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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 23-45, jun. 2007. 23 DEBATE — A FAMÍLIA EM (DES)ORDEM No dia 19 de maio de 2007 o Corpo Edito- rial do Jornal de Psicanálise reuniu-se com as colegas Ana Cristina C. Camargo, Débora Seibel, Neide Aparecida S. Aoki e Regina Maria Rahmi para um debate sobre o tema “A família em (des) ordem”. O Jornal agradece a participação de todos. Jornal: A idéia deste tema, em alusão ao livro de Roudinesco, surgiu da observação, am- plamente tratada por diversos autores, das pro- fundas transformações da família na contempo- raneidade. Dessas mudanças destacamos aque- las relacionadas às condições de procriação, à composição das famílias, à recomposição fre- qüente dos casais e à passagem da soberania paterna para a materna. A partir destas constatações, gostaríamos de discutir: 1 — Como cada uma de vocês observa estas questões em sua clínica? 2 — Que efeitos ou conseqüências, a partir da observação clínica, observam na constituição subjetiva de pais e filhos? 3 — Em que medida a psicanálise, seu arcabouço teórico, suas técnicas, seu método, está preparada para dar conta de tais questões? 4 — Em relação à formação em nosso Instituto, com que relevância essas questões têm sido tratadas? Débora: Queria agradecer o convite por- que esta é uma oportunidade para usufruirmos e divulgarmos no Instituto o que fazemos quase que solitariamente em nossas clínicas.

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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 23-45, jun. 2007. 23

DEBATE — A FAMÍLIA EM (DES)ORDEM

No dia 19 de maio de 2007 o Corpo Edito-rial do Jornal de Psicanálise reuniu-se com ascolegas Ana Cristina C. Camargo, Débora Seibel,Neide Aparecida S. Aoki e Regina Maria Rahmipara um debate sobre o tema “A família em (des)ordem”.

O Jornal agradece a participação de todos.

Jornal: A idéia deste tema, em alusão aolivro de Roudinesco, surgiu da observação, am-plamente tratada por diversos autores, das pro-fundas transformações da família na contempo-raneidade. Dessas mudanças destacamos aque-las relacionadas às condições de procriação, àcomposição das famílias, à recomposição fre-qüente dos casais e à passagem da soberaniapaterna para a materna.

A partir destas constatações, gostaríamosde discutir:

1 — Como cada uma de vocês observaestas questões em sua clínica?

2 — Que efeitos ou conseqüências, a partirda observação clínica, observam na constituiçãosubjetiva de pais e filhos?

3 — Em que medida a psicanálise, seuarcabouço teórico, suas técnicas, seu método,está preparada para dar conta de tais questões?

4 — Em relação à formação em nossoInstituto, com que relevância essas questões têmsido tratadas?

Débora: Queria agradecer o convite por-que esta é uma oportunidade para usufruirmos edivulgarmos no Instituto o que fazemos quase quesolitariamente em nossas clínicas.

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Trabalho há doze anos como par-ceira de uma clínica de reprodução assis-tida e nesta experiência me surpreendoconstantemente.

As formas de procriação muda-ram muito. Hoje em dia é muito comum asmulheres engravidarem tardiamente, ecom isso os próprios óvulos muitas vezesperdem a capacidade reprodutiva. Nes-ses casos uma alternativa oferecida pelaequipe médica é a utilização de óvulos deuma mulher mais jovem. Coordenei umprograma de óvulos doados durante cincoanos. Só para se ter uma idéia, são sete ouoito ciclos de óvulos somente na clínicaem que eu trabalho.

Essa situação traz outras questõescomplexas que precisam ser pensadas.Para dar um exemplo, uma moça me veioao consultório na época em que precisoufazer este procedimento. Seguimos porum período o trabalho, ela engravidou,teve os bebês e recentemente me procu-rou para uma conversa. Muito angustia-da, disse que a cada aniversário dos gê-meos fica muito aflita, ouve comentáriosdo tipo como os filhos se parecem comela, com sua mãe ou com sua prima. Nãosabe que fazer com esse segredo. Sente-se traindo toda a família, e também nãoestá preparada para conversar sobre issocom eles. Esse é um dos exemplos quemostram com clareza a repercussão des-tes procedimentos e tecnologias.

Podemos, então, pensar que exis-tem de fato situações que estão sendopossíveis do ponto de vista técnico, e comisso a mente se sente sobrecarregada.

Desordem é uma palavra muitoforte, até me parece um termo que temuma conotação moral, como se houvesseuma ordem e, agora, uma desordem. Pro-curo não enveredar pelo lado da moral.

Leda: Gostaria de dizer que nãocolocamos ordem do ponto de vista mo-ral, mas no sentido de provocar algo quenão pode ser falado. Por que não pode serfalado? Se for natural, tranqüilo, por queprecisa ser guardado durante tanto tem-po, até às vezes por toda a vida?

Sabemos que esse guardado vaiproduzir algum efeito em algum lugar.

Alice: E, completando e esclare-cendo esta idéia inicial relativa à ordem,pensamos em situações como a de umaavó doadora de um óvulo para a filhaimpossibilitada de gerar, nascendo umacriança que na verdade é filha de suaprópria avó. Perguntamo-nos se a própriatecnologia médico-científica de algumaforma determina uma nova ordem defiliação e, no caso afirmativo, como queisso se coloca e ecoa em nossas clínicas.

Débora: Na verdade, o título nemé de vocês, é do livro da Roudinesco. Éum título provocativo.

Penso que existe, sim, uma novaordem e é muito difícil, porque vislumbrauma coisa um pouco perversa. Entãoficamos no limiar da perversão e da trans-gressão necessária, da ruptura. O rabinoNilton Bonder em seu livro A alma imoralafirma que todo lugar um dia se torna

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estreito, é verdade, temos de sair. Mas,como? E até onde vamos? É delicado, édifícil. Se isso se der de qualquer maneira,também morremos. Acho que estamosvivendo um momento muito particular. Enão penso assim: “Nossa! Que desor-dem! Que confusão!”, mas sim: “Quediferente! Que perigoso! Que atual!”. Otrabalho está ficando mais difícil, ou sem-pre foi...

Regina: Primeiro quero agrade-cer a oportunidade de poder participardeste debate e refletir um pouco sobreeste tema.

A questão da (des)ordem coloca afamília dentro de uma cultura, e o quetemos assistido nos últimos anos são pro-fundas transformações culturais. Sabe-mos, também, que uma das funções dafamília é inserir o indivíduo na cultura.Então, de saída nos deparamos com aindagação de como ficam as novas repre-sentações familiares com essas transfor-mações. Estudá-las faz parte do nossoofício de analistas e a idéia de campopsicanalítico vem sendo nosso instrumentalpara podermos trabalhar com família, hoje.

Vindo para cá, lembrei-me de umafrase de Maurice Henry: “Quem não seentregou às enquetes sobre sua família?Quem não leu ardentemente velhas cor-respondências na esperança de descobrirdos mortos as respostas sobre seus pró-prios enigmas?”. Temos aí duas palavras:busca e enigma.

O terreno da família é arqueológi-co, conforme avançamos vamos nos apro-

ximando de várias camadas e nos dandoconta de pedaços e fragmentos. Vem-mea idéia de complexo de Édipo fraturado,estilhaçado. É o que temos observado naclínica. As pessoas que nos procurambuscam um sentido para suas vidas, seusenigmas. Há inquietação e, sobretudo,uma aceleração do tempo, tudo muitorápido, é tudo para ontem. Penso que todoo nosso trabalho, no momento, vai emdireção da compreensão dessas novasrepresentações. Que modelos podería-mos pensar, dentro dessa configuraçãocontemporânea, que pudessem abarcaressas questões?

Para aprofundar esta reflexão, voume valer de alguns elementos presentesna Odisséia.

