não obstante a inversão operada pelo constituinte no artigo 1º, pois, se o fundamento sine qua non é a dignidade humana (art. 1º, II), tanto o fundamento da cidadania, que equivocadamente o antecede (art. 1º, II), como o do pluralismo político, que acertadamente lhe sucede (art. 1º, V) são seus evidentes consectários.

Assim, é da existência desse duplo fundamento — da cidadania e do pluralismo — que se há de dessumir a existência de uma democracia, tal como afirmada na própria caracterização constitucional dada ao Estado brasileiro: como Democrático (art. 1º, caput).

Mas, em que pese essa clara afirmação, à efetiva realização da demo­cracia opõe-se a resistência dos restolhos da herança absolutista trazida da Modernidade, ainda mais agravada por nossa tradição ibérica, proclive à imperatividade, às imunidades e privilégios do poder.

O controle do Estado por seus próprios órgãos politicamente deci-sórios — parlamentares e executivos — portanto, um controle interno, por serem político­partidariamente comprometidos, obviamente não logra atender às qualidades de generalidade e de neutralidade exigidas por um Estado Democrático, instituído sobre o fundamento da igualdade política dos cidadãos, o que deles faz, a cada um, órgãos aptos a exercer o controle.

Por outro lado, como o controle externo exercido pelo Poder Judiciário, que é tradicionalmente neutral, só atua provocado, a solução constitucional voltou-se à pluralização dos órgãos de fiscalização e de promoção, bem como à criação de instâncias administrativas intermédias de controles especializados, todas dotadas de iniciativa própria e de independência funcional.

Com esses avanços e aperfeiçoamentos, integra-se no País um sistema nacional democratizado de controles, já não apenas do Estado (os tra-dicionais), como no Estado (os novos), que cumprem harmonicamente a elevada missão de acrescer à democracia formal, que é a referida à escolha

Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 15

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16 Diogo de Figueiredo Moreira Neto

dos agentes políticos eletivos, a democracia substancial, que é a referida à escolha das ações públicas.

Esse valioso processo democratizante, para o qual tanto tem contri-buído os novos órgãos constitucionalmente independentes, só não tem progredido mais, pela falta de hábito de o cidadão lutar pelos próprios direitos, notadamente os coletivos e difusos, não obstante o grande avanço nesse sentido já registrado desde a vigência da Constituição de 1988.

Por outro lado, permanece a velha resistência aos controles, por parte dos detentores do poder político, por motivos mais históricos que ju-rídicos, porém que mais se agravam com o fenômeno, universalmente observado por juristas e cientistas sociais de diferentes especializações, da imbricação paulatina da política e do direito, de modo que a atividade política se vai tornando cada vez menos infensa aos controles jurídicos, e a atividade jurídica, cada vez mais pervasiva das imunidades da política.

É o que ocorre, exemplificativamente, com a crescente preocupação como o controle da gestão pública, não apenas em seu iter administrativo, mas em todo o seu percurso, ou seja: desde o planejamento, passando pela orçamentação e pela execução, até o atingimento concreto do resultado.

Observe-se que desde a sua formulação — política e administrativa — desse assim caracterizado complexo processual das políticas públicas, ele se tornou constitucionalmente sujeito aos controles instituídos de juridi­cidade, que se estendem desde suas fases híbridas iniciais — quais sejam as do planejamento e da orçamentação, pois que demandam ambas atos coordenados materialmente administrativos e formalmente legislativos — até a sua fase executiva, que é puramente administrativa, compreen-dendo, como entende a mais recente doutrina administrativista, o seu consequente resultado.

6 ConclusãoEm suma, as funções essenciais à justiça apresentam-se, nesta exposi-

ção, como órgãos da sociedade inseridos no aparelho de Estado, para o exercício de diversificadíssimas funções de controle de juridicidade — de fiscalização, de promoção e de defesa —, cobrindo todo o espectro de direitos garantidos pela Constituição.

Sua missão é tanto mais importante e delicada quando a esfera de atuação cometida à Advocacia de Estado envolve, necessariamente, todo o

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complexo parlamentar e executivo da gestão pública, não mais se restringindo, como no passado, à sua mera fase administrativa, envolvendo, portanto, todo o espectro do controle de juridicidade, ou seja: do planejamento, da orçamentação, da execução e, notadamente, da efetivação de seu resultado.

Por isso, em razão de seu campo de atuação jurídica se ter tornado profundamente imbricado com a atuação política — já que esta não mais poderá se processar nem fora nem, muito menos, acima do Direito — a missão da Advocacia de Estado se apresenta, cada vez mais, como imprescindível à realização neutral da justiça e, em consequência, da democracia.

Eis porque atentarão contra a pureza e a elevação constitucional dessa missão, que lhes é constitucionalmente cometida, aos Advogados de Estado, pela sociedade, tanto o receio de seus membros de desagradar quaisquer agentes políticos que se sintam contrariados, como, e com mais razão, a pretensão destes de dirigir ou condicionar espuriamente a ação dos Advogados de Estado de modo a que atuem em contrariedade de sua consciência jurídica e de sua independência funcional.

Nada, portanto, deverá desviá-los dos interesses públicos primários da juridicidade, para atender a interesses públicos secundários, quando não a interesses públicos terciários, partidariamente orientados, sempre que afrontem o direito, a justiça e a democracia, pois que estes valores fundamentais nesses agentes têm a sua primeira e essencial linha de defesa.

Violado está, em suma, o próprio conceito de Estado Democrático de Direito, se não existir recíproco respeito e acatamento a todos os insti-tutos de controle de juridicidade constitucionalmente instituídos para sua defesa.

Teresópolis, primavera de 2012.

Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 17

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Current Constitutional Developments in Latin AmericaDante FigueroaProfessor da Georgetown University de Washington DC, Washington College of Law, na cadeira de International Business Transactions in Latin America and Latin American Law. Senior Legal Information Analyst on Latin American Law. Consultor da Library of US Congress. Advogado no Chile, em New York e Washington DC.

Abstract: This article seeks to identify the new constitutional philosophies underlying the most important constitutional changes that have occurred in Latin America since 1999, when the new Constitution of Venezuela was passed. This brief examination does not address every Latin American country, or every aspect of constitutional law. The countries sampled have been selected based on their strong departure from constitutional tradition; the far-reaching effects of their political, social, and economic aims; or because of the high geopolitical relevance of such jurisdictions. The areas of focus cover the economic, social, and political bases of the State; the organization of the State and the distribution of power among the branches of government; and the constitutional protection of perso-nal freedoms. The article also highlights some new areas of attention on constitutional drafting in the region, including the rights of indigenous peoples, third-generation rights, and the validity and influence of inter-national law at the domestic level.

Key words: Constitutional Law. Latin America Constitutional Systems. Historical and comparative aspects.

Summary: 1 Introduction – 2 What is New in Constitutional Law in Latin America? – 3 The Traditional Family – 4 Political Participation and Political Parties and Movements – 5 Personal Freedoms – 6 Reforms in Criminal Procedure and Sentencing – 7 Changes Affecting the Branches of Government – 8 Constitutional Emergencies – 9 Economic Model – 10 Fight against Narcotrafficking and Organized Crime – 11 Fight against Government Corruption – 12 International Law and International Relations – 13 Constitutional Amendment Procedures – 14 Conclusion

1 IntroductionLatin America is an area of the world in constant change, sometimes

peaceful, and sometimes not. Political and social changes ultimately find their way into the constitutional framework of Latin American jurisdic-tions. An examination of constitutional law developments in the region since 1999, when the new Venezuelan Constitution was passed, shows that there are many common aspects to these constitutional developments.

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20 Dante Figueroa

Accordingly, this article seeks to identify the new constitutional philoso-phies underlying the most important changes that occurred in this period of time and determine their commonalities.

This brief examination does not address every Latin American country, or every aspect of constitutional law. The countries sampled have been selected based on their strong departure from constitutional tradition; the far-reaching effects of their political, social, and economic aims; or because of the high geopolitical relevance of such jurisdictions. The areas of focus cover the economic, social, and political bases of the State; the organization of the State and the distribution of power among the branches of government; and the constitutional protection of per-sonal freedoms. The article also highlights some new areas of attention on constitutional drafting in the region, including the rights of indige-nous peoples, third-generation rights, and the validity and influence of international law at the domestic level.

In this context, this survey focuses on the new constitutions of Venezuela (1999); Ecuador (2008); and Bolivia (2009). It also encompas s-es constitutional amendments passed in Mexico in 2008, 2009, and 2011, related to constitutional guarantees, criminal justice, government cor-ruption, kidnapping, organized crime, secular character of the country, and human rights. The study further explores the constitutional changes that occurred in Colombia in 2009 and 2012 related to the recognition of third-generation rights, to political parties and movements, to the peace process, and to military jurisdiction. Reference is also made to Peru’s constitutional amendment of 2009 concerning the organization of the legislative branch. Furthermore, two constitutional decisions con-cerning presidential succession, one from Nicaragua (2009), and another from Colombia (2010), are examined. Similarly, this survey analyzes the Ecuadorian Referendum of 2011 that introduced amendments to the judicial branch. Finally, the constitutional aspects of the political trial against former president Lugo (2012) and the succession of Hugo Chavez after his death (2013) will be examined.

2 What is New in Constitutional Law in Latin America?A first glance at recent constitutional law developments shows

several trends, described below:

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Current Constitutional Developments in Latin America 21

2.1 Re-Foundational Aspirations It was the Constitution of Venezuela of 1999 that set the stage for

new political aspirations to rebuild society. Its preamble declares that the supreme goal of the Venezuelan people is to

refound the Republic to establish a society that is democratic, participatory, and protagonist, multiethnic and pluricultural in a State of justice, federal and decentralized, that consolidates the values of freedom, independence, peace...1

Following this trend, the Constitution of Bolivia of 2009 provided in its preamble,

[W]e left behind our colonial, republican, and neoliberal past. We assume the historic challenge to build collectively our Social Unitarian State of Communal Plurinational Law, that integrates and articulates the purpose of advancing toward a Bolivia that is more democratic, productive, and that carries, inspires, and is engaged in peace.2

The preamble continues, saying straightforwardly that “we ... build a new State ... [and] we ... refound Bolivia.”3

Coupled with the refoundational aim is a strong reaction against perceived “foreign influence.” This has been an issue long present in Latin American constitutionalism, but only recently has it emerged so strongly. In Bolivia, again, the Constitution expressly includes a prohi-bition against the installation of foreign military bases in the national territory.4 Renewed efforts at implementing Simón Bolívar’s aspiration of making Latin America a single political unit in the form of Latin American integration are also noticeable in recent constitutions.5

1 1999 CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA (hereinafter, 1999 CONST. OF VENEZUELA), Gaceta Oficial del jueves 30 de diciembre de 1999, No 36.860, available at: <http://www.asambleanacional.gob.ve/index.php?option=com_content&view=article&id=24728&Itemid=238&lang=es>. All translations in this article are those of the author unless otherwise stated.

2 REPÚBLICA DEL BOLIVIA CONSTITUCIÓN DE 2009 (hereinafter, 2009 CONST. OF BOLIVIA), available at: <http://consuladoboliviano.com.ar/portal/node/119>.

3 Id.4 Id. art. 10(III).5 2008 CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DEL ECUADOR (hereinafter, 2008 CONST. OF ECUADOR) pmbl.,

available at: <http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/Constitucion-2008.pdf>; 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 265(I).

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22 Dante Figueroa

2.2 Rupture in the Historical Relationship between the Catholic Church and the State

With a few historical exceptions,6 Catholicism has been the constitu-tionally-enshrined official religion of most Latin American countries since their independence. Profession of the Catholic faith was even required in some cases for high officials to assume office.7 Venezuela signaled a departure in 1999 when it established that, “the State shall guarantee freedom of religion and cult”,8 and that “freedom of conscience and faith and in the teaching of religion shall be recognized and guaranteed... without any dogmatic imposition”.9

Bolivia’s 2009 Constitution, in turn, recognizes “freedom of religion and spiritual beliefs”,10 and that the “State is independent from religion”.11 The Constitution goes a step further in replacing the Catholic religion as the moral foundation of the Bolivian society by affirming that the “state assumes and promotes as ethical principles of the plural society, aboriginal mottos such as: ‘don’t be lazy, a liar, or a thief ’”.12

Ecuador’s Constitution, in this vein, recognizes “all diverse forms of religiosity and spirituality, and the wisdom of all cultures”.13 It too reaffirms the “right to practice, keep, change, or profess publicly or privately, each one’s religion or beliefs [and asserts the State’s duty] to protect voluntary religious practices, as well as the expressions of those who do not profess any religion”.14

Following this trend, in 2012 Mexico — a country with one of the most catholic societies in the world — amended Article 40 of its Constitution15 establishing that Mexico is a “secular”16 country. When

6 E.g., the case of Mexico under Porfirio Díaz, who served as the country’s President in the early nineteenth century.

7 E.g., the case of former President Carlos Saúl Menem of Argentina, first elected to the Presidency in 1989, who converted from Islam to Catholicism in order to be sworn in because the Constitution of Argentina then required the President be a Catholic. Constitutional amendments adopted in 1994 eliminated this requirement.

8 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 59.9 Id. art. 86.10 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 4 (emphasis added). 11 Id.12 Id. art. 8.13 2008 CONST. OF ECUADOR, pmbl.14 Id. art. 66, No. 8.15 Mexico’s Official Gazette of the Federation, available at: <http://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?cod

igo=5280961&fecha=30/11/2012>.16 Article 40 of the Mexican Political Constitution states that “it is the will of the Mexican people to constitute

itself as a representative, democratic, secular, and federal Republic, comprised by free and sovereign states

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Current Constitutional Developments in Latin America 23

discussing the bill at the Mexican House of Representatives, one represen-tative argued that “granting an express secular character to our Mexican State would both continue and confirm the path that our legislators posed when drafting the Constitution of 1857, reaffirmed by the legislators of the Constitution of 1917, because it has been proved, in our collective experience and in the experience of other nations, that secularism is an effective formula for coexistence of pluralism”.17

2.3 Moralistic Overtone in the New Constitutional PrinciplesRecent constitutional developments in Venezuela and Ecuador, to

name the principal players, are imbued with philosophical and ethical calls to goodness, harmony, social integration, virtue, and other moralistic goals. The Constitution of Ecuador, for example, created an institutional apparatus called “National Equality Councils,” and other special mecha-nisms “for the control of public ethics and individual moral behavior”.18

In 1999 Venezuela had already institutionalized a fourth branch of government attached to the traditional three, called the “Citizens’ Power” (Poder Ciudadano), whose responsibility is to “prevent, investigate, and punish conduct that violates public ethics and administrative morals [and to] promote education as a creative process of the citizenry, as well as solidarity, liberty, democracy, social responsibility, and labor”.19 The Citizens’ Power is exercised by the Republican Moral Council, composed of the National People’s Defender, the Attorney General, and the General Comptroller.20

2.4 Promotion of Indigenous CausesThe promotion of the causes of indigenous peoples is an area

where much innovation has occurred in Latin American constitutional law. The pantheistic philosophical bases of this new movement are clearly

concerning its internal regime; but united in a federation established in accordance with the principles of this fundamental law”.

17 Ruperto Patiño, La Reforma del Artículo 40 Constitucional [The Amendment of Article 40 of the Constitution], Biblioteca Jurídica virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM 418, available at: <http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/7/3101/28.pdf>.

18 Id. art. 176.19 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 274.20 Id. art. 273, para. 2.

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24 Dante Figueroa

stated in the constitutions of Ecuador and Bolivia.21 The preamble of the Ecuadorean Constitution “celebrates the ‘Pacha Mama’” — an indigenous concept referring to planet earth — of which, it says, “we are all a part”. The Constitution of Bolivia, in turn, deifies the planet earth under the term, “sacred Mother Earth”.

This ideological conception is intimately connected with a clear repudiation of the “colonial, republican, and neoliberal State”.22 The Venezuelan charter “condemns all forms of imperialism, colonialism, and neocolonialism”,23 while the Ecuadoran Constitution galvanizes the “Ecuadoran people” as the “heirs of the social fights for the libera-tion from all forms of domination and colonialism”.24 The Bolivian Constitution openly speaks about the existence of original indigenous farming peoples (pueblos indígenas originarios campesinos), who existed “prior to the colonial Spanish invasion”.25

Several consequences emanate from these new developments:

2.4.1 Constitutional Recognition of the Multiplicity and Plurality of the New NationsThe recognition of racial diversity in the country has accompanied

the recognition of the primacy of the aboriginal element. In Bolivia, at least, new electoral districts have been formed to guarantee the repre-sentation of indigenous populations.26 The territorial and administrative decentralization of the Bolivian State is guaranteed at the regional, local, municipal, and other autonomous levels, and is to be achieved based on the presence of indigenous populations.27 The self-government of local indigenous populations is now constitutionally protected and encouraged.28

21 See 2009 CONST. OF BOLIVIA, ch. IV, “Rights of Original Indigenous Farming Peoples and Nations”.22 Id., pmbl.23 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 416, para. 8. This language is repeated in article 255(2) of the Constitution

of Bolivia, which states that one of the principles guiding the negotiation and execution of international treaties is “[t]he rejection and condemnation of all forms of... colonialism, neocolonialism, and imperialism”.

24 2009 CONST. OF BOLIVIA, pmbl.25 Id. art. 30, §2.26 Id. art. 146(VII). It is also worth mentioning that in Bolivia’s neighboring country, Peru, a constitutional

amendment bill that would create the Special Electoral District for Native Communities and Original Peoples is pending before the Peruvian Congress. See Bill 04332/2010-CR, of Sept. 23, 2010.

27 2009 CONST. OF BOLIVIA arts. 270, 303(2) & 391(3).28 Id. art. 2.

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Current Constitutional Developments in Latin America 25

Venezuela recognizes the preservation of indigenous peoples’ social, political, and economic organizations, as well as their culture, traditions and ancient customs, languages, and religions.29 This consti-tutional recognition extends to their “ethnic and cultural identity, values, spiritualities, and sacred and cult places”.30 The Venezuelan Constitution also guarantees aboriginal representation in the National Assembly and at other subnational levels.31 Finally, the composition of the National Assembly includes representation quotas for indigenous communities.32

2.4.2 Official LanguageConsistent with tradition, in 1999 Venezuela recognized Castilian

as the official language of the country. However, it stated that indigenous languages are “also of official use”.33 Bolivia went a step further and stated that, besides Castilian, thirty-seven other indigenous languages are “official languages of the State” as well.34 The actual implications of these innovations remain to be seen.35

2.4.3 Aboriginal Medical PracticesVenezuela gave constitutional recognition to indigenous medical

practices, and prohibited the registration of patents involving their ancestral resources and their knowledge related to genetic resources.36 Traditional and natural aboriginal medical practices are also included in the governmental guarantee of the right to health care in Bolivia.37 The Constitution of that country also protects the “original and ancestral

29 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 119. In the context of advancing the indigenous cause, the Constitutional Court of Colombia rendered a decision in 2010 approving an affirmative action program implemented by a Colombian university for persons with indigenous ancestry. Case T-110/10, Acción de tutela contra la Universidad Industrial de Santander, Ministerio de Educación y el ICETEX, available at: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2010/t-110-10.htm>.

30 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 121.31 Id. art. 125.32 Id. The Seventh Transitory Provision of the Constitution enumerates the criteria for the election of indigenous

members of the National Assembly, and of State and Municipal Legislative Councils.33 Id. art. 9.34 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 5(I).35 In Peru, a constitutional amendment bill that would amend article 48 of the Constitution to officially

recognize aboriginal languages is pending before the Peruvian Congress. See Bill 03649/2009-CR, of Nov. 5, 2010.

36 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 124.37 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 35(II).

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26 Dante Figueroa

coca, in its natural nonnarcotic state, as cultural patrimony, [as a] natural renewable resource of Bolivia, and as a factor of social cohesion”.38

2.4.4 Creation of Parallel Judicial Systems for Aboriginal PeoplesIn an unprecedented move, the Bolivian Constitution created an

independent judicial system parallel to, and with the same hierarchical level of, the ordinary judicial system called “Original Farming Indigenous Jurisdiction” (jurisdicción indígena originario campesina), which is in charge of providing civil and criminal justice for indigenous peoples.39 Several important questions — such as who is subject to this system, how to differentiate indigenous from non-indigenous parties, and whether in-digenous persons enjoy more privileges than non-indigenous persons — remain unresolved by the Constitution and need to be developed through implementing legislation.40 Indigenous representation at the Pluri-National Constitutional Tribunal is mandated by the Constitution.41

3 The Traditional FamilyEven the most progressive of the Latin American constitutional

regimes have provided constitutional protection to the traditional family as the fundamental nucleus of society.42 Venezuela and Bolivia provide constitutional recognition of marriage as between a man and a woman.43 Both countries also recognize stable, de facto unions between a man and a woman as having the same legal consequences as marriage.44

4 Political Participation and Political Parties and Movements Political participation is an area where constitutional activity is

exceedingly strong in Latin America. Two innovations are worth men-tioning in this field. First, in 2003 Colombia amended its Constitution to set minimum requirements for political entities to gain legal existence

38 Id. art. 384.39 Id. art. 179(I), (II).40 For more information on this new judicial system, see Bret Gustafson, Manipulating Cartographies:

Plurinationalism, Autonomy, and Indigenous Resurgence in Bolivia, 82 ANTHROPOLOGICAL Q. 985(32) (Sept. 22, 2009).

41 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 199(II). 42 Id. art. 62.43 Id. art. 63(I); 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 77.44 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 63(II); 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 77.

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Current Constitutional Developments in Latin America 27

(2 percent of legally issued votes),45 with some exceptions for electoral districts holding minorities. The measure is effective for elections taking place from 2011 onwards.46 The same amendment provided for partial government financial contributions to political parties and movements with legal existence,47 and leaves it to the legislature to establish limits on electoral campaign expenditures by political parties and movements, and on private contributions to political elections.48 Second, Bolivia’s Constitution recognized the right of expatriates to vote in presidential elections, and in other elections, as determined by law.49

5 Personal FreedomsLatin American countries have faced endemic problems related

to corruption and the violation of human rights and freedoms. Recent efforts show a clear intent to tackle these phenomena. In the case of Mexico, multiple constitutional amendments were enacted in 2009.50 These reforms instituted constitutional due process protections, modeled after the Fourteenth Amendment to the U.S. Constitution, concerning the person, family, and other matters covered by the constitutional right to privacy. Pioneering in Latin America, Mexico recognized a right of protection over personal information held by the government. For this purpose, it created the writ of habeas data (although not so named in Mexico), which allows persons to challenge the information gathered by the government about them, with certain exceptions.51 The amendment of 2009 requires the finding of probable cause for the issuance of judicial arrest orders.52

45 CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LA REPÚBLICA DE COLOMBIA DE 1991 (hereinafter, 1991 CONST. OF COLOMBIA) art. 108, available at <http://www.senado.gov.co/.../images/stories/Informacion_General/ constitucion_politica.pdf>.

46 Id. art. 108, para. 1, as amended by Legislative Act No. 1 of 2003.47 Id. art. 109, para. 1.48 Id. art. 109, para. 4.49 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 27.50 CONST. OF MEX. art. 16, as amended Aug. 24, 2009, available at <http://www.ordenjuridico.gob.mx/

Constitucion/cn16.pdf (official website)>.51 Exceptions are based on considerations of national security, public policy, public safety and health, or the

protection of third parties’ interests. See CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LOS ESTADOS UNIDOS MEXICANOS, as amended, Diario Oficial de la Federación, 5 Febrero de 1917 (hereinafter, CONST. OF MEXICO), art. 16, para. 2, available at http://constitucion.gob.mx/index.php?idseccion=168&ruta=1. “Writ of habeas data” is the generally accepted name of the action aimed at protecting this new right in Latin America. Other Latin American countries, including Brazil and Colombia, have a similar writ.

52 Id. art. 16, para. 3.

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28 Dante Figueroa

Constitutional amendments have also entered the era of the pro-tection of third generation rights — namely, environmental, cultural, educational, and economic rights. Venezuela, again, set the tone in 1999 when it guaranteed the right to universal health care and social security,53 and it also included an extensive list of labor, employment, and social security guarantees,54 and the human right to a “democratic, free, and mandatory” education.55 Mexico, for its part, guarantees the constitu-tional right to the enjoyment of culture, cultural rights, and cultural manifestations.56 Colombia mandates the State to provide health care and environmental clean-up.57 Ecuador’s Constitution contains an entire section on consumers’ rights.58 Finally, Bolivia crystallized the State’s obligation to guarantee food safety by means of “healthy, adequate, and sufficient nutrition for all the population”.59 Bolivia’s constitutional rights in the areas of education, health care, labor, consumerism, and social security are crafted along the lines of the Venezuelan Constitution as well. Interestingly, the Bolivian Constitution prohibits the privatization or concession of public health goods or services, or of social security benefits.60

6 Reforms in Criminal Procedure and Sentencing Perhaps the most meaningful criminal procedure reform in Latin

America took place in Chile in 2005, with the complete replacement of the ancient inquisitorial criminal procedure system by an accusatorial system.61 Mexico followed suit and in 2008 welcomed a new accusatorial system as well.62 Mexico’s new procedure is generally conceived along the lines of U.S. criminal procedure, with the notable exclusion of a jury.63

53 1999 CONST. OF VENEZUELA arts. 83-85.54 Id. arts. 87-97.55 Id. art. 102.56 CONST. OF MEXICO as amended by Decree of April 30, 2009.57 1991 CONST. OF COLOMBIA art. 49.58 2008 CONST. OF ECUADOR arts. 52-55.59 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 16.60 Id. arts. 38(I), 45(VI).61 See Kirtland C. Marsh, To Charge or Not to Charge, That is Discretion: The Problem of Prosecutorial

Discretion in Chile, and Japan’s Solution, 15 PAC. RIM L. & POL’Y J. 543 (2006); Rafael Blanco et al., Reform to the Criminal Justice System in Chile: Evaluation and Challenges, 2 Loy. U. Chi. Int’l L. Rev. 253 (2005); Carlos de la Barra, Chile: Adversarial vs. Inquisitorial Systems: The Rule of Law and Prospects for Criminal Procedure Reform in Chile, 5 SW. J.L. & TRADE AM. 323 (1998).

62 CONST. OF MEXICO art. 20.63 For more on the differences between the civil law inquisitorial criminal system and the Anglo-American

accusatorial criminal procedure, see Rogelio Pérez-Perdomo & John Henry Merryman, “Civil Procedure”, in

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The amendment also included sweeping procedural guarantees during criminal prosecutions — including the constitutional right to be released on bail and restrictions on incommunicado detentions — and renewed efforts to prosecute organized crime.64 This new criminal system is to be implemented gradually, along with the implementation of a new juvenile criminal system.65

The Mexican amendments include the prohibition against station-ing military personnel in private homes without the authorization of the homeowner, with certain exceptions.66 They also allow Mexican nationals serving sentences in foreign countries to be brought to Mexican territory to complete their sentences, with their prior consent and in accordance with international treaties.67 Finally, the Constitution abolished the death penalty and prohibited severe corporal punishment, excessive fines, confiscation, and any other unusual and far-reaching (trascendentales) punishments.68

Pursuant to Article 22 of its Constitution,69 and in an effort to put an end to its internal armed conflict — that has lasted almost half a century, leaving millions of casualties — Colombia passed a new legislation in 2012,70 named “Legal Framework for Peace” that created the transitory Article 66 of the Colombian Constitution. This new legislation allows the Colombian Government to establish a transitional criminal justice system for judging members of illegal armed groups (among them left-wing guerillas and right-wing paramilitary groups) and government agents for crimes committed during the armed conflict.71 This initiative

THE CIVIL LAW TRADITION: AN INTRODUCTION TO THE LEGAL SYSTEMS OF EUROPE AND LATIN AMERICA 112-24 (J. Merryman et al. eds., 2007). See also Robert Kossick, Litigation in the United States and Mexico: A Comparative Overview, 31 U. MIAMI INTER-AM. L. REV. 23 (2000).

64 CONST. OF MEXICO art. 20(B)(II).65 Id. art. 18.66 Id. art. 16, para. 17.67 Id. art. 18, para. 7.68 Id. art. 22, para. 1.69 Article 22 of the Colombian Constitution states that “the peace is a right and a binding duty”. 70 Legislative Act Nº 1 of 2012, Colombian Official Gazette No. 48.508 of July, 31, 2012, available at: <http://

www.secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/cp/acto_legislativo_01_2012.html>.71 First paragraph of Transitory Article 66 of the Colombian Constitution prescribes that “the instruments of

transitional justice will be exceptional and will have the main goal of facilitating the end of the internal armed conflict and achieving a stable and long-lasting peace, with guarantees of non-recurrence and safety for all Colombians; to guarantee in the greatest possible extent, the rights of victims to the truth, justice, and compensation.A statutory law can authorize that, within the framework of a peace agreement, a different treatment be given to the different illegal armed groups that have participated in the internal armed conflict, and also to the agents of the State, regarding their participation in that conflict”.

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is intended to solve the legal situation of thousands of persons that had demobilized from these armed groups, by prioritizing the prosecution of the most serious cases, which would incentivize more demobilization of members of those groups.72

The new constitutional provision, in its paragraph fourth, allows Congress to pass legislation: (i) to determine selection criteria for the criminal investigation against the main responsible of crimes against humanity, genocide, and war crimes that were systematically perpetrat-ed; (ii) establishing the conditions and requirements under which the suspension of the execution of sentence would proceed; (iii) establishing cases where extrajudicial sanctions, alternative penalties, and special ways of execution and compliance of the penalties may be applied; and (iv) allowing the conditional waiver of criminal prosecution of all cases that were not selected.73

This amendment has been criticized both for Colombian jurists and Human Rights Organizations because it is considered that it allows Congress to enact statutes that leave unpunished crimes when committed by people that were not the main responsible — but who had direct parti-cipation on those crimes — which violates international human rights law and humanitarian law.74 Moreover, on April 5, 2013, Colombia’s General Attorney filed a constitutional lawsuit requesting the Constitutional Court

72 Press Conference Room of the Colombian Senate, Acto legislativo que establecerá un nuevo marco legal para la paz fue radicado en el Congreso [Legislative Act that will establish a New Legal Framework for Peace is now being discussed in Congress], available at: <http://www.senado.gov.co/sala-de-prensa/noticias/item/12294-acto-legislativo-que-establecera-un-nuevo-marco-legal-para-la-paz-fue-radicado-en-el-congreso>.

73 In order to apply the above-mentioned measures, the fifth paragraph of Article 66 of the Colombian Constitution sets that the beneficiaries must comply the following requirements: “leave the weapons, assume their responsibility, contribute to establishing the truth and to the integral compensation of victims, release the kidnapped people, and remove the minors that were illegally recruited and are under the control of armed groups outside the law”. In addition, paragraph tenth of the same provision establishes that “the application of transitional justice instruments to armed groups outside the law that had participated in hostilities, will be limited to those who demobilize collectively within the framework of a peace agreement, or individually according to the procedures established under the authorization of the National Congress”.

74 Comisión Colombiana de Juristas, Comentarios al “marco jurídico para la paz” [Comments on the “Juridical Framework for Peace”], available at: <http://www.coljuristas.org/documentos/actuaciones_judiciales/comentarios_marco_juridico_2012-06-04.pdf>; See also Letter from José Miguel Vivanco, on behalf of Human Rights Watch, to the Presidents of the Colombian Senate and House of Representatives on May 1, 2012, available at: <http://www.hrw.org/sites/default/files/related_material/Carta%20de%20HRW%20sobre%20Marco%20Juridico%20para%20la%20Paz.pdf>.

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to declare the unconstitutionality of certain terms mentioned above (“main responsible”, “systematically perpetrated”, and “all cases”) since the current provision would violate international obligations of Colombia regarding the investigation and sanction of international crimes, which could activate the jurisdiction of the International Criminal Court.75

Furthermore, in 2012 Colombia passed another amendment to the Constitution (particularly to Articles 116, 152, and 221) that expanded the military criminal jurisdiction.76 The amendment basically creates a new tribunal — Tribunal de Garantías Penales (Criminal Guarantees Tribunal) — that is in charge of (i) controlling the fulfillment of guarantees in any criminal investigation or procedure against a member of the public force; (ii) controlling the criminal accusation against members of the Public Force, in order to guarantee the fulfillment of the material and substantive admissibility requirements to initiate a criminal trial; and (iii) solving the jurisdiction disputes between ordinary tribunals and military criminal tribunals.77 Therefore, a previous procedure was established to control the criminal accusation against a member of the military.

In addition, new Article 221 of the Colombian Constitution estab-lishes that the violations to International Humanitarian Law will always be under the jurisdiction of the military courts, unless the violations are: (1) crimes against humanity; (2) genocide; (3) forced disappearances; (3) extrajudicial executions; (4) sexual violence; (5) torture; or (6) forced displacement. These and other reforms introduced by this constitutional amendment have been criticized by the Inter-American Commission on Human Rights (IACHR) who stated that “on the basis of the inter-American standards that require States to judge human rights violations in courts of ordinary jurisdiction, various countries of the region have adopted reforms to significantly restrict the scope of military jurisdiction

75 Procuraduría General de la Nación, Procurador general de la Nación, Alejandro Ordóñez Maldonado, solicita a la Corte Constitucional que se declaren inexequibles expresiones del Marco Jurídico para la Paz [The General Attorney of the Nation, Alejandro Ordoñez Maldonado, request to the Constitutional Court the Unconstitutionality declaration of terms from the Juridical Framework for Peace], available at: <http://www.procuraduria.gov.co/portal/Procurador-general_de_la_Nacion__Alejandro_Ord_nez_Maldonado__solicita_a_la_Corte_Constitucional_que_se_declaren_inexequibles_expresiones_del_marco_juridico_para_la_paz.news>.

76 Legislative Act Nº 2 of 2012, Colombian Official Gazette No. 48.657 December 28, 2012, available at: <http://www.secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/cp/acto_legislativo_02_2012.html>.

77 2012 Colombian Const. Article 116.

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[...] the constitutional reform on military criminal jurisdiction would reverse that progress and would constitute a serious setback that jeopardizes the right to justice for victims of human rights violations”.78 The IACHR also criticized that grave human rights violation, like “war crimes and arbitrary detentions”, are under the jurisdiction of military tribunals.79

7 Changes Affecting the Branches of Government7.1 Executive Branch7.1.1 Presidential Reelection

Two recent cases illustrating the dynamics of Latin American poli-tics are noteworthy, one affecting an administration with a progressive tilt, where the possibility of reelection of an incumbent president succeeded, and the other concerning a conservative government, where it failed.

The first case is that of Nicaragua, where in 2009 the Constitutional Chamber of the Supreme Court issued a decision allowing the incumbent President to run for reelection.80 The novelty of the decision resides in the fact that it partially repealed language that had banned such reelection. The Court found that the prohibition of reelection contradicted, among other constitutional guarantees, the principles of unconditional equality in the exercise of the political rights of the office holders to participate in the political affairs of the country, the principle of proportionality, and the principles of sovereignty and national self-determination. All these principles, the Court held, are in accordance with international human rights conventions by which Nicaragua is bound. The argument about equality centered around the fact that under the Constitution the only grounds for limiting the reelection bid of elected officials are age, criminal conviction, or incapacity. The restriction on reelection was established, the Court also stated, by the “derivative constitutional power” reflected in a 1995 constitutional amendment, and not by the original constitutional framers.81 By extending its powers beyond those expressly granted by

78 Organization of American States, IACHR Expresses Concern over Constitutional Reform in Colombia, available at: <http://www.oas.org/en/iachr/media_center/PReleases/2013/004.asp>.

79 Organization of American States, IACHR Expresses Concern over Constitutional Reform in Colombia, available at: <http://www.oas.org/en/iachr/media_center/PReleases/2013/004.asp>.

80 Sentencia No. 504, Supreme Court of Justice of Nicaragua, LA GACETA – DIARIO OFICIAL [OFFICIAL GAZETTE], Jan. 18, 2011.

81 Id. (citing Law 192 of July 4, 1995, Partial Amendment Law to the Political Constitution of Nicaragua,

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the original framers — that is, by restricting the “right” of only certain government officials to run for reelection based on the aforementioned grounds — the derivative constitutional power violated the principle of sovereignty protected by the same Constitution, the Court said.

In another interesting turn of constitutional reasoning, the Court held that the preamble to the Constitution prevails over any constitu-tional provisions that contradict the philosophical bases expressed in its preamble, stemming from “the revolutionary conquests achieved by the people”, whether in words or in spirit.

The second case involves Colombia, whose Constitutional Court invalidated a law calling for a constitutional referendum on the question of whether incumbent Presidents were allowed to run for a third term.82 The Court, following the same line of reasoning as the Nicaraguan court, reiterated its precedents holding that the derivative constitutional power may amend the Constitution but not substitute it with a new document. The Court also found a series of irregularities related to the financing of the campaign leading to the adoption of the law and concluded that this violated the principles of transparency and political pluralism that govern elections, according to the applicable election laws. Finally, the Court pointed out procedural abuses in the legislative process leading to enactment of the reelection bill. In sum, the sitting president was not allowed to run for a third term.

7.1.2 Other Amendments Concerning the Executive BranchOther reforms meriting attention are (1) the incorporation into the

Constitution of Mexico of the President’s obligation to render a written, annual state of the nation report to Congress;83 and (2) Bolivia’s adoption of constitutional provisions that allow the incumbent President to run for a third term84 and subject the President to removal by Congress.85

art. 13).82 Decision of February 26, 2010 invalidating Law 1354 of 2009, available at: <http://www.corteconstitucional.

gov.co/relatoria/2010/c-141-10.htm>.83 CONST. OF MEXICO art. 69, para. 1, as amended by Amendment of August 15, 2008.84 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 168.85 Id. arts. 161(7), 171.

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7.1.3 Constitutional Issues Concerning the Executive BranchIn 2012, Paraguay experienced difficult moments when President

Fernando Lugo was subject to a political trial (impeachment) under Article 225 of the Paraguayan Constitution,86 which ended with President Lugo been removed from its office. President Lugo was accused of several charges, but the event that triggered the political trial against him was the case known as “Killing in Curuguaty”, where a group of indigenous land squatters ambushed — with firearms — the Paraguayan Police offi-cers that were trying to evict them from the lands, resulting in eleven people dead and one dozen injured.87 Following the removal of Lugo, Paraguay’s Congress and new government were very criticized by several Latin American presidents, whom argued that the political trial did not have minimum standards of due process, and that the entire situation was a cover coup d’état.88

In Venezuela the recent death of Hugo Chávez caused a constitu-tional dispute regarding who had to replace him until a new president is elected. On the one hand, Article 231 of the Venezuelan Constitution prescribes that in order to take office the elected president has to swear before the National Assembly on January 10th of the first year of his term. On the other hand, the first paragraph of Article 233 of the Venezuelan Constitution establishes that death is considered an absolute absence of the President, while its second paragraph prescribes that when the

86 Article 225 of the Paraguayan Constitution establishes that: “The president of the Republic, the Vice President, cabinet ministers, justices of the Supreme Court of Justice, the attorney general, the public defender, the comptroller and the deputy comptroller general of the Republic, and members of the Superior Electoral Court may be forced to undergo impeachment proceedings for malfeasance in office, for crimes committed in office, or for common crimes. The Chamber of Deputies, by a two-thirds majority, will press the respective charges. The Senate, by a two-thirds absolute majority, will conduct a public trial of those charged by the Chamber of Deputies and, if appropriate, will declare them guilty for the sole purpose of removing them from office. In cases in which it appears that common crimes have been committed, the files on the respective impeachment proceedings will be referred to a competent court.” Translation available at: <http://www.servat.unibe.ch/icl/pa00000_.html>.

87 Allan R. Brewer-Carías, ON THE CONSTITUTIONALITY OF THE POLITICAL TRIAL AGAINST PARAGUAYAN PRESIDENT FERNANDO LUGO, 2 available at: <http://iaba.org/blog/wp-content/uploads/2012/07/Opinion-of-Prof.-Brewer-Car%C3%ADas-on-the-Constitutionality-of-the-Political-Impeachment-in-Paraguay.pdf>; See also Nahem Reyes & Jorge Llano, La Destitución de Fernando Lugo y sus Repercusiones en el Hemisferio: Algunas Reflexiones Iniciales [The Removal of Fernando Lugo and Its Repercussions in the Hmisphere: Some Initial Reflections], Consejo Venezolano de Relaciones Internacionales, 3 (2012), available at: <http://www.covri.org/resources/uploads/10-07-2012/4ffc86780fd61.pdf>.

88 See Fox News, Paraguay Faces Criticism in Latin America for Removing President Fernando Lugo, available at: <http://latino.foxnews.com/latino/politics/2012/06/24/paraguay-faces-criticism-in-latin-america-for-removing-president-fernando-lugo/#ixzz2Pc14NfnS>.

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absolute absence of the President occurs before he or she takes office, there has to be new elections within the subsequent thirty days, and in the meantime the President of the National Assembly shall assume as President of the Republic.

President Chávez could not be sworn before the National Assembly because he was treating his cancer in Cuba. On January 9, 2013 the Venezuelan Supreme Tribunal of Justice established that President Chávez did not have to take office again because he was the current president — thus, there were no vacancy in the executive branch — and President Chávez could be sworn in a posterior date established by the National Assembly once the impediments disappear.89

Nevertheless, President Chávez was never sworn when he came back to Venezuela on February 18, 2013, due to his serious health problems. Later on, on March 5, 2013, Chávez passed away without been sworn in before the National Assembly. Therefore, in accordance with the plain language of the Constitution, the President of the Venezuelan National Assembly, Mr. Diosdado Cabello should have replaced him as President of the Republic. However, the Vice President of the Republic, Mr. Nicolas Maduro is the current President of Venezuela until the elections (he is the candidate of the official party and Chávez named him as his successor).

Maduro was appointed as interim President based on the decision of the Supreme Tribunal of Justice of January 9, 2013-, which established that despite the fact that the Chávez was not sworn in on January 10th, 2013, he continued to be in office. It was considered that in this situation the second paragraph of Article 233 of the Constitution did not apply (rule concerning the absolute absence of the president before he or she takes office); instead, it was argued that since the Supreme Tribunal held that Chávez was in office when he died, paragraph third of Article 233 was the one that had to be applied,90 which prescribes that if the absolute

89 Tribunal Supremo de Justicia Expediente Nº 12-1358, available at: <http://www.tsj.gov.ve/decisiones/scon/enero/02-9113-2013-12-1358.html>. The Tribunal considered that under the “Principle of continuity of the Public Authorities, “the Principle of Preservation of the Popular Will”, and “the Principle of Continuity of the Administration”, the Venezuelan President was able to continue in his office.

90 Allan R. Brewer-Carías, CRÓNICA XIII. SOBRE LA CONSOLIDACIÓN, DE HECHO, DE UN GOBIERNO DE SUCESIÓN DEL PRESIDENTE H. CHÁVEZ CON MOTIVO DEL ANUNCIO DEL FALLECIMIENTO DEL PRESIDENTE CHÁVEZ EL 5 DE MARZO DE 2013 [Chronicle XIII About the Consolidation of Fact of a Government that Succeed President H. Chávez, in Relation with the Announcement of the Death of President Chavez on March 5, 2013] 7 (2013), available at: <http://www.allanbrewercarias.com/Content/449725d9-f1cb-

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absence of the President occurs within the first four years of his term, the Vice President shall assume as President of the Republic.

7.2 Legislative BranchPeru’s constitutional law has also touched the legislative branch

in important ways. A constitutional amendment approved in 2009, which comes into force for the 2011 electoral process, provides that only Peruvians by birth may run for Congress. The tenure of legislative office is fixed at five years, and candidates for the Presidency of the Republic cannot become candidates for Congress.91

Unlike Venezuela, where the legislative power resides in a unicamer-al National Assembly92 in keeping with the French model,93 Bolivia still adheres to the principle of a bicameral Congress.94 It has also removed all types of immunity for members of Congress,95 following the pattern established by Honduras in 2003.96

7.3 Judicial BranchThe judiciary has likewise been subject to significant changes in

recent times in Latin America. As stated in Section 6, above, Mexico overhauled its criminal procedure system and created an integral justice system for juveniles, which has yet to be implemented. In the case of Bolivia, the Constitution has injected the appointment of members of the Supreme Tribunal of Justice directly into the political process. In

474b-8ab2-41efb849fea3/Content/CR%C3%93NICAS%20CONSTITUCIONALES%20XIII.%208-3-2013%20[1].%20Brewer.%20Sobre%20la%20conslidaci%C3%B3n%20de%20un%20gobierno%20de%20sucesi%C3%B3n%20presidencial.pdf>.

91 Ley No. 29,402, El Peruano (official gazette), Sept. 8, 2009, available at: <http://www.congreso.gob.pe/ntley/Imagenes/Leyes/29402.pdf> (amending article 90 of the 1993 Constitución Política del Perú (hereinafter, Const. of Peru), available at: <www.tc.gob.pe/legconperu/constitucion.html> (includes reforms through Oct. 2005)).

92 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 186.93 See CONSTITUTION OF FRANCE OF 1791, available at: <http://sourcebook.fsc.edu/history/

constitutionof1791.html>, Title III, “Of Public Powers”, para. 3 (unofficial source). See also J. Merryman et al., “Sources of Law and the Judicial Process in Civil Law Systems”, in THE CIVIL LAW TRADITION: EUROPE, LATIN AMERICA, AND EAST ASIA 208 (J. Merryman et al. eds., 1994) (stating that “a cardinal tenet of the French was that all law-making power was to be vested in a representative assembly”). Costa Rica, Nicaragua, and Peru also follow the French unicameral model.

94 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 145.95 Id. art. 152.96 Decree No. 175-2003 of Oct. 28, 2008, art. 1, repealed art. 200 of the CONSTITUCION POLITICA DE LA

REPUBLICA DE HONDURAS of 1982, which had granted general immunity to the Deputies of the National Congress.

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Current Constitutional Developments in Latin America 37

fact, these magistrates are elected for only one six-year term by universal suffrage in a process that includes a preselection of the candidates by the legislative branch, which is called the “Plurinational Legislative Assembly” (Asamblea Legislativa Plurinacional).97 Venezuela also possesses a judicial appointment process that is mired in politics. In effect, the members of the Supreme Tribunal of Justice are selected in a complex procedure that requires the intervention of the Citizens’ Power, which prepares a roster with the candidates for the final decision of the National Assembly.98 The National Assembly retains the power to remove the members of the Supreme Tribunal of Justice at any time.99

On February 21, 2011, the Ecuadorian Government called for Referendum and Popular Consultation that took place on May 7, 2011, which had five questions that sought to amend the Constitution. Two of these questions were related to the Judiciary: (i) whether substituting the entire Judicature Council100 for a Transitional Judicature Council, comprised of three members — one appointed by the President, one by the National Assembly, and one by the Function of Transparency and Social Control, — which would exercise the functions of the Judicature Council and it would restructure the judiciary, within a 18 months dead-line; (ii) whether to modify the composition of the Judicature Council, by amending the Constitution and reforming the Organic Code of the Judicial Function.101

A group of scholars criticized this bill because in their opinion it would affect the separation of powers between the judicial branch and

97 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 182.98 1999 CONST. OF VENEZUELA arts. 264, 265.99 Id. 100 Article 254 of the Ecuadorian Organic Code of the Judicial Function defines the Judicature Council as

“... the exclusive organism of government, administration and discipline of the Judicial Function [Judicial Branch], which comprise: jurisdictional organisms, administrative organisms, auxiliary organisms, and autonomous organisms”. In addition, under sections 3 and 6 of Article 264 of the same statute, the Council is in charge of the “appointment and evaluation of the Justices of the National Court of Justice and judges of the Provincial Courts, judges of first level, District Attorneys, Fiscal Agents and District Defenders”, and of “establishing the politics for the selection, tenders of opposition and merits, permanency, discipline, evaluation [,] and education and training of the officers of the Judicial Function, in accordance with the general politics issued by the Advisory Council”.

101 Consejo Nacional Electoral de Ecuador, Resultados del Referéndum y Consulta Popular 2011 [Results of the Refererndum and Popular Consultation 2011] 3-4, available at: <http://www.lexis.com.ec/webtools/biblioteca_silec/documentos/noticias/RESULTADOS%20DEL%20REFERENDUM%20Y%20CONSULTA%20POPULAR.pdf>.

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the executive branch.102 They based their opinion in the fact that the Transitional Judicature Council was comprised of three members, two of them appointed by the executive and legislative branches, which would imply that “President Correa and his political movement would have an absolute control over the Technical Commission that will be in charge of restructuring all the judicial function in a deadline of 18 months”.103 They considered that the situation “... constitute a clear violation of the obligations of ‘separation and independence of public powers’ under article 3 and 7 of the Inter-American Democratic Charter”.104 For in-stance, Section 3 of Article 181 of the Constitution, introduced by the 2011 amendment, prescribes that the Council is in charge of “leading the procedures aimed to select judges and other officials of the Judicial Function, and also for their evaluation, promotion, and sanction...”.105 Despite the criticism, both questions were approved by the people with a 52, 02% and 52, 66%, respectively.106

8 Constitutional EmergenciesLatin America has a long history of being governed by autocratic

rulers pursuant to emergency provisions established or allowed by their constitutions. Colombia, for example, was ruled under emergency provisions for thirty years between 1958 and 1988.107 In tandem with this approach, judicial interpretations of declarations of emergency

102 Letter of Douglas Cassel, Pier Paolo Pigozzi Sandoval, Hernán Salgado Pesantes, and Pablo Dávila Jaramillo, to the Executive Secretary of the Inter-American Comission on Human Rights on January 28, 2011, concerning the Referendum and Plebiscite in Ecuador, available at: <http://www3.nd.edu/~ndlaw/cchr/news/Pier/2_LetterSPIACHR.pdf>.

103 Letter of Douglas Cassel, Pier Paolo Pigozzi Sandoval, Hernán Salgado Pesantes, and Pablo Dávila Jaramillo, to the Executive Secretary of the Inter-American Comission on Human Rights on January 28, 2011, concerning the Referendum and Plebiscite in Ecuador, 2 available at: <http://www3.nd.edu/~ndlaw/cchr/news/Pier/2_LetterSPIACHR.pdf>.

104 Letter of Douglas Cassel, Pier Paolo Pigozzi Sandoval, Hernán Salgado Pesantes, and Pablo Dávila Jaramillo, to the Executive Secretary of the Inter-American Comission on Human Rights on January 28, 2011, concerning the Referendum and Plebiscite in Ecuador, 2 available at: <http://www3.nd.edu/~ndlaw/cchr/news/Pier/2_LetterSPIACHR.pdf>.

105 Ecuadorian Constitution, Section 3 of Article 181.106 Consejo Nacional Electoral de Ecuador, Resultados del Referéndum y Consulta Popular 2011 [Results of

the Referendum and Popular Consultation 2011] 4-9, available at: <http://www.lexis.com.ec/webtools/biblioteca_silec/documentos/noticias/RESULTADOS%20DEL%20REFERENDUM%20Y%20CONSULTA%20POPULAR.pdf>.

107 Gabriel L. Negretto et al., Liberalism and Emergency Powers in Latin America: Reflections on Carl Schmitt and the Theory of Constitutional Dictatorship, 21 Cardozo L. Rev. 1797 (2000).

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have consistently judged them as a “political question,” and therefore nonjusticiable.108

Consequently, constitutional law in the region gives much atten-tion to the declaration of constitutional emergencies. In Bolivia, this power has been granted to the President subject to ratification by the legislature.109 In Venezuela, the President may declare a constitutional emergency based on political unrest for a period of up to ninety days, renewable once for up to ninety days with the previous authorization of the National Assembly.110 This Emergency Decree is subject to the approval of the National Assembly within eight days after its promulga-tion and to constitutional review by the Constitutional Chamber of the Supreme Tribunal of Justice.111

9 Economic ModelWhen it comes to the determination of their economic models

Latin American nations have oscillated between liberalism and central planning since their inception as independent nations.

In this context, the case of Bolivia is striking. On the one hand, the Bolivian Constitution contains strong provisions guaranteeing free initiative and a free market. On the other hand, it greatly increases the intervention of the government in the economy. Examples of the first situation include multiple constitutional provisions on the recogni-tion and protection of private initiative in the economy112 (referred to else where in the Constitution as “free enterprise and entrepreneurial initiative”113), cooperatives,114 and the individual and collective owner-ship of land.115 Instances of a growing governmental intrusion into the economy are reflected in a broad government mandate to administer public services and utilities,116 and the outright declaration of natural resources and hydrocarbons as the property of the Bolivian people, the

108 Id. at 5.109 2009 CONST. OF BOLIVIA arts. 137-138.110 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 338, para. 3.111 Id. art. 339.112 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 308.113 Id. art. 311(5).114 Id. arts. 55, 306(II), 330(II), 351(I), 369(I), 370(II), 378(II) & 406(II).115 Id. art. 311(II)(2).116 Id. art. 20(II).

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exclusive administration of which corresponds to the Bolivian govern-ment.117 The Constitution also prohibits the creation of latifundia.118 The corollary to these provisions is the constitutional provision that punishes anyone involved in a violation of the constitutional precepts regarding the use and administration of natural resources as “guilty of treason to the motherland”.119

The aforementioned provisions of the Bolivian Constitution fol-lowed their equivalents in the Venezuelan Constitution of 1999 almost verbatim, in both spirit and letter. Both constitutions, for example, con-tain a norm providing for the punishment of “economic illicit conduct, speculation, entrapment, usury ... and other related crimes”.120 The provisions on the recognition of private initiative and the prohibition of latifundia are similar as well.121

10 Fight against Narcotrafficking and Organized CrimeThe tragic reality of the twin social evils of narcotrafficking and

organized crime has lately mobilized two of the largest Latin American countries, Mexico and Colombia, to take constitutional action. Through a 2009 constitutional amendment, Mexico’s Constitution granted powers to the federal legislature to issue a general law on kidnapping and to establish punishments against organized crime.122

In the case of Colombia, a 2009 constitutional amendment prohib-its the carrying and consumption of narcotics or psychotropic substances, except when medically prescribed, and establishes the government’s duty to help addicts recover.123 Another Colombian amendment of the same year sets forth penalties for political entities that cover up actions of their members convicted during office for crimes related to illegal armed groups and narcotrafficking activities, crimes against democratic participation mechanisms, or crimes against humanity.124 Finally, the same

117 Id. arts. 9(6), 349(I).118 Id. art. 398.119 Id. art. 124.120 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 114; 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 325.121 Id.122 Decree of May 4, 2009 (amending CONST OF MEXICO art. 73(XXI), para. 1). 123 Constitutional Amendment of December 21, 2009, available at: <http://www.secretariasenado.gov.co/

senado/ basedoc/arbol/1001.html> (Colom.).124 Constitutional Amendment of July 14, 2009, art. 107, available at: <http://www.secretariasenado.gov.

co/senado/ basedoc/cp/acto_legislativo_01_2009.html> (Colom.).

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Current Constitutional Developments in Latin America 41

amendment forbids those convicted of crimes affecting the patrimony of the State, crimes related to illegal armed groups and narcotrafficking activities, crimes against democratic participation mechanisms, or crimes against humanity from running for office, being appointed in govern-ment positions, and having contracts with the State.125

11 Fight against Government CorruptionUnfortunately, government corruption is intimately related to the

phenomena of narcotrafficking and organized crime in the region. Latin American nations have reacted by strengthening their constitutional frame works to deal with these situations. Mexico is a good example of this tendency. In 2009, that country approved a wide-ranging modification of the constitutional provisions dealing with the salaries of government employees. The amendment provides that these salaries may not be reduced,126 or be higher than those of their hierarchical superiors, with several exceptions,127 and are subject to an overall ceiling equal to the remuneration accorded to the President of the Republic.128 Finally, the amendment states that no social security benefits, credits, or loans may be granted to government employees without prior budgetary allocations by law, presidential decree, or pursuant to labor contracts.129 It leaves it to Congress to establish punishments for the violation of these provisions.130

12 International Law and International RelationsThe interaction between domestic law and international law has

been a particular subject of tension in Latin America, particularly after World War II. The emergence of the Inter-American Human Rights System has posed colossal challenges to the weak democracies of the region, and these democracies have reacted in recent times by amending their constitutions in order to accommodate the new realities created

125 Constitutional Amendment of July 14, 2009, art. 122, available at: <http://www.secretariasenado.gov.co/senado/ basedoc/cp/acto_legislativo_01_2009.html> (Colom.).

126 CONST. OF MEXICO art. 123(IV), as amended by Decree of August 24, 2009 (amending and making additions to arts. 75, 115, 116, 122, 123 and 127).

127 Id. art. 127(III).128 Id. art. 127(II). 129 Id. art. 127(IV). 130 Id. art. 127(VI).

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by the increasing application of international treaties into the domestic legal systems with regard to the protection of human rights.

Argentina first broke ground in 1994 when it granted constitutional rank, a status superior to legislative enactments, to enumerated inter-national human rights treaties. It also allowed Congress to give future treaties such status.131 Venezuela’s 1999 Constitution was very prolific in incorporating matters of international law into its text as well. In fact, it established the government’s duty to guarantee human rights protected by international treaties,132 and eliminated the statute of limitations and the possibility of amnesty or pardon for serious human rights violations and war crimes.133 In addition, the Venezuelan Constitution explicitly creates a cause of action for damages in favor of victims of human rights violations.134 Finally, in a turn away from international law, that Constitution clarifies the “unique, sovereign, and indivisible concept of the Venezuelan people”, denying “any effect of the international law usage of the word ‘people’”.135

In 2009 Bolivia followed the path previously set by Argentina and Venezuela but in rather cryptic language:

[T]he international treaties and conventions ratified by the Plurinational Legislative Assembly [Bolivia’s unicameral Congress], that recognize human rights, and that prohibit their limitation during Emergency Situations prevail in the domestic order. The rights and duties established in this Constitution shall be interpreted in accordance with the international human rights treaties ratified by Bolivia.136

Also concerning matters related to international law, Bolivia’s Constitution contains a novel provision stating that Bolivian citizenship is not lost by the acquisition of citizenship in a foreign country.137 The

131 1994 CONSTITUCIÓN NACIONAL (hereafter 1994 CONST. OF ARGENTINA), ch. IV, “Powers of Congress,” §75, No. 22, available at: <http://www.senado.gov.ar/web/interes/constitucion/cuerpo1.php>.

