família escrava no brasil: um debate historiográfico - amanda rodrigues de miranda

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  • 8/13/2019 Famlia escrava no Brasil: um debate historiogrfico - Amanda Rodrigues de Miranda

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    Famlia escrava no Brasil: um debate historiogrfico

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG

    Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 156

    Famlia escrava no Brasil: um debate historiogrfico

    Amanda Rodrigues de MirandaEstudante de Graduao do curso de Histria

    Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP)[email protected]

    RESUMO: Este artigo refere-se ao estudo sobre a formao de famlias entre os escravosafricanos e seus descendentes que viveram na colnia e no Imprio brasileiro, entre os sculosXVIII e XIX. Utilizando como fonte para este estudo os discursos contidos em alguns textos dacrnica colonial e em manuais de administrao de propriedades e escravos. Tais textos visavamauxiliar no gerenciamento das propriedades de terra e das escravarias rurais.

    PALAVRAS-CHAVE: Histria do Brasil, Escravido, Famlia.

    ABSTRACT:This paper refers to the study on the formation of families among african slavesand their descendants who lived in the brazilian colony and Empire, between the XVIII and XIXcenturies. The sources for this study were the speeches contained in some texts from the colonialchronicle and in slaves and properties administration manuals. Such texts sought to help on themanagement of land and rural slaveries.

    KEYWORDS: History of Brazil, Slavery, Family.

    Introduo

    O presente artigo visa contribuir para o debate historiogrfico acerca da famlia escrava

    no Brasil. Apresentamos resultados preliminares de uma pesquisa de Iniciao Cientifica

    PIBIC/CNPq com durao de dois anos, em que se realizou, numa primeira etapa, um debate

    historiogrfico, utilizando como fonte os escritos de autores que dissertaram sobre a famlia

    nuclear cativa. Observamos algumas divergncias entre estes escritos, principalmente quando

    consideradas as fontes utilizadas por cada autor. Os argumentos utilizados pelos autores que no

    vislumbravam a possibilidade de haver ncleo familiar formado pelos escravos africanos serviram

    muitas vezes de incentivo para novos estudos sobre a famlia cativa, com o intuito de comprovarsua existncia e formas. A segunda etapa da pesquisa concentrou-se na investigao de vestgios

    desses ncleos familiares entre os sculos XVIII e XIX nos discursos contidos em alguns textos

    da crnica colonial e em manuais de administrao de propriedades e escravos. Tais textos

    visavam auxiliar no gerenciamento das propriedades de terra e das escravarias rurais.

    Debate historiogrfico sobre o tema da famlia escrava no Brasil

    A possibilidade da existncia de um ncleo familiar entre os escravos africanos e seus

    descendentes que viviam no Brasil, ou mesmo entre aqueles que aqui nasceram, ainda um tema

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    muito discutido na historiografia brasileira. As divergncias observadas entre historiadores que se

    dedicaram ao tema da escravido ocorrem principalmente pela negao da existncia de tal

    estrutura familiar, baseando-se em diferentes argumentos. De outro lado, a historiografia traz

    autores que refutam tais ideias, que se dedicaram a estudar o tema da famlia escrava sustentando

    suasassertivas principalmente em dados demogrficos, que revelam unies ou casamentos entre

    os cativos com a gerao de filhos, muitas vezes numerosos, vivendo em lugares reservados.

    No escritos de alguns autores como o de Queiroz1por exemplo, notou-se que o foco

    no foi o tema da famlia escrava, mas do escravismo em geral. O estudo, porm, considerou

    muitos fatores que dificultariam as unies cativas, principalmente a posio dos senhores de

    escravos, que, segundo a autora, eram contrrios ao casamento de cativos e no se preocupavam

    em mant-los unidos, pois vendiam os membros de uma mesma famlia separadamente.

    Neste aspecto, o estudo de Florentino e Ges2nos mostra que, por considerarem que a

    famlia responsvel pela paz nas senzalas, referem-se de forma positiva aos senhores de

    escravos, que muitas vezes viam vantagem em possibilitar o casamento e a constituio familiar

    do negro se isso fosse resultar na paz entre eles. Assim como Slenes3, que em seus estudos sobre

    famlia escrava em Campinas trata a viso do senhor em relao ao casamento escravo, os

    senhores mdios e grandes de Campinas no s olhavam com favor, mas incentivavam o

    casamento religioso de seus escravos4.

    Outra importante autora da historiografia que tambm contribui, assim como Slenes e

    Florentino e Ges, para as evidncias sobre a existncia do ncleo familiar cativo Hebe Maria

    Mattos de Castro5. possvel perceber em seu postulado que o levantamento de inventriospost-

    mortem em algumas regies, como Campos, Capivari e Recncavo da Guanabara, na Baixada

    Fluminense, traz evidncias da formao familiar cativa.

    Claro que os autores citados se valeram de fontes documentais diferenciadas para o

    tratamento do tema sobre escravido e famlia escrava. Queiroz utiliza fontes legislativas,

    principalmente leis emancipadoras em So Paulo durante o sculo XIX, para tratar a questo

    1 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravido Negra em So Paulo.Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1977. e ______.Escravido negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org). Historiografia Brasileira em Perspectiva.So Paulo:Contexto, 1998, p.114.2FLORENTINO, M. e GES, J.R.A Paz das senzalas: famlias escravas e trfico atlntico, Rio de Janeiro, 1790-1850.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997.3SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanas e recordaes na famlia escrava, Brasil sudeste, sculo XIX.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.4______.______, p.93.5CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasilsculo XIX. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1998, p. 61-80.

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    escravista, diferentemente de Florentino e Ges, Slenes e Mattos, que utilizaram fontes de cunho

    demogrfico.

    Utilizando-se tambm de fontes como relatos de viajantes para justificar a

    impossibilidade da famlia cativa, Queiroz procura demonstrar que no consta muitas vezes nos

    registros destes, citaes referentes famlia escrava. Neste aspecto, Slenes, em seu estudo,

    analisa criticamente essa fonte, demonstrando no ser possvel basear-se somente nesta fonte

    para procurar indcios desse ncleo familiar porque os viajantes muitas vezes no procuraram

    investigar essa relao parental do negro escravo, preocupando-se em descrever outros aspectos

    da cultura brasileira, suas riquezas naturais, entre outros.

    O que Queiroz pontuou e o que tambm tratou Mattoso 6 refere-se principalmente a

    vida sexual do negro, que resultaria nas imposies constituio familiar, como, por exemplo, a

    falta de privacidade nas senzalas, a predominncia do escravo do sexo masculino ou a prtica do

    aborto entre as cativas, entre outros fatores.

    Na outra perspectiva do debate, esto se desenvolvendo em vrias regies do Brasil

    projetos de pesquisa que visam estudar a formao da famlia escrava e que contribuem para

    demonstrar a existncia de ncleos familiares formados por negros cativos. Foram lidos alguns

    estudos, que a poca ainda estava em andamento, de pesquisadores da regio Nordeste7, Sudeste8,

    entre outras, principalmente se valendo de fontes da demografia que demonstraram a existncia

    de laos afetivos formado pelos cativos nessas regies.

    Na segundo etapa do projeto, de forma a contribuir com o debate, foram utilizados

    como fontes: textos religiosos, manuais administrativos, discursos polticos e a obra de um

    viajante, para buscar indcios da formao familiar cativa no Brasil entre os sculos XVIII e XIX,

    os quais sero descritos a seguir.

    Textos religiosos

    6MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Ser Escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 2003, p. 124 e seguintes.7O estudo de: FERREIRA, Claudia Regina Rezende. Laos Familiares entre escravos no Rio Grande do Norte.UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte. (Pesquisa desenvolvida no mestrado em Histria ainda em andamento peloPPGH-UFRN). A autora analisa a formao familiar cativa na freguesia de Nossa Senhora da Apresentao nosculo XVIII, na cidade de Natal, utiliza como fonte assentos de batismo e casamento, onde foi possvel verificargrande quantidade de unies entre os escravos.8GRAA FILHO, Afonso de Alencastro, PINTO, Fabio Carlos Vieira, MALAQUIAS, Carlos de Oliveira. Famliasescravas em Minas Gerais nos inventrios e registros de casamento o caso de So Jos do Rio das Mortes, 1743-1850. Varia Histria, Belo Horizonte, v. 23, n. 37, p.184-207, jan./jun. 2007. Disponvel em:. Acesso em: 25 set 2012.

    Os autores pautam nesse estudo principalmente no que se refere s relaes existentes entre os cativos, a escolha doscnjuges, entre outras, na freguesia de So Jos do Rio das Mortes em Minas Gerais.

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    Analisados textos escritos por Jesutas, o de Jorge Benci9 pretendia ensinar ou

    demonstrar aos senhores como estes deveriam tratar seus escravos. No discurso de Benci 10, esse

    tratamento intitulado de obrigaes dos senhores para com os servos. Essas obrigaes eram

    em relao ao sustento, vestimenta e cuidado nas enfermidades dos escravos. Tambm cabia ao

    senhor a obrigao de ensinar a doutrina crist e corrigir seus escravos com o uso de castigos.

    Acerca do matrimonio, defendia que o senhor deveria permiti-lo entre seus escravos,

    sendo direito dos livres e dos cativos casarem-se e multiplicarem sua espcie: o estado do

    matrimnio to livre ainda aos cativos, que no h poder na terra (diz o doutssimo Padre

    Sanchez) que lho possa impedir11. Escreveu aos senhores sobre a importncia de conceder e no

    proibir o matrimnio entre os cativos porque considerava que, desta forma, evitaria o pecado

    entre os mesmos: Pergunto: para que foi institudo o Santo Matrimnio? No s para a

    propagao do gnero humano, seno tambm (diz o mesmo Sanchez j citado) para remdio da

    concupiscncia e para evitar pecados12.

    Assim como nos textos de Antonil e Ribeiro Rocha, como veremos adiante, o de Benci

    tambm trazia a preocupao em falar aos senhores sobre a permisso para que seus escravos se

    casassem na Igreja, no dificultando o matrimnio entre eles. Essa preocupao remete tambm a

    uma forma de se evitar o pecado, e pode ser entendida como referente s unies consensuais,

    que eram muitas vezes autorizadas pelos senhores, ou mesmo de tentar evitar relaes comparceiros/as de diferentes condies sociais.

    O discurso tambm se direciona ao senhor quando trata da separao entre os escravos

    depois de casados:

    E no devendo os senhores impedir o matrimnio aos servos, tambm lhes nodevem impedir o uso dele depois de casados apartando o marido da mulher edeixando a um em casa, e mandando vender ou viver o outro em partes toremotas, que no possam fazer vida conjugal [...].13

    9BENCI, Jorge.Economia crist dos senhores no governo dos escravos(1700). So Paulo: Grijalbo, 1977.10Jesuta italiano radicado de longa data no Brasil. Seu livro foi redigido na Bahia por volta de 1700 e impresso emRoma em 1705. Mais informaes sobre Benci podem ser vistas em MARQUESE, Rafael de Bivar. Administrao eescravido: ideias sobre a gesto da agricultura escravista brasileira. So Paulo: Hucitec, 2010, p. 79.11BENCI, Jorge. Economia crist dos senhores no governo dos escravos(1700), p. 2. Benci faz referncia ao padre jesutaToms Sanchez, nascido em Crdoba, Espanha, em 1550 e falecido em 1610 em Granada, Espanha. Sanchez foi umtelogo, moralista e canonista espanhol, exercendo o cargo de professor de Teologia Moral e Direito Cannico emvrios colgios. Escreveu um substancioso trabalho sobre o matrimnio, procurando responder s questes econtrovrsias da poca. Deixou escrito o Opus Morale, publicado postumamente. Informaes disponveis em. Acesso em: 18 jan. 2012.12______.Economia crist dos senhores no governo dos escravos(1700),p.10213______. ______, p.103.

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    Neste ponto, Benci afirmava que somente a Igreja poderia separar os escravos casados,

    sendo inaceitveis estas separaes por vontade dos senhores.

    Alguns estudiosos da famlia escrava que utilizaram fontes demogrficas, como Robert

    Slenes, verificaram que em muitos plantis de Campinas estado de So Pauloprincipalmente

    nos grandes e mdios, os senhores no separavam os membros da famlia cativa, casais e filhos.

    Quando vendiam ou separavam os que tinham famlia, os senhores corriam o risco destes

    fugirem para voltarem aos seus entes. Ao verificar essa forma de agir dos escravos, Slenes faz a

    seguinte observao:

    [...] esta disposio dos escravos de agirentre outras coisas, de bater com oscalcanhares contra o patrimnio do senhor que fez com que um senhor naregio de Campinas declarasse freqentemente, referindo-se aos jovensescravos, preciso casar esse negro e dar-lhe um pedao de terra para assentara vida e tomar juzo.14

    Pode-se entender que a inteno do senhor de manter o cativo preso posse, o

    casamento e a formao de uma famlia, juntamente com um pedao de terra para seu prprio

    cultivo, resultaria numa forma de evitar fugas. Slenes, porm, considera que um erro

    transformar a famlia escrava em condio para a manuteno e domnio dos senhores: [...] fazer

    isso seria negar os pressupostos que at agora tm guiado ambos os lados do debate sobre famlia

    escrava. A famlia importante para a transmisso e reinterpretao cultural e da experincia

    entre as geraes15.

    Pela leitura de Economia crist, pode-se inferir que havia uma manifestao da Igreja,

    endereada aos senhores, contrria a que estes separassem os escravos que viviam em famlia,

    com o argumento de que tal atitude seria um pecado e iria contra o direito divino. S a Igreja

    tinha o direito de separar as unies se fosse essa a vontade dos escravos.

    A proibio aos senhores de separarem por venda ou outros motivos os cativos que

    constituam famlias somente seria legalizada em 1871, com a Lei do Ventre: Art. 4, onde se diz: 7. - Em qualquer caso de alienao ou transmisso de escravos, prohibido, sob pena de

    nullidade, separar os conjuges e os filhos menores de 12 annos do pai ou mai 16.

    14SLENES, Robert W.Na senzala, uma flor, p.111.15______. ______,p.114.16LEI do Ventre Livre. Disponvel em:

    Acesso em: 03 nov. 2012.

    http://www.camara.gov.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/leis1871/pdf17.pdf#page=6http://www.camara.gov.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/leis1871/pdf17.pdf#page=6http://www.camara.gov.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/leis1871/pdf17.pdf#page=6http://www.camara.gