maurice leblanc - o buraco da agulha

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Maurice LeblancA agulha ocaTtulo do original: "L'aiguille creuse" Copyright Claude Leblanc, 1974

Traduo de Maria Cesrio Alvim

CRCULO DO LIVRO S.A.Caixa postal 7413 So Paulo, BrasilEdio integral

Licena editorial para o Crculo do Livro por cortesia da Editora Nova Fronteira S.A.

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Um O tiroRaymonde apurou o ouvido. Novamente, e por duas vezes, o rudo soou bastante ntido para que se pudesse destac-lo de todos os sons confusos que constituam o grande silncio noturno, mas to fraco que ela no saberia dizer se era perto ou longe, se provinha dos muros do vasto castelo ou de fora, entre os recantos tenebrosos do parque. Levantou-se devagarinho. A janela estava entreaberta e ela afastou os batentes. O luar repousava sobre calma paisagem de gramados e pequenos bosques, onde as runas esparsas da antiga abadia se recortavam em trgicas silhuetas, colunas truncadas, ogivas incompletas, esboos de prticos e destroos de arcadas. Uma ligeira brisa deslizava sobre as coisas, insinuando-se atravs dos galhos nus e imveis, mas agitando as pequenas folhas das moitas. Sbito, o mesmo rudo. Era sua esquerda e abaixo do andar que habitava, nos sales da ala ocidental do castelo. Embora forte e corajosa, a jovem sentiu a angstia do medo. Vestiu o robe e pegou uma caixa de fsforos. Raymonde... Raymonde... Uma voz, abafada como um sopro, chamava do quarto vizinho, cuja porta no havia sido fechada. Ela se encaminhava tateando para l, quando Suzanne, sua prima, saiu daquele quarto e atirou-se em seus braos. Raymonde, voc? Voc ouviu?... Sim... Voc no estava dormindo? Acho que foi o cachorro que me acordou... faz tempo... mas ele no est mais latindo. Que horas so? Quatro, mais ou menos. Escute... H algum andando no salo. No tem perigo. Seu pai est l, Suzanne. Mas perigoso para ele. Papai dorme ao lado da saleta. M. Daval tambm est l... Do outro lado do castelo... como que voc quer que ele oua? As duas estavam indecisas, sem saber o que fazer. Chamar? Pedir socorro? No ousavam, pois at mesmo o som de suas vozes lhes parecia

amedrontador. Suzanne, que se aproximara da janela, logo abafou um grito: Olhe... um homem perto do lago! Um vulto se afastava a passos largos. Carregava debaixo do brao um objeto bastante grande que elas no puderam distinguir e que, batendo-lhe nas pernas, dificultava-lhe o andar. Elas o viram passar perto da antiga capela e dirigir-se para a portinhola do muro. Ela devia estar aberta, pois o homem desapareceu sem que se ouvisse o rangido habitual dos gonzos. Ele vinha do salo murmurou Suzanne. No, a escada do vestbulo o teria conduzido bem mais para a esquerda... A no ser que... Uma idia ocorreu a ambas ao mesmo tempo. Debruaram-se. Abaixo da janela, uma escada erguida contra a fachada se apoiava parede do primeiro andar. Uma luz iluminou o balco de pedra. Outro homem, carregando tambm alguma coisa, pulou o balco e deixou-se escorregar escada abaixo, fugindo pelo mesmo caminho. Suzanne, apavorada, sem foras, caiu de joelhos, balbuciando: Vamos gritar! Pedir socorro!... E quem vir? Seu pai... E se houver outros homens e o atacarem? Poderamos chamar os criados. Sua campainha comunica com o andar deles. Sim... sim... talvez seja uma boa idia. Tomara que cheguem a tempo. Raymonde procurou o boto da campainha perto da cama e apertou. Um timbre metlico e alto vibrou, e elas tiveram a impresso de que, no andar de baixo, o som devia ter sido ouvido nitidamente. Esperaram. O silncio tornava-se angustiante, e nem mesmo a brisa agitava mais as folhas dos arbustos. Estou com medo... estou com medo... repetia Suzanne. De repente, abaixo delas, o barulho de uma luta. Um estrpito, mveis tombados, exclamaes e... de modo horrvel, sinistro, um gemido rouco, o estertor de algum sendo estrangulado. Raymonde correu para a porta. Suzanne agarrou-se desesperadamente a seu brao. No... no me deixe... tenho medo... Raymonde empurrou-a e precipitou-se para o corredor, logo seguida por Suzanne, que cambaleava de uma parede a outra aos gritos. Raymonde desceu a escada s pressas, lanou-se em direo grande porta do salo e parou estarrecida, enquanto Suzanne se detinha a seu lado. Diante delas estava um homem com uma lanterna na mo. Apontou-a para as moas, cegando-as com o facho de luz. Olhou-as longamente e, sem pressa, tranqilamente, pegou o bon, apanhou um pedao de papel e dois fiapos de

palha, apagou alguns vestgios sobre o tapete, aproximou-se do balco, voltou-se para as moas, fez uma reverncia e desapareceu. Suzanne foi a primeira a correr para o quarto de vestir que separava o grande salo do quarto de seu pai. Mas, logo na entrada, um quadro horrvel a paralisou. luz da lua viam-se dois corpos, cados um ao lado do outro. Pai!... Papai!... voc?... O que houve? gritou fora de si. Depois de alguns instantes o Conde de Gesvres se mexeu. Com voz alquebrada, murmurou: No se assuste... no estou ferido... E Daval?... Est vivo?... A faca... A faca... Nesse momento dois criados chegaram com velas. Raymonde curvou-se sobre o outro corpo e reconheceu Jean Daval, secretrio e homem de confiana do conde. Seu rosto j tinha a palidez da morte. Raymonde ento se ergueu, voltou ao salo, tirou de uma panplia que havia na parede uma espingarda que sabia estar carregada e foi para o balco. No fazia mais de cinqenta ou sessenta segundos que o estranho havia colocado o p no primeiro degrau da escada. Logo, ele no poderia estar longe, ainda mais que tivera a precauo de tirar a escada, para evitar que o perseguissem. Raymonde logo o avistou junto s runas do antigo claustro. Levantou a arma, fez pontaria e atirou. O homem tombou. Perfeito! Perfeito! gritou um dos criados. Esse j agarramos. Vou at l. No, Victor, ele est se levantando. Desa a escadaria e corra para a portinhola. Ele pode escapar por l. Victor apressou-se, mas antes que chegassem ao parque o homem caiu novamente. Raymonde chamou o outro criado. Albert, voc o est vendo?... L perto da grande arcada? Sim, ele est se arrastando na grama. Est perdido. Fique vigiando daqui. No tem jeito de escapar. direita das runas campo aberto. E Victor est guardando a portinhola, esquerda disse ela, empunhando de novo a espingarda. No v l, senhorita! Vou, sim insistiu ela com voz decidida e gestos bruscos. Deixeme. Ainda me resta um cartucho. Se ele se mover... Um instante depois, Albert viu-a dirigindo-se para as runas. Gritou da janela: Ele est se arrastando para trs da arcada!... No o vejo mais!... Cuidado, senhorita!... Raymonde fez a volta ao claustro para impedir a retirada do homem e

Albert a perdeu de vista. Passados alguns minutos, no a vendo de volta, inquietou-se. Continuando a vigiar as runas, procurou ento descer, no pela escada do castelo, mas pela utilizada pelos ladres. Quando conseguiu, desceu rapidamente e correu direto para o local onde o homem fora visto pela ltima vez. A trinta passos de l encontrou Raymonde, que procurava Victor. Que houve? perguntou Albert. No consigo encontr-lo respondeu Victor. E a portinhola? Estou vindo de l, olhe aqui a chave. Mas no possvel!... Ora, no se preocupe. Daqui a dez minutos ele estar em nossas mos. O granjeiro e seu filho, acordados pelo tiro, chegavam de sua casa, que se erguia ao longe, direita, mas dentro da rea murada do castelo. Tambm eles no haviam encontrado ningum no caminho. Diabo! exclamou Albert. O miservel no pode ter sado das runas. Vamos desencav-lo do fundo de algum buraco. Organizaram uma minuciosa batida, moita por moita, afastando pesadas cortinas de hera que se enrolavam em torno das colunas. Certificaram-se de que a capela estava trancada e de que nenhum de seus vitrais fora quebrado. Contornaram o claustro, visitaram todos os cantos e recantos do parque, mas tudo em vo. Uma nica descoberta: no local onde o homem cara ferido por Raymonde encontraram um bon de cocheiro, de couro amarelado. Fora isso, nada.

s seis da manh, a polcia de Ouville-la-Rivire j havia sido informada e rumava para o local, depois de enviar, atravs de portador, uma pequena nota ao tribunal de Dieppe, relatando as circunstncias do crime e a iminente captura do principal culpado, alm da "descoberta de seu bon e do punhal com que perpetrou o crime". s dez horas, duas carruagens desciam a leve encosta que dava acesso ao castelo. Uma delas, venervel e antiga calea, levava o substituto do procurador e o juiz de instruo, acompanhado do escrivo. A outra, modesto cabriol, acomodava dois jovens reprteres, representando o Journal de Rouen e uma grande folha parisiense. O velho castelo surgiu. Antiga morada abacial dos priores de Ambrumsy, mutilado pela Revoluo, restaurado pelo Conde de Gesvres, a

quem pertencia h vinte anos, compunha-se de um corpo principal encimado por uma torre, na qual havia um grande relgio, e duas alas envoltas em escadarias e balastres de pedra. Por cima dos muros do parque e alm do planalto, sustado pelos elevados rochedos normandos, avistava-se, por entre os vilarejos de Sainte-Marguerite e Varengeville, a silhueta do mar. Ali vivia o Conde de Gesvres com sua filha Suzanne, bela e frgil criatura de cabelos loiros, e sua sobrinha Raymonde de Saint-Vran, adotada por ele dois anos aps a morte dos pais. A vida era calma e rotineira no castelo. Alguns vizinhos os visitavam de vez em quando. Durante o vero, o conde levava as jovens quase diariamente a Dieppe. Ele era um homem alto, de bela e grave aparncia, cabelos grisalhos. Muito rico, gerenciava sua prpria fortuna e cuidava de suas propriedades auxiliado por seu secretrio Jean Daval. Logo na entrada o juiz ouviu as primeiras informaes do sargento de polcia Quevillon. A captura do culpado, sempre iminente, ainda no havia sido efetuada, mas todas as sadas do parque estavam vigiadas. Uma fuga era impossvel. O grupo atravessou em seguida a sala capitular e o refeitrio, subindo ento ao primeiro andar. Notou-se logo que a ordem no salo era perfeita. Nem um mvel, nem um bibel estavam fora do lugar. Nas paredes laterais do salo pendiam duas magnficas tapearias flamengas. Ao fundo, contra os painis, quatro belssimas telas em molduras antigas representavam cenas mitolgicas. Eram os clebres quadros de Rubens, legados ao Conde de Gesvres, bem como as tapearias de Flandres, por seu tio materno, o fidalgo espanhol Marqus de Bobadilla. O juiz, M. Filleul, observou: Se o motivo do crime foi roubo, este salo, em todo caso, no foi visado. Quem sabe? observou o substituto, que falava pouco, mas sempre em contradio ao juiz. Ora, meu caro senhor, a primeira providncia de um ladro seria retirar estes quadros e estas tapearias mundialmente famosos. Talvez ele no tenha tido oportunidade. o que iremos descobrir.