132 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 19.133 Id. art. 29, para. 2.134 Id. art. 30.135 Id. art. 126, para. 2. The Venezuelan Constitution does not specify what concept of “people” provided by

international law it is referring to. One possibility is the concept contained in the 1989 International Labour Organization’s Convention No. 169 concerning Indigenous and Tribal Peoples in Independent Countries, available at: <http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/convde.pl?C169>. The matter remains, however, to be determined in the current Venezuelan Constitution.

136 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 13(IV).137 Id. art. 143(I).

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Current Constitutional Developments in Latin America 43

same country, which became landlocked in the late nineteenth century in a war against Chile, included a provision in its Constitution enshrining its maritime claims of access to the Pacific Ocean as “non-waivable”.138

In regard to the last constitutional provision, several steps have been taken by Bolivia in order to achieve a sovereign access to the sea. For instance, on April 5, 2011, a new public entity was created, named Dirección Estratégica de Reivindicación Marítima (DIREMAR – Strategic Directorate of Maritime Claim)139 whose main task is “to plan, develop, and evaluate strategies for the maritime claim”.140 However, the most significant measures taken by Bolivia are: (i) the enactment on March 23, 2013, of a statute that leaves without effect the reservation made by Bolivia to Article VI of the American Treaty on Pacific Settlement of 1948, also known as “Pact of Bogota”,141 which establishes that the procedures contemplated by the treaty are not applicable to disputes that were solved by the parties before the treaty took effect;142 and (ii) the announcement made by President Evo Morales that his country is going to sue Chile before the International Court of Justice.143

The goal of Bolivia is to challenge the Tratado de Paz y Amistad (Treaty of Peace and Friendship) entered into by Bolivia and Chile in 1904, that is 44 years before the Pact of Bogotá. According to Chile’s Secretary of State, the ratification of Article IV prevents Bolivia of filing any claim regarding facts that occurred before the date of the afore-mentioned treaty.144 Nevertheless, Bolivia’s main argument for filing

138 Id. art. 267(I).139 DIREMAR, Decreto Supremo Nº 0834 2011, available at: <http://www.diremar.gob.bo/sites/default/

files/D.S._834.pdf>.140 DIREMAR, Principales Atribuciones [Main Attributions], available at: <http://www.diremar.gob.bo/node/4>.141 Article VI of the “Pact of Bogotá” establishes that “the aforesaid procedures, furthermore, may not be

applied to matters already settled by arrangement between the parties, or by arbitral award or by decision of an international court, or which are governed by agreements or treaties in force on the date of the conclusion of the present Treaty”.

142 Bolivia ratified the treaty, with the reservation of Article VI, on April, 14, 2011. See OAS, Signatories and Ratifications American Treaty on Pacific Settlement, available at: <http://www.oas.org/juridico/english/sigs/a-42.html>.

143 Prensa Palacio de Gobierno Boliviano, Bolivia presentará a La Haya demanda internacional para retornar al mar con soberanía [Bolivia will file an international lawsuit before the Hague to recover sovereign acces to the sea], available at: <http://comunicacion.presidencia.gob.bo/noticias/noticiasprint.php?idio=castellano&id=682>.

144 Diario La Segunda, Canciller Moreno: “Hace dos años que hemos perdido el tiempo con Bolivia” [Secretary Moreno: “since two years ago that we had lost our time with Bolivia], availabe at: <http://www.lasegunda.com/Noticias/Politica/2013/03/833312/Canciller-Moreno-Hace-dos-anos-que-hemos-perdido-el-tiempo-con-Bolivia>.

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the lawsuit against Chile is that the Tratado de Paz y Amistad of 1904 was not freely negotiated by the countries; on the contrary, that Treaty was “imposed under duress and threat”145 by Chile.

Finally, in year 2011, there were important amendments to the Mexican Constitution concerning international human rights.146 First, there was a change in the nomenclature of the rights consecrated in the Mexican Constitution, since they are no longer called “individual guarantees”; instead the Constitution now talks about “human rights”, which according to an author was intended to adopt the language used by the main international treaties about the topic.147 Secondly, the first paragraph of Article 1 of the Mexican Constitution now establishes that “in the United States of Mexico all people are entitled to the human rights recognized in this Constitution and in the international treaties to which Mexico is a party [...]”. The second paragraph of the same provision, states that “the rules concerning human rights will be construed according with this Constitution and with the international treaties about the topic [...]”. Accordingly, an author points that after the amendment, the human rights pertaining to international treaties ratified by Mexico have the same authority than the ones consecrated in the Mexican Constitution.148

13 Constitutional Amendment ProceduresThe mechanism for reforming the fundamental charter of a country

is crucial to determining the allocation of political power in a society, the distribution of wealth, and the overall well-being of its citizens. For that reason, this is yet another area that has served as a scenario for heated political fights and even violence in the region. Many experiments and formulae concerning the amendment of the Constitution have been

145 Prensa Palacio de Gobierno Boliviano, Morales explica a sectores sociales fundamentos históricos y jurídicos de demanda a La Haya [Morales explains to social actors the historical and legal grounds of the lawsuit that will be filed before the Hague], available at: <http://comunicacion.presidencia.gob.bo/noticias/noticiasprint.php?idio=castellano&id=715>.

146 Mexico’s Official Gazette of the Federation, available at: <http://dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5194486&fecha=10/06/2011>.

147 Juan N. Silva Meza, El impacto de la reforma constitucional en materia de derechos humanos en la labor jurisdiccional en México [The Impact of the Constitutional Amendment concerning Human Rights on the Work of Judges in Mexico] Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano 2012 Konrad Adenauer Stiftung, 154 (2012).

148 Silva, supra note at 147, 156 (2012).

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tested during Latin American history, and no single system can be said to have been foolproof. Accordingly, this area will most likely remain one of recurrent interest for Latin American constitutionalism.

Given these considerations, it is worth mentioning several contem-porary innovations concerning constitutional amendment procedures in the region. In the case of Venezuela, initiatives to amend the cons-titution must have the support of at least 15 percent of those citizens registered to vote, 30 percent of the deputies of the National Assembly, and the President of the Republic.149 Bolivians, in turn, may convene a Constitutional Assembly elected through a popular referendum called by 20 percent of the electorate, by an absolute majority of the Plurinational Legislative Assembly, or by the President.150 In both countries, to enter into effect, constitutional amendments are subject to ratification by means of a popular referendum.151

14 ConclusionThis survey of recent constitutional developments in Latin America

illustrates a mix of tradition and innovation in several areas of society. On the one hand, the most innovative constitutions maintain the concept of family as it has been known since time immemorial in the West. On the other hand, on a continent deeply shaped by the Catholic religion, the trend to minimize its influence in the shaping of constitutional and legal institutions is conspicuous. Equally, there is a new resort to an en-lightened morality and to the recovery of the ethnic element, which lies at the center of the most sweeping reforms concerning the distribution of powers, and the structure of constitutional guarantees.

With respect to the separation of powers, on a continent where strong presidential power has been the historic pattern the executive branches of government have emerged overall even stronger after the latest changes in constitutional law. The legislative branches, in turn, have benefitted from cosmetic changes vis-à-vis the presidency, and re-main, in general terms, as subordinated arms of the executive branch of

149 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 341.150 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 411.151 Id. art. 411; 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 341(4).

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government. The judicial branches have been, to put it mildly, the less favored of the three branches in this scheme of amendments. In fact, where new individual rights have been spelled out through constitutional reforms in the region, these rights have simply increased the docket of the beleaguered Latin American judiciaries.

The real effects of novelties brought about by the new philosophi-cal background of the constitutional movements shaping recent reforms are yet to be seen. In most cases, such changes have thus far not been implemented. That is the case, for example, for the aboriginal justice system in Bolivia and for the new criminal procedure reform and juvenile criminal system in Mexico.

In sum, Latin America is an area where changes occur often, and sometimes abruptly. The region has also been characterized by the do-mino effects of reforms that take place in one jurisdiction and are then quickly mirrored in other jurisdictions. In that sense, the effects of the new trends embodied in recent constitutional activity in the region will not likely occur in isolation, but will be evident throughout Latin America.

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Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileiraPatrícia Lima SousaAdvogada da União em exercício na CONJUR/MP. Coordenadora-Geral Jurídica de Atos Norma-tivos. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília.

Antonio Augusto Ignacio AmaralEspecialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental em exercício no Ministério do Planejamento. Diretor de Planejamento das Estruturas e da Força de Trabalho da Secretaria de Gestão Pública. Bacharel em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

Resumo: O trabalho inicialmente apresenta de forma breve as formas de organização administrativa que podem ser identificadas no Estado Brasileiro desde a sua formação, buscando situar, em cada uma delas, as conexões e desconexões com os temas do acesso às informações detidas pelo Poder Público por parte dos cidadãos e da adoção de práticas de transparência governamental. Posteriormente, procura identificar as principais medidas adotadas nos últimos anos no âmbito da Administração Pública federal para efetivar o direito constitucional de acesso à informação e para divulgar as ações governamentais, culminando com o advento da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº 12.527, de 2011). Na sequên-cia, são apresentadas as linhas gerais da política de acesso à informação no Brasil, instituída pela LAI, além de consignar alguns desafios para a Administração Pública em face da sua implementação. Por fim, faz-se uma tentativa de relacionar o acesso à informação com a noção de accountability vertical, que se refere aos instrumentos à disposição da sociedade para controlar a atuação dos administradores públicos.

Palavras-chave: Acesso à informação. Transparência. Accountability. Administração Pública.

Sumário: Introdução – Patrimonialismo, burocracia e reformas gerenciais na Administração Pública brasileira: situando a accountability nesses mode-los – Transparência governamental no Brasil e o advento da Lei de Acesso à Informação – Implementação da LAI e desafios para a Administração Pública – Acesso à informação e accountability vertical – Considerações finais – Referências

1 IntroduçãoA Administração Pública brasileira vem se transformando ao longo

dos anos, sendo possível destacar, desde a época colonial até os tempos

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atuais, três grandes fases, que não necessariamente se sucedem e em certa medida coexistiram e ainda coexistem: patrimonialismo, modelo burocrático e gerencialismo.

No presente trabalho, inicialmente é feito o exercício de apresentar em poucas linhas essas formas de organização administrativa, buscando situar, em cada uma delas, de forma sucinta, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, as conexões e desconexões com os temas do acesso às informações detidas pelo Poder Público por parte dos cidadãos e da adoção de práticas de transparência governamental.

Essa breve digressão objetiva demonstra que nem sempre o con-texto administrativo-organizacional foi favorável ao fomento da garantia de acesso à informação e à disseminação de medidas de transparência e que, cotejando as três fases inicialmente mencionadas, o momento atual, em que se consolidam alguns dos conceitos do gerencialismo no Brasil, como accountability e participação, apresenta-se como o mais profícuo para a inserção desses temas na pauta governamental.

Na sequência, procura-se identificar, a partir da Constituição Federal de 1988, as principais medidas adotadas para efetivar o direito constitucional de acesso à informação e para divulgar as ações gover-namentais, até o advento da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº 12.527, de 2011).

Em razão do papel da Lei de Acesso à Informação como responsá-vel pela instauração de uma concreta política de acesso à informação no Brasil, o presente estudo apresenta as linhas gerais dessa política, além de consignar alguns desafios para a Administração Pública em face de sua implementação.

Por fim, feito o delineamento do atual estágio do acesso à informa-ção no Brasil, faz-se uma tentativa de relacionar esse tema com a noção de accountability vertical, que se refere aos instrumentos à disposição da sociedade para controlar a atuação dos administradores públicos.

2 Patrimonialismo, burocracia e reformas gerenciais na administração Pública brasileira: situando a accountability nesses modelos

Vários autores, ao se debruçarem sobre a formação do Estado Brasileiro, desde as raízes do Império Português, veem a política

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nacional como resultado de um processo histórico de fortes caracterís-ticas patrimoniais.

O patrimonialismo é uma das formas da dominação tradicional definida por Max Weber (1999). A dominação tradicional deriva da autoridade e é sustentada pela existência de fidelidade. O governante é o patriarca, ou senhor, que exerce dominância sobre os súditos, que o servem. Assim, obediência deve ser prestada por respeito, em razão da tradição e dos níveis de hierarquia (exemplo mais característico se dá entre reis e súditos, ou entre senhores e vassalos).1

A dominação tradicional decorre de fatores como afetividade, crença ou admiração. Essa ordem, baseada em uma relação rigidamente hierárquica, é em geral pouco flexível a mudanças, visto que se funda-menta na tradição, nos costumes e em valores pessoais.

O uso do conceito do patrimonialismo é largamente utilizado por pensadores brasileiros para associar a ideia do tratamento da coisa pública pela autoridade política como se esta fosse privada, ou seja, da não diferenciação entre as esferas pública e privada na vida política.

As origens e motivos dessa amalgamação entre o público e o privado na política brasileira receberam diversas interpretações.

Oliveira Vianna desenvolve a ideia de clãs rurais, que se originam na forma de colonização empreendida no Brasil (FERREIRA, 1996). A população rural agrupa-se em torno dos chefes territoriais. A solidarie-dade de clã, muito localizada e preocupada com problemas particulares de seus grupos, impede o surgimento de uma consciência ampla, de caráter nacional. Para Vianna, o Estado seria o promotor da integração nacional. Assim, conclui que somente sob a ação de um agente externo à sociedade (Estado autoritário) seria possível haver mudanças sociais mais profundas.

Sérgio Buarque de Holanda, assim como Vianna, dá ênfase ao peso do ruralismo e do patriarcalismo na formação nacional, mas fundamenta sua análise na herança ibérica (FERREIRA, 1996). Os sentimentos, para os ibéricos, sobrepõem-se a escolhas racionais. O resultado disso são

1 Há outros dois tipos-ideias de dominação segundo Weber, 1999: a carismática — baseada na crença das qualidades do líder, de seu caráter sagrado, de sua atuação heroica, do seu exemplo ou pelo dom de sua palavra — e a racional-legal. Esta última será tratada neste trabalho mais adiante.

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sentimentos próprios à comunidade doméstica, particularista, mesclando público e privado, assuntos familiares em assuntos de Estado. A coloni-zação levada adiante pelo tipo aventureiro, que visa o ganho imediato, em contraposição ao trabalhador, fortalece a ideia de aversão ao culto ao trabalho e à reduzida capacidade de organização e racionalização da vida social. O homem cordial, definido por Sérgio Buarque, que tinha como uma de suas características a afabilidade, possui extrema dificuldade em tratar seus pares com impessoalidade. Assim, projetam suas relações familiares para a política, comprometendo a possibilidade de surgimento de uma sociedade civil que oriente a formação de um Estado impessoal.

Gilberto Freyre (2001), por sua vez, apresenta a noção de plas ti-cidade (miscigenação, mobilidade social, adaptabilidade ao trópico). Esse autor se aproxima de Vianna e de Buarque na avaliação da sociedade brasileira no pós-colonização como agrária e escravocrata, formada por núcleos dispersos e autossuficientes, dominada pela família patriarcal. Mas, ao invés de focar sua análise nas origens dos “clãs rurais” ou na “he rança ibérica”, parte das ideias de “plasticidade” e “equilíbrio de an-ta go nismos” para entender nossa sociedade colonial como fruto de uma experiência de adaptação ao trópico.

Freyre (2001) considera a miscigenação (aqui entendida como processo de interpenetração de etnias) como sintoma da plasticidade, que surge ao mesmo tempo como fator de adaptabilidade ao trópico e como fator de integração da sociedade, diminuindo as distâncias sociais e culturais.

Esse autor procura demonstrar que, no processo de miscigenação, a despeito de a cultura dos “vencedores” se sobrepor à dos “vencidos”, existiam “zonas de confraternização” que permitiam a formação, no Brasil, de uma civilização tropical, original e criativa. Daí a concepção da formação nacional como um “processo de equilíbrio de antagonismos”.

Ao cotejar o pensamento dos três autores citados, é possível con-signar que o Estado Brasileiro carrega o peso de uma história forjada numa concepção patrimonialista, de coincidência ou no mínimo íntima relação entre o público e o privado, concepção que orientou fortemente a Administração Pública no Brasil até meados do século XX.

Segundo Pereira (1996), para substituir a administração patrimo-nialista, em que nepotismo, empreguismo e corrupção eram a regra,

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“tornou-se necessário desenvolver um tipo de administração que partisse não apenas da clara distinção entre o público e o privado, mas também da separação entre o político e o administrador público”. Nesse contexto, nos idos de 1936, com a reforma administrativa promovida por Maurício Nabuco e Luís Simões, inicia-se a implantação da Administração buro-crática racional-legal no Brasil.

Na dominação do tipo racional-legal (conforme classificação pro-posta por Max Weber, 1999), a atuação estatal deve basear-se na aplicação de regras e procedimentos racionalmente definidos, de modo a permitir o predomínio da lei, da técnica, sobre o poder tradicional.

O modelo burocrático weberiano está calcado em bases racionais de divisão do trabalho, relações hierárquicas e regras que separam de forma clara a propriedade pessoal da pública. A seleção do corpo burocrático também deve se dar com base em regras transparentes e com base em qualificações técnicas, e não em decisões particulares ou visando privile-giar uma pessoa ou grupo. Assim, os grupos sociais e suas relações com o Estado devem ser regidos por meio de regras, estatutos, formalidade e impessoalidade.

Porém, no final do século XX, com a crise do Estado liberal e a cres cente demanda por um Estado capaz de atender os anseios dos cida-dãos, o Estado precisou não apenas ampliar a prestação de serviços, mas também a passar a atuar na economia. Nesse contexto, evidenciaram-se as fragilidades do modelo burocrático, que, segundo os críticos, era lento, autorreferido e pouco ou nada orientado para o atendimento das demandas dos cidadãos, incapaz, portanto, de garantir rapidez, boa qualidade e baixo custo para os serviços prestados ao público.

Assim, exacerbou-se a necessidade de uma administração pública gerencial. O modelo do new public management (NPM), ou administração pública gerencial, traz uma perspectiva pós-burocrática para a estru-turação e gestão da Administração Pública, baseado em novos valores. Alguns desses valores decorrem da prática de mercado, como eficiência, eficácia, produtividade, orientação para o resultado, descentralização e competitividade na prestação de serviços públicos.

Em um primeiro momento, o NPM visava adotar reformas que combinassem a melhoria da eficiência do setor público com corte de custos. São marcantes nessa fase as reformas levadas a cabo ao longo

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da década de 1980 no Reino Unido e nos Estados Unidos, durante os governos de Margaret Thatcher e Ronald Regan. As principais políticas adotadas foram voltadas ao ajuste fiscal, por meio do corte nos gastos públicos, à implementação de reformas tributárias, à desregulamentação de setores econômicos e privatizações.

Em um segundo momento, a discussão deixou de ser sobre o ta ma-nho do Estado, mas sobre a capacidade do governo de corresponder às demandas sociais e ser permeável à accountability. Assim, desenvolveram-se as ideias de consumerism, que tem como foco a flexibilidade da gestão visando a melhor qualidade da prestação do serviço público ao seu principal cliente, ou seja, o cidadão; e o Public Service Oriented, no qual a Administração Pública deve estar orientada para ideais republicanos e democráticos, por meio de conceitos como transparência, participação, justiça, equidade e accountability.

Feito esse breve histórico acerca da Administração Pública brasilei-ra, importa para este trabalho situar as temáticas do acesso à informação e da transparência governamental em cada uma dessas fases do Estado Brasileiro, as quais, necessário registrar, não se sucedem e, em diversos momentos e situações, inclusive coexistem.

No tocante à “ética do patrimonialismo”, em que público e priva-do se confundem, é possível asseverar que o desenvolvimento de uma cultura de transparência governamental, em que os cidadãos possuem mecanismos de acesso a informações detidas pelo Poder Público, práticas de privilégios, avessas à noção de interesse público, não se sustentam ou, ao menos, são dificultadas.

Acerca do modelo burocrático, não se pode negar que a noção de procedimentos estabelecidos e de impessoalidade, por exemplo, coadunam-se com as noções de transparência governamental. Por outro lado, as disfunções desse modelo, como, por exemplo, o insulamento dos burocratas e a ausência de orientação para o atendimento das demandas dos cidadãos, não guardam consonância com os valores que permeiam as práticas de transparência governamental e empoderamento da sociedade por meio do acesso à informação.

Quanto ao modelo gerencial, é inegável que a preocupação com o alcance de resultados, o que exige a produção de metas e indicadores,

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contribui para o aumento da transparência e da participação da socie-dade na gestão pública, já que ganha relevo a satisfação dos cidadãos com as políticas públicas.

Feita essa digressão, é possível asseverar que o atual contexto apresenta maior permeabilidade à participação da sociedade do que os anteriores, sendo, portanto, profícuo para o debate sobre políticas que garantam o acesso à informação e disseminem a prática da transparência.

3 Transparência governamental no Brasil e o advento da Lei de Acesso à Informação

A institucionalização de mecanismos para o acesso a informações detidas pelas autoridades públicas consiste em instrumento essencial de garantia do princípio democrático, fazendo-se mister a aprovação e efetiva implementação de leis que definam de forma detalhada os pro-cedimentos e prazos para a busca e a divulgação de informações, assim como meios de controle para assegurar o cumprimento das obrigações pelos responsáveis pela sua disponibilização.

Somente por meio de um arcabouço institucional consistente, aliado a um aparato burocrático capacitado para lidar com a temática do acesso à informação pode-se garantir um regime de acesso à infor-mação efetivo e operacional, capaz de fornecer informações autênticas e simétricas.

No Brasil, apenas recentemente, com o advento da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, denominada “Lei de Acesso à Informação – LAI”, o tema foi inserido como uma política de Estado, a ser implemen-tada por todos os entes federativos e alcançando toda a Administração Pública indireta, além de alcançar entidades privadas sem fins lucrativos que recebam recursos públicos.

Mas é preciso evidenciar que a Constituição Federal de 1988 já previa em seu bojo, como direito fundamental, o acesso a informações sob custódia dos órgãos e entidades públicos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabili-dade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

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XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

Ainda, a Constituição, no capítulo destinado à Administração Pública, assegurou que a lei disciplinaria as formas de participação do cidadão na Administração Pública direta e indireta, devendo dispor sobre o acesso a registros administrativos e a informações sobre atos de governo (art. 37, §3º, inciso II). Ademais, estabeleceu competir à Administração Pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem (art. 216, §2º).

Tomando como marco temporal a promulgação da Constituição de 1988, em face do seu caráter democrático e dos contornos estabelecidos para o direito à informação, é possível identificar, antes da LAI, legislações e medidas esparsas no sentido de conceder transparência às ações governamentais no âmbito da Administração Pública federal, podendo-se destacar: regras para a publicização de documentos custodiados por Agências Reguladoras (ex.: art. 36 da Lei nº 9.472, de 1997 – ANATEL, e art. 18 da Lei nº 9.478, de 1997 – ANP); Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101, de 2000); Lei do Direito à Informação Ambiental (Lei nº 10.650, de 2003), criação da Controladoria-Geral da União, por meio da Lei nº 10.683, de 2003); lançamento do Portal da Transparência, em 2004; lançamento do Portal Brasil, em 2010.

Importante também mencionar que, em 2004, por meio da Medida Provisória nº 228, convertida na Lei nº 11.111, de 2005, houve uma ten-tativa de regulamentação do direito de acesso à informação. Todavia, pode-se dizer que esse diploma legal passou longe de instituir uma po-lítica de acesso, tendo cuidado apenas de reafirmar a proteção formal ou nominal ao direito à informação, tendo em vista que não concedeu aparato concreto para a efetivação desse direito.

Conforme esclarece a Apostila da CGU (ANDI e ARTIGO 19, 2009), a jurisprudência internacional preceitua que, para garantir os direitos humanos fundamentais, entre os quais se inclui o direito à informação, os Estados, além de abster-se de ações que impeçam o exercício desses

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direitos, têm a obrigação de tomar medidas concretas para a sua fruição, aqui se inserindo o dever de adotar legislação adequada.

Como legislação adequada para a garantia do direito à informa-ção a comunidade internacional compreende a que seja norteada pelos seguintes princípios: (i) máxima divulgação; (ii) publicação proativa de informações essenciais; (iii) promoção de um governo aberto, em que o público seja informado sobre os seus direitos e haja a disseminação de uma cultura de abertura no âmbito do governo; (iv) sigilo como exceção; (v) instituição de mecanismos que permitam o processamento rápido e imparcial das solicitações de informação, incluindo a previsão de ins-tâncias recursais; (vi) previsão de custos, quando couber, em valor que não impeça a solicitação de informações; (vii) previsão de publicidade para reuniões de governança; (viii) adaptação do ordenamento jurídico à primazia da máxima divulgação; e (ix) proteção dos denunciantes.

Ao cotejar a LAI (Lei nº 12.527, de 2011) com esses princípios, observa-se que já no art. 3º a lei adota vários deles como diretrizes para a política de acesso à informação no Brasil (publicidade como regra e sigilo como exceção, divulgação proativa de informações e fomento da cultura de transparência na Administração Pública). No art. 5º, esta-belece o dever do Estado de garantir o direito de acesso à informação “mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão”, indo ao encontro do princípio internacional de que as solicitações sejam processadas de forma rápida e imparcial. No art. 8º, estabelece um rol de informações essenciais que devem ser divulgadas independentemente de requerimentos, a deno-minada “transparência ativa”, passo fundamental para uma governança aberta. No art. 9º, destaca-se a determinação para que todos os órgãos e entidades do Poder Público criem unidades específicas de informações, os chamados “Serviços de Informação ao Cidadão” (SICs), que devem estar aptos para: a) atender e orientar o público quanto ao acesso a informações; b) informar sobre a tramitação de documentos nas suas respectivas unidades; c) protocolizar documentos e requerimentos de acesso a informações.

No Capítulo III (arts. 10 a 20), a LAI institui o “Procedimento de Acesso à Informação”, que consiste no conjunto de mecanismos que vi-sam garantir o funcionamento da política de acesso: regras simplificadas

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para a apresentação dos pedidos; definição de forma e de prazo para resposta e dinâmica recursal.

O Capítulo IV (arts. 21 a 31) aborda o tema da restrição de acesso, estabelecendo as hipóteses de sigilo, os procedimentos para a classifi-cação de uma informação como sigilosa (incluindo a possibilidade de reclassificação ou de desclassificação), as situações em que o sigilo não pode ser oponível ao solicitante da informação e o tratamento a ser conferido às informações de cunho pessoal relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem.

O Capítulo V (arts. 32 a 34) trata das responsabilidades dos atores envolvidos na implementação da política de acesso, estabelecendo hipó-teses específicas de ilicitude quando o comportamento desses atores se opuser de algum modo, ainda que parcialmente, à garantia do acesso à informação.

Na parte final (Capítulo VI), destaca-se a adoção das seguintes medidas: (i) criação da Comissão Mista de Reavaliação de Informações, instância máxima de coordenação da LAI no âmbito da Administração Pública federal; (ii) instituição, no âmbito do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, do Núcleo de Segurança e Credenciamento, competente para atuar no tratamento e garantia de informações sigilosas; (iii) determinação de que o dirigente máximo de todo órgão e entidade da Administração Pública federal designe autori-dade que lhe seja diretamente subordinada para atuar como responsável pela garantia da eficiência da política de acesso no âmbito do respectivo órgão ou entidade; e (iv) determinação de que o Poder Executivo federal designe órgão da Administração Pública federal responsável por fomentar a cultura da transparência, treinar agentes públicos quanto a práticas de transparência e monitorar a aplicação da LAI.

Diante dessa análise descritiva da LAI, e examinando as legislações e medidas de transparência governamental adotadas na Administração Pública federal entre a Constituição Federal de 1988 e o seu advento, é possível afirmar que, embora sempre tenha havido iniciativas no sentido de promover a divulgação de informações ou possibilitar o acesso dos cidadãos a elas, somente com a entrada em vigor da Lei nº 12.527, de 2011, foi instituída no Brasil uma efetiva política de acesso à informação.

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Somente com a LAI foram estabelecidos de forma sistemática e concatenada mecanismos para a garantia do direito constitucional de acesso à informação detida pelo Poder Público, com a definição de regras e procedimentos racionalmente definidos para possibilitar esse acesso (prazos, hipóteses claras de cabimento de recurso, detalhamento minu-cioso do modo de elaborar um pedido e do tipo de resposta cabível para diversas possíveis solicitações), sendo possível identificar, nesse aspecto da lei, contornos positivos da burocracia weberiana. Também se verifica aderência ao modelo burocrático na criação do Núcleo de Segurança e Credenciamento, responsável por garantir a uniformidade dos procedi-mentos quanto à guarda e manuseio das informações sigilosas.

Também se observa na LAI a adoção de instrumentos que orientam o alcance de resultados na política de acesso à informação, importante elemento de uma administração gerencial: (i) estabelecimento de rol mínimo de informações que devem ser publicadas proativamente pelo Poder Público (transparência ativa); (ii) previsão de prazo de resposta ao pedido de informação, sob pena de responsabilidade do agente que descumpri-lo, e criação de sistema recursal que permite conferir coe-são à política; (iii) determinação de publicação anual, por cada órgão ou entidade, de relatório com a lista das informações classificadas e as desclassificadas em algum grau de sigilo, bem como relatório estatístico contendo dados sobre a execução da política.

Veja-se que a determinação legal de publicação de uma lista básica de informações reputadas como essenciais para uma administração pú-blica transparente objetiva garantir o alcance de um resultado mínimo com a política de acesso à informação.

A previsão de prazo de resposta, acompanhada da instituição clara das hipóteses de responsabilização do agente incumbido de prestar a informação, visa assegurar que a informação será prestada em tempo razoável, mecanismo que, por si só, já impacta na eficiência da política de acesso. E aliado à estipulação de prazo de resposta, tem-se o sistema recursal previsto na LAI para a Administração Pública federal como importante instrumento de garantia da qualidade da informação, na medida em que as instâncias recursais máximas (Controladoria-Geral da União e Comissão Mista de Reavaliação de Informações) são comuns a

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todos os órgãos e entidades, permitindo uma aferição do “como” estão sendo disponibilizadas as informações requeridas.

Ademais, o desenho instituído pela LAI para a macrocoordenação da política de acesso à informação na Administração Pública federal denota relevante preocupação com a qualidade da implementação da política e com a coesão e coerência na prestação da informação, fatores cruciais para o êxito dos resultados atingidos.

Importante destacar, nesse cenário, o papel da Controladoria-Geral da União como o órgão do Poder Executivo federal responsável por promover campanha nacional de conscientização para uma cultura de transparência no Poder Público, pela capacitação dos agentes públicos para lidar com a temática do acesso à informação e pelo monitoramento da aplicação da lei no âmbito da Administração Pública federal, concen-trando e consolidando a publicação de informações estatísticas.

A Controladoria-Geral da União, que também funciona como instância recursal em determinadas hipóteses, tanto por meio desse seu papel revisor quanto pela sua incumbência de monitorar a aplicação da lei, possui condições de promover as necessárias concertações na execu-ção da política de acesso, contribuindo de forma eficiente para o alcance dos resultados pretendidos (informação prestada de forma célere, clara, autêntica e simétrica).

Papel semelhante exerce a Comissão Mista de Reavaliação de Informações, que também atua como instância recursal, podendo in-clusive rever decisão da Controladoria no caso de negativa de acesso, além de possuir competência decisiva em matéria de classificação de informações sigilosas.

Por meio dessas atribuições, a Comissão, enquanto instância recur-sal, funciona como mais uma oportunidade para a garantia do acesso à informação e correção de equívocos na execução da política, e no tocante à classificação das informações, pode garantir que o sigilo seja realmente utilizado como exceção, nos estritos termos da imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado (art. 23 da LAI).

Acerca da Comissão, importa registrar ainda que, quando da regulamentação da LAI, por meio do Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012, restou definido que ela seria integrada pelos titulares dos seguintes órgãos (art. 46): I - Casa Civil da Presidência da República,

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que a presidirá; II - Ministério da Justiça; III - Ministério das Relações Exteriores; IV - Ministério da Defesa; V - Ministério da Fazenda; VI - Mi nis tério do Planejamento, Orçamento e Gestão; VII - Secretaria de Di rei tos Hu manos da Presidência da República; VIII - Gabinete de Segu rança Ins ti tu cional da Presidência da República; IX - Advocacia-Geral da União; e X - Controladoria-Geral da União.

De acordo com a importância estratégica dos Ministérios envolvidos na mais alta instância de coordenação da política de acesso à informação na Administração Pública federal, pode-se inferir que se trata de tema que possui relevância na pauta governamental, o que concede ainda mais possibilidade de êxito aos resultados da política.

Cabe ressaltar, por fim, que o mesmo decreto atribuiu à Comissão a função de estabelecer orientações normativas de caráter geral a fim de suprir eventuais lacunas na aplicação da LAI, competência que também funciona como importante mecanismo para conceder coesão e coerên-cia à política de acesso à informação, colaborando com o alcance dos resultados previstos.

Em face dessa breve apresentação teórica da LAI, é possível con-signar que o Estado Brasileiro, e, mais especificamente, a Administração Pública federal, dispõe atualmente de importante arcabouço legal para a ampliação do acesso às informações detidas pelo Poder Público, inegável combustível para a transparência governamental.

4 Implementação da LAI e desafios para a Administração PúblicaConforme visto em tópicos anteriores, no período compreendido

entre a Constituição Federal de 1988 e o advento da LAI, houve a adoção de diversas medidas para garantir o acesso à informação, principalmente mediante iniciativas voltadas para a transparência governamental.

Todavia, não se discute que a LAI constitui o marco legal por exce-lência do acesso à informação no Brasil. Todavia, é preciso ter em mente que a LAI representa um ponto de partida, e não um fim em si mesma. Esse é um diagnóstico que pode ser feito já de uma primeira leitura da Lei nº 12.527, de 2011.

A LAI foi publicada em 18 de novembro de 2011, com vigência iniciada 180 dias depois, em 16 de maio de 2012. Foram seis meses entre a sua publicação e o início de seus efeitos, o que pode ser considerado

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um tempo curto para a implementação das diversas medidas decorrentes da considerável mudança de paradigma por ela estabelecida.

O âmbito de abrangência da LAI (todos os entes federativos, inclusive entidades da Administração indireta, e entidades sem fins lu-crativos, em determinadas situações) já demonstra que os desafios para a implementação da política de acesso à informação no Brasil atingem todos os órgãos e entidades que lidem com recursos públicos, em todos os níveis federativos, independentemente do seu nível de organização ou das condições que tiveram ou tenham para se organizar.

E os desafios são inúmeros, podendo-se mencionar, como fruto da concepção ideológica subjacente à política, a necessidade de fomento à cultura de transparência por meio de campanhas e debates de alcance nacional e de capacitação dos agentes públicos para lidar com o tema.

Também se coloca como ponto central para a efetividade dos pre-ceitos da LAI investimentos em tecnologia da informação, tendo em vista que, no contexto tecnológico do século XXI, tanto no que concerne à gestão documental e aos mecanismos de comunicação intragoverno, quanto no que diz respeito às interfaces entre governo e sociedade, o apri moramento dessa seara impõe-se como premente e essencial.

Outra medida que se impõe é a melhoria da gestão documental no tocante ao tratamento da informação, de modo a garantir, conforme determina a LAI, a autenticidade e a integridade da informação, além da adequada proteção à informação classificada como sigilosa e à infor-mação pessoal relativa à intimidade, vida privada, honra e imagem da pessoa natural.

Igualmente se apresenta como crucial a profissionalização do aten-dimento às solicitações dos pedidos de acesso à informação, por meio de investimentos na estruturação física e de recursos humanos dos Serviços de Informação ao Cidadão.

Diante desse rol exemplificativo de barreiras a serem superadas para a criação do cenário ideal para a adequada implementação da polí-tica de acesso à informação instaurada pela LAI, é indene de dúvidas que o caminho a ser percorrido é árduo e exige investimentos consistentes.

Todavia, ao se avaliarem esses investimentos, não se pode esque-cer o potencial transformador da garantia do acesso à informação, que tanto provoca melhorias constantes na gestão das organizações quanto

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possui o condão de aprimorar as políticas públicas, por constituir-se em condição indispensável ao controle social da gestão pública.

5 Acesso à informação e accountability verticalJá no século XVII, o filósofo e político Francis Bacon (2006 apud

CANELA, 2009) asseverou a íntima relação entre conhecimento e po-der, pensamento que, transportado para o presente trabalho, permite a constatação de que o acesso à informação consiste em inegável ins-trumento de poder. Considerando essa premissa, não se pode conceber a realização prática de um Estado democrático sem a disseminação de informações que permitam aos cidadãos exercer um controle qualificado sobre a atuação dos governantes.

Nessa perspectiva, após crescente debate internacional sobre a abrangência do direito à informação, os Relatores para Liberdade de Expressão da ONU, OEA e OSCE, em sua Declaração Conjunta de 2004 emitiram o entendimento de que “O direito de acessar informação de-tidas pelas autoridades públicas é um direito humano fundamental que deve ser efetivado no nível nacional através de legislação abrangente [...]” (MENDEL, 2009, p. 9).

É nesse contexto que o acesso à informação sobre as ações gover-namentais se insere como pressuposto para a accountability “vertical”, que consiste na possibilidade de responsabilização por meio do controle dos governantes (que têm a obrigação de prestar contas à sociedade) pelos governados (controle social), fundada na noção da soberania popular — todo poder emana do povo (CLAD, 2000).

Não há como conceber a ideia de controle social, inerente à noção de democracia, sem que haja a garantia de que a participação social na gestão pública será qualificada, pautada por informações autênticas, claras e coerentes sobre a atuação estatal. Nessa linha, afirma Lopez:

[...] Cidadão sem informação sobre os processos decisórios e sobre a imple-mentação de políticas não podem reivindicar, de forma satisfatória, mudanças em seus procedimentos e objetivos. Publicizar o que se faz, como se faz e criar canais de contestação integram uma dimensão indispensável para que mecanismos de controle social da administração possam ser efetivos. (LOPEZ, 2010, p. 193)

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A publicização permanente das ações governamentais, aliada à criação de espaços para a participação social, possibilita que a account­ability vertical seja exercida não apenas no momento das eleições, mas, cotidianamente, ao longo dos mandatos, agregando novos atores na de-finição e execução das políticas, fator que possui considerável potencial para melhorar os resultados das policies.

Uma Administração atenta às necessidades efetivas dos cidadãos não pode prescindir da avaliação dos destinatários das políticas sobre os seus resultados, avaliação essa que possui como condição sine qua non a transparência das ações governamentais, que deve ser garantida tanto por meio da divulgação proativa de informações como pela criação de mecanismos que possibilitem a entrega de dados e documentos mediante a provocação de qualquer solicitante.

A instituição de mecanismos que garantam o acesso a informações sobre a atuação dos administradores públicos, estabelecendo-se, por consequência, uma cultura de transparência governamental, possibilita que, por meio da accountability vertical, as preferências e interesses dos grupos afetados funcionem como importante contrapeso na formulação e implementação das políticas e que o seu êxito seja mensurado não apenas por meio de controles formais dos resultados, mas também levando em conta as demandas dos stakeholders (LOPEZ, 2010).

Nessa perspectiva, é possível asseverar que um controle social base-ado em informações regulares, simétricas, disponíveis em linguagem de fácil compreensão pela sociedade em geral possui o condão de redimen-sionar a noção histórica de accountability, que, para além da preocupação com as temáticas da probidade e do abuso de poder, passa a orientar-se pela responsabilização dos administradores quanto ao desempenho das políticas em cotejo com as demandas da sociedade (CLAD, 2000).

Não se pode olvidar, entretanto, que o papel da accountability vertical, potencializada e qualificada pelo acesso à informação, impõe o desafio de conciliar o papel da burocracia e o dos stakeholders, de modo que se encontre um ponto ótimo entre as escolhas dos especialistas e as demandas sociais.

De todo modo, a par da necessidade de equilíbrio entre as forças que devem estar envolvidas nos processos decisórios de um Estado de-mocrático, ganha relevo o acesso à informação como condição inafastável

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para o exercício dos demais direitos fundamentais do cidadão, na medida em que somente cidadãos bem informados podem interferir de forma qualificada nas escolhas estatais, responsáveis em grande medida pela garantia dos direitos em tela.

6 Considerações finaisOs desafios que se apresentam aos Estados Nacionais no século

XXI, em especial aos países em desenvolvimento, como o Brasil, impõem a redefinição do seu papel e do seu modo de atuação. Ao tempo em que se faz premente o aprimoramento de mecanismos que tornem o Estado mais eficiente, a noção de eficiência precisa ser redimensionada para lidar com o atendimento efetivo das demandas dos cidadãos.

É nesse cenário que se insere a discussão sobre como ampliar os espaços de participação democrática na gestão pública, de modo que os destinatários das policies sejam incorporados a um processo dialógico de definição e/ou redefinição das prioridades da agenda governamental.

Por entender-se que não há como falar em participação social qualificada sem que os cidadãos tenham acesso a informações autênti-cas, claras e simétricas sobre as ações governamentais, ganha relevo a necessidade de se instituir mecanismos que garantam a efetividade do direito constitucional de obter informações do Poder Público e o fomento a medidas de transparência governamental.

Nessa perspectiva, a recente entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação, em 16 de maio de 2012, apresenta-se como indiscutível instrumento de estímulo à participação democrática no Brasil, na medida em que institui uma concreta política de acesso à informação no Estado Brasileiro, com a criação de aparato legal e institucional consistente para o tratamento do tema.

Access to Information and Open Government – Framing the Debate in the Brazilian Public Administration

Abstract: The paper briefly presents the forms of administrative orga-nization which can be identified in Brazil since its formation, trying to place in each, connections and disconnections with the themes of access to information held by public authorities by the citizens and the adop-tion of practices of government transparency. Subsequently, attempts to identify the main measures adopted in recent years in the federal Public Administration to enforce the constitutional right of access to information

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and to publicize government’s actions, culminating with the advent of the Law on Access to Information – LAI (Law n. 12.527, 2011). Following are presented the broad lines of the policy of access to information in Brazil, instituted by LAI, and consigned some challenges for public administra-tion to face to its implementation. Finally, it is made an attempt to relate access to information with the notion of vertical accountability, which refers to the instruments at the disposal of society to control the actions of public officials.

Key words: Access to information. Open government. Accountability. Public Administration.

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Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedadeEugenio Müller Lins de AlbuquerqueAdvogado da União em exercício na Procuradoria-Regional da União da 2ª Região (Coor-denação de Patrimônio, Probidade e Meio Ambiente). Mestre em Direito pela Universidade Candido Mendes. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Membro da Comissão Permanente de Direito Administrativo do IAB. Membro da Comissão Permanente de Direito Agrário do IAB. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/RJ.

Resumo: Celebram-se, neste ano, vinte e cinco anos de existência cons-titucional da Advocacia-Geral da União. Há muito para comemorar. Não, contudo, em termos de controle de legalidade da Administração Pública, em especial em termos dos denominados atos discricionários. O presente texto objetiva examinar como as últimas alterações no Direito Administrativo influenciam tal tipo de controle.

Palavras-chave: Administração Pública. Brasil. Controle. Advocacia-Geral da União.

Sumário: Introdução – 1 Controle da Administração Pública – 2 Trans-formações no Direito Administrativo – 3 Controle do ato administrativo pelo Advogado Público – Conclusões – Referências

IntroduçãoA experiência em atividades de consultoria e assessoramento

demonstra que o administrador público tende a restringir o controle de legalidade conferido aos Advogados Públicos. Estão presos à noção de legalidade como vinculação ao texto legal. E, dentro dessa visão, encaram a questão da discricionariedade administrativa como um campo de atuação imune a qualquer forma de controle jurídico. Dessa forma, qualquer modo de estreitamento das decisões discricionárias excederia a com pe tência do órgão jurídico e invadiria a seara do gestor.

A visão desses gestores está relacionada com uma leitura tradicional (dogmática) do Direito Administrativo, calcada numa absoluta distinção entre atos vinculados e discricionários, sendo forte a crença na sindica-bilidade dos últimos.

Por outro lado, a doutrina é tímida na análise do controle interno de legalidade da Administração Pública, mas pródiga em lições sobre o controle jurisdicional. No que toca ao controle interno, limita-se, no

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mais das vezes, a afirmar que é aquele desempenhado pelo próprio ór-gão. Silencia, no entanto, sobre quem dentro do órgão está incumbido de realizá-lo. Também existem poucas referências ao controle desempe-nhado pelos Advogados Públicos.

Esse vácuo lança algumas incertezas quanto ao conteúdo desse tipo de controle. Envolveria apenas o controle da aplicação da norma dentro de sua concepção positivista? O que dizer da interpretação constitucio-nal e da incidência dos princípios fundamentais? E os regulamentos? Além disso, torna-se necessário examinar se o Advogado Público está autorizado a adentrar o chamado mérito do ato administrativo. Ou seja, precisar se este profissional pode examinar os atos discricionários ou se tal atribuição estaria acometida, por exemplo, apenas aos integrantes do Poder Judiciário. Com efeito, o estudo das hipóteses de controle judicial dos atos da Administração avançou muito, principalmente a partir do manejo do princípio da razoabilidade. Infelizmente, tal avanço não foi verificado na seara do controle dos Advogados Públicos. Surge, então, o desafio de transportá-lo para esse campo.

O Direito Administrativo passa por mudanças, questionamento de dogmas, reflexo, talvez, de um processo de constitucionalização tardia.

É fundamental sintonizar o trabalho do Advogado Público consul-tor, que também exerce função essencial à justiça, com as transformações vivenciadas por esta área do Direito que é a sua principal ferramenta de atuação. Importa harmonizar, ainda, este controle com o paradigma do Estado Democrático de Direito vigente no Brasil, que adota, ao menos formalmente, o modelo de administração gerencial ou de governança corporativa. É dizer: deverá superar o legalismo e buscar a eficiência.

Cumpre destacar alguns vetores que devem informar as atividades de aconselhamento conferidas pela Constituição aos integrantes da Advocacia Pública. São: a busca do aperfeiçoamento do ordenamento jurídico, a produção de atos administrativos em conformidade com o ordenamento (sem vícios) e a prevenção de litígios judiciais insustentáveis para o Estado.

As mutações do Direito Administrativo provocam reflexo no de-senrolar das atividades consultivas próprias dos Advogados Públicos. Interessa ao desenvolvimento do presente artigo determinar de que

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forma ditas alterações influenciam ou devem influenciar o objeto e os limites das atribuições afetas a esta espécie de Advogados.

A melhor forma de iniciar a abordagem parece estar no estudo inicial das noções tradicionais de controle da Administração.

1 Controle da Administração PúblicaA existência de mecanismos de controle da Administração é ine-

rente ao Estado de Direito, conforme sublinha Celso Antônio Bandeira de Mello.1 O controle recebe inúmeras classificações. Porém, somente as mais diretamente relacionadas ao tema principal serão abordadas.

O controle referido ao longo da presente exposição é o adminis-trativo, não o político. Enquanto o controle administrativo tem por alvo a função administrativa exercida pelos órgãos estatais, o político guarda relação com as instituições políticas e o equilíbrio entre os Poderes.2

Poucos doutrinadores mencionam as atividades de assessora men to e consultoria afetas aos Advogados Públicos como representando au-têntica função de controle. A bem da verdade, dedicam-se a um exame muito ligeiro do controle interno, preferindo concentrar-se no controle externo, notadamente o parlamentar e o jurisdicional.

1.1 Controle de legalidade e de mérito. Atos vinculados e discricionários

A classificação dos atos administrativos com base no critério da liberdade de ação é tradicional. De um lado estariam os atos vinculados. Do outro, os discricionários. Vinculados, em síntese, são aqueles cujos elementos encontram-se dispostos previamente na lei. José dos Santos Carvalho Filho assim os define:

Atos vinculados, como o próprio adjetivo demonstra, são aqueles que o agente pratica reproduzindo os elementos que a lei previamente estabelece. Ao agente, nesses casos, não é dada liberdade de apreciação da conduta, porque se limita, na verdade, a repassar para o ato o comando estatuído na lei. Isso indica que nesse tipo de atos não há qualquer subjetivismo ou valoração, mas apenas a averiguação de conformidade entre o ato e a lei.3

1 BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 889.2 CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 779-780. 3 Ibid., p. 116-117.

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O controle dos atos vinculados não provoca maiores dúvidas, apesar de os contornos do que venha a ser a legalidade que demanda controle não sejam tão evidentes quanto parecem.

Noutra direção, os atos discricionários são apontados como aqueles que comportam certa margem de liberdade de apreciação do adminis-trador na aplicação. Nas palavras do mesmo Carvalho Filho:

Diversamente sucede nos atos discricionários. Nestes é a própria lei que autoriza o agente a proceder a uma avaliação de conduta, obviamente to-mando em consideração a inafastável finalidade do ato. A valoração incidirá sobre o motivo e o objeto do ato, de modo que este, na atividade discricionária, resulta essencialmente da liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, traduzindo, portanto, um certo grau de subjetivismo.4

Sobre a discricionariedade, Marcello Caetano traz a seguinte contribuição:

A legalidade cinge a actividade jurídica da Administração condicionando os poderes a exercer e a forma de seu exercício, o objecto e o fim dos actos. Na medida em que as normas gerais pautam a actividade administrativa, diz-se que esta é vinculada. Todavia, as necessidades da iniciativa da Administração, o facto desta ter com freqüência que decidir, isto é, de escolher uma atitude, um comportamento, um procedimento entre vários possíveis em face de circunstâncias muito variáveis e quantas vezes inesperadas, impõem que a lei deixe nessas ocasiões certa liberdade de actuação aos órgãos.

Tal liberdade de apreciação tanto pode incidir sobre a oportunidade de agir, como sobre o objecto ou a forma do acto. Desde que seja respeitado o fim de interesse público fixado por lei como fundamento da atribuição dos poderes, e que passa a ser o valor jurídico em função do qual se apreciará o acto, o órgão poderá escolher, naqueles domínios que a lei deixa ao seu critério, qualquer das atitudes ou dos comportamentos possíveis. A este domínio da liberdade de escolha ou de apreciação, relegada para o plano da técnica, se chama discricionariedade administrativa, que se opõe, assim, à vinculação.5

Merece atenção o destaque dado pelo autor ao plano da técnica, noção relevante para o exame dos limites ao controle dos atos conside-rados discricionários.

4 Ibid., p. 117.5 CAETANO. Manual de direito administrativo, p. 31.

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A seu turno, Celso Antônio Bandeira de Mello assim define a dis cri cionariedade:

Discricionariedade é a margem de “liberdade” que remanesça ao admi-nistrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da fi na lidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liber dade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.

Para o autor, a discricionariedade deve ser pesquisada em cada caso concreto, sendo inadequado afirmar sua existência em tese. Maria Sylvia Di Pietro associa a ideia de discricionariedade a um poder jurídico, nos termos abaixo transcritos:

Estudando-se a evolução da Administração Pública a partir do Estado de Polícia, verifica-se que se partiu de uma ideia de discricionariedade ampla — sinônimo de arbítrio e própria das monarquias absolutas, em que os atos da Administração não eram sindicáveis perante o Judiciário — para passar-se a uma fase, já no Estado de Direito, em que a discricionariedade, assim entendida, ficou reduzida a certo tipo de atos; e chegou-se a uma terceira fase em que praticamente desapareceu essa ideia de discricionariedade e esta surgiu como poder jurídico, ou seja, limitado pela lei.6 7

Diz-se do ato discricionário que comporta juízo de conveniência e oportunidade, e que estes formam o mérito administrativo. Nesse sentido, a seguinte lição de José dos Santos Carvalho Filho:

Vimos, ao estudar o poder discricionário da Administração que, em certos atos a lei permite ao agente proceder a uma avaliação de conduta, ponderando os aspectos relativos à conveniência e à oportunidade da prática do ato. Esses aspectos que suscitam tal ponderação é que constituem o mérito admi-nistrativo.8

O controle dos atos discricionários (especialmente o jurisdicional) tem contornos complexos. Hoje, contudo, não há quem sustente que tais

6 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 926. 7 DI PIETRO. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 14.8 CARVALHO FILHO, op. cit., p. 111.

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tipos de atos sejam imunes ao controle pelo Poder Judiciário. Discute-se apenas a intensidade e os limites do controle.

Não há confundir-se discricionariedade com arbitrariedade. É fundamental ter em vista que discricionariedade, mérito, oportunidade e conveniência não podem servir como rótulos que cubram atos administra-tivos com o manto da imunidade de controle ou mesmo da impunidade.

1.2 Controle interno. Controle externoCom relação ao controle interno, é tema que não desperta maior

cuidado nos manuais e cursos de Direito Administrativo, que são bas-tante econômicos a respeito. Limitam-se, em sua maioria (ao menos as referências consultadas), a estabelecer que é o desempenhado pelos próprios órgãos.

Quanto ao controle externo, é alvo de maior destaque, sobretudo a modalidade jurisdicional. Talvez pela razão singelamente apontada por Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem: “dentre todos os controles o mais importante, evidentemente, é o que se efetua, a pedido dos in-teressados, por meio do Poder Judiciário”.9 Em sentido oposto, porém, Hely Lopes Meirelles defendia a precedência e a maior abrangência do controle exercido pela própria Administração (Poder Executivo):

Assim, temos a considerar com precedência sobre os demais, por sua per-ma nência e amplitude, o controle da própria Administração sobre seus atos e agentes (controle administrativo ou executivo) e, a seguir, o do Legislativo sobre determinados atos e agentes do Executivo (controle legislativo ou parlamentar) e, finalmente, a correção dos atos ilegais de qualquer dos Poderes pelo Judiciário, quando lesivos de direito individual ou do patrimônio público (controle judiciário ou judicial), como veremos nos itens seguintes deste capítulo (itens II, III e IV).10

Referido autor considerava o controle interno mais amplo do que o judicial por contemplar o primeiro juízo de legalidade e de mérito.11 Não discrepa de tal posicionamento a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, segundo a qual o controle interno (ou autocontrole): “tem a maior

9 MELLO, op. cit., p. 890.10 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 571.11 Ibid., p. 574-575.

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abrangência possível; transborda do campo da estrita legalidade para envolver o interesse público (controle de mérito)”.12

Interessa ao desenvolvimento do presente trabalho identificar que a primazia do controle interno pertence aos Advogados Públicos. Num passo seguinte, precisar os contornos desse controle, isto é, definir se contempla apenas a legalidade isoladamente considerada ou se alber-ga outros fatores. E, finalmente, estudar a relação entre os Advogados Públicos e o exame da discricionariedade administrativa. Faz-se ne-cessário, porém, tratar inicialmente do chamado controle judicial ou jurisdicional da Administração Pública.

1.3 Controle jurisdicionalComo antes referido, a doutrina dedicada ao Direito Administra-

tivo é muito mais farta no tratamento do tema do controle jurisdicional da Administração Pública. Em outras palavras, o estudo dos limites do controle jurisdicional sobre a atividade discricionária evoluiu conside-ravelmente, ao passo que o controle interno restou relegado a segundo plano.

De fato, o tema pode ser dividido nos seguintes estágios ou fases: (i) insindicabilidade: (ii) apreciação dos elementos vinculantes (desvio de poder, desvio de finalidade, aplicação da teoria dos motivos de-terminantes); (iii) valoração dos conceitos jurídicos indeterminados; (iv) controle pela aplicação de princípios como a moralidade administra-tiva e a razoabilidade. A tais fórmulas, acrescenta-se a teoria de Gustavo Binenbojm sobre os graus de vinculação à juridicidade administrativa, que será abordada em espaço próprio.

À exceção da construção em torno da insindicabilidade do mérito pelo juiz, as demais permanecem válidas, representando verdadeiras técnicas de estreitamento ou controle do mérito pelo juiz.

No que diz respeito aos limites do controle sobre os atos que en-sejam apreciação discricionária pelo administrador, é de grande valia o alerta de Celso Antônio Bandeira de Mello, que entende existir um cerne que não pode ser penetrado pelo juiz, qual seja, o da conveniência

12 MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 164.

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e da oportunidade do ato. Significa dizer que a discricionariedade do administrador não pode ser simplesmente substituída pela apreciação do órgão julgador, sob pena de invasão de poderes. Pelo menos não o núcleo de subjetividade. Veja-se:13

O campo de apreciação meramente subjetiva — seja por conter-se no interior das significações efetivamente possíveis de um conceito legal fluido e impreciso, seja por dizer com a simples conveniência ou oportunidade de um ato — permanece exclusivo do administrador e inde vassável pelo juiz, sem o quê haveria substituição de um pelo outro, a dizer, invasão de funções que se poria às testilhas com o próprio princípio da independência dos Poderes, consagrado no art. 2º da Lei Maior.

Aliás, o autor fornece outros elementos de suma importância para a identificação dos limites da discricionariedade.14 Em primeiro lugar, a noção de que a discricionariedade reside onde for impossível reconhecer de maneira pacífica e incontrovertível a solução idônea para cumprir de forma excelente a finalidade legal. Além disso, observa que a discriciona-riedade remanesce mesmo após decorrido o processo interpretativo. E, por fim, a constatação de que haverá discricionariedade fora das zonas de certeza negativa e de certeza positiva.