Ulisses se lança em uma travessiaque acontece em duas etapas. Há umasérie de acontecimentos que o afastam decasa e o jogam numa busca, inicialmente,onde passa por uma guerra, a de Tróia,num pacto de lealdade; e depois, numsegundo momento, ele procura retornar,mas encontra dificuldades e se vê lança-do numa nova travessia.

Existe um tema secundário: o queacontece em sua casa quando Ulisses vaiembora? A ausência de Ulisses leva apensar, na atualidade, a questão do paiidealizado. Onde está esse pai? É um paiausente, fraco? O que aconteceu comele? Na Odisséia existe todo um esforçoda família para trazer o pai de volta. É umtema muito forte do momento atual. Acasa de Ulisses fica invadida pelos pre-tendentes, com Penélope tecendo e

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destecendo, com certa esperança do re-torno do marido. O filho, Telêmaco, parteem busca do pai. Se pensarmos na atua-lidade, o filho pode buscar o pai de váriasmaneiras, com drogadição, com proble-mas escolares, com depressão etc. Anecessidade de resgatar o pai está pre-sente atualmente. Há outro movimentoque reconheço na clínica, que seria oreencontro do casal, Ulisses e Penélope,que é feito de uma maneira muito caute-losa porque ele chega disfarçado de men-digo. Quem é esse marido-Ulisses quevolta? Ele está morto e voltou? Isso refle-te um eu que não é coeso. São muitosmaridos, muitos Ulisses, muitas Penélopesque se reencontram. Essas indagaçõesestão presentes nas colocações dos ca-sais: “É você mesma? Você está comi-go?”. Estou-me referindo agora às trans-formações nos casamentos.

Esse modelo possibilita a integra-ção de estilhaços, de pedaços, que vãoabrindo novas possibilidades de transfor-mação na intimidade do trabalho clínico.

Ocorreu-me agora uma vinhetaclínica, de um homem que chegou numprocesso de separação. Era procedentedo exterior, veio quando criança em umatravessia transatlântica. Casou, teve fi-lhos e se tornou um homem bem-sucedi-do. Num determinado momento, sua mu-lher lhe diz que não está mais satisfeita.Ele inicia, então, uma busca dentro simesmo. Nesse momento de separação,lembra que sua avó havia colocado emsua mala uma máquina de fazer macar-rão. Ele pega esta máquina e faz macar-

rão com o filho. Nesse processo, lembra-se do que a avó lhe dizia: “Olha, você fazmacarrão, mas o que resultar disso nãovai ser somente culpa sua, vai dependerda farinha, do tempo, de várias coisas”.Esse reencontro com lembranças da avórecupera dentro dele o menino que brin-cava e contava com as mãos seguras daavó a lhe indicar uma determinada dire-ção. Tinha rompido com essa avó e, decerta forma, tinha se transformado nummarido muito severo com sua própriamulher. Ele reconhece isso. Recuperaessa mulher forte que ao mesmo tempo ofascinava e o aterrorizava. Lembrançasque quando tecidas e retecidas vão trans-formando pedaços estrangeiros da avó,da mulher, o que possibilita a sua própriaintegração.

Alice: Então, a partir do que vocêfalou, a própria cultura pode fornecersubsídios para pensarmos essas novassubjetividades que estão surgindo.

Ana Cristina: Estou muito feliz deestar aqui.

A escolha a partir de que parâme-tros ordem-desordem e quais expectati-vas começamos a falar sobre família, e deque família tratamos, me faz pensar quetenho duas clínicas muito fortes e diferen-tes. Parte do tempo atendo em consultó-rio de psicanálise e, numa outra partegrande do tempo, sou coordenadora deuma instituição que trabalha com crian-ças e famílias da favela atrás da Ceagesp.Recebo famílias das mais diversas, e bem

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pertinho umas da outras, uma do Alto dePinheiros (considerado bairro nobre dacidade) e outra do outro lado, com confi-gurações e constelações bastante diver-sas, mas que colocam questões às vezesparecidas.

O Jornal de Psicanálise ressaltana carta-convite a discussão sobre a pas-sagem da soberania paterna para a ma-terna.

Do meu ponto de vista, perceboque o que passou para a mulher foi umacúmulo da maternagem ou o que é ma-terno, e não a soberania. Vejo isso nasduas clínicas. Vejo situações que ficamem função da soberania materna, masque na prática não acontecem. Vou darum exemplo, só para mostrar como é estaclínica que fica para lá do Alto de Pinhei-ros. Nós recebemos adultos no período danoite, crianças pequenas no período damanhã (sete a onze anos) e adolescentesno período da tarde. As noites são dedica-das às famílias, mas não necessariamenteàs famílias dos adolescentes e jovens,mas a pais e tios acima de dezoito anos,jovens que vão tocar violão ou jogar; agrande maioria são mulheres que vãobordar, que ficam conversando e contan-do as histórias das famílias.

Numa dessas famílias que eu acom-panho há muito tempo, a mãe tem cincofilhos; um freqüenta a instituição na parteda manhã, outro na parte da tarde e umterceiro já saiu e está trabalhando numamarcenaria. A mãe vinha muito pouco,falava muito pouco. Carroceira, ela acom-panhava o marido no trabalho de coleta de

reciclados das redondezas, até que viu apossibilidade de aprender a bordar. Nosúltimos dois anos, recebeu muita enco-menda e percebeu que poderia ganhardinheiro com este trabalho ao invés deacompanhar o marido, puxando a carroçacom ele. A família começa a sofrer,então, uma desestruturação com essanova recomposição. A mãe muda delugar na família, e esta, de status. Aprimeira vez que vendeu algo, recebeuum dinheiro que antes nunca chegava atéela, já que quem ia vender a mercadoriareciclável era o marido e, com isso, bebia.A partir do bordado, ela começou a rece-ber dinheiro. Olhava suas mãos e falava:“Ana, foram essas mãos!” E eu disse: “É,mas são essas mãos que também coleta-vam, puxavam carroça! Agora essas mãosestão recebendo pela primeira vez o di-nheiro e você pode dispor disso”. Aomesmo tempo que via o crescimento des-sa mulher, via também a desordem que seinstaurava na dinâmica familiar. Não eramais aquela que podia suportar tanto umhomem bêbado, não estava mais em casapara cobrar dos filhos para que saíssemna hora certa para ir à escola ou procurarum trabalho. A recomposição familiartambém sofria com essa modificação destatus.

Nós estamos aqui discutindo or-dem/desordem, falando em acompanharfamílias, adolescentes ou crianças querecebemos nas transições entre as fasesque passam. Penso que é isso que a gentepode, sem ser moral nem caricato, cha-mar de desordem. Poder acompanhar os

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momentos dos jovens no consultório, des-sas mulheres na instituição, repensar tam-bém que lugares estão ocupando os ma-ridos. É uma grande riqueza que vejo noconsultório e na clínica, poder pensarjunto com as pessoas o momento detransição que estão vivendo, onde o tem-po todo se instalam novas configurações.É disso que se trata. Como é que umpsicanalista pode acompanhar as turbu-lências que a vida impõe a seu cliente,sejam elas de que ordem forem, à medidaque elas acontecem.

Estava lendo outro dia o artigo daCíntia Buschinelli sobre a busca das raí-zes das mais diversas formas, a meninaquestionando se é parecida com os paisou não. No caso tratava-se de crianças deóvulos doados que iam à internet parasaber de onde veio tal óvulo. Como é quenós, analistas, podemos estar cada vezmais preparados para atender essas tur-bulências das novas configurações?

Acabou acontecendo no consul-tório eu ser chamada para fazer assis-tência técnica de regulamentação devisitas ou de guarda familiar, algo, aliás,que nem gosto de fazer. Depois fiz umhistórico do número de crianças e ado-lescentes que atendi, dos adultos e ca-sais separados, com questões de ado-ção. Nos três casos onde fui chamadaa desempenhar esse papel, o pai queriaficar com os filhos. As questões quechegavam para mim eram complexas,algo impensável, até discuti na minhafamília de origem e eles queriam saberse eu apoiava a situação.

Poder pensar essas constelaçõessem nenhuma expectativa anterior decomo devem ser é a maior utilidade nossaao receber quem nos procura.

Regina: Você estava falando e eume lembrei da experiência que estou ten-do como coordenadora do curso de aten-dimento em orientação familiar, no Insti-tuto Sedes Sapientiae. As pessoas quenos procuram vêm trabalhando com fa-mílias em hospitais, tribunais, ONGs eabrigos. Tendo em vista a velocidade comque as transformações vêm ocorrendo,existe a necessidade de buscar um senti-do, a tessitura de uma mentalidade quearticule a herança genética às contribui-ções dadas pela cultura. Nosso trabalhoprocura desenvolver uma escuta que pos-sibilite ir pensando essas transformações.O importante é oferecer a disponibilidadee a sustentação no encontro com as raí-zes. Lembrei um ditado chinês que diz:“Ter filhos é dar asas e raízes”. Às vezesvemos as asas, mas não as raízes. Nossotrabalho tem por finalidade reconstituir ouresgatar essas raízes que essas criançaspensam que não têm.

Neide: Quero em primeiro lugaragradecer a oportunidade de poder estaraqui!

Gostaria de contar a experiênciade trabalho que tenho feito no interior doEstado onde resido.

Penso que o psicanalista tem sidochamado a prestar um trabalho de inesti-mável valor à comunidade. Tenho recebi-

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do uma demanda muito grande das esco-las das cidades vizinhas e da minha, soli-citando palestras e cursos para pais eprofessores. O que tenho percebido aolongo desta experiência de mais de vinteanos falando com comunidades no rádio,na tevê e em grupos, é que os pais encon-tram-se muito perplexos e inseguros fren-te às mudanças aceleradas de nossa so-ciedade. A família, como reflexo desteperíodo pós-moderno, nos dá mostras defalta de intimidade, onde a correria e oborramento de limites se fazem constan-tes. Quando as escolas solicitam ajuda,querem que o assunto a ser abordado sejasobre limites. Tenho tentado mostrar quelimite é conseqüência posterior ao esta-belecimento de um vínculo afetivo, quemuitas vezes se encontra tênue; deve-selevar em conta que as crianças respon-dem ao afeto e não às regras. As pessoasestão muitas vezes absorvidas com a vidaconcreta, sem espaço para a paternidade,a maternidade, o psiquismo. Tenho usadocomo modelo a idéia da construção deuma ponte. Não dá para construir dametade do rio para a frente. Quandoalguma coisa está dando errado com ofilho e surgem sintomas, os pais tentam seaproximar, mas aí fica difícil porque nãofoi construída essa ponte desde o início.Há um grande ganho quando o psicanalis-ta pode ajudar nesse reencontro. Nestesentido lembramos M. Klein quando nosfala da necessidade de reparação, sobreperdoar os pais da infância, suas faltas,seus erros e suas dificuldades, para quealcancemos assim condições para adqui-

rirmos paz e capacidade de amar. Épreciso retomar a ponte afetiva do víncu-lo. Hoje vemos bebês em creches aindatão novinhos, precocemente afastados desuas mães, em escolas onde os pais ob-servam os filhos via internet, mas semestarem de fato presentes, como se dis-tantes garantissem que está tudo bem.Algumas escolas impedem os pais devisitar os filhos na hora do almoço porquedepois da separação eles choram e dãotrabalho, então acham melhor impedirque os pais tenham maior aproximação.O tempo de privação tem sido muitasvezes longo e precoce, interferindo nocrescimento emocional, faltando o tempomínimo necessário para construção dovínculo. Antes de se colocarem as gra-des-limites, é preciso haver essa pontevincular afetiva.

Alice: D. Ligia Amaral costuma-va dizer: antes de existir a ponte, no seulugar havia uma pinguela.

Neide: À medida que os pais vãoabrindo espaço para os filhos, se deixandocativar, vão lhes dando entrada para queocupem lugar em suas mentes. E osfilhos, na interação, vão construindo ospais e vice-versa. Vemos que muitos nãoestão conseguindo exercer a função depaternidade e maternidade, respeitando ahierarquia da diferença geracional, exer-cendo autoridade, dando limites básicos,definindo espaços (lugar para dormir, re-feição na mesa, etc.), dificultando assim aorganização da mente, que se estrutura,

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em grande parte, a partir da organizaçãoexterna. A criança precisa se assegurarde que é importante, descobrindo quemela é pelos olhos dos pais, olhar que alegitima e desenvolve sua identidade.Percebemos que a convivência amorosa,e ao mesmo tempo o estabelecimento delimites, está falha. Outro dia numa escola,uma mãe muito jovenzinha disse: “Traba-lho o dia todo, à noite vou estudar; o únicotempo que tenho para ficar com minhafilha é quando eu chego da faculdade”, ouseja, ela não tem tempo. A criança ficaesperando, procurando lutar por esse es-paço junto aos pais, sacrificando o des-canso, o crescimento, o brincar, porqueprecisa da relação afetiva. A falta detempo e espaço de continência pode levarao engodo de se tentar tampar um buraco,abrindo outro. Muitos filhos dormem noquarto dos pais, às vezes porque é o únicomomento que encontram para convive-rem juntos, comprometendo a elaboraçãoda situação edípica, da vivência de ser oterceiro excluído, se diferenciar e teralteridade. Pode surgir superproteçãocomo substituto de um vínculo afetivoverdadeiro e a negligência em relação aoscuidados através das terceirizações. Épreciso, portanto, reconstruir vínculos erelações esgarçadas, buscando possibili-dades de criar vivências de interaçãoafetiva. Torna-se cada vez mais necessá-rio falar dessas coisas para os pais, por-que eles muitas vezes negam a importân-cia de sua presença e participação. Afamília parece ser hoje um espaço ondecada um fica ilhado no seu quarto com

todo seu instrumental, com uma enormedificuldade para o encontro. Ainda assim,sabemos que a família é o melhor lugarpara se desenvolver uma mente, apesardas transformações que a família temsofrido hoje. Quando Stalin propôs que seextinguisse a família para que as criançasfossem criadas pelo Estado, a Rússiavirou um bordel. O próprio Stalin disse:“Que voltem às famílias!”.

Temos efetivamente que repen-sar, trabalhar, orientar, estar junto, dialo-gar sobre as situações básicas e funda-mentais com os pais para que possamabrir um lugar mais arejado dentro desuas mentes para acolher seus filhos. É aíque entra nossa participação, para que osencontros de pais e filhos, cuja profundi-dade e importância nós conhecemos, se-jam de crescimento e riqueza para am-bos.

Débora: Vi uma notícia no rádiooutro dia a respeito de uma pesquisa nosEstados Unidos com jovens que não jan-tavam em casa e outros que jantavam.Aquelas famílias cujas refeições eramfeitas em conjunto tinham um índice infi-nitamente menor de baixa escolaridade,drogadição e depressão, do que as famí-lias que não faziam as refeições em casa.Achei interessante.

Leda: Ainda nessa primeira ques-tão, vale a pena pensar, em relação àformação em nosso Instituto: com querelevância essas questões têm sido trata-das?

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Débora: Tenho me sentido con-tente em relação a isso. Quando entrei noInstituto senti-me temerosa,na expectativade como poderia compartilhar minhas ex-periências. Mas noto que cada vez maistem sido aberto espaço para conversarmoshonestamente, sem precisar dourar a pílula,daquilo que realmente se faz quando esta-mos sozinhos em nossos consultórios.

Leopoldo Nosek, relembrandoFreud, diz que temos de dar figurabilidadeao indizível. Então, quando estamos dian-te daquela situação totalmente esdrúxula,vamos tentar de alguma maneira figurar oque acontece. Eu uso muitas metáforas.Estou-me lembrando agora de uma histó-ria que contei num encontro da Cowap,que foi a única coisa que me ocorreuquando uma paciente trouxe uma situa-ção tão complexa que eu me senti despro-vida de recursos para conversar inicial-mente. Naquele momento me veio à men-te uma história também citada no livro Aalma imoral.

Leda: Quer contar para nós?

Débora: A paciente chegou à ses-são contando que ela não ia me falar o quetinha decidido fazer na clínica de reprodu-ção assistida com o médico. Pergunteipor quê e ela respondeu: “Porque vocênão ia aceitar”. Mas logo decide mecontar: vai engravidar com óvulos doa-dos, sem o marido saber. Isso num con-texto de redução da redução da redução,pois havia toda uma complexidade dahistória pessoal, que a gente sabe que

cada caso traz. Nós duas ficamos, emseguida, em silêncio. E ela disse: “E en-tão...”. “E então...”, respondi com estahistória que talvez não esteja cem porcento correta:

“Era uma vez uma moça que tinhauma criança que morria de fome. Elamorava numa aldeia muito pequena, e erauma judia religiosa. Ela ganhou uma gali-nha de presente mas precisava saber se oanimal tinha condições de ser abatidosegundo os preceitos judaicos. Ela pediuà mulher do rabino que levasse a galinhapara que o rabino avaliasse. A mulher dorabino chega com a galinha, ele olha noslivros, olha para a galinha, olha os livros,olha a galinha e diz: “Não!”. A mulhervolta, olha a galinha e olha a moça, olha amoça e olha a galinha e diz: “Sim, pode darpara a criança comer”. Volta para orabino, que lhe pergunta: “Você disse quenão podia?”. Ela responde: “Não, eu nãodisse que podia”. “Mas como??”, diz ele.A mulher responde: “Você olhou os livrose olhou a galinha. Eu olhei a moça e olheia galinha”.

Nós temos livros internamente.Apesar dos muitos livros que lemos emnossa formação, não ficamos com elesconcretamente. Acho que devemos nospreocupar em olhar, escutar nossos paci-entes, que muitas vezes, até em função deum superego muito exigente, vêm comlivros na cabeça, com o que podem, ounão podem, devem ou não devem fazer.Nós vamos em outra direção, olhamospara aquele que está conosco, e isso nosnorteia.

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Neide: O fato de estarmos aquidebatendo, enfocando esse tema no Jor-nal, mostra que está havendo espaçopara pensar, num enfoque mais solidário,incluindo a profilaxia. Tivemos recente-mente, no Congresso Brasileiro de PortoAlegre, salas sobre terapia familiar etransgeracionalidade que estiveramsuperlotadas. Quando se toca no temafamília, percebe-se uma demanda signifi-cativa de interesse. Faço parte do grupode família que Lia Cypel coordena há seteanos no Instituto de Psicanálise, ondetemos esse momento semanal de refle-xão sobre a constituição do casal e dasfamílias. A jornada de família que aconte-ce a cada dois anos aqui na Sociedadetem encontrado muita receptividade. Hámuita procura de pessoas interessadas notema. Notamos, então, que há interessedas pessoas, buscando o que a psicanálisetem a oferecer. As famílias vêm cada vezmais procurando espaço para pensar aoinvés de atuar, buscando junto aos profissi-onais luzes que lhes dêem alguma direção.

Vejo como muito pertinente a aber-tura de nossa Sociedade de Psicanáliseao se inserir na comunidade, reconhecen-do a necessidade de pensar sobre asnovas estruturações familiares.

Regina: Acho que a formaçãoaqui no Instituto oferece um arcabouçoteórico muito sólido e particularmente mesinto muito satisfeita com o que venhorecebendo. Acho que há uma abertura,estamos passando por um momento es-pecial no sentido de começar a abrir

questões centrais e fundamentais pararecolocar a psicanálise dentro de ummomento atual.

Temos um instrumental tão ricoque podemos usar no consultório, emsituações das mais diversas, e isso confe-re uma flexibilidade na atuação do analis-ta. É aí que se encontra a riqueza da nossaformação.

Ana Cristina: Adorei a história dagalinha! (Risos.) É poder ver na práticacomo tudo se passa, algo que me inquietadesde pequena! Penso que as coisas sóganham um sentido, de fato, na medidaem que existe a experiência concreta.

Eu sou do interior, de Araçatuba, evim para São Paulo aos dezesseis anospara fazer formação. Durante cinco anos,logo depois de formada, trabalhei aqui eem Araçatuba porque, lá, acontecia. Vi-nha para cá, estudava, fazia supervisão,atendia meus três gatos-pingados e iapara lá, onde trabalhava das oito às oito.É ótimo estudar, mas as coisas ganhamcolorido na prática, fazem sentido no tra-balho, para ver o que funciona e o que nãofunciona, e poder pensar a respeito. Lem-bro de ficar sumamente incomodada emreuniões onde as pessoas falavam daque-le único paciente e o outro ia embora, ametade da clínica ia embora. Temos quefalar de verdade sobre o que se faz.Quando estamos aqui reunidas e ela nosconta a metáfora com que foi possível darfigurabilidade ao que estava vendo acon-tecer à paciente, que precisava encontrarum jeito de ajudar, estamos tornando útil

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um encontro. Os encontros, se podemfazer sentido, é o único jeito que vejo paracontinuar acordando e trabalhando. Nãohá dúvida que precisamos ler. Precisa-mos ler e ver, rachaduras das casas,óvulos de outras mulheres que ganhamfilhos de outras, e o que for, mas semprecom verdade.

Noutro dia eu estava no meio deuma briga grande por causa da remoçãode uma das favelas perto do Ceasa, e alios moradores estavam se reunindo numaassociação porque os grandes empreen-dimentos estavam chegando à divisa dafavela. A favela localiza-se entre umlançamento imobiliário de uma grandeincorporadora e uma área de um dosmaiores conglomerados brasileiros e omercado imobiliário, claro, quer é jogar afavela para longe, para lá, e para lá. O quetentamos fazer é dar voz àquela popula-ção que não tem chance nem, por en-quanto, condições de falar... Como é quepensamos São Paulo? Hoje eu me vejocomo alguém que se utiliza desse arca-bouço, que tanto estuda e preza, como uminstrumental rico para pensar como é acidade que vivemos, o espaço que vive-mos, o país que vivemos, como é querecebo um garoto no consultório que vemcom babá, motorista, segurança, de umdos condomínios mais fechados, como éque vejo essa distância entre uns e outros,e sei que, quanto mais longe jogo essafavela daqui, mais alto será o condomínioque virá. Essa diversidade de poder viveras duas situações é muito rica efertilizadora para as duas clínicas. Ver as

coisas, poder intervir de verdade, poderpegar uma criança que está aprendendo afazer refeições juntas, como Débora fala-va, ver como come, como atravessa umarua. Há um exemplo claro na instituiçãoonde eu trabalho. Os garotos, quandoterminam o período da manhã e saem daAcaia, vão direto para a escola. Saem aomeio-dia e meia e vão sozinhos para aescola, bem próxima. Começamos a re-ceber reclamações direto das pessoas darua, do frentista do posto, dos vizinhos dalicom relação às crianças jogando pedras,mexendo com pessoas da rua, riscandocarros, atravessando faixa errada. Pas-samos a acompanhar os meninos, comprofessores, do momento em que saematé a porta da escola. Começou como umgesto de: vamos cuidar de vândalos. Doisdias depois de iniciada essa ação, perce-bemos outra conotação, não mais umaatitude repressora com uma criança, masum cuidado, como deveria ter sido feitoantes. É assim que vai uma criança de seteanos à escola, acompanhada, alguém ensi-nando como é que é uma banca de jornal, oque tem dentro de uma banca, como secumprimenta, como se atravessa uma rua,como dar bom dia para outra pessoa. Per-demos toda a noção de que a gente aprendeacompanhando, vendo fazer.

Beatriz: Recentemente li sobreuma questão que está sendo muitodivulgada sobre crianças com “déficit deatenção”. Neste artigo relacionavam essaquestão com o “déficit de atenção” dospais, e pensei no déficit de atenção dos

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pais para com os filhos e para com elesmesmos. Pensei que também temos vistomuita referência aos adultos com os cha-mados “transtornos bipolares”, e os ido-sos com Alzheimer. Não podemos pensarno “déficit de atenção”que estamos tendocom todos nós?

Como ficam a função paterna, oconvívio diário, e o que eles propiciam?

Quando chegou o microondas naminha casa, tive uma certa crise: acaboua hora do jantar! Quem vai querer chegarna hora para jantar e encontrar a comidaquentinha? Sentar à mesa? Não estouquerendo voltar para trás, mas há umoutro sentido. Estou pensando na questãoda função, e como ela será exercida.Falávamos que a psicanálise desenvolvea escuta, ajudando a pensar, transfor-mando momentos de crise. Como esta-mos escutando nesse momento essastransformações?

Regina: Essa indagação, por maisque a gente pense, estamos sempre des-cobrindo. Na sua colocação há uma idéiabásica de que o humano se constitui novínculo, de poder (con)viver, (com)par-tilhar, isto que vai ser internalizado e vai seconstituir numa rede de identificação afe-tiva e é o que sustenta. Se partimos de ummodelo de muita abertura, laissez-faireem termos de criança e adolescente, per-dem-se a presença e a firmeza. Isso é oque se chama de função paternanorteadora. Senão, é abandono. E temosuma geração que está o tempo todo soli-citando, pedindo presença e firmeza nos

nossos consultórios, nas nossas institui-ções.

Neide: O próprio setting da psica-nálise com horário, local, analista disponí-vel para acolher o paciente, vai oferecen-do modelos para a elaboração da moldurana família, tantas vezes sem contornos.As crianças esperam os pais chegaremdo trabalho. Mas qual é o tempo real e oque ocorre quando chegam? Mil coisaspara darem conta. Onde fica a disponibi-lidade para a criança, que está puxando aperna deles, que chora, que quer limites, eque depois acaba desistindo e vai se isolarno seu cantinho? Essa questão do aban-dono tem acontecido com freqüência.Daí a sintomatologia do vazio, muitasvezes preenchida com sensualidade porconta de necessidades corporais e afeti-vas não atendidas. Nossa sociedade estámuito voltada para o consumismo, em queos pais se justificam que estão sobrecar-regados, para dar um futuro para as crian-ças, mas como ter futuro negligenciando-se o presente? É o degrau construídoagora que vai possibilitar o apoio para seconquistar a auto-estima e encontrar for-ças e asas para voar no devido tempo.Acho que o exercício da função paternaao dar os limites necessários e da funçãomaterna oferecendo continência e acolhi-mento realmente é essencial, por issogostei muito de termos esse encontroaqui, visando nosso compromisso em co-laborar para que haja uma consciênciamaior de todas essas necessidades. Qual-quer um de nós poderia ter mandado uma

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idéia por escrito, como também se fazviável em outros momentos, mas a dife-rença hoje está nessa emoção do encon-tro, que está promovendo reflexão. Acriança, fruto, talvez, de uma demandanarcísica dos pais, nem sempre é vista porela mesma, e é preciso usar espaçoscomo o que temos aqui para atrair aspessoas, para virem dialogar conosco sobretodas essas questões. Já existem traba-lhos profiláticos, terapêuticos, mas aindaé muito pouco, temos que pôr a mão namassa mesmo e estar abertos e atentospara oferecermos nossa contribuição.

Marta: Gostaria de saber comovocês vêem a construção da identidadeem casos clínicos de filhos que crescemem famílias com identidade de gênero.

Regina: Função materna e fun-ção paterna não necessariamente têm aver com identidade de gênero. Hoje emdia existem uma série de organizaçõesfamiliares onde muitas vezes a mãe exer-ce uma função paterna e o pai, funçãomaterna. O importante é que as duasfunções estejam presentes, pois isso é oque estrutura o núcleo do eu.

Ana Loffredo: Estou gostando decomo a conversa está rolando, porquefico com a impressão de que estamosconseguindo pensar juntas. Está-se fa-lando de palavras densas como identida-de, raízes. A Ana Cristina enfatizou umadenominação territorial que me levou àseguinte questão: formas de traumatis-

mos são excessos da contemporaneida-de, stress, onde as funções paterna oumaterna estão comprometidas. O que meocorreu, então, refere-se ao Instituto ou ànossa Sociedade de Psicanálise, agoraque acabou de acontecer o congresso dePorto Alegre inclusive, em relação a comonos constituímos enquanto território naci-onal. Como podemos denominar o que épróprio em termos de nossas raízes, denossa identidade, eu sou do interior, vocêtambém é do interior. Os territórios foramnomeados. A pergunta que fica é: dealguma forma estamos sendo consisten-tes para que todos tenham territorialização?O que é próprio, neste momento, tantocomo constituição de cidade, brasileira,como na nossa formação como psicana-lista? Quanto levamos a sério essas ques-tões? Quando a gente vai começar a falarportuguês nos congressos?

Débora: É interessante essa ques-tão dos territórios, porque liga com umaquestão de inclusão e exclusão, e isso éuma problemática do Instituto, da cidade,do país e do nosso mundo mental. Mastambém traz algo de fundamental para opsiquismo, que é a singularidade. Na mi-nha clínica, atendo mulheres que nãoconseguem engravidar naturalmente. Essaproblemática é fundamental, porque, seeu não sou como todas as mulheres, eunão sou. Se eu não sou, não existo, que éo problema das favelas, se não existo, souquase transparente, ninguém me vê. Pos-so levar um chute e passo para lá, para ooutro lado da marginal ou não sei onde.

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Só para dar um exemplo pessoal,perdi meu pai muito garota numa épocaem que meus colegas estavam em outrasituação. Eu era a única que tinha essahistória esquisita. Na clínica da infer-tilidade, também há muitas histórias es-quisi tas .

Outro dia fui a um aniversário decriança e havia crianças com quatro ecinco anos. Soube que muitos haviampassado por tratamentos, tinham gême-os, trigêmeos. Pensei: há uns anos aspessoas iam aos Estados Unidos parasolucionar o problema de infertilidade.Hoje muitos de nós têm ou tiveram umcaso de infertilidade no consultório, se-gundos casamentos, pais que são tam-bém avós. Estão surgindo essas questõesdentro dos congressos, isso está maisfreqüente. Nessa medida a contempora-neidade nos leva a repensarmos a própriaclínica.Temos um pensamento que nosnorteia, mas que não nos limita, nem nostira a singularidade.

Leda: Só para complementar essapergunta: Há alguma coisa que nos unecomo psicanalistas. Que seria isso quenos une?

Débora: De meu ponto de vis-ta o que nos une é um desejo depreservar a singularidade de cada umque nos procura. Nós não queremosuniformizar o ser humano. Não que-remos a clonagem psíquica, quere-mos a personalidade individual de cadaum que chega.

Neide: Estava pensando nessaquestão de cada um se identificar com umlugar, uma região determinada. A buscapor uma identificação. Um tempo atrás lisobre o depoimento de um mendigo de ruachamado Sr. Sebastião, numa revista queestava premiando o melhor projeto desolidariedade. Ele era pedreiro, tinha umafirma clandestina, sem regularização. Caiudo alto de um prédio e foi arrastado até aesquina para não comprometer ninguém;levado para um hospital, ninguém foi visitá-lo e ele se deu conta de sua solidão.Quando saiu do hospital, procurou oscompanheiros e não havia mais firma,nem barraco, ninguém. Recuperou-se porum tempo na casa de uma tia que o tinhacriado. E então foi para a rua, comomorador. No retorno ao hospital, o médi-co o chama pelo nome: Sr. Sebastião!Ficou impactado, porque na rua não tinhanome. Pôde recuperar então a lembrançade ter ganhado um prêmio na escola deliteratura. Vai para uma biblioteca e aca-ba lendo Machado de Assis. Começou afazer teatro de rua. O sonho dele é ir aHollywood e contar sua realidade (o so-nho de Hollywood...). Afirma que querver o sorriso na face das pessoas quandofaz teatro de rua, e sente que colaborapara resgatar a dignidade humana.

Nós somos deste país, como diz aDébora, cheio de contradições, divisõesde direitos, paradoxos, mas o importanteé desenvolvermos cada vez mais um olharhumanizador.

Hanna Arendt, em seu trabalhosobre os nazistas, percebeu que os tortu-

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radores não reconheciam como seme-lhante aqueles que eram mandados parafuzilamento e assim justificavam seusatos.

A sociedade apela para a massifi-cação e robotização, enquanto nós, pen-sadores da alma humana, temos a funçãode olhar cada ser e propor a construçãode espaços que promovam o desenvolvi-mento da singularidade.

Débora: Numa prisão todos têm amesma roupa, o mesmo cabelo.

Ana Cristina: Em relação à sin-gularidade penso que, assim como a mu-lher busca na clínica ser mãe, os morado-res dessa favela também estão buscandoalgo, ambos querem se sentir fazendoparte.

Pensando como brasileiro, este éum país com muitas raças, todas as cores,todas as caras, o passaporte mais valiosodo mundo. Precisamos parar de fazer deconta que não é assim. Quando eu brincome referindo aos territórios que fazemparte de São Paulo, é porque consigo vercomo de uma rua para outra muda acidade! Uma das funções do Instituto éfazer aproximações, é fazer com queBoaçava fique mais perto da Leopoldina,e Leopoldina seja mais próximo de outrosbairros. Pois eles lá também não se per-mitem sair dos bolsões, são crianças quenunca saíram do bairro e, quando saem,só conseguem sair como marginais, comopedintes e não como pessoas que têmdireito a transitar pelas ruas. Pode pare-

cer curioso, mas o Parque Villa-Lobostem dois portões, um que é mais próximodo Ceasa e outro que é mais próximo doAlto de Pinheiros. São freqüências total-mente reguladas por onde se entra, e, sea molecada entra e quer ir para outro lado,lógico que não tem placas e ninguém vaibarrar o acesso, mas isso vai ser veicula-do por todo tipo de ação através dosguardas e dos monitores do parque, por-que daquela linha que não se vê, dali nãose passa. Então é serviço de todo brasilei-ro ir rompendo com esses muros invisí-veis. Só quem se propõe ver que códigossão esses é que vai poder saber queexistem. Leva muito tempo.

Estão divulgando agora o nível es-colar do ensino público no Brasil. Háquanto tempo se sabe disso? Quando agente vai se preocupar de verdade, sa-bendo que isso é a causa mais importantede não se saber falar direito? São milha-res de crianças que estão na quinta ousexta série analfabetas. Fazer isso sermais presente no dia-a-dia da gente que ébrasileiro é muito importante. São muitascaras e quem puder falar tem que falar.

Tem que ter espaço para isso aquidentro no Instituto, para podermos conhe-cer os dois lados. É mais fácil achar quehá apenas um jeito de trabalhar. Mas nãoé assim. Adoro fazer consultório, masexiste sofrimento tanto na clínica dainfertilidade como na clínica das mulheresque nunca tiveram esse problema, muitopelo contrário, nascem bebês a cada mi-nuto.

Tem que pôr na roda tudo isso.

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Regina: Estava aqui pensando naquestão da migração.

Como é que ficam as raízes quan-do as pessoas migram? Quando se vaipara outro território, como fica a identida-de? Há uma série de trabalhos interes-santes nesse sentido. Marvin Margolis(2002), didata da Sociedade PsicanalíticaAmericana, relatou, numa reunião com oscandidatos do Instituto de Psicanálise deSão Paulo, que haviam desenvolvido umasérie de trabalhos com a comunidade;esses jovens, em termos de identidade,não se sentiam nem índios nem america-nos, o que desencadeou uma série deepisódios depressivos seguidos por suicí-dios nos adolescentes filhos de emigran-tes indianos.

Lash (1987) tem uma metáforainteressante: “Se jogarem ao mar toda asua herança cultural, o nada toma o lugarda cultura.”. O fato traumático pode to-mar proporções onde a cultura vai para acripta. O sofrimento irrepresentável des-poja a sua própria história como se os seusancestrais nunca tivessem existido.

A questão do território é centralquando nos tornamos analistas pois esta-mos continuamente tecendo nossas fron-teiras.

Ana Loffredo: O Jornal esperaveicular a temperatura dos candidatos,tanto é que estamos fazendo esse debate.

Em relação a essa pergunta, falan-do agora de modo bem objetivo, a forma-ção dos candidatos, especificamente nonosso Instituto, está abarcando essas ques-

tões enquanto estrutura curricular, semi-nários, grupos de estudo? Estamos mer-gulhando para valer nessas questões ouapenas bordejando, como se diz?

Débora: Aqui se faz a formaçãolivremente. Tenho procurado encontrar oque preciso para o trabalho que faço noconsultório, que é complexo, não só atra-vés dos seminários, dos congressos, dasatividades teóricas, mas também das su-pervisões e da própria análise pessoal.Penso ter encontrado um caminho demuita liberdade e tenho com quem com-partilhar e receber material que, efetiva-mente, posso usar. É daquelas roupas quevocê compra e usa. Não aquela roupabárbara que você tem e fica no armário,não usa nunca. Hoje é sábado, estou aqui,está ótimo. Segunda-feira, vou me sentirsatisfeita de ir ao encontro de outraspessoas que possam me completar, numtrabalho que é tão solitário.

Por outro lado, também penso quepodemos mais, sim, ter uma interaçãomaior com a comunidade, com a literatu-ra, com a arte. A psicanálise pura não dáconta. Percebo isso na clínica e sintonecessidade de outros referenciais parapoder dar conta.

Ana Cristina: Quando a Leda mechamou para participar deste debate, per-guntei a ela se não haveria problema,porque eu acabo de me desligar formal-mente do Instituto. Comecei minha for-mação aqui, mas não faço mais parte doquadro do Instituto. Foi importante como

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foi feito o desligamento. Fui entrevistada,queriam saber dos motivos que me leva-ram a fazer essa opção e gostaria deexplicar para vocês, dando meu depoi-mento.

Sempre gostei muito de trabalhar.Fiz anteriormente formação no

Sedes porque não tinha naquela épocacondições de bancar análise didática, jáque o que ganho sempre fez parte doorçamento doméstico. Lá era considera-da uma outsider. Era interessante por-que meu analista e meu supervisor eramda Sociedade, eu mesma participava decongressos, escrevia trabalhos que apre-sentava na Fepal, mas como convidada.Não era do Instituto, mas percorria umcaminho paralelo onde tinha todo um re-lacionamento com as pessoas, mas nãocom a instituição.

Alguns anos atrás pensei que esta-va na hora de vir formalmente para cá.Comecei uma outra análise, pois quandoentrei no Instituto não estava em análise.Mudei de analista depois de um ano emeio de análise didática, uma vez queaquela análise didática não me satisfazia,e comecei análise com um analista quenão era didata.

Leda: O que você fala levantauma questão importante da formação doanalista que será tema de uma série dediscussões aqui em nossa Sociedade.Trata-se da análise do analista. Creio queter que interromper uma análise que estáfuncionando bem para iniciar outra, regu-lada pela instituição, com um didata tão

capaz quanto seu próprio analista é umaingerência na vida das pessoas que que-rem fazer formação. E esta questão me-rece uma ampla discussão.

Ana Cristina: Nem foi uma mu-dança, pois eu vinha de uma análise longaantes de entrar aqui.

Acho que se trata de uma situaçãopessoal, um conjunto de fatores que nãocaminharam a contento; talvez tenha vin-do procurar uma roupa importante de seusar, mas que não me caiu bem ou não mecoube. Análise didática não me satisfa-zia. Os cursos teóricos não acrescenta-vam tanto para quem já tinha estudadoprofundamente Freud. Sentia necessida-de de ter mais discussões de uma clínicasocial. Não me sentia feliz.

Penso que não posso fazer umacrítica com consistência porque talveznão tenha dado o tempo necessário paracompreender, de fato, o que estava acon-tecendo. Mas acho interessante continu-ar discutindo.

Minhas relações com os analistaspermanecem. Fui para outra análise. Fuifazer mestrado em psicanálise com FabioHerrmann e a clínica extensa. Talvezfaça doutorado na USP. Não sei, aindaestou pensando. Vinte anos de clínica, detrabalho, vendo as coisas acontecerem deverdade me fazem sentir na obrigação defalar e de escrever. Não sei bem comonem onde, mas, com certeza, vou encon-trar debates para fazer, lugares para dis-cutir, e, se fizer mais sentido, numa horavolto para cá.

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Acho que precisam acontecer maisdiscussões sobre a amplitude da vocaçãoda psicanálise no Instituto.

Regina: Fico triste com esta notí-cia porque a Sociedade perde com a saídada colega.

Numa das entrevistas que a Roudi-nesco deu quando visitou o Brasil, elamenciona o trabalho do analista em duaspontas, no consultório e na clínica social,algo comum na França, já que a maiorparte dos analistas tem clínica privada esocial. E isso tem uma grande repercus-são na sociedade francesa. Acho queaqui, talvez, esteja começando.

É importante, porque aquilo paraque ela chama atenção na entrevista éque o trabalho social é visto como algo demenos valia. Como se este trabalho nãofosse recolocar a psicanálise dentro domomento atual, da importância que issotem! É fundamental ter esse tipo de troca,e ir abrindo essa possibilidade de práticae de discussão, inclusive na nossa forma-ção.

A Roudinesco, no seu livro, falasobre a perda da verticalidade na famíliae traz a idéia de uma família horizontal. Omodelo que fica é o modelo em rede. Apalavra rede sugere momentos nos quaisse está conectado por períodos de movi-mentação a esmo. Uma rede serve dematriz tanto para conectar quanto paradesconectar. Não é possível imaginá-lasem as duas possibilidades. Lembrei-medo caso de uma moça que estava plugadanuma relação virtual e dizia: “Ah, nem

precisa odiar para desconectar, é só aper-tar a tecla e deletar”. Depois, num outromomento, diz: “Hoje vou sair por aí e voubeijar uma boca”.

Percebo que vêm chegando agora,na clínica, crianças, adolescentes, jovenscom uma linguagem nova e uma comuni-cação que ainda não compreendemos.

Jornal: Numa entrevista a nósconcedida por Marcelo Viñar (JP vol. 38,2005, nº 69, pp. 45-46, 48) em que comen-ta seu trabalho “Subjetividade y mutacióncivilizatoria”, ele assim se posiciona: “Creioque temos que dialogar, ler, pensar juntocom historiadores da contemporaneida-de, com historiadores da sensibilidade.Temos que ler todos que pensam o mundode hoje e suas mudanças... Para quê?Para questionar nossas noções mais bási-cas. Função paterna, ou função simbólicaou função de corte e função materna, oufunção de apoio ou de narcisação têmhoje uma flexibilidade que é distinta dafamília de antes”.

1 — A partir da sua clínica, vocêconcorda com esta afirmação de Viñar?

2 — Que conseqüências podemostirar dessa sua afirmação?

3 — Voltando à formação, comoestas questões vêm sendo tratadas nanossa Sociedade e o que se pode fazer emsentido mais amplo para dar conta denossa ignorância?

Regina: A clínica nos leva a pen-sar, como eu dizia anteriormente, queprecisamos pesquisar e conhecer melhor

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questões de comunicação e linguagemusadas por nossos pacientes. Seria frutí-fero dialogar com antropólogos, sociólo-gos, comunicadores e educadores, profis-sionais que pensam a subjetividade, poisisso possibilitaria a ampliação da compre-ensão de como estas novas formas deexpressão interferem na construção dasnovas representações.

Ana Cristina: Falando de compu-tação, blogs, Msn, relações virtuais, bo-cas, acho que quando temos filho adoles-cente começamos a entender um poucomais essas questões, mas acho importan-te a postura que se assume frente aosnovos relacionamentos humanos e for-mas de comunicação. Como dizia antes, aprincípio não sou contra; são só formasdiferentes e muitas vezes também carre-gam em si possibilidades de encontrosgenuínos.

Um dia fiz uma viagem de ônibusao lado de uma pessoa que não parava defalar. Eu ia de São Paulo para Araçatubae ela já vinha de João Pessoa. Lá porBauru, pensei que não tinha jeito, eramelhor conversar. Soube, então, que elavinha da Paraíba para conhecer umafamília com quem vinha se corresponden-do pela internet e acabaram encontrandouma série de afinidades. Juntou dinheiro,as férias e veio. E, de fato, havia umafamília esperando por ela na rodoviáriaquando chegamos.

Adorei essa entrevista de Viñar.Ele diz que alguém aprende não porquelhe ensinam, mas porque está em atitude

de aprender e eu concordo inteiramente.A gente está aprendendo o tempo todo,basta procurar e não estar bloqueado, nãodeletar a princípio uma relação que estápara acontecer.

Regina: Existe um jogo chamadoSecond life, onde você projeta una vidavirtual. Você escolhe casa, filhos, enfim,monta uma vida onde as pessoas conver-sam entre si pelo computador. Há o relatode um rapaz cuja mulher, com quem eleestá interagindo, está grávida, e ele nemtem a curiosidade de saber quem é estapessoa que participa com tanta intensida-de de sua vida virtual. Ela tem uma vida?É casada? Tem filhos? Poderíamos colo-car a vida real como first life? Querepresentações são essas que vão secriando em termos de vínculo?

São essas pessoas, entre outras,que falam “vou beijar uma boca hoje nabalada” que chegam ao consultório paraconversar.

Leda: Vocês falam de aspectosdiferentes de uma mesma questão.

É muito interessante quando AnaCristina diz: “Ela vem para encontrar umafamília” e a paciente da Regina diz: “Voubeijar uma boca”. Neste segundo caso,não é mais uma pessoa que está dentro deuma organização. É uma boca apenas.

Neide: Apesar deste esfriamentodas relações temos recebido, em nossosconsultórios, pacientes em busca de aco-lhimento. O desprezo aparente por relaci-

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onamentos de intimidade tem ocultado odesejo e a necessidade de construir vín-culos estáveis e profundos. A secretáriaeletrônica nem sempre é aceita. O paci-ente se ressente quando não é pessoal-mente atendido, quer um lugar que lheseja familiar, precisa de escuta.

Estamos observando o desejo daspessoas de encontrar parceiros e as bar-reiras que impedem a construção e con-tinuidade do vínculo. Precisamos mesmojuntar experiências, compartilhá-las, pro-mover encontros para pensarmos sobreos frutos, ora saborosos, ora azedos, denossa época e cultura.

Débora: Alguém falou que somosanalistas com aquilo que a gente é e nãocom o que a gente sabe. Penso querealmente o maior perigo é querer seranalista com o que sabemos. Não sabe-mos nada diante da singularidade de umapessoa que chega para nós!

Tenho a impressão de que estedesamparo e essa dor de não saber sãomuito difíceis para nós como analistas.Por isso, acho que análise pessoal é osegredo do negócio. A análise livre é amelhor escola do analista, por ser o lugarde maior liberdade e também onde a gentepode se desesperar e buscar saídas. Te-mos, sim, que estar contemporâneas e con-versar, não se fechar. Mas penso quevamos levar a vida toda aprendendo. Fazeralguma coisa já é bastante. Penso assim.

Ana Cristina: Acho que vai levara vida toda e as que estão por vir...

Comecei a escrever um texto quefalava de diferenças de linguagens. Pormais que nos imaginemos treinados comoalguém que sabe um pouco, o tempointeiro me vejo na situação de ser surpre-endida, porque falamos de um lugar dis-tante daquilo que imaginávamos.

Tenho experiência de estar entrejovens bem marginais, mesmo, garotos dedezessete, de quinze anos, ligados aotráfico de drogas. Outro dia eu conversa-va com eles sobre minha expectativa devida, de não querer viver muito. Um delesme perguntou: “Ô Ana, quantos anosvocê tem?” “Quarenta e um”, respondi.Ele disse: “Já era...”. Naquela hora, pormais que eu, com mais de dez anos deconvívio entre garotos onde a expectativade vida já é baixa, tenha me surpreendido,acreditei que podia abarcar o conheci-mento que estava tendo diante do mundo.

Recentemente vivi outra situaçãopatética.

Lá na instituição, alguns casos po-dem vir a ser encaminhados para psicote-rapia. Uma terapeuta me telefonou avi-sando que ia se atrasar para o atendimen-to e pediu para eu avisar o garoto. Che-guei para ele e disse: “Tua terapeuta ligoue disse que está presa no trânsito”. Elenem me deixou acabar de falar e sedesesperou, gritando: “Não! Ela, não!!!Presa....”.

Neide: Falávamos do desamparodo analista e de sua capacidade negativaem relação ao saber. Nosso encontroaqui, hoje, me parece interessante como

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Debate — A família em (des)ordem

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 23-45, jun. 2007. 43

um bom objeto para nós analistas —mesmo que tenham sido levantadas ques-tões para que nem de longe tenhamosarranhado respostas, mas levantaram-sealgumas poeiras e incômodos que prova-velmente nos desinstalem da posição deplatéia para ocuparmos nossa posição notime que promove o pensar. Em algumsentido, de alguma maneira cumprimos afunção para a qual fomos convocados,pois tivemos oportunidade de nos nutrirdas experiências e da riqueza do encontropara novas reflexões e propostas.

Leda: Há muitos anos tive oportu-nidade de receber um menininho cujoatendimento me ocorre agora.

O garoto tinha seis anos e sua mãeme conta que seu nome ia mudar. Elahavia sido casada com um homem bemmais velho e, enquanto ainda estava comele, engravidou de um antigo namorado.Mesmo sabendo que o filho não era dele,pois nem transavam mais, este homemregistrou-o como tal, até porque, na posi-ção que tinha, não poderia jamais ser filhode outro. O garotinho foi crescendo evirando a cara do pai biológico. Foi naépoca em que começaram a surgir osexames de DNA. O pai biológico, seantes não queria saber do filho, agorapassa a exigir um exame e a paternidadedo menino. Então, o garoto, que estavainclusive sendo alfabetizado, que tinha umnome alemão e passava as férias naEuropa com familiares daquele homemque já nem era mais marido da mãe, teveque mudar de nome.

Na primeira vez que nos vimos,este garoto, que não estava entendendonada, fez um desenho: uma árvore quetinha abacaxi, uva, limão, banana. Acheimuito interessante.

É um caso que aponta para o queestamos falando aqui, hoje.

Regina: Temos uma idéia de or-dem, quanto à formação familiar, comdiferenças de gerações, de sexos, de paise filhos. Temos internalizado um modelode família vertical. O que percebemos, naatualidade, é que a característica — seráque é desordem? — mudou. Os modelosse ampliaram, há uma diversidade deformas.

Agora falamos do casamento se-qüencial ou segundo casamento. Há umpai com quem a criança mora e o paibiológico. Há a mulher do pai... Ainda nãoforam cunhadas no vocabulário palavrasque nomeiam os novos integrantes dogrupo familiar que estão surgindo a partirdos recasamentos. Por exemplo, para sereferir à madrasta, os filhos do pai falam“a mulher do meu pai”. Da mesma forma,os filhos da mulher falam “o marido daminha mãe”. Essa é uma forma significa-tiva de nomeá-los: é como se a relação sótivesse a ver com o pai ou a mãe, e nadaa ver com eles enquanto filhos.

Beatriz: Fico pensando assim: acriança tem um monte de avós mas aomesmo tempo não tem. Acaba não tecen-do a história, não tendo a narrativa. E éisso que vai dar um sentido.

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Ana Cristina C. Camargo, Débora Seibel, Neide Aparecida S. Aoki e Regina Maria Rahmi

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 23-45, jun. 2007.44

Noutro dia estava ouvindo sobrediferentes orfandades, conforme a narra-tiva. É muito diferente um orfanato ondeas crianças são filhas de heróis de guerraque morreram e dos quais se orgulham eum orfanato em que todos têm vergonhade onde vieram, do pai preso, ou desco-nhecido morto.

O orgulho das próprias origens é olado positivo das questões narcísicas, so-bre as quais precisamos pensar.

Débora: Para complementar oque a Bia falou: essas mulheres quetêm filhos através de óvulos doados,por exemplo, na maioria preferem osegredo, talvez porque se envergonhemda própria biografia. O dia em que agente, como sociedade ou como analis-ta, for legitimando que não é feio, quesomente pôde ser desse jeito, não égrave nem louco, então vai haver lugarpara o segredo vir à luz e ser publicadoassim. O segredo é também decorrenteda cultura.

Regina: Falando de biografia, essafigura do avô também mudou. A casa daavó era o lugar das histórias familiaresque se teciam e iam ajudando a criança aconstituir a identidade mais ampla, ou darede familiar, os almoços de família. Issotambém está mudando.

Neide: Estava me lembrando deBion, quando nos alerta que a verdade épara a mente o que o alimento é para ocorpo, salientando a importância de se ter

uma história e enriquecê-la com as expe-riências, aprendendo com elas...

A função do analista está justamen-te no comprometimento com a verdade.Quando as ilusões e invenções tomam olugar da verdade, o indivíduo se vê aprisio-nado. Então, como Freud nos sugere, temosque trabalhar na escultura muito mais doque na pintura, ajudando nossos pacientes ase livrarem dos excessos, inclusivetransgeracionais, que carregam.

Como analistas, temos que estar otempo todo lembrando que a verdade é oque liberta, e assegurar esse espaço deinterioridade para que a ilusão e o artifícionão a substituam, apenas complementem.

Ana Cristina: Acho que a verda-de é a verdade do tempo, como a Déborafalou. Na hora em que se puder ver averdade, que aquela mãe é mãe destejeito, o tempo a legitima.

Estamos vivendo um tempo inter-mediário, somos parte dessa estruturaonde as relações são verticais. Quandofalamos do garoto que precisa ser acom-panhado até a porta da escola é porqueele vai aprender com os adultos. Isso nãose faz em relações horizontais, que care-cem de hierarquia, atemporais. As cons-truções são verticais.

Leda: Isso destrói a capacidadede construção da criança.

Ana Cristina: Temos de dizer quea criança vai entender isso quando formãe, ou avó. Isso é muito verdadeiro.

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Debate — A família em (des)ordem

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 23-45, jun. 2007. 45

Existem coisas que passam a serpossíveis com o passar do tempo e issonão pode ser apressado. Existe “entea-do”, mas não existe nome de mãe cujofilho não veio dela. Vai existir, sim. Vai ternome essa mãe que gera através do óvulodoado. Vai haver o tempo para essascoisas, mas a gente não tem a menornoção de quando vai chegar.

Jornal: Chegamos ao final de nos-so debate, que foi bem rico, e em nome doJornal, agradecemos novamente a todospela participação.