Nesse momento o Conde de Gesvres entrou seguido do mdico. O conde, que no parecia ressentir-se da agresso sofrida, deu as boas-vindas aos dois magistrados e, em seguida, abriu a porta do quarto de vestir. A pea, onde ningum havia penetrado depois do crime, a no ser o

mdico, apresentava, contrariamente ao salo, a maior das desordens. Duas cadeiras estavam cadas, uma das mesas quebrada e vrios outros objetos um relgio de cabeceira, um classificador, uma caixa de papel de cartas jogados pelo cho. E havia sangue em algumas folhas de papel, espalhadas. O mdico suspendeu o lenol que cobria o cadver. Jean Daval, vestido com sua roupa comum de veludo e calado com botinas ferradas, estava estendido de costas, com um dos braos dobrados sob o corpo. Sua camisa havia sido aberta, permitindo a viso do grande ferimento que lhe rasgara o peito. A morte deve ter sido instantnea disse o mdico. Uma facada foi suficiente. Certamente com a faca que vi sobre a lareira do salo, ao lado de um bon de couro, no? perguntou o juiz. Sim declarou o Conde de Gesvres. A faca foi apanhada aqui mesmo. Foi tirada da panplia do salo, de onde minha sobrinha, Mlle de Saint-Vran, retirou a espingarda. Quanto ao bon de cocheiro, evidentemente o do assassino. M. Filleul estudou, ainda, certos detalhes do local, fez algumas perguntas ao mdico, depois pediu ao conde que lhe fizesse um relato minucioso do que havia visto e sabia. Foi Jean Daval quem me acordou iniciou o conde. Alis, eu dormia mal, com instantes de lucidez, durante os quais tinha a impresso de ouvir passos. De repente abri os olhos e vi M. Daval aos ps da minha cama, com uma vela na mo e vestido como est, pois ele trabalhava freqentemente at tarde da noite. Parecia muito agitado e me disse em voz baixa: "H pessoas no salo". Realmente, eu ouvia um barulho. Levantei-me e entreabri silenciosamente a porta deste quarto de vestir. No mesmo instante, essa outra porta que d para o salo foi empurrada e um homem saltou sobre mim, acertando-me um soco na tmpora. Conto-lhe isso sem maiores detalhes, senhor juiz, porque s consigo lembrar-me dos fatos principais, j que tudo se passou com extrema rapidez. E depois? Depois... no sei mais... perdi os sentidos. Quando me recuperei, Daval estava cado, mortalmente ferido. O senhor suspeita de algum? No... ningum. O senhor tem inimigos? No, que eu saiba. M. Daval por acaso os tinha? Daval? Um inimigo? Ele era a melhor das criaturas. H vinte anos

que era meu secretrio e, posso dizer mesmo, meu confidente, e jamais vi em torno dele seno amizade e simpatia. No entanto, houve uma invaso de domiclio e um assassinato disse o juiz. Tem que haver um motivo para tudo isso. Um motivo? Mas foi o furto, pura e simplesmente. Roubaram-lhe ento alguma coisa? Nada. E ento? Ento, se aparentemente nada foi roubado e se no falta nada, alguma coisa deve ter sido levada. O qu? Ignoro. Mas minha filha e minha sobrinha lhe diro, com segurana, qu viram dois homens, sucessivamente, atravessar o parque carregando fardos bastante volumosos. Essas senhoritas... ...sonharam? Eu estaria tentado a acreditar nisso, pois desde cedo canso-me em buscas e suposies. Mas fcil interrog-las. As duas primas foram chamadas ao salo. Suzanne, ainda plida e trmula, mal conseguia falar. Raymonde, mais enrgica e corajosa, e tambm mais bonita, com um brilho dourado em seus olhos castanhos, contou o que vira e o papel que desempenhara. De modo que, senhorita, seu depoimento categrico? Totalmente. Os dois homens que vimos atravessando o parque carregavam objetos. E o terceiro? Saiu de mos vazias. Poderia descrev-lo? Ele nos cegou o tempo todo com sua lanterna. Poderia, no mximo, dizer que seu aspecto era grande e pesado. Tambm lhe pareceu assim, senhorita? perguntou o juiz a Suzanne de Gesvres. Sim... ou melhor, no... eu o achei de altura mdia e magro. M. Filleul sorriu, j habituado s divergncias de opinio e viso por parte das testemunhas de um mesmo fato. Temos, ento, por um lado, um indivduo que ao mesmo tempo alto e baixo, magro e gordo e, por outro, dois homens acusados de haverem retirado deste salo objetos... que ainda aqui se encontram. M. Filleul era um juiz da escola ironista, como ele mesmo dizia. Era tambm um juiz que no detestava platias, nem ocasies de mostrar ao pblico suas habilidades, como bem o demonstrava o nmero crescente de

pessoas que se acotovelavam no salo. Aos jornalistas se haviam juntado o granjeiro e seu filho, o jardineiro e sua mulher, a criadagem do castelo e os dois cocheiros que haviam conduzido as carruagens desde Dieppe. Temos que chegar a um acordo a respeito da maneira pela qual desapareceu essa terceira personagem. A senhorita atirou com esta espingarda e desta janela? voltou a perguntar o juiz de instruo. Sim. Ele estava prximo tumba, escondido entre os arbustos, esquerda do claustro. Mas ele se levantou? Tentou, apenas. Victor desceu logo para vigiar a portinhola e eu o segui. Albert ficou aqui para observar. Albert, por sua vez, prestou depoimento e o juiz concluiu: Bem... Conforme o senhor disse, o ferido no poderia fugir pela esquerda, j que seu colega vigiava a porta, nem pela direita, pois o senhor o teria visto atravessar o gramado. Ento, pela lgica, ele deve estar agora no espao relativamente restrito que temos sob os nossos olhos. a minha opinio. tambm a sua, senhorita? Sim respondeu Raymonde. E a minha tambm disse Victor. O substituto do procurador exclamou em tom irnico: O campo de investigaes pequeno. S o que temos a fazer continuar as buscas iniciadas h quatro horas. Talvez tenhamos mais sorte. M. Filleul apanhou ento sobre a lareira o bon de couro, examinou-o e, chamando parte o sargento de polcia, disse-lhe: Mande imediatamente um de seus homens chapelaria de M. Maigret, em Dieppe, e pea-lhe que nos informe, se possvel, a quem foi vendido este bon. O campo de investigaes, como dissera o substituto do procurador, limitava-se ao espao compreendido entre o castelo, o gramado da direita, o ngulo formado pelo muro da esquerda e pelo muro oposto ao castelo, isto , um quadriltero de, aproximadamente, cem metros de lado, onde surgiam, aqui e ali, as runas de Ambrumsy, o clebre mosteiro da Idade Mdia. Logo, na grama pisada, notou-se a passagem do fugitivo. Em dois locais havia vestgios de sangue escurecido, quase seco. Depois da curva da arcada que marcava a extremidade do claustro, no havia mais nada. E a natureza do solo, atapetado de agulhas de pinheiro, no ajudava a encontrar as marcas de um corpo. Como, ento, o ferido havia conseguido escapar aos olhos da jovem, de Victor e de Albert? Algumas touceiras tinham sido revistadas

pelos criados do castelo e pelos policiais, assim como reviradas algumas pedras tumulares. O juiz mandou ento abrir as portas da capela, e o jardineiro, que possua a chave, logo obedeceu. A Chapelle-Dieu era uma verdadeira jia de escultura que o tempo e as revolues haviam respeitado, e que sempre fora admirada, pelo fino cinzelado de seu prtico e pela delicadeza de suas estatuetas, como uma das maravilhas do estilo gtico normando. A capela, pela simplicidade de seu interior, sem outro ornamento a no ser o altar de mrmore, no oferecia o menor esconderijo. Alis, primeiro seria preciso entrar nela. Mas como faz-lo? As investigaes levaram as autoridades portinhola que servia de entrada s pessoas que iam visitar as runas. Ela se abria para um caminho escavado que se apertava entre o muro do castelo e um bosque, onde se avistavam algumas pedreiras abandonadas. M. Filleul abaixou-se. No cho havia marcas de pneus antiderrapantes. De fato, Raymonde e Victor pensavam ter ouvido, aps o tiro, o ronco do motor de um carro. Talvez o ferido tenha ido juntar-se a seus cmplices insinuou o juiz. Impossvel! exclamou Victor. Eu j estava junto porta, enquanto a senhorita e Albert ainda o avistavam. Enfim, ele tem que estar em algum lugar! Ou fora ou dentro. Ele est por aqui afirmaram os criados, obstinadamente. O juiz deu de ombros e voltou para o castelo, aborrecido. Decididamente o caso comeava mal. Um roubo em que nada fora roubado, um prisioneiro invisvel... as coisas no iam nada bem.

J era tarde. O Conde de Gesvres convidou ento os magistrados e os dois jornalistas para almoar. Comeram silenciosamente, aps o que M. Filleul voltou para o salo e interrogou os criados. Ouviu-se o trote de um cavalo do lado do ptio e, instantes depois, o guarda que havia sido mandado a Dieppe entrou. Ento, esteve com o chapeleiro? perguntou o juiz, impaciente por obter afinal uma informao. O bon foi vendido a um cocheiro. Um cocheiro! Sim, um cocheiro que parou sua carruagem diante da loja e pediu um bon de couro amarelo para um de seus fregueses. Restava apenas esse a. O homem pegou-o sem nem mesmo se preocupar com o tamanho e partiu.

Estava muito apressado. Qual era o tipo da carruagem? Dessas de quatro lugares. E em que dia foi isso? Dia? Foi hoje de manh! Hoje de manh? O que que voc est me dizendo? O bon foi comprado esta manh. Mas isso impossvel! Ele foi encontrado esta noite no parque! Para isso seria preciso que ele estivesse l e, logicamente, que tivesse sido comprado antes. O chapeleiro me disse que foi esta manh. Houve um momento de assombro. O juiz, estupefato, tentava compreender. Sbito, estremeceu, atinando com uma idia luminosa. Tragam o cocheiro que nos conduziu esta manh. O sargento de polcia e um seu subordinado correram para o lado das cavalarias. Instantes depois o sargento voltou s. E o cocheiro? Ele almoou na cozinha e depois... Depois... ? Foi embora. Com a carruagem? No. Com o pretexto de visitar parentes em Ouville, pediu emprestada a bicicleta do ajudante de cavalaria. Deixou o chapu e o casaco. E saiu com a cabea descoberta? No. Tirou do bolso um bon e o colocou. Um bon? Sim, de couro amarelado, me parece. De couro amarelado? No possvel, ele est aqui! De fato, senhor juiz, mas o dele era igual. O substituto do procurador deu um risinho. Muito engraado. Muito divertido. H dois bons... um, que era o verdadeiro e que constitua a nossa nica prova material, foi embora na cabea do falso cocheiro. O outro est em suas mos. No h dvida... o homenzinho nos enganou mesmo. Alcancem-no! Tragam-no de volta! gritou M. Filleul. Sargento Quevillon, mande dois de seus homens atrs dele, a todo galope! Ele j vai longe observou o substituto do procurador. Por mais longe que esteja, temos de agarr-lo. Espero que sim, senhor juiz, mas creio que nossos esforos devem

concentrar-se mais aqui. Veja este papel que acabo de encontrar no bolso do casaco. Que casaco? O do cocheiro. E o substituto do procurador passou a M. Filleul um papel dobrado em quatro, onde se liam algumas palavras escritas a lpis, numa caligrafia um tanto vulgar: "Ai da senhorita, se tiver matado o chefe". O incidente causou certa emoo. Para um bom entendedor meia palavra basta. Estamos avisados murmurou o substituto. Senhor conde falou o juiz , peo-lhe que no se preocupe. Nem as senhoritas. Esta ameaa no tem a menor importncia, j que a justia est presente. Todas as precaues sero tomadas. Eu respondo pela segurana de todos. Quanto aos senhores acrescentou, virando-se para os reprteres , conto com sua discrio. graas minha complacncia que participam desta investigao, e seria recompensar mal... Interrompeu-se, como se lhe tivesse ocorrido alguma idia, olhou atentamente para cada um dos dois jovens e aproximou-se de um deles: Para que jornal voc trabalha? Para o Journal de Rouen. Tem a algum documento que prove isso? Sim, aqui est. O documento estava em ordem, e o juiz interpelou o outro reprter: E voc? Eu? Sim, voc. Estou perguntando a que jornal pertence. Ora, senhor juiz, eu escrevo para vrios jornais. Alguma identificao? No, no tenho. E por que no? Bem, para que um jornal nos d uma carteira, temos que trabalhar nele continuamente. E qual o seu caso? Sou apenas um colaborador. Distribuo para uns e outros artigos que so publicados ou recusados, conforme as circunstncias. Nesse caso, seu nome... seus documentos. Meu nome no ajudaria em nada. Quanto aos documentos, no os

tenho. Voc no tem nenhum documento que prove sua profisso? Eu no tenho profisso. Mas, afinal exclamou o juiz bruscamente , voc no est pretendendo permanecer incgnito, depois de haver entrado aqui usando um ardil e surpreendido os segredos da justia. Gostaria de lembrar-lhe, senhor juiz, que nada me foi perguntado quando cheguei e, conseqentemente, nada tinha a esclarecer. Alm disso, no me pareceu que o interrogatrio tenha sido secreto, j que todo o mundo assistiu a ele... inclusive um dos culpados. O rapaz falava com tranqilidade, de forma extremamente educada. Era muito jovem, alto e magro, vestido com uma cala curta demais e um casaco apertado. Tinha o rosto rosado, a testa larga, cabelos cortados escovinha e uma barba loura e mal aparada. Seus olhos tinham um brilho inteligente. No parecia nada embaraado e sorria de modo simptico, sem o menor trao de ironia. M. Filleul o observava desconfiado. Dois guardas se aproximaram. O rapaz exclamou: Senhor juiz, pelo visto desconfia que eu seja um dos cmplices. Mas, se assim fosse, acha que eu no teria escapado a tempo, conforme fez o meu "colega"? Voc poderia esperar... Qualquer espera seria absurda. O senhor h de convir que, pela lgica... O juiz encarou-o, e disse secamente: Chega de brincadeiras. Seu nome? Isidore Beautrelet. Profisso? Estudante de retrica no Liceu Janson-de-Sailly. M. Filleul olhou-o espantado. Que est dizendo? Aluno de retrica... No Liceu Janson-de-Sailly, Rue de la Pompe, nmero... Ah! Voc ento est pretendendo divertir-se s minhas custas! Vamos acabar com essa brincadeira! Confesso, senhor, que sua surpresa me espanta. O que h de mais em ser aluno do Liceu Janson? Minha barba, talvez? No se incomode, ela falsa. Isidore Beautrelet arrancou a penugem que ornava seu queixo, e o rosto imberbe apareceu, ainda mais jovem, mais rosado, um verdadeiro rosto de colegial. E perguntou, enquanto um riso de criana descobria seus dentes

brancos: E agora, est convencido? Precisa de mais provas? Veja estas cartas de meu pai... o endereo: "M. Isidore Beautrelet, Internato Liceu Janson-deSailly". Convencido ou no, M. Filleul no parecia estar gostando nada da histria. Perguntou, num tom mal-humorado: E que est voc fazendo aqui? Estou me instruindo. Para isso existem colgios... O seu, por exemplo. O senhor esquece, senhor juiz, que hoje dia 23 de abril e estamos em frias de Pscoa. E da? Da, tomei a liberdade de usar essas frias minha maneira... E seu pai? Meu pai mora longe, no interior da Savia. Foi ele mesmo quem me aconselhou a fazer uma viagenzinha pelas costas da Mancha. Com uma barba postia? Ah, isso no! A idia da barba foi minha. No liceu conversamos muito sobre aventuras misteriosas, lemos romances policiais, onde sempre h disfarces. Imaginamos uma poro de coisas complicadas e terrveis. Ento quis me divertir e coloquei a barba. Alm disso tinha a vantagem de ser levado a srio, e assim me fiz passar por reprter. Ontem tarde, aps uma semana insignificante, tive o prazer de conhecer o meu colega de Rouen. Esta manh, quando tomei conhecimento do caso de Ambrumsy, ele me props acompanh-lo, dividindo as despesas. Isidore Beautrelet falava com simplicidade, franca e ingenuamente, com um encanto ao qual era difcil escapar. M. Filleul, apesar de manter uma reserva cautelosa, divertia-se em escut-lo. Perguntou em tom menos severo: E voc est satisfeito com sua aventura? Encantado! Eu nunca havia assistido a um caso deste gnero, e a este aqui nada falta. Nem as tais complicaes misteriosas de que voc tanto gosta. E que so apaixonantes, senhor juiz! No conheo maior emoo do que observar os fatos virem luz, agrupando-se uns sobre os outros e formando, aos poucos, a verdade provvel. A verdade provvel... Voc est se adiantando muito, meu rapaz. A no ser que j tenha sua soluozinha para o enigma. Oh, no! disse rindo Beautrelet. Apenas... me parece que existem certos pontos sobre os quais no impossvel se formar uma opinio e outros, to precisos, que bastaria apenas... concluir-se.

Oh! Mas isso est comeando a ficar interessante! Finalmente vou saber alguma coisa. Porque confesso, com grande vergonha, que no sei nada. que o senhor ainda no teve tempo de refletir. to raro que os fatos no tragam em si sua prpria explicao! O senhor no concorda? Em todo caso, no constatei outros fatos, a no ser os apurados no interrogatrio. Que timo! E se eu lhe perguntasse quais foram os objetos roubados deste salo, o que responderia? Que sei quais so. Bravos! Voc sabe mais a respeito que o prprio dono! M. de Gesvres acha que tudo est no lugar; j M. Beautrelet diz que no. Faltam uma estante e uma esttua em tamanho natural que ningum percebeu antes. E se eu lhe perguntasse o nome do assassino? Responderia, igualmente, que j sei. Todos se sob ressaltaram. O substituto do procurador e o outro reprter se aproximaram. O Conde de Gesvres e as moas escutavam, atentamente, impressionados pela segurana de Beautrelet. O senhor sabe quem o assassino? Sei. E tambm o lugar onde ele se encontra? Sim. M. Filleul esfregava as mos. Que sorte! Essa captura ser a glria da minha carreira. Poderia ento comear a me fazer essas estarrecedoras revelaes? Sim... ou por outra, se o senhor no v inconveniente, dentro de uma hora ou duas, quando estiver terminado o inqurito. No, no! Imediatamente, rapaz... Nesse momento, Raymonde de Saint-Vran, que desde o incio da cena no parar de olhar para Isidore Beautrelet, dirigiu-se a M. Filleul. Senhor juiz... O que deseja, senhorita? Aps hesitar dois ou trs segundos, olhos fixos em Beautrelet, ela falou: Gostaria que o senhor juiz perguntasse a este jovem a razo pela qual ele passeava, ontem, pelo caminho que leva portinhola. A frase teve efeito teatral. Isidore pareceu embaraado. Eu, senhorita?... Eu?... A senhorita me viu, ontem? Raymonde fitou Beautrelet, como se procurasse aprofundar suas convices, e declarou em tom grave: Ontem, s quatro horas da tarde, quando atravessava o bosque,

encontrei um homem da estatura deste cavalheiro, vestido como ele, com uma barba como a dele..., e tive a impresso ntida de que procurava se esconder. E era eu? Seria impossvel afirm-lo, pois minha lembrana um pouco vaga. No entanto, parece-me que... se no era o senhor, a semelhana muito estranha. M. Filleul estava perplexo. J tinha sido enganado por um dos criminosos, e iria agora se deixar lograr por aquele duvidoso colegial? O que tem voc a dizer? Que a senhorita se engana. Ontem, a essa hora, eu estava em Veules. Ter de provar isso. De qualquer modo, a situao mudou. Um dos policiais far companhia ao cavalheiro. O rosto de Isidore Beautrelet exibiu uma forte contrariedade. Por muito tempo? O tempo suficiente para reunir as informaes necessrias. Senhor juiz, suplico-lhe que as rena com a mxima brevidade e discrio possveis... Por qu? Meu pai est velho. Ns nos queremos muito bem... e eu no gostaria de que ele se aborrecesse por minha causa. O tom lamurioso de Isidore desagradou ao juiz. Parecia uma cena melodramtica. Apesar disso, ele prometeu: Hoje noite... amanh o mais tardar, saberei alguma coisa. J se passara uma boa parte da tarde. O juiz voltou s runas do claustro, tomando a precauo de proibir a entrada de curiosos. Pacientemente, com mtodo, dividiu o terreno em reas a serem estudadas e prosseguiu as investigaes, fazendo questo de chefi-las. Mas, ao fim do dia, nada de novo havia sido descoberto, e ele declarou ao bando de reprteres que invadira o castelo: Senhores, tudo leva a crer que o ferido est aqui, a nosso alcance; tudo, a no ser a realidade dos fatos. Em nossa modesta opinio, ele deve ter escapado. E fora do castelo que o encontraremos. Por precauo, no entanto, organizou com o sargento de polcia uma vigilncia dentro do parque. E, aps examinar novamente os dois sales e percorrer minuciosamente o castelo, colecionando mais informaes, retomou o caminho de volta a Dieppe em companhia do substituto do procurador. Anoiteceu. Como o quarto de vestir teria de ficar fechado, o corpo de Jean Da vai foi transportado para outro cmodo. Duas mulheres da

vizinhana faziam o velrio, acompanhadas por Suzanne e Raymonde. Embaixo, sob o olhar atento do guarda-florestal, Isidore Beautrelet cochilava sobre um banco do antigo oratrio. Do lado de fora, os policiais, o granjeiro e uma dzia de camponeses estavam postados entre as runas e ao longo dos muros. At as onze horas tudo permaneceu tranqilo. Mas, s onze e dez, um tiro ressoou do outro lado do castelo. Ateno! gritou o sargento. Dois homens fiquem aqui! Vocs dois... Fossier e Lecanu... Os outros venham comigo! Correram todos, contornando o castelo pela esquerda. Na sombra, uma silhueta se esgueirou. Logo em seguida, um segundo tiro os atraiu para mais longe, quase aos limites da herdade. De repente, quando os policiais atingiam a sebe que circundava o pomar, uma chama se elevou, direita da casa reservada ao granjeiro. Outras chamas logo subiram em espessa coluna. Era a granja queimando, repleta de palha. Patifes! gritou Quevillon. Foram eles que atearam o fogo! Vamos agarr-los, rapazes! No devem estar longe! Mas o vento virava as chamas em direo fachada do castelo e foi preciso evitar o perigo. Todos se empenharam nessa tarefa com entusiasmo, aumentado pelo fato de o Conde de Gesvres ter acorrido ao local, encorajando-os com a promessa de uma recompensa. Quando o incndio foi dominado j eram duas da manh. Toda e qualquer perseguio seria intil. Veremos isso quando o dia clarear disse o sargento. Certamente tero deixado pistas... ns os encontraremos. Eu gostaria de entender a razo deste ataque falou, pensativo, o Conde de Gesvres. Incendiar fardos de palha parece-me to intil... Venha comigo, senhor conde. Talvez eu possa lhe explicar a razo. Aproximaram-se, juntos, das runas do claustro, e o sargento chamou: Lecanu!... Fossier!... Logo, outros guardas se puseram a procurar os colegas deixados de planto. Acabaram por descobri-los junto portinhola. Estavam estendidos no cho, amarrados, amordaados e com os olhos vendados. Senhor conde murmurou o sargento, enquanto os homens eram libertados , fomos enganados como crianas. Como assim? Os tiros... o ataque... o incndio... tudo no passou de um ardil para nos atrair para aquele lado... Enquanto isso, dominaram nossos rapazes e o caso foi resolvido. Que caso? O transporte do ferido, bolas!

Ora, vamos, o senhor acredita... ? Se acredito? a nica verdade! H dez minutos que essa idia me passou pela cabea. Sou um idiota por no ter pensado nisso antes. Teramos segurado todos eles! Quevillon bateu o p, num acesso de raiva. Mas onde, diabo? Por onde ser que eles passaram? Por onde o levaram? E esse miservel, onde ser que estava escondido? Afinal de contas, revistamos esse terreno palmo a palmo, o dia inteiro! Um sujeito no pode se esconder dentro de moitas de capim, ainda mais se est ferido. Parece mgica! Quevillon ainda no havia chegado ao fim de suas surpresas. De madrugada, quando entraram no oratrio que servia de cela ao jovem Beautrelet, constataram que ele havia desaparecido. Arriado sobre uma cadeira, o guarda-florestal dormia. Ao lado dele, uma garrafa e dois copos. Num dos copos, percebia-se um resto de p branco. Aps um exame no local, ficou provado que Beautrelet havia administrado um narctico ao guarda-florestal; que no poderia ter escapado seno por uma janela, situada a dois metros e meio de altura; e, finalmente detalhe encantador , que s poderia ter atingido a janela utilizando como degrau as costas do guarda.

Dois Isidore Beautrelet, estudante de retricaTranscrito do Grand Journal: "NOTCIAS DA NOITESEQESTRO DO DR. DELATTRE GOLPE DE GRANDE AUDCIA

Ao encerrarmos esta edio, recebemos uma notcia cuja autenticidade no ousamos garantir, de to inverossmil que nos parece. Ns a publicamos, portanto, com reservas. Ontem noite o clebre cirurgio Dr. Delattre assistia, com sua mulher e sua filha, representao de Hernani na Comdie Franaise. No incio do terceiro ato, aproximadamente s dez horas, a porta de seu camarote se abriu e um homem, acompanhado de dois outros, aproximou-se do mdico e disse, em tom suficientemente alto para ser ouvido por Mme Delattre: Doutor, tenho uma misso das mais penosas a cumprir, e ficar-lhe-ia muito grato se a facilitasse. Quem o senhor? Sou Thzard, comissrio de polcia. Tenho ordem para conduzi-lo presena de M. Dudouis, na prefeitura. Mas, afinal de contas... No diga nada, doutor, eu lhe peo. No faa tambm nenhum gesto. Trata-se de um lamentvel engano e, por isso, devemos agir em silncio, sem chamar a ateno. Antes do fim da pea, tenho certeza, o senhor estar de volta. O mdico levantou-se e seguiu o comissrio. Ao fim da pea, no havia regressado. Muito preocupada, Mme Delattre foi ao posto policial e l encontrou o verdadeiro M. Thzard. Concluiu, ento, apavorada, que o indivduo que levara seu marido no passava de um impostor. As primeiras investigaes revelaram que o mdico entrara num carro, o qual se afastara em direo Concorde. Nossa segunda edio manter nossos leitores ao corrente desta incrvel aventura."

Por incrvel que parecesse, a aventura era verdica. Seu desfecho, alis, no tardou, e o Grand Journal, ao confirm-la em sua edio da tarde, publicou em algumas linhas a maneira espetacular como terminara. "O FIM DA HISTRIAE O COMEO DAS SUPOSIES

Esta manh, s nove horas, o Dr. Delattre foi reconduzido porta do nmero 78 da Rue Duret por um automvel que se afastou rapidamente, logo em seguida. O endereo no outro seno o da clnica do Dr. Delattre, onde, todas as manhs, ele chega a essa mesma hora. Quando nossa reportagem l se apresentou, o conhecido cirurgio, apesar de se encontrar reunido com o chefe de segurana, teve a gentileza de nos receber. S o que lhes posso dizer respondeu que fui tratado com a maior considerao. Meus trs companheiros so pessoas encantadoras, de requintada educao, espirituosos e agradveis interlocutores, o que no de se desprezar, tendo em vista a durao da viagem. Quanto tempo durou? Cerca de quatro horas. E depois? Fui conduzido para junto de um paciente cujo estado exigia uma imediata interveno cirrgica. A operao foi bem sucedida? Sim, mas h razes para temer pelo doente. Aqui eu me responsabilizaria por ele. Mas l, nas condies em que se encontra... Est em ms condies? Pssimas... Num quarto de hospedaria, praticamente impossibilitado de receber os devidos cuidados. Quem, ento, poder salv-lo? Um milagre... e tambm sua constituio excepcionalmente forte. O senhor no pode dizer mais nada sobre esse estranho cliente? No, no posso. Primeiro porque dei minha palavra e depois porque recebi a importncia de dez mil francos em benefcio de minha clnica popular. Se eu no guardar segredo essa quantia ser retomada. Ora! O senhor acredita? Sim, acredito. Todas aquelas pessoas me deram a impresso de estarem falando muito a srio. Essas foram as declaraes que nos prestou o Dr. Delattre. Sabemos tambm que o chefe de segurana ainda no conseguiu obter informaes

mais detalhadas sobre a cirurgia realizada, o paciente e as regies percorridas pelo automvel. Parece, portanto, que a verdade total dificilmente ser revelada."

Essa verdade, que o entrevistador se confessava sem meios para deslindar, os leitores mais perspicazes adivinharam atravs de uma simples conexo com os fatos que se haviam desenrolado na vspera, no Castelo de Ambrumsy, e que todos os jornais noticiavam em seus mnimos detalhes. Evidentemente percebia-se que, entre o desaparecimento de um assaltante ferido e o seqestro de um famoso cirurgio, havia uma coincidncia que era preciso levar em conta. O inqurito, alis, demonstrou a exatido desta hiptese. Seguindo a pista do falso cocheiro que escapara na bicicleta, constatou-se que ele atingira a floresta de Arques, situada a quinze quilmetros do castelo, pois a bicicleta fora encontrada num fosso. Depois dirigira-se aldeia de SaintNicolas, de onde expedira um telegrama nos seguintes termos: "A. L. N., Departamento 45, Paris. Situao desesperadora. Operao urgente. Enviem celebridade pela Nacional Catorze". A prova era incontestvel. Prevenidos, os cmplices de Paris apressaram-se em tomar providncias. s dez da noite enviaram a celebridade pela Estrada Nacional nmero 14, que, ladeando a floresta de Arques; conduz a Dieppe. Nesse meio tempo, aproveitando-se do incndio por ela prpria ateado, a quadrilha arrebatara seu chefe e o transportara para uma hospedaria, onde a operao foi realizada, logo aps a chegada do mdico, por volta das duas da madrugada. At a nenhuma dvida. O Inspetor-Chefe Ganimard, enviado diretamente de Paris com o Inspetor Folenfant, constatou a passagem de um carro por Pontoise, Gournay e Forges durante a noite precedente, bem como pela estrada que liga Dieppe a Ambrumsy. Se bem que os indcios da passagem do carro st perdessem a cerca de lgua e meia do castelo, foram encontradas numerosas marcas de passos entre a portinhola do parque e as runas do mosteiro. Alm disso, Ganimard verificara que a fechadura da portinhola tinha sido forada. Portanto, tudo se explicava. Restava encontrar a hospedaria citada pelo mdico. Fcil tarefa para um velho e matreiro policial, bisbilhoteiro e paciente como Ganimard. O nmero de hospedarias no era grande, e a estalagem em questo s

poderia estar situada nas vizinhanas de Ambrumsy, visto o estado do paciente. Ganimard e o sargento logo puseram-se em campo. Num raio de cinco mil metros visitaram e esquadrinharam tudo que poderia se assemelhar a uma hospedaria. Mas, contrariando todas as expectativas, o moribundo continuava obstinadamente invisvel. Ganimard empenhou-se ainda mais. Foi dormir no castelo na noite do sbado, com a inteno de fazer pessoalmente uma investigao no domingo. Quando acordou soube que uma ronda policial avistara, naquela mesma noite, um vulto passar furtivamente do lado de fora dos muros do castelo. Seria um cmplice que voltava para colher informaes? Seria possvel que o chefe da quadrilha ainda no houvesse deixado o claustro, ou seus arredores? noite, Ganimard dirigiu abertamente a brigada de polcia para os lados da granja e postou-se, junto com Folenfant, fora dos muros, prximo portinhola. Pouco antes da meia-noite, um indivduo saiu do bosque, esgueirou-se entre eles, transps o limiar da portinhola e penetrou no parque. Durante trs horas eles o observaram errar atravs das runas, abaixando-se, escalando os velhos pilares, permanecendo por vezes imvel durante longos intervalos. Quando, finalmente, voltou a transpor a portinhola, Ganimard segurou-o pela gola, enquanto Folenfant abraava-se sua cintura. Ele no resistiu e, com a maior docilidade, deixou que lhe amarrassem os pulsos e o conduzissem para o castelo. Mas, quando quiseram interrog-lo, respondeu simplesmente que no lhes devia nenhuma explicao e que esperaria a chegada do juiz. Foi ento amarrado firmemente ao p de uma cama, num dos dois quartos contguos aos que os dois policiais ocupavam. Na segunda-feira de manh, assim que M. Filleul chegou, Ganimard anunciou a captura que havia feito. Trouxeram o prisioneiro. Era Isidore Beautrelet. M. Isidore Beautrelet! exclamou entusiasticamente o juiz, estendendo as mos ao recm-chegado. Que tima surpresa! O nosso excelente detetive amador, aqui, nossa disposio!... Mas isso uma grande alegria! Senhor inspetor, permita-me que lhe apresente M. Beautrelet, estudante de retrica no Liceu Janson-de-Sailly. Ganimard parecia um tanto intrigado. Isidore cumprimentou-o respeitosamente, como a um colega a quem se d o devido valor, e, virandose para Filleul, disse: Parece que o senhor juiz recebeu boas informaes a meu respeito! timas! Para comear, o senhor estava, efetivamente, em Veules-lesRoses no momento em que Mlle de Saint-Vran julgou v-lo no caminho.

Tenho certeza de que conseguiremos descobrir a identidade de seu ssia. Alm disso, o senhor realmente Isidore Beautrelet, estudante de retrica, por sinal excelente aluno, trabalhador e de conduta exemplar. Como seu pai mora na provncia, o senhor sai apenas uma vez por ms e se hospeda em casa do correspondente dele, M. Bernod, o qual no lhe poupa elogios. De modo que... De modo que o senhor est livre. Completamente livre? Completamente. Ah!... Eu imponho apenas uma pequena condio. O senhor h de compreender que eu no posso liberar uma pessoa que administra narcticos, que foge pelas janelas e que surpreendemos, em seguida, em flagrante delito de vagabundagem dentro de propriedades privadas. No posso faz-lo sem ter alguma compensao. Estou s suas ordens. Pois bem, vamos retomar aquela conversa interrompida e o senhor vai me dizer em que p se encontram suas investigaes. Em dois dias de liberdade o senhor deve t-las adiantado bastante. E como Ganimard se dispusesse a sair, mostrando desdm por aquele tipo de exerccio, o juiz exclamou: De jeito nenhum, inspetor! Seu lugar aqui. Eu lhe asseguro que vale a pena ouvir M. Isidore Beautrelet. Pelo que me contaram no liceu, M. Beautrelet um arguto observador, que nada deixa passar despercebido. considerado, entre os colegas, como capaz de competir com o senhor, inspetor, um autntico rival de Herlock Sholmes. mesmo? disse Ganimard com ironia. Perfeitamente. Um deles me escreveu: "Se Beautrelet afirma que sabe, convm acreditar. Aquilo que ele disser ser, sem dvida, a expresso exata da verdade". M. Isidore Beautrelet, agora ou nunca chegado o momento de justificar a confiana de seus camaradas. Peo-lhe encarecidamente que nos d a exata expresso da verdade. Isidore, que ouvia sorrindo, respondeu: O senhor cruel, senhor juiz. Zomba de pobres colegiais que se divertem como podem. Alis, o senhor tem razo, e eu no vou lhe dar novos motivos para zombar de mim. Acontece que o senhor no sabe nada, M. Isidore Beautrelet. Confesso, com efeito, muito humildemente, que nada sei. Pois no considero "saber alguma coisa" a descoberta de dois ou trs detalhes mais precisos que, alis, certamente no poderiam ter escapado ao senhor. Por exemplo? Objetivo do roubo.

Ora, decididamente o senhor pretende conhecer o objetivo do roubo? Como no tenho dvidas de que o senhor tambm o conhece. Foi a primeira coisa que estudei, pois a tarefa me pareceu mais fcil. Mais fcil? Claro. Trata-se apenas de seguir um raciocnio. Nada mais? Nada mais. E que raciocnio? Vou desenvolv-lo, sem maiores comentrios. Por um lado "houve um roubo", j que as duas jovens dizem ter visto realmente dois homens fugindo com objetos. Houve um roubo, ento. Por outro lado, nada desapareceu, j que M. de Gesvres o afirma, e ele, mais do que ningum, est em condies de saber isso. Nada desapareceu. Dessas duas constataes, deduz-se que, se houve roubo e nada desapareceu, que o objeto roubado foi substitudo por outro, idntico. Pode ser, fao logo a ressalva, que este raciocnio no seja ratificado pelos fatos. Mas acredito que seja a primeira hiptese que se nos depara e que s teremos o direito de afast-la depois de seriamente examinada. Certo... certo... murmurou o juiz, visivelmente interessado. Ora continuou Isidore , o que existiria neste salo que pudesse atiar a cobia dos ladres? Duas coisas. Primeiro a tapearia. Isso seria impossvel. Uma tapearia antiga no pode ser imitada, e a falsificao teria dado na vista. Restam os quatro Rubens. O que est dizendo? Digo que os quatro Rubens pendurados nesta parede so falsos. Impossvel! A priori so fatalmente falsos. Eu lhe repito que impossvel! H cerca de um ano, senhor juiz, um rapaz chamado Charpenais veio ao Castelo de Ambrumsy e pediu permisso para copiar os quadros de Rubens. Essa permisso lhe foi dada por M. de Gesvres. Todos os dias, durante cinco meses, da manh noite, Charpenais trabalhou neste salo. So as cpias que ele fez, molduras e telas, que tomaram o lugar dos quatro grandes quadros originais legados a M. de Gesvres por seu tio, o Marqus de Bobadilla. Provas! No h provas a dar. Um quadro falso porque falso. E acho que nem preciso examinar esse a.

M. Filleul e Ganimard entreolhavam-se sem dissimular o espanto. O inspetor nem sonhava mais em se retirar. Finalmente, o juiz murmurou: Seria conveniente termos a opinio de M. de Gesvres. Ganimard aprovou: Sim, seria conveniente termos sua opinio. Logo, pediram ao conde que comparecesse ao salo. Era uma verdadeira vitria alcanada pelo jovem retrico. Obrigar dois homens, dois profissionais como o Juiz Filleul e o Inspetor Ganimard, a tomar conhecimento de suas hipteses era uma honra da qual qualquer pessoa se orgulharia. Mas Beautrelet parecia insensvel a essas pequenas satisfaes do amor-prprio. E, sempre sorrindo, sem a menor ironia, aguardou a entrada do Conde de Gesvres no salo, o que no tardou a acontecer. Senhor conde disse o juiz , o prosseguimento do nosso inqurito colocou-nos face a uma eventualidade totalmente imprevista e a qual lhe submetemos sob reservas. possvel... repito, possvel... que os ladres, ao se introduzirem aqui, tenham tido a finalidade de roubar seus quatro Rubens, ou pelo menos de troc-los por quatro cpias... cpias que teriam sido executadas, h um ano, por um pintor chamado Charpenais. Poderia o senhor examinar os quadros e dizer-nos se reconhece sua autenticidade? O conde pareceu reprimir uma certa contrariedade. Olhou para Beautrelet, depois para M. Filleul, e respondeu, sem se dar ao trabalho de examinar os quadros: Eu esperava, senhor juiz, que a verdade permanecesse ignorada. J que isso no sucedeu, no hesito em declarar: estes quatro quadros so falsos. Ento, o senhor j sabia? Desde o primeiro momento. E por que no disse? Quem possui um objeto no tem pressa em revelar que esse objeto no , ou deixou de ser, autntico. No entanto, esse seria o nico meio de reav-los. Havia outro melhor. Qual? No divulgando o segredo, no amedrontando os ladres e propondolhes a compra dos quadros, com os quais eles devem estar um tanto quanto embaraados. E como se comunicar com eles? No havendo resposta do conde, Isidore adiantou-se: Atravs de uma nota publicada nos jornais. Um pequeno anncio no

Le Journal e no Le Matin, nos seguintes termos: "Estou disposto a readquirir os quadros". O conde balanou a cabea, concordando. Mais uma vez o rapaz levava vantagem sobre os dois profissionais. M. Filleul demonstrou ser bom perdedor: Decididamente, meu caro, comeo a acreditar que seus colegas no esto errados. Santo Deus! Que olho! Que intuio! Se continuar assim, M. Ganimard e eu no teremos mais nada a fazer. Ora! Essa parte nada tinha de complicado. Voc quer dizer que o que resta muito mais complicado? Se eu bem me lembro, desde o nosso primeiro encontro voc parecia saber muito mais. Creio que voc afirmava conhecer o nome do assassino... Realmente. Ento, quem matou Jean Daval? Est havendo um mal-entendido entre ns, senhor juiz. Ou, por outra, um mal-entendido entre o senhor e a realidade dos fatos, e isso desde o incio. O assassino e o fugitivo so dois indivduos distintos. Como?! exclamou M. Filleul. O homem que M. de Gesvres viu no quarto de vestir e com o qual lutou, o homem que as senhoritas viram no salo, contra o qual a jovem Saint-Vran atirou, o homem que caiu no parque e que ns procuramos, esse homem no o mesmo que matou Jean Daval? No. Voc descobriu vestgios de um terceiro cmplice, que teria desaparecido antes da chegada das jovens? No. Ento no entendo mais nada... Quem , afinal, o assassino de Jean Daval? Jean Daval foi morto por... Beautrelet interrompeu-se, pensou um momento e continuou: Antes, porm, necessrio que eu lhes mostre o caminho que percorri para chegar a ter certeza e as prprias razes do assassinato... sem o que minha acusao lhes pareceria monstruosa... E ela no ... no, ela no . Existe um detalhe que passou despercebido e que , no entanto, da maior importncia. Jean Daval, quando foi atingido, estava completamente vestido, inclusive calava botinas. Em outras palavras, vestia-se como se estivesse em pleno dia. Ora, o crime foi cometido s quatro horas da madrugada. Chamei a ateno para essa extravagncia disse o juiz , mas M. de Gesvres respondeu-me que Daval passava quase todas as noites trabalhando at tarde.

Os criados afirmam o contrrio. Que ele se deitava cedo, regularmente. Mas, admitindo que estivesse de p, por que teria ele desfeito a cama, de maneira a fazer crer que estivera deitado? E, se estava deitado, por que ao ouvir barulho teria se dado ao trabalho de vestir-se dos ps cabea, em vez de sumariamente? Visitei seu quarto, no primeiro dia, enquanto os senhores almoavam. Os chinelos dele estavam ao lado da cama. Quem o teria impedido de coloc-los, em vez de calar suas pesadas botinas ferradas? At aqui no vejo... At aqui, com efeito, s se podem ver anomalias. Elas me pareceram, no entanto, muito mais suspeitas quando soube que o pintor Charpenais o copista de Rubens havia sido apresentado ao conde pelo prprio Jean Daval. E da? Da a concluir que Jean Daval e Charpenais eram cmplices foi um passo. Este passo eu j havia dado desde nossa primeira conversa. Um pouco rpido, me parece... Realmente. Era preciso uma prova concreta. Ora, eu havia descoberto no quarto de Daval, sobre uma das folhas do bloco em que ele escrevia, este endereo. Alis, ainda pode ser encontrado l, decalcado pelo avesso no mata-borro: "M. A. L. N., Departamento 45, Paris". No dia seguinte foi descoberto o telegrama enviado de Saint-Nicolas pelo falso cocheiro e que levava este mesmo endereo: "A. L. N., Departamento 45". A prova concreta existia. Jean Daval correspondia-se com a quadrilha que planejara o roubo dos quadros. M. Filleul no levantou nenhuma objeo. Est bem. A cumplicidade est estabelecida. E qual sua concluso? Primeiro, no foi o fugitivo quem matou Jean Daval, j que Jean Daval era seu cmplice. E ento? Senhor juiz, lembre-se da primeira frase pronunciada por M. de Gesvres, quando recuperou os sentidos. A frase, repetida por Mlle de Gesvres, est nos autos: "No estou ferido. E Daval?... est vivo?... A faca..." Peo-lhe que confronte a frase com o depoimento de M. de Gesvres, tambm consignado nos autos. Diz ele: "O homem saltou sobre mim e derrubou-me com um soco na tmpora". Como M. de Gesvres, que estava desmaiado, poderia saber, ao despertar, que Da vai havia sido atingido por uma facada? Beautrelet no esperou resposta sua pergunta. Dir-se-ia que tinha pressa em fornec-la, ele prprio, a fim de cortar a possibilidade de qualquer comentrio. Continuou imediatamente:

Logo, foi Jean Daval quem conduziu os trs assaltantes at este salo. Enquanto ele aqui se achava com aquele a quem chamavam de chefe, ouvese um rudo no quarto de vestir. Daval abre a porta. Reconhecendo M. de Gesvres, precipita-se em sua direo, armado de uma faca. M. de Gesvres consegue arrancar-lhe a faca, golpeia-o com ela e cai, atingido por um soco do indivduo que as duas moas iriam avistar alguns minutos depois. Novamente M. Filleul e o inspetor se entreolharam. Ganimard abanou a cabea desconcertado. O juiz ento retomou a palavra: Senhor conde, devo acreditar ser esta verso a correta? M. de Gesvres no deu resposta. Vejamos, senhor conde, seu silncio nos permitiria supor... Pausadamente, M. de Gesvres declarou: Esta verso exata nos mnimos detalhes. O juiz sobressaltou-se. No compreendo, ento, por que o senhor induziu a justia em erro. Por que dissimular um ato que o senhor tinha o direito de praticar em legtima defesa? H vinte anos disse M. de Gesvres que Jean Daval trabalhava ao meu lado. Eu confiava nele. Prestou-me servios inestimveis. Se me traiu, em conseqncia no sei de que tentaes, eu no desejaria, pelo menos em nome do passado, que sua traio fosse conhecida. Sim, mas o senhor devia... No tenho a mesma opinio, senhor juiz. Desde o momento em que nenhum inocente estava sendo acusado do crime, era meu direito no acusar aquele que foi ao mesmo tempo culpado e vtima. Ele est morto. Penso que isso foi castigo suficiente. Mas agora, senhor conde, agora que a verdade foi revelada, o senhor pode falar. Sim. Eis aqui dois rascunhos de cartas escritas por ele a seus cmplices. Eu os tirei de sua carteira, alguns minutos aps sua morte. E qual o motivo do roubo? V a Dieppe, Rue de Ia Barre nmero 18. L mora uma tal Mme Verdier. Foi por essa mulher, que ele conheceu h dois anos, para prover sua necessidade de dinheiro, que Daval roubou. Assim, tudo se elucidava. O drama surgia da sombra e, pouco a pouco, se esclarecia. Continuemos disse M. Filleul, depois que o conde se retirou. Palavra de honra declarou alegremente Beautrelet , estou sem saber o que dizer. Mas, e o fugitivo... o ferido? Sobre isso, senhor juiz, o senhor sabe tanto quanto eu... O senhor

seguiu a trilha deixada por ele sobre a erva do claustro... o senhor sabe... Sim, sei... mas depois seus homens o levaram e o que eu desejo so indicaes a respeito dessa hospedaria... Isidore Beautrelet caiu na gargalhada. A hospedaria! A hospedaria no existe! um truque para despistar a justia. Truque engenhoso, alis, j que deu resultado. No entanto, o Dr. Delattre afirma... Ora, justamente! exclamou Beautrelet, em tom convicto. exatamente porque o Dr. Delattre afirma que no devemos acreditar. Ele forneceu sobre a aventura apenas detalhes imprecisos. Ele no quis dizer nada que pudesse comprometer a segurana de seu paciente... E eis que de repente chama a ateno sobre uma hospedaria. Mas estejam certos de que se ele pronunciou essa palavra porque ela lhe foi imposta. Estejam certos de que toda essa histria que ele forneceu lhe foi ditada, sob ameaa de represlias terrveis. O doutor tem mulher e filha. E as ama demais para desobedecer pessoa cujo terrvel poder ele experimentou. Eis por que ele forneceu justia uma indicao das mais precisas. To precisa que no se consegue encontrar a tal hospedaria. To precisa que os senhores no cessam de procur-la. E o pior que seus olhos se desviaram do nico local onde o homem pode estar, desse lugar misterioso que ele no abandonou, que no lhe foi possvel abandonar, desde o momento em que, ferido por Mlle de Saint-Vran, nele conseguiu se insinuar, como um animal em sua toca. Mas onde, por Deus? Nas runas do velho mosteiro. Mas no existem mais runas! Apenas alguns restos de muros, algumas colunas... l que ele se enterrou, senhor juiz! exclamou Beautrelet, energicamente. l que se devem limitar suas buscas! l, e no em outro local, que o senhor encontrar Arsne Lupin! Arsne Lupin! e M. Filleul levantou-se de um salto. Houve um silncio meio solene, onde se prolongaram as slabas do nome famoso. Arsne Lupin, o grande aventureiro, o rei dos ladres, seria possvel que fosse ele o adversrio vencido e, no entanto, invisvel, que procuravam encarniadamente h vrios dias? Arsne Lupin, apanhado no lao, preso, significava a promoo imediata, a fortuna, a glria! Ganimard no tinha se manifestado. Isidore perguntou-lhe: O senhor concorda comigo, no , inspetor? Claro! O senhor tambm nunca duvidou de que fosse ele o organizador deste

golpe? Nem por um segundo! Sua assinatura est l. Um golpe de Lupin diferente de todos os outros. Basta abrir os olhos. Voc acredita... voc acredita... repetia M. Filleul. Se acredito! exclamou o rapaz. Reparem apenas neste pequeno detalhe: sob que iniciais essas pessoas se correspondiam? A. L. N., isto : a primeira letra do nome Arsne e a primeira e a ltima letras do nome Lupin. Oh! fez Ganimard. Nada lhe escapa, hem? Voc dos bons. O velho Ganimard depe as armas. Beautrelet corou de prazer e apertou a mo que lhe estendia o inspetor. Os trs homens aproximaram-se ento do balco e seus olhares estenderamse sobre o campo das runas. Foi o juiz quem falou primeiro, murmurando: Quer dizer ento que ele estaria ali... Ele est ali disse Beautrelet, numa voz contida. Ele est ali desde o momento em que caiu. Lgica e praticamente ele no poderia escapar sem ser visto por Mlle de Saint-Vran e pelos dois criados. Que prova tem voc? Seus cmplices nos deram a prova. Naquela mesma manh um deles se disfarou em cocheiro e conduziu o senhor at aqui. Para reaver o bon, pea de identidade. Sim, mas tambm, e sobretudo, para visitar o local e verificar o que acontecera ao chefe. Ser que ele conseguiu? Suponho que sim, j que ele conhecia o esconderijo. Suponho tambm que constatou o estado desesperador em que se encontrava seu chefe. S uma grande preocupao explica a imprudncia daquelas palavras ameaadoras: "Ai da senhorita, se tiver matado o chefe". Mas seus amigos devem ter conseguido retir-lo mais tarde... Quando? Seus homens no se afastaram das runas. E, alm disso, como o teriam transportado? No mximo o arrastaram algumas centenas de metros, pois no se pode fazer um moribundo viajar. Nesse caso os senhores o teriam encontrado. Tenho certeza de que ele est l. Jamais seus amigos o teriam arrancado de um esconderijo to seguro. E foi para l que eles levaram o doutor, enquanto os policiais corriam para apagar o incndio. Mas como que ele consegue viver? Para isso preciso alimentos, gua... No sei dizer... no sei como... mas ele est l, eu juro. Est l porque no pode deixar de estar. Tenho tanta certeza disso como se pudesse v-lo, toc-lo... Ele est l. Com o dedo apontado para as runas, Beautrelet desenhou no ar um

pequeno crculo que diminuiu pouco a pouco at se reduzir a um ponto. E era esse ponto que o juiz e o inspetor procuravam tenazmente, debruados sobre o espao, tocados pela mesma f de Beautrelet e vibrando sob a ardente convico que lhes havia sido imposta. Sim, Arsne Lupin estava l. Em teoria, como de fato, ele l se encontrava. Nem o juiz nem o inspetor podiam mais duvidar disso. E havia algo de impressionante e de trgico em saber que num tenebroso refgio debaixo da terra jazia sem socorro, febril e extenuado, o clebre aventureiro. E se ele tiver morrido? pronunciou em voz baixa M. Filleul. Se ele tiver morrido e seus cmplices se certificarem disso, zele pela segurana de Mlle de Saint-Vran, senhor juiz, porque a vingana ser terrvel. Alguns minutos mais tarde, apesar da insistncia de M. Filleul, que j se acostumara com a presena daquele notvel auxiliar, Beautrelet regressava a Dieppe, lamentando o trmino dos feriados da Pscoa. Aproximadamente s cinco horas ele desembarcava em Paris, e s oito atravessava, junto com alguns colegas, o porto do liceu. Ganimard, aps uma inspeo to minuciosa quanto intil nas runas de Ambrumsy, viajou pelo rpido noturno. Ao chegar em casa, encontrou o seguinte telegrama: "Senhor inspetor-chefe: Tendo tido um pouco de folga no fim do dia, pude reunir algumas informaes suplementares que no podero deixar de interess-lo. H um ano que Arsne Lupin vive em Paris sob o nome de Etienne de Vaudreix. um nome encontrado freqentemente nas crnicas sociais e esportivas. Viajando continuamente, ausenta-se por longos perodos, durante os quais vai, diz ele, caar tigres em Bengala ou raposas azuis na Sibria. Passa por negociante, sem que se possa precisar que negcios so esses. Sua atual residncia Rue Marbceuf, 36 (peo-lhe que note que a Rue Marbceuf fica perto da agncia do Correio nmero 45). Desde quinta-feira, 23 de abril, vspera da agresso de Ambrumsy, no h notcia sobre Etienne de Vaudreix nos jornais. Receba, senhor inspetor, junto com toda a gratido pela benevolncia que me foi dispensada, meus melhores votos de estima e considerao. Isidore Beautrelet. P. S. No creia que me foi difcil obter essas informaes. Na manh do crime, enquanto M. Filleul dava prosseguimento ao inqurito, diante de alguns privilegiados, tive a feliz idia de examinar o bon do fugitivo, antes

que o falso cocheiro o tivesse trocado. O nome do chapeleiro bastou-me para encontrar a pista que me levou a conhecer o nome do comprador e seu domiclio." Na manh seguinte Ganimard dirigiu-se ao nmero 36 da Rue Marbceuf. Aps informar-se com o porteiro, mandou abrir o apartamento da direita do andar trreo. Nada encontrou, alm de cinzas na lareira. Quatro dias antes, dois homens tinham ido l queimar todos os papis comprometedores. Quando ia sair, Ganimard cruzou com o carteiro, que trazia uma carta para M. de Vaudreix. Nesta mesma tarde o Ministrio Pblico, encarregado do caso, solicitava a carta. Ela fora expedida dos Estados Unidos e continha estas linhas, em ingls: "Prezado senhor: Confirmo a resposta que dei a seu agente. Assim que estejam em seu poder os quatro quadros de M. de Gesvres, queira envi-los conforme combinado. O senhor poder juntar o restante, caso o tenha conseguido, o que duvido bastante. Forado a partir por um negcio imprevisto, chegarei na mesma ocasio que esta carta. O senhor me encontrar no Grand-Htel. Harlington". Nesse mesmo dia, Ganimard, munido de uma ordem de priso, conduzia ao distrito Mr. Harlington, cidado americano, acusado de receptao e cumplicidade no roubo. Assim sendo, no espao de vinte e quatro horas, graas s indicaes realmente inesperadas de um garoto de dezessete anos, todos os ns da intriga se desatavam. Em vinte e quatro horas, o que era inexplicvel passou a ser simples e claro. Em vinte e quatro horas, o plano dos cmplices para salvar seu chefe estava desfeito, a captura de Arsne Lupin, ferido, moribundo, no era mais posta em dvida, sua quadrilha estava desmantelada, conhecia-se sua residncia em Paris, bem como a mscara sob a qual se ocultava. E trazia-se luz pela primeira vez, antes que ele pudesse assegurar sua execuo, um de seus golpes mais hbeis e mais longamente planejados. Houve, ento, como que um imenso clamor pblico de espanto, admirao e curiosidade. O jornalista de Rouen, num artigo muito bem-feito, descrevera o primeiro interrogatrio do jovem retrico, dando realce sua boa presena, seu charme ingnuo e sua tranqila segurana. As indiscries que Ganimard e M, Filleul cometeram sem querer, arrastados por um

impulso mais forte que seu orgulho profissional, esclareceram o pblico sobre o papel de Beautrelet no decorrer dos ltimos acontecimentos. Ele, sozinho, havia feito tudo. Apenas a ele cabia todo o mrito da vitria. O pblico se apaixonou. Do dia para a noite, Isidore Beautrelet transformou-se em heri, e a multido subitamente fascinada exigia sobre seu novo favorito os mais amplos detalhes. Os reprteres tiveram que se mexer. Lanaram-se de assalto ao Liceu Janson-de-Sailly, entrevistaram os alunos externos nas sadas das aulas e colheram tudo que dizia respeito, de perto ou de longe, ao famoso Beautrelet. E soube-se, desta forma, da reputao que gozava entre seus colegas aquele que eles consideravam o rival de Herlock Sholmes. Por deduo, por lgica e sem maiores informaes do que as que lia nos jornais, ele havia por diversas vezes anunciado a soluo de casos complicados, que a justia s chegaria a solucionar muito depois. Tinha se tornado um divertimento no Liceu Janson-de-Sailly fazer a Beautrelet perguntas intrincadas, apresentar problemas indecifrveis. Seus colegas admiravam-se de ver com que segurana de anlise, por meio de que engenhosas dedues ele se movimentava atravs das mais espessas trevas. Dez dias antes da priso do merceeiro Jorrisse, ele indicava o partido que se podia tirar do famoso guarda-chuva. Da mesma forma, afirmava desde o comeo, a propsito do drama de Saint-Cloud, que o porteiro era o nico possvel assassino. Mas o mais interessante foi um trabalho encontrado em circulao entre os alunos do liceu, trabalho esse datilografado, com dez cpias e assinado por Isidore. Tinha como ttulo: "Arsne Lupin, seu mtodo, no que tem de clssico e no que tem de original". Seguia-se uma comparao entre o humor ingls e a ironia francesa. Era um estudo profundo de cada uma das aventuras de Lupin, onde as tcnicas do ilustre ladro apareciam com relevo extraordinrio, e onde era demonstrado o prprio mecanismo de sua maneira de agir, sua ttica toda pessoal, suas cartas aos jornais, suas ameaas, os anncios de seus roubos, em suma, o conjunto de truques que ele empregava para "cozinhar" a vtima escolhida e coloc-la num estado de esprito tal, que ela quase se expunha, merc do golpe maquinado contra ela. Tudo se efetuava, por assim dizer, com o seu prprio consentimento. E o estudo de Beautrelet sobre Lupin era to certo como crtica, to penetrante, to vivo e de uma ironia ao.mesmo tempo to ingnua e to cruel, que imediatamente os gozadores passaram para seu lado e a simpatia da multido desviou-se de Lupin para Beautrelet. Na luta que se tramava entre eles, a vitria do jovem retrico era proclamada de antemo.

Em todo caso, tanto M. Filleul quanto a polcia de Paris mostravam-se ciosos de lhe reservar a possibilidade dessa vitria. Por um lado, com efeito, no se conseguia estabelecer a verdadeira identidade de Mr. Harlington, nem fornecer uma prova decisiva de sua filiao ao bando de Lupin. Comparsa ou no, ele se calava obstinadamente. Alm disso, aps o exame de sua caligrafia, no se ousava mais afirmar ter sido ele o autor da carta. Um tal Mr. Harlington, provido de uma maleta e de uma carteira bem recheada, se havia hospedado no Grand-Htel, eis tudo que era possvel afirmar. Por outro lado, em Dieppe, M. Filleul estava confortavelmente instalado sobre as posies que Beautrelet conquistara para ele. No tinha avanado nem mais um passo. A respeito do indivduo que Mlle de Saint-Vran tinha tomado por Beautrelet, na vspera do crime, continuava o mesmo mistrio. As mesmas trevas, tambm, sobre tudo o que dizia respeito ao roubo dos quatro Rubens. Que fim teriam levado os quadros? E o carro que os tinha conduzido durante a noite, que caminho havia seguido? Em Luneray, em Yerville, em Yvetot, provas de sua passagem haviam sido recolhidas, bem como em Caudebec-en-Caux, onde se supunha que ele houvesse atravessado o Sena numa barca, durante a madrugada. Porm, quando se aprofundou a investigao, averiguou-se que o carro era conversvel e que seria impossvel serem empilhados nele quatro grandes quadros, sem que os funcionrios da barca os tivessem percebido. Devia ser provavelmente o mesmo carro, mas a dvida ainda permanecia: o que teria sido feito dos quatro Rubens? Eram outros tantos problemas que M. Filleul deixava sem resposta. Diariamente seus subordinados vasculhavam o quadriltero de runas. Quase todos os dias ele prprio ia dirigir as pesquisas. Mas da a descobrir o local onde Lupin agonizava supondo-se que a tese de Beautrelet estivesse certa , da a descobrir o esconderijo, havia um abisme que o excelente magistrado no demonstrava a menor disposio de transpor. Era ento natural que as atenes se voltassem para Beautrelet, pois ele havia sido o nico a dissipar as trevas que, longe dele, se reagrupavam mais densas e mais impenetrveis. Por que razo ele no se interessava mais pelo caso? Ao ponto em que ele o havia conduzido, bastar-lhe-ia um pequeno esforo para concluir. A pergunta lhe foi feita por um redator do Grana Journal, que se introduziu no Liceu Janson sob o falso nome de Bernod, dizendo-se amigo de Beautrelet. A resposta de Isidore foi sbia: Caro senhor, no existe apenas Lupin neste mundo, no existem apenas histrias de ladres e detetives; existe tambm uma realidade que se chama bacharelado. Ora, eu devo me apresentar para os exames em julho.

Estamos em maio. E eu no quero fracassar. Que diria o timo sujeito que meu pai? Mas o que diria ele se voc entregasse Arsne Lupin justia? Ora, h tempo para tudo. No prximo feriado... No dia de Pentecostes? Sim. Eu partirei sbado, 6 de junho, no primeiro trem. E nessa mesma noite Arsne Lupin ser preso. O senhor me d um prazo at domingo? perguntou, rindo, Beautrelet. Por que tanta demora? tornou o jornalista, ein tom compenetrado. Essa confiana inexplicvel, recm-nascida e j to forte, todo mundo a sentia em relao ao rapaz, se bem que, na verdade, os acontecimentos s a justificassem at um certo ponto. Que importa! Acreditava-se. Da parte de Beautrelet nada parecia difcil. Esperava-se dele o que se poderia esperar, no mnimo, de algum fenmeno de clarividncia e de intuio, de experincia e habilidade. Dia 6 de junho! A data estava estampada em todos os jornais. No dia 6 de junho, Isidore Beautrelet tomaria o trem para Dieppe e, noite, Arsne Lupin seria preso. A menos que daqui at l ele escape... objetavam os ltimos partidrios do aventureiro. Impossvel! Todas as sadas esto vigiadas. A menos, ento, que ele tenha sucumbido aos ferimentos retomavam os partidrios de Lupin, que preferiam a morte de seu heri sua captura. A rplica era imediata: Ora, vamos, se Lupin estivesse morto seus cmplices o saberiam e Lupin seria vingado. Beautrelet mesmo j o disse. E o 6 de junho chegou. Meia dzia de jornalistas esperavam Isidore na estao de Saint-Lazare. Dois deles queriam acompanh-lo na viagem, mas Beautrelet suplicou-lhes que no o fizessem. Ele seguiu, ento, s. Sua cabina estava vazia. Bastante cansado por uma srie de noites dedicadas aos livros, no tardou a dormir um sono pesado. Em sonhos, teve a impresso de que parava em vrias estaes e que diversas pessoas subiam e desciam do trem. Ao despertar, perto de Rouen, continuava s. Mas, sobre o encosto do banco oposto, uma grande folha de papel, presa por um alfinete ao tecido de cor cinza, estava bem diante de seus olhos. E nela, as seguintes palavras: "Cada qual com seus negcios. Ocupe-se dos seus. Seno, pior para voc".

"Perfeito", disse para si Beautrelet, esfregando as mos. "As coisas vo mal para o adversrio. Esta ameaa to estpida quanto a do falso cocheiro. Que estilo! Logo se v que no foi escrita por Lupin." O trem mergulhou no tnel que precede a velha cidade normanda. Na estao, Isidore deu uma ou duas voltas pela plataforma para desenferrujar as pernas. Quando se dispunha a voltar para a cabina, deixou escapar um grito: ao passar perto da banca de jornais, havia lido distraidamente na primeira pgina de uma edio especial do Journal de Rouen as seguintes linhas, cujo apavorante significado subitamente lhe ocorreu: "URGENTE Por um telefonema de Dieppe acabamos de saber que esta noite malfeitores penetraram no Castelo de Ambrumsy, amarraram e amordaaram Mlle de Gesvres e seqestraram Mlle de Saint-Vran. Vestgios de sangue foram encontrados a quinhentos metros do castelo. As autoridades esto de posse de uma charpe tambm manchada de sangue. H motivos para se temer que a infeliz moa tenha sido assassinada"? Isidore Beautrelet permaneceu imvel at Dieppe. Curvado, os cotovelos apoiados nos joelhos e as mos cobrindo o rosto, ele refletia. Em Dieppe alugou um carro. Na entrada de Ambrumsy encontrou o juiz, que confirmou a horrvel notcia. O senhor no sabe nada alm disso? perguntou Beautrelet. Nada. Acabo de chegar. Nesse momento o sargento de polcia aproximou-se de M. Filleul e entregou-lhe um pedao de papel amassado, rasgado e amarelado que acabavam de encontrar no longe do local onde estava a charpe. M. Filleul o examinou, depois entregou-o a Isidore, dizendo: Eis aqui algo que no nos ajudar muito em nossas pesquisas. Isidore virou e revirou o pedao de papel. Coberto de nmeros, pontos e sinais, ele compunha, exatamente, o seguinte desenho:

Trs O cadverPor volta das seis da tarde, encerradas as providncias, M. Filleul esperava, em companhia de seu escrivo, M. Brdoux, a carruagem que deveria reconduzi-los a Dieppe. O juiz parecia agitado e nervoso. Por duas vezes perguntou: Viu o jovem Beautrelet? No, senhor juiz... Que diabo! Onde estar ele? No foi visto durante o dia todo. Subitamente teve uma idia. Entregando sua pasta a Brdoux, deu a volta ao castelo rapidamente, e dirigiu-se para as runas. Prximo grande arcada, de bruos sobre o solo atapetado de longas agulhas de pinheiro, um dos braos dobrado sob a cabea, Isidore parecia adormecido. Que aconteceu, meu jovem? Est dormindo? No, apenas refletindo. Isso l hora de refletir! preciso ver primeiro. Estudar os fatos, procurar indcios, estabelecer os pontos de referncia. Depois, ento, atravs da reflexo, coordena-se tudo e chega-se verdade. Sim, eu sei... esse o mtodo usual... deve ser mesmo o certo. Mas eu tenho outro. Primeiro reflito, procuro, antes de tudo, encontrar a idia geral do caso. Depois imagino uma hiptese razovel, lgica, de acordo com a idia geral. S ento que procuro ver se os fatos se adaptam minha hiptese. Estranho mtodo o seu! E bastante complicado! Mtodo seguro, M. Filleul, enquanto o seu no o . Ora, vamos, fatos so fatos. Com adversrios comuns, sim. Mas desde que o inimigo tenha certa malcia, os fatos so os que ele escolhe. Esses famosos indcios sobre os quais o senhor baseia seu inqurito, o adversrio pode disp-los, livremente, segundo sua vontade. E quando se trata de um homem como Lupin, isso pode nos conduzir a grandes erros. O prprio Sholmes caiu na armadilha. Arsne Lupin est morto. Talvez. Mas sua quadrilha est a mesmo. E discpulos de tal mestre

so mestres tambm. M. Filleul tomou Isidore pelo brao e, puxando-o consigo, disse: Palavras, rapaz. Eis o que realmente importante, escute bem: Ganimard est, neste momento, retido em Paris. S chegar daqui a alguns dias. Por outro lado, o Conde de Gesvres telegrafou a Herlock Sholmes, que prometeu colaborar no caso a partir da prxima semana. No acha, meu rapaz, que haveria alguma glria em dizer a essas duas celebridades, no dia da sua chegada: "Sentimos muito, caros senhores, mas no pudemos esperar mais. A tarefa est encerrada"? Era impossvel algum confessar sua impotncia com ingenuidade maior que M. Filleul. Beautrelet reprimiu um sorriso e, fingindo ter sido iludido, respondeu: Confesso, senhor juiz, que no fui assistir ao inqurito de hoje, na esperana de que o senhor me comunicasse os resultados. Diga-me, o que descobriu? Pois bem: ontem noite, s onze horas, os trs policiais deixados de sentinela no castelo pelo Sargento Quevillon receberam dele um recado, chamando-os urgentemente para Ouville, onde se encontra o regimento. Montaram imediatamente seus cavalos e, quando l chegaram... Constataram que haviam sido enganados, que a ordem era falsa e que nada havia a fazer seno voltar a Ambrumsy adiantou Beautrelet. o que fizeram, sob o comando do sargento. Tinham estado ausentes durante uma hora e, enquanto isso, o crime havia sido cometido. De que forma? Simples. Uma escada, trazida da granja, foi encostada no segundo andar. Depois, uma vidraa cortada, uma janela aberta e dois homens, munidos de uma lanterna, penetraram no quarto de Mlle de Gesvres. E, antes que ela tivesse tempo de gritar, amordaaram-na. Em seguida a amarraram com cordas e abriram de mansinho a porta do quarto onde dormia Mlle de Saint-Vran. Mlle de Gesvres ouviu um gemido abafado e, em seguida, o barulho de uma pessoa se debatendo. Um minuto depois ela avistou os dois homens levando sua prima, igualmente amarrada e amordaada. Passaram diante dela e saram pela janela. Extenuada, aterrorizada, Mlle de Gesvres desmaiou. Mas, e os ces? M. de Gesvres no havia comprado dois mastins? Foram encontrados mortos, envenenados. Mas por quem? Ningum conseguia se aproximar deles! Mistrio. O fato que os dois homens atravessaram tranqilamente as runas e saram pela famosa portinhola. Cruzaram o bosque, contornando as antigas carreteiras, e s a quinhentos metros do castelo, junto de uma rvore

chamada o Grande Carvalho, que eles pararam... e puseram em execuo seu projeto. Se vieram com a inteno de matar Mlle de Saint-Vran, por que no o fizeram dentro do quarto? No sei. Talvez o incidente que os levou a isso s se tenha produzido ao sarem do castelo. Talvez a moa tenha conseguido se desamarrar. Para mim, a charpe encontrada havia servido para amarrar seus pulsos. Em todo caso, foi perto do Grande Carvalho que eles a abateram. As provas que recolhi so irrefutveis. Mas, e o corpo? No foi encontrado, o que, alis, no de surpreender. A pista que segui me levou at a igreja de Varengeville, ao antigo cemitrio suspenso no alto do penedo. Ali h um precipcio, um abismo de mais de cem metros. Embaixo, os rochedos e o mar. Dentro de um ou dois dias a mar devolver o corpo praia. Evidentemente, tudo isso bem simples. Sim, tudo muito simples e no me embaraa. Lupin est morto. Seus cmplices souberam disso e, para se vingarem, tal qual haviam escrito, assassinaram Mlle de Saint-Vran. So fatos que no tm nem mesmo necessidade de serem conferidos. Mas, e Lupin? Lupin? Sim, que fim levou? Provavelmente seus cmplices levaram o cadver, ao mesmo tempo em que raptavam a moa. Mas que prova temos disso? Nenhuma. Tampouco de sua permanncia nas runas... ou de sua morte, ou vida. A que est todo o mistrio, meu caro Beautrelet. O assassinato de Mlle Raymonde no um desfecho. Pelo contrrio, uma complicao. O que se tem passado, h dois meses, no Castelo de Ambrumsy? Se ns no decifrarmos este enigma, outros viro e nos passaro a perna. E que dia vo chegar, esses outros? Quarta-feira... talvez tera... Beautrelet pareceu fazer um clculo, depois declarou : Senhor juiz, hoje sbado. Preciso voltar ao liceu na segunda noite. Pois bem, segunda de manh, caso o senhor queira estar aqui s dez horas, eu lhe revelarei a chave do mistrio. Realmente, Beautrelet?... Voc acredita?... Tem certeza? Pelo menos, espero. E agora, aonde que voc vai? Vou ver se os fatos se adaptam idia geral que comeo a discernir. E se no se adaptarem?

Bem, nesse caso os fatos que estaro errados respondeu, rindo, Beautrelet. Se isso se confirmar, terei que procurar fatos mais maleveis. At segunda, ento. At segunda. Alguns minutos depois, M. Filleul viajava para Dieppe, enquanto Isidore, munido de uma bicicleta emprestada pelo Conde de Gesvres, pedalava pela estrada de Yerville e de Caudebec-en-Caux. Havia um ponto sobre o qual o rapaz fazia questo de formar uma opinio segura, porque esse ponto lhe parecia ser, justamente, o mais fraco do inimigo. No se faz desaparecer, facilmente, objetos da dimenso dos quatro Rubens. Eles tinham que estar em algum lugar. Se, no momento, era impossvel encontr-los, no seria possvel descobrir o caminho pelo qual haviam desaparecido? A hiptese de Beautrelet era a seguinte: o carro havia, realmente, transportado os quatro quadros, mas antes de chegar a Caudebec tinham sido transferidos para outro carro, que atravessara o Sena acima ou abaixo de Caudebec. Abaixo, a primeira barca era a de Quilleboeuf, muito freqentada e, conseqentemente, perigosa. Acima havia a barca de La Mailleraie, grande burgo isolado, fora de toda e qualquer comunicao. Por volta da meia-noite, Isidore havia atravessado as dezoito lguas que o separavam de La Mailleraie e batia porta de uma hospedaria situada beira do rio. Dormiu ali e, pela manh, interrogou os marinheiros da barca. As listas de passageiros foram consultadas. Nenhum carro havia atravessado na quinta-feira, 23 de abril. Ento, alguma carruagem? insinuou Beautrelet. Uma charrete? Ou uma carroa? Tambm no. Durante toda a manh Isidore procurou se informar. J ia partir para Quilleboeuf quando o empregado da hospedaria lhe disse: Naquela manh, quando eu chegava de minhas frias, bem que eu vi uma charrete. S que ela no atravessou o rio. No atravessou? No. Colocaram sua carga numa espcie de chata, uma pniche, como eles dizem, que estava amarrada ao cais. E de onde vinha essa charrete? Oh, eu a reconheci perfeitamente. Era a do Mestre Vatinel, o charreteiro. Onde ele mora? Num lugarejo de Louvetot.

Beautrelet consultou seu mapa. Louvetot situava-se no entroncamento da estrada que ia de Yvetot a Caudebec, um pequeno caminho tortuoso que atravessava os bosques at La Mailleraie. Somente s seis da tarde Isidore conseguiu descobrir, numa taberna, o Mestre Vatinel. Era um desses velhos normandos, sabidos, sempre com um p atrs, que desconfiam de qualquer forasteiro, mas que no sabem resistir atrao de uma moeda de ouro e influncia de alguns goles. Bem, senhor, naquela manh os homens do carro marcaram encontro comigo s cinco horas na encruzilhada. Eles me entregaram quatro grandes embrulhos, desse tamanho. Um dos homens me acompanhou. E ns levamos a coisa at a pniche. O senhor fala deles como se j os conhecesse. claro que conhecia! Era a sexta vez que trabalhava para eles. Isidore estremeceu. O senhor diz... a sexta vez? Desde quando? Todos os dias, antes daquele, ora! Mas era outra espcie de volume. Uns pedaes de pedra... ou ento coisas bem menores, que eles carregavam como se fosse o Santssimo Sacramento. Ah! Nessas coisas a ningum podia tocar... Mas, o que que o senhor tem? O senhor est todo plido... Nada... o calor... Beautrelet saiu cambaleando. A alegria e o imprevisto da descoberta o deixaram zonzo. Voltou tranqilamente, dormiu na aldeia de Varengeville, na manh seguinte passou uma hora na prefeitura, com o bibliotecrio, e depois retornou ao castelo. Uma carta o esperava, "aos cuidados do senhor Conde de Gesvres". Continha as seguintes palavras: "Segundo aviso. Cale a boca. Seno..." Bem murmurou ele , vou ter que tomar algumas precaues para minha segurana pessoal. Seno, como dizem eles... Eram nove horas quando Beautrelet dirigiu-se at as runas. Deitou-se perto d arcada e fechou os olhos. Como , rapaz? Est contente com suas buscas? Era M. Filleul, que chegava na hora marcada. Mais ou menos, senhor juiz. O que quer dizer? Quero dizer que estou pronto a cumprir minha promessa, apesar desta carta no me agradar nem um pouco.

Mostrou a carta a M. Filleul. Ora, bobagens! Espero que isso no o impea de... De lhe contar o que sei? No, senhor juiz. Eu prometi, eu cumprirei. Antes de dez minutos saberemos... parte da verdade. Parte? Sim. A meu ver, o esconderijo de Lupin no constitui todo o problema. O resto veremos depois. M. Beautrelet, nada mais me espanta de sua parte. Mas como conseguiu descobrir? Oh, foi fcil. Lembra-se da carta de Mr. Harlington para M. Etienne de Vaudreix, ou melhor, Arsne Lupin? A carta interceptada? Sim. Nela h uma frase que sempre me intrigou. As palavras eram: "Assim que estejam em seu poder os quatro quadros de M. de Gesvres, queira envi-los conforme combinado. O senhor poder juntar o restante, caso o tenha conseguido, o que duvido bastante". Com efeito, era exatamente isso. O que seria esse restante? Um objeto de arte? Uma curiosidade? O castelo no oferecia nada de precioso alm dos Rubens e das tapearias. Seriam jias? Existem poucas e de pouco valor. Ento o qu? Por outro lado, poderamos admitir que pessoas como Lupin, com uma habilidade to prodigiosa, no conseguissem juntar encomenda esse restante que haviam evidentemente proposto? Empreendimento difcil, provvel; excepcional, sem dvida, mas possvel, portanto certo, uma vez que Lupin o desejava. No entanto ele falhou; nada desapareceu observou o juiz. Ele no falhou; alguma coisa desapareceu. Sim, os Rubens... Os Rubens e outra coisa. Algo que foi substitudo por um idntico, como foi feito com os Rubens. Algo muito mais extraordinrio, mais raro e mais precioso do que os Rubens. O que foi, afinal? Voc est me deixando curioso. Enquanto andavam entre as runas, os dois homens tinham se dirigido portinhola. Quando caminhavam ao longo da Chapelle-Dieu, Beautrelet estancou. O senhor quer mesmo saber, senhor juiz? Se quero! Beautrelet trazia nas mos uma bengala, um basto slido e nodoso. Bruscamente, com um golpe da bengala, fez saltar em pedaos uma das estatuetas que ornavam o portal da capela. Voc est louco! protestou M. Filleul, fora de si, precipitando-se

para os pedaos da estatueta. Voc um louco! Este velho santo era admirvel! Admirvel! repetiu Isidore, ao mesmo tempo em que, rodando o basto, derrubava a Virgem Maria. M. Filleul lanou-se sobre Beautrelet, atracando-se com ele. Rapaz, no vou deix-lo cometer... Isidore livrou-se e um Rei Mago voou pelos ares; em seguida, um prespio com o Menino Jesus. Um movimento mais e eu atiro! O Conde de Gesvres havia chegado e apontava um revlver. Beautrelet caiu na gargalhada. Atire, senhor conde... Atire como se estivesse num parque de diverses. Veja esse bom homem que segura a cabea com as mos. E o So Joo Batista se espatifou. Oh! protestou o conde, engatilhando o revlver. Que profanao! Obras-primas, como essas! Falsas, senhor conde! Como? Que est dizendo? gritou M. Filleul, enquanto desarmava o conde. Lixo, argamassa! Ser possvel? Massa porosa! Vazia! Puro nada! O conde abaixou-se e recolheu um caco de estatueta. Olhe bem, senhor conde... gesso! Gesso patinado, mofado, esverdeado como pedra antiga, mas gesso... moldes de gesso... eis o que resta das obras-primas... eis o que eles fizeram em poucos dias... eis o que M. Charpenais, o copista de Rubens, preparou h um ano. E segurando o brao de M. Filleul: Que acha, senhor juiz? Bonito, no? No imenso? Gigantesco? A capela gtica inteira roubada, pedra por pedra. Uma multido de estatuetas capturadas e substitudas por bonecos de estuque. Um dos mais magnficos exemplos de uma poca de arte incomparvel, confiscado! A Chapelle-Dieu, enfim, roubada! No formidvel?! Ah, senhor juiz, que gnio, esse homem! O senhor est entusiasmado demais, M. Beautrelet. Nunca nos entusiasmamos demais quando se trata de indivduos dessa marca. Tudo o que ultrapassa a mediocridade deve ser admirado. E esse homem paira acima de tudo. Existe nesse roubo uma riqueza de concepo, uma fora, uma potncia, uma destreza, uma desenvoltura, que me arrepiam. Pena que ele esteja morto caoou M. Filleul , do contrrio

acabaria roubando as torres de Notre-Dame. No zombe, senhor falou Isidore levantando os ombros. Mesmo morto ele capaz de emocion-lo. No o nego, M. Beautrelet, e confesso mesmo que no sem uma certa dose de emoo que me preparo para contempl-lo... Isto se seus camaradas no fizeram desaparecer o cadver. Pode-se admitir, ento observou o Conde de Gesvres , que tenha sido ele a pessoa ferida por minha pobre sobrinha? Foi ele mesmo, senhor conde garantiu Beautrelet. Foi ele mesmo que tombou nas runas, atingido pela bala disparada por sua sobrinha. Foi ele quem ela viu levantar-se, cair novamente e arrastar-se em direo grande arcada, para se levantar pela ltima vez. Por um verdadeiro milagre, que eu lhe explicarei daqui a pouco, ele alcanou este refgio de pedra que viria a ser seu tmulo. E, com a bengala, Isidore bateu na soleira da capela. O qu? Como? exclamou M. Filleul admirado. Seu tmulo?... Voc acredita que esse impenetrvel esconderijo... Encontra-se aqui, senhores. Mas ns vasculhamos tudo! Procuraram mal. No existe esconderijo nenhum aqui protestou M. de Gesvres. Eu conheo bem a capela. Existe, sim, senhor conde* V at a prefeitura de Varengeville, onde esto recolhidos todos os papis que se encontravam na antiga parquia de Ambrumsy, e o senhor saber, por esses papis datados do sculo XVIII, que sob a capela existia uma cripta. Essa cripta pertencia certamente capela romana, sobre cuja localizao esta aqui foi construda. Mas como teria Lupin conhecido esse detalhe? perguntou M. Filleul. Muito simplesmente atravs dos trabalhos que ele teve de executar para roubar a capela. Ora, Beautrelet, voc est exagerando. Ele no roubou toda a capela. Por exemplo, nenhuma dessas pedras da base foi trocada. Evidentemente que no. Ele s moldou aquilo que tinha valor artstico. As pedras lavradas, as esculturas, as estatuetas, um te