A seu turno, José dos Santos Carvalho Filho afirma:

O que é vedado ao Judiciário, como corretamente têm decidido os Tribunais, é apreciar o que se denomina normalmente de mérito administrativo, vale dizer, a ele é interditado o poder de reavaliar critérios de conveniência e opor tunidade de destacar que, a se admitir essa reavaliação, estar-se-ia possi bilitando que o juiz exercesse também função administrativa, o que não corresponde obviamente à sua competência. Além do mais, a invasão de atri buições é vedada na Constituição em face do sistema da tripartição de Poderes (art. 2º).15

A jurisprudência fornece diversos casos de limitação da discriciona-riedade pelo órgão jurisdicional, em especial em decorrência aplicação do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. São exemplos: a

13 Ibid., p. 946.14 Ibid., p. 918, 925, 929.15 CARVALHO FILHO, op. cit., p. 842.

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aplicação da razoabilidade em sede de fixação de sanção disciplinar e de estipulação de critérios de idade em concurso público.

1.4 Considerações sobre a Advocacia Pública e ControleA Advocacia Pública abrange, além da Advocacia-Geral da União, as

Procuradorias dos Estados e dos Municípios (que possuam Procuradoria organizada), mas o foco principal do presente trabalho é AGU.

A atuação consultiva da AGU se dá por meio da consultoria e do assessoramento jurídicos aos diversos órgãos do Poder Executivo Federal, garantindo segurança jurídica aos atos administrativos que serão pra-ticados, notadamente quanto à materialização das políticas públicas, à viabilização jurídica das licitações e dos contratos e, ainda, à proposição e análise de medidas legislativas (projetos de lei, medidas provisórias, decretos e resoluções, entre outros) necessárias ao desenvolvimento e aprimoramento do Estado Brasileiro.

A Constituição de 1988, ao tratar da Advocacia-Geral da União, não utiliza a expressão controle, consoante se verifica da leitura do artigo 131:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua orga-ni za ção e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurí dico do Poder Executivo.

A doutrina também costuma reservar o estudo do controle à Controladoria-Geral da União, ao Ministério Público, ao Judiciário e ao Tribunal de Contas (ou Tribunais de Contas).

José dos Santos Carvalho Filho aponta que a revisão e fiscalização são os elementos básicos do controle.16 Nada obstante, é possível enxergar nas atividades de consultoria e assessoramento a natureza de controle, se compreendido o seu sentido a partir das lições de Marçal Justen Filho. Marçal distingue o controle em duas modalidades, ou tipos: o controle-fiscalização e o controle-orientação. Nas palavras do administrativista:

16 Ibid., p. 781.

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Há o controle-fiscalização, que indica o acompanhamento e a fiscalização. É nesse sentido que o art. 71, I, da CF/88 estabelece que o controle externo exercitado pelo TCU abrange a apreciação das contas prestadas anualmente pelo Presidente da República. Mas também existe o controle-orientação, consistente na determinação da conduta alheia. É nessa acepção que o TCU determina que o órgão administrativo adote providências indicadas ou assine prazo para adoção de providências necessárias ao cumprimento da lei (CF/88, art. 71, VIII e IX).17

O sentido de orientação já podia ser encontrado no ensinamento de Hely Lopes Meirelles, ainda que de forma mais discreta: “controle, em tema de administração pública, é a faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional do outro”.18

É nessa segunda categoria de controle, a de orientação, que as atividades consultivas desempenhadas pelos integrantes da Advocacia Pública podem ser enquadradas. Os pareceres dos Membros da AGU, em regra, não são vinculantes, de acordo com a legislação em vigor. Porém, embora lhes falte poder para determinar a conduta alheia, tal circunstância não afasta seu caráter de controle-orientação.

Carlos Figueiredo Mourão19 destaca que o controle interno de le-galidade da Administração compete exclusivamente à Advocacia Pública:

O Estado de Direito impõe à Administração Pública que seus atos estejam vinculados à lei, e, para tanto, foram criados sistemas de controle desses atos. Assim, a execução de suas obrigações constitucionais se dá por intermédio de entes de direito público de caráter permanente, cujos membros ingressaram na carreira mediante concurso. Dentre eles, os procuradores públicos, que têm a obrigação legal e exclusiva de analisar atos administrativos à luz do princípio da legalidade.

Note-se que a obrigação mencionada pelo autor não é apenas legal, mas decorre da própria Constituição. Também Rommel Macedo enxerga no assessoramento e na consultoria verdadeiras funções de controle, nos termos da lição abaixo transcrita:

17 JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo.18 MEIRELLES, op. cit., p. 570.19 MOURÃO. A Advocacia Pública como instituição de controle interno da Administração. In: GUEDES; SOUZA

(Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli, p. 136.

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Percebe-se que a advocacia do Estado, ao consistir no controle de legalidade e de legitimidade, pode sim se caracterizar, sob o prisma funcional material, como um verdadeiro integrity branch (ACKERMAN, 2000, p. 694-696) ou poder de fiscalização, o que, no sistema presidencialista de governo, mostra-se imprescindível para que a politização da Administração Pública não ponha em risco o Estado Democrático de Direito. Promovendo a responsabilização dos agentes públicos, seja preventivamente — por meio da consultoria e do assessoramento jurí dicos — seja na via postulatória — mediante as ações cabíveis — a advocacia do Estado acaba por consistir uma função de controle (MOREIRA NETO, 1994, p. 34) — policy control, na terminologia de Lowenstein (1970, p. 71).20

A faceta de orientação ora defendida não discrepa das orientações de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que vai mais além e visualiza na missão consultiva da Advocacia de Estado um dever de aperfeiçoamento da ordem jurídica:

Compete, ainda, ao Advogado de Estado, no desempenho apropriado desse dever constitucional de aperfeiçoamento da ordem jurídica, aconselhar, per­suadir e induzir os agentes políticos no sentido de adotarem, invariavelmente, todas as providências, normativas ou concretas, que se destinem à afirmação do primado dos valores jurídicos e democráticos, sempre que se apresentem as ocasiões concretas de fazê-lo, dentro ou fora de processo judicial ou administrativo sob seus cuidados.21 (grifos nossos)

A orientação consistirá em indicar ao administrador os parâmetros que seus atos, decisões e procedimentos deverão seguir para preservar a harmonia com o ordenamento jurídico. Há nisso um aspecto preventivo (evitar-se a prática de atos juridicamente defeituosos) e mesmo corretivo (no sentido de revogação ou anulação).

Voltando um pouco à teoria da separação dos Poderes, vê-se que a tradicional tripartição vem recebendo novos influxos. Marçal Justen Filho identifica no Tribunal de Contas da União e no Ministério Público verdadeiros Poderes, nada mencionando, entretanto, em relação à Advocacia Pública.

20 MACEDO. Advocacia-Geral da União na Constituição de 1988, p. 161.21 MOREIRA NETO. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito.

Debates em Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 58.

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Não pode ser negligenciada, entretanto, a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que apregoa a existência de órgãos que não se incluem na tradicional teoria da tripartição. O autor situa a Advocacia-Geral da União como um desses órgãos, conforme se observa:

Segundo, porque proliferam nos Estados contemporâneos inúmeros órgãos que não se incluem em qualquer dos três conjuntos de poderes clássicos, desempenhando, com independência política, uma vasta gama de atri buições setoriais im-portantes, como é o caso dos bancos centrais e dos tribunais constitucionais em vários países, e, no Brasil, dos órgãos encar regados do exercício das funções essenciais à justiça (Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública) e, ainda, dos Tribunais de Contas.22 (grifos no original)

Embora a AGU integre o Capítulo das Funções Essenciais à Justiça, o arcabouço constitucional vigente não lhe reservou qualquer grau de autonomia que permita asseverar que tal instituição não integra, pelo menos do ponto de vista formal, o Poder Executivo.

Estabelecidas as premissas acima, resta consignar que a atuação consultiva dos Advogados Públicos não deve permanecer indiferente às transformações sofridas pelo Direito Administrativo que serão tratadas ao longo deste texto. Ao contrário, pois, como alerta Diogo de Figueiredo, “cada novo instituto de Direito Administrativo que surge abre sempre um novo desafio à Advocacia de Estado”.23 Cabe examinar, destarte, de que forma isso se dará.

2 Transformações no Direito AdministrativoO Direito Administrativo é usualmente descrito como tendo surgido

para limitar o poder estatal perante os cidadãos. É uma visão tradicional que não desperta maior dissenso. Mas Gustavo Binenbojm aponta uma origem diferente. Segundo o autor, o Direito Administrativo teve função justamente oposta, que corresponderia à manutenção dos privilégios do Antigo Regime:

22 MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 152.23 BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização,

p. 63.

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O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas pecu-liares (supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração, dis-cri cio nariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras) representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que a sua superação.24

A origem do Direito Administrativo cria situações contraditórias com o atual estágio de evolução do restante do Direito. Não por outros motivos, Binenbojm propõe a revisão de certos paradigmas do Direito Administrativo.

Das alterações sofridas pelo Direito Administrativo, interessam mais ao tema do controle de legalidade afeto aos integrantes da Advocacia Pública: a crise da lei formal; a constitucionalização do Direito Adminis-trativo e a ascensão dos princípios constitucionais, além do fim da dico-tomia entre atos discricionários e vinculados.

2.1 Crise da lei formalA ambição de racionalidade pura dos iluministas não alcançou os

resultados esperados. Testemunha-se o declínio da lei. A lei perdeu seu posto de representação da vontade popular. Em parte, isso se passa como decorrência da lentidão do processo legislativo tradicional. O Estado contemporâneo acumula competências sucessivamente complexas e específicas, em virtude do avanço tecnológico e da complexidade do pró-prio grupo social. O Parlamento não dispõe de conhecimentos técnicos para acompanhar a velocidade das demandas crescentes da sociedade.

Outro fator que levou à erosão da lei formal foi o fenômeno da inflação legislativa. O excesso de leis pode ser atribuído à noção posi-tivista de completude do ordenamento jurídico (ideal de racionalidade exacerbada própria da modernidade), somado ao aumento das funções do chamado Estado Social. Legislou-se tanto e sobre tantas matérias que o efeito foi o contrário: a lei ficou banalizada.

Gustavo Binenbojm aponta outras causas menos óbvias que con-duziram à crise da lei. Cita como corresponsáveis pelo processo:25 a constatação histórica de que a lei pode veicular a injustiça e fundamentar

24 Ibid.25 Ibid., p. 128-135.

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a barbárie; a vitória do constitucionalismo sobre o legalismo; a criação de uma série de atos normativos infraconstitucionais pelo Executivo; o controle do processo legislativo pelo Executivo.

Quando se cogita da utilização da lei como fundamento da barbá-rie, vem à tona a questão da ascensão do nazismo e do fascismo como episódios que colocaram em xeque o ideal positivista. Bem sintetiza o tema o seguinte comentário de Luís Roberto Barroso:

O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A ideia de que o debate jurídico se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem. Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram barbárie em nome da lei.26

Quanto ao último aspecto, isto é, a captura do processo legislativo pelo Executivo, assume especial relevo no Brasil, notadamente em razão das medidas provisórias de competência do Presidente da República.

2.2 Constitucionalização do Direito AdministrativoPor mais paradoxal que pareça, enquanto a lei perdeu parte de

sua relevância, a Constituição passou a ocupar um lugar central nos ordenamentos jurídicos. É possível identificar o fenômeno deslegalização-constitucionalização. E constatar que, no Brasil, a Constituição assumiu posição outrora reservada ao Código Civil.27

Com a constitucionalização, assumem maior relevo os princípios constitucionais fundamentais, que irradiam sobre toda a pirâmide jurí-dica e incidem mesmo sobre a relação entre particulares (administrados). Dá-se, então, aquilo que Luís Roberto Barroso denomina de filtragem constitucional:

26 BARROSO. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 26.

27 Ibid., p. 43.

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A Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si — com a sua ordem, unidade e harmonia — mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.28

Gustavo Binenbojm assinala que a burocracia provocou relativo atraso na constitucionalização do Direito Administrativo:

Com efeito, embora criado sob o signo do Estado de direito, para solucionar os conflitos entre autoridade (poder) e liberdade (direitos individuais), o direito administrativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico, um processo de descolamento do direito constitucional. A própria descontinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para que o direito administrativo se nutrisse de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se de certa forma alheio às sucessivas mutações constitucionais.29

Com ou sem atraso, é indubitável que a constitucionalização veio para alterar as relações travadas no âmbito do Direito Administrativo. Como resultado, o administrador passou a poder sustentar seus atos diretamente da Constituição — ou mesmo ser compelido a assim pro-ceder — sem o intermédio da lei. Para Binenbojm, a ligação direta da Administração aos princípios constitucionais é o aspecto mais importante da constitucionalização do Direito Administrativo.30

Já Marçal Justen Filho relaciona constitucionalização e atividade interpretativa:

O enfoque constitucionalizante preconizado consiste em submeter a inter pre-tação jurídica de todas as instituições do direito administrativo a uma com-preensão fundada concreta e pragmaticamente nos valores constitu cionais.31

28 Ibid., p. 44.29 Ibid., p. 18-19.30 Ibid., p. 143.31 JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 16.

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Outras consequências da constitucionalização deste ramo jurídico são, segundo Luís Roberto Barroso, a redefinição da ideia de suprema-cia do interesse público e a possibilidade de controle judicial do mérito administrativo.32 É o segundo aspecto que mais interessa ao estudo ora empreendido, pois caberá examinar se esta possibilidade deve ser es-tendida aos integrantes da Advocacia Pública.

2.3 Pós-positivismo. Normatividade dos princípiosComo reação ao positivismo jurídico, surgiu o movimento chamado

pós-positivismo.O pós-positivismo está associado à constitucionalização do Direito,

que trouxe para o centro do debate o papel dos princípios constitucionais fundamentais. Os princípios, antes vistos como meras declarações de in-tenções do legislador, passaram a ser considerados normas efetivas, que ora veiculam comportamentos negativos e que ora impõem ao Estado certas prestações positivas.

Alexandre Santos de Aragão assim sintetiza o que chama de con-cepção pós-positivista da legalidade:

Com efeito, evoluiu-se para se considerar a Administração Pública vin culada não apenas à lei, mas a todo um bloco de legalidade, que incor pora os valores, princípios e objetivos maiores da sociedade, com diversas Constituições (por exemplo, a alemã e a espanhola) passando a submeter a Administração Pública expressamente à “lei e ao Direito”, o que também se infere implicitamente da nossa Constituição e expressamente da Lei do Processo Administrativo Federal (art. 2º, parágrafo único, I). A esta formulação dá-se o nome de princípio da juridicidade ou da legalidade em sentido amplo.33

Já Luís Roberto Barroso assim resume o que compreende por pós- positivismo:

O pós-positivismo identifica um conjunto de idéias difusas, que ultra pas sam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores,

32 BARROSO. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Interesse Público – IP, p. 13-54.

33 ARAGÃO. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. BDA – Boletim de Direito Administrativo, p. 776.

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o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. Com ele, a discussão ética volta ao Direito. O plura-lismo político e jurídico, a nova hermenêutica e a ponderação de interesses são componentes dessa reelaboração teórica, filosófica e prática que fez a travessia de um milênio para o outro.34

Ou seja, se antes era possível cogitar-se da existência de um uni-verso jurídico povoado apenas por regras, o enfoque evoluiu para a convivência entre regras e princípios. Os princípios deixam de ser declarações políticas e tornam-se material de trabalho dos operadores do Direito, no caso os Advogados Públicos. Portanto, o manuseio dos princípios não extrapola os limites do controle de legalidade.

Outra questão não pode ser negligenciada. O jogo de princípios e regras torna mais complexa a atuação do Advogado Público. Os prin-cípios possuem densidade maior do que as regras, mas, por outro lado, propiciam menor objetividade. Assim, a aplicação dos princípios oferece menos segurança jurídica, conquanto amplie os horizontes de atuação desses profissionais.

Nesse sentido, é oportuno sublinhar a posição de Maria Sylvia Di Pietro, ainda que direcionada ao controle judicial dos atos da Admi nistração:

Quando, porém, à lei formal se acrescentam considerações axiológicas, amplia-se a possibilidade de controle judicial, porque, por essa via, poderão ser corri gidos os atos administrativos praticados com inobservância de certos valores ado tados como dogmas em cada ordenamento jurídico.

O controle fica mais difícil porque, em se tratando de valores, são delimitados com muito menos clareza os confins da atuação discricionária. A tarefa do juiz fica muito mais complexa, uma vez que ele passará a perquirir zonas de maior incerteza. Além da maior dificuldade, sua tarefa aumenta, à medida que novos limites se impõem à discricionariedade administrativa.35

Resta nítida, pois, a relação entre o controle da Administração Pú blica e a ascensão dos princípios jurídicos. Corrobora tal afirmativa a lição de Gustavo Binenbojm ora transcrita:

34 BARROSO. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 47.

35 DI PIETRO, op. cit., p. 14.

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A constitucionalização do direito ensejou uma incidência direta dos princípios constitucionais sobre os atos administrativos não diretamente vinculados pela lei. Assim, não há espaço decisório da Administração que seja externo ao direito, nem tampouco nenhuma margem decisória totalmente imune à incidência dos princípios constitucionais.36

Vale assentar ainda que, assim como a noção de legalidade sofreu alteração, algo semelhante ocorreu com a discricionariedade, a qual, como esclarece Maria Sylvia Di Pietro, “não é mais a liberdade de atuação limitada pela lei, mas a liberdade de atuação limitada pelo Direito”.37

2.4 Fim da dicotomia atos vinculados versus discricionários. Graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. Sistematização dos parâmetros de controle judicial dos atos administrativos

Gustavo Binenbojm, conforme será esmiuçado em tópico reser-vado, defende uma concepção ampla do princípio da legalidade, à qual se refere como juridicidade. Para o autor, além disso, não há, na essên-cia, distinção entre os atos vinculados e os atos discricionários. Chega mesmo o autor a propor uma mudança de paradigma neste sentido (da dicotomia ato vinculado versus ato discricionário à teoria dos graus de vinculação à juridicidade). Confira-se:

Como se vê, essa principialização do direito brasileiro acabou por aumentar a margem de vinculação dos atos discricionários à juridicidade. Em outras palavras, essa nova concepção de discricionariedade vinculada à ordem jurí-dica como um todo trouxe a percepção de que não há diferença de natu reza entre o “ato administrativo vinculado” e o “ato administrativo discri cionário”, sendo a diferença o grau de vinculação.38

A ascensão dos princípios no Direito Administrativo tem reflexo direto no controle dos atos administrativos. Assim, Binenbojm cuida de esboçar um esquema para sistematização do grau de controle judicial dos atos administrativos a partir da sua maior ou menor vinculação à juridicidade. Embora a sua proposta seja direcionada ao controle judicial,

36 BINENBOJM, op. cit., p. 308.37 DI PIETRO, op. cit., p. 233.38 BINENBOJM, op. cit., p. 210.

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é válido abordá-la para posterior exame da adequação do seu uso para o controle interno de legalidade a cargo dos membros da Advocacia Pública.

Binenbojm rejeita a predefinição estática da controlabilidade a partir das categorias binárias atos vinculados e atos discricionários. Para ele, o maior grau de vinculação estaria impregnado nos atos vinculados por regras. Nestes casos, decorre como dever imediato para o adminis-trador o de adotar a conduta descrita no relato normativo.

Em seguida, viriam os conceitos jurídicos indeterminados. São exemplos desse tipo de ato as noções de notório saber jurídico e re-putação ilibada. Diante de conceitos indeterminados, o controle seria eminente negativo, devendo o magistrado cingir-se a afastar soluções manifestamente incorretas.

E, por último na escala de vinculação, restariam os atos vinculados por princípios (que, segundo o autor, podem ser constitucionais, legais ou regulamentares). Quanto a estes, que considera indevidamente de-nominados discricionários, Binenbojm sugere o seguinte roteiro:

Assim, após o exame dos elementos vinculados (competência, forma, finali-dade e motivos determinantes), deverá o Judiciário averiguar se o administra-dor, na aplicação de uma norma que lhe permite atuar com certa liberdade de de cisão, observou os princípios constitucionais gerais e os princípios setoriais da Admi nistração Pública (como publicidade, impessoalidade, igualdade, morali dade, eficiência, confiança legítima).39

Além de traçar os degraus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade, afirma Binenbojm que a intensidade do controle juris-dicional dependerá da presença maior ou menor de alguns parâmetros nos atos submetidos a controle. A reprodução integral do esquema do autor seria incompatível com a dimensão deste trabalho, mas é possível alinhavar suas diretrizes fundamentais da seguinte maneira:40

1. Quanto maior o grau de restrição imposto a direitos fundamen-tais, mais intenso deve ser o grau de controle judicial;

2. Quanto maior o grau de objetividade extraível dos relatos nor-mativos aplicáveis à hipótese em exame, mais intenso deve ser o grau de controle;

39 Ibid., p. 229.40 Ibid., p. 235-237.

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3. Quanto maior o grau de tecnicidade da matéria, menos intenso será o controle;

4. Quanto maior o grau de politicidade da matéria, objeto de decisão por agente eleitoralmente legitimado, menos intenso deverá ser o controle; e

5. Quanto maior o grau de efetiva participação social no processo de deliberação que resultou no ato, menos intenso deve ser o grau de controle.

3 Controle do ato administrativo pelo Advogado PúblicoMarçal Justen Filho atesta que o instrumental teórico do Direito

Administrativo se reporta ao século XIX, como, por exemplo, os conceitos de legalidade e discricionariedade administrativa.41

No campo da atuação consultiva dos Advogados Públicos, observa-se que as noções cunhadas naquele século encontram-se bastante enraizadas. Ocorre fenômeno que foi detectado pelo autor acima citado nos seguintes termos:

Em alguns temas, o conteúdo e as interpretações do direito admi nistra tivo per ma nec em vinculados e referidos a uma realidade sociopolítica que há muito dei xou de existir. O instrumental do direito admi nistrativo é, na sua essência, o mesmo de um século atrás.42

No que toca à legalidade e à discricionariedade, a forte vincula-ção a visões ultrapassadas pode ser atribuída, também, à postura dos gestores públicos, que pretendem ver reduzido o poder de controle dos pareceristas e ampliada a sua esfera de atuação. Detecta-se, ainda, algum grau de confusão entre Advocacia de Estado e Advocacia de Governo.

Nota-se que as transformações tratadas nos tópicos anteriores ainda não fazem parte do dia a dia dos integrantes do ramo consultivo da Advocacia Pública. Ou seja, resta aos seus membros implementá-las nos processos administrativos em que funcionam. Dada a multiplicidade de temas em que são chamados a opinar, é fácil imaginar o efeito mul-tiplicador envolvido. Em sentido oposto, a negação das transfor mações

41 JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 15.42 Idem.

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implicará na estagnação do Direito Administrativo, com todos os pre-juízos inerentes.

Gerson dos Santos Sicca, em artigo destinado ao estudo da discri-cionariedade e dos conceitos jurídicos indeterminados, bem sintetizou a relação entre estes temas, a atuação dos gestores públicos, a Advocacia Pública e o controle jurisdicional da Administração:

A redefinição da noção de vinculação não prejudica em nada a Administra-ção. Apenas deixa claro ao administrador público que a interpretação/apli-cação dos preceitos jurídicos, por mais vagos que sejam, deve ser feita com organização e rigor metodológicos. E os órgãos jurídicos têm papel funda-mental nessa tarefa, pois são os principais responsáveis pela indicação dos caminhos corretos a ser seguidos. A melhora na aplicação do Direito pelo administrador garante uma boa Administração e impede que os tribunais alimentem desconfianças, decorrentes do desconhecimento sobre os reais fun damentos que causaram a edição dos atos administrativos.43

O estudo do controle atribuído aos integrantes da Advocacia Pú-blica deve ser contextualizado com o paradigma de Estado vigente e com o modelo de administração adotado.

3.1 Estado Democrático de Direito. Administração gerencialÉ comum fazer referência a três paradigmas de Estado: Estado

Liberal, Estado Social de Direito e Estado Democrático de Direito. O Estado Liberal tem em sua essência a seguinte característica:

igualdade meramente formal. A autonomia privada prepondera, não cabendo ao Estado agir positivamente para interferir nos desníveis sociais. É o Estado que, em suma, existiu no século XIX para garantir a liberdade individual de seus cidadãos, em especial os detentores de posse. Figura o Estado como mero aplicador de leis.

O Estado Social ou Estado de Bem-Estar tem premissas distintas. A igualdade pregada é a igualdade material. O Estado deve atuar de forma positiva para compensar os desníveis sociais. Fala-se, assim, em Estado Provedor. A autonomia pública prepondera de tal forma que os cidadãos são vistos como clientes, isto é, não há estímulo à participação.

43 SICCA. Conceitos indeterminados no direito administrativo e discricionariedade: limites da vinculação do administrador no estado democrático de direito. Revista da AGU, p. 32-33.

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A crítica ao modelo é a de que não conseguiu produzir cidadania. Além disso, o Estado Social assumiu tantas funções que não conseguiu desempenhá-las a contento, demandando um custoso aparato burocrá-tico. Assim, entrou em declínio na década de 70.

Já o Estado Democrático de Direito surge como resposta às defi-ciências dos tipos antecedentes. Seu traço marcante é a busca de maior equilíbrio entre a autonomia privada e a autonomia pública. Surge maior preocupação com a participação da sociedade na gestão das políticas públicas (saúde, educação, trabalho etc.). Aquele que é afetado pela de-cisão da Administração Pública deverá tomar parte nessa mesma decisão.

O surgimento de um modelo não extingue automaticamente os outros. Assim, hoje, no Brasil, embora haja predominância do Estado Democrático de Direito, resistem traços do Estado Liberal e do Social. Quanto aos modelos de administração, podem ser apontados dois principais, o burocrático e o de governança. Vale frisar que, no Estado Liberal, sendo as funções do Estado restritas, não se chegou a cunhar um modelo de administração.

O modelo burocrático weberiano coincide com o Estado Social. No que interessa à presente exposição, tem como marco principal a presença de um corpo de funcionários chamado corpo burocrático. Esses funcio-nários devem possuir certas características que tornariam o modelo, em tese, perfeito, como: (i) rigorosa disciplina e vigilância administrativas; (ii) perspectiva de uma carreira; (iii) seleção por provas; (iv) trabalha em cargos cujos meios de administração não estão dispostos como se fossem uma propriedade pessoal.

No modelo weberiano, a legalidade é colocada no seu sentido restrito. Há rígido controle de procedimento e hierarquia, com pouca concentração nos resultados da ação administrativa. Vigora a máxima segundo a qual somente é dado atuar conforme expressamente autoriza-da em lei formal e material. Existe forte divisão entre público e privado. O modelo entrou em declínio com a crise do Estado Social.

Por seu turno, no modelo de governança, a legalidade não é aban-donada, mas deve ser compreendida sob o vetor do chamado princípio da eficiência (introduzido formalmente no ordenamento nacional com a Emenda Constitucional nº 19). Ou seja, há menos ênfase no controle da

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formalidade do procedimento e maior preocupação com a obtenção dos resultados traçados pela Administração. O rigor formal cede espaço ao cumprimento de metas. O instrumento que contém as metas de desem-penho é o contrato de gestão, elemento chave nesse modelo. Além disso, a dicotomia público-privado do modelo anterior é abrandada.

Outra peça fundamental do modelo é a introdução das agências reguladoras. Sua criação altera a visão tradicional da legalidade porque, a despeito de sua natureza autárquica, possuem função normativa. A ati-vidade de regulação embaralha a noção tradicional de legalidade, pois os regulamentos expedidos pela agência criam direitos e obrigações. Isto é, não possuem o alcance limitado dos chamados decretos regulamentares do Presidente da República, mas também não podem ser equiparados com perfeição às leis emanadas do processo legislativo “normal”.

Dois aspectos merecem relevo. O primeiro é a sobreposição de mo-delos. Com efeito, embora o modelo gerencial tenha sido introduzido em grande parte pela EC nº 19, o Estado brasileiro ainda segue, em parte, as linhas mestras do modelo burocrático weberiano. Sobre a sobreposição de modelos e as incongruências geradas, merecem comentário as con-siderações de Maria Sylvia Di Pietro. A autora alerta para a omissão do legislador federal em baixar as normas legais hábeis à implantação de uma verdadeira administração gerencial. Critica, ainda, a manutenção de leis que considera excessivamente formais, citando a Lei de Licitações e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao final, assevera:

Todos esses fatos, que revelam grande contradição de objetivos do próprio Governo, alguns voltados para o gerenciamento, outros voltados para a ma-nutenção e até o aumento da burocracia em determinados setores, certamente contribuem para um distanciamento entre o discurso e a prática, entre a lei e os fatos, entre o Direito posto e o Direito aplicado, em franco desprestígio do princípio da legalidade e da própria Constituição que o consagra.44

Outro ponto a destacar é que o modelo burocrático não é intei-ramente ruim, apesar do sentido pejorativo que a palavra burocracia tomou. Se examinado o modelo burocrático na sua concepção original,

44 DI PIETRO, op. cit., p. 61-62.

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verifica-se que seu pecado é a legalidade estrita. Tal pecado não deve ser reproduzido pela Advocacia Pública.

Extrai-se do estudo acerca do Estado Democrático de Direito e do modelo de administração gerencial que o controle de legalidade deve ser coerente com o modelo gerencial, em especial no que toca à questão da eficiência. Ou seja, não há como conjugar as características de tais mo-delos com um controle de legalidade em sentido restrito, isto é, limitado à letra fria da lei. Os integrantes da Advocacia Pública não podem se limitar a uma atuação meramente burocrática e formal. Da mesma ma-neira, mostra-se inaceitável defender que os atos discricionários estejam imunes a qualquer tipo de controle por parte dos Advogados Públicos.

3.2 Controle de legalidade. Evolução. Controle de juridicidadeO controle de legalidade, como é natural, deve ser congruente com

a noção de princípio de legalidade em vigor. Em decorrência da crise da lei formal, da constitucionalização do Direito Administrativo e do afloramento dos princípios, a legalidade não mais pode ser enquadra-da como vinculação positiva à lei. Recorre-se, uma vez mais, a Gustavo Binenbojm, que assim relaciona os fatores:

Contudo, pelas razões já estudadas acima, atinentes à crise da lei formal, assim como em virtude da emergência do neoconstitucionalismo, não mais se pode pretender explicar as relações da Administração Pública com o ordenamento jurídico à base de uma estrita vinculação positiva à lei. Com efeito, a vinculação da atividade administrativa ao direito não obedece a um esquema único, nem se reduz a um tipo específico de norma jurídica — a lei formal. Essa vinculação, ao revés, dá-se em relação ao ordenamento jurídico como uma unidade (Constituição, leis, regulamentos gerais, regulamentos setoriais), expressando-se em diferentes graus e distintos tipos de normas, conforme a disciplina estabelecida na matriz constitucional.45

Não se olvide que, sendo a Constituição a fonte maior do ordena-mento, o controle de legalidade passa pelo controle de constitucionalidade.

Diante das mutações sofridas pelo Direito Administrativo, tornou-se insuficiente admitir o controle meramente formal e distante de lega-lidade. Daí ser preferível falar em termos de controle de juridicidade, locução empregada por Gustavo Binenbojm, que assim a aborda:

45 BINENBOJM, op. cit., p. 142.

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A ideia de juridicidade administrativa traduz-se, assim, na vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo, a partir do sistema de princípios e regras delineados na Constituição.46

Em resumo, a juridicidade significa a compatibilidade do ato admi-nistrativo com o ordenamento jurídico (considerado na sua integridade). Esse sentido também está presente na doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que propugna que o princípio da legalidade, em acepção ampla, exige a conformidade da Administração não apenas com a lei, em seu aspecto formal, mas com o Direito, incluídos aí os princípios inerentes ao ordenamento jurídico.47 É fundamental esclarecer que a juridicidade não exclui a legalidade. Na realidade, convivem. Gustavo Binenbojm trata desta relação nos termos seguintes:

Isso significa que a atividade administrativa continua a realizar-se, via de regra, (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Consti tuição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação da legalidade com outros prin cípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição).48

Também os Advogados Públicos devem exercitar o controle de juri dicidade, ou melhor, estão obrigados a fazê-lo. Tal controle deverá abarcar, conforme o caso concreto: o exame da legalidade, da constitu-cionalidade, a aplicação dos princípios, a ponderação da razoa bilidade e da proporcionalidade. E deverá estender-se também sobre os atos classi ficados tradicionalmente como discricionários.

Cabe assentar que, assim como a noção de legalidade sofreu alte-ração, algo semelhante ocorreu com a discricionariedade, a qual, como esclarece Maria Sylvia Di Pietro, “não é mais a liberdade de atuação limitada pela lei, mas a liberdade de atuação limitada pelo Direito”.49

46 Ibidem, p. 144.47 Ibidem, p. 137.48 Ibidem, p. 143.49 Ibidem, p. 233.

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3.3 Controle de juridicidade dos atos discricionários e Advocacia Pública

Houve um momento em que cogitar da sindicabilidade dos atos discricionários era dogma, o que dava ensejo a constantes abusos e ar-bitrariedades em nome do mérito administrativo, da conveniência e da oportunidade. Posteriormente, a doutrina evoluiu, fosse através da pos-sibilidade de controle dos elementos vinculados do ato, ou da teoria dos motivos determinantes e, mais recentemente, da invocação dos princípios da moralidade administrativa, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Infelizmente, porém, tais avanços ainda não parecem ter atingido o controle desempenhado pelos Advogados Públicos, pelo menos no plano teórico. Identifica-se, pois, um espaço a ser preenchido por esses profissionais integrantes das funções essenciais à justiça.

Registre-se, aliás, o posicionamento de Angélica Moreira Dresch da Silveira que relaciona o grau de discricionariedade com a vulnerabilidade das licitações e contratações públicas à corrupção.50 A autora destaca, ainda, o papel dos Advogados Públicos que analisam editais de licitação e minutas de contratos administrativos na prevenção da corrupção. É possível afirmar, portanto, que o exame dos atos discricionários está intimamente ligado à citada prevenção. Em palavras diferentes, negar a possibilidade desse controle seria deixar uma porta aberta para ativi-dades lesivas ao interesse público.

Não deve ser olvidado o ponto de vista de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem a ilegalidade revestida de aparente discricionarie-dade é mais grave do que a ofensa aberta à lei:

Esta forma de ilegalidade não é menos grave que a anterior. Pelo contrário. Revela maior grau de periculosidade para o sistema normativo e para a ga-rantia da legalidade, justamente porque, não sendo tão perceptível, pode, às vezes, escapar das peias da lei, propiciando à Administração subtrair-se inde-vi damente ao crivo do Poder Judiciário, se este se mostrar menos atento às pecu liaridades do Direito Administrativo ou cauteloso demais na investigação dos atos administrativos.51

50 SILVEIRA. A função consultiva da Advocacia-Geral da União na prevenção da corrupção nas licitações e contratações públicas. Debates em Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 59-91.

51 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 944.

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Também cumpre destacar que Maria Sylvia Zanella Di Pietro traz conceito de discricionariedade coerente com a noção de controle de legalidade em sentido amplo aqui defendida (controle de juridicidade). Afirma a autora:

Hoje, pode-se definir a discricionariedade administrativa como a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar os casos concretos, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o Direito.52

Se todas as soluções devem ser válidas perante o Direito, a discri-cionariedade está aberta ao controle de juridicidade desempenhado pelos Advogados Públicos. Além disso, também as ferramentas de estrei-tamento ou limitação da discricionariedade possuem natureza jurídica, como, dentre outros, a proporcionalidade. Se a proporcionalidade é um princípio jurídico (e, portanto, norma) e um mecanismo de controle da discricionariedade administrativa, não existe razão que impeça a sua aplicação pelo Advogado Público no exercício de sua função de controle de juridicidade.

Ademais, o número de atos discricionários é crescente, fato que só aumenta a necessidade do respectivo controle. Ou seja, negar a incidência do controle sobre os atos discricionários significaria deixar uma grande parcela livre dessa relevantíssima atuação.

Destaque-se que o controle interno desempenhado pela Advocacia Pública é muito mais apropriado para o controle dos atos discricioná-rios do que o controle externo. Isto se passa porque o Advogado pode ser chamado a opinar sobre a viabilidade jurídica do ato desde o seu nascedouro. E, também, pela proximidade com os gestores e técnicos envolvidos.

Note-se, a propósito, que Maria Sylvia Di Pietro cita a dificuldade que o Judiciário enfrenta na delimitação entre legalidade e discriciona-riedade, nos termos abaixo:

Por outro lado, as dificuldades em entender onde termina a legalidade e co meça a discricionariedade administrativa levam o Poder Judiciário, até

52 DI PIETRO, op. cit., p. 233.

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por como dismo, a deter-se diante do mal definido “mérito” da atuação administrativa, permitindo que prevaleça o arbítrio administrativo onde deveria haver discricionariedade exercida nos limites estabelecidos em lei.53

3.4 Missão do Advogado Público e controle jurisdicional. Princípio da eficiência. Prevenção da improbidade. Controle de juridicidade e resgate do processo administrativo

Além das razões acima expostas, é importante ressaltar que a pos-sibilidade de controle do Advogado Público sobre os atos ditos discricio-nários, nos termos propostos pelo presente trabalho, está intimamente relacionada com o princípio da eficiência, consagrado no artigo 37, caput, da Constituição da República de 1988 (Emenda Constitucional nº 19/98).

Consoante aduz José dos Santos Carvalho Filho, o princípio da efi-ciência não alcança apenas os serviços públicos prestados à coletividade, mas também os serviços administrativos internos das pessoas federativas e das pessoas a ela vinculadas.54

Diogo de Figueiredo Moreira Neto alude ao dever de a Advocacia Pública buscar o constante aperfeiçoamento da ordem jurídica. Tal ângulo de análise nada mais é do que relacionar o controle de juridicidade com a eficiência. A passagem abaixo reproduzida bem ilustra sua posição:

É, pois, nesse sentido qualitativo, que passa a ter especial significado a espe-cialíssima busca da eficiência de desempenho por parte dos agentes das funções essenciais à justiça: uma qualidade sempre estimável, embora nem sempre mensurável, por critérios que espelhem fielmente a efetividade social re sultante da atuação das Procuraturas, enquanto órgãos dispostos pela Cons-tituição, tanto para a sustentação, como para o aperfeiçoamento da justiça na ordem jurídica.55

Analisando o problema sob a ótica da eficiência, resulta que pouco adiantaria o Advogado Público silenciar sobre aspectos dos atos admi-nistrativos que mais tarde poderão ser objeto de ampla análise pelo Judiciário. Ou seja, o controle de juridicidade teria pouco ou nenhum

53 Ibidem, p. 38.54 CARVALHO FILHO, op. cit., p. 20.55 MOREIRA NETO. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito.

Debates em Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 53.

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resultado, o que redundaria na anulação ou revogação de atos que po-deriam ser preservados, acaso seguidas as orientações do parecerista.

Também não deve ser negligenciado que, consoante expõe Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em outra obra,56 o controle judicial é um controle de correção por excelência. Quer dizer: em regra, o Judiciário só vai agir diante de uma ilegalidade subjetiva. Decorre daí que, ainda em razão da eficiência, o Advogado Público deve, de forma preventiva, alertar a Administração para que afaste eventual ilegalidade (objetiva ou subjetiva).

Há certa similitude entre a atividade do consultor e a do juiz, pois ambos interpretam a lei na busca da solução correta e imparcial. Como apregoa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o consultor não atua como re-presentante da parte, mas sim na qualidade de defensor do interesse público primário:

O papel do advogado público que exerce função de consultoria não é o de re presentante da parte. O consultor, da mesma forma que o juiz, tem de inter pretar a lei para apontar a solução correta; ele tem de ser imparcial, por que pro tege a legalidade e a moralidade do ato administrativo; ele atua na de fesa do interesse público primário, de que é titular a coletividade, e não na defesa do interesse público secundário, de que é titular a autoridade admi nistrativa.57

Já Fábio Medina Osório faz importante alerta sobre a necessidade do controle preventivo eficiente da improbidade administrativa:

A crise da Lei Geral de Improbidade Administrativa tem múltiplas facetas e expressa, em última análise, uma crise global das instituições fiscalizadoras. Há que se resgatar uma hermenêutica geral em torno ao fenômeno da im-

probidade e bem assim fomentar postura comprometida com a eficiência e resultados por parte das instituições de controle. Adotar critérios razoáveis, seguros e previsíveis, na compreensão dos atos ímprobos, equivale a percorrer o caminho institucional do controle eficiente sobre a má gestão pública, sem descurar dos mecanismos preventivos, tão ou mais importantes.58

56 MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 168.57 DI PIETRO. Parecer sobre a exclusividade das atribuições da carreira de Advogado da União. Debates em

Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 20.58 OSÓRIO. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública: corrupção: ineficiência, p. 383.

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Noutro giro, a advocacia consultiva assume importante papel na prevenção de litígios desnecessários. De fato, a submissão de pleitos administrativos a parecer jurídico fornece às autoridades fundamento seguro para o reconhecimento de direitos ainda na fase não litigiosa dos respectivos processos. Sem embargo, eventuais decisões contrárias aos requerentes, desde que solidamente fundadas, reduzem o ímpeto de recurso ao processo judicial. E, mesmo que o administrado venha a fazer uso da via judicial, maiores serão as chances de êxito da pessoa jurídica assessorada.

Numa visão otimista, haveria verdadeiro resgate ou construção de um efetivo processo administrativo, o que contribuiria para a redução da enorme massa de processos que assola o Judiciário, roubando-lhe a eficiência. A excessiva judicialização também é prejudicial para os admi-nistrados e acaba por acometer o próprio Executivo, que passa a ter que administrar uma massa enorme de processos judiciais que apresentam custos onerados pela incidência de juros e honorários. É dizer: quanto mais amplo e melhor o controle de juridicidade a cargo dos Advogados Públicos, menor o risco de demandas que não podem ser sustentadas pelo Estado.

3.5 Limites ao controle dos atos discricionários pelo Advogado PúblicoCuidou-se, até o momento, de defender que a atividade discricio-

nária da Administração não pode ficar livre da atuação dos integrantes da Advocacia Pública. Resta, agora, tecer algumas considerações sobre a intensidade do controle e dos seus limites.

Com relação ao grau de intensidade, parece possível, diante da ausência de parâmetros específicos, aproveitar os ensinamentos que Gustavo Binenbojm direcionou ao controle jurisdicional (explicitados no Capítulo II). Isto é, a intensidade do controle a cargo dos Advogados Públicos variará de acordo com os seguintes critérios: grau de restrição a direitos fundamentais; grau de objetividade extraível do relato nor-mativo; grau de tecnicidade da matéria; grau de politicidade da matéria e grau de participação efetiva e consenso obtido em torno da decisão administrativa.

Descaberia cogitar daquilo que Afonso Rodrigues Queiró, citado por Maria Sylvia Di Pietro, chama de dupla gestão quando se refere aos

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limites também do controle judicial da Administração.59 O controle é de juridicidade, não pode ensejar usurpação de competência naquilo que comportar análises técnicas outras que não relacionadas com a ciência do Direito.

Ronaldo Jorge Araujo Vieira Junior,60 ao tratar da participação da Advocacia-Geral da União na formulação de políticas públicas, também cuidou de delinear os limites de sua atuação, merecendo reprodução o trecho abaixo:

Essencial, contudo, que se demarque, desde logo, o campo de atuação da Advocacia-Geral da União e de seus órgãos, quando se trata de políticas públicas.

Essa atuação pauta-se na busca da conformação, da higidez e da sustenta bi li-dade jurídico-constitucional dessas políticas, ou seja, cuida-se de, constante-mente e em todas as etapas, aferir sua compatibilidade e adequação com as balizas constitucionais e do ordenamento jurídico infraconstitucional.

O mérito dessas políticas públicas, de outra parte, há de ser fixado por aqueles legítima e constitucionalmente designados a exercer a direção superior da administração federal, ex vi do art. 84, II, da Constituição Federal: o Presidente da República e os Ministros de Estado.

Em palavras outras, o Advogado Público não formula políticas nem administra os órgãos e entidades do Poder Executivo. Não se olvide, pois, que objetivo do controle deve ser o de evitar abusos. Não pode haver atuação substitutiva. Competirá ao Advogado Público registrar o abuso travestido de discricionariedade e recomendar ao gestor que se abstenha da prática do ato. Diante de uma verdadeira situação que comporte juízo discricionário, não poderá ocorrer a substituição da discricionariedade do gestor pela discricionariedade do Advogado Público. Em especial se a matéria sob exame comportar alta complexidade técnica, hipótese em que deverá prevalecer a expertise dos gestores. Tal assertiva deflui da seguinte observação de Gustavo Binenbojm acerca de casos que desafiam a atuação segura do Judiciário sobre atos do Executivo:

59 DI PIETRO, op. cit., p. 75. 60 VIEIRA JUNIOR. A advocacia pública consultiva federal e a sustentabilidade jurídico constitucional das polí ticas

públicas: dimensões, obstáculos e oportunidades na atuação da Advocacia-Geral da União. In: GUEDES; SOUZA (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Jus tiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli, p. 442.

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Com efeito, naqueles campos em que, por sua alta complexidade técnica e dinâmica específica, falecem parâmetros objetivos para uma atuação segura do Poder Judiciário, a intensidade do controle deverá ser tendencialmente menor. Nestes casos, a expertise e a experiência dos órgãos e entidades da Administração em determinada matéria poderão ser decisivas na definição da espessura do controle.61

A limitação ora examinada pode ser estendida ao controle interno de juridicidade reservado aos Advogados Públicos, isto é, este deverá ceder espaço ao conhecimento técnico dos gestores, em assuntos que assim o demandem. Em casos tais, o controle limitar-se-á à verificação da sustentabilidade dos argumentos apontados pelo administrador.

Em resumo, se, após o exame de juridicidade o ato administrativo ainda estiver situado numa zona cinzenta em que não há como apontar a melhor solução, deverá prevalecer a decisão do gestor, e não a do Advogado Público, porque administrar é uma atribuição conferida ao primeiro e não ao segundo.

ConclusõesOs Advogados Públicos exercem controle dos atos da Administração.

Cuida-se de controle-orientação. Tal controle engloba e transcende a le-galidade. Não há como cogitar-se, hoje, de mero controle de legalidade formal, ainda mais se considerado o resultado do somatório crise da lei, constitucionalização do Direito e ascensão dos princípios ao nível de normas jurídicas.

Impossível imaginar controle de legalidade sem a influência da constitucionalização e do pós-positivismo do Direito Administrativo. O controle interno tradicionalmente referido como de legalidade, de competência exclusiva dos integrantes da Advocacia de Estado, não pode ser dissociado da feição que a própria legalidade e mesmo a discricio-nariedade assumem dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito e do modelo de gestão Gerencial.

Os Advogados Públicos possuem um arsenal de controle mais abrangente, que pode ser melhor qualificado como controle de juridicida-de, que traduz a compatibilidade com o ordenamento jurídico concebido

61 BINENBOJM, op. cit., p. 225.

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na sua integridade. Os responsáveis pelo controle de juridicidade tran-sitam num mundo mais complexo, habitados por regras e princípios.

O controle de juridicidade não se limita aos atos tidos por vincu-lados, mas também aos discricionários. Tal dicotomia absoluta, de resto, mostra-se questionável. É mais apropriado falar-se em diferentes graus de vinculação à juridicidade. Como demonstrado ao longo da exposição, as ferramentas utilizáveis para o controle desta espécie de atos pertencem ao campo da ciência jurídica e a sua utilização em nada deve melindrar os administradores públicos. Muito pelo contrário.

Se não há espaço discricionário da Administração exterior ao Direito e se compete ao Advogado Público, com exclusividade, exercer o controle interno de juridicidade da Administração, é natural que esta atividade inclua os denominados atos discricionários, guardados os devidos limites.

O grau do controle sob atribuição do Advogado Público não deve ser colocado num patamar inferior ao que é tradicionalmente reservado ao Poder Judiciário. Imaginar-se o contrário seria preconizar um controle inócuo e, pois, incompatível com o princípio constitucional da eficiência administrativa.

Quanto maior a vinculação do ato à juridicidade, mais intenso será o nível de controle a serviço do Advogado Público e vice-versa.

Se, por um lado, não há instâncias imunes a controle, é induvi-doso que ao Advogado Público não é dado substituir-se ao Gestor ou Administrador Público. Isto é, o objetivo em vista deve ser o de coibir abusos, não de trocá-los pela vontade ou opinião pessoal do parecerista.

Uma sociedade cada vez mais complexa exige a construção de uma Administração igualmente complexa. E, a seu turno, mecanismos de controle mais complexos e completos. Tais desafios só aumentam a responsabilidade dos Advogados do Estado (independentemente das esferas federativas), que devem ocupar todos os espaços de atuação e laborar para a formação de um autêntico Estado Democrático de Direito.

Naturalmente, as ideias tratadas neste estudo não poderiam ali-mentar a pretensão de esgotamento dos temas enfrentados. Mas, ao menos, buscou-se provocar o debate e a reflexão em torno de assuntos que possam conduzir ao aperfeiçoamento da Advocacia Pública.

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Reflections on Control, Legality and Discrecionarity

Abstract: This year, The Office of the Attorney General of the Union completes twenty five years of constitutional existence. There is so much to celebrate in many areas. Not, however, in terms of legal control of the Public Administration, especially the so called discretionary acts. This text aims to study how the last changes in Administrative Law impact this kind of control.

Key words: Public Administration. Brazil. Control. General Attorney of the Union.

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Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra contida no artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941?Márcio Fernando Bouças LaranjeiraAdvogado da União em exercício na Procuradoria-Regional da União – 2ª Região/RJ. Gra-duado em Direito pela UFRJ. Pós-Graduado em Direito (especialização) pela UnB. Mestrando em Direito pela UNIRIO.

Resumo: A proteção do patrimônio histórico e cultural é medida indis-pensável para a preservação da identidade nacional, sendo o tombamento um dos instrumentos destinados a tal fim. A imposição de restrições ao uso e disposição dos bens de relevância histórica e cultural reflete o que se convencionou chamar “domínio eminente”, poder este decorrente da própria soberania do Estado. Assim, todos os bens, móveis ou imóveis, públicos e privados estão sujeitos ao tombamento, sem que se fale em mácula ao direito de propriedade. No entanto, surge divergência quanto à possibilidade de tombamento de bens públicos pertencentes à União por Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, assim como bens dos Estados-Membros serem declarados tombados por Municípios. Apesar de a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural competir a todos os entes públicos (competência comum), impende considerar que os interesses tutelados pelos entes de maior abrangência não poderão se submeter à satisfação de interesses dos entes de menor extensão, sob pena de se colocar em risco o equilíbrio que marca a federação. O presente estudo buscará analisar tal questão, confrontando os possíveis argumentos contrários e favoráveis à aplicação por analogia da regra da “abrangência de interesses” que fundamenta o artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941.

Palavras-chave: Direito administrativo. Proteção do patrimônio cultural. Tombamento. Bens públicos. Abrangência de interesses.

Sumário: 1 Introdução – 2 Do tombamento segundo a legislação pátria – 3 Da abrangência de interesses e o tombamento de bens públicos – 4 Con clusão – Referências

1 IntroduçãoA imposição de restrições à propriedade de bens pertencentes aos

entes da federação é matéria pouco citada pelos administrativistas. Em regra, limita-se o estudioso a analisar as modalidades de intervenção na

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propriedade de forma genérica. Quando muito, destaca-se a regra do artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941 que, ao tratar da desapro-priação, estabelece que os Estados-Membros só podem desapropriar bens dos Municípios e nunca da União (cujos bens não podem ser desapro-priados por qualquer outro ente), enquanto os Municípios não podem desapropriar bens públicos que não sejam de sua propriedade.

A norma em questão tem por fundamento não a hierarquia — inexistente entre os entes da federação, já que todos são dotados de competências próprias, encontrando-se em idêntico patamar hierárquico-normativo —, mas a abrangência ou preponderância de interesses.

Em outras palavras, quando se permite que a União desaproprie bens dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios, asse-gura-se que o interesse nacional seja alcançado; já os Estados-Membros, porque defendem interesses de âmbito regional, apenas podem desapro-priar bens dos Municípios, garantindo-se que bens da União não sejam destinados à satisfação de interesses de menor extensão. Por fim, aos Municípios, titulares de interesses locais, só restaria a desapropriação de bens particulares.

Neste sentido, assevera José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 755):

Embora seja possível, a desapropriação de bens públicos encontra limites e condições na lei geral de desapropriações. A possibilidade expropriatória pressupõe a direção vertical das entidades federativas: a União pode desa-propriar bens dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e os Estados podem desapropriar bens do Município. Assim sendo, chega-se à conclusão de que os bens da União são inexpropriáveis e que os Municípios não têm poder expropriatório sobre os bens das pessoas federativas maiores.A despeito de não ser reconhecido qualquer nível de hierarquia entre os en-tes federativos, dotados todos de competências próprias alinhadas no texto constitucional, a doutrina admite a possibilidade de desapropriação pelos entes maiores ante o fundamento da preponderância do interesse, no qual está no grau mais elevado o interesse nacional, protegido pela União, depois o regional, atribuído aos Estados e Distrito Federal, e por fim o interesse lo-cal, próprio dos Municípios. Aliás, esse fundamento foi reconhecido expres-samente em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em litígio que envolvia a União e Estado-membro.

No entanto, quanto às demais modalidades de intervenção na pro-priedade não há qualquer dispositivo de igual jaez. Assim, na ausência de

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Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 103

regramento legal expresso, caberá ao intérprete encontrar a adequada solução, recorrendo à analogia e aos princípios gerais de direito, realizan-do uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. A questão, portanto, não se resolverá pela mera subsunção do fato a uma norma.

Para fins deste breve estudo, será analisada especificamente a possibilidade de tombamento de bens públicos por qualquer ente da federação, independentemente do interesse tutelado (nacional, regional ou local). O que se buscará, ao cabo, é definir se a restrição prevista no Decreto-Lei nº 3.365/1941 pode ser aplicada também para o tombamen-to, de modo a evitar que Estados-Membros e Distrito Federal declarem tombados bens da União e que Municípios declarem tombados bens da União e dos Estados-Membros.1

2 Do tombamento segundo a legislação pátriaNos termos da doutrina administrativista, o Poder Público tem a seu

dispor duas modalidades de intervenção na propriedade: (i) intervenção supressiva e (ii) intervenção restritiva. Na primeira, como a denominação já deixar antever, o Poder Público intervém na propriedade alheia supri-mindo-a, com a transferência coercitiva ao seu patrimônio de um bem de terceiro. Tal modalidade de intervenção configura desapropriação. A segunda modalidade, dita restritiva, não retira a propriedade, apenas impõe ao seu titular obrigações para o exercício regular de tal direito real. Estão incluídas nesta categoria a limitação administrativa, a servidão administrativa, a requisição, a ocupação temporária e o tombamento.

Neste sentido, ensina José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 717):

A intervenção restritiva é aquela em que o Estado impõe restrições e con-dicionamentos ao uso da propriedade, sem, no entanto, retirá-la de seu dono. Este não poderá utilizá-la a seu exclusivo critério e conforme seus próprios padrões, devendo subordinar-se às imposições emanadas pelo Poder Público, mas, em compensação, conservará a propriedade em sua esfera jurídica. [...]Intervenção supressiva, a seu turno, é aquela em que o Estado, valendo-se da supremacia que possui em relação aos indivíduos, transfere coercitivamente para si a propriedade de terceiro, em virtude de algum interesse público previsto na lei. O efeito, pois, dessa forma interventiva é a própria supressão da propriedade das mãos de seu antigo titular.

1 Não se discute o tombamento de bens do Distrito Federal por Municípios, por estes não existirem no território daquele, nos termos do artigo 32, caput, da Constituição da República.

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Observe-se, portanto, que o tombamento — modalidade de inter-venção restritiva — não leva à perda da propriedade, impondo sim-plesmente obrigações destinadas a manter a integridade dos bens que apresentem relevância histórica, arquitetônica, paisagística, urbanística ou cultural. Todavia, a limitação imposta ao proprietário claramente interfere na liberdade de uso, gozo e disposição do bem, como destaca Maria Sylvia Zanella di Pietro (2009, p. 124):

O tombamento implica limitação perpétua ao direito de propriedade em benefício do interesse coletivo; afeta o caráter absoluto do direito de propriedade; acarreta ônus maior do que as limitações administrativas, porque incide sobre imóvel determinado.

Na mesma vertente, assevera com maestria Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2009, p. 421-422):

O tombamento, previsto no art. 216, §1º, da Constituição Federal, pode ser conceituado como a espécie de intervenção ordinária e concreta do Estado na propriedade privada, limitativa de exercício de direitos de utilização e de disposição, gratuita, permanente e indelegável, destinada à preservação, sob regime especial, dos bens de valor cultural, histórico, arqueológico, artístico, turístico ou paisagístico.

Ao definir o instituto do tombamento, ensina José Afonso da Silva que por tal instrumento é constituído um regime jurídico especial, no qual o bem, sem que alterada sua titularidade, transforma-se em bem de interesse público (2007, p. 813):

O tombamento é que constitui o bem tombado em patrimônio cultural nacional, estadual, municipal ou do Distrito Federal. Ele produz efeitos sobre a esfera jurídica dos proprietários, privados ou públicos, dos bens tombados, impondo restrições ao direito de propriedade, e cria para eles um regime jurídico especial, transformando-os em bens de interesse público (situação diversa de domínio público e de domínio privado), sujeitos a vínculos de várias espécies. Tudo isso inova a situação jurídica dos bens tombados, transforma sua posição jurídica e impõe a seus proprietários condutas jurídicas, ob rem, que antes não eram exigidas — demonstrando que o tombamento, em qualquer caso, é ato constitutivo. (grifos no original)

Com o tombamento, i.e., com a inscrição no livro próprio, o bem não poderá ser destruído, descaracterizado, deteriorado ou demolido,

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pois passou a integrar o acervo cultural brasileiro, sem que, no entanto, tenha ocorrido a perda da propriedade. O titular do domínio fica obriga-do, ainda, a não realizar qualquer obra no imóvel tombado, da qual possa resultar obstrução ou redução de sua visibilidade,2 nem afixar anúncios ou cartazes sem a autorização do Serviço de Patrimônio competente.

Dispõe claramente o Decreto-Lei nº 25/1937:

Art. 14. A. coisa tombada não poderá sair do país, senão por curto prazo, sem transferência de domínio e para fim de intercâmbio cultural, a juízo do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cincoenta por cento do dano causado.

Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou car-tazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se nêste caso a multa de cincoenta por cento do valor do mesmo objeto.

Assim como as demais espécies de intervenção estatal na proprie-dade, as restrições impostas ao proprietário pelo Poder Público têm por fundamento o domínio eminente sobre todos os bens localizados no território nacional.

Tal domínio decorre do poder de império inerente à soberania do Estado que, como tal, é capaz de se reger por governo autônomo e de instituir um regime jurídico próprio, aplicável a todos que se encontram em seu território, independentemente da interferência externa.

Neste sentido, pondera acertadamente José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 713):

A intervenção, como é óbvio, revela um poder jurídico do Estado, calcado em sua própria soberania. É verdadeiro poder de império (ius imperii), a ele devendo sujeição os particulares. Sem dúvida, as necessidades individuais e gerais, como bem afirma Gabino Fraga, se satisfazem pela ação do Estado e dos particulares, e, sempre que se amplia a ação relativa a uma dessas neces-sidades, o efeito recai necessariamente sobre a outra.

2 A preservação da visibilidade do imóvel é imposta também aos vizinhos, como bem ressaltam José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 743) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009, p. 144).

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Já Diogo de Figueiredo Moreira Neto deixa consignado (2009, p. 381-382):

O domínio eminente é um aspecto da soberania incidente sobre todos os bens que constituem o território do Estado ou que a ele se integrem ou se lhe adiram, mas se manifesta diferentemente sobre cada uma das três referidas categorias de bens: os bens públicos, os bens privados e os bens de ninguém, ou res nullius.Sobre os bens públicos, que constituem o domínio público patrimonial, o domínio eminente se patenteia pelo estabelecimento de um regime público dominial especial, de competência de cada entidade política.Sobre os bens privados, que constituem o domínio privado, o domínio emi-nente se revela pelas regras de Polícia, que limitam o exercício de direitos inerentes à propriedade privada, ou pelas do Ordenamento Econômico, que alteram a disposição e a destinação utilitária desses bens.Em ambos os casos, qualquer intervenção do Estado sobre a propriedade privada (que poderá ser exercida em amplíssimo espectro, que vai desde a ocupação temporária à desapropriação), só se justificará em estrita submissão ao binômio: lei — interesse público. [...]O domínio eminente, que, na lição de Hely Lopes Meirelles, é o desdobra-mento político do conceito de domínio público, por ser uma expressão da soberania, está compartilhado entre todas as entidades políticas — União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 18 da Constituição) — que o exercem na medida de suas respectivas competências constitucionais.

Pelo exposto, em virtude da submissão ao ius imperii, a propriedade não mais se apresenta como direito absoluto, sendo os correspondentes poderes de uso, gozo e disposição necessariamente determinados de acordo com os parâmetros legais. As restrições ao domínio, quando fixadas por critérios razoáveis (ou seja, quando não forem arbitrárias), são coativamente impostas a todos que, em território nacional, exerçam tal direito real, sem que se fale em desrespeito à autonomia individual.

Adotando o mesmo entendimento, pontifica Marçal Justen Filho (2009, p. 511-512):

A propriedade, no passado, foi conceituada como o poder de dispor de uma coisa de modo absoluto e insuscetível de limitação ou questionamento.

Presentemente, reconhece-se a função social da propriedade, que é a vinculação das faculdades inerentes ao domínio à realização das ne-cessidades coletivas, segundo a proporcionalidade.

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A propriedade deve ser exercida segundo sua função social, impedindo-se que o proprietário exercite as faculdades do domínio de modo abusivo, o que se verifica quando o uso e a fruição são inadequados, excessivos ou inúteis e produzem lesão a interesse protegido juridicamente. [...]

Tal como exposto acima, as liberdades e os direitos devem ser fruídos pelos particulares segundo o princípio da proporcionalidade. E as limitações estatais impostas ao gozo pelos particulares de suas liberdades também se orientam pelo mesmo princípio.

Logo, a função social da propriedade não gera efeitos despropositados ou absurdos, mas a adoção das providências estritamente adequadas e necessárias a evitar a infração aos interesses protegidos, respeitada a substância econômica da propriedade privada.

Também Diogenes Gasparini reconhece o caráter relativo da pro-prie dade, como se pode observar na seguinte passagem de sua obra (2005, p. 670):

A propriedade privada não é mais absoluta. Seu uso, gozo, fruição e disposição não podem opor-se aos interesses gerais. Mesmo em países como o nosso, em que a Constituição assegura a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, ela está condicionada a uma função social (CF, art. 170, III).

Aquela propriedade privada, oponível contra todos e contra o próprio Estado, já não existe, e para realizar o bem comum pode o Estado nela intervir, valendo-se dos institutos da limitação administrativa, da servidão administrativa — em que se inclui o tombamento —, da ocupação temporária, da requisição, da desapropriação, do parcelamento e edificação compulsórios.

No amplo espectro de interesses públicos a serem satisfeitos pelo titular do domínio para que se confira à propriedade a sua função social, está a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, como expressamente dispõe o artigo 1228, §1º, do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), in verbis:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de con-formidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

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É neste contexto que se revela indispensável o tombamento, como medida destinada à eficaz preservação do patrimônio histórico e cultural. Trata-se, portanto, de legítimo instrumento de intervenção do Poder Público na propriedade, por intermédio do qual o exercício do citado direito real adquire novos contornos, deixando o proprietário de ter o livre e incondicionado uso e disposição do bem.

A partir do instante em que é verificada a relevância cultural (com a inscrição no livro do tombo), o titular do domínio fica obrigado a pre-servar o bem tombado, em deferência ao interesse difuso previsto no artigo 216 da Constituição da República. Assim pondera José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 736):

Sem dúvida que a defesa do patrimônio cultural é matéria de interesse geral da coletividade. Para que a propriedade privada atenda a essa função social, necessário se torna que os proprietários se sujeitem a algumas normas restritivas concernentes ao uso de seus bens, impostas pelo Poder Público. Sob essa proteção, a propriedade estará cumprindo o papel para o qual a destinou a Constituição.

Desse modo, podemos considerar que o tombamento é fundado na necessidade de adequação da propriedade à correspondente função social. E a função social, na hipótese, é estampada pela necessidade de proteção ao patrimônio cultural, histórico, artístico etc.

Por sua vez, ao analisar o conceito de patrimônio histórico, assevera Hely Lopes Meirelles (1998, p. 464):

O conceito de patrimônio histórico e artístico nacional abrange todos os bens, móveis e imóveis, existentes no País, cuja conservação seja de interesse público, por sua vinculação a fatos memoráveis da História pátria, ou por seu excepcional valor artístico, arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou ambiental. Tais bens tanto podem ser realizações humanas como obras da Natureza; tanto podem ser preciosidades do passado como criações contemporâneas. A proteção de todos esses bens é realizada por meio do tombamento, ou seja, da inscrição da coisa em livros especiais — Livros do Tombo — na repartição competente, para que sua utilização e conservação se façam de acordo com o prescrito na respectiva lei.

De igual modo, ensina Lucas Rocha Furtado (2007, p. 797-798):

O tombamento corresponde a uma das diversas opções de que dispõe o Estado para intervir na propriedade privada. Ele afeta bens móveis ou imóveis

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tendo em vista a realização de fim específico: a proteção do patrimônio histórico e cultural nacional. [...]

Constitui sujeição da propriedade privada à função social na medida em que o uso do bem fica condicionado à preservação de aspectos históricos ou culturais relevantes.

Vale lembrar, ainda, que não só o Poder Público, mas também a coletividade está obrigada a proteger o patrimônio cultural brasileiro. O tombamento não representa violação alguma ao direito de propriedade, sendo o interesse público na conservação do bem tombado oponível a quem detenha o seu domínio.

Observe-se, nesta oportunidade, que a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, atualmente consignado no artigo 216 da Constituição da República, já se encontrava prevista na Constituição de 1934, dispondo o seu artigo 10, inciso III, competir à União proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, po-dendo inclusive obstar a evasão de obras de arte.

A subsequente Constituição de 1937 previu igualmente a proteção dos monumentos históricos, artísticos e naturais, atribuindo não só à União, mas também aos Estados-Membros e aos Municípios o dever de tutelá-los (artigo 134).3 Com amparo em tal dispositivo constitucional, foi publicado o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, sendo este o diploma que, até os dias atuais, disciplina o instituto do tombamento na esfera federal.

Segundo o Decreto-Lei nº 25/1937, qualquer bem localizado em território nacional, seja ele móvel ou imóvel, pode ser objeto de tomba-mento. Assim, tanto um edifício como um acervo de museu são passíveis de sofrer tal medida restritiva. Também os bens públicos — federais, estaduais, distritais e municipais — podem ser tombados, como clara-mente determinam os artigos 1º e 2º do citado Decreto-Lei nº 25/1937:

Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil,

3 Disposição mantida na Constituição de 1946 (artigo 175), na Constituição de 1967 (artigo 172, parágrafo único) e na Emenda Constitucional nº 1/1969 (artigo 180, parágrafo único).

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quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

§1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei.

§2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também su jeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisa-gens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pelo indústria humana.

Art. 2º A presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessôas naturais, bem como às pessôas jurídicas de direito privado e de direito público interno.

O tombamento impõe ao proprietário a obrigação de conservação do bem e restrições para a sua alienação, possibilitando-se, no caso de descumprimento, a aplicação das sanções previstas nos artigos 15 a 21 do Decreto-Lei nº 25/1937.

Considerando, entretanto, que tal medida restritiva poderá inter-ferir na destinação pública que lhe dá o seu proprietário, pergunta-se: pode o ente de maior abrangência sofrer restrições no uso de seus bens por ato de outro ente de menor abrangência? Em outras palavras: podem os bens da União ser tombados por Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, e os bens estaduais pelos Municípios localizados em seu território?

3 Da abrangência de interesses e o tombamento de bens públicosTendo em vista a natureza do tombamento e os efeitos jurídicos

dele decorrentes, aí incluída a possibilidade de sanções administrati-vas no caso de descumprimento dos deveres impostos ao proprietário, deve-se ponderar acerca da aplicação, por analogia, da norma restritiva do artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941, com o fito de se evitar desnecessário e inconveniente conflito federativo.

Ressalte-se que a discussão a ser travada neste estudo não se refe-re ao tombamento de bens públicos, o que, nos termos do artigo 5º do Decreto-Lei nº 25/1937,4 é perfeitamente possível. O questionamento ora

4 Dispõe o artigo 5º do Decreto-Lei nº 25/1937: “O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios se fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e

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em tela cuida da específica adoção de tal instrumento por certos entes da federação sobre bens públicos que não lhes pertençam. A pergunta é: que bens públicos poderão os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios declarar tombados?

A tese normalmente referida pela doutrina, de que os bens públi-cos podem ser tombados por qualquer ente federativo, ampara-se na inexistência de vedação expressa no Decreto-Lei nº 25/1937.5 Sob tal enfoque, se o ordenamento não proíbe o tombamento, não caberia ao operador do Direito impor qualquer restrição.

Seguindo tal entendimento, apenas não seriam passíveis de tom-bamento as obras de origem estrangeira pertencentes às representações diplomáticas ou consulares acreditadas no país, aquelas que adornam veículos pertencentes a empresas estrangeiras, os bens enumerados no artigo 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), os bens pertencentes a casas de comércio de objetos históricos ou artísticos, que sejam trazidos para exposições comemora-tivas, educativas ou comerciais e, finalmente, os bens importados por empresas estrangeiras expressamente para adorno dos respectivos esta-belecimentos, como consignado no artigo 3º do Decreto-Lei nº 25/1937. Quaisquer outros bens, ainda que pertencentes aos entes públicos de maior abrangência, poderão ser tombados licitamente por quaisquer entes da federação.

A questão, entretanto, não se apresenta tão simples. Afirmar que, por não haver proibição legal para o tombamento de bens públicos, todos os entes da federação poderão adotar tal medida constritiva, in-dependentemente de quem exerça a propriedade, parte da equivocada premissa de que a omissão do Decreto-Lei nº 25/1937 configuraria silên-cio eloquente, não podendo o intérprete restringir o que a lei não o fez.

Tal concepção não há de prosperar. Em respeito à autonomia de que gozam os entes da federação brasileira, calha afastar a possibilidade

Artístico Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a coisa tombada, a fim de produzir os necessários efeitos”.

5 Neste sentido, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RMS nº 18952-RJ. Segunda Turma, Ministra Eliana Calmon, julg. 26.04.2005, DJ, 30 maio 2005, p. 266. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=%28%22ELIANA+CALMON%22%29.min.&processo=18952&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 22.07.2013.

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de bens da União serem tombados pelos Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, assim como bens dos Estados-Membros serem tombados por Municípios, evitando-se, deste modo, indevida interfe-rência na destinação e uso dos bens públicos pertencentes aos entes de maior abrangência.

Assim se sustenta em virtude da necessidade de se harmonizar os diversos interesses públicos que norteiam a atuação de cada um dos membros da federação. Assim, se é certo que a União representa interesse de maior extensão (i.e., de âmbito nacional), não se revela congruente admitir-se que interesses de menor extensão (regionais ou locais) se sobreponham àquele. Por tal razão, não caberá o tombamento de bens da União, assim como não será possível que Municípios declarem tombados quaisquer bens públicos que não sejam de sua propriedade.

Ainda que a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural esteja incluída na competência comum dos entes da federação (artigo 23, inciso II, da Constituição da República), os Estados-Membros e o Distrito Federal não podem atuar em desconformidade com a União e os Municípios com esta e com os respectivos Estados. A competência comum é de colaboração, não devendo servir como mecanismo de litígio entre os entes públicos.

Neste sentido, observe-se que a própria Constituição da República deixa antever a necessária compatibilização entre os atos de preservação do patrimônio público oriundos dos entes políticos, ao dispor em seu artigo 30, inciso IX, que os Municípios deverão promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, com a observância da ação fisca-lizadora federal e estadual.

Assim está redigido o citado dispositivo constitucional:

Art. 30. Compete aos Municípios: [...]

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Ora, se os Municípios devem observar a ação fiscalizadora federal e estadual, é evidente que estes entes mais abrangentes têm prioridade na preservação dos bens que lhes pertençam. Aos Municípios, por tutelarem interesse local, não caberá limitar o uso e disposição de bens federais

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e estaduais, já que estes poderão ser destinados a satisfazer interesses que ultrapassem os lindes municipais. Destarte, se no exercício de suas respectivas ações fiscalizadoras a União e os Estados-Membros decidem por priorizar outros interesses públicos, deixando de tombar seus pró-prios bens, não poderão os Municípios atuar de forma divergente, sob pena de impor àqueles o seu interesse local.

Ainda que não haja idêntica previsão constitucional para os Estados-Membros e Distrito Federal, não se pode negar que a atuação destes tam bém deve se dar em harmonia com o ente de maior abrangência (União), por ser inerente à própria manutenção do Estado federal.6 Tanto é isso ver dade que o artigo 23, parágrafo único, da Constituição da Repú blica, clara mente dispõe que caberá à lei complementar fixar normas de cooperação entre os membros da federação no exercício de suas compe tências concorrentes.

Consta no artigo 23, parágrafo único, da Constituição da República:

Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Analisando o referido dispositivo, Pedro Lenza bem destaca o fim almejado pelo Constituinte (2009, p. 303-304):

O objetivo é claro: como se trata de competência comum a todos, ou seja, concorrente no sentido de todos os entes federativos poderem atuar, o objetivo de referida lei complementar é evitar não só conflitos como a dispersão de recursos, procurando-se estabelecer mecanismos de otimização de esforços.

E se ocorrer o conflito entre os entes federativos? Nesse caso, observam Mendes, Coelho e Branco que “se o critério da colaboração não vingar, há de se cogitar do critério da preponderância de interesses. Mesmo não havendo hierarquia entre os entes que compõem a Federação, pode-se falar em hie-rarquia de interesses, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos Estados)”.

6 Como bem observa Dircêo Torrecillas Ramos, dentre os elementos que integram o conceito de Estado Federal encontra-se “o federalismo como uma base de Associação Política: compromisso de associar e cooperar ativamente, penetrar no espírito federalista, negociação compartilhada, mútua abstenção e autorrestrição na perseguição de metas, unidade e alta autonomia” (RAMOS, 2010, p. 722).

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Seguindo tal mandamento, a Lei Complementar nº 140/2011, ao dispor sobre a “cooperação entre a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora”, claramente estabelece como objetivo fundamental da União, dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios a harmoni-zação das políticas e ações administrativas, com vistas a evitar conflitos de atribuições.

Encontra-se assim redigido o artigo 3º, inciso III, da Lei Comple-mentar nº 140/2011:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere esta Lei Complementar: [...]

III - harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente;

A compatibilização entre os interesses nacionais, regionais e locais faz-se necessária, portanto, para evitar o inconveniente conflito federati-vo. Esclareça-se: como do tombamento decorrem obrigações, restrições e até sanções, caso admitida tal intervenção na propriedade, os entes de menor abrangência acabariam por condicionar a utilização de bens dos entes maiores, o que representaria, ao cabo, priorizar o interesse local ou regional em detrimento do interesse nacional.

Traga-se, como exemplo, o tombamento de imóveis nos quais são instaladas unidades militares da União. Não se nega que, caso tenham eles alguma valia histórica ou arquitetônica, poderá o referido ente público tombá-los, nos termos do Decreto-Lei nº 25/1937. Todavia, na hipótese de, posteriormente, verificar-se a necessidade de adaptá-los para novas funções, para atender a interesses de segurança nacional, nada impede que se proceda ao seu destombamento, permitindo-se a intervenção física necessária.7

7 O destombamento está expressamente previsto no Decreto-Lei nº 3.866/1941.

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Na hipótese, como o tombamento do bem federal foi realizado pela própria União, tal ente estará habilitado a ponderar os interesses em confronto, decidindo pela medida mais adequada ao caso concreto, exercendo autonomamente a competência administrativa que lhe é própria. Em tal caso, o interesse nacional estará tutelado, seja com a manutenção do tombamento (preservação do patrimônio cultural), seja pelo destombamento (priorizando-se o interesse público da segurança nacional).

Tal ponderação de interesses, ambos de extensão nacional, não será possível, entretanto, se o bem federal estiver tombado pelo Estado ou pelo Município em que se encontrar. Em tal situação, se os referidos entes não compartilharem o entendimento de que a adaptação do bem se faz necessária para fins de segurança nacional, estará a União impedida de realizar qualquer intervenção.

O interesse prevalente, então, será o regional (do Estado) ou local (do Município), aos quais ficará submetido o nacional (da União). A pre-servação do patrimônio cultural atenderá ao interesse do Estado-Membro ou do Município, mas não da União. Esta, ao entender prevalente o interesse na segurança nacional, afastou a possibilidade de se sustentar a subsistência do interesse, também de expressão nacional, na preservação do bem público, não sendo razoável que tal manifestação de vontade deixe de produzir qualquer efeito prático em virtude de óbice imposto por outro ente federativo.

Observe-se que o tombamento acabou por servir como instrumento de submissão do interesse público de extensão nacional ao interesse públi-co regional ou local. Criar-se-á, portanto, inequívoco conflito federativo pelo exercício de competências concorrentes, não obstante estas devam servir para concatenar ações públicas e não para torná-las incompatíveis.

Vale ressaltar que o apontado inconveniente ocorrerá não só quan-do o imóvel público estiver afetado para uso especial (como na hipótese acima), mas também nos casos de bens de uso comum do povo e bens dominicais. Com efeito, uma vez tombado o bem público, a posterior modificação de seu uso (afetação) poderá ser obstada pelo dever de conservação decorrente daquela intervenção restritiva.

Imagine-se um imóvel dominical federal que passe a ser destina-do para a instalação de um órgão público, necessitando, para tal, de

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adequações físicas tanto internas quanto externas. Nessa situação, a mani fes tação de vontade da União (que, ponderando suas necessidades e a impo sitiva satisfação do interesse público, decidiu por dar destinação específica a um bem dominical, transformando-lhe em bem de uso especial) estará inevitavelmente condicionada à anuência do ente responsável pelo tombamento. O interesse do ente de maior extensão estará, portanto, submetido ao interesse regional ou local.

Por tal razão, deve ser admitida a aplicação da regra da abrangência de interesses contida no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, evitando-se que Estados-Membros e Distrito Federal declarem tomba-dos bens da União e que Municípios tombem bens dos demais entes da federação.

Defendendo a tese ora sustentada, pela aplicação por analogia do artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, encontra-se José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 741):

Quanto aos bens públicos, entendemos que, por interpretação analógica ao art. 2º, §2º, do Decr.-lei nº 3.365/41, que regula as desapropriações, a União pode tombar bens estaduais, distritais e municipais, e os Estados podem fazê-lo em relação aos bens do Município. Entretanto, em observância também à natureza dos interesses tutelados pelos entes federativos das diversas esferas, parece-nos não possam as entidades menores instituir, manu militari, tombamento sobre bens pertencentes aos entes maiores, isto é, o Município não pode fazê-lo sobre bens estaduais e federais, nem os Estados sobre bens da União. Nestes casos, a entidade menor interessada deve obter autorização do ente público maior a quem pertencer o bem a ser tombado; só assim nos parece compatível a interpretação do art. 23, III, da CF, que confere a todas as pessoas federativas competência comum para proteger bens de valor histórico, artístico e cultural.

Também Sabino Lamego de Camargo, então Procurador do Estado do Rio de Janeiro, já se manifestou pela impossibilidade de entes de menor abrangência tombarem bens dos demais entes políticos. Assim consta no Parecer nº 2/80-SLC (1979, p. 348-352):

Certo é que as limitações não dizem respeito à subsistência do direito de propriedade, mas, sim, ao uso do bem. Mas, de qualquer forma, as limitações que decorrem do tombamento podem afetar substancialmente a finalidade ou o destino do bem sobre o qual incidem.

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Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 117

Reconhecer, portanto, às entidades políticas menores o direito de impor ônus ao direito ao uso de bens do domínio de entidades políticas maiores importa igualmente em reconhecer àqueles a possibilidade de criarem contra estas, por ato próprio, direitos que eventualmente podem tolher os objetivos de interesse coletivo a que haviam sido destinados ditos bens.

Em vista do exposto, os Estados-Membros e o Distrito Federal não poderão tombar bens federais, enquanto os Municípios não poderão tombar quaisquer bens públicos (salvo os seus próprios), evitando-se o indesejável conflito federativo que exsurgirá nos casos em que os inte-resses nacional, regional e local não se compatibilizarem.

Interpretando-se sistematicamente o ordenamento jurídico — a partir do qual se defende a adoção do critério da abrangência de inte-resses —, há de se concluir, então, que aos Estados e Distrito Federal não foi conferida a competência para realizar especificamente o tombamento de bens da União e aos Municípios não foi conferida a competência para tombar bens públicos dos demais entes da federação.8

Vale dizer, como a competência nada mais é que “a expressão funcional qualitativa e quantitativa do poder estatal, que a lei atribui às entidades, órgãos ou agentes públicos, para executar a sua vontade”,9 e tendo em vista que o tombamento de bens públicos por entes de me-nor abrangência não se compatibiliza com o exercício harmônico das competências administrativas comuns (como sustentado neste trabalho), faltará aos governadores o poder jurídico de tombar bens federais e aos prefeitos o poder de tombar bens públicos da União e dos Estados.

Apesar dos bens públicos serem passíveis de tombamento (logo o objeto do tombamento de bem público não é juridicamente vedado10), os Estados-Membros e o Distrito Federal não terão competência para impor tal restrição a bens federais, enquanto os Municípios não poderão

8 Celso Antônio Bandeira de Melo, referindo-se ao sujeito como pressuposto subjetivo de validade do ato administrativo, assevera que, dentre os aspectos a considerar, está a “capacidade da pessoa jurídica que o praticou” (2006, p. 377). Como se defende neste estudo, os Estados-membros e Distrito Federal não têm capacidade jurídica de tombarem bens federais, enquanto os Municípios não a possuir em relação a bens públicos de outros entes da federação.

9 MOREIRA NETO, 2009, p. 154.10 Tanto é isto verdade que bens dos Estados e Distrito Federal podem ser tombados pela União e bens

municipais, pela União, pelos Estados e pelo próprio Município proprietário.

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utilizar tal modalidade de intervenção em face de bens públicos que não lhes pertençam.

O desrespeito à regra da abrangência de interesses implicará, portanto, a nulidade do ato administrativo por vício de competência. Assim, porque não satisfeito um dos requisitos de validade do ato de tom-bamento, caberá ao ente atingido pela intervenção em sua propriedade pleitear em juízo a declaração de nulidade do ato em questão.

Em outras palavras, tratando-se de ato inválido, mas eficaz enquan-to não reconhecido o vício que o macula,11 não restará ao ente atingido pelo tombamento outra medida senão valer-se do Judiciário para obter a anulação e afastar as restrições impostas ao bem indevidamente tombado.

Vale ressaltar que a impossibilidade de Estados-Membros e Dis trito Federal tombarem bens da União e Municípios tombarem quaisquer bens públicos além dos seus próprios não viola a autonomia de tais entes da federação, já que suas competências administrativas não são exercidas de modo absoluto. Aos Estados-Membros, ao Distrito Federal e aos Municípios compete exercer suas atribuições constitucionais em harmonia entre si e com a União, porque assim necessário para a esta-bilidade da federação.

Observe-se, ainda, que a aplicação da regra contida no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, não significa interpretar extensiva-mente uma norma restritiva. Trata-se, simplesmente, de aplicar o mesmo fundamento jurídico que, amparado na interpretação sistemática do ordenamento jurídico — a qual nos leva a concluir que as competências comuns devem ser exercidas em cooperação, não podendo servir para abalar a necessária harmonia que deve existir entre os entes políticos —, justifica a impossibilidade de desapropriação de bens públicos por entes de menor extensão.

Com efeito, se tanto na desapropriação quanto no tombamento há a possibilidade de se criar um conflito federativo, pela intervenção na

11 Ensina Celso Antônio Bandeira de Mello que “os atos inválidos, inexistentes, nulos ou anuláveis não deveriam ser produzidos. Por isso não deveriam produzir efeitos. Mas o fato é que são editados atos inválidos (inexistentes, nulos e anuláveis) e que produzem efeitos jurídicos. Podem produzi-los até mesmo per omnia secula, se o vício não for descoberto ou se ninguém o impugnar. É errado, portanto, dizer-se que os atos nulos não produzem efeitos. Aliás, ninguém cogitaria da anulação deles ou de declará-los nulos se não fora para fulminar os efeitos que já produziram ou que podem ainda vir a produzir” (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 471).

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Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 119

propriedade de outro ente público para satisfazer interesses de menor extensão, deverá o operador do Direito aplicar o mesmo raciocínio para ambas as hipóteses, em respeito à máxima ubi eadem ratio ibi idem jus. Assim, o critério da abrangência de interesses incide também nos casos de tombamento.

Finalmente, a impossibilidade de Estados-Membros e Distrito Federal tombarem bens da União e de os Municípios tombarem bens públicos dos demais entes políticos não causa prejuízo algum à preser-vação do patrimônio cultural, seja porque mantida a possibilidade de tombamento de bens públicos pelos entes de maior abrangência, seja porque nada impede aos entes de menor abrangência pleitear junto aos demais o tombamento dos bens que lhes pertencem.12

4 ConclusãoAo longo deste breve estudo buscou-se analisar o instituto do tom-

bamento, reconhecendo-o como instrumento que tem o Poder Público para preservar o patrimônio histórico, artístico e cultural. Impondo restrições ao proprietário, que não mais poderá modificar ou destruir o bem tombado, o Estado assegura a subsistência do bem declarado de relevância para o patrimônio nacional.

Verificou-se que o tombamento é realizado sobre quaisquer bens, inclusive públicos, como disposto no artigo 5º do Decreto-Lei nº 25/1937. No entanto, ao contrário do Decreto-Lei nº 3.365/1941, a Lei de Tombamento não contém expressa proibição para os Estados-Membros e Distrito Federal declararem tombados bens da União e para os Municípios tombarem bens desta e dos Estados-Membros em cujo território se encontram.

Em decorrência da referida omissão legislativa, duas correntes se firmaram quanto ao tombamento de bens públicos. De um lado, estão os defensores da possibilidade de tombamento de quaisquer bens públicos, independentemente de quem os possua, já que não poderá o intérprete criar restrição alguma no exercício de tal competência, se assim a lei não

12 Além de José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 741), também Sabino Lamego de Camargo faz consignar que: “Deverão as entidades menores, se o quiserem, manifestar seu interesse no tombamento às entidades maiores e solicitar aos respectivos órgãos competentes que o promovam” (p. 352).

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dispôs. Por conseguinte, não havendo ressalva no Decreto-Lei nº 25/1937, os bens da União poderão ser tombados pelos demais entes e os bens dos Estados-Membros, pelos Municípios localizados em seus territórios.

De outro modo, sustentam alguns doutrinadores que o tombamento de bens públicos deve igualmente observar a regra da abrangência de in-te resse, com base na qual se fundamenta a norma restritiva do artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, assegurando-se que a União dê plena destinação aos seus bens (satisfazendo interesse nacional), sem que os de mais entes possam tombá-los, enquanto os Estados-Membros só po-derão sofrer limitação na sua propriedade em deferência ao interesse na cio nal, não se admitindo que os Municípios lhes imponham quaisquer res tri ções, hipótese na qual o interesse regional restaria subordinado ao inte resse local.13

Buscou-se demonstrar que a lacuna do Decreto-Lei nº 25/1937 deverá ser suprida pela interpretação sistemática do ordenamento ju-rídico, de modo que o exercício da competência comum dos entes da federação, relativa à preservação dos bens de valor histórico, artístico e cultural (artigo 23, inciso III, da Constituição da República), não acarrete indesejável conflito federativo.

Admitindo-se que a competência comum dos entes públicos não pode servir como fonte de dissídio federativo, é forçoso concluir que o tombamento de bens públicos deve se dar de forma restritiva, ou seja, seguindo a ordem de precedência dos interesses nacional, regional e local (tutelados pela União, Estados-Membros/Distrito Federal e Municípios, respectivamente), como já ocorre com a desapropriação.

Quando os interesses de cada ente público não se apresenta rem compatíveis, há de se dar prioridade ao de maior extensão, evitando-se que entes menores, por ato próprio, criem obrigações e restrições oponíveis aos entes de maior abrangência. Logo, não poderá a União ser proibida de modificar as características físicas de seus bens, adaptando-os à nova destinação pública, em virtude de tombamento realizado por Estado-Membro, Distrito Federal ou Municípios.

13 Lembre-se, uma vez mais, que o Distrito Federal, porque não dividido em municípios, não sofre qualquer restrição na sua propriedade, senão por ato do ente mais abrangente (União).

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Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 121

Apenas ao ente federal caberá ponderar os interesses nacionais em jogo, decidindo pela preservação do patrimônio histórico ou pela satisfação de outra necessidade pública mais premente. O mesmo deverá ocorrer com os Estados-Membros quanto aos interesses regionais, não podendo ser os seus bens tombados pelos Municípios, mas apenas pela União (em deferência ao interesse nacional).

A observância da regra de abrangência de interesses, já prevista no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, para o tombamento, antes de violar a autonomia dos entes de menor abrangência, assegura o equilíbrio e a harmonia da federação brasileira, ao garantir que a atuação destes não ocorra de forma irrestrita, mas sim em cooperação com os demais, como exige o artigo 23, parágrafo único, da própria Constituição da República.

Restou demonstrado, ainda, que a atuação coordenada dos entes da federação, evitando conflitos e contribuindo para a eficiência que se espera da Administração, é objetivo a ser alcançado pela União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, no exercício de suas competências comuns, como recentemente consignado no artigo 3º, inciso III, da Lei Complementar nº 140/2011.

Adotando-se o raciocínio ora proposto, o eventual tombamento de bens públicos pelos entes de menor abrangência haverá de ser reconhe-cido nulo por vício de competência. Deveras, apesar de bens públicos serem passíveis de tombamento, os Estados e o Distrito Federal não terão competência especificamente para tombar bens da União, enquanto os Municípios carecerão de competência para tombar quaisquer bens públi-cos que não lhes pertençam. Em tal situação, restará ao ente prejudicado pleitear em juízo a sua invalidação.

Por fim, considerando que a preservação do patrimônio histó-rico, artístico e cultural está garantida, em relação aos bens públicos, com o tombamento levado a efeito pelos entes de maior abrangência (os quais poderão ser instados pelos de menor abrangência a tombar os seus respectivos bens), a aplicação da regra contida no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, é medida que se impõe, em deferência ao equi líbrio e à harmonia que caracterizam o sistema federativo.

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Administrative Constraints Over Real Estate Property of Political Entities and “Extent of Interests” – Is it Possible to Apply the Rule of the Article 2º, §2, of Decree-Law nº 3.365/1941?

Abstract: Considering that the protection of historic and cultural heritage is indispensable to the preservation of national identity, the administrative constraints imposed by the government represents one of the legal instru-ments useful for this purpose. The restrictions on the use of all properties that have cultural and historical significance reflect the so-called “eminent domain”, a politic power resulting from the state sovereignty. Thus, all property, movable or immovable, public and private, is submitted to admi-nistrative limitations, maintaining intact, at the same time, the individual property rights. However, there is disagreement as to the possibility of im-posing administrative constraints to public goods belonging to the Union by the Federal States, Federal District and Municipalities, as well as proper-ty of the Federal States being equally affected by municipalities. Although the preservation of historical, artistic and cultural goods is attributed to all public entities (common competence), it is important to consider that the interests protected by the ones with wider coverage may not be submitted to the satisfaction of the interests of less extent entities, under penalty of endangering the balance which marks the federation. This study will seek to examine this question, comparing the possible arguments in favor and against the application by analogy of the rule of “extent of interests” that underlies Article 2, §2, of Decree-Law nº 3.365/1941.

Key words: Administrative Law. Protection of cultural heritage. Adminis-trative constraints. Public goods. Extent of interests.

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Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 123

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Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minérioValkiria Silva Santos MartinsAdvogada da União. Integrante do Grupo Permanente de Combate à Corrupção. Pós-Graduanda em Advocacia Pública pelo IDDE em parceria com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Especializada em Direito Civil e Processual Civil pela UNICOC e em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada em Direito pela Fundação Educacional Monsenhor Messias.

Resumo: Na contramão da sustentabilidade, o Estado de Minas Gerais criou a Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF), obtida median-te procedimento simplificado, objetivando regularizar determinadas atividades de mineração. Apresenta-se aqui um estudo sobre os aspectos da AAF, discorrendo sobre a sua inaplicabilidade aos empreendimentos minerários e as consequências jurídicas da utilização das AAFs para os fins de obtenção de títulos de lavra, qual seja, a própria nulidade da Guia de Utilização ou da Portaria de Lavra.

Palavras-chave: Sustentabilidade. Licenciamento. Mineração. Nulidade. Lavra.

Sumário: 1 Introdução – 2 Sustentabilidade – Mineração para esta ge ração e as futuras – 3 Legislação minerária pertinente ao tema – 4 Licen-ciamento ambiental para lavra de minério – 5 Autorização Ambiental de Funcionamento como instituto diferenciado do licenciamento ambien tal – 6 Procedimento simplificado na contramão do desenvolvimento sus-tentável – 7 AAF em atividades minerárias – Lavra ilegal por nulidade – 8 Con clusão – Referências

1 IntroduçãoNeste artigo faremos uma crítica à expedição de Autorização

Ambiental de Funcionamento (AAF) para os fins de regularizar ambiental-mente as atividades de mineração. Apresentamos um estudo que conclui pela inconstitucionalidade e ilegalidade desse instituto, para os fins de viabilizar ambientalmente empreendimentos destinados à mineração, que geram grandes impactos ao meio ambiente.

Nossa problemática consiste no fato de que a lavra de minérios, cujo potencial degradador sobre o ambiente foi reconhecido até mesmo pela própria Constituição Federal (art. 225, §2º), foi objeto de exigência

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expressa do licenciamento ambiental clássico na legislação. O tratamento específico é dado pelas Leis nºs 6.938/81 e 7.805/89, Decreto nº 98.812/90 e Resoluções CONAMA1 nºs 01/86, 09/90 10/90 e 237/97.

Entretanto, na contramão da sustentabilidade, no Estado de Minas Gerais não se exige licenciamento ambiental para muitas atividades mi-nerárias, entendidas como de não significativo impacto ambiental. A DN Copam nº 74/2004 possibilita a regularização ambiental de uma série de atividades, com base em mera Autorização Ambiental de Funcionamento, violando frontalmente o ordenamento jurídico vigente.

A AAF permite a mineração, sem qualquer estudo ambiental pré-vio, publicidade, anuência do município explorado ou monitoramento subsequente dos impactos, considerando tal atividade como sendo de pequeno potencial degradador.

Essa permissividade ambiental, flagrantemente ilícita, tem ocasio-nado sérios danos ao meio ambiente, natural e cultural, de Minas Gerais, motivo pelo qual, neste trabalho, nos posicionamos contra a expedição de AAF, para os fins de regularização ambiental de atividades mineradoras.

Com efeito, tendo em conta a apresentação ao DNPM de AAFs para os fins de expedição de títulos minerários — Guia de Utilização e Portaria de Lavra —, necessário se faz que o Judiciário ou a Administração entendam como nulos os referidos títulos, haja vista que não foi atendido requisito legal, essencial ao desenvolvimento sustentável, qual seja, a apresentação de licença ambiental.

2 Sustentabilidade – Mineração para esta geração e as futurasPara satisfazer às variadas necessidades da humanidade, a atividade

mineral se encontra em plena expansão no mundo.2 Desde os campos da alimentação ou da construção civil — com enormes prédios ou humildes

1 CONAMA, Conselho Nacional de Meio Ambiente, é um colegiado representativo dos diversos atores sociais envolvidos com a questão ambiental. É composto pelo plenário de pouco mais de 100 membros (valor que varia segundo o número de Ministérios, Secretarias da Presidência da República e Comandos Militares do Ministério da Defesa), 11 câmaras técnicas, com sete membros cada, e grupos de trabalho tempo rários, entre outros. A função consultiva e deliberativa dos conselheiros, que tem caráter voluntário, não se con funde com a atribuição executiva, remunerada, a cargo do IBAMA. Essa estrutura, composta por órgão cole giado e órgão executivo, repete-se, com adaptações, nos Estados, no Distrito Federal e em alguns Municípios.

2 Até 2006, em Minas Gerais, 78% das Licenças Prévias emitidas eram referentes às atividades minerárias e, atualmente, mil licenças são concedidas por ano (VIANA, 2007).

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casas —, a mineração está presente na vida em coletividade. Nos pri-mórdios do nosso tempo, o homem já começou a converter pedras em ferramentas e armas, deixando de ser caça para ser caçador e:

Desde então, foi cada vez mais imprescindível à sobrevivência e ao desen-volvimento da Humanidade. Sem a mineração é impossível, por exemplo, a produção de alimentos. Dela provêm os corretivos de solos e os fertilizantes, que tornam produtivos terrenos impróprios a essa produção ou solos que perderam a fertilidade em função de sua utilização continuada.

Mas, não basta preparar o solo. Somente seria viável a produção de ali-mentos na escala de sua demanda mediante a utilização de equipamentos e máquinas fabricadas com matérias primas minerais. São elas que preparam a terra para receber as sementes, que as semeam, que irrigam a terra, que eliminam as ervas daninhas da terra cultivada, que colhem e beneficiam a produção e, finalmente, que a distribuem por todos os recantos em que é demandada. Sequer as embalagens que acondicionam os alimentos existiriam sema mineração.

Raras são as atividades humanas que não dependem da mineração, e estas geralmente não são importantes ou indispensáveis. Ex vero, máquinas, equi-pamento e ferramentas ou quaisquer utilidade ou objetos, desde dimensões microscópicas até gigantescas, necessários ao exercício de esmagadora maioria destas atividades são parcial ou totalmente constituídos de matéria prima mineral ou são fabricados com a utilização daquelas máquinas, ferramentas e equipamentos constituídos da mesma.3

A procura por esses recursos naturais é, então, cada vez mais agressiva e, noutra banda, o resultado, muitas vezes, são restrições in-desejáveis à qualidade de vida da coletividade, mediante a degradação e/ou poluição do meio ambiente.4

Conforme Fiorillo:5

Atento a esses fatos, o legislador constituinte de 1988 verificou que o cres-ci mento das atividades econômicas merecia um novo tratamento. Não mais poderíamos permitir que elas se desenvolvessem alheias aos fatos

3 RIBEIRO, 2005.4 Segundo Carlos Luiz Ribeiro (2005), meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações

de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas, entendendo-se como degradação ambiental a alteração adversa dessas condições.Poluição é a degradação ambiental resultante de atividades que prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população, ou que criem condições adversas às atividades sociais e econômicas ou à biota, ou às condições estéticas e sanitárias do meio ambiente, ou, ainda, que lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões estabelecidos.

5 FIORILLO, 2004, p. 24.

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contemporâneos. A preservação do meio ambiente passou a ser a palavra de ordem, porquanto sua contínua degradação implicará diminuição da capa-cidade econômica do País, e não será possível à nossa geração e principal-mente às futuras desfrutar uma vida com qualidade.

Entrementes,

Não existe incompatibilidade absoluta entre a prática da Mineração e pre-ser vação do Meio Ambiente, a despeito das atividades minerárias serem geralmente degradadoras do Meio Ambiente e, às vezes, localmente polui-doras. Contudo, poderão coexistir, tratando-se, por óbvio, da mineração racional e responsavelmente conduzida, que respeita as normas técnicas regula mentadas.6

Resta-nos, então, a bem desta e das futuras gerações, optar, inte-ligentemente, por um processo econômico que venha dar continuidade ao desenvolvimento. Viabilizar o aproveitamento contínuo7 da utilização dos recursos naturais.

Não significa dizer que, com a opção pelo aproveitamento contínuo, os recursos minerais são intocáveis, mas, sim, que deverão ser utilizados de maneira racional e equilibrada. Nesse sentido, a necessidade de harmo­nização entre o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental encontra­se expressamente consagrada no art. 170, inciso VI, da CF/88.8

Entende-se, assim, que a sociedade possui padrões de desenvolvimento juridicamente desejados,9 que são aqueles que atentam para o ideal mútuo de conservação do patrimônio ambiental da coletividade. Afinal:

O direito à integridade do meio ambiente — típico direito de terceira geração — constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) — que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais — realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) — que se identificam com as liberdades

6 RIBEIRO, 2005.7 SOUZA; CARNEIRO. 2009.8 Idem.9 Idem.

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positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade cole-tiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. (MS nº 22.164, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30.10.1995, Plenário, DJ, 17 nov. 1995. No mesmo sentido, RE nº 134.297, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13.06.1995, Primeira Turma, DJ, 22 set. 1995).

É o que se depreende do estatuído no art. 225 da Carta Magna,10 que estabelece que todos tivessem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, incumbindo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê­lo e preservá­lo para as presentes e futuras gerações.11

10 Maurício Boratto Viana (2007) externa que não é sem razão a preocupação normativa com a atividade minerária, uma vez que são inúmeros impactos ambientais, em maior ou menor grau, que ela pode provocar com a extração de minerais da crosta terrestre e o seu posterior beneficiamento e transformação. Como complementa, citando o Departamento Nacional de Produção Mineral, um aspecto determinante desse processo é o fato de esses depósitos se localizarem onde as condições geológicas foram favoráveis à sua formação — a chamada “rigidez locacional da jazida” (DNPM, 2005).

11 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (Regulamento)II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (Regulamento) (Regulamento)III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (Regulamento)V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (Regulamento)VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (Regulamento)§2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. §3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. §4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

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Assim, tão significativos podem ser os impactos ambientais gerados pela atividade minerária, que a Lei Maior resolveu dar-lhe tratamento diferenciado, ao estatuir, no §2º do art. 225, que “aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei”. Quanto às atividades potencialmente causadoras de significativa degradação — incluindo a mineração —, a CF exige para a sua instalação, no inciso IV do §1º, o EIA.12

Com efeito, o Estado deve estabelecer um conjunto de políticas e regras que devem balizar a proteção do meio ambiente. Atitude positiva, exigida pelo caput do art. 225, que resulta no dever de obediência do minerador. Sobre o tema, citem-se, mais uma vez, Marcelo Gomes de Souza e Ricardo Carneiro:13

Ora, desses balizamentos não se pode desviar a atividade de exploração mineral, sendo induvidoso que os recurso minerais in situ, antes mesmo de serem inseridos nas cadeias de beneficiamento e transformação, constituem elementos integrantes da natureza, pertencendo, por tal modo, ao patrimônio ambiental da coletividade. Logo seu aproveitamento deve ser efetuado con-forme as diretrizes estabelecidas para o uso dos demais recursos naturais.

Enfim, minério é algo que se produz a partir de substâncias mine-rais, que nada mais são do que elementos da natureza. A mineração, em si, já afeta negativamente o meio ambiente,14 imaginem-na sem controle?

§5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.§6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

12 VIANA, 2007.13 SOUZA; CARNEIRO. 2009, p. 334.14 Neste ponto existe excelente trabalho de Maurício Boratto Viana (2007), que, ao destinar um tópico aos

“Principais impactos socioambientais”, explana, e comprova com pesquisas sérias, os vários os impactos da mineração. Vale aqui citar o inteiro teor do seguinte trecho:A citada entidade (DNPM) registra que o método de lavra, o tipo de minério e as características naturais e humanas da área da jazida podem influir de forma positiva ou negativa na extração econômica dessa riqueza, levando à sua maior ou menor aceitação. Tais características naturais e humanas incluem, entre outros, a densidade da população, a topografia, o clima e os aspectos socioeconômicos.Quanto à densidade da população, verifica-se que a percepção do impacto ambiental está diretamente relacionada ao número de pessoas por ele afetadas. Desta forma, em áreas rurais ou de baixa densidade populacional, a mineração é mais prontamente aceita do que numa área mais densamente povoada. Um exemplo típico é a mineração de agregados utilizados diretamente na indústria da construção civil (os denominados ‘minerais da Classe II’), tais como brita, cascalho, areia, argila etc. Eles, normalmente, são explorados junto às grandes cidades, o que pode acarretar transtornos e custos adicionais à sua atividade operacional, em função dos ruídos e vibrações gerados pelas detonações e pelos diversos graus de interferência nas áreas periurbanas.

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Acrescente-se, como resultado da mineração desenfreada, o esgo-tamento, efetivo, do recurso mineral lavrado e do recurso, mineral e ambiental, a que é agregado o produto da lavra. Este se torna rejeito, por escolha do minerador, ou é afetado, desastrosamente, pelos efeitos da atividade.

Segundo Maurício Boratto Viana15 os recursos minerais apresentam uma peculiaridade que os diferencia dos demais, a rigidez locacional, que significa que eles só ocorrem onde os processos geológicos assim o permitiram. E reforça o autor que:

[...] ao contrário da maioria dos recursos naturais, que apresentam como carac terística a renovabilidade, outro aspecto que tipifica as substâncias minerais é que elas, com raríssimas exceções (água mineral, areia de aluvião etc.), “dão apenas uma safra” e tendem, portanto, à exaustão. Por fim, um com plicador adicional é o facilmente perceptível impacto visual produzido pela atividade extrativa mineral, o que gera um sentimento de aversão por parte da maioria da população.

Com relação à topografia, se a ocorrência mineral encontra-se em regiões montanhosas, é importante a posição dela na paisagem. Quando a mineração se localiza em altas encostas, como costuma ocorrer com o minério de ferro e o quartzito, por exemplo, provoca impacto visual, além de ruídos e poeiras, que podem percorrer grandes distâncias. Além disso, nessas áreas, a capacidade de carreamento de sedimentos pelo sistema de drenagem é elevada, gerando assoreamento nas porções mais aplainadas situadas à jusante. Já em regiões de vales, os elementos da mineração são visíveis somente a curtas distâncias, sendo que as altas encostas adjacentes podem oferecer uma efetiva barreira para ruídos e poeiras. Convém lembrar que, nessas áreas, os cursos d’água fluem mais lentamente, gerando uma baixa capacidade para carrear sólidos em suspensão.Normalmente, a oposição à mineração é mais intensa em regiões de alto valor cênico, nas várzeas e em locais de ocorrência de espécies raras da flora e da fauna.No que diz respeito ao clima, o mecanismo de transporte para o meio ambiente da poluição originária da mina está diretamente relacionado ao regime pluviométrico, temperatura, umidade e direção dos ventos, entre outros. Sua principal influência é, portanto, sobre a amplitude da poluição, considerando a distância em que é perceptível o impacto da mineração. É de ressaltar que, enquanto os efeitos atmosféricos controlam a transmissão de efluentes gasosos, ruídos e poeiras, a precipitação pluviométrica é fator determinante na disseminação dos efluentes líquidos.Quanto aos aspectos socioeconômicos, a atitude do público quanto à atividade mineradora é parcialmente condicionada pela situação econômica da região e pela natureza das comunidades existentes no entorno. Destacam-se, nesse quesito, a criação de empregos, a circulação de riquezas, o incremento do comércio e serviços e o fortalecimento do setor público mediante a arrecadação de impostos, entre outros fatores, bem como as alternativas econômicas (ou, mais comumente, a falta delas) após a exaustão das jazidas.No que tange ao método de lavra utilizado, trata-se de um dos principais fatores determinantes da natureza e extensão do impacto ambiental. A maioria dos bens minerais é lavrada por métodos tradicionais a céu aberto (em superfície), mas alguns o são em lavras subterrâneas (em subsuperfície). Os impactos mais significativos costumam ocorrer na lavra a céu aberto, em que se tem maior aproveitamento do corpo mineral, gerando grande quantidade de estéril (material sem minério, ou com teor deste abaixo do economicamente viável, mas que precisa ser retirado para permitir o acesso ao minério), poeira em suspensão, vibrações e poluição das águas, caso não sejam adotadas técnicas de controle adequadas.

15 VIANA, 2007.

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Destarte, o minerador não pode perder de vista a sustentabilidade da sua atividade, cumprindo todos os preceitos necessários ao aprovei-tamento dos recursos naturais que movimenta.

Vê-se, pois, que o desenvolvimento sustentável deve ser sempre o foco dos empreendedores. A atividade minerária, aqui em análise, deve ter como norte o Princípio Constitucional da Sustentabilidade, que esta-tui: (i) o reconhecimento da titularidade de direitos desta e das futuras gerações; (ii) a imposição de assumirmos a ligação de todos os seres, acima das coisas, e inter­relação de tudo;16 e, por fim, (iii) o dever de sopesar os be­nefícios, os custos diretos e as externalidades, ao lado dos custos de oportunidade, antes de cada empreendimento.17

Reforça Freitas18 que do princípio constitucional em análise nasce:

A obrigação de sopesar, de maneira fundada, os custos e benefícios, diretos e indiretos (as externalidades) de todos os projetos e, finalmente, a obrigação de intervir, sem a costumeira omissão desproporcional, no sentido de promover a justiça ambiental, protegendo, com igual seriedade, as gerações presentes e futuras, ambas titulares de direitos fundamenta.

E nos dá um conceito do princípio:

Trata-se do princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente, de modo preventivo de precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar.

Afinal, as gerações, presentes e futuras, possuem o direito funda-mental, oponível ao Estado e a terceiros, de usufruir de um ambiente limpo e de uma vida digna.

Sustentabilidade é, pois, o que se propõe ao minerador. Não como um princípio abstrato ou de observância protelável. Mas como um dever que vincula o minerador plenamente e se mostra inconciliável com o reiterado descumprimento da função socioambiental de bens e serviços.19

16 FREITAS, 2012.17 Idem.18 Idem.19 Idem.

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Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 133

3 Legislação minerária pertinente ao temaAntes de adentramos propriamente ao tema deste artigo, é mister

uma breve explanação sobre a legislação minerária em conexão com a temática do licenciamento ambiental.

De início, esclarecemos que o Direito Minerário visa o estudo das normas e procedimentos destinados a permitir a transformação do re-curso mineral em riqueza e conciliar os direitos e deveres do minerador, do Estado e os do superficiário (proprietário do solo) com os princípios do desenvolvimento sustentável.

Segundo William Freire,20 a matéria possui princípios próprios que direcionam toda a exegese desse Direito Positivo Especial:

a) Princípio do uso prioritário; b) Princípio do desenvolvimento no interesse nacional; c) Princípio do interesse público na transformação do recurso mineral em riqueza; e) Princípio da predominância do interesse público sobre o particular; f) Princípio da compatibilização da exploração mineral com os direitos dos superficiário; g) Princípio da compatibilização da atividade mineral com desenvolvimento socioambiental.

Em verdade, os recursos minerais, por princípio constitucional, são propriedade distinta do solo e pertencem à União, devendo a sua exploração prejudicar minimamente o meio ambiente.

A Constituição da República de 1988 trouxe à luz todo um arcabou-ço jurídico inovador sobre a matéria, privilegiando o Direito Minerário e o Ambiental, que devem ser interpretados interligados, como se faz com os seguintes artigos: art. 20, IX; 21, XXIII, §1º; 22, XII; 24, VI, VII e VIII; 170, VI; 176, §1º; 225, §1º, I, II, III, IV, V, VI e VII e §§2º, 3º, 4º, 5º e 6º.

Entrementes, atendendo ao disposto no art. 22, XII, da CF/88, existe uma extensa legislação específica, minerária e ambiental, com di-versas leis federais esparsas. A previsão de reparação do dano ambiental decorrente de atividades de mineração está prevista na Lei nº 7.805/89. Já a Lei nº 8.876/94 concede ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) a atribuição de fiscalizar, em conjunto com as autori-dades ambientais, o controle ambiental dessas atividades.

20 FREIRE, 2005.

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A legislação infraconstitucional, neste ponto, estabelece diversos requisitos e exigências prévias a serem cumpridas pelo minerador, como, por exemplo, licença ambiental e demonstrações de capacidade técnica e econômica. Tudo isso para que a potencial mina atenda à sua função social, no interesse público.

O primeiro passo a ser dado pelo minerador, de acordo com o art. 11 do Código Mineral, é fazer o pedido da área por meio de reque-rimento protocolizado junto ao DNPM, o que lhe outorga, se deferido, o “direito de prioridade”. Segue-se uma série de atos administrativos sucessivos, relacionados e dependentes entre si, objetivando uma fina-lidade única, que é possibilitar a transformação do recurso mineral em riqueza, trazendo para a sociedade todos os benefícios consequentes.

Tais atos administrativos ensejam a publicação do Alvará de Pes-quisa, instrumento que autoriza a mineradora a realizar trabalhos de pesquisa. Trata-se de um título intermediário que autoriza o empreen-dedor a pesquisar determinada substância mineral, de modo a definir sua quantidade, qualidade e distribuição espacial.

Depois de aprovado o Relatório Final de Pesquisa, pode o minera-dor requerer a expedição de Guia de Utilização, que o autoriza a extrair, em caráter excepcional, determinada quantidade de minério, nos termos do art. 22, §2º, do Código de Minas.21

Uma vez procedida a análise do aproveitamento da jazida, ou seja, submetido o minerador ao regime de autorização, deve a parte interes-sada submeter-se às regras do regime de concessão de lavra, previstas no art. 2º do atual Código de Minas, obtendo, por fim, a Portaria de Lavra.

Noutra banda, a legislação minerária está em conexão com a ambiental. Após aprovação do Relatório Final de Pesquisa pelo DNPM, deverá o minerador obter a LP, que não autoriza a instalação de equipa-mentos e, muito menos, a operação do empreendimento potencialmente poluidor. Sucessivamente, tendo o Plano de Aproveitamento Econômico aprovado, pela autarquia, em mãos, deverá requerer a LI, que também

21 Art. 22. A autorização de pesquisa será conferida nas seguintes condições, além das demais constantes deste Código: [...]§2º É admitida, em caráter excepcional, a extração de substâncias minerais em área titulada, antes da outorga da concessão de lavra, mediante prévia autorização do DNPM, observada a legislação ambiental pertinente (Redação dada pela Lei nº 9.314, de 1996).

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não autoriza a extração de minério. Por fim, somente com a Portaria de Lavra em mãos, poderá o minerador obter junto ao órgão ambiental a LO e, assim, extrair.

4 Licenciamento ambiental para lavra de minérioA Constituição Federal, ao outorgar especial proteção ao meio

ambiente, institui como obrigação do Poder Público a normatização e fiscalização, e, daqueles que exploram os recursos minerais, a observação fiel do regramento sobre a matéria.

Neste passo, o art. 24 da CF/88 estabeleceu a competência legis-lativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (municí-pios excluídos, a princípio) para, entre outros temas, “proteção do meio ambiente e controle da poluição” (inciso VI, in fine). Já nos parágrafos desse artigo, estatuiu que a competência da União para expedir normas gerais, o que não exclui a competência suplementar (se houver norma federal) ou plena (na ausência dessa norma) dos Estados e, ainda, que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende no que lhe for contrário a eficácia da lei estadual.

Os instrumentos normativos federais, que passamos a declinar, têm supedâneo nas normas constitucionais que tratam da matéria. Como exposto, a Carta Magna vigente sublinha o dever imposto aos poderes públicos e à coletividade de defesa e preservação do meio ambiente e a obrigação de recuperar o meio ambiente daquele que o degradar.

Com efeito, houve por bem a União em criar a Política Nacional do Meio Ambiente, por meio da Lei nº 6.938/81, materializando o prin-cípio da avaliação de impactos ambientais por meio do licencia mento ambiental. O art. 10 da referida Lei Federal,22 levando aqui em consi-deração as modificações trazidas pela Lei Complementar nº 140/2011, preceitua que todas as atividades, que podem causar danos ao meio

22 Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental. (Redação dada pela Lei Complementar nº 140, de 2011)§1º Os pedidos de licenciamento, sua renovação e a respectiva concessão serão publicados no jornal oficial, bem como em periódico regional ou local de grande circulação, ou em meio eletrônico de comu ni cação mantido pelo órgão ambiental competente. (Redação dada pela Lei Complementar nº 140, de 2011)§2º, §3º e §4º revogados pela Lei Complementar nº 140, de 2011.

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ambiente, independentemente de seu potencial poluidor e de seu porte, dependerão de prévio licenciamento ambiental, instrumento capaz de iden tificar possíveis impactos e determinar as restrições e medidas de con trole ambiental necessárias.

Acrescente-se, da simples leitura do art. 3º, incisos II e III, alíneas,23 da Lei nº 6.938/81, combinada com leigos conhecimentos sobre a ativi-dade minerária, que é clarividente a degradação da qualidade ambiental e poluição do meio ambiente decorrentes, direta e/ou indiretamente, da extração de minério.

Nessa linha, a concessão/autorização para a lavra de recursos mi-nerais, cumpre registrar, encontra-se intimamente ligada à preservação do meio ambiente.

Acrescente-se, como já ilustrado no tópico anterior, que a permissão ou concessão de lavra, nos termos da Lei nº 7.805/89, deve ser outorgada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), e, ademais, dependerá de prévio licenciamento ambiental, a ser concedido pelos órgãos ambientais, estadual e municipal, competentes (arts. 3º e 16).24

Assim, restou ao Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), órgão criado pela Política Nacional de Meio Ambiente, normatizar te-mas referentes ao licenciamento ambiental, da Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) e do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu relatório (RIMA). Tratam da matéria, entre outras, as Resoluções nºs 001, de 1986, e 237, de 1997, ambas do CONAMA.25

23 Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;c) afetem desfavoravelmente a biota;d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental;V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989).

24 Art. 3º A outorga da permissão de lavra garimpeira depende de prévio licenciamento ambiental concedido pelo órgão ambiental competente. [...]Art. 16. A concessão de lavras depende de prévio licenciamento do órgão ambiental competente.

25 Além das Resoluções citadas no corpo deste trabalho, sobre mineração, podemos destacar:- Resolução nº 08/88, que explicita a necessidade de licenciamento ambiental para certas atividades de extração mineral;

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A Resolução nº 001/86,26 além de definir o que deve ser considerado impacto ambiental, estipulou o rol de atividades modificadoras do meio ambiente,27 sujeitas ao licenciamento pelo órgão estadual integrante do SISNAMA, mediante a elaboração de EIA/RIMA, mas sem fazer refe-rência expressa à significância do impacto.

Já o Decreto nº 99.274, de 1990, em seu art. 19,28 com teor repetido no art. 8º da Resolução CONAMA nº 237/97, define que, para

- Resolução nº 09/90, que trata do licenciamento ambiental de extração mineral de todas as classes, exceto a II, e exige, entre outros pontos, a apresentação de Plano de Controle Ambiental (PCA) no ato de requerimento da LI;- Resolução nº 10/90, que dispõe sobre o licenciamento ambiental de extração mineral da classe II (materiais de uso na construção civil), também exigindo o PCA;- Resolução nº 378/06, que define os empreendimentos potencialmente causadores de impacto ambiental nacional ou regional para fins do disposto no inciso III, §1º, art. 19 da Lei nº 4.771/65 (Código Florestal).

26 Art. 1º Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II - as atividades sociais e econômicas; III - a biota; IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V - a qualidade dos recursos ambientais.Art. 2º Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental – RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do IBAMA e1n caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: [...]VIII - Extração de combustível fóssil (petróleo, xisto, carvão); IX - Extração de minério, inclusive os da classe II, definidas no Código de Mineração; [...].

27 Maurício Boratto Viana (2007) complementa que parte da doutrina entende que todas as atividades e empreendimentos listados nas Resoluções CONAMA nºs 001/86 (art. 2º) e 237/97 (art. 2º, §1º e Anexo 1) estão sujeitos, respectivamente, a EIA/RIMA e a licenciamento ambiental, podendo outros ser acrescidos. Em outras palavras, as listagens seriam obrigatórias, embora não exaustivas.Outra parte da doutrina, minoritária, acredita que as listagens são só exemplificativas, ou seja, algumas atividades ou empreendimentos poderiam ser delas excluídos, desde que assim definido pelo órgão ambiental. O próprio §2º do art. 2º da Resolução nº 237/97 estatui que “caberá ao órgão ambiental competente definir os critérios de exigibilidade, o detalhamento e a complementação do Anexo 1, levando em consideração as especificidades, os riscos ambientais, o porte e outras características do empreendimento ou atividade”.

28 Art. 19. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças: I - Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo; II - Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado; e III - Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévia e de Instalação.1º Os prazos para a concessão das licenças serão fixados pelo Conama, observada a natureza técnica da atividade. 2º Nos casos previstos em resolução do Conama, o licenciamento de que trata este artigo dependerá de homologação do Ibama. 3º Iniciadas as atividades de implantação e operação, antes da expedição das respectivas licenças, os dirigentes dos Órgãos Setoriais do Ibama deverão, sob pena de responsabilidade funcional, comunicar o fato às entidades financiadoras dessas atividades, sem prejuízo da imposição de penalidades, medidas administrativas de interdição, judiciais, de embargo, e outras providências cautelares. 4º O licenciamento dos estabelecimentos destinados a produzir materiais nucleares ou a utilizar a energia nuclear e suas aplicações, competirá à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CENEN), mediante parecer do Ibama, ouvidos os órgãos de controle ambiental estaduais ou municipais.

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ser titular de concessão de lavra, deverá o minerador obter, junto aos órgãos ambientais competentes, três espécies de licenças: a Licença Am-bien tal Prévia (LP), a Licença Ambiental de Instalação (LI) e a Licença Ambiental de Operação (LO).

Desta feita, tendo em conta as normas federais, os Estados pode-riam ser mais exigentes — estabelecendo outras condicionantes, por exemplo —, mas não poderiam exigir menos.

Nos últimos anos, contudo, vários Estados brasileiros criaram a modalidade da autorização ambiental, geralmente para atividades não sujeitas a LP/LI/LO ou a EIA/RIMA, ou ainda para atividades temporá-rias, de pequeno porte ou de impacto ambiental reduzido. Isso também ocorreu em Minas Gerais, em 2004, através da Deliberação Normativa COPAM nº 74/2004, com a criação da Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF), como resposta ao contínuo aumento da demanda por licenciamento.

5 Autorização Ambiental de Funcionamento como instituto diferenciado do licenciamento ambiental

Após citar os vários conflitos existentes entre as legislações estaduais e as normas federais supracitadas, Viana29 opina:

Quanto à existência de autorização ambiental em diversas normas estaduais, a discussão é mais complexa. A despeito de entendimentos contrários, o ins-trumento do licenciamento ambiental, no Brasil, foi direcionado à outorga de licenças, ou seja, atos administrativos vinculados e definitivos, declaratórios de direito preexistente e geradores de direito subjetivo, no âmbito do seu prazo de validade. É o que consta, implícita ou expressamente, nas principais normas federais sobre licenciamento ambiental (Lei 6.938/81, Decreto 99.274/90 e Resoluções CONAMA 001/86 e 237/97). [...]

A despeito disso, vários estados (AP, BA, DF, ES, MS, MG, PA, PE, RR, SE) criaram a modalidade da autorização ambiental, com caráter discricionário e precário, constitutivo de direitos e não gerador de direitos subjetivos, para atividades não sujeitas a LP/LI/LO ou a EIA/RIMA, ou ainda para atividades temporárias, de pequeno porte ou de impacto ambiental reduzido. Tal autorização tem, em geral, natureza declaratória, e às vezes independe de fiscalização por parte do órgão ambiental.

29 SOUZA; CARNEIRO, 2009, p. 334.

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Em síntese, para os fins de cumprir as normas federais, qualquer empreendimento potencialmente poluidor ou degradador do meio am-biente sujeitar-se-ia, em tese, a licenciamento ambiental, com a obtenção sucessiva de LP, LI e LO. Mesmo aquele que não cause impacto ambiental significativo estaria sujeito a licenciamento, embora dispensasse a ela-boração de EIA/RIMA, substituído por outro estudo mais simplificado ou específico.

Entretanto, como dito, em Minas Gerais, com a Deliberação Nor-mativa30 COPAM nº 74/2004, há uma flexibilização até mesmo da necessi-dade de licenciamento ambiental, mediante a introdução da moda lidade de autorização ambiental.

A DN COPAM nº 74/2004 é a norma que regulamenta o licencia-mento ambiental no Estado de Minas Gerais e estabelece critérios para classificação dos empreendimentos e atividade em conformidade com o porte e potencial poluidor.

Segundo a norma — por nós aqui questionada quanto a aspectos de constitucionalidade e legalidade de alguns de seus pontos —, a re-gularidade ambiental de empreendimentos enquadrados nas classes 1 e 2,31 perfaz-se com a obtenção da denominada Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF).

30 Esclarecemos que as Deliberações Normativas do COPAM são normas jurídicas regulamentares emanadas do Conselho Estadual de Política Ambiental, órgão a quem, em Minas Gerais, compete determinar os conteúdos da política de proteção ao meio ambiente, nos termos do art. 3º da Lei Estadual nº 12.585/97.

31 Art. 2º Os empreendimentos e atividades listados no Anexo Único desta Deliberação Normativa, enquadrados nas classes 1 e 2, considerados de impacto ambiental não significativo, ficam dispensados do processo de licenciamento ambiental no nível estadual, mas sujeitos obrigatoriamente à Autorização Ambiental de Funcionamento – AAF, pelo órgão ambiental estadual competente, mediante cadastro iniciado pelo requerente junto à Superintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – SUPRAM competente, acompanhado de Termo de Responsabilidade, assinado pelo titular do empreendimento e de Anotação de Responsabilidade Técnica ou equivalente do profissional responsável.§1º A autorização ambiental de funcionamento somente será efetivada se comprovada a regularidade face às exigências de autorização para intervenção ambiental/florestal, através da emissão do Documento Autorizativo para Intervenção Ambiental – DAIA, e de Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos, através da emissão da outorga. §2º As Autorizações Ambientais de Funcionamento dos empreendimentos constituídos através do Programa Minas Fácil, regulamentado pelo Decreto 44.106, de 14 de setembro de 2005 localizados em áreas urbanas e que não importem em supressão de vegetação, intervenção em área de preservação permanente, regularização de reserva legal ou que não dependam de intervenção em recurso hídrico, poderão ser emitidas por autenticação eletrônica, na forma definida pelo COPAM. §3º A validade das Autorizações Ambientais de Funcionamento de que trata o parágrafo anterior estará condicionada à apresentação e validação, pelo titular do empreendimento ou seu representante legal, do termo de responsabilidade e anotação de responsabilidade técnica no prazo de 30 dias à SUPRAM de atuação do empreendimento, mediante protocolo e recibo de entrega. §4º A não apresentação do termo de responsabilidade e da anotação de responsabilidade técnica no prazo do parágrafo anterior acarretará o imediato cancelamento da AAF expedida eletronicamente e sujeitará o responsável às sanções cabíveis. §5º Os órgãos ambientais competentes procederão à verificação de conformidade legal nos empre en-dimentos a que se refere o caput deste artigo, conforme critérios definidos pelo COPAM.

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A DN nº 74/2004 — violando até mesmo a própria normatização estadual,32 de hierarquia imediatamente superior, mas, mormente, colo-cando por terra a legislação federal já citada — exigiu para a concessão da AAF, tão somente: a) cadastro iniciado através de Formulário Integrado de Caracterização do Empreendimento, preenchido pelo requerente; b) Termo de Responsabilidade, assinado pelo titular do empreendimento, e Anotação de Responsabilidade Técnica, ou equivalente, do profissional responsável; e c) Autorização Ambiental para Exploração Florestal (APEF) e de Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos.

Trata-se, a Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF), de novo sistema de controle ambiental,33 podendo ser entendida como um ato administrativo que autoriza o funcionamento de atividades cujos impactos ambientais não são, por definição, significativos para pôr em marcha processos de licenciamento junto aos órgãos estaduais. Exige-se que o responsável legal pelo empreendimento assuma, formalmente, a responsabilidade por eventuais danos ao meio ambiente (via Termo de Responsabilidade) e que o profissional legalmente habilitado, às expen-sas desse empreendedor, promova prévia avaliação ambiental e defina o sistema de controle adequado, atestando a regularidade do empreendi-mento com as normas ambientais, tudo formalizado pela Anotação de Responsabilidade Técnica (ART).

Se os impactos ambientais não são significativos, assim qualificados pelos integrantes do SISNAMA por meio de seus respectivos atos

§6º O termo de responsabilidade de que trata o caput deste artigo deverá expressar apenas as questões da legislação ambiental pertinente à autorização de funcionamento em foco. §7º O órgão ambiental fará a convocação do empreendedor nos casos em que considerar necessário o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades enquadrados nas classes 1 e 2. §8º Os prazos de vigência da AAF de que trata o caput deste artigo serão definidos pelo COPAM.

32 Em Minas Gerais, a Lei Estadual nº 7.772/80, em seu art. 8º, prevê os instrumentos do Licenciamento Ambiental e da Autorização Ambiental de Funcionamento como ferramentas para a prevenção e controle de degradações ambientais.Por seu turno, o Decreto nº 44.844/2008 estabelece que compete ao COPAM estabelecer, por meio de Deliberação Normativa, os critérios para classificação dos empreendimentos ou atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou degradadores do meio ambiente, especificando quais serão passíveis de Licenciamento Ambiental ou de Autorização Ambiental de Funcionamento – AAF (art. 3º).Ainda de acordo com o mesmo Decreto, entende-se por formalização do processo de Licenciamento Ambiental e de AAF a apresentação do respectivo requerimento, acompanhado dos documentos, projetos e estudos ambientais exigidos pelo órgão ambiental competente (art. 8º).

33 Segundo o Parecer AAF DINOP-MG, da lavra do Dr. Augusto Henrique Lio Horta – DINOP/SEMAD, a AAF surgiu da “ponderação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da avaliação de impactos ambientais, veio de ser a mudança estrutural de que necessitava o sistema ambiental mineiro para manter-se credível e funcional, duas condições sine qua o controle das fontes de poluição promovidas pelo Estado não pode ser exercido eficiente”.

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normativos, não há obrigatoriedade de licenciamento ambiental e, via de consequência, de exigência de licença ambiental a que se refere o art. 12 da Lei Federal nº 6.938/81. O que se há de exigir, em Minas Gerais, é a comprovação da regularidade ambiental, o que se faz com a apre sen-tação da Autorização Ambiental de Funcionamento, único ato exigível nessa hipótese (evidentemente, se o município exigir o licenciamento am biental, os dois atos autorizativos serão necessários e suficientes à com provação da regularidade).

Com efeito, a AAF não pode ser considerada uma forma de licen-ciamento ambiental, o que resta ainda mais evidente nos casos de empre-endimentos minerários, eis que não possibilita a avaliação do status quo ante e a posteriori pela Administração, razão pela qual não se faz possível a regular recuperação ambiental.

6 Procedimento simplificado na contramão do desenvolvimento sustentável

O processo de licenciamento ambiental, apesar de moroso e tra-balhoso, sempre permitiu uma discussão em alto nível sobre o controle ambiental das atividades produtivas, com transparência, participação dos diversos setores interessados e o devido controle social.

No caso de licenciamento ambiental, a análise técnica do processo é realizada pelo exame da documentação (RCA/PCA ou EIA/RIMA, seguido do PCA) pela equipe técnica e pela vistoria ao empreendimento. Em algumas situações previstas em norma, são realizadas audiências públicas para conhecimento e participação das comunidades, bem como solicitadas informações comple-mentares aos documentos apresentados.

Depois de vistoriado o empreendimento e analisadas todas as informações do processo, é emitido parecer técnico, composto pelos seguintes itens: re-sumo, introdução, discussão dos estudos apresentados pelo empreendedor, contemplando a caracterização do empreendimento, avaliação do diagnóstico ambiental, impactos identificados e medidas mitigadoras, conclusões e pro-postas de condicionantes para a concessão da licença. Esse parecer é revisto e aprovado pelo gerente e diretor da área técnica e encaminhado para a Procuradoria Jurídica. Nessa etapa, com o parecer jurídico, o processo de licen cia mento é concluído e encaminhado para julgamento pelas câmaras técnicas do COPAM.34

34 VIANA, 2007.

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Noutro passo, não há no procedimento simplificado de emissão da AAF a apresentação, pelo empreendedor, de qualquer Avaliação de Impacto Ambiental (AIA),35 pelo que não será possível averiguar a extensão dos danos causados. Paira-nos, assim, algumas dúvidas:

Mas como explorar os recursos minerais e preservar o meio ambiente ao mesmo tempo?

Considerando-se que a exploração de uma jazida de minério provoca im-pacto ambiental, extrair matéria básica do meio ambiente para produção de bens e serviços, implica estabelecer qual é o limite para o crescimento e o desenvolvimento sustentável, e a partir de então considerar essa atividade como não abusiva e o dano como reparável.36

Ocorre que o limite para o crescimento é estabelecido pelos estudos prévios, necessários ao licenciamento ambiental,37 que representa um importante avanço para o desenvolvimento sustentável e constitui um bom

35 A “AIA, em tese, pode ocorrer dentro ou fora do processo administrativo de licenciamento ambiental, a que todas as atividades efetiva ou potencialmente degradadoras estão sujeitas, enquanto que o EIA/RIMA só ocorre no âmbito dele. Todavia, como o Decreto 88.351/83, que regulamentou a Lei 6.938/81 e foi posteriormente revogado pelo Decreto 99.247/90, vinculou a AIA ao procedimento de licenciamento ambiental, ela acabou, na prática, se tornando uma etapa deste, uma ferramenta que fornece subsídios técnicos para a concessão ou não da licença. Mas nos casos de significativa degradação ambiental, a teor do art. 225, §2º, inciso IV, da CF, é exigido EIA/RIMA por ocasião do licenciamento ambiental.Como conclusão, o licenciamento ambiental é, no âmbito do SISNAMA, o principal instrumento de controle ambiental de empreendimentos e atividades potencialmente poluidores ou degradadores do meio ambiente. Já a AIA, além de constituir um instrumento do processo de tomada de decisão, dentro ou fora do processo de licenciamento, acaba sendo mais utilizada como etapa deste, sendo o EIA/RIMA apenas um de seus elementos, talvez o mais importante, exigido nos casos de impacto significativo” (VIANA, 2007).

36 SOARES, 2011.37 “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Art. 182, §3º, da Constituição do Estado de Santa Catarina. Estudo

de im pacto ambiental. Contrariedade ao art. 225, §1º, IV, da Carta da República. A norma impugnada, ao dis pen sar a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou re flo res tamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado inciso IV do §1º do art. 225 da CF” (ADI nº 1.086, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 07.06.2001, Plenário, DJ, 10 ago. 2001).“Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Periculum in mora não evidenciado. [...] A licença de instalação levou em conta o fato de que as condicionantes para a licença prévia estão sendo cumpridas, tendo o Ibama apresentado programas e planos relevantes para o sucesso da obra, dos quais resultaram novas condicionantes para a validade da referida licença de instalação. A correta execução do projeto depende, primordialmente, da efetiva fiscalização e empenho do Estado para proteger o meio ambiente e as sociedades próximas. Havendo, tão somente, a construção de canal passando dentro de terra indígena, sem evidência maior de que recursos naturais hídricos serão utilizados, não há necessidade da autorização do Congresso Nacional. O meio ambiente não é incompatível com projetos de desenvolvimento econômico e social que cuidem de preservá-lo como patrimônio da humanidade. Com isso, pode-se afirmar que o meio ambiente pode ser palco para a promoção do homem todo e de todos os homens. Se não é possível considerar o projeto como inviável do ponto de vista ambiental, ausente nesta fase processual qualquer violação de norma constitucional ou legal, potente para o deferimento da cautela pretendida, a opção por esse projeto escapa inteiramente do âmbito desta Suprema Corte. Dizer sim ou não à transposição não compete ao Juiz, que se limita a examinar os aspectos normativos, no caso, para proteger o meio ambiente” (ACO nº 876-MC-AgR, Rel. Min. Menezes Direito, j. 19.12.2007, Plenário, DJE, 1º ago. 2008).

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exemplo a ser seguido pelos países em desenvolvimento. Carneiro apud Soares (2011)38 acrescenta:

[...] a utilização de recursos naturais por parte das atividades humanas implica necessariamente um interferência, em graus e formas variadas, no equilíbrio ecológico do meio ambiente, enquanto bem de uso comum da inteira coletividade.

Ocorre, portanto, uma apropriação privada de um bem de titularidade difusa, sem que a sociedade seja por isso devidamente compensada em razão dos custos sócias (extenalidade negativas) [...].

Mas como a coletividade será compensada se, com a AAF, não exis tiu uma avaliação prévia in locu para prevenir quais os impactos am-bientais da atividade? Para realização da atividade mineraria é impres-cindível o estudo de impacto ambiental.39

É o princípio da prevenção que fundamenta a realização do plano de recuperação anteriormente ao exercício da atividade, abrindo ensejo para que o Poder Público determine as medidas possíveis de mitigação e compensação dos impactos a serem gerados, ao mesmo tempo que per-mite que a reabilitação da área faça parte de todo o processo produtivo,

38 SOARES, 2011.39 CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PUBLICA. MEIO AMBIENTE. 1. A elaboração de estudo com relatório de

impacto ambiental constituem exigência constitucional para licenciamento de atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio-ambiente. 2. A Resolução 001/86 do Conama apenas prescinde do eia/rima com relação a projetos urbanísticos de área inferior a 100 há. 3. O relatório de viabilidade ambiental não é idôneo e suficiente para substituir o estudo de impacto ambiental e respectivo relatório (TRF 5ª R.; AC nº 50495; Proc. 9405173820; CE; Segunda Turma; Rel. Juiz José Delgado; j. 02.08.1994; DJU, 23 set. 1994). No mesmo sentido o TJMG tem reconhecido a nulidade das autorizações ambientais concedidas de tal forma. Ex.: Agravo nº 1.0092.07.011326-8/001.RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. ATIVIDADE DE EXPLORAÇÃO DE MINERAÇÃO. POSSIBILIDADE DE CAUSAR DANOS AO MEIO AMBIENTE. NECESSIDADE DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO OU DA CAUTELA.Tratando-se de exploração de atividade de mineração revelando-se passível de causar danos ao meio ambiente deve-se obter licenciamento ambiental para seu exercício atendendo-se ao princípio da proteção ou da cautela (TJMT; RAI 15646/2007; Alta Floresta; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Maria Helena Gargaglione Póvoas; j. 12.12.2007; DJMT, 16.01.2008; p. 17).AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IRREGULARIDADE EM ATIVIDADE DE MINERAÇÃO. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. OBRIGATORIEDADE DE APRESENTAÇÃO DE ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E RELATÓRIO DE IMPACTO SOBRE O MEIO AMBIENTE. Obrigatoriedade de apresentação de Estudo de Impacto Ambiental – EIA e Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA, para as atividades consideradas efetiva ou poten-cialmente causadoras de significativa degradação ambiental (artigo 3º da Resolução CONAMA 237/97). Os pedidos de licença ambiental de empreendimentos minerários devem ser protocolizados na CETESB (artigo 4º, Resolução SMA nº 4/99) (TRF 3ª R.; AC nº 1062702; Proc. 2003.61.04.001816-9; SP; Rel. Juíza Federal Conv. Mônica Nobre; DEJF, 25.03.2009; p. 929).AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE LIBERA AS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO POR 120 DIAS. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. Perícia judicial não equivale ao eia/rima. procedimentos diversos. agravo de instrumento desprovido (TRF 4ª R.; AI nº 2008.04.00.028193-0; SC; Terceira Turma; Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz; j. 21.10.2008; DEJF, 05.11.2008; p. 333).

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criando, para o agente econômico, a preocupação em produzir o menor grau de prejuízo ao meio ambiente.

No caso das atividades minerárias, a AAF, embora contribua para a regularização formal de empreendimentos de menor porte e potencial poluidor, retirando-os da clandestinidade, promove, simultaneamente, por não vir acompanhada de estudos de impactos e, mormente, de fis-calização, um retrocesso no controle ambiental efetivo dessas atividades. Este é o entendimento da melhor doutrina:40

De fato, a AAF imprime maior agilidade na regularização ambiental do em-preendedor por parte do órgão ambiental, mas ela exclui os estudos ambien-tais e a AIA. Assim, na ausência de maiores informações socioambientais, o órgão ambiental corre o risco de autorizar empreendimentos, mesmo que de menor porte e potencial poluidor, em locais ou condições inadequadas. Além disso, ela não permite o estabelecimento de condicionantes, uma vez que, entre outros documentos de natureza formal, a AAF compõe-se somente de um termo de responsabilidade de que a empresa x, assessorada tecnicamente pela consultoria y, está cumprindo as leis ambientais. Com isso, perde-se um importante instrumento para resguardar tanto o meio ambiente local quanto os interesses das comunidades vizinhas. [...]Adicionalmente, a AAF não se encaixa no procedimento integrado estabe-lecido há anos pelos órgãos mineral (DNPM) e ambiental (FEAM/COPAM) para os casos de licenciamento de atividades minerárias, a saber: de posse do alvará ou do relatório de pesquisa mineral, a empresa efetua os estudos ambientais (RCA/PCA ou EIA/RIMA) e pleiteia a LP junto ao órgão ambiental; obtida esta, o DNPM manifesta-se dizendo que o Plano de Aproveitamento Econômico – PAE é considerado satisfatório; com essa declaração, a empresa obtém a LI junto ao órgão ambiental, se cumpridas as condicionantes esta-belecidas na LP; de posse da LI, a empresa volta ao DNPM para requerer a portaria de lavra; e só aí, após obtê-la, a empresa retorna ao órgão ambiental para solicitar a LO.

Inexiste um procedimento que viabilize a fiscalização efetiva do Estado, diferente do constatado no licenciamento ambiental. Durante a etapa de licenciamento, há uma atuação constante do órgão ambiental junto ao empreendedor, orientando-o, da mesma forma que a consultoria por ele con-tratada, quanto às medidas necessárias à adequação ambiental da atividade.41

40 VIANA, 2007.41 Idem.

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A “procedimentalização” da avaliação dos impactos ambientais funciona como eficiente mecanismo da Administração para tutela pre-ventiva da atividade, na medida em que propicia visibilidade ao processo de formação da vontade administrativa e também há, nessa ocasião, certo controle pela sociedade civil.

É comum entenderem como alcançada justiça somente quando for eficiente, rápida e acessível. Entretanto, deve-se ter a preocupação em não se incorrer em abusos de autoridade, de modo a submeter o cidadão a decisões antidemocráticas.42 Afinal, a efetividade da cidadania, e do próprio Estado Democrático de Direito, decorre do aceso ao processo, instituição capaz de garantir o controle e fiscalização.

O discurso neoliberal de produtividade e rapidez afeta o fluxo processual, com decisões que não primam pela adequação constitucio-nal. Não há uma busca pela legitimidade que, por sua vez, ocorrerá, somente, com o provimento partindo da análise das especificidades do caso concreto.43

O que se deve defender é a existência de um tempo razoável para o acertamento das questões controvertidas e para a atuação dos sujeitos de maneira comparticipativa para formação dos provimentos, a significar que devem ser evitadas dilações indevidas do processo. Estas, em sua maioria, se referem a períodos prolongados de paralisia procedimental, nos quais não se praticam atos no processo ou o são fora da previsão legal do tempo em que devem ser realizados — etapas mortas do processo.44

A defesa cega da celeridade45 está indo de encontro ao Estado Democrático de Direito, que exige decisões com qualidade e, quanto me-lhor o espaço de diálogo entre as partes, existindo maiores oportunidades

42 Dispensar ou restringir qualquer das garantias processuais constitucionais não é simplificar, deformalizar, agilizar o procedimento, privilegiando a efetividade da tutela, sim favorecer o arbítrio em benefício do desafogo dos juízes e tribunais (PASSOS apud DIAS, 2010). Os provimentos jamais poderão ser atos isolados do órgão julgador, ditando ou criando direitos ao seu talante (DIAS, 2010, p. 38).

43 Aqui, citamos Menelick Carvalho Neto (1998): “no paradigma do Estado Democrático de Direito, é preciso requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e as regras do direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na lega-lidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do direito, quanto no sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto”.

44 DIAS, 2010, p. 158.45 Não se pode, como preleciona Baracho (1999, p. 97-98), buscar a simplicidade e eficácia processuais

com sacrifício das garantias fundamentais do processo, com procura de sistema jurídico menos opressivo e menos gravoso economicamente.

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de participação, melhores serão as decisões judiciais. Afinal, a decisão não se qualifica como justa pelo critério da rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não se poderá, também, na sentença.46

Em verdade, a busca pela celeridade nos processos de tomada de decisão é uma tendência da sociedade moderna. Ocorre, contudo, que a etapa anterior à obtenção da LP, quando são definidas a viabilidade ambiental do empreendimento e sua alternativa técnica e locacional mais adequada, é extremamente importante ao desenvolvimento sustentável. O objetivo dos estudos ambientais, quaisquer que sejam eles, é subsidiar a tomada de decisão quanto à viabilidade ambiental do empreendimento e suas alternativas técnicas e locacionais.

Contrariando a busca atual pelo procedimento simplificado, Juarez Freitas explica que é nítido que as estratégias sustentáveis são necessaria-mente aquelas de longa duração, não as governadas por impulsos reptilianos ou pela compulsão da obsolescência programada.47 E, na linha de se frear abusos ambientais na busca pelo desenvolvimento, o autor acrescenta que a irracionalidade conducente à catástrofe nada mais é do que a resultante dos desejos dilapidadores e da ilusão cheia de sofismas do crescimento material ilimitado como solução.

Entrementes, independentemente de o procedimento simplificado ir ou não de encontro ao crescimento econômico de uma atividade — a mineração — pagadora de um volume alto de tributos, deve ser con-siderado insustentável o desenvolvimento que se tornar, em longo prazo, negador da dignidade dos seres vivos em geral.48

Afinal, a sustentabilidade é que deve adjetivar, condicionar e infundir as suas características ao desenvolvimento, nunca o contrário.49

7 AAF em atividades minerárias – Lavra ilegal por nulidadeDito isso, conclui-se que a AAF não pode ser entendida como

instru mento, legítimo, a autorizar ambientalmente o funcionamento de ativi dades minerárias.

46 GONÇALVES, 1992.47 FREITAS, 2012.48 Idem.49 Idem.

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Ao definir as classes de aplicação do instituto da AAF, o Estado de Minas Gerais parte da premissa, equivocada, de que todas as atividades minerárias definidas nas classes 1 e 2 não se enquadrariam na expressão “efetiva e potencialmente poluidores”, bem como não seriam capazes, sob qualquer forma, de causar “degradação ambiental”.

Ora, somente para se ter uma ideia, em Minas Gerais é possível obter AAFs para autorizar extração de granito ornamental. A jazida é constituída de blocos e blocos retirados das mais variadas camadas da ter-ra, gerando um grande buraco e rejeito no entorno. Como pode esse em-preendimento ser considerado de impacto ambiental não significativo?

Acrescente-se, a isso, o fato de que a classificação do empreendi-mento se baseia nas informações prestadas pelo minerador, ou seja, é o empreendedor que classifica o porte de sua atividade. O minerador preenche o Formulário de Caracterização do Empreendimento (FCE) e, a partir dele, o órgão ambiental gera o Formulário de Orientação Básica (FOB), no qual são listados os documentos necessários ao empreendedor para formalização do processo simplificado de emissão da AAF.

Ademais, se não houve vistoria prévia, como pode o Estado garantir que o local do empreendimento não se encontra em Área de Preservação Permanente, por exemplo? Por que o minerador assim o garantiu?

Corroborando os motivos para não aceitarmos a AAF para ativida-des minerárias, mais uma vez, citamos informações colhidas no trabalho de Viana:50

Outra prática corriqueiramente observada nos últimos anos, embora não admitida oficialmente, é o falseamento da declaração, por parte do empre-endedor, das corretas dimensões do empreendimento, com o objetivo de que ele seja enquadrado em classe inferior à real, portanto com menores exi gências, se possível encaixando-se no âmbito da AAF e livrando-se do pro-cesso de licenciamento ambiental. Virou motivo de zombaria, por exemplo, o fato de uma conhecida mineradora ter procurado ampliar uma das maiores minas do estado mediante o requerimento de 19 AAFs em áreas contíguas, com o deliberado objetivo de burlar as normas vigentes, o que foi denegado pelo órgão ambiental. [...]

Outro exemplo de tentativa de burla à legislação, à qual o órgão ambiental também deve estar atento, é a declaração por parte da empresa de que “só

50 SOUZA; CARNEIRO, 2009, p. 334.

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haverá lavra”, ou seja, de que não será implantada unidade de beneficia-mento, o que levaria o empreendimento ao enquadramento numa classe inferior. Acontece que o beneficiamento por vezes é efetuado em outro lo-cal, o que, é evidente, também deve ser considerado para a classificação do empreendimento.

Álvaro Luiz Valery Mirra51 ensina:

Assim, o que se conclui é que as normas federais que disciplinam o estudo de impacto ambiental — Lei nº 6938/1981, Decreto nº 99.274/1990 e Resolução CONAMA 001/1986 do CONAMA — são, efetivamente, em sua integralidade e em todos os seus aspectos, normas gerais e, por se mostrarem compatíveis com a previsão constitucional do art. 24, §1º da Constituição de 1988, não podem ser contrariadas pelas normas dos Estados e Municípios para o fim de reduzir o grau de proteção do meio ambiente.

Desta feita, tendo as Resoluções CONAMA nºs 01/86, 09/90, 10/90 e 237/97 exigido, expressamente, o licenciamento ambiental clássico, não pode o Estado de Minas Gerais se afastar do comando.

Afinal, o princípio da legalidade52 se impõe aos atos administra-tivos. Se a norma federal impõe a realização de Avaliação e/ou Estudo Prévio de Impactos Ambientais, não é lícito ao Poder Público estadual ou municipal, direta ou indiretamente, dispensá-los.

Exigir ou não a licença ambiental às atividades minerárias, longe de ser mera faculdade do administrador, constitui dever inafastável53 para regularização ambiental das atividades modificadoras do meio ambiente.

51 MIRRA, 2008.52 Antônio Herman Benjamin diz que o princípio da legalidade, na órbita do licenciamento ambiental, significa

que o administrador, em hipótese alguma, pode se desviar da lei ou dos princípios especiais que regem a matéria. É, na palavra de Renato Alessi, a “conformità allá legge”, ou seja, à lei ambiental. Consubstancia-se na exigência de que o ato sirva à fieldade o objetivo legal. E esse objetivo legal é a proteção do meio ambiente.O princípio da obrigatoriedade reza que o EIA não se encontra, essencialmente, no âmbito do poder discricionário da Administração. Ou seja, a aprovação do EIA é pressuposto indeclinável para o licenciamento da atividade. A regra é a elaboração do EIA, a exceção sua dispensa.

53 Machado (2001) ressalta que não invade a autonomia dos Estados o estabelecimento dessas normas e critérios pelo CONAMA, pois a proteção do meio ambiente é de competência concorrente da União e dos Estados (art. 24, VI, da CF) e à União está reservado o estabelecimento de normas gerais (art. 24, §1º, da CF). Citando Odete Medauar, o Prof. Paulo Affonso Leme Machado destaca que se a Constituição Federal atribui competência à União para editar normas gerais sobre certa matéria, determina, em decorrência, que tais disposições fixadas em lei federal hão de ser observadas pelos Estados e Municípios, sem que se cogite, no caso, de qualquer interferência ou desrespeito à autonomia dos Estados-membros ou Municípios.A intervenção do Poder Público estadual está integrada na matéria da Administração estadual. Entretanto, a legislação federal — no que concerne às normas gerais — é obrigatória para todos os Estados... Desconhecer ou não aplicar integralmente ou somente aplicar de forma parcial a legislação federal implica para os Estados o dever de eles mesmos anularem a autorização concedida ou de pedir a tutela do Poder Judiciário para decretar a anulação.

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Assim, a DN COPAM nº 74/2004 não deve ser entendida como válida. Afinal, considerando que a Administração Pública deverá ficar restrita aos limites da lei, rigorosamente atrelada ao princípio da legalidade, um ato administrativo normativo contrário à lei não terá validade.54

Ademais disso, em verdade, a inconstitucionalidade de tal diploma transparece evidente, sendo de se destacar que sobre matéria símile já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ESTUDO DE IMPACTO AM-BIEN TAL. EIA. CF art. 225, §1º, IV. Cabe ao Poder Público exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de sig-nificativa degradação do meio ambiente, estudo de impacto ambiental, a que se dará publicidade. Considerando-se a importância do EIA como poderoso instrumento preventivo ao dano ecológico e a consagração, pelo consti tuinte, da preservação do meio ambiente como valor e princípio, conclui-se que a competência conferida ao Município para legislar em relação a esse valor só será legítima se, no exercício dessa prerrogativa, esse ente estabe lecer normas capazes de aperfeiçoar a proteção à ecologia,nunca, de flexibilizá-la ou abrandá-la. (STF, AgRg no RE nº 396.541-7/RS, Rel. Min. Carlos Veloso, j. 14.06.2005)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 182, §3º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. CONTRAIEDADE AO ARTIGO 225, §1º, IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. A norma impugnada, ao dispensar a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado inciso IV do §1º do artigo 225 da Constituição Federal. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo constitucional catarinense sob enfoque. (STF, ADI nº 1.086/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 10.08.2001)

Com efeito, urge a propositura de uma Ação Direta de Inconstitu-cionalidade, em face do art. 2º da DN COPAM nº 74/2004, com pedido de exclusão do anexo, não somente da extração de ferro,55 mas de todas as atividades minerárias.

54 RIBEIRO, 2005.55 O Ministério Público Estadual obteve o deferimento liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade, que,

sob o nº 0024.10.244.073-2, está em trâmite no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 2ª Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte, e, ao julgar o recurso de Embargos de Declaração apresentado pelo Estado de Minas Gerais contra a decisão liminar, o juízo esclareceu que a suspensão da DN COPAM nº 74/2004, mormente seu artigo 2º, somente diz respeito às atividades de extração de beneficiamento de minério de ferro, como pedido pelo MPMG.

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Destarte, não se entende como legítima a exigência de, somente, AAF para regularização de atividades minerárias, pelo que o ato admi-nistrativo que concedeu o título de lavra, seja a Guia de Utilização ou a Portaria de Lavra, deve, via de consequência, ser entendido como nulo.

É que, na exata determinação dos arts. 3º e 16 da Lei nº 7.805/89, o licenciamento ambiental prévio é elemento essencial do ato administra-tivo de concessão de lavra. Com efeito, não há no ato de deferimento do título de lavra o necessário pressuposto de validade, qual seja, a licença ambiental prévia. Assim, nulo deve ser entendido o ato que expediu a Guia de Utilização e/ou a Portaria de Lavra.

É que, de acordo com a melhor doutrina administrativista, o ato administrativo deve ser compreendido a partir de toda emanação uni-lateral de vontade, juízo ou conhecimento, predisposta à produção de efeitos jurídicos, expedida pelo Estado, no exercício de suas prerrogativas e como parte interessada numa relação, estabelecida na conformidade ou na compatibilidade da lei, sob o fundamento de cumprir as finalidades assinaladas no sistema normativo (GASPARINI, 2004).

Presentes os elementos indispensáveis à formação dos atos admi-nistrativos e estando plenamente ajustados às exigências legais, temos o ato perfeito e válido. O ato administrativo perfeito e válido é aquele que reúne elementos essenciais para a sua formação, tem que possuir todos os elementos que a lei exige, e dessa maneira se aperfeiçoa e passa a existir no mundo jurídico.

Carvalho Filho (2009) afirma que para o ato administrativo ser considerado válido ele deve ser legal, deve observar os requisitos de validade para que possa produzir normalmente seus efeitos. E que sem eles o ato não poderia ter a eficácia desejada pela Administração, sendo, portanto, um ato nulo.56

Com efeito, não sendo a Autorização Ambiental de Funcionamento um licenciamento ambiental e, ainda, devido à inexistência de estudos de impactos, não sendo, inclusive, um instrumento constitucional para

56 Este tipo de ato teria que ter o vício de legalidade. Vício aqui pode ser no elemento competência, que quer dizer a inadequação entre a conduta e as atribuições do agente. Pode ser no elemento finalidade, que consiste na prática de ato diferenciado a interesses privados e não ao interesse público e também no elemento vício, de forma que não atende o procedimento, o meio de exteriorização previsto em lei para a apresentação do ato administrativo.

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Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 151

os fins de regularizar atividades ambientais, entendemos que não foi cumprido pressuposto de validade do ato administrativo de expedição do título de lavra.

Desta feita, devido à nulidade latente do título de lavra deferido mediante apresentação de AAFs, existe doutrina57 suficiente a respaldar como ilegais as lavras decorrentes do ato nulo. Há quem diga, inclusive, que são inexistentes esses atos administrativos, quais sejam, os títulos de lavra.

Entretanto, a bem da razoabilidade, como em Minas Gerais foram expedidos centenas ou milhares de AAFs, para os fins de não causar um caos econômico no setor, a nulidade deverá ser declarada. Para tanto, urge ao DNPM publicar ato com esse fim, chamando os feitos à ordem, e exigindo a regularização ambiental legítima.

Pode-se, também, ser declarada a nulidade do título de lavra me-diante procedimentos judiciais, propostos por, por exemplo, Ministério Público Federal, IBAMA, União ou qualquer pessoa prejudicada pela lavra ilegal.

Nessa linha, as lavras amparadas com títulos precedidos de AAFs podem e devem ser entendidas,58 judicialmente ou mediante declaração de nulidade da autarquia, como lavras ilegais, por nulidade do título de lavra expedido.

8 ConclusãoFinalizando este trabalho, é clarividente que os recursos naturais

são extremamente utilizados pelos atores do modelo industrial capita-lista, que depende, sobremaneira, da utilização de produtos oriundos da mineração.

Entretanto, sob o viés de uma cidadania ativista, concluímos pela necessidade de se exigir o bom desenvolvimento das atividades minerá-rias. A significar que se faz mister o crescimento do setor aliado à justiça ambiental.

57 Segundo Mello (2006), não há acordo doutrinário quanto à existência e caracterização dessas várias figuras. Para alguns, no Direito Administrativo todo ato ilegítimo é nulo. Para outros, a distinção entre nulos e anuláveis, usual no Direito Privado, aplica-se, com as devidas adaptações, ao Direito Administrativo. Outros, ainda, acrescentam aos atos nulos e anuláveis os simplesmente irregulares, e há também quem reconheça a categoria dos atos “inexistentes”.

58 O comando de nulidade, a bem da proporcionalidade e razoabilidade, deve ser constitutivo a nulidade do Título de Lavra, pelo que eventuais extrações posteriores serão ilegais.

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152 Valkiria Silva Santos Martins

É que, em verdade, praticamente toda atividade minerária é po-tencialmente poluidora, sendo frequente a ocorrência de modificações significativas na qualidade do solo e na topografia da superfície local, bem como a deposição de rejeitos sobre a vegetação. Logo, impactos ambientais são inerentes a sua existência, o que exige, do Poder Público, uma legislação eficiente e uma fiscalização rigorosa, objetivando fazer cumprir os regramentos balizadores da proteção do meio ambiente.

Nessa linha, existe amplo normativo federal, com fundamento cons titucional, que define como necessários os estudos de impacto am-biental para atividades potencialmente poluidoras. Entretanto, a DN COPAM nº 74/2004 possibilita o funcionamento, com base em mera AAF, de uma série de atividades para as quais a normatização federal exige, expressamente, a elaboração de EIA/RIMA e a sujeição ao processo de licenciamento ambiental clássico.

A AAF objetivaria, assim, regularizar, ambientalmente, empreendi-mentos cujos portes impliquem impactos não significativos, a ponto de exigirem a condução, pelo Estado, do já citado processo de tripartição das licenças.

A filosofia, equivocada, de atuação em Minas Gerais é conceder uma autorização, com base em análise de documentos administrativos e declaração de compromisso do empreendedor e do responsável técnico quanto à adequação ambiental da sua atividade. Não são realizadas, pre-viamente, vistoria e, muito menos, uma avaliação ambiental, tampouco são estabelecidas condicionantes, efetuando-se, em tese, somente fiscali-zações a posteriori, para a verificação da conformidade legal da atividade.

A normatização estadual deve ser revista. Urge a adequação da DN nº 74/2004 ao princípio da prevenção e sua compatibilização com as normativas federais sobre a matéria são, sem dúvida, medidas essenciais e impostergáveis para a correção e reparação desses sérios equívocos.

Entrementes, devem, também, ser declarados nulos os títulos de lavra expedidos mediante apresentação de AAFs, uma vez que não foi cumprido requisito essencial do ato, qual seja, a apresentação da licença ambiental.

Afinal, a realidade de produção sem sustentabilidade das mine-radoras não deve balizar a atuação dos órgãos competentes. Somente a fiscalização eficiente e o incremento de ações judiciais impulsionarão

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Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 153

a busca pelo cumprimento da legislação e escolha por tecnologias de-senvolvidas, que respeitem o meio ambiente e o patrimônio público.

Environmental Authorization of Operation and Lavras Illegal Ore

Abstract: Against the sustainability, the State of Minas Gerais created the Environmental Authorization of Operation (AAF), obtained by simplified procedure, aiming to regularize certain mining activities. Here we present a study on aspects of the AAF, discussing its inapplicability to mining ventures and legal consequence of the use of AAFs for the purpose of obtaining securities mining, which is the very void of Usage Guide or Ordinance Mining.

Key words: Sustainability. Licensing. Mining. Nullity. Lavra.

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Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico?Marco Aurélio Ventura PeixotoAdvogado da União. Consultor Jurídico do Ministério da Previdência Social. Especialista em Direito Público pela UnB. Mestre em Direito Público pela UFPE. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Sócio-Fundador da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP). Professor Honorário da Escola Superior de Advocacia Ruy Antunes (ESA-OAB/PE). Professor de Direito Processual Civil da Faculdade Marista do Recife e da Faculdade Estácio do Recife.

Resumo: O presente trabalho tem por objeto o instituto da suspensão de liminar, da tutela antecipada e de segurança e as polêmicas que dele decorrem. Desenvolve-se um estudo, a partir do contexto histórico, de sua natureza jurídica, legitimidade, requisitos, competência, efeitos e ou-tros aspectos referentes ao seu procedimento, procedendo-se inclusive à análise da constitucionalidade e dos riscos de uso político do instrumento.

Palavras-chave: Suspensão. Liminar. Tutela antecipada. Segurança.

Sumário: 1 Introdução – 2 Contextualização histórica e previsões legais – 3 Natureza jurídica – 4 Legitimidade e competência – 5 Requisitos para a utilização do instituto – 6 A discutível possibilidade de utilização concomitante da suspensão e do agravo – 7 Efeitos da decisão que defere a suspensão – 8 O agravo interno/regimental como via recursal – 9 A possi bilidade de renovação do pedido junto às instâncias superiores – 10 Sus pensão coletiva – 11 Questionamentos quanto à constitucionalidade e o pe rigo do uso político – 12 Conclusão – Referências

1 IntroduçãoMuitas críticas já foram lidas e ouvidas às prerrogativas processuais

que são estabelecidas na Constituição Federal ou na legislação infracons-titucional à atuação em juízo da Fazenda Pública e do Ministério Público. Sempre que o tema é discutido, logo se fala dos prazos diferenciados, visto por muitos como violador da isonomia processual, ou mesmo do paga-mento dos débitos judiciais dos entes públicos pela via dos precatórios.

A temática objeto do presente estudo, não obstante não revele tanto debate quanto os prazos ou os precatórios, insere-se dentre essas prerrogativas. A figura da suspensão de liminar, de tutela antecipada ou de segurança, apesar de não representar experiência recente no ordenamento jurídico brasileiro, até hoje desperta a ira daqueles que se encontram litigando em campo oposto ao da Fazenda Pública ou do Ministério Público.

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158 Marco Aurélio Ventura Peixoto

Buscar-se-á, para tanto, analisar os principais aspectos atinentes ao instituto da suspensão, a partir da contextualização histórica e de suas previsões legais, passando pela natureza jurídica, estudo da legitimida-de, requisitos, competência, efeitos e demais aspectos procedimentais, bem como as discussões afetas à constitucionalidade e ao uso político do pedido de suspensão.

2 Contextualização histórica e previsões legaisAntes de serem estudados os aspectos práticos e procedimentais

do instituto da suspensão de liminar, faz-se relevante proceder a uma contextualização histórica, a fim de identificar como se deu a introdução de tal figura na ordem jurídica pátria.

Nos dizeres de Araken de Assis, a suspensão surgiu inicialmente com o objetivo de suprir a ausência de um recurso hábil contra as limi-nares eventualmente concedidas nos mandados de segurança, vindo a se generalizar posteriormente.1

Tal instituto, cuja finalidade essencial é a de sustar a eficácia de decisão proferida contra o Poder Público, ficou tradicionalmente conhe-cida pelo nome de Suspensão de Segurança, e referida nomenclatura restou legitimada exatamente pelo fato de que o surgimento dessa figura impugnativa se deu com o advento do primeiro diploma infraconstitucio-nal a regular o procedimento do Mandado de Segurança, no longínquo ano de 1936.2

Como dito, o primeiro registro da suspensão no ordenamento pátrio adveio com a Lei nº 191, de 16 de janeiro de 1936, a qual pre-viu no art. 13 que caberia ao Presidente da Corte Suprema — se fosse ato da Justiça Federal —, ou da Corte de Apelação — se o ato fosse da Justiça Ordinária—, a requerimento da pessoa jurídica de direito público interessada, manter a execução da liminar ou da sentença concessiva de segurança, para evitar lesão grave à ordem, à saúde ou à segurança pública. Desde aqueles tempos, a suspensão não representava o único instrumento capaz de combater a decisão concessiva de liminar ou da segurança, já que havia — e existe até hoje — o agravo e a apelação.

1 ASSIS. Manual dos recursos, p. 902.2 KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1047.

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Nascia assim a suspensão como uma nova via impugnativa, por-tadora de requisitos e finalidade distintos dos recursos, já que o intuito não era o de obter para o Poder Público a reforma ou a anulação da decisão judicial, mas tão somente suspender a sua eficácia. Visava-se apenas impedir o potencial lesivo da decisão judicial.3

Não foi longa a vigência da Lei nº 191/36, tendo em conta que o art. 328 do já revogado Código de Processo Civil de 1939, ao regular o mandado de segurança, apresentou similar regra em relação ao instituto da suspensão.

Mais adiante, com o surgimento de uma nova Constituição (1946), e diante do restabelecimento do mandado de segurança como garan-tia lá contida, foi editada a Lei nº 1.533/1951, que regeu tal remédio constitucional por quase sessenta anos. Em tal norma infraconstitucio-nal, por incrível que pareça, a redação era pior, se comparada com os diplomas de 1936 e 1939, já que não se estabelecera, por exemplo, os requisitos de utilização da suspensão. Previa-se tão somente, no art. 13, que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Federal de Recursos ou do Tribunal de Justiça poderiam ordenar ao juiz a suspensão da execução da sentença, cabendo dessa decisão agravo de petição ao Tribunal. Restava a discussão, àquela altura, se a omissão teria sido ou não proposital, como bem ressalta Marcelo Abelha Rodrigues.4

Alguns anos após, já em 1964, com a edição da Lei nº 4.348, o tal art. 13 foi revogado pelo art. 4º da nova Lei, que estabeleceu que, quando a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal, ao qual coubesse o conhecimento do recurso, poderia suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar e da sentença, cabendo agravo dessa decisão em dez dias, sem efeito suspensivo.

Como se depreende, não apenas foram previstos novamente os requisitos que haviam sido ignorados pela Lei de 1951, como também se ampliou o elenco que havia sido inicialmente indicado pela Lei de 1936, já que se incluiu a possibilidade de lesão à economia pública.

3 KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1048.4 RODRIGUES. Suspensão de segurança, p. 80.

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A Lei nº 8.038/1990, que instituiu normas procedimentais para os processos perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, apresentou previsão, no seu art. 25, de que o Presidente do STJ, mediante requerimento do Procurador-Geral da República ou de pessoa jurídica de direito público, poderia suspender a execução de liminar ou de segurança que tivessem sido proferidas pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais de Justiça dos Estados. Revelou-se aí um em-brião da possibilidade de utilização do instituto pelo Ministério Público.

Por seu turno, já em 1992, com a Lei nº 8.437, estendeu-se cla-ramente a legitimidade ativa, antes restrita aos entes componentes da Fazenda Pública, aos demais órgãos do Ministério Público, não obstante a diminuta eficácia prática, dada a raríssima utilização por este órgão. Cumpre transcrever o disposto no art. 4º dessa Lei, com as alterações introduzidas pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001:

Art. 4º Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a reque-rimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interes-sada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegiti midade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

§1º Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado.

§2o O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em setenta e duas horas.

3o Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua inter posição.

§4o Se do julgamento do agravo de que trata o §3o resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário.

§5o É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o §4o, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este artigo.

§6o A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.

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Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 161

§7o O Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida. §8o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.§9o A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal.

Recentemente, já no ano de 2009, veio a ser editada a Lei nº 12.016, que passou a reger o mandado de segurança individual e coletivo, e que revogou integralmente as Leis nºs 1.533/51 e 4.348/64. Manteve-se, no entanto, prevista a figura da suspensão de liminar e da execução da sentença, conforme o disposto no art. 15, abaixo transcrito:

Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interes-sada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição.§1o Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se refere o caput deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao presidente do tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário.§2o É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o §1o deste ar-tigo, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este artigo.§3o A interposição de agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o poder público e seus agentes não prejudica nem condi ciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.§4o O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida.§5o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.

Se a origem do instituto remete, segundo verificado, ao remédio do mandado de segurança, aos poucos a suspensão foi sendo incluída em outros procedimentos, sempre no intuito de proteger a Fazenda Pública diante de decisões contrárias e lesivas.

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Segundo bem analisa Leonardo Carneiro da Cunha, o pedido de suspensão atualmente cabe em todas as hipóteses em que se concede provimento de urgência contra a Fazenda Pública ou quando a sentença contém efeitos imediato, por ser impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo, podendo se dizer que há a suspensão de liminar, a suspensão de segurança, a suspensão de sentença, a suspensão de acór-dão, a suspensão de cautelar, a suspensão de tutela antecipada e assim por diante.5

Resumidamente, como apontam Rodrigo Klippel e Antonio Adonias Bastos, encontra-se a suspensão, presentemente, no procedi-mento do Mandado de Segurança (art. 15 da Lei nº 12.016/2009 e art. 25 da Lei nº 8.038/90), da Ação Popular (art. 4º da Lei nº 8.437/92), da Ação Civil Pública (art. 12, §1º, da Lei nº 7.437/85, e art. 4º da Lei nº 8.437/92), da Ação Cautelar (art. 4º da Lei nº 8.437/92), da Tutela Ante ci pada (art. 4º da Lei nº 8.437/92 e art. 1º da Lei nº 9.494/97), e do Habeas Data (art. 4º da Lei nº 8.437/92 e art. 16 da Lei nº 9.507/97).6

Como se depreende, apesar da existência de previsões específicas para a suspensão, como verificado, por exemplo, nas leis que regem o mandado de segurança, o habeas data e a ação civil pública, o art. 4º da Lei nº 8.437/92 é norma de caráter genérico aplicável à maioria dos casos, desde que não haja conflito com tais normas específicas.

3 Natureza jurídicaNo estudo da suspensão, um dos aspectos que mais desperta po-

lêmica reside na identificação de sua natureza jurídica, havendo quem defenda que é recurso, outros que sustentam ser sucedâneo recursal, outros que defendem ser ato administrativo e outros que sustentam ser incidente processual.

Para alguns, como ocorre com Araken de Assis, resta evidente a colocação da suspensão como sucedâneo recursal, tendo em conta que há o reexame dos pressupostos de concessão de liminar e do acolhimento do pedido pela sentença de quaisquer ações movidas contra o Poder Público.

5 CUNHA. A Fazenda Pública em juízo, p. 404.6 KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1050.

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Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 163

Para ele, o instituto evoluiu no sentido de se sobrepor aos recursos de apelação e de agravo, assumindo, de vez, funções recursais.7

Consoante leciona José Henrique Mouta, por várias razões o pedido de suspensão não pode ser caracterizado como recurso. Em primeiro lugar, porque falta previsão legal envolvendo prazo, preparo e distribuição. Em segundo, porque o seu móvel inicial não é o de reformar ou anular a decisão. Em terceiro, porque a legitimidade é tão somente da pessoa jurídica de direito público, bem como porque a autoridade competente para apreciá-lo é o presidente do respectivo tribunal.8 Se recurso o fosse, a suspensão teria o condão de reverter a decisão atacada, o que não é o caso. Em tese, a decisão permanece válida, de modo que o que ocorre é apenas a suspensão dos seus feitos, em função do risco à saúde, segurança, economia ou segurança pública.

Há entendimento no Superior Tribunal de Justiça,9 no sentido de que o juízo exercido no julgamento do pedido de suspensão possui feição política, inviabilizando o recurso especial. Dita posição é susten-tada também na doutrina, como defende Ellen Gracie Northfleet.10 Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal entende não caber recurso extraordinário contras as decisões eventualmente proferidas no pedido de suspensão.

Não parece, entretanto, que o pedido de suspensão deva ser en-carado como atividade administrativa do Presidente do Tribunal, o qual não exerce, em seu exame, juízo político. Aliás, é de se lembrar de que se atividade administrativa o fosse, o Presidente do Tribunal poderia agir de ofício, sem necessidade de requerimento da pessoa jurídica de direito público.11

Mais razoável é, desse modo, o entendimento de que a natureza do pedido de suspensão não é de atividade político-administrativa, mas sim nitidamente judicial, em cujo âmbito é analisada a violação a interesses públicos relevantes. A vedação da utilização dos recursos excepcionais

7 ASSIS. Manual dos recursos, p. 905.8 MOUTA ARAÚJO. Mandado de segurança, p. 150.9 RESP nº 786.480/RJ, Rel. Min. José Delgado, julgado em 17.11.2005. DJU, 05. dez. 2005.10 NORTHFLEET. Suspensão de sentença e de liminar. Revista de Processo, p. 184.11 BRANDÃO. A suspensão das medidas de urgência nas ações contra o poder público à luz do devido

processo legal. Revista Dialética de Direito Processual, p. 31.

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não decorre, assim, da natureza jurídico-administrativa, mas da impos-sibilidade de rediscussão do contexto fático contido na demanda.12

Pode-se dizer, nesses termos, que o pedido de suspensão, detentor de natureza judicial, revela-se como incidente processual, com fins de contracautela, visando à sustação dos efeitos de decisões lesivas ao inte-resse público. Não é, portanto, seguindo a linha bem sustentada por Marcelo Abelha Rodrigues, ação e nem recurso, figurando como típico instituto representante dos incidentes processuais, que se manifesta por intermédio de uma questão incidente, por sua vez provocada por uma defesa impeditiva arguida por parte da Fazenda Pública.13

4 Legitimidade e competênciaDe acordo com o que já foi realçado linhas atrás, na sua criação, a

legitimidade ativa da suspensão era atribuída apenas às pessoas jurídicas componentes da Fazenda Pública, quais fossem, a União, os Estados, o Distrito Federal, as autarquias e as fundações públicas.

Com as Leis nºs 8.038/90 e 8.437/92, estendeu-se a legitimidade ativa ao Ministério Público. Questiona-se, no entanto, se o Ministério Pú blico teria legitimidade restrita aos casos indicados por estas duas leis, ou se poderia se interpretar sua legitimidade de modo ampliado para as demais situações, como no caso de ações civis públicas ou habeas data. Prevalece, na doutrina, o entendimento, bem defendido por Cássio Scarpinella Bueno, de que o Ministério Público é legítimo para pleitear a suspensão em todos os procedimentos nos quais for cabível.14

Há entendimento ampliativo na doutrina e na jurisprudência, inclu sive, no sentido de que todo aquele que possa ser réu no mandado de segurança, venha a ser detentor de legitimidade para pedir a sus-pensão da liminar ou da execução, de modo a abranger, por exemplo, empresas públicas, sociedades de economia mista, concessionárias de serviço público, dentre outros.15

12 DIDIER JR.; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, p. 463.

13 RODRIGUES. Suspensão de segurança, p. 95.14 BUENO. Mandado de segurança, p. 183.15 Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu na SS nº 2702 AgR-MG, Plenário, Rel. Min. Ellen Gracie,

julg. 07.02.2007, reconhecendo legitimidade à Assembleia Legislativa. Já o Superior Tribunal de Justiça possui precedente reconhecendo legitimidade a entidade de previdência privada complementar, nos autos do AgRg na SLS nº 222-DF, Corte Especial, Rel. Min. Edson Vidigal, julg. 20.03.2006.

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Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 165

Cumpre ressaltar, ainda, que não se exige, na aferição da legitimi-dade para o pedido de suspensão, que o requerente esteja a figurar como parte na demanda em que se deu a decisão lesiva. Basta a demonstração da suposta lesão à ordem, economia, saúde ou segurança, na condição de terceiro prejudicado, para que se reconheça a possibilidade de uso do pedido de suspensão. Assim, em eventual demanda que a União não figure como parte ré, numa demanda cautelar, por exemplo, e sim uma autarquia federal, caso venha a identificar algum tipo de lesão que venha a lhe afetar, no deferimento de uma liminar, terá plena legitimidade para, junto ao Presidente do respectivo Tribunal Regional Federal, buscar a suspensão daquela decisão.

No tocante à competência, em regra, quem aprecia o pedido de sus pensão é o Presidente do Tribunal que teria competência para julgar o recurso contra a decisão a ser atacada. Tal competência para julgar o pedido de suspensão é de natureza funcional. Se é funcional, revela-se de caráter absoluto, de modo que não comporta derrogação ou prorro-gação por vontade das partes.

Desse modo, quando a decisão contra a qual se insurge foi profe rida por juiz estadual, cabe ao Presidente do Tribunal de Justiça do referido Estado analisar o pedido de suspensão. Se a decisão tiver sido dada por juiz federal, dita atribuição pertence ao Presidente do Tribunal Regional Federal da respectiva região. Há que se atentar, por outro lado, que na eventual hipótese de o juiz estadual atuar investido de competência fede-ral, em cumprimento ao mandamento do art. 109, §3º, da Constituição Federal de 1988, o pedido de suspensão não será dirigido ao Presidente do TJ, mas sim do TRF, a exemplo do que ocorre com os recursos.

Quando a decisão liminar ou antecipatória vier a ser deferida, de modo originário e colegiado, por um Tribunal de Justiça ou por um Tribunal Regional Federal, caberá ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a depender do caso ser de natureza infraconstitucional ou constitucional.

É de se ressalvar, no entanto, que se a decisão, em um tribu-nal inferior, houver sido monocrática, e dessa decisão couber agravo interno/regimental, o pedido de suspensão não poderá ser dirigido ao tri bunal superior, mas sim ao Presidente do Tribunal a qual pertence

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o Relator.16 De todo modo, como desde as inovações trazidas pela Lei nº 11.187/2005, não cabe mais agravo interno/regimental contra a decisão concessiva de efeito suspensivo em agravo de instrumento, caso esta seja a decisão lesiva, o pedido de suspensão deve ser diretamente dirigido ao Presidente do STF ou STJ.

Dúvidas restam sempre quando se vislumbra a hipótese de a questão dizer respeito à matéria constitucional e infraconstitucional, ao mesmo tempo. Cássio Scarpinella Bueno defende que, numa situação dessas, conveniente seria aplicar por analogia o art. 543, dirigindo-se o pedido ao STJ. Caso lá se entendesse que a matéria era constitucional, remeter-se-ia ao STF, que poderia devolver se não concordasse.17

Diferentemente, pensam Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha. Para eles, havendo matéria constitucional, a competência será sempre do Presidente do STF, mesmo que venha cumulada ou imbricada com outra matéria de índole infraconstitucional, já que aquela acabaria absorvendo esta.18

Parece ser a posição sustentada por Cássio Scarpinella Bueno mais coerente. Pense-se no entendimento das Cortes Superiores acerca da utilização dos recursos excepcionais quando a decisão recorrida versar questão constitucional e infraconstitucional. Por acaso há entendimento de que a interposição do recurso extraordinário supre a ausência do recurso especial? A resposta é negativa. Do contrário, cada vez mais se veri fica o filtro no recebimento dos recursos extraordinários, quando se identifica que a questão constitucional discutida seria ventilada apenas de modo reflexo. Assim, situação mais lógica é se dirigir o pedido ao STJ, o qual teria a possibilidade de enviar ao STF tão somente se concluísse que a questão seria de cunho estritamente constitucional.

5 Requisitos para a utilização do institutoAlguns requisitos devem ser apontados para que se utilize, quer

pelo poder público, quer pelo Ministério Público, o pedido de suspen-são de liminar, tutela antecipada ou de segurança. Em primeiro lugar,

16 RODRIGUES. Suspensão de segurança, p. 113.17 BUENO. Mandado de segurança, p. 194.18 DIDIER JR.; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo

nos tribunais, p. 467.

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Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 167

afigura-se indispensável o requerimento. Não se defere suspensão de ofício sem que o interessado a pleiteie. Prevalece, em relação a esse inci-dente processual, o princípio dispositivo, de sorte que o Presidente do Tribunal, por mais lesivo que seja o ato, somente pode agir mediante provocação.

Dado o caráter acessório de tal incidente, revela-se indispensável que exista um procedimento principal em andamento, de modo que se não mais existir o procedimento principal, perde a razão de ser a suspensão.

Importante também ressaltar que é necessário que o processo prin-cipal esteja em sua fase de conhecimento, já que a suspensão não se utiliza para evitar a eficácia de decisões definitivas, transitadas em julgado, mas sim para atacar decisões que ainda comportem reforma ou anulação.

Não se pode, ademais, buscar, por meio da suspensão, o que se con-venciona chamar de efeito suspensivo ativo, isto é, não pode o requerente pretender, pela via da suspensão, o que se indeferiu em seu desfavor no primeiro grau. Esse efeito suspensivo ativo é possível de se obter pela via recursal, como ocorre no agravo de instrumento, mas não pela via do pedido de suspensão, que como o próprio nome denota, demanda suspender a eficácia de uma decisão lesiva.

Não há como se ignorar também que constitui requisito do pedi-do de suspensão a demonstração do manifesto interesse público, isto é, da grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas. Neste aspecto, como bem lembram Rodrigo Klippel e Antonio Adonias Bastos, difícil tarefa é atribuída ao Presidente do Tribunal, qual seja, que interesse privilegiar, o do particular, que foi considerado plausível pelo magistrado prolator da decisão que se quer suspender, ou o do Poder Público?19

Inegavelmente, falar em grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública significa falar em conceitos jurídicos indetermina-dos. Não há como se objetivar ou precisar a extensão e o alcance dessas expressões, para indicar quando e em que caso o Presidente irá ou não suspender uma dada decisão.

19 KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1061.

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168 Marco Aurélio Ventura Peixoto

Evidente que não pode haver uma banalização do Instituto, de modo que, por se tratar de conceitos jurídicos indeterminados, estaria a Fazenda autorizada a formular pedido de suspensão de toda e qualquer liminar, tutela antecipada ou sentença concessiva de segurança que lhe fosse desfavorável. Do contrário, deve haver ponderação no uso e, acima de tudo, a demonstração concreta de que há verdadeiramente interesse público sendo lesionado. Não se pode peticionar com base em expec-tativas, em suposições, mas sim com fulcro em situações concretas, que mostrem como e por que a lesão se afigura grave.

A interpretação, nesse caso, caberá ao Presidente do respectivo tribunal, no caso concreto, em identificar, até mesmo em respeito ao princípio da proporcionalidade, que interesse privilegiar, a fim de deferir ou não o pedido de suspensão.

6 A discutível possibilidade de utilização concomitante da suspensão e do agravo

Se o pedido de suspensão de liminar ou de tutela não é possuidor de natureza recursal, muito se debate acerca da possibilidade de utili-zação concomitante do recurso de agravo e do pedido de suspensão, já que, a priori, não se violaria o princípio da unicidade recursal. Poder-se-ia imaginar que a utilização de ambas as ferramentas, pela Fazenda Pública ou pelo Ministério Público representaria uma quebra da isonomia processual, razão pela qual muitos magistrados, e até mesmo tribunais, defendem o estabelecimento de restrições ao uso concomitante.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por exemplo, possui entendimento, absolutamente contra legem, fixado por sua composição plenária, em sessão de 21 de agosto de 2002, que as decisões do Relator, da Turma ou do Pleno, por serem judiciais, devem sempre prevalecer sobre as decisões do Presidente em Suspensão de Segurança, que são de natureza administrativa ou política.

Ocorre que o próprio art. 4º, §6º, da Lei nº 8.437/92 indica que a interposição do agravo de instrumento contra decisão liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica e nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão. Idêntica pre-visão está contida no art. 15, §3º, da Lei nº 12.016/2009, que cuida do mandado de segurança.

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Os institutos são nitidamente distintos, e não apenas pelo fato de a suspensão não ter natureza recursal. O agravo tem por objeto a modifi-cação da decisão interlocutória, em razão de um error in judicando ou de um error in procedendo, ao passo em que o pedido de suspensão se destina a obter a sustação dos efeitos da decisão, sem reformá-la ou anulá-la, diante da grave lesão à ordem, economia, saúde ou segurança públicas.20

Ademais, o agravo se submete a prazo para interposição, enquan-to que não há prazo legal para a utilização do pedido de suspensão. O agravo é julgado, regra geral, de modo colegiado, e o órgão julgador fracionário, como seu relator, são escolhidos de modo aleatório e equita-tivo, por distribuição. Já o pedido de suspensão, como se sabe, demanda decisão monocrática, e a distribuição se dá sempre ao Presidente do Tribunal respectivo.

É de se compreender, pois, como plenamente possível que o Poder Público, de modo simultâneo, interponha agravo de instrumento contra a decisão interlocutória que defira liminar ou antecipação de tutela e que, por fundamentos diversos, apresente ao Presidente do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal o pedido de suspensão.21

Por igual, não há que se falar em prejuízo ao agravo de instru men to, na hipótese de vir a ser suspensa a decisão liminar ou antecipatória de tutela pelo Presidente do Tribunal. Não perde o agravo de instrumento o objeto, porque o que se alcançou foi tão somente a cessação da eficá-cia da decisão, prejudicando — aí sim — o eventual pedido de efeito suspensivo no agravo. Não deve, para tanto, o Relator do Agravo de Ins trumento, na hipótese de ter notícia da suspensão deferida, entender por prejudicado e negar seguimento ao recurso, mas sim deve dar a ele pleno seguimento, julgando, com seus pares, o mérito recursal.

Desse modo, as tentativas de restrição ao uso concomitante do agra-vo de instrumento e do pedido de suspensão devem se dar pela esfera estritamente legal, já que é da competência privativa da União legislar sobre processo, não cabendo aos magistrados ou aos tribunais restringir aquilo que não pretendeu o legislador. Pelo contrário, dada a recente edição da nova Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/2009),

20 CUNHA. A Fazenda Pública em juízo, p. 404.21 KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1070.

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como já acima apontado, confirmou o legislador a intenção de facultar à Fazenda Pública e ao Ministério Público, quando for o caso, o uso dos dois instrumentos ao mesmo tempo, sem reservas.

Cumpre aos advogados públicos e aos membros do Ministério Pú blico agirem com ponderação e proporcionalidade. Não se deve ba-nalizar o instituto da suspensão. Se inexistem limitações legais ao uso concomitante com o agravo de instrumento, nem por isso deve se suge-rir a utilização indiscriminada do pedido de suspensão, sob pena de se perder a credibilidade junto aos respectivos Presidentes dos Tribunais. É preciso que a via da suspensão seja opção excepcional, a fim de que os responsáveis por deferi-la saibam que, ao se depararem com o pedido, estão verdadeiramente diante de algo que a Fazenda ou o Ministério Público reputam como lesivo ao interesse público.

7 Efeitos da decisão que defere a suspensãoNão há previsão legal acerca de maiores formalidades para o pedido

de suspensão a ser elaborado pela Fazenda Pública ou pelo Ministério Público. Trata-se de simples petição, direcionada, como sabido, ao Pre-sid ente do respectivo tribunal competente para conhecer do eventual recurso, com a narrativa fática e a exposição dos fundamentos jurídicos que jus tifiquem a suspensão daquela liminar, tutela ou segurança.

Evidentemente que o profissional que a estiver por elaborar deve atentar que, acima de tudo, deve demonstrar com argumentos consis-tentes a ocorrência da grave lesão à ordem, à saúde, à economia ou à segurança pública. Ademais, apesar de não se exigir a formação de um instrumento, como ocorre com o agravo, é bom alvitre que se anexe cópia da decisão que se busca suspender e das principais peças processuais, como, por exemplo, a petição inicial da ação em tela.

Algumas atitudes são possíveis ao Presidente do Tribunal, em seu contato inicial com o pedido de suspensão. Pode ele determinar a emenda da petição, na hipótese de faltar, por exemplo, algum docu-mento importante à análise. Pode indeferir, desde logo, o pedido, por não com preender presentes os requisitos. Pode mandar intimar o adver-sário, para se manifestar, e o Ministério Público, para emitir parecer, no prazo de setenta e duas horas. Pode, finalmente, caso já se convença dos

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requisitos, conceder o pedido, suspendendo assim o cumprimento da decisão liminar ou antecipatória.

Na medida em que o julgamento da suspensão emitir provimento de sinal contrário à liminar ou à sentença, inibirá seus efeitos e desconsti-tuirá os atos executivos eventualmente realizados, a teor do que aponta o art. 4º, §9º, da Lei nº 8.437/92. Assim, como bem aponta Araken de Assis, vigorará, a depender da situação, até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal, de modo que as partes ficam amarradas, até o indefinido final da causa principal, à resolução tomada quanto à suspensão.22

Consagra-se, portanto, a ideia do efeito ultra-ativo da decisão to-mada na suspensão de liminar ou tutela, de modo que a suspensão não será atingida sequer pela superveniência de sentença que confirme a liminar ou a tutela anteriormente concedida. Dito posicionamento não é pacífico na doutrina. Cássio Scarpinella Bueno, por exemplo, manifesta-se contrariamente a essa ultra-atividade, por entender que a sentença que eventualmente confirmar a liminar ou tutela deveria preponderar sobre a decisão monocrática do Presidente do respectivo Tribunal que houve por suspender a eficácia da decisão.23

Ainda na vigência da Lei nº 4.348/64, que tratava do mandado de segurança, e já revogada pela Lei nº 12.016/2009, o Supremo Tribunal Federal, diante das divergências acerca do efeito ultra-ativo em relação a tal remédio constitucional, editou a Súmula nº 626, em que expres-sava que a suspensão da liminar em mandado de segurança, feita por Presidente de Tribunal Superior, salvo determinação em contrário, vi-goraria até o trânsito em julgado da decisão definitiva da concessão da segurança, ou em havendo recurso, até a sua manutenção pelo Supremo Tribunal Federal, desde que o objeto da liminar coincidisse, total ou parcialmente, com o da impetração.

Não obstante a Lei nº 12.016/2009 não tenha estabelecido, de modo expresso, a ideia da ultra-atividade da suspensão de segurança, como contido na Lei nº 8.437/92, é essa ainda a posição que prevalece no STF, de modo que dita interpretação extensiva desenvolvida pela

22 ASSIS. Manual dos recursos, p. 907.23 BUENO. O poder público em juízo, p. 77.

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corte máxima do país afigura-se razoável, até mesmo como forma de preservar a hierarquia entre os órgãos jurisdicionais.

Há de se ressalvar, por fim, que há distinção em relação à extensão da ultra-atividade se a suspensão tiver sido deferida por Presidente de tribunal inferior ou por Presidente de Tribunal Superior. Caso determina-da por presidente de tribunal inferior, seus efeitos persistirão mesmo na superveniência da sentença, mas não na superveniência de acórdão que confirme aquela liminar ou tutela. Por outro lado, se a suspensão se deu por ato do Presidente do STJ ou do STF, os efeitos vigorarão até mesmo na superveniência de acórdão, de modo que perdurem até o trânsito em julgado da decisão definitiva da concessão da segurança, ou em havendo recurso, até a sua manutenção pelo Supremo Tribunal Federal.

8 O agravo interno/regimental como via recursalComo se sabe, o agravo previsto nos regimentos internos dos tri-

bunais, conhecido também como agravinho, é o sucedâneo para a falta de recurso próprio contra as decisões do relator.24 E é essa a ferramenta a ser utilizada para se atacar as decisões que houverem por deferir os pedidos de suspensão.

Nos termos do que dispõem o art. 4º, §3º, da Lei nº 8.437/92, e o art. 15, caput, da Lei nº 12.016/2009, cabe agravo interno/regimental da decisão do Presidente do Tribunal nos pedidos de suspensão da liminar, tutela ou segurança.

Esse agravo tem prazo de cinco dias para sua interposição, confor-me previsão dos dispositivos acima já indicados. A Lei nº 12.016/2009, aliás, resolveu questão acerca do prazo que intrigava os operadores do direito. Isto porque, ao passo em que a Lei nº 8.437/92 previa prazo de cinco dias, a Lei nº 4.348/64, que cuidava do mandado de segurança, previa prazo de dez dias, o que gerava a dúvida quanto ao prazo a ser aplicado, a depender da ação em análise. Com a nova lei do mandado de segurança, o prazo foi fixado em cinco dias, uniformizando-o em relação ao que já estava prescrito na Lei nº 8.437/92.

Devem atentar ainda em relação ao prazo os advogados públicos e os membros do Ministério Público, pois o prazo de cinco dias para

24 ASSIS. Manual dos recursos, p. 908.

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interposição do agravo, nesses casos, é tido como prazo específico fixado em lei, que não se submete à contagem em dobro estatuída pelo art. 188 do Código de Processo Civil.25 Não são poucos os casos de agravos que deixam de ser conhecidos, por intempestividade, por absoluta falta de atenção quanto a esse aspecto.

Outro ponto interessante em relação ao agravo reside no seu cabi-mento contra a decisão que indefere o pedido de suspensão. Por muito tempo, acreditava-se que o cabimento restringia-se às situações em que a suspensão houvesse por ser deferida, de modo que restaria irrecor-rível a decisão que indeferisse o pedido de suspensão. Havia inclusive Súmulas no STF (nº 506) e no STJ (nº 217), afirmando categoricamente que o agravo não caberia contra as decisões que indeferissem o pedido de suspensão.26

Já de algum tempo, no entanto, as cortes superiores firmaram entendimento na linha de que cabe, da mesma forma, para a Fazenda ou para o Ministério Público, agravo interno contra a decisão que in-deferiu o pedido de suspensão, até mesmo como forma de preservar a isonomia processual.27

9 A possibilidade de renovação do pedido junto às instâncias superiores

Quando a liminar ou tutela é concedida por juiz de primeiro grau, como é cediço, o pedido de suspensão é direcionado ao Presidente do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal, a quem compete deferir ou indeferir o pleito.

Se a suspensão é deferida pelo Presidente do tribunal inferior, cabe à parte adversa, segundo exposto linhas atrás, interpor agravo interno/regimental, a fim de que o Plenário ou a Corte Especial possam, se for o caso, rever a decisão. Se a decisão for mantida no julgamento do agra-vo, não há a possibilidade de interposição de recurso extraordinário ou

25 O STF consagrou esse entendimento no julgamento da SS nº 2.198 AgR-AgR/PE, Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 03.03.2004, DJU, 02 abr. 2004.

26 Essas súmulas foram canceladas, respectivamente, na SS nº 1.945/AL e na SS nº 1.166/SP.27 A respeito, vide a SS nº 2222 AgR-ED0AgR/PE, Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 13.11.2003, DJU,

12. mar. 2004, que modificou entendimento anterior contido na SS nº 275 AgR/PB, Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, julg. 14.02.1990, DJU, 25 out. 1991.

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especial, mantendo-se a suspensão até que haja o trânsito em julgado da decisão proferida na ação principal.

Quando a suspensão for indeferida, cabe agravo interno/regimen-tal, pela Fazenda Pública ou pelo Ministério Público. Se o agravo for provido, dá-se a suspensão da liminar ou tutela, com a decisão sendo mantida até o trânsito em julgado do mérito na ação principal.

Muda-se o cenário, por outro lado, em duas outras situações, quais sejam, nas hipóteses de, em sendo concedida a suspensão, o agravo vir a ser provido pelo Tribunal, ou quando, sendo indeferida a suspensão, a decisão vier a ser mantida pelo respectivo tribunal, no julgamento do agravo.

Em ambas as hipóteses, não é dado à Fazenda Pública e nem ao Ministério Público o direito de utilizar recursos excepcionais ao STF ou ao STJ, razão pela qual se faculta a esses entes a renovação do pedido de suspensão, ao Presidente do STF ou ao Presidente do STJ, a depender do fundamento da decisão ser constitucional ou infraconstitucional. Tal garantia está estabelecida no art. 4º, §3º, da Lei nº 8.437/92.

Dita renovação é criticada por alguns, por se tratar, segundo tal linha de raciocínio, de recurso, já que repete pedido que foi negado, ao passo em que recursos para os tribunais superiores somente poderiam ser criados pela via de Emenda à Constituição, de modo a ferir o prin-cípio da igualdade.28

De todo modo, tal renovação somente é de ser admitida, no caso das suspensões de liminares ou tutelas antecipadas, regidas pela Lei nº 8.437/92, depois que houver o julgamento do agravo interno/regi-mental. Mesmo diante da rejeição do pedido de suspensão, a Fazenda ou o Ministério Público não podem formular diretamente o pedido ao tribunal superior, sob pena de rejeição imediata.

Não custa ressaltar, por fim, que em se tratando de suspensão de segurança, aplica-se regra distinta. Isto porque o art. 15, §1º da Lei nº 12.016/2009 indica que sendo indeferido o pedido de suspensão, cabe novo pedido de suspensão ao presidente do Tribunal competente para conhecer do eventual recurso especial ou extraordinário. Assim,

28 BUENO. Mandado de segurança, p. 193.

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nos procedimentos de mandado de segurança, não cabe a interposição de agravo interno/regimental contra a decisão que indeferir o pedido de suspensão, fazendo-se possível, assim, que o advogado público ou o membro do Ministério Público renovem diretamente o pedido ao res-pectivo tribunal superior.

10 Suspensão coletivaEm nome da economia processual, a legislação permite a suspen-

são coletiva, isto é, a suspensão de várias decisões idênticas, a partir de um único pedido. Já assim previa o art. 4º, §8º da Lei nº 8.437/92, que as liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original. Idêntica previsão está expressa no art. 15, §5º da Lei nº 12.016/2009, que versa sobre o mandado de segurança.

Tal previsão, além do efeito prático de gerar economia processual, como acima dito, também elimina, segundo lembram Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha, uma das maiores mazelas do processo civil moderno, que é a divergência jurisprudencial, preservando a isonomia.29

Nesses casos, o efeito multiplicador é preponderante para que a Fazenda Pública consiga gerar a suspensão coletiva. Muitas vezes, se analisado o caso isoladamente, poderia se afigurar difícil a demonstração da lesão ao interesse público. De outra sorte, quando se vislumbra uma situação aplicável a um universo de pessoas, restará mais evidente o risco, proporcionando maior segurança à decisão do Presidente do Tribunal.

Como bem lembram Rodrigo Klippel e Antonio Adonias Bastos, cuida-se de técnica de tutela coletiva, favorável ao Poder Público, que apresenta contornos semelhantes aos do direito americano e à ideia de representação adequada, quando se permite que uma demanda indivi-dual ganhe contornos coletivos.30

Dessa forma, em resumo, a suspensão coletiva apresenta-se sob duas maneiras. A primeira e mais comum é a formulação de um único

29 DIDIER JR; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, p. 476.

30 KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1068.

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pedido, diante da existência de várias liminares ou tutelas idênticas que causem lesão ao interesse público, como no exemplo de vários candidatos alcançando liminares individuais que resultassem na anulação de questões de um concurso público. Por outro lado, a outra possibilidade reside no aditamento da petição inicial da suspensão, requerendo a expansão dos efeitos a decisões supervenientes à suspensão já concedida.

11 Questionamentos quanto à constitucionalidade e o perigo do uso político

Ainda que a primeira previsão acerca do pedido de suspensão re-monte ao longínquo ano de 1936, até os dias atuais há questionamentos quanto à constitucionalidade do referido incidente.

Uma das mais ácidas visões acerca da suposta inconstitucionali-dade da suspensão é apresentada por Hélio do Valle Pereira, que se revela intrigado com o fato de o Estado estabelecer um arcabouço norma tivo, conceder direitos e deferir mecanismos processuais de proteção para, em momento subsequente, permitir que sejam olvidadas as facul dades concedidas aos particulares. Segundo ele, não mais se justifica que o poder público utilize do procedimento, se existem soluções proces suais que o tornaram obsoleto e dispensável.31

Argumenta-se, assim, entre alguns na doutrina, a inconstitucio-nalidade do pedido de suspensão, sob o argumento de que quebraria a isonomia processual. A insatisfação, demonstrada por esse entendimento tem fruto em alguns fatores, quais sejam: a) a inexistência de prazo para a utilização do incidente; b) a impossibilidade de aqueles que litigam contra a Fazenda Pública ou contra o Ministério Público dele se valerem; c) os requisitos para utilização, interpretados como conceitos jurídicos indeterminados; d) o fato de a decisão ser monocrática e sempre do Presidente do Tribunal respectivo.

Não parecem consistentes tais argumentos. Primeiramente porque o fato de não haver prazo decorre da própria natureza do incidente, co-locado à disposição para situações extremas de lesão ao interesse público.

Adiante, não se pode imaginar quebra da isonomia processual pelo fato de ser prerrogativa colocada à disposição apenas da Fazenda

31 PEREIRA. Manual da Fazenda Pública em juízo, p. 315.

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Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 177

Pública e do Ministério Público, visto que compete a estes, e não aos particulares, a defesa do interesse público. Se se for pensar que toda e qualquer prerrogativa conferida a esses entes revela uma quebra da iso-nomia processual, ter-se-á que supor que os prazos e as citações pessoais, por exemplo, também o são.

Quanto aos requisitos para utilização, não obstante se reconheça que são verdadeiramente conceitos jurídicos indeterminados, não se pode ignorar que caberá ao Presidente do Tribunal, em seu prudente juízo de convencimento, ponderar em cada caso concreto se a situação representa ou não uma grave lesão à ordem, à saúde, à economia ou à segurança pública.

Finalmente, a decisão é monocrática e sempre do Presidente do Tribunal competente para o conhecimento do respectivo recurso por-que o caráter de urgência da medida assim o impõe. Se o procedimento determinasse, como ocorre nos recursos, a distribuição a um relator sorteado e o julgamento por um órgão colegiado, o incidente ganharia ares recursais e perderia sua própria razão de ser.

Não há, portanto, que se falar em inconstitucionalidade da suspen-são, não apenas pelas razões acima expostas, mas também tendo em conta que o Supremo Tribunal Federal, guardião máximo da Constituição, já se deparou com tal incidente em diversas previsões legislativas, e sempre ratificou a sua constitucionalidade, quer do ponto de vista formal, quer no plano material.

As críticas ao instituto também residem na possibilidade de interfe-rências políticas em relação ao pedido de suspensão de liminar, tutela ou segurança. Argumenta-se, com certa razão, que há riscos de deferimento de pedidos desprovidos de qualquer fundamento, na hipótese de haver estreito relacionamento entre os Chefes do Executivo e do Judiciário, bem como, na situação invertida, de se indeferir pedidos que apresen-tem graves lesões, quando o relacionamento for distante ou quando o Judiciário pretender retaliar algum ato do Executivo.

Não há dúvidas de que, em verdade, esse risco de uso político do pedido de suspensão existe. No entanto, existe também no julgamento dos recursos, em maior extensão, logicamente, por se tratar de análise colegiada. Mas existe. Não se deve pretender abolir da ordem jurídica

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um instituto de tamanha importância para que a consequência ou a aplicação possam ser objeto de manobra ou interferência política.

A história recente do país demonstra que o Judiciário cada vez menos se submete a esses fatores externos e às pressões eventualmente advindas do Executivo. O próprio Supremo Tribunal Federal, cuja com-posição se dá por escolha inicial do Chefe do Poder Executivo — levando em conta, por que não dizer, critérios até mesmo políticos —, tem dado mostras de que, em casos relevantes, ainda que se desagrade o Executivo, decide de acordo com a Constituição e o livre juízo de convencimento de seus Ministros.

Tornando a realçar o que antes já foi dito, o pedido de suspensão de liminar, tutela ou segurança se revela como incidente processual, com feição jurídica e não política, fundamentada na análise da preponderân-cia do interesse público em detrimento de decisões que possam gerar a este lesões graves.

12 ConclusãoPrevisto na legislação brasileira desde 1936, o pedido de suspensão

de liminar, tutela ou segurança é, até hoje, objeto do estudo de muitos, e de larga utilização, notadamente pelos entes que compõem a Fazenda Pública.

Não obstante os questionamentos em relação à sua constitucionali-dade ou mesmo aos riscos de interferência política, trata-se, como visto, de instituto com natureza de incidente processual, de caráter judicial e não administrativo, por meio do qual o Presidente do Tribunal com-petente, para conhecer do eventual recurso, pode suspender decisões liminares, antecipatórias de tutela ou a execução de sentença, sempre que identificar lesão à ordem, à economia, à saúde ou à segurança pública.

Revela-se inegável a importância prática de tal instrumento, posto à disposição exclusivamente da Fazenda Pública e do Ministério Público, para aquelas situações em que se impõe, em nome do interesse público, sustar a eficácia da decisão lesiva. Não se destina, como se esposou, a substituir o recurso ou a reformar a decisão, mas tão somente a suspender os efeitos da decisão que está por gerar a lesão apontada pelo requerente.

Apesar da possibilidade de utilização concomitante do pedido de suspensão e do eventual recurso cabível contra a decisão, é de se ponderar

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Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 179

que os advogados públicos e membros do Ministério Público ajam com moderação, a fim de que tais pedidos somente sejam formulados em situações verdadeiramente excepcionais, de modo a não comprometer a credibilidade da instituição e do próprio incidente processual.

Assim, é de se imaginar que, apesar de tantas críticas, o instrumento da suspensão de liminar, tutela ou segurança por muito ainda perdurará na ordem jurídica pátria, revelando-se ferramenta das mais relevantes a serem utilizadas na defesa do interesse público e, por que não dizer, da própria segurança jurídica.

Is the Suspension of the Preliminary Injuction a Political or a Legal Instrument?

Abstract: The present work has as purpose the institute of injunction suspension, injunctive relief suspension and security suspension, and the controversies arising from it. Develops a study from the historical context of its legal nature, legitimacy, requirements, powers, effects and other aspects pertaining to your procedure, proceeding including the analysis of the constitutionality and political risks of use of the instrument.

Key words: Suspension. Injunction. Injunctive relief. Security.

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Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011, do Senado Federal, é constitucional?Daniel Pinheiro de Carvalho Advogado da União lotado no MPOG. Pós-Graduado em Direito Público.

Resumo: As manifestações sociais ocorridas a partir de junho de 2013 no Brasil reacenderam o debate acerca da desmilitarização da polícia ostensi-va. Uma das possíveis soluções aventadas foi a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 102/2011, do Senado Federal, que unifica as polícias civil e militar em uma instituição de natureza civil. Todavia, embora a desmilitarização da polícia ostensiva seja juridicamente viável, a referida proposta apresenta vícios de constitucionalidade, por ofender cláusulas pétreas.

Palavras-chave: Manifestação social. Desmilitarização da polícia. PEC nº 102/2011.

Sumário: Introdução – 1 Breve histórico sobre as polícias militares no Brasil – 2 Teor da PEC nº 102/2011 – 3 Exclusividade da investigação criminal pela polícia unificada e fim do controle externo exercido pelo Ministério Público – 4 Provimento dos cargos das carreiras policiais unificadas – 5 Da inconstitucionalidade da cláusula que assegura aos inativos e pensionistas das carreiras policiais as garantias da paridade e da integralidade, por ofensa ao direito à igualdade – 6 Da desmilitarização da polícia ostensiva e unificação das polícias – Conclusão – Referências

IntroduçãoO método de resposta utilizado pelas polícias militares em várias

das recentes manifestações sociais realizadas no Brasil a partir de junho de 2013, considerado excessivamente violento pelos manifestantes e pelos meios de comunicação em geral, reacendeu o debate acerca da des mi litarização do policiamento ostensivo em nosso país.

Em determinadas manifestações, como as realizadas no Espírito Santo, em São Paulo1 e em Minas Gerais,2 a desmilitarização da polícia ostensiva foi um dos itens centrais da pauta de reinvindicações.

1 Em 1º de julho de 2013, por exemplo, foi organizada pelo grupo “Ocupa Sampa”, no vão do Museu de Artes de São Paulo (MASP), uma aula pública sobre o tema, com a participação de manifestantes e espe-cialistas.Fonte: CANOFRE. “Sem violência”: desmilitarização da polícia em debate no Brasil.

2 Fonte: FRANCESCHINI. Desmilitarização da Polícia estará na pauta dos protestos no Mineirão na quarta. Uol.

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O argumento central dos defensores da desmilitarização reside no fato de que a formação, a hierarquia e a disciplina militares não contri-buem para a adequada resposta a protestos civis e para as demais situa-ções cotidianas do policiamento ostensivo não relacionadas diretamente a confrontos armados com agentes de alta periculosidade.

Entre as soluções de mais célere implementação aventadas nas manifestações sociais e pelos meios de comunicação em geral3 está a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 102/2011, de autoria do Senador Blairo Maggi e em tramitação no Senado Federal, que prevê a possibilidade de unificação das polícias militar e civil em uma instituição civil.

Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar a cons-titucionalidade da PEC nº 102/2011, a fim de verificar se tal proposta, da forma como está redigida, realmente pode ser considerada uma solução juridicamente viável para a desmilitarização da polícia ostensiva.

1 Breve histórico sobre as polícias militares no BrasilA utilização de militares para a segurança pública em nosso país

remonta ao período imperial, em que diversos Corpos de Polícia eram constituídos por militares e submetidos ao Conselho Supremo Militar do Império. A título exemplificativo, citem-se os Corpos de Polícia da Bahia (Decreto de 17 de fevereiro de 1825)4 e do Recife (Decreto de 11 de junho de 1825),5 que tinham o mesmo tratamento e usavam os

3 Vide, por exemplo: ROUSSELET. Túlio Vianna: “A militarização não é boa para o policial e é péssima para o cidadão”. Revista Forum. Confira-se, igualmente: NABUCO FILHO. Passou da hora de desmilitarizar a polícia. DCM.

4 “Sendo muito necessario, para a tranquilidade e segurança publica da cidade da Bahia, a organização de um corpo, que sendo-lhe incumbidos aquelles deveres responda immediatamente pela sua conservação e estabilidade: Hei por bem Mandar organizar na cidade da Bahia um corpo de Policia, pelo plano, que com este baixa, assignado por João Vieira de Carvalho, do meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Guerra. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e o faça executar.Paço em 17 de Fevereiro de 1825, 4º da Independencia e do Imperio.Com a rubrica de Sua Magestade ImperialJoão Vieira de Carvalho” (Fonte: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-38417-17-fevereiro-1825-566730-publicacaooriginal-90241-pe.html>. Acesso em: 22 jul. 2013).

5 “Manda organizar provisoriamente um Corpo de Policia, na cidade do Recife, provincia de Pernambuco.Convindo para a tranquilidade e segurança publica da cidade de Recife, da Provincia de Pernambuco, a organização de um Corpo, que sendo-lhe incumbidos aquelles deveres, responda immediatamente pela sua conservação e estabilidade: Hei por bem Mandar, se organize provisoriamente na sobredita cidade do Recife, um Corpo de Policia, na conformidade do plano, que com este baixa, assignado por João Vieira de Carvalho, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Guerra; entrando para a mencionada do Corpo de Cavalaria de 1ª Linha da mesma Provincia, que por este fica extincto. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e o faça executar. Paço em 11 de Junho de 1825, 4º da Independencia e do Imperio.

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Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 183

mesmos uniformes da Imperial Guarda de Polícia6 (Decreto de 25 de julho de 1825).

Ao lado desses Corpos de Polícia, as províncias começaram a for-mar suas denominadas forças públicas, também inspiradas no modelo militar. De acordo com Mateus Afonso Medeiros,

As forças públicas tinham como principal função atuar nesse conflito entre elites nacionais e locais, ou entre diferentes grupos das elites locais. Apesar de serem forças aquarteladas e de terem no Exército o seu modelo de orga-nização, as forças públicas não eram, a rigor, polícias militares, já que não possuíam vinculação jurídica com as forças armadas. Eram verdadeiros exér citos estaduais, instrumentos à disposição do governador para que este fizesse frente a seus inimigos: movimentos populares, elites armadas em seus pró prios estados (“coronéis” e seus “jagunços”), outras províncias ou até o poder central.

Na década de 20, o efetivo da força pública de São Paulo era dez vezes maior que o efetivo do Exército estacionado em São Paulo. A “força aérea” de São Paulo era maior que toda a força aérea brasileira. Esse poderio era necessário para que São Paulo pudesse manter sua colocação hegemônica, evitando as tão freqüentes intervenções federais que os estados mais fracos sofriam.

Também significativas em poderio bélico eram as forças públicas de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul (Cf. FERNANDES, 1971; TORRES, 1961, p. 233-240).7

Com a rubrica de Sua Magestade Imperial.João Vieira de Carvalho” (Fonte: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-38509-11-junho-1825-566974-publicacaooriginal-90445-pe.html>. Acesso em: 22 jul. 2013).

6 A origem da Imperial Guarda de Polícia decorre da Guarda Real da Polícia da Corte, por sua vez instituída em 1809 pelo então príncipe regente D. João, por meio do decreto de 13 de maio de 1809, in verbis:“Crêa a divisão militar da Guarda Real da Policia no Rio de Janeiro.Sendo de absoluta necessidade prover á segurança e tranquilidade publica desta Cidade, cuja população e trafico têm crescido consideravelmente, e se augmentará todos os dias pela affluencia de negocios inseparavel das grandes Capitaes; e havendo mostrado a experiencia, que o estabelecimento de uma Guarda Militar de Policia é o mais proprio não só para aquelle desejado fim da boa ordem e socego publico, mas ainda para obter ás damnosas especulações do contrabando, que nenhuma outra providencia, nem a mais rigorosas leis prohibitivas tem podido cohibir: sou servido crear uma Divisão Militar da Guarda Real da Policia desta Corte, com a possivel semelhança daquella que com tão reconhecidas vantagens estabeleci em Lisboa, a qual se organizará na conformidade do plano, que com este baixa, assignado pelo Conde de Linhares, do meu Conselho de Estado Ministro e Secretario de Estado dos Negocios Estrangeiros e da Guerra. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e o faça executar na parte que lhe toca. Palacio do Rio de Janeiro em 13 de Maio de 1809.Com a rubrica do Principe Regente Nosso Senhor” (Fonte: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/anterioresa1824/decreto-40054-13-maio-1809-571685-publicacaooriginal-94831-pe.html>. Acesso em: 22 jul. 2013).

7 MEDEIROS. A desmilitarização das polícias e a legislação ordinária. Revista de Informação Legislativa, p. 239-253.

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Após a Revolução Constitucionalista, de 1932, na qual a força pública de São Paulo lutou contra o Exército Nacional, afirma Medeiros que adveio “a ideia de que era necessário estabelecer um maior controle do poder central sobre as forças públicas”, de modo que, “em 1934, a nova Constituição Federal declarou as polícias militares ‘reservas do Exército’ (art. 167, CF/34) e garantiu a competência privativa da União para legislar sobre ‘organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos estados e condições gerais da sua utilização em caso de mobilização ou de guerra’ (art. 5º, XIX, l, CF/34)”.8

Já a Constituição de 1946 explicitamente relacionou a polícia militar com a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados-membros em seu art. 183, que prevê o seguinte: “as polícias militares instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem dos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas, como forças auxiliares, reservas do Exército”.

Por fim, a Constituição de 1988 reafirmou a atribuição da Polícia Militar de promover o policiamento ostensivo, reservando às polícias civis, em regra, as atividades de investigação criminal e de polícia judi-ciária (art. 144, §§4º e 5º).9

2 Teor da PEC nº 102/2011Para melhor compreensão da proposta de emenda à constituição

que será a seguir analisada, entende-se útil sua transcrição integral neste momento, ao invés de apenas se reportar a artigos específicos posterior-mente, a fim de que o leitor possa desde logo compreender a proposta em sua completude:

8 Ressalte-se que, apesar de ter sido alçada a nível constitucional em 1934, a possibilidade de utilização das forças públicas enquanto forças auxiliares do exército já existia na legislação infraconstitucional, embora não fosse de caráter cogente, ficando a critério de cada Estado-membro e na dependência de cumprimento de determinadas condições. Apenas a título exemplificativo, cite-se o Decreto nº 11.497, de 23 de fevereiro de 1915, e a Lei nº 3.216, de 03 de janeiro de 1917.

9 “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...]§4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.§5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bom-beiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. [...]”.

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PEC nº 102/2011

Art. 1º O artigo 144 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 144. [...]

§9º A remuneração dos agentes públicos integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do §4º do art. 39, assegurado piso nacional a ser fixado em lei federal, que disciplinará fundo nacional, com participação da União, dos Estados e dos municípios, visando a sua suplementação, bem como a vinculação de percentuais do orçamento.

§10. É facultado à União, no Distrito Federal e Territórios, e aos estados a adoção de polícia única, no seu respectivo âmbito, cujas atribuições congregam as funções de polícia judiciária, a apuração de infrações penais, de polícia ostensiva, administrativa e a preservação da ordem pública.

§11. O Conselho Nacional de Polícia, cuja competência e organização são definidas em lei complementar, presidido por Ministro do Superior Tribunal de Justiça e composto por membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, das polícias estaduais, federal e do Distrito Federal e Territórios, por representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e membros da sociedade civil indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para mandato de dois anos, admitida uma recondução.” (NR)

Art. 2º O artigo 167 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 167. [...]

IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressal-vadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para a manutenção e desenvolvimento do ensino, para as ações de segurança pública e para a realização de atividades da administração tri bu tária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, §2º, 212, 144, §9º e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por ante cipação de receita, previstas no art. 165, §8º, bem como o disposto no §4º deste artigo; [...] (NR)”

Art. 3º A opção pelo modelo de que trata o §10 do art. 144 da Constituição Federal, deverá observar o disposto nesta emenda constitucional.

Art. 4º A polícia de que trata o artigo anterior, instituição de natureza civil, instituída por lei como órgão permanente e único em cada ente federativo, essencial à Justiça, subordinada diretamente ao respectivo Governador, de atividade integrada de prevenção e repressão à infração penal, dirigida por membro da própria instituição, organizada com base na hierarquia e disci-plina e estruturada em carreiras, ressalvada a competência da polícia federal, destina-se:

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186 Daniel Pinheiro de Carvalho

I - à preservação da ordem pública;

II - à polícia ostensiva, administrativa e preventiva; e

III - ao exercício privativo da investigação criminal e da atividade de polícia judiciária.

§1º O ingresso como delegado de polícia, carreira jurídica da polícia dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do candidato, bacharelado em direito e aprovação prévia em curso de formação profissional nas áreas preventivas e repressivas da infração penal, ministrado em Academia de Polícia.

§2º O quadro da Polícia terá em sua composição básica, além da carreira de delegado de polícia, as de analista de polícia da área cartorária, ostensiva e investigativa e de perito de polícia, cujo ingresso é condicionado à aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos e aprovação prévia em curso de formação técnico-profissional nas áreas preventivas e repressivas da infração penal, ministrado em Academia de Polícia, na forma da lei.

§3º Nos concursos públicos para provimento dos cargos das carreiras de delegado de polícia e de perito de polícia, será permitida a ascensão funcional em percentual das vagas, a ser fixado em lei aos integrantes das carreiras de analista de polícia, que preencherem os requisitos legais.

Art. 5º O regime previdenciário dos integrantes dos órgãos de segurança pública obedece ao disposto no §4º, do art. 40, garantida a integralidade e a paridade de remuneração entre ativos, inativos e pensionistas.

Art. 6º Na unificação das polícias, os oficiais oriundos da polícia militar e os delegados de polícia dos Estados e do Distrito Federal ficam transpostos para membro da carreira de delegado de polícia, na forma da Lei.

§1º No período de transição, em que houver integrante remanescente da estrutura policial anterior, o cargo de Delegado Geral da Polícia dos Estados e a do Distrito Federal e Territórios será exercido por mandato de dois anos, alternadamente, por delegado oriundo da Polícia Judiciária Civil e delegado da Polícia Militar, escolhido pelo respectivo Governador, dentre os integrantes da última categoria funcional, até que um delegado de polícia, formado pelo novo sistema previsto nesta emenda, reúna condições para assumir e exercer a direção da nova entidade.

§2º Ocupado o cargo de Delegado Geral da Polícia por Delegado oriundo da extinta policia civil, o cargo de Delegado Geral Adjunto será ocupado por delegado oriundo da extinta polícia militar, revezamento que será observado na alternância prevista.

§3º Ocorrendo unificação das polícias, os cargos das carreiras das polícias civis e militares dos Estados e do Distrito Federal serão transformados, por lei do respectivo ente, em cargos do novo quadro, mantendo a correspondência entre a situação funcional anterior e a nova, garantida, em qualquer caso, para ativos, inativos e pensionistas, a irredutibilidade de vencimentos ou subsídios.

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Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 187

§4º Lei federal, de iniciativa do Presidente da República, disporá sobre regras gerais das Polícias, em especial sobre ingresso, estrutura organizacional básica, direito de greve e outras situações especiais, consideradas as peculiaridades de suas atividades, assegurada a independência no exercício da atividade pericial e na investigação criminal, que devem ser uniformemente observadas pelas leis dos respectivos entes federativos.

Art. 7º Leis da União e dos Estados criarão ouvidorias, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra integrantes das polícias, inclusive contra seus serviços auxiliares, representando direta-mente ao Conselho Nacional de Polícia.

Art. 8º As guardas dos Municípios cujos Estados adotarem o modelo pre-visto no §10 do art. 144, conforme dispuser a lei, poderão exercer atividade complementar de policiamento ostensivo e preventivo, mediante convênio com o Estado.

Art. 9º A União poderá mobilizar efetivo das polícias unificadas dos Estados e do Distrito Federal e Territórios para emprego em local e tempo determi-nado nos seguintes casos:

I - de decretação de Estado de Defesa, de Sítio ou de intervenção federal;

II - por solicitação do governo do Estado ou do Distrito Federal e Territórios.

Art. 10. Fica revogado o inciso VII do art. 129 da Constituição Federal.

Art. 11. Esta Emenda entra em vigor na data da sua publicação.

A seguir, passa-se à análise pontual dos dispositivos considerados como mais prováveis de terem sua constitucionalidade questionada e, ao fim, abordar-se-á especificamente a possibilidade de desmilitarizar a polícia ostensiva.

Vale recordar que, embora a emenda constitucional possa alterar a Constituição, deve necessariamente respeitar as cláusulas pétreas (art. 60, §4º), além de observar os procedimentos formais delineados na Constituição.

A fim de propiciar melhor entendimento sobre o que se há de tratar, importa destacar lição doutrinária de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco que explicita o alcance da proteção conferida pelas cláusulas pétreas:

A garantia de permanência em que consiste a cláusula pétrea, em suma, imu-niza o sentido dessas categorias constitucionais protegidas contra alte rações que aligeirem o seu núcleo básico ou debilitem a proteção que forne cem. Nesse sentido se deve compreender o art. 60, §4º, da CF, como proi bição à de-liberação de proposta tendente a abolir, isto é, a mitigar, a reduzir, o significado

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e a eficácia da forma federativa do Estado, do voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.10

Ressalte-se, outrossim, que os precedentes do Supremo Tribunal Federal que serão utilizados adiante, embora não tenham sido proferidos em sede de controle de constitucionalidade de emendas à Constituição Federal, foram selecionados por trazerem a) reflexões jurídicas relevantes sobre dispositivos constitucionais que se reputam pertinentes ao exame que se pretende realizar e b) teses que auxiliam no delineamento e na determinação do alcance das cláusulas pétreas que serão estudadas.

Seu valor, portanto, é precipuamente argumentativo, mas, ainda assim, de importância ímpar, por refletirem entendimentos já exarados pelo tribunal guardião da Constituição e que certamente serão ponde-rados, senão seguidos, por seus ministros em futuros julgamentos.

3 Exclusividade da investigação criminal pela polícia unificada e fim do controle externo exercido pelo Ministério Público

Considerando que o exercício privativo da investigação criminal pelas autoridades policiais também foi um dos temas centrais das recen-tes manifestações populares, que ensejaram, inclusive, a rejeição da PEC nº 37/2011 na Câmara dos Deputados,11 o primeiro dispositivo da PEC nº 102/2011 a ser analisado será o inciso III de seu art. 4º, que também objetiva atribuir à polícia “o exercício privativo da investigação criminal”.

Atualmente, discute-se na doutrina e na jurisprudência acerca dos poderes investigativos do Ministério Público, prevalecendo, não obstante a existência de sólidos argumentos contrários,12 o entendimento de que,

10 MENDES; BRANCO. Curso de direito constitucional.11 Vide a seguinte reportagem: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/06/camara-derruba-pec-

37-e-propoe-75-dos-royalties-para-educacao.html>. Acesso em: 22 jul. 2013.12 Cite-se, por exemplo, o posicionamento institucional da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo plenário, em

20 de maio de 2013, manifestou-se favoravelmente à PEC nº 37/2011, conforme noticiado no seguinte endereço eletrônico: <http://www.oab.org.br/noticia/25648/plenario-da-oab-e-favoravel-a-aprovacao-da-pec-37>. Acesso em: 12 ago. 2013. Dentre os argumentos usualmente invocados pelos defensores da não investigação penal pelo Ministério Público, pode-se citar o de que concentrar a investigação criminal nas mãos do Ministério Público implica grave desequilíbrio de armas entre acusação e defesa, inclusive pela possibilidade de, na condição de parte acusatória, serem selecionados para embasar a denúncia apenas os elementos de informação mais prejudiciais ao réu. Outro fundamento geralmente suscitado é o de que, por não constar expressamente da Constituição, o exercício do poder investigatório pelo Ministério Público ofende a separação dos Poderes.

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se a Constituição outorgou ao Ministério Público a titularidade da ação penal (art. 129, I, da Constituição),13 conferiu-lhe, implicitamente, os poderes necessários para ajuizá-la, entre eles o de proceder às investi-gações pertinentes.

É esse o entendimento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal — conquanto o Tribunal Pleno esteja se debruçando sobre a questão no HC nº 84.548/SP, ainda pendente de conclusão do julgamento.

No HC nº 91.661,14 a 2ª Turma da referida corte entendeu ser “perfeitamente possível que o órgão do Ministério Público promova a colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a exis-tência da autoria e da materialidade de determinado delito”. Ademais, ressaltou a aplicação, ao caso, da teoria dos poderes implícitos, segundo a qual se deve considerar que a Constituição, ao atribuir uma finalida-de a um órgão, implicitamente lhe conferiu os meios necessários para exercê-la, tendo em vista que, “se a atividade fim — promoção da ação penal pública — foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que ‘peças de informação’ embasem a denúncia”.

No HC nº 89.837,15 apreciado pelo mesmo órgão fracionário, afirmou-se que

[...] o poder de investigar compõe, em sede penal, o complexo de funções institucionais do Ministério Público, que dispõe, na condição de “dominus litis” e, também, como expressão de sua competência para exercer o con-trole externo da atividade policial, da atribuição de fazer instaurar, ainda que em caráter subsidiário, mas por autoridade própria e sob sua direção, procedimentos de investigação penal destinados a viabilizar a obtenção de dados informativos, de subsídios probatórios e de elementos de convicção que lhe permitam formar a “opinio delicti”, em ordem a propiciar eventual ajuizamento da ação penal de iniciativa pública. [...]

13 “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; [...]”.

14 HC nº 91.661. Segunda Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. Julgado em 10.03.2009. DJe, 03 abr. 2009. RMDPPP v. 5, n. 29, 2009, p. 103-109. LEXSTF v. 31, n. 364, 2009, p. 339-347. RMP n. 43, 2012, p. 211-216.

15 HC nº 89.837. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 20.10.2009. DJe, 20 nov. 2009. LEXSTF v. 31, n. 372, 2009, p. 355-412. RTJ v. 218, p. 272.

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Embora o tema seja instigante, merecedor de estudo próprio e específico, optar-se-á, para não se desviar do objetivo do presente artigo, por seguir o entendimento majoritário e, a partir do pressuposto de que o Ministério Público detém atribuição investigatória criminal, focar o debate na análise de sua natureza.

Com efeito, o que interessa por ora é averiguar a extensão e o significado desse poder investigatório para o Ministério Público. Seria esse poder tão relevante a ponto de configurar uma cláusula pétrea?

Sinale-se, em primeiro lugar, que o próprio Ministério Público, enquanto “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime demo-crático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, da Constituição Federal), também foi alcançado pelos efeitos das cláusulas pétreas estabelecidas no art. 60, §4º, III e IV da Constituição,16 tanto na condição de guardião dos direitos e garantias individuais indis-poníveis, como na de instituição destinada a compor o sistema de freios e contrapesos (checks and balances system) delineado pelo constituinte originário, conforme se observa por suas funções institucionais fixadas no art. 129, especialmente em seus incisos I, II, III, IV, VI, VII e VIII, da Constituição.17

Por tal razão, é vedado ao constituinte derivado propor emendas tendentes a abolir funções institucionais do Ministério Público vinculadas às duas condições acima mencionadas.

16 “Art. 60. [...] §4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:I - a forma federativa de Estado;II - o voto direto, secreto, universal e periódico;III - a separação dos Poderes;IV - os direitos e garantias individuais”.

17 “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; [...]VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.

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Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 191

Vale frisar que esse entendimento se aplica ainda que não se considere o Ministério Público como um quarto Poder. Com efeito, caso não integre um Poder autônomo, será considerado integrante de um dos outros três Poderes18 e a supressão de suas funções vinculadas ao sis tema de freios e contrapesos delineado na Constituição permaneceria esbarrando na cláusula pétrea da separação dos Poderes (art. 60, §4º, III). Ou, então, será entendido como instituição autônoma, mas que também

18 Sobre o tema, Bernardo Ladeira Ferreira, em monografia intitulada “A natureza jurídica do Ministério Público”, realiza pertinente revisão bibliográfica, in verbis:“Contudo, o Ministério Público, sendo participante da divisão funcional do Estado, é elemento indispensável no sistema de freios e contrapesos na contenção do poder estatal, como o são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Ora, tanto esses como aquele (o Ministério Público), assemelham-se em virtude da autonomia, independência e finalidades constitucionais, exercendo todos funções únicas do Estado.Ocorre é que o posicionamento constitucional do Ministério Público sempre provocou impasses na doutrina, principalmente devido à transformação e à evolução que a instituição sofreu ao longo dos anos, restando perplexidade ao defini-lo como órgão atrelado (ou vinculado) a algum poder, seja ao Legislativo, seja ao Executivo, seja ao Judiciário.Sobre o tema, Hugo Nigro Mazzilli (1997, p. 19 e 20) discorre:‘Há quem sustente que o Ministério Público estaria atrelado ao Poder Legislativo, a esse incumbida a elaboração da lei e ao Ministério Público, a fiscalização do seu fiel cumprimento. Há quem defenda que a atividade do Ministério Público é eminentemente jurisdicional, razão pela qual estaria ele atrelado ao Poder Judiciário. E há, ainda, quem afirme que a função do Ministério Público é administrativa, pois ele atua com o fim de promover a execução das leis e estaria atrelado ao Poder Executivo.’Alexandre de Moraes continua (SLAIBI FILHO; MELLO FILHO; FERREIRA FILHO apud MORAES, 2003, p. 494):‘Analisando a Carta Anterior, que colocava o Ministério Público como órgão do Poder Executivo, Celso de Mello já apontava que seus membros sujeitavam-se a regime jurídico especial, gozando, no desempenho de suas funções, de plena independência. Por sua vez, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, concordando com a independência ministerial, colocava-o como órgão administrativo, destinado a zelar pelo cumprimento das leis, cabendo-lhe a defesa do interesse geral de que as leis sejam observadas. Da mesma forma, José Afonso da Silva afirma que a Instituição ocupa lugar cada vez mais destacado na organização do Estado, em virtude do alargamento de suas funções de proteção aos direitos indisponíveis e de interesses coletivos, tendo a Constituição Federal lhe dado relevo de Instituição permanente e essencial à função jurisdicional, mas que ontologicamente sua natureza permanece executiva, sendo seus membros agentes políticos, e como tal, atuam com plena e total independência funcional.’Todavia, na Carta Atual, baseada na tendência internacional, o Ministério Público consagra-se plenamente independente, desvinculado de qualquer poder, tornando-se um “estranho no ninho” no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, comportando todos os requisitos, garantias e vedações atinentes aos clássicos poderes do Estado, contudo, sem a função precípua de julgar, de administrar, muito menos de legislar. Como bem observa o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence,‘A seção dedicada ao Ministério Público insere-se, na Constituição Federal de 1988, ao final do Título IV - Da Organização dos Poderes, no seu Capítulo IV - Das Funções Essenciais à Justiça. A colocação tópica e o conteúdo normativo da Seção revelam a renúncia, por parte do constituinte, de definir explicitamente a posição do Ministério Público entre os Poderes do Estado. [...] A razão subjacente à crítica contemporânea da integração do Ministério Público no Poder Executivo [ou no Poder Legislativo e até no Poder Judiciário] está, na verdade, na postulação da independência política e funcional do Ministério Público, pressuposto da objetividade e da imparcialidade de sua atuação nas suas funções sintetizadas na proteção da ordem jurídica (MORAES, 2003, p. 494-495).’Portanto, observa-se que a relação que o Ministério Público tem para com os outros poderes é emi-nentemente independente, complementando-as tão somente naquilo que lhes foram conferidos: funcionar para que a soberania do Estado se exteriorize, a fim de cumprir seu papel pelo qual foi criado. Independência essa é essencial e indispensável à sobrevivência da instituição, sobretudo à viabilidade e à eficácia de sua atuação, sendo que seu papel institucional restaria prejudicado e inócuo, se, de fato, a instituição ministerial fosse de tal modo subjugada ou atrelada a qualquer outro órgão” (Disponível em: <http://www.iptan.edu.br/publicacoes/saberes_interdisciplinares/pdf/revista06/A%20NATUREZA%20JURIDICA%20DO%20MINISTERIO%20PUBLICO.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2013).

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tem o poder de limitar a atuação dos três Poderes da República, de modo que a retirada de suas atribuições igualmente afetaria, ainda que indiretamente, a harmonia e as limitações do sistema estabelecidas pelo constituinte originário.

É nesse contexto que se deve analisar o questionamento feito alhures acerca do poder investigatório.

Sobre o tema, vale transcrever as seguintes lições do Min. Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, no HC nº 97.969:

[...] 18. Ora bem, investigar fatos, documentos e pessoas é da natureza mesma do Ministério Público. É ínsito ao Ministério Público. É o seu modo de estar em perma­nente atuação de custos legis para defesa da lei. Só que nossa Constituição foi além: habilitou o Ministério Público a sair em defesa de todo o Direito positivo, porque é a Ordem Jurídica, por inteiro, que se inclui entre as fina lidades do Ministério Público. Então, o Ministério Público, hoje, mais do que custos legis, é custos iuris. É guar dião, é custodiador do próprio Direito positivo. Seja para lavrar um parecer, seja para oferecer uma denúncia, ou não oferecer, seja, ainda, para pedir a absolvição de quem já foi denunciado e até mesmo deixar de recorrer de decisão penal absolutória. Pois o que prevalece na atuação do Ministério Público é a atividade de custos iuris. É por isso que ele não tem a disponibilidade da ação penal. É por isso que ele é uma parte processual especialíssima: não é pessoa física, nem pessoa jurídica, e pede em nome da sociedade, ou em nome da justiça pública, a encarecer o seu insubstituível mister de “promotor de justiça”.

19. Diante disso, privar o Ministério Público dessa peculiaríssima atividade de defensor do Direito e promotor de justiça é apartá­lo de si mesmo. É desnaturá­lo. Dessubstanciá­lo até não restar pedra sobre pedra, ou, pior ainda, reduzi­lo à infamante condição de bobo da Corte. Mas sem que sua inafastável capacidade de investigação criminal por conta própria venha a significar o poder de abrir e presidir inquérito policial.

20. Com efeito, é preciso distinguir as coisas. Se todo inquérito policial im-plica uma investigação criminal, nem toda investigação criminal implica um inquérito policial. Aliás, inquérito policial é próprio da Polícia até nominal-mente, até gramaticalmente, porque é aberto e presidido pela autoridade policial. Mas não se tolera, sob a Constituição de 1988, condicionar ao exclusivo impulso da Polícia a propositura das ações penais públicas incondicionadas; como se o Ministério Público fosse um órgão passivo, inerte, à espera de provocação de terceiros. Ações que só o Ministério Público pode ajuizar (inciso I do art. 129 da Constituição) e que têm, na livre formação do convencimento dos promotores e procuradores de justiça, um elemento conceitual de sua propositura. Quero dizer: assim como o juiz sentencia a partir do seu livre convencimento, o promotor e o procurador de justiça também denunciam a partir do seu livre convencimento, o que já significa poderem atuar a

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latere do inquérito policial. Como o Código de Processo Penal bem o diz. Logo, entendo que a Constituição, em matéria de investigação criminal, foi, antes de tudo, democrática; ou seja, ela fez proliferar os núcleos de investigação criminal. Daí por que o nosso sistema constitucional convive com inquéritos parlamentares e com o poder de polícia administrativa, este a restringir o uso da liberdade e da propriedade das pessoas. Não se pode recusar ao Ministério Público o que não se recusou sequer ao poder de polícia. Não estou dizendo o “poder da Polícia”, mas “poder de polícia” administrativa. Como, aliás, bem disse Celso Antônio Bandeira de Melo — não falando, é verdade, sobre o Ministério Público, mas sobre os exercentes da função administrativa, às folhas 715 do seu livro “Curso de Direito Administrativo”, calçado na boa doutrina de Francesco D’Alessio, administrativista italiano de nomeada.

21. Diria, então, que não se trata de concentrar o poder investigatório no Ministério Público, mas de desconcentrar esse poder, o qual já não se con-fina no âmbito da Polícia, seja a Federal, sejam as polícias civis dos Estados.

22. Enfim, penso ser o dilema que se abre para o Ministério Público, no caso, dramático. É investigar, ou morrer. É investigar para sair daquela triste condição de que falava Vinícius de Moraes: há certas situações para as quais o suicídio ainda é a mais doce das soluções.

23. À luz da Constituição brasileira, tenho que o Ministério Público se dota, efe ti vamente, de poderes investigatórios e, ao contrário do que têm dito alguns setores da mídia, não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso. (grifos nossos)

Concorda-se com o posicionamento do eminente ministro. A capacidade de o Ministério Público apurar fatos é imprescindível para o cumprimento de suas funções institucionais. Conforme afirmado no precedente acima citado, é-lhe ínsita.

Para zelar, de modo independente, “pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos asse-gurados nesta Constituição” (art. 129, II), é fundamental o poder de in vestigar e buscar informações por conta própria. O mesmo vale para o exercício do controle externo da atividade policial (art. 129, VII) que, para ser efetivo, pressupõe a coleta de informações pelos próprios mem-bros ministeriais. Tampouco é possível vislumbrar inquérito civil “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III) sem atribuição apuratória.

Constata-se, assim, que, ausente o poder investigatório do Minis-tério Público, enfraquece-se o sistema de freios e contrapesos inerente ao modelo de separação de Poderes atualmente vigente. Mas seria possível

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mitigar apenas parcela desse poder, relacionada à apuração criminal, outorgando-a exclusivamente à polícia?

Segundo doutrina atualmente minoritária, que sustenta que o Ministério Público é órgão integrante do Poder Executivo e que participa do checks and balances system apenas enquanto tal, não haveria óbices a essa mitigação sob o ponto de vista da separação de Poderes (sob a ótica dos direitos e garantias fundamentais, o tema será tratado adiante), tendo em vista que o poder investigatório criminal permaneceria no âmbito do mesmo Poder.

Todavia, prevalece o entendimento de que o Ministério Público con siste em, senão um quarto Poder, ao menos uma instituição autônoma e independente com papel fundamental no equilíbrio e na harmonia entre os Poderes.

Ademais, considerando as graves implicações que podem advir das investigações criminais para a liberdade, a imagem, a privacidade e a dignidade dos indivíduos, bem como sua fundamental relevância para obstar ilícitos penais praticados por agentes públicos ímprobos, não é conveniente que tal atividade fique restrita exclusivamente a um órgão subordinado ao chefe do Poder Executivo, razão pela qual, conforme bem ressaltado no voto do Min. Carlos Ayres Brito acima transcrito, “a Constituição, em matéria de investigação criminal, foi, antes de tudo, de-mocrática; ou seja, ela fez proliferar os núcleos de investigação criminal”.

Assim, a atuação ministerial paralela no campo apuratório criminal é fundamental para se precaver de investigações criminais impulsionadas por questões meramente políticas ou mesmo com excesso ou abuso de poder sobre os indivíduos e para assegurar que ilícitos penais perpetra-dos por agentes que gozam da proteção da cúpula do Poder Executivo sejam efetivamente examinados.

Percebe-se, portanto, que a investigação criminal a cargo do Parquet também tem implicações no que se refere à proteção dos direitos e garan-tias fundamentais e ao sistema dos checks and balances. Consequentemente, nos termos do art. 60, §4º, III e IV, da Constituição, é vedada a apresen-tação de proposta de emenda à Constituição que atribua exclusivamente à Polícia a competência para realizar investigação criminal.

Assevere-se, por fim, que, conforme doutrina de Gilmar Ferreira Mendes e Gonet Branco acerca das cláusulas pétreas, “no tocante aos

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direitos e garantias individuais, mudanças que minimizem a sua proteção, ainda que topicamente, não são admissíveis”.19

Em relação ao art. 10 da PEC nº 102/2011, que prevê a revoga-ção do inciso VII do art. 129 da Constituição (que atribui ao Ministério Público o controle externo da atividade policial), aplica-se o mesmo raciocínio referente ao inciso III do §4º do art. 60 da Constituição acima desenvolvido. Referido controle configura um dos mecanismos esta belecidos na Constituição para “frear” e supervisionar as atividades exercidas pelo Poder Executivo.

Acrescente-se que quem tem a competência para promover as me-didas necessárias para zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos aos direitos assegurados na Constituição (art. 129, II) certamente terá po deres para realizar o controle externo também da atividade poli cial — independentemente da nomenclatura que se atribua a esse controle —, inclusive por meio da realização de investigações criminais acerca da conduta abusiva de agentes policiais.

Tal como expressou o Min. Carlos Ayres Brito no item 16 do voto já citado, “o Ministério Público está autorizado pela Constituição a promover todas as medidas necessárias à efetivação de todos os direitos assegurados pela Constituição”.

4 Provimento dos cargos das carreiras policiais unificadas4.1 Da inconstitucionalidade da regra que permite a ascensão

funcionalO §3º do art. 4º da PEC nº 102/2011 propõe que, “para provi-

mento dos cargos das carreiras de delegado de polícia e de perito de polícia, será permitida a ascensão funcional em percentual das vagas, a ser fixado em lei aos integrantes das carreiras de analista de polícia, que preencherem os requisitos legais”.

Vale registrar que o Supremo Tribunal Federal já teve a oportu-nidade de analisar especificamente a reserva de vagas para ocu pantes de outros cargos policiais, considerando-a inconstitucional em diver sas oportunidades, tais como na ADI nº 1854, ADI nº 308, ADI nº 245,

19 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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ADI nº 361, ADI nº 498, ADI nº 89, ADI nº 388, ADI nº 231 e na ADI nº 960, esta última assim ementada:

DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONS TITU CIO-NA LIDADE. LEI ORGÂNICA DO DISTRITO FEDERAL. PROGRESSÃO FUNCIONAL. FORMA DE INVESTIDURA EM CARGO, SEM CONCURSO PÚBLICO. ART. 37, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O parágrafo 7º do art. 119 da Lei Orgânica do Distrito Federal, ao reservar metade das vagas de cargos de nível superior, na carreira de policial civil, para provimento por progressão funcional, viola o princípio segundo o qual “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas e títulos” (inciso II do art. 37 da CF). Precedentes. 2. Ação Direta julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade das expressões “reservando-se metade das vagas dos cargos de nível superior para provimento por progressão funcional das categorias de nível médio”, contidas no §7º do art. 119 da Lei Orgânica do Distrito Federal. 3. Plenário. Votação por maioria.20

Todavia, como se está diante de proposta de emenda à Constituição, importa analisar se a regra proposta fere alguma cláusula pétrea.

O art. 37, II da Constituição dispõe o seguinte:

Art. 37. A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiên-cia e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) [...]

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) [...]

Observa-se que o inciso II do art. 37 da Constituição expressa-mente se referiu a “investidura em cargo ou emprego público” como dependente de aprovação prévia em concurso público. Não utilizou a expressão “ingresso no serviço público” ou “primeira investidura em cargo ou emprego público”.

20 ADI nº 960. Tribunal Pleno. Rel. Min. Sydney Sanches. Julgado em 06.02.2003. DJ, 29 ago. 2003.

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A regra atual, portanto, é bem diversa da prevista no §1º do art. 97 da Constituição de 1969, segundo o qual “a primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei”, sem prejuízo do §2º que tratava especificamente dos cargos em comissão. Ou seja, além dos cargos em comissão, a lei também poderia criar novas exceções à regra do concurso público. Ademais, apenas era exigido concurso público para a primeira investidura em cargo público, admitindo-se concursos internos e ascensões funcionais (que não se confundem com promoção no âmbito da mesma carreira) para as investiduras posteriores.

Acerca dos concursos públicos, José dos Santos Carvalho Filho leciona o seguinte:

O concurso público é o instrumento que melhor representa o sistema do mérito, porque traduz um certame de que todos podem participar nas mesmas con-dições, permitindo que sejam escolhidos realmente os melhores candidatos.

Baseia-se o concurso em três postulados fundamentais. O primeiro é o princípio da igualdade, pelo qual se permite que todos os interessados em ingressar no serviço público disputem a vaga em condições idênticas para todos. Depois, o princípio da moralidade administrativa, indicativo de que o concurso veda favorecimentos e perseguições pessoais, bem como situações de nepotismo, em ordem a demonstrar que o real escopo da Administração é o de selecionar os melhores candidatos. Por fim, o princípio da competição, que significa que os candidatos participam de um certame, procurando alçar-se a classificação que os coloque em condições de ingressar no serviço público.21

Hely Lopes Meirelles, a seu turno, afirma que:

O concurso é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a com-plexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF.22

Nas palavras do Ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, “a exigência de concurso público como regra para o acesso aos

21 CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 516.22 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 419.

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cargos, empregos e funções públicas confere concreção ao princípio da isonomia”.23

Com base nessas lições, constata-se que o concurso público é ins trumento de concretização, entre outros postulados, do princípio da igualdade ou da isonomia, positivado expressamente no caput do art. 5º da Constituição,24 que atribuiu ao referido princípio, ao lado de suas funções principiológicas típicas (normogenética, fundamentadora, orientadora de interpretação, entre outras, a depender da classificação doutrinária utilizada), status de direito individual.

O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, ressaltou a essencialidade do concurso público para a concretização do direito à igualdade, conforme se verifica, a título de exemplo, no seguinte aresto:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTA DUAL QUE PERMITE A INTEGRAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO NO QUA-DRO DE PESSOAL DE AUTARQUIAS OU FUNDAÇÕES ESTA DUAIS, INDEPENDENTEMENTE DE CONCURSO PÚBLICO (LEI COM-PLEMENTAR Nº 67/92, ART. 56) – OFENSA AO ART. 37, II, DA CARTA FEDERAL – DESRESPEITO AO POSTULADO CONSTI TUCIONAL DO CONCURSO PÚBLICO, ESSENCIAL À CONCRE TIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE – AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. O CONCURSO PÚBLICO REPRESENTA GARANTIA CONCRETIZADORA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, QUE NÃO TOLERA TRATAMENTOS DISCRIMINATÓRIOS NEM LEGITIMA A CONCESSÃO DE PRIVILÉGIOS. – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — tendo presente a essencialidade do postulado inscrito no art. 37, II, da Carta Política — tem censurado a validade jurídico-constitucional de normas que autorizam, permitem ou viabilizam, independentemente de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, o ingresso originário no serviço estatal ou o provimento em cargos administrativos diversos daqueles para os quais o servidor público foi admitido. Precedentes. – O respeito efetivo à exigência de prévia aprovação em concurso público qualifica-se, constitucionalmente, como paradigma de legitimação ético-jurídica da investidura de qualquer cidadão em cargos, funções ou empregos públicos, ressalvadas as hipóteses de nomeação para cargos em comissão (CF, art. 37, II). A razão subjacente ao postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade ao princípio constitucional de que

23 ADI nº 3819. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 24.10.2007. DJe, 28 mar. 2008.24 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]”.

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Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 199

todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, vedando-se, desse modo, a prática inaceitável de o Poder Público conceder privilégios a alguns ou de dispensar tratamento discriminatório e arbitrário a outros. Precedentes. Doutrina.25

O Superior Tribunal de Justiça segue a mesma orientação, con-forme se verifica na ementa do acórdão proferido no julgamento do RMS nº 28.041.26 Nesse precedente, a 1ª Turma do referido tribunal con signou que a Constituição de 1988 “trouxe novos ideais à sociedade brasi leira, dentre eles o axioma de que todos são iguais perante a lei, insculpido no art. 5º do texto maior como cláusula imodificável” e, em seguida, acrescentou que “o preceito fundamental da igualdade expri-me o consectário da exigência de concurso público para seleção dos me lhores candidatos ao ingresso nos quadros da Administração Pública direta e indireta em todos os níveis governamentais”, sem prejuízo da inci dência dos princípios “da legalidade, impessoalidade, moralidade, publi cidade e eficiência (caput do art. 37 da Constituição), que devem ser si mul taneamente conjugados em concomitância com os incisos I e II do aludido dispositivo”.

Ademais, a regra do concurso público e a vedação da ascensão funcional e dos “concursos internos” ou com reserva de vagas para ocu-pantes de outros cargos são apontadas pelo Supremo Tribunal Federal como umas das mais importantes conquistas trazidas pela Constituição Federal de 1988 no que se refere ao respeito aos princípios republicanos da igualdade, da impessoalidade e da moralidade no acesso aos cargos públicos.27

Ou, como ficou registrado no voto condutor do acórdão prolata-do na ADI 3443, “a igualdade de oportunidade de ingresso no serviço público é um dos alicerces da própria noção instituída de administração pública após a Constituição da República de 1988”.28

25 ADI nº 1.350. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 24.02.2005. DJ, 1º dez. 2006. LEXSTF v. 29, n. 340, 2007, p. 28-40.

26 RMS nº 28.041/GO. Primeira Turma. Rel. Ministro Benedito Gonçalves. Julgado em 25.08.2009. DJe, 03 set. 2009.

27 MS nº 28.279. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie. Julgado em 16.12.2010. DJe, 29 abr. 2011. RT v. 100, n. 908, 2011, p. 421-436.

28 ADI nº 3.443. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. Julgado em 08.09.2005. DJ, 23 set. 2005. LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p. 75-81.

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Por fim, reitere-se que, “no tocante aos direitos e garantias indivi-duais, mudanças que minimizem a sua proteção, ainda que topicamente, não são admissíveis”.29

Assim, eventual proposta de emenda à Constituição que veicule regra contrária à exigência de concurso público deve ser considerada como violadora do direito à igualdade, inserido no rol das cláusulas pétreas previsto no §4º do art. 60 (inciso IV).

4.2 Da inconstitucionalidade da transposição entre cargos com atribuições, estrutura remuneratória e requisitos de ingresso distintos

O art. 6º da PEC nº 102/2011 estabelece que, “na unificação das polícias, os oficiais oriundos da polícia militar e os delegados de polícia dos Estados e do Distrito Federal ficam transpostos para membro da carreira de delegado de polícia, na forma da Lei”.

Novamente, a PEC nº 102/2011 traz dispositivo que excepciona a exigência de concurso público para a investidura em cargos públicos. Portanto, os mesmos argumentos desenvolvidos no tópico acima podem ser aqui utilizados, com uma particularidade a mais: trata-se de trans-posição de cargos de duas carreiras que serão extintas para uma nova carreira.

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o tema em caso análogo. Na ADI nº 1591,30 decidiu-se, por maioria, favoravelmente à Lei Complementar nº 10.933-97, do Rio Grande do Sul, que unificou na carreira de Agente Fiscal do Tesouro as carreiras de Auditor de Finanças Públicas e de Fiscal de Tributos Estaduais.

Nos debates, o ponto central girou em torno das atribuições de cada uma das carreiras unificadas. A maioria dos ministros (seis contra cinco) consignou ser possível a unificação em questão com base no fun-damento de que as atribuições e as remunerações de ambos os cargos eram semelhantes.

29 MENDES; BRANCO. Curso de direito constitucional.30 ADI nº 1.591. Tribunal Pleno. Rel. Min. Octavio Gallotti. Julgado em 19.08.1998. DJ, 30 jun. 2000.

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Os votos vencidos, em suma, adotaram o entendimento de que se deve considerar o núcleo essencial do feixe de atribuições dos cargos, ainda que eventualmente haja atividades semelhantes, e concluíram pela impossibilidade de os ocupantes das duas carreiras originárias optarem pelo ingresso na nova, por violação ao art. 37, II, da Constituição.

Posteriormente, na ADI nº 2713,31 reafirmou-se, novamente por maioria, a possibilidade de unificação de carreiras, desde que “verificada a compatibilidade funcional e remuneratória, além da equivalência dos requisitos exigidos em concurso”.

No caso em exame, todavia, as atribuições da Polícia Militar e da Polícia Civil são nitidamente diferentes. À primeira competem o policia-mento ostensivo e a preservação da ordem pública, nos termos do §5º do art. 144 da Constituição, enquanto à segunda cabem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, como preceitua o §4º do art. 144 da Constituição.

Ademais, a estrutura e a remuneração de ambas também é, em regra, distinta, tendo em vista, inclusive, a existência de diversas patentes no âmbito da polícia militar.

Melhor sorte não assiste aos requisitos de ingresso, que também não se assemelham, tendo em vista que se exige dos delegados de polí-cia, mas não dos oficiais da polícia militar, o bacharelado em direito, nos termos do art. 3º da Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013.32

Portanto, seguindo a contrario sensu a linha de intelecção do Supremo Tribunal Federal nos precedentes acima estudados, chega-se inevitavelmente à conclusão de que a pretendida transposição viola o disposto no art. 37, II, da Constituição, com status de cláusula pétrea por concreção do direito à igualdade, conforme visto no tópico anterior. Aliás, na ADI nº 3.332, o Supremo Tribunal Federal foi categórico ao afirmar, à luz do art. 37, II, da Constituição, que “é inconstitucional a chamada investidura por transposição”.33

31 ADI nº 2.713. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie. Julgado em 18.12.2002. DJ, 07 mar. 2003.32 “Art. 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado

o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados”.

33 ADI nº 3.332. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 30.06.2005. DJ, 14 out. 2005. LEXSTF v. 27, n. 323, 2005, p. 70-75.

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Assinale-se que o mesmo raciocínio se aplica à previsão do §3º do art. 6º da PEC nº 102/2011, que trata dos demais cargos das carreiras policiais civil e militar.

5 Da inconstitucionalidade da cláusula que assegura aos inativos e pensionistas das carreiras policiais as garantias da paridade e da integralidade, por ofensa ao direito à igualdade

Segundo os ensinamentos de Paulo Bonavides, o “centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubi-tavelmente o princípio da igualdade”, que “materializa [...] a liberdade da herança clássica” e “com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção estrutural do Estado democrático contemporâneo”.34

Não se olvida de que é possível instituir tratamento desigual sob determinadas condições, mas desde que tal desigualação tenha natureza compensatória, conforme entendimento doutrinário pacífico, já acolhido pelo Supremo Tribunal Federal em diversos precedentes, tal como na ADI nº 3.330, de cuja ementa extraem-se as seguintes passagens:

[...] Não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade. O desvalor da desigualdade a proceder e justificar a imposição do valor da igualdade. [...] O típico da lei é fazer distinções. Diferenciações. Desigualações. E fazer desigualações para contrabater renitentes desigualações. A lei existe para, diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora da harmonia ou do equilíbrio social, impor uma outra desigualação compensatória.35

É sob tal ótica que se deve analisar a constitucionalidade do art. 5º da PEC em questão, que confere aos inativos e pensionistas das carreiras policiais as garantias da integralidade e da paridade de remuneração em relação aos servidores em atividade, dispondo de modo diverso do que consta do §3º do art. 40 da Constituição, cuja atual redação, dada pela EC nº 41, de 2003, extinguiu a regra da paridade e da integralidade para os servidores públicos civis.

34 BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 340.35 ADI nº 3.330. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ayres Britto. Julgado em 03.05.2012. DJe, 22 mar. 2013.

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Com efeito, o §3º do art. 40 prevê que “para o cálculo dos proven-tos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei”.

É certo que o §4º do mesmo art. 40 permite, excepcionalmente, a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria para os servidores portadores de deficiência, para os que exerçam atividades de risco e para aqueles cujas atividades sejam exerci-das sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade. Todavia, há, aí, razão para o discrímen, como forma de compensar a desigualdade real que existe entre os servidores em tais situações, que enfrentam condições adversas no exercício de suas atividades, e os demais.

O mesmo não se pode dizer da concessão de tratamento diferen-ciado à generalidade dos integrantes das carreiras policiais, indepen-dentemente do fato de exercerem suas atividades exclusivamente na sede administrativa ou em constantes operações de elevada periculosidade.

Realmente, ainda que eventualmente seja possível, em tese, tentar justificar a discriminação em relação aos analistas de polícia ostensivos, que exercerão atividades de risco, não se vislumbra, por exemplo, fator relevante de desigualdade que justifique a concessão de tratamento privilegiado aos analistas de polícia da área cartorária ou aos peritos de polícia, por exemplo.

Assim, entende-se pela inconstitucionalidade da PEC nº 102/2011 igualmente quanto a esse ponto, por ofensa ao direito à igualdade, pre-visto no art. 5º, caput, da Constituição.

6 Da desmilitarização da polícia ostensiva e unificação das políciasO rol, em si considerado, das entidades que exercem a segurança

pública, previsto no art. 144 da Constituição, não é cláusula pétrea, sendo possível sua alteração pelo constituinte derivado. O que não se permite é que eventual modificação das atribuições desses órgãos interfira na forma federativa de Estado (art. 60, §4º, I) ou na separação de Poderes (art. 60, §4º, III).

Não haveria óbice, por exemplo, à mera unificação da polícia rodoviária federal com a polícia ferroviária federal. O que poderia vir a

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ser questionado, com base no art. 60, §4º, I, da Constituição seria even-tual atribuição à polícia rodoviária federal do patrulhamento ostensivo das rodovias estaduais e das vias urbanas ou a unificação das polícias estaduais com a polícia federal.

No caso da unificação da polícia militar com a polícia civil, esta-mos diante de duas instituições estaduais, igualmente subordinadas ao governador do Estado. Assim, a mera junção das atribuições de ambos os órgãos não afeta a separação de poderes nem o pacto federativo.

Em análise superficial, seria até possível cogitar que a intenção do constituinte foi assegurar a existência de “exércitos” próprios de cada Estado-membro e, consequentemente, alegar que a extinção da polícia militar estadual afetaria o pacto federativo.

Todavia, tal entendimento não se sustenta quando confrontado com a competência constitucionalmente atribuída às polícias militares, restrita ao policiamento ostensivo e à preservação da ordem pública. Eventual atuação enquanto “exército” propriamente dito apenas se admite nas hipóteses de convocação e mobilização, na condição de reserva e força auxiliar, pelo Exército brasileiro, cujo chefe supremo é o Presidente da República.

A opção pelo modelo militar deve-se mais à origem da polícia do que a eventual garantia de exércitos próprios para Estados-membros. Aliás, sua evolução histórica, brevemente relatada no início deste arti-go, remete-nos justamente à exclusão da possibilidade de os Estados-membros utilizarem suas forças policiais como “exércitos” estaduais e ao crescente foco de suas atribuições no policiamento ostensivo.

Por entender que o regime militar outorgado pela Constituição à polícia ostensiva deriva de mera opção política por um regime pautado na hierarquia e disciplina, sem repercussões relevantes no que se refere à forma federativa de Estado, não se verifica ofensa a cláusulas pétreas no que se refere exclusivamente à alteração do regime policial militar para o regime policial civil.

ConclusãoA desmilitarização da polícia, tema que veio novamente à tona com

as manifestações sociais realizadas a partir de junho de 2013, é anseio

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social, com apelo midiático, amparado pela opinião de especialistas em segurança pública.

A alteração do regime adotado pelas polícias militares para o mo-delo civil reclama proposta de emenda constitucional, tendo em vista que o art. 144 previu expressamente que se trataria de polícia “militar”. Ademais, proposição nesse sentido seria juridicamente viável, tendo em vista não ofender o rol de cláusulas pétreas previsto no art. 60, §4º, da Constituição.

Contudo, a PEC nº 102/2011, que trata da possibilidade de unifica-ção da Polícia Militar com a Polícia Civil e consequente desmilitarização da primeira, apontada pelos movimentos sociais e pela mídia como a solução mais célere para a questão, apresenta diversos pontos passíveis de terem sua constitucionalidade questionada por ofenderem cláusulas pétreas.

No presente artigo, destacou-se a inconstitucionalidade dos seguin-tes dispositivos: art. 4º, III e §3º; art. 5º; art. 6º, caput e §3º; e art. 10. Tais preceitos buscaram: a) regulamentar o período de transição, com disposições acerca a.1) da transposição dos cargos atuais para as novas carreiras, que possuem atribuições, requisitos de ingresso e sistema re-muneratório diferentes, e a.2) da forma de provimento dos novos cargos, ressuscitando a ascensão funcional; b) atribuir privativamente à polícia unificada o exercício da investigação criminal, retirando tal atividade do âmbito do Ministério Público; c) revogar o controle externo sobre a polícia exercido pelo Ministério Público; d) conceder paridade e inte-gralidade aos inativos e pensionistas das carreiras da polícia unificada, estabelecendo tratamento diferenciado ao concedido pela Constituição aos demais servidores civis.

Por tal razão, considera-se que a PEC nº 102/2011 não se encon-tra apta a ir à votação do Congresso Nacional. Com efeito, necessita de diversos ajustes que assegurem que a pretendida desmilitarização da polícia respeitará o rol de cláusulas pétreas estabelecido na Constituição, sob pena de vir a ter sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal e postergar-se, ainda mais, a concretização do anseio social por uma polícia ostensiva civil, mais próxima da população e capaz de oferecer resposta mais adequada a situações diversas das de enfrentamento da criminalidade.

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Demilitarization of the Police – Is Senate’s PEC 102/2011 Constitutional?

Abstract: The protests that occurred in June and July 2013 in Brazil made the proposal of demilitarization of the police return to debate. One of the possible solutions mentioned then was the approval of PEC 102, 2011, from Senate, which unifies the civil and military police in a civil institution. However, although the demilitarization of the police is constitutionally possible, this proposal presents some unconstitutional rules, that offend fundamental clauses.

Key words: Protest. Demilitarization of the Police. PEC 102/2011.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RMS nº 28.041/GO. Primeira Turma. Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 25.08.2009. DJe, 03 set. 2009.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 1.350. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello, j. 24.02.2005. DJ, 1º dez. 2006.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 1.591. Tribunal Pleno. Rel. Min. Octavio Gallotti, j. 19.08.1998. DJ, 30 jun. 2000.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 2.713. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 18.12.2002. DJ, 07 mar. 2003.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.330. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ayres Britto, j. 03.05.2012. DJe, 22 mar. 2013.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.332. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau, j. 30.06.2005. DJ, 14 out. 2005. LEXSTF, v. 27, n. 323, 2005, p. 70-75.

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208 Daniel Pinheiro de Carvalho

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.443. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso, j. 08.09.2005. DJ, 23 set. 2005. LEXSTF, v. 27, n. 322, 2005, p. 75-81.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.819. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau, j. 24.10.2007. DJe, 28 mar. 2008.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 960. Tribunal Pleno. Rel. Min. Sydney Sanches, j. 06.02.2003. DJ, 29 ago. 2003.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC nº 89.837. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello, j. 20.10.2009. DJe, 20 nov. 2009. LEXSTF, v. 31, n. 372, 2009, p. 355-412. RTJ, v. 218, p. 272.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC nº 91.661. Segunda Turma. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 10.03.2009. DJe, 03 abr. 2009. RMDPPP, v. 5, n. 29, 2009, p. 103-109. LEXSTF, v. 31, n. 364, 2009, p. 339-347. RMP, n. 43, 2012, p. 211-216.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS nº 28.279. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 16.12.2010. DJe, 29 abr. 2011. RT, v. 100, n. 908, 2011, p. 421-436.

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O conflito entre o regulamento autônomo e a leiFelipe Nogueira FernandesAdvogado da União em exercício na Consultoria Jurídica do Ministério do Esporte.

Resumo: A concepção liberal que moldou o constitucionalismo dos séculos XVIII e XIX enfatizou a proteção das liberdades individuais e concentrou a função normativa no parlamento. Na medida em que o Estado passou a intervir mais ativamente sobre o domínio econômico e social, tornou-se necessário atribuir competência normativa ao Poder Executivo. Uma das expressões do poder normativo do Executivo consiste no regulamento. No Brasil, o texto original da Constituição de 1988 não previu a expedição de regulamentos autônomos. Essa possibilidade adveio da Emenda nº 32, de 2001, que autorizou o Chefe do Poder Executivo a dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da Administração Pública, desde que não houvesse aumento de despesa nem a criação ou extinção de órgão público. Resultaram duas correntes de pensamento acerca da extensão do poder regulamentar autônomo. A primeira delas é no sen-tido de que a Emenda nº 32 teria criado uma reserva de regulamento. A outra, em sentido oposto, defende a preservação da competência do Congresso Nacional para dispor sobre as matérias que possam ser objeto de regulamento autônomo. Não obstante a previsão de decreto autôno-mo, a Constituição manteve a atribuição do Poder Legislativo para tratar de todas as matérias de competência da União, entre elas a organização administrativa federal. Portanto, conclui-se que não haveria reserva de regulamento no ordenamento jurídico brasileiro. Ao lado disso, em face do princípio da legalidade, o regulamento que trate de organização ad-ministrativa deve necessariamente respeitar eventual lei que disponha sobre a matéria.

Palavras-chave: Poder regulamentar. Decreto autônomo. Lei. Organização administrativa. Conflito. Princípio da legalidade.

Sumário: 1 Introdução – 2 O poder regulamentar – 3 Espécies de regula-mentos – 4 O regulamento autônomo no direito brasileiro – 5 Conclusão – Referências

1 IntroduçãoQuando surgiram as primeiras democracias liberais, a separação

dos poderes ou funções estatais emergiu como princípio fundamental para a garantia das liberdades individuais. A função normativa foi con-centrada nas mãos do parlamento. O Estado era então caracterizado pelo seu absenteísmo. A preservação das liberdades individuais então

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conquistadas dependia da omissão do Estado, que se limitava a exercer as atividades que não poderiam ser desempenhadas pelos particulares, como a administração da Justiça, a defesa externa e a segurança interna.

Esse quadro foi radicalmente alterado durante o curso do século XX. Por diversos fatores, o Estado assumiu um papel muito mais ativo, passando a intervir no domínio social e econômico. A ação estatal inter-ventiva exige a produção de normas jurídicas de conteúdo técnico com agilidade, pois as políticas públicas surgem e se cristalizam por meio de normas jurídicas (DERANI, 2006, p. 136). O aparato de produção de leis desenhado após as revoluções liberais do século XVIII mostrou-se inapropriado para atender a essa demanda (FERREIRA FILHO, 2001, p. 275). Nesse contexto, o Poder Executivo assumiu uma função norma-tiva mais ampla. Conforme explica Saldanha (1987, p. 64), a dilatação dos poderes do Executivo foi uma das consequências do Estado Social.

Um dos instrumentos pelos quais o Poder Executivo exerce sua função normativa são os regulamentos. Na França, a Constituição de 1958 contém disposição que confere amplo poder regulamentar ao Executivo (art. 37),1 na medida em que estabelece uma espécie de reserva residual de regulamento em contraposição às matérias que são do domínio da lei em sentido formal (art. 34). No Brasil, entre a promulgação da Constituição de 1988 e o advento da Emenda nº 32, de 2001, era dominante o entendimento de que o poder regulamentar do Presidente da República se restringia aos chamados regulamentos de execução, destinados à com ple-mentação das leis (CLÈVE, 2000, p. 294). Porém, com a nova redação dada ao inciso VI do art. 84 da Constituição pela Emenda nº 32, tornou-se explícita a possibilidade de edição de regulamentos autônomos, destinados a disciplinar a organização e o funcionamento da Administração Pública, desde que não implique despesa nem haja a criação ou extinção de órgão público.

Daí surge a questão da solução a ser dada no caso de conflito en-tre a lei e o ato normativo emanado do Chefe do Poder Executivo, no exercício do poder regulamentar autônomo que lhe foi atribuído pela Constituição. Em outros termos, é necessário avaliar se a lei pode ver-sar sobre as matérias que a Constituição inseriu no âmbito do decreto

1 “Les matières autres que celles qui sont du domaine de la loi ont un caractère réglementaire”.

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autônomo. Em caso afirmativo, deve-se então analisar se o regulamento que venha a ser expedido sobre tais matérias estaria ou não subordinado à lei. É esse o propósito do presente artigo.

2 O poder regulamentarO termo “regulamento” não é unívoco. Em sentido amplo, os re-

gulamentos são os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo. Em sentido restrito, são os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo que se destinam à fiel execução das leis. Certos agentes públicos têm competência para editar atos normativos com a finalidade de desen-volver as normas legais. Ao expedir esses atos, desempenham o poder regulamentar (GASPARINI, 2005, p. 117). Nas palavras de Carvalho Filho (2005, p. 42), “o poder regulamentar é a prerrogativa conferida à Administração Pública de editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva aplicação”. Portanto, o poder regulamentar consiste em uma das formas de exercício da função normativa do Poder Executivo (MEDAUAR, 2007, p. 114).

Tratando-se de normas jurídicas, os regulamentos são preceitos imperativos, gerais e abstratos (CYRINO, 2005, p. 67). Tal como as leis em sentido material, dos regulamentos emanam disposições gerais e abstratas. Pode-se dizer que o regulamento assemelha-se à lei em senti-do material em relação ao conteúdo. Porém, distingue-se dela quanto à sua fonte e natureza jurídica. Enquanto a lei consiste numa norma ori-ginária (ou primária); em regra o regulamento tem natureza de norma derivada (ou secundária), na medida em que depende de lei preexistente (CARVALHO FILHO, 2005, p. 42).

3 Espécies de regulamentosDe acordo com a sua relação com a lei, é possível distinguir os re-

gu la mentos em dois grupos: (i) os regulamentos de execução; e (ii) os re gu lamentos autônomos. Os regulamentos de execução destinam-se a de senvolver ou pormenorizar o conteúdo de uma lei. Não podem am pliar ou restringir o âmbito de aplicação da lei, limitando-se a expli-citar o seu conteúdo para que seja devidamente executada. Ao revés, os regulamentos autônomos dispensam a existência de lei anterior, ex traindo o seu fundamento de validade diretamente da Constituição.

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Sobre as espécies de regulamento, cabe citar Justen Filho:

A classificação tradicional reconhece a existência teórica de duas espécies de regulamentos. Há os regulamentos de execução e os regulamentos autônomos.

Os regulamentos de execução pressupõem a existência de uma lei, cujas nor mas são objeto de sua explicitação e desenvolvimento. O regulamento de execução contempla regras mais explícitas destinadas a permitir e a facilitar a aplicação de normas contidas em uma lei. Então, o fundamento ime diato de validade das normas dos regulamentos de execução encontra-se nas normas da lei.

Os regulamentos autônomos são aqueles desvinculados de uma lei. O regu-lamento autônomo encontra seu fundamento de validade diretamente na Constituição, de modo a dispensar a existência de uma lei. Por meio de um regulamento autônomo, são criados direitos e obrigações sem a prévia exis-tência de lei. A adoção de um regulamento autônomo significa que o Poder Executivo inova na ordem jurídica. (JUSTEN FILHO, 2008, p. 112)

É importante perceber que todos os regulamentos, em último grau, possuem fundamento de validade na Constituição. O que diferencia o regulamento de execução do regulamento autônomo é exatamente a in-termediação da lei entre o ato regulamentar e a Constituição. Enquanto no regulamento de execução essa intermediação é absolutamente impres-cindível, os regulamentos autônomos podem haurir o seu fundamento de validade diretamente da Carta Política.

Nesse sentido, é pertinente reproduzir o seguinte trecho da obra de Cyrino:

O fundamento do regulamento é sempre a Constituição. No entanto, diferenciam-se duas espécies básicas: (i) os que são editados para a execução ou complementação da lei e (ii) aqueles editados sem qualquer lei prévia, mas com base direta em atribuição constitucional. (CYRINO, 2005, p. 76)

Conforme seus efeitos, os regulamentos também podem ser clas-sificados em: (i) regulamentos externos; e (ii) regulamentos internos. Os regulamentos internos produzem efeitos unicamente no interior da Administração, não atingindo terceiros, a não ser de modo reflexo. Já os regulamentos externos produzem efeitos em relação a terceiros que estiverem sujeitos à incidência da lei regulamentada (CLÈVE, 2011, p. 322-323).

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4 O regulamento autônomo no direito brasileiroEnquanto vigorou a redação original do art. 84 da Constituição de

1988,2 sedimentou-se o entendimento de que o ordenamento jurídico brasileiro não admitia os chamados decretos autônomos, haja vista que tanto o seu inciso IV como o seu inciso VI exigiam a preexistência de lei para que o Presidente da República pudesse expedir essa categoria de ato normativo.

Esse quadro foi sensivelmente alterado pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001, que deu nova redação ao inciso VI do art. 84 da Constituição, autorizando que o Presidente da República disponha, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da Administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extin-ção de órgãos públicos.3 A Emenda nº 32 também alterou a redação do inciso XI do art. 48, que trata das atribuições do Congresso Nacional, excluindo a referência expressa à estruturação de ministérios e órgãos da Administração Pública.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...]VI - dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da ad-ministração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...]XI - criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública;

A respeito do tema, assim afirma Gilmar Mendes:

A modificação introduzida pela EC n. 32/2000 (sic) inaugurou, no sistema constitucional de 1988, o assim chamado “decreto autônomo”, isto é, decreto de perfil não regulamentar, cujo fundamento de validade repousa diretamente na Constituição.

Ressalte-se, todavia, que o decreto de que cuida o art. 84, VI, da Constituição limita-se às hipóteses de “organização e funcionamento da administração

2 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; [...] VI - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei;

3 A expressão “órgão público”, constante do art. 84, VI, “a” da Constituição, deve ser entendida de forma ampla, de modo a abranger também as entidades públicas (autarquias, fundações e sociedades empresárias estatais), a fim de compatibilizar-se com o art. 37, XIX, da Constituição.

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federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”, e de “extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos”.

Em todas essas situações, a atuação do Poder Executivo não tem força cria-dora autônoma, nem parece dotada de condições para inovar decisivamente na ordem jurídica, uma vez que se cuida de atividades que, em geral, estão amplamente reguladas na ordem jurídica. (MENDES, 2012, p. 984)

No julgamento da ADI nº 2.564, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o poder atribuído ao Presidente da República para expedir decretos autônomos que disponham sobre a organização e funciona-mento da Administração Pública federal, quando não houver aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Esta é a ementa do julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO Nº 4.010, DE 12 DE NOVEMBRO DE 2001. PAGAMENTO DE SERVIDORES PÚBLICOS DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL. LIBERAÇÃO DE RECURSOS. EXIGÊNCIA DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Os artigos 76 e 84, I, II e VI, “a”, todos da Constituição Federal, atribuem ao Presidente da República a posição de Chefe supremo da Administração Pública federal, ao qual estão subordinados os Ministros de Estado. Ausência de ofensa ao princípio da reserva legal, diante da nova redação atribuída ao inciso VI do art. 84 pela Emenda Constitucional nº 32/01, que permite expressamente ao Presidente da República dispor, por decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando isso não implicar aumento de despesa ou criação de órgãos públicos, exceções que não se aplicam ao Decreto atacado. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. (ADI nº 2.564, DJ, 06 fev. 2004, p. 21)

Portanto, a Emenda Constitucional nº 32, de 2001, introduziu o chamado regulamento autônomo no ordenamento jurídico brasileiro, limitado o seu campo de atuação à organização e funcionamento da Administração Pública, vedados a criação ou extinção de órgãos e o au-mento de despesa. Em suma, foi atribuído ao Chefe do Poder Executivo o poder de expedir regulamentos autônomos de efeitos internos. De certa forma, a Emenda Constitucional nº 32 conferiu ao Chefe do Poder Executivo prerrogativa semelhante à de que já dispunham os demais Poderes, para editar regimentos internos4 (AMARAL JÚNIOR, 2003). Por isso, essa espécie de

4 Vide os arts. 49, VI e VII; 51, III e IV; 52, XII e XIII; 57, §3º, II; e 96, I, “a” e “b”, da Constituição.

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ato normativo também é denominada de regulamento de organização, conforme explica José Afonso da Silva:

O regulamento autônomo, no sentido em que é admitido no Direito Cons ti-tucional e no direito estrangeiro, não encontra guarida na Constituição. Dá ela, contudo, agora, em virtude da redação dada pela EC-32/2001, funda-mento ao regulamento de organização como uma forma limitada de regu-lamento autônomo. (SILVA, 2009, p. 426)

Essas alterações constitucionais provocaram entendimentos diver-gentes quanto à existência ou não de uma separação absoluta entre os campos de atuação da lei e do decreto, em particular no que tange à organização e funcionamento da Administração Pública, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Fabrício Motta explica com precisão o alcance da controvérsia:

Formaram-se basicamente duas linhas opostas de entendimento a respeito da questão. Em um lado da disputa, serve como exemplo o fecundo estudo de André Rodrigues Cyrino, para quem as matérias que agora são atribuições normativas autônomas do Chefe do Executivo estão fora do processo legislativo, em razão de mudança no princípio da universalidade temática do Legislativo. Segundo o autor “os regulamentos autônomos existem num âmbito de reserva administrativa delimitada pela Constituição, sendo a invasão dessas matérias pela lei considerada inconstitucional. As matérias reservadas ao regulamento autônomo são as relativas à organização e ao funcionamento da Administração Pública, quando isso não implicar aumento de despesa”. Gustavo Binenbojm, em sentido oposto, entende que a preferência da lei é garantia fundamental dos cidadãos, sendo desdobramento necessário do sistema de separação de poderes do Estado. Nesse sentido, de acordo com o autor, o artigo consagra apenas [...] uma hipótese de admissibilidade expressa do regulamento autônomo — e não uma verdadeira reserva de poder regulamentar. (MOTTA, 2007, p. 163-164)

Ao julgar a ADI nº 2.806, proposta contra lei de iniciativa parlamentar do Estado do Rio Grande do Sul, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional, dentre outros, o dispositivo que dispunha sobre procedimentos para a aplicação de provas de segunda chamada a alunos de escolas públicas e privadas que faltassem por motivos de crença religiosa (art. 2º da Lei Estadual nº 11.830, de 2002). Dentre os fundamentos expostos pelo Ministro Relator Ilmar Galvão

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está a violação da competência privativa do Chefe do Poder Executivo gaúcho para disciplinar a organização e o funcionamento das escolas pú-blicas do respectivo ente federativo, por aplicação simétrica do art. 84, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal. Em seu voto, o Ministro Relator afirma o seguinte:

O art. 2º, por sua vez, no que toca às escolas públicas de primeiro e segundo graus, revela-se ofensivo ao art. 84, VI, “a”, da Constituição, por igual de aplicação extensiva aos Estados, visto cuidar de órgão da Administração, cuja organização e funcionamento hão de ser disciplinados, privativamente, por decreto do Chefe do Poder Executivo. (Voto do Min. Rel. Ilmar Galvão na ADI nº 2.806, p. 366)

Assim está ementado o acórdão da referida ADI nº 2.806:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 11.830, DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO PÚBLICOS E PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, §1º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o diploma impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembléia Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do Executivo, corolário do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas; bem como, no caso das particulares, invade competência legislativa privativa da União. Por fim, em relação às universidades, a Lei estadual nº 11.830/2002 viola a autonomia constitucionalmente garantida a tais organismos educacionais. Ação julgada procedente. (ADI nº 2.806, DJ, 27 jun. 2003, p. 29)

Parte da doutrina (ALEXANDRINO, 2004, p. 137; CYRINO, 2005, p. 142-161; e AMARAL JÚNIOR, 2003) sustenta esse mesmo entendi-mento, ou seja, de que haveria uma reserva privativa de regulamento em relação às matérias que possam ser objeto de decreto autônomo.

É este o fundamento que sustenta a conclusão de que as leis ante-riores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001, que dispuseram sobre organização e funcionamento da Administração Pública sem que tenha

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resultado aumento de despesa, criação ou extinção de órgão público, teriam sido então “recepcionadas” com status de decreto executivo (des-legalização), o que permitiria a sua alteração por regulamento expedido pelo Presidente da República. Já houve casos em que isso efetivamente ocorreu. O art. 32 da Lei nº 10.180, de 20015 foi alterado pelo Decreto nº 4.427, de 2002. Da mesma forma, o Decreto nº 3.995, de 2001, alterou diversos dispositivos da Lei nº 6.385, de 1976.6

Por outro lado, o entendimento de que haveria uma reserva abso-luta de regulamento para tratar das matérias indicadas no art. 84, VI, “a” da Constituição conduziria à conclusão de que seriam formalmente inconstitucionais todas as leis posteriores à Emenda nº 32, de 2001, que tenham tratado sobre organização e funcionamento da Administração Pública, com exceção dos casos em que tenha ocorrido aumento de despesa, criação ou extinção de órgãos públicos.

Ao contrário do que defende Amaral Júnior (2003), ante a ausência de disposição constitucional expressa que assim estabeleça, não parece ser consistente o entendimento de que, à semelhança do que ocorre em França, eventuais leis que tratem de matéria reservada ao regulamento autônomo seriam válidas como se decretos fossem. Neste ponto, cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal atualmente adota o entendi-mento de que a sanção presidencial não supre vício de iniciativa (Rp nº 890/GB; ADI nº 700/RJ; ADI nº 2.113/MG). Da mesma forma, a sanção não seria capaz de convalidar vício ainda mais grave, decorrente de eventual incompetência do Congresso Nacional para disciplinar determinado tema por lei. Em consequência, o entendimento de que haveria uma reserva de regulamento conduziria à conclusão de que seriam inconstitucionais todas as leis posteriores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001, que violassem essa suposta reserva e que não são poucas.

5 Art. 32. Os cargos em comissão, no âmbito da Secretaria Federal de Controle Interno da Corregedoria-Geral da União, assim como os cargos de Assessor Especial de Ministro de Estado incumbido de funções de Controle Interno, serão providos, preferencialmente, por ocupantes dos cargos efetivos da carreira de Finanças e Controle. (Redação dada pelo Decreto nº 4.427, de 17.10.2002) §1º Na hipótese de provimento dos cargos de que trata este artigo por não integrantes da carreira de Finanças e Controle, será exigida a comprovação de experiência de, no mínimo, cinco anos em atividades de auditoria, de finanças públicas ou de contabilidade pública. (Redação dada pelo Decreto nº 4.427, de 17.10.2002)

6 Contraditoriamente, o art. 6º da Lei nº 6.385, de 1976, foi alterado por uma lei superveniente à Emenda nº 32 (Lei nº 10.411, de 2002).

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Não obstante abalizadas opiniões em contrário, não parece que seja possível deduzir que a Emenda Constitucional nº 32 teria estabe-lecido uma reserva absoluta de regulamento, intransponível ao Poder Legislativo.

A competência do Congresso Nacional para dispor, mediante lei, sobre “sobre todas as matérias de competência da União” continua prevista no caput do art. 48 da Constituição. Por conseguinte, a lista de competências legislativas constantes dos incisos do art. 48 da Constituição não pode ser considerada exaustiva. Não bastasse isso, o inciso IX do pró prio art. 48 da Constituição mantém intocada a competência do Congresso Nacional para dispor sobre “organização administrativa [...] da União e dos Territórios”.

Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da Repú-blica, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...]

IX - organização administrativa, judiciária, do Ministério Público e da Defen-soria Pública da União e dos Territórios e organização judiciária e do Minis-tério Público do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda nº 69, de 2012)

Mais uma vez, cabe citar Justen Filho:

No direito brasileiro, a expressão reserva de lei até pode ser utilizada, mas não apresenta maior utilidade. Em princípio, todas as matérias são reservadas à lei, e o Poder Executivo não pode opor-se a que o Poder Legislativo discipline certos temas por meio de lei. Portanto, a Constituição brasileira reserva todos os assuntos (como regra) para serem disciplinados por lei. Não existe um conjunto de temas subordinados a uma reserva de regulamento. (JUSTEN FILHO, 2008, p. 113)

Diante disso, pode-se concluir que a Emenda nº 32, de 2001, não retirou do Congresso Nacional a competência para dispor sobre orga-nização e funcionamento da Administração Pública federal, desde que observada a iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, §1º, II, “e”, CRFB).7 No entanto, o art. 84, VI, “a” da Constituição autoriza

7 Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e

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que o Presidente da República disponha sobre essa matéria mediante decreto mesmo quando não haja prévia lei a respeito, hipótese em que o ato normativo assumiria a feição de regulamento autônomo. Portanto, o Chefe do Poder Executivo não dependeria da existência de lei prévia para disciplinar a organização e o funcionamento da Administração Pública, desde que não aumente despesa nem se proponha a criar ou extinguir órgão público.

Por conseguinte, o mais consentâneo com os dispositivos constitu-cionais que atualmente preveem as atribuições do Congresso Nacional e do Presidente da República é que, em matéria de organização adminis-trativa, quando não houver aumento de despesa, criação ou extinção de órgão público, haveria uma espécie de competência normativa concorrente entre o regulamento e a lei para tratar do tema.

Outro argumento em favor da ausência de reserva absoluta de regulamento é que a Constituição manteve a competência privativa do Congresso Nacional quanto à criação e extinção de órgãos públicos (art. 48, XI, CRFB). Portanto, caso se considerasse que a organização e o funcionamento da Administração Pública somente pudessem ser disci-plinados por decreto executivo, nem mesmo a lei que criasse órgãos ou entidades da Administração Pública poderia disciplinar a sua estruturação interna. Seria algo destituído de substância a lei que, a despeito de criar um órgão ou entidade pública, silenciasse completamente acerca de sua organização e funcionamento. Ademais, são inúmeras as leis posteriores à Emenda nº 32 que tratam de organização interna e funcionamento de órgãos e entidades da Administração Pública federal, proposta pelo próprio Presidente da República.

Além disso, a Constituição ainda mantém diversos dispositivos que atribuem expressamente à lei a função de disciplinar a organização e funcionamento de órgãos e entidades da Administração Pública, como é o caso dos territórios federais (art. 33, CRFB),8 do Conselho da Re-pública (art. 90, §2º, CRFB),9 do Conselho de Defesa Nacional (art. 91,

nos casos previstos nesta Constituição. §1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: [...] II - disponham sobre: [...] e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;

8 “Art. 33. A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios”.9 “Art. 90. [...] §2º A lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho da República”.

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§2º, CRFB),10 e da Advocacia-Geral da União (art. 131, CRFB).11 Assim, compreendida em seu conjunto, percebe-se que a Constituição não reti-rou do Poder Legislativo a competência para dispor, mediante lei, sobre organização e funcionamento da Administração Pública.

Consequentemente, em matéria de organização administrativa que não implique aumento de despesa, criação ou extinção de órgão pú blico, pode-se considerar que, desde a Emenda Constitucional nº 32, vigora uma competência normativa concorrente entre o Chefe do Poder Executivo e o Congresso Nacional. Cabe ressalvar mais uma vez, entretanto, a im-possibilidade de iniciativa parlamentar no caso de leis que versem sobre organização administrativa em geral (art. 61, §1º, II, “b” e “e”, CRFB). Por outro lado, isso não significa que o regulamento tenha sido alçado ao mesmo patamar da lei.

É decorrência do Estado Democrático de Direito que todas as pessoas estejam subordinadas à lei, inclusive o Presidente da República. Como ensina Ferreira Filho (2001, p. 204), “é até redundante mencionar a importância da lei no Estado de Direito, dado que este se caracteriza fundamentalmente pela sujeição de tudo e todos à lei”.

Embora o Chefe do Poder Executivo também detenha legitimidade popular, é no Congresso Nacional que se reflete o pluralismo político da sociedade, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, V, CRFB).12 É no Poder Legislativo onde está assegurada a par-ticipação das minorias no processo decisório relacionado aos assuntos públicos. Portanto, nada mais óbvio que a superioridade da lei em face do regulamento. Nada mais consentâneo com os princípios democráticos do que a primazia da norma que emana do Congresso Nacional sobre aquela que se origina da vontade de uma única pessoa, ainda que se trate do Presidente da República. Como afirma Bonavides (1986, p. 114), o princípio da legalidade pressupõe um respeito rigoroso à hierarquia das normas.

10 “Art. 91. [...] §2º A lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional”.11 “Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado,

representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”.

12 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] V - o plura lismo político”.

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Novamente, é relevante mencionar o entendimento de Justen Filho:

É pacífico o entendimento de que o regulamento não pode infringir a lei. O regulamento tem hierarquia normativa inferior ao da lei, de modo que a contradição com a norma legal acarreta a invalidade do dispositivo nele con-tido. Nenhum doutrinador defende a tese de que uma norma legal poderia ser derrogada por meio de dispositivo regulamentar. (JUSTEN FILHO, 2008, p. 115)

Por isso, aplica-se ao ordenamento jurídico brasileiro o princípio que Canotilho (2003) denomina de congelamento do grau hierárquico. A esse respeito, assim explica o professor português:

Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo, o grau hierár-quico desta regulamentação fica congelado e só um outro acto legislativo poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando, revogando ou integrando a lei anterior. Os princípios da tipicidade e da preeminência da lei justificam logicamente o princípio do congelamento do grau hierárquico: uma norma legislativa nova, substitutiva, modificativa ou revogatória de outra, deve ter uma hierarquia normativa pelo menos igual à da norma que se pretende alterar, revogar, modificar ou substituir. (CANOTILHO, 2003, p. 841)

Apesar de haver dispensado a lei no que se refere ao disciplinamen-to da organização e funcionamento da Administração Pública, quando não houver aumento de despesa, a Constituição não atribuiu ao regulamento autônomo o mesmo nível hierárquico da norma legal, muito menos dispensou o Presidente da República do cumprimento das leis, mesmo aquelas que tratem dos assuntos que poderiam ser regulados por via de decreto autôno-mo. Se a lei que verse sobre organização administrativa é válida ante a Constituição, deve necessariamente ser observada pela Administração Pública, incluído o Chefe do Poder Executivo.

Por conseguinte, considerando que são constitucionais as leis que versem sobre organização administrativa, ainda que não haja aumento de despesa, desde que respeitada a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, deve ela ser fielmente observada por todos. Trata-se de exi-gência que decorre do princípio da legalidade. Nem mesmo o Presidente da República, no legítimo exercício de seu poder regulamentar, está dispensado do cumprimento da lei. Diante disso, no caso de conflito

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entre o regulamento e a lei, mesmo no âmbito de matérias em que seja possível expedir decreto autônomo, é a lei que deve sempre prevalecer, seja ela anterior ou posterior ao ato do Poder Executivo.

Sobre o tema, esta é a posição de Clèmerson Merlin Clève:

No Brasil, alguns juristas, vigente a última Constituição, admitiram os regu-la men tos autônomos. Fundamentavam a tese, basicamente, com o art. 81, V, que dotava o Presidente da República de competência para “dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal”. Hoje, o dispositivo encontra-se (art. 84, VI, da CF) redigido de modo a conferir ao Chefe do Poder Executivo competência para dispor, mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da Administração Federal, bem como a extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos. O que permite que alguns juristas estejam a defender, vigente a atual Constituição, em virtude da redação conferida pela Emenda Constitucional 32/2001, tratar-se a hipótese do art. 84, VI de verdadeiro regulamento autônomo. Ocorre que o regulamento autônomo reclama a partilha de competência normativa, tal como ocorre na França. Não é o que parece manifestar-se no caso brasileiro. Aliás, o legislador não fica impedido de dispor sobre as matérias elencadas no art. 84, VI. E nesse caso, havendo lei prévia, fica o Presidente da República limitado ao que ela especifica (“organização e funcionamento da Administração Federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”), exceto na hipótese da letra “b”, em função da qual está o Presidente da República autorizado a extinguir cargo público criado (necessariamente) por lei. Não há aqui regulamento autônomo. Há, sim, manifestação de “Mera competência para um arranjo intestino dos órgãos e competências já criadas por lei”. (CLÈVE, 2011, p. 325-326)

Portanto, para Clève (2011), o Congresso Nacional não está im-pedido de legislar acerca das matérias sobre as quais o Presidente da República possa dispor por meio de “decreto autônomo” (art. 84, VI, “a”, CRFB) e, em assim fazendo, o Chefe do Poder Executivo fica obrigado a observar o disciplinamento legal.

Como explica Hans Kelsen (1998, p. 146), “se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior”. Portanto, entre normas de escalões diferentes não pode haver qualquer conflito.

Neste ponto, vale transcrever a lição de Norberto Bobbio:

Uma das consequências da hierarquia normativa é justamente esta: as normas superiores podem revogar as inferiores, mas as inferiores não podem revogar as superiores. A inferioridade de uma norma em relação a outra consiste

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O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 223

na menor força de seu poder normativo; essa menor força se manifesta justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior. (BOBBIO, 2011, p. 97)

Cabe mencionar ainda que um dos fundamentos mais relevantes que levaram à ampliação da função normativa do Poder Executivo foi a sua maior capacidade para editar preceitos jurídicos com agilidade, em contraposição ao lento processo legislativo. Segundo André Cyrino (2005, p. 35), “o Poder Executivo, no estado contemporâneo, continua a ter um papel de destaque, gozando de uma série de atribuições ditas atípicas, sobretudo de caráter normativo, diante da necessidade de respostas rá-pidas e eficientes do aparato estatal”. Mas, para que essa finalidade seja atingida, é suficiente a autorização constitucional para que o Presidente da República, ausente qualquer lei sobre o assunto, baixe normas me-diante regulamentos autônomos, entre outros instrumentos legais. Em outros termos, o fundamento político que justifica a ampliação do poder regulamentar não autoriza a conclusão de que os decretos emanados do Poder Executivo possam rivalizar com a lei, muito menos se sobrepor a ela. Isso significa que o poder regulamentar autônomo não permite que o Chefe do Poder Executivo descumpra a lei, mas apenas que discipline determinadas matérias autonomamente, quando não houver lei.

Em outro trecho de sua obra, ao explicar o princípio da precedência da lei, Clève conclui o seguinte:

O Estado Democrático de Direito exige não apenas uma vinculação negativa (dever de não contrariar), mas também uma vinculação positiva (dever de apontar o fundamento legal) da Administração à lei. Assim, exceto no caso do regulamento de organização, ou para tornar operativa uma norma constitucional (i) aplicável de modo direto ao universo da Administração Pública ou (ii) definidora de direito fundamental dependente da ação do Executivo, não é legítima a edição de regulamento sem a prévia existência de lei. Ora, o regulamento presta-se para favorecer a aplicação da lei. Agora, mesmo os regulamentos baixados, nos casos citados, para viabilizar a aplicação de norma constitucional exigente de ação imediata do Poder Público, inexistindo reserva de lei e mantida a inércia do Legislador, residem em patamar hierárquico inferior ao da lei. Portanto, estes regulamentos expedidos com fundamento direto na norma constitucional não impedem a posterior ação do legislador, cedendo ademais ao comando legal definido por ele. A lei, mesmo neste caso, prefere ao regulamento. (CLÈVE, 2011, p. 320)

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É evidente a importância de atribuir flexibilidade para que a Admi nistração Pública se reorganize sempre que necessário. Para isso, a possibilidade de expedir decretos autônomos já é suficiente. Não é razoável que o Presidente da República possa, mediante decreto, desfi-gurar leis anteriores que tratem sobre organização administrativa e que foram originadas de proposições do próprio Poder Executivo. Sempre que houver necessidade de maior flexibilidade, a lei não deve tratar de assuntos inerentes à organização e funcionamento da Administração Pública, sob pena de ocorrer o congelamento do grau hierárquico da norma com a consequente impossibilidade de disciplina em contrário por meio de regulamento. Nesse contexto, sem negar a sua subordinação à lei, os regulamentos e outros atos normativos infralegais são capazes de conferir maior flexibilidade ao ordenamento jurídico positivo ao mesmo tempo em que fica mantida a autoridade do Congresso Nacional e a ideia da pirâmide normativa de Kelsen.

5 ConclusãoPelo exposto, conclui-se que não há no ordenamento jurídico bra-

sileiro um campo que seja reservado apenas ao regulamento. Mesmo no caso das matérias que podem ser objeto de decreto autônomo, é constitu-cional a lei que vier a disciplinar o mesmo assunto, desde que respeitada a iniciativa do Chefe do Poder Executivo. Em homenagem ao princípio da legalidade, fundamento do Estado Democrático de Direito, o confli-to entre o regulamento e a lei só pode resolver-se em favor desta. Não obstante o Presidente da República detenha competência constitucional para expedir decretos autônomos sobre organização e funcionamento da Administração Pública federal, quando não haja aumento de despesa nem criação ou extinção de órgão público, deve respeitar eventual lei que regule o assunto.

The Conflict between the Autonomous Regulation and the Law

Abstract: The liberal constitutionalism that shaped the eighteenth and nineteenth centuries emphasized the protection of individual liberties and focused normative role on parliament. Insofar the state began to intervene more actively on the economic and social domain, it became necessary to assign legislative powers to the executive branch. One of the expressions of the normative power of the Executive is regulation. In Brazil,

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O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 225

the original text of the Constitution of 1988 did not provide autonomous executive ordinances. This possibility came from the Amendment n. 32, 2001, which authorized the Chief Executive to provide by decree on the organization and functioning of public administration, since there was no increase in spending or the creation or dissolution of a public agency. Two schools of thought about the extent of autonomous regulatory power have arisen. The first is in the sense that Amendment n. 32 would have created a reserve of regulation. The other, in the opposite direction, upholds the preservation of the competence of Congress to provide about subjects that may be regulated by independent decree. Despite the provision of autonomous decree, the Constitution maintained the assignment of the Legislature to deal with all matters within the jurisdiction of the Union, including the federal administrative organization. Therefore, it is possible to conclude that there are no reserved field to the executive ordinances in the Brazilian legal regulation. Besides that, because of the principle of legality, the regulation that addresses administrative organization must necessarily respect any law that provides about that kind of matter.

Key words: Regulatory power. Independent regulation. Law. State orga-nization. Conflict. Principle of legality.

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A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho?André Petzhold DiasAdvogado da União. Bacharel pela USP. Mestre em Direito Processual pela USP. Doutorando em Direito Processual pela USP. Professor Universitário.

Resumo: O presente texto tem como objetivo analisar a questão da segu-rança pública e a qualidade de eventual intervenção do Poder Judiciário na definição das políticas públicas que definem a atuação estatal nesse campo. Para tanto, preliminarmente é feita uma análise histórica do tema, buscando demonstrar sua relação com a origem do Estado. Em seguida, analisa-se a segurança pública a partir do atual ordenamento jurídico. Uma vez definido seu conceito, o estudo foca na intervenção do Poder Judiciário, demonstrando a ineficiência dessa intervenção em razão das características da atuação criminosa, bem como das regras processuais vigentes.

Palavras-chave: Segurança pública. Políticas públicas. Judicialização.

Sumário: 1 Introdução – 2 Do estado de natureza à reunião em sociedade (Estado Político) – 3 Visão atual do Estado Liberal e sua atuação – 4 Se-gurança pública na CF 88 – Preâmbulo, artigo 5º, 6º e 144 – 5 Carac te-rísticas do direito à segurança pública – 6 Políticas Públicas – Conceito, características e consequências de sua formulação e implementação coer-citiva pelo Poder Judiciário – 7 Necessidade de constante atualização de políticas de segurança pública – 8 Rigidez das fases procedimentais como incompatibilidade – 9 Institutional choice – O Judiciário é a melhor institui-ção para decidir sobre políticas de segurança pública? – 10 Considerações finais – Referências

1 IntroduçãoÉ lugar comum tratar-se doutrinariamente da judicialização das

políticas públicas fazendo-se referência aos modelos de Estado e sua evolução: do Estado Liberal, berço do constitucionalismo moderno, ao Estado Social, com a previsão normativa de direitos sociais demonstran-do maior preocupação com a igualdade material, e, por fim, o Estado Democrático de Direito, que seria o estágio atual.

O presente estudo terá como ponto de partida a demonstração de que a busca por segurança antecede (e muito) o constitucionalismo mo derno, identificado nos marcos da Constituição Americana de 1787,

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na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e na Constituição Francesa de 1791. Os pensadores políticos clássicos a se-rem citados adiante (Locke, Hobbes e Montesquieu) demonstram que a busca por segurança está na origem da própria sociedade. A propósito, veja-se que tal digressão já foi feita por José Eduardo Faria tratando do tema: “se a segurança dos cidadãos é o sentido da existência do Estado, conforme dizia Hobbes, de que modo encará-lo à luz da atual realidade sócio-econômica marcada por índices crescentes de violência?”.1

Entretanto, para os objetivos do presente texto, confere-se maior atenção aos Estados Constitucionais modernos, visto que o tema da judi-cialização das políticas públicas tem como ponto central as competências constitucionais dos três poderes, a efetivação de direitos fundamentais (temas de direito constitucional) e ainda o tratamento dessas questões pelo Judiciário, que, necessariamente, atua por meio de processo (tema de direito processual).

Cumpre observar, porém, que essa comparação histórica da evolu-ção do modelo de Estado com a evolução dos direitos fundamentais em suas três gerações (liberdades individuais, prestações sociais, direitos de solidariedade) se revela um pouco limitada, como se pretende demons-trar nos primeiros capítulos desse trabalho.

Isso porque restará demonstrada a existência de deveres estatais positivos (prestacionais), já no Estado Liberal, dentre os quais está a segurança pública.

Uma vez demonstrada a origem da segurança pública como um dos fundamentos do próprio Estado, pretende-se estudar a natureza jurídica da segurança pública (sua evolução do Estado Liberal — ado-tado arbitrariamente como marco inicial da pesquisa em razão de sua relevância para o direito constitucional — até os dias atuais), com breve menção a alguns aspectos históricos, para, em seguida, a partir do texto constitucional vigente e da análise doutrinária sobre o tema, verificar o status atualmente atribuído a esse dever estatal.

Ato contínuo, usando-se como base as premissas conceituais esta-belecidas, bem como o tratamento constitucional do tema, pretende-se

1 DIAS NETO, 2005, p. 7.

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A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 229

analisar a possibilidade e a utilidade de se judicializar políticas públicas envolvendo o tema “segurança pública”, buscando-se as desvantagens que podem decorrer dessa judicialização.

Diante das constatações feitas no decorrer do trabalho, à luz dessa análise, são apresentadas algumas conclusões que não se propõe a en-cerrar o debate do tema, mas a fomentá-lo, pois, se nenhuma das insti-tuições agirá com perfeição,2 é importante que se saiba de antemão dos efeitos negativos da judicialização do tema.

2 Do estado de natureza à reunião em sociedade (Estado Político)O tema da segurança sempre esteve intimamente ligado ao conceito

de Estado. Não por outro motivo, a segurança é objeto de atenção dos pensadores políticos clássicos. Sendo assim, é válida a menção a algumas de suas ideias para mostrar seus pontos comuns e, com isso, estabelecer algumas premissas.

Iniciando essa análise nas ideias de John Locke, verifica-se que o ser humano se reuniu em sociedade (antes mesmo de existir Estado) como forma de proteger sua vida, sua liberdade e seus bens. Ou seja, a opção por viver em sociedade decorre da busca por segurança:

Se o homem é tão livre no estado de natureza como se tem dito, se ele é o senhor absoluto de sua própria pessoa e de seus bens, igual aos maiores e súdito de ninguém, por que renunciaria a sua liberdade, a este império, para sujeitar-se à dominação e ao controle de qualquer outro poder? A resposta é evidente: ainda que no estado de natureza ele tenha tantos direitos, o gozo deles é muito precário e constantemente exposto às invasões de outros. Todos são tão reis quanto ele, todos são iguais, mas a maior parte não respeita estritamente, nem a igualdade nem a justiça, o que torna o gozo da propriedade que ele possui neste estado muito perigoso e muito inseguro. Isso faz com que ele deseje abandonar esta condição, que, embora livre, está repleta de medos e perigos contínuos; e não é sem razão que ele solicita e deseja se unir em sociedade com outros, que já estão reunidos ou que planejam se unir, visando a salvaguarda mútua de suas vidas, liberdades e bens, o que designo pelo nome geral de propriedade.3

A falta de segurança aproxima as pessoas do estado de natureza. Em um Estado sem segurança pública, não estão os homens sujeitos a

2 KOMESAR, 1996, p. 5.3 LOCKE, 1994, p. 156.

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atos de violência uns dos outros? Podendo perder, a qualquer momento, sua vida e seus bens? O cenário de insegurança certamente nos remete aos problemas que Locke identificou no estado de natureza.

Hobbes, na obra clássica “Leviatã”, aponta a necessidade de um Estado Político como forma de organização dos homens para gerar a paz interna em oposição ao indesejado estado de natureza, atribuindo-se ao Estado o poder de “usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comuns”.4 Afinal, sem o Estado para regular e fazer valer tais regras, o homem agirá livremente, e homo homini lupus.

Também pode se ver na obra de Montesquieu a preocupação com segurança e sua relação com liberdade, assim como a expetativa de que seja fornecida pelo Estado: “A liberdade política, em um cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provem da opinião que cada um tem sobre sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão”.5

Percebe-se, pois, ser antiga a preocupação com a segurança públi-ca, que pode ser inicialmente referido como dever estatal de proteção dos homens contra os outros homens, bem como é antigo o papel do Estado de garanti-la.

Com a evolução do Estado e da sociedade, essa prestação estatal foi se tornando cada vez mais complexa, abrangendo: elaboração de leis penais e processuais penais, Sistema Judiciário de aplicação de leis penais com respeito a garantias individuais (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, juiz natural imparcial, entre outras), criação de órgão público responsável pela prevenção ostensiva e pela investigação de crimes pretéritos para fins de efetiva aplicação da lei penal e diversas outras formas de atuação do Estado.

A busca por segurança pode ser vista, portanto, em diversas so-ciedades anteriores ao Estado Constitucional, ainda que não tivesse a amplitude e complexidade que o sistema de segurança pública tem hoje. Sendo assim, é óbvia a conclusão de que a prestação de segurança (pres-tação positiva, no sentido de consistir em obrigação de fazer, e não de se

4 HOBBES, 2003, p. 148.5 MONTESQUIEU, 2000, p. 168.

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omitir) já era devida pelo Estado Liberal, e seu conteúdo será analisado com maior profundidade no capítulo seguinte.

3 Visão atual do Estado Liberal e sua atuaçãoA análise do Estado Liberal pela doutrina constitucional costuma

fazer referência a um Estado absenteísta, pois o grande objetivo da so-ciedade era a liberdade. Nesse sentido, apenas exemplificativamente:

Podemos destacar então, nesse primeiro momento, na concepção do cons-titucionalismo liberal, marcado pelo liberalismo clássico, os seguintes valores: individualismo, absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção do indivíduo. Essa perspectiva, para se ter um exemplo, influenciou profundamente as Constituições brasileiras de 1824 e 1891.6

No entanto, a conduta do Estado não se esgota em uma abstenção total, pois o Estado Liberal, ao garantir as liberdades individuais, tem essa conduta absenteísta apenas no sentido de não perturbá-la ele mesmo. Isso porque as liberdades públicas, direitos fundamentais de primeira geração (vida, propriedade, direito de ir e vir, por exemplo), geram para o Estado “a tarefa de, preventivamente, evitar que eles sejam desres pei-tados, e, também, a de, repressivamente, restaurá-los se violados, inclusive punindo os responsáveis por essa violação”.7

É falsa, portanto, a noção de que o Estado Liberal, por ser preo-cupado com omissões e liberdades (considerados direitos negativos em oposição aos direitos prestacionais), era ausente. Na realidade, desde sua formação, percebe-se no Estado uma conduta presente e atuante. Nas palavras de Cass Sustein:

Most of the so-called negative rights require governmental assistance, not governmental abstention. Those rights cannot exist without public assistance. Consider, for example, the right to private property. As Bentham wrote, “Property and law are born together, and die together. Before laws were made there was no property; take away laws, and property ceases”. In the state of nature, private property cannot exist, at least not in the way that it exists in a free society. In the state of nature, any property “rights” must be protected either through self-help-useful to the strong, not to the weak-or

6 LENZA, 2007, p. 40-41. No mesmo sentido, GALDINO (2005, p. 226) constata essa análise superficial comum na doutrina, citando exemplificativamente a obra de Luís Roberto Barroso.

7 FERREIRA FILHO, p. 30.

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through social norms. This form of protection is far too fragile to support a market economy or indeed the basic independence of citizens. As we know it, private property is both created and protected by law; it requires extensive governmental assistance.8

Na verdade o que existe, segundo o autor estadunidense, é ver-dadeira onipresença da ação estatal,9 ainda que se trate de um Estado Liberal, pois, segundo o autor, para se garantir tais liberdades se fazem necessárias inúmeras prestações estatais.

Essa análise de atuação positiva do Estado Liberal, em verdade, não é tão recente como se pensa. Nos arts. 12, 13 e 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão fica evidente o reconhecimento da existência de prestações positivas devidas pelo Estado.

O art. 12 dispõe: “A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada”. A menção a uma força pública, portanto, deixa claro que o Estado assume o dever de proteger os direitos.

O art. 13, por sua vez, deixa claro que se trata de uma prestação positiva e que, com seu adimplemento, o Estado incorre em custos: “Para manutenção da força pública e para as despesas de Administração, é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades”.

Finalmente, o artigo 16: “A sociedade em que não esteja assegura-da a garantia dos direitos nem estabelecida a separação de poderes não tem constituição”. Nesse dispositivo evidencia-se que não basta apenas prever direitos, ou apenas usar a força para resolver conflitos por meio do processo. Segurança, como se verá, está diretamente relacionada com a real possibilidade de os indivíduos usufruírem seus direitos, pois cabe ao Estado garantir que isso aconteça, por isso tomou para si o mono-pólio da força. Sem segurança os demais direitos se esvaziam e a busca do bem comum almejada com a lei se torna um objetivo distante. Sem a força estatal, os direitos deixam de existir, mas a força deve ser usada exatamente para que os direitos de cada um sejam respeitados.

8 SUSTEIN, 2002, p. 466.9 SUSTEIN, 2002, p. 469.

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A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 233

Como explica Botelho de Mesquita, o Estado precisa ir além, pois não basta o uso da força se esta não for usada para efetiva aplicação da lei, que tem como objetivo último o bem comum:

A neutralidade e independência do Estado, assim entendida, se afinam com a concepção de que o fim do processo se identifica com a pacificação dos inter-esses em conflito e de que essa pacificação se atinge com a simples imposição às partes do resultado do processo, qualquer que ele seja, sem qualquer com-promisso com o direito objetivo, esquecendo-se que a mera substituição da violência privada pela força estatal, antes de constituir um fator de paz social, constitui fonte de novas e talvez mais refinadas modalidades de violência.Ver no Estado tão somente a figura de um pacificador equivale a esquecer os compromissos que ele assumiu, quando chamou a si a função de legislar.Nem nos parece exato dizer que a substituição da violência privada pela força estatal conduza à solução pacífica dos conflitos de interesses, pois a exe cução de uma sentença nem sempre é pacífica e, quando o é, não o é mais que na aparência.Com efeito, quando o autor reclama a intervenção do Estado, ele está, na verdade, solicitando a ajuda de uma força muitíssimo superior à que poderia ele próprio desenvolver, se lhe fosse dado fazer justiça pelas próprias mãos. A solução dos conflitos, portanto, nem por realizar-se processualmente, deixa de ser violenta.O que importa saber, portanto, não é se, ao fim do processo, o Estado impôs sua pax, mas sim se a ordem imposta processualmente corresponde à ordem prevista na lei. Como salientou muito bem Carnelutti, “non si è detto tutto della legge quando all’analisi ci si trovano i due elementi della fattispicie e della sanzione; resta afferrare il nesso che li unisce. A ciò serve, se non mi inganno, il concetto della promessa”. E acrescenta: “intanto è bene fissare che il processo, di fronte alla violazione del precetto, costituisce l’adempimento della promessa che garantisce la legge”.10

Conclui-se, portanto, que o Estado, desde o modelo liberal, as-sumiu obrigações com conteúdo de prestações positivas, e, dentre elas, está a segurança pública, que é definida assim na Constituição Francesa de 1793: “a segurança consiste na proteção concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e das suas propriedades”.

Mesmo esse conceito tendo sido elaborado há mais de dois séculos, permanece atual, visto que continua válido, embora possa ser considerado

10 MESQUITA, 2005, p. 78/79.

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incompleto para a realidade hodierna. Todavia, sendo esse um con-cei to histórico, mostra-se necessária uma investigação sobre o atual con cei to de segurança, a ser feito nas linhas que seguem.

4 Segurança pública na CF 88 – Preâmbulo, artigos 5º, 6º e 144Esse relevante valor11 não foi deixado de lado pela Constituinte

brasileira de 1988. A segurança, primeiramente, é colocada como objetivo do Estado e como valor supremo no Preâmbulo do texto constitucional: “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-mento, a igualdade e a justiça como valores supremos”.

Além do Preâmbulo, o artigo 5º, no caput, também menciona a segurança ao lado de outros direitos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à li-berdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Sendo assim, além de ser um valor, a segurança foi prevista também como direito, ao lado das liberdades individuais, ou seja, como direito fundamental de primeira geração. Não por que isso implica em uma omissão do Estado, mas por que sem o aparato da segurança pública os demais direitos ficam completamente esvaziados, conforme demonstrado acima. A segurança pública constitui, então, um pressuposto imprescindí-vel para o pleno exercício do direito à vida, à liberdade e à propriedade.12

No artigo 6º, a Constituição prevê, novamente, o direito à seguran-ça, mas agora no rol dos direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. O conteúdo desse di-reito será aprofundado a seguir, visto de portador de conteúdo diverso de seu homônimo do artigo anterior.

Por derradeiro, surge a expressão segurança pública (pela primeira vez a segurança recebe esse adjetivo), inicialmente como nome de capí-tulo, e, em seguida, como atividade estatal. Importante mencionar sua

11 Conforme se verá no decorrer desse estudo, a segurança é um valor, mas não é apenas um valor.12 Nesse sentido, SUSTEIN, 2002, p. 469.

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localização no corpo da Constituição: é nome Capítulo III do Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas) e conteúdo desse capítulo.

José Afonso da Silva explica essa utilização polissêmica do termo:

Na teoria jurídica, a palavra “segurança” assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de situação ou pessoa em vários campos, dependente do adjetivo que a qualifica. “Segurança jurídica” consiste na garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidos em determinada relação jurídica, essa se mantem estável, mesmo se se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu. “Segurança social” significa previsão de vários meios que garantam aos indivíduos e suas famílias condições sociais dignas; tais meios se revelam basicamente como conjunto de direitos sociais. A constituição, nesse sentido, preferiu o espanholismo “seguridade social”, como vimos antes. “Segurança nacional” refere-se às condições básicas de defesa do Estado. Segurança pública é a manutenção da ordem pública interna.13

Como sabido, o foco do presente trabalho é a segurança pública, conceituada acima como manutenção da ordem pública interna, e tida como necessária para a defesa do Estado e das instituições democráticas, conforme se extrai da análise topológica do termo. Sendo assim, apesar de reconhecer a importância da segurança jurídica e da segurança social,14 o presente trabalho deixa de abordar tais temas.

Ainda com base na lição de José Afonso da Silva, é possível apro-fundar a análise do instituto jurídico:

A segurança pública consiste numa situação de preservação ou restabelecimento dessa convivência social que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos limites de gozo e reivindicação de seus próprios direitos e defesa de seus legítimos interesses.15

13 SILVA, 2005, p. 777.14 Discordando do conteúdo de segurança social previsto no artigo 6º: “Outro ponto fundamental fora a

dupla referência à segurança tanto no rol de direitos individuais (art. 5º, CF) quanto no rol de direitos sociais (art. 6º, CF). No primeiro caso, da segurança pessoal ou individual, a previsão remonta à nossa primeira Constituição, o texto outorgado de 1824 (art. 179), ainda sob a égide do Império. A previsão da segurança como direito social — eis a constitucionalização concreta de um direito fundamental à segurança pública — é, no entanto, uma novidade jamais vista até então no constitucionalismo brasileiro” (LINS, 2011, p. 181).

15 SILVA, 2005, p. 778.

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Esta é, portanto, a situação a ser alcançada, enquanto objetivo mencionado no texto constitucional (vide Preâmbulo). E isso se dará, prin-cipalmente, com o exercício da atividade policial.16 17 Digno de menção, também, o conceito de segurança pública a que chegou Rodrigo Vilardi, elaborado em estudo específico sobre o tema:

Segurança pública, em termos conceituais, após uma breve abordagem da evolução de seu significado no processo histórico e a comparação com a as atuais visões acerca da questão, foi conceituada como “um estado de ausência ou risco iminente de ocorrência de infrações penais ou atos infracionais e de percepção dessa circunstância por parte dos integrantes da sociedade”, sendo resultado, ainda, que ela, em conjunto com a tranquilidade e a salubridade pública, forma a tríade dos aspectos da ordem pública, que é a situação de convivência social pacífica entre os cidadãos.18

A atividade policial acima referida também foi analisada por José Afonso da Silva, interpretando o artigo 144 da Constituição:

Na sua dinâmica, é uma atividade de vigilância, prevenção e repressão de condutas delituosas. Segundo a Constituição, a segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública da incolumidade das pessoas e do patrimônio através da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis, das polícias militares e corpos de bombeiros militares (art. 144).19

Tratando do tema, Pedro Lenza explica:

A atividade policial divide-se, então, em duas grandes áreas: administrativa e ju diciária. A polícia administrativa (polícia preventiva, ou ostensiva) atua pre-ventivamente, evitando que o crime aconteça, na área do ilícito administrativo.

16 Por mais óbvio que pareça, segurança pública tem relação com a prevenção e repressão de delitos penais e atos infracionais. E, por força do inafastável princípio da legalidade, apenas o poder legislativo tem competência constitucional para definir as condutas típicas (que constituam delitos penais ou atos infracionais) e abrandar ou tornar mais severas as penas. Nem o executivo, por força da vedação de edição de medidas provisórias sobre direito penal, nem o Judiciário não tem competência constitucional. E sem dúvida nenhuma, a legislação penal é parte integrante do sistema de segurança pública. Mas por não poder ser objeto de adjudicação da forma como aqui tratada, esse aspecto não será objeto de maiores investigações.

17 Não consiste em objetivo do presente texto analisar outras formas de atuação estatal que, indiretamente, impliquem no aumento da segurança pública, como políticas que confiram ao cidadão melhores condições de vida, desincentivando a prática de crimes, visto que estas não tem como objetivo direto o incremento da segurança pública.

18 VILARDI, 2010, f. 24.19 SILVA, 2005, p. 778.

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Já a polícia judiciária (polícia de investigação) atua repressivamente, depois de ocorrido o ilícito penal.20

O texto constitucional, no âmbito estadual, atribui às polícias mili-tares a atividade de policiamento ostensivo, enquanto às civis incumbiu as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. No âmbito federal, as atividades são exercidas pelas Polícias Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal.

É correto afirmar, então, que a segurança pública não é apenas um valor ou um objetivo a ser perseguido. A segurança pública também pode ser considerada como direito (a partir da leitura do artigo 5º da Carta Política), e, ainda, como um serviço público (enquanto atividade estatal prevista no artigo 144). Em obra anterior à Constituição de 88, Cretella Junior cita o conceito de serviço público com apoio na doutrina de Rui Cirne Lima: “Serviço público é todo o serviço existencial, relativamente à sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento dado, que, por isso mesmo, tem se prestado aos componentes daquela, direta ou indiretamente, pelo Estado ou outra pessoa administrativa”.21

Odete Medauar, por sua vez, em obra contemporânea ao texto constitucional vigente, elaborou conceito mais restrito, que não chega a ser divergente:

Serviço Público, como um capítulo do direito administrativo, diz respeito à atividade realizada no âmbito das atribuições da Administração, inserida no Executivo. E refere-se à atividade prestacional em que o poder público propicia algo necessário à vida coletiva [...]22

Tendo em vista a ausência de carga normativa do valor exposto no Preâmbulo,23 podemos dizer que a segurança pública tem dupla ca-racterização, o que é confirmado por Rodrigo Vilardi:

No mesmo sentido, foi identificada a dupla natureza jurídica da segurança pública. A primeira, como direito fundamental que integra em seu conteúdo, em regra, o total respeito aos demais direitos em razão de seu caráter instrumental, e a segunda, como serviço público, que permite um melhor

20 LENZA, 2007, p. 644.21 CRETELLA JR., 1967, p. 255.22 MEDAUAR, 2001, p. 368.23 ADI nº 2.076, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15.08.2002, Plenário, DJ, 08 ago. 2003.

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relacionamento com os princípios democráticos de direito e controle pelo poder judiciário, além de ressaltar seu caráter de prestação positiva, no sentido de concretização de atos com o objetivo de garantir o direito à segurança pública dos integrantes da sociedade e não apenas atuar para posterior responsabilização penal.24

Podemos afirmar, por enquanto que, de acordo com o direito positivo vigente, segurança pública, além de valor supremo e objetivo, é direito fundamental, bem como é, também, um serviço público con-cretizado por meio das atividades policiais.

Em se tratando de estudo voltado à justiciabilidade, o foco deve se voltar para a segurança jurídica enquanto direito. De rigor, pois, uma análise do direito à segurança pública, para, a partir de suas caracterís-ticas, verificar qual o tratamento que deve receber do Judiciário quando da sua tutela.

5 Características do direito à segurança públicaUma primeira característica da segurança pública reside em sua

fundamentalidade. Essa característica não decorre apenas de sua in-clusão no caput do artigo 5º da Carta Política. A partir do conceito de fundamentalidade de um direito elaborado por Paulo Gustavo Gonet Branco, constata-se que a segurança pública reúne todas as características, de modo que é correto tratá-la como tal: é um direito universal, evolui com a história, é inalienável e indisponível, tem previsão em norma constitucional, vincula os três poderes e tem aplicabilidade imediata.25

Analisando conceitos de fundamentalidade elaborados por ou-tros autores, José Hugo de Alencar Linard Filho também conclui pela fundamentalidade do direito à segurança pública, mencionando ainda outros fatores além daqueles elencados por Paulo Gonet: é corolário da fórmula de Estado Democrático de Direito, advém do elo entre ela e o regime republicano, e se mostra indispensável para a normalidade do Estado, das instituições democráticas e das relações interpessoais e comunitárias na sociedade.26

24 VILARDI, 2010, f. 24-25.25 MENDES, 2009, f. 269-286.26 LINARD FILHO, 2009, f. 86-87.

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Firmada sua primeira característica, ser um direito fundamental, é necessário também analisá-la a partir de seu titular: toda a sociedade. Isso se percebe não só na segurança enquanto direito, mas também na qualidade de serviço público a partir de seus destinatários e do modo de prestação, que é uti universi.

Apesar dessa titularidade coletiva, Ada Pelegrini afirma que a se-gurança pública não pode ser tratada como interesse difuso:

Mas, como foi agudamente observado por Villone, nem todos os interesses metaindividuais configuram interesses difusos. O interesse à ordem pública, à defesa comum ou à segurança pública, por exemplo, conquanto seja indis-cutivelmente um interesse suprasubjetivo, não é considerado interesse difuso, como o é, ao contrário, o interesse à defesa do ambiente e das cidades, à defesa do consumidor, à informação correta e completa, à lisura financeira ou bancária, à integração pacífica das diversas componentes raciais e sociais, etc.A diferença reside no fato de que a ordem pública (ou a segurança pública, ou a defesa comum) constitui interesse de que todos compartilham. O único problema que esses interesses podem suscitar situa-se na perspectiva clássica do conflito autoridade x indivíduo. Mas sempre no pressuposto de que a or-dem pública deva, em princípio, ser salvaguardada, de modo que, ao menos teoricamente, no Estado de Direito não haveria propriamente contraste entre os valores segurança e liberdade, por ser pacífica a aceitação do princípio de que as liberdades devem ser exercidas respeitando-se a segurança social. [...]Enfim, como se observou, o interesse difuso caracteriza-se por sua ampla área de “conflittualità”. Conflituosidade, essa, que não se coloca necessariamente ou apenas no clássico contraste indivíduo x autoridade, mas que é típica das escolhas políticas.

Entretanto, para Carreira Alvim, o direito à segurança pública pode sim ser considerado como direito difuso:

Se o direito à segurança é um dos direitos fundamentais inscritos no art. 5º, caput, da CF/1988, e um direito inviolável, tanto quanto os direitos à vida e à liberdade, não cabe discussão se os indivíduos globalmente considerados têm um verdadeiro direito em face do Estado —, direito à segurança —, a não ser que se leia pelo avesso o preceito constitucional; e não se tratando de um direito potestativo, fica evidente que, ao direito dos indivíduos à segurança, corresponde o dever do Estado de prestar-lhes essa segurança. Assim, se o Estado (Poder Público) não tem o dever de garantir a segurança pessoal aos brasileiros, considerados uti singuli —, pois seria impossível destinar um guarda para proteger cada brasileiro —, têm-no, considerados uti universi, tratando-se de um direito difuso à segurança, mas, nem por isso, menos concreto do que o direito subjetivo individualizado.

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Como os direitos difusos gozam de proteção legal (art. 129, III, da CF/1988 e art. 81, I, do CDC), fica evidente que essa garantia se estende ao próprio direito à segurança —, gerando o dever do Estado de prestá-la —, e que, uma vez violado pela omissão do Poder Público, faz incidir o disposto no art. 5º, XXXV, da CF/1988, garantidor do acesso à Justiça e instrumento de cidadania. Seria um absurdo, por exemplo, que a poluição atmosférica numa favela autorizasse o ajuizamento de uma ação civil pública para fazer cessar os danos à saúde dos favelistas, e a atividade marginal do tráfico de drogas, que põe em risco permanente o seu direito à vida, não o autorizasse. Fosse assim, o direito à saúde que, apesar de ser direito de todos e dever do Estado (art. 196 da CF/88) estar-se-ia sobrepondo ao direito à vida, ou à preservação da vida, que é o mais importante direito fundamental do ser humano, cuja garantia se assenta na segurança.27

Tendo como ponto de partida a lição de Carreira Alvim, que é acolhida por Linard Filho com base nessa opinião e na de outros autores, é possível a judicialização da segurança pública (ou melhor, das políticas públicas envolvendo segurança pública) considerando seu caráter difuso. Cite-se a lição de Linard:

Santin (2004, p. 80), não desconhecendo a relação do direito à segurança pública com cada geração ou dimensão dos direitos humanos, considera-o um direito predominantemente de caráter difuso, com características de direito humano. Tal posição parece sustentar-se nas características de transin-dividualidade, indivisibilidade e de solidariedade presentes no direito à segurança pública.28

Tal posição foi confirmada pela jurisprudência ao conferir trata-mento processual de direito difuso, permitindo sua judicialização via ação civil pública. Sim, pois, a possibilidade de judicialização já foi reconhe cida pelo Supremo Tribunal Federal que, reformando acórdão do Tri bunal de Justiça do Paraná, concluiu pela possibilidade de, judicial mente, condenar o Estado a contratar servidores e lhes fornecer condições de trabalho, sem que isso violasse a harmonia entre os poderes, sendo, pois, um pedido possível e um direito exigível judicialmente pela via processual coletiva:

Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão que, em ação civil pública, extinguiu o processo sem resolução de mérito, cuja é a seguinte:

27 ALVIM, 2005, p. 50.28 LINARD FILHO, 2009, f. 91.

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APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SEGURANÇA PÚBLICA. INCUMBÊNCIA AO PODER EXECUTIVO DE NOMEAÇÃO DE DELEGADOS, INVESTIGADORES E ESCRIVÃES. FOR-NE CIMENTO DE RECURSOS PARA AS ATIVIDADES-FIM. IM POSSI-BILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INDE PENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS TRÊS PODERES. (fl. 186). 2. Nas razões do recurso extraordinário, sustenta-se ofensa ao artigo 2º da Constituição Federal. 3. Inadmitido o recurso na origem, subiram os autos em virtude do provimento do AI 611.381/PR (fls. 275). 4. O Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso (fls. 286-289). 5. Assiste razão à parte recorrente. O acórdão recorrido, ao concluir pela impossibilidade jurí dica do pedido, pois desconforme com as normas jurídicas vigentes ou esteja expressamente vedado pelo direito positivo, mormente quando se tratar de prin cípio constitucional, como retrata o caso em exame — princípio da inde pendência dos poderes —, previsto no art. 2º da Constituição Federal, divergiu da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal. 6. Assim, não prospera o argumento de que a imposição de obrigação de fazer ao Poder Exe cutivo violaria o princípio constitucional da separação de poderes. [...] 7. Dessa forma, dou provimento ao recurso extraordinário, com fundamento no art. 557, §1º-A, do Código de Processo Civil, para determinar o retorno dos au tos ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná para apreciação do recur so de apelação, afastado o óbice que ensejou a extinção do processo sem re so lução de mérito. (nº 559.646/PR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 31.03.2011, DJe-067, 08 abr. 2011)

Ainda que exista divergência doutrinária, os fatos (consubstan-ciados na jurisprudência do órgão de cúpula do Poder Judiciário) não devem ser ignorados. Se foi reconhecida a possibilidade de judicialização do tema, inafastável a conclusão de que é possível ao Judiciário tratar de políticas públicas envolvendo o direito à segurança pública.

Superada a questão da possibilidade, passa-se à questão da uti-lidade. Pergunta-se: essa intervenção judicial em políticas públicas de segurança pública produz bons resultados? Seria o Judiciário o melhor locus de decisão parra esse caso? Seria o Judiciário a instituição que pro-duziria a melhor decisão? Afinal, como explica Badin, existem outras instituições que podem tomar essa decisão, e por meio de um processo decisório diverso do adjudicatório.29

29 “[A]s três grandes instituições que primeiro se apresentam à nossa escolha no estado democrático de direito, laico e capitalista são o processo político (executivo e legislativo), o processo de trocas (mercado), e o processo adjudicatório (judiciário)” (BADIN, 2011, p. 91).

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Como o tema do trabalho se restringe à análise da intervenção judicial nas políticas de segurança pública, as demais possibilidades são apenas objeto de menção, visto que não constituem objeto de estudo no presente texto.

Passando para a solução adjudica, propriamente dita, imperioso considerar que a atuação da jurisdição se dá em um processo judicial cercado de formalidades quanto a diversos aspectos (número de parti-cipantes e forma de participação, regime preclusivo, estabilização da demanda, limitação da atuação do juiz pelo pedido da parte, formação de decisão final acobertada pela coisa julgada material), pergunta-se: o Judiciário é a melhor instituição para a formulação e concretização (coercitiva) de políticas públicas?

Para analisar tais aspectos, indispensável um estudo prévio sobre o conceito de políticas públicas. Feito isso será possível um aprofundamento da observação sobre os efeitos de se transferir as decisões referentes às políticas públicas para o poder Judiciário (considerando, principalmente, os limites processuais de atuação do magistrado).

6 Políticas públicas – Conceito, características e consequências de sua formulação e implementação coercitiva pelo Poder Judiciário

A política pública, antes restrita ao campo da ciência política, foi im por tada recentemente para o plano jurídico, onde recebeu definição (em bo ra interdisciplinar) cunhada com maestria por Maria Paula Dallari Bucci:

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados — processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orça-men tário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial — visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente deter minados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de obje tivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingi mento dos resultados. [...] As políticas públicas não são, portanto, cate goria definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos, típicos da ati vidade político-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico.30

30 BUCCI, 2009a, p. 20.

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Trata-se de ação governamental claramente dinâmica, como se verifica por suas fases (ou ciclos):

Há, no entanto, proposições de perspectivas mais elaboradas do ciclo de políticas públicas, que especificam momentos e permitem um olhar analítico mais detalhado sobre o processo. Dye (2009, p. 104) identifica os seguintes estágios convencionais do processo político-administrativo: identificar problemas; montar agenda para deliberação; formular propostas de políticas; legitimar políticas; implementar políticas; avaliar políticas. Nessa perspectiva, o foco está no como, não sendo privilegiado o conteúdo das políticas públicas, mas o processo por meio do qual são desenvolvidas, implementadas e mudadas (DYE, 2009).31

Ou seja, a política pública tem como uma de suas premissas a pos-sibilidade de mudança de rumos. Sim, pois, se na fase de avaliação se perceber que o resultado almejado não foi atingido, é possível modificá-la para adaptá-la às novas necessidades ou a circunstâncias não imaginadas, ou até, eventualmente, a intercorrências surgidas de sua implantação.

A partir dessas premissas (conceito de políticas públicas e fases das políticas públicas), torna-se necessário um contraste de tais necessi-dades de adaptação com as características da solução dada pela via da judicialização.

Usualmente são citados pela doutrina, como limitadores da atua-ção do Judiciário nesse campo das políticas públicas em geral (ou como desvantagens da judicialização):

I) Argumentos de ordem político-institucional:

Separação de poderes, com base no art. 2º da Constituição Federal;

Déficit democrático do Poder Judiciário.

Limitações técnicas do Poder Judiciário para apreciação das políticas públicas em toda sua complexidade;

Discricionariedade administrativa;

II) Argumentos de ordem econômico-financeira:

“reserva do possível”:

Questão da iniciativa das políticas públicas: Poder Executivo (CF, art. 61, §1º, II, “a” e “b”) e Poder Legislativo.32

31 HOMERCHER; BERGUE, 2011, p. 12.32 BUCCI, 2009b, p. 3-4.

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Esses argumentos apresentados como limitadores para o controle de qualquer tipo de política pública obviamente se aplicam a questões de segurança pública. Por óbvio, aplicam-se também às vantagens da solução adjudica e as respostas a essas críticas.33

No presente trabalho, porém, o objetivo é trazer novos aspectos para ampliar o debate sobre o tema. E aspectos que impactem, princi-palmente, em eventual judicialização de políticas públicas de segurança.

Parta-se, então, da característica do dinamismo das políticas públi-cas (presente em todas as políticas públicas, mas de importância ainda maior no objeto do presente estudo, conforme restará demonstrado).

7 Necessidade de constante atualização de políticas de segurança pública

Conforme restará demonstrado, esse ponto é de suma relevância para as políticas públicas de segurança pública. Aborde-se a questão da rápida evolução do crime.

Há alguns anos o uso de cheques falsificados exigia, por exemplo, preparo da polícia e material específico para o combate dessa atividade. Com a evolução da tecnologia, os hábitos da sociedade mudaram e essa mudança, evidentemente, fez com que os criminosos acompanhassem suas vítimas no processo evolutivo. Hoje o problema maior envolve fraudes com cartões magnéticos ou de chip.

A propósito, transcrevem-se algumas breves linhas de Manoel Camassa, que podem ser consideradas proféticas ao prever, por exem-plo, o aumento da prática de crimes por telefones celulares há algum tempo (1999):

Toda esta questão torna preocupante o desenvolvimento da criminalidade nos dias que se seguirão, em face de sua prática com a utilização de recursos tecnológicos, que evoluem mundialmente, e com veloz modernização da infor mática, de maneira que a criminalidade será praticada ao espectro da invi sibilidade, ou seja, o agente ou agentes, os meliantes do crime não mais estarão à frente de um microcomputador instalado sobre uma mesa, ou este acomodado numa maleta executiva, a exemplo do “notebook”, como atual-mente já ocorre. Mas estarão com tal equipamento camuflado num dos bolsos do paletó, operacionalizado a qualquer distância de tão eficiente maneira,

33 BUCCI, 2009b, p. 4-6.

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que invadirão os dados bancários da conta corrente das vítimas escolhidas, desviando seus ativos financeiros, ou de modo mais eficaz operacionalizando os comércios ilícitos, seja envolvendo drogas, seja os contrabandos mercantis, seja os da invasão da privacidade alheia, seja os delitos de concorrência desleal, aqueles envolvendo sabotagens e a violência à propriedade industrial, e os praticados contra os costumes e os abusos sexuais. Não menos torna-se preocupante o desenvolvimento tecnológico da telefonia celular e do telefone acoplado à TV a cabo, que serão canais, como já o vêm sendo, porém mais modernizados, mais sofisticados, para a prática de crimes das mais diversas naturezas e modalidades. [...] Não há dúvidas, pelo relato até aqui desenvolvido, que tecnologia e criminalidade caminham atualmente de mãos dadas, a última evoluindo a galope da evolução da primeira, influenciada e fortalecida pela utilização da informática, explorada negativamente pela inteligência humana.34

Evidente, pois, que a rápida evolução da criminalidade justifica a constante necessidade de adaptação de políticas públicas de segurança pública. Explique-se, porém, que a evolução tecnológica não é a única causa de necessidade de adaptação. Ignorando qualquer evolução tec-nológica, basta pensar no seguinte exemplo. Determinada localidade (um cruzamento, por exemplo) torna-se alvo de criminosos por força da ausência de policiais no local. Caso o comando da polícia desloque homens de seu efetivo para esse cruzamento, os criminosos buscarão outra localidade para praticar o crime, onde o policiamento ostensivo seja menor.

Além disso, é desnecessário dizer que determinadas técnicas atin-gem bons resultados em algumas localidades, mas não há garantia de que tais resultados serão repetidos, como menciona Rodrigo Vilardi sobre a atuação da polícia com vigilância por meio de videomonitorização.35 Há, portanto, necessidade de constante análise de resultados e, a partir destes, são feitas eventuais reformulações na atividade.

Nesse particular, vale lembrar que o mundo do crime é demasiada-mente dinâmico, se adaptando com rapidez aos obstáculos que encontra. Essa constante mutação do crime (seja em razão da tecnologia, seja em razão de outros fatores), é absolutamente incompatível com o instituto da coisa julgada, que tem como característica a imutabilidade.

34 CAMASSA, 1999, p. 226.35 VILARDI, 2010, f. 27-28.

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Vale dizer que a tecnologia também atua em favor do Estado, podendo ser usada como ferramenta para investigação e repressão de delitos. Nesse cenário, eventualmente, uma decisão de contratar mais policiais para fazerem a vigilância de determinado local pode se tornar obsoleta, visto que o trabalho desses homens poderá ser realizado por máquinas com a mesma eficiência ou até com eficiência maior.

Nesse cenário hipotético de evolução, pergunta-se: Quando se saberá se a decisão deve continuar a ser cumprida? Ou será que a de-cisão deve ser cumprida independentemente de resultados apenas em razão da imutabilidade da coisa julgada e do dever da Administração de cumprir decisões judiciais?

A contratação de peritos com determinados conhecimentos espe-cíficos (em falsidades documentais, por exemplo) pode se tornar menos necessária que a contratação de peritos em crimes cibernéticos ou para desarmar explosivos (vide a onda de crimes com explosivos em caixa eletrônicos).

Enfim, entendemos que a judicialização dessa política, tendo em vista as rápidas mudanças do cenário social, são incompatíveis com o instituto da coisa julgada.

Da mesma forma, essa rápida evolução do crime se mostra incom-patível com a duração razoável do processo, pois o problema que deu causa a uma determinada demanda judicial envolvendo políticas públicas de segurança pode ter se transformado, mudado de lugar, ou até mesmo deixado de existir (por exemplo, em razão da prisão dos autores dos delitos), o que torna pouco recomendável a judicialização da questão, considerando, principalmente, o longo tempo necessário para o julga-mento de questão de tamanha complexidade.

8 Rigidez das fases procedimentais como incompatibilidadeAlém da duração do processo e da definitividade, acima citadas,

a rigidez do sistema preclusivo no processo civil brasileiro, que também vigora nas ações coletivas, impede que eventuais alterações no cenário fático sejam admitidas no processo, sob pena de violação ao princípio do contraditório, da ampla defesa e da estabilização da demanda.

Admitida a flexibilização das regras de estabilização da demanda, eventuais alterações dos elementos da ação (causa se pedir e pedido,

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principalmente), implicariam em dilação excessiva do processo. Sim, pois, para fins de obediência ao devido processo legal constitucional, que protege os princípios do contraditório e da ampla defesa, isso im-plicaria em tornar necessária a concessão de sucessivas oportunidades de manifestação das partes a cada modificação da causa de pedir ou do pedido, o que colidiria frontalmente com outro princípio processual: o da razoável duração do processo, que também foi previsto como direito fundamental no artigo 5º, LXXVIII, da Lei Maior.

Eduardo José da Fonseca Costa, magistrado que percebeu as difi-culdades da função judicante em tais casos (tratando genericamente de políticas públicas), sugeriu a calendarização, como forma de flexibilização procedimental, inspirando-se no processo civil americano, mencionando que tal instituto tem como função fixar para as partes uma expectativa temporal para a prolação da sentença (e prática de determinados atos processuais).36

Diante de todas essas considerações, é irresistível associar esse tipo de acordo ao instituto da “calendarização processual” (timing of the procedural steps). [...]Grosso modo, a calendarização significa uma delineação imediata de uma expec tativa temporal para a prolação da sentença (dead­line), a fim de que todas as etapas do procedimento sejam orientadas em função dessa expec-tativa. Com isso, elabora-se um calendário ou tabela temporal (timetable) de toda a fase de conhecimento e se ganha tempo não remetendo os autos à conclusão para despacho e publicação na imprensa. Como se vê, trata-se de uma técnica de gestão do tempo processual, em que uma tutela jurisdicional mais racional e célere é prestada mediante flexibilização procedimental negociada entre as partes.

A necessidade de flexibilização, na realidade, demonstra que o instrumento utilizado pelo Judiciário para o exercício de seu mister é inadequado para tratar do tema, por isso se sugere a flexibilização. Daí se extrai a conclusão que o arcabouço normativo vigente não é apto a produzir resultados satisfatórios no julgamento desse tipo de causa (que tenha como objeto a formulação e implementação de políticas públicas).

Eis, portanto, outro aspecto que torna pouco recomendável a ju-dicialização de políticas públicas de segurança. As normas processuais impedem a adaptação do processo a alterações fáticas.

36 COSTA, 2012, p. 39.

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9 Institutional choice – O Judiciário é a melhor instituição para decidir sobre políticas de segurança pública?

Como mencionado supra, é cediço que nenhuma instituição é ca-paz de produzir soluções perfeitas no campo das escolhas que envolvem políticas públicas. Sendo assim, em vez de se analisar a possibilidade de cada instituição formular e implementar a política pública (tendo em vista a atual jurisprudência do excelso pretório que admite a judicia-lização), parece ser melhor olhar os problemas de cada instituição no exercício desse mister. Somente assim se terá consciência da viabilidade da judicialização, da sua utilidade, ou até mesmo de sua aptidão de produzir um resultado melhor do que aquele que seria produzido caso outra instituição atuasse em seu lugar (ou sem ser sujeito de coerção).

Eis o objetivo do presente estudo: alertar a doutrina sobre desvan-tagens que talvez não tenham sido relacionadas com a judicialização de políticas públicas. Em nenhum momento se pensou em trazer solução definitiva para tema de tamanha complexidade. O que se buscou ape-nas, como dito desde o início, foi ampliar o conjunto de informações disponíveis para permitir uma melhor comparação entre as instituições que podem atuar no campo da formulação e implementação de políticas públicas.

E, diante dos problemas aqui verificados na judicialização de polí ticas públicas que tenham como objeto o incremento da segurança pública, talvez deva ser reanalisada a solução de levar ao Judiciário a questão. Pois se todos os problemas foram levados ao Judiciário, além dos aqui mencionados, talvez surjam novos problemas e menos soluções, como explica Mancuso:

A reavaliação antes referida passa, necessariamente, pela renovada compre-ensão do que hoje se deva entender por acesso à Justiça, expressão geralmente ubicada à outrance no art. 5º, XXXV da CF, e que, à custa de ser largamente difundida, acabou superdimensionada, perdendo seu genuíno significado, vezo que, com o tempo, foi gerando mais de uma externalidade negativa, sendo a principal delas o fomento à cultura demandista ou judiciarista que grassa entre nós, sobrecarregando a Justiça estatal e, ao fim e ao cabo, desser-vindo a cidadania, na medida em que desestimula a busca por outros meios, auto e heterocompositivos.37

37 MANCUSO, 2010, p. 11.

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10 Considerações finaisNo cenário político de crise de identificação dos eleitores com seus

representantes, torna-se lugar comum buscar soluções adjudicadas, que teoricamente eliminam, ou, no mínimo, diminuem a influência política nas decisões. Todavia, tal qual os demais poderes, o Judiciário exerce sua atividade por meio do devido processo legal e, em razão da necessidade de segurança jurídica, suas respostas são dotadas de definitividade.

No campo da segurança pública, as definições do rumo a ser segui-do pelo Estado não podem dispensar constante revisão, com possibilidade de rápida atuação em sentido diverso do anteriormente definido, caso se faça necessário. Essa pronta possibilidade de modificação, aliada à análise constante de critérios de conveniência e oportunidade que se alteram com grande frequência, é característica da atuação da Administração Pública, que não deve sofrer indevida intervenção em sua atuação.

Is the Judicialization of Public Policies Related to Public Security Issues the Best Path?

Abstract: The present essay aims to analyze the public safety issue and the quality of judicial intervention over the definition of public choices regarding the State action on such area. To reach these goals, the article starts analyzing historic aspects of public safety, willing to demonstrate its relation with the State birth. After that, public safety is analyzed on legal basys. Once its present concept of public safety is defined, the study focusses on judicial intervention over it, showing the inefficiency of such intervention due to crime characteristics as well as due to procedural rules.

Key words: Public safety. Public choice. Judicial intervention.

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Esta obra foi composta em fontes New Baskerville e Humnst 777, corpo 11/15 e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa) pela Paulinelli Serviços Gráficos Ltda. Belo Horizonte/MG, outubro de 2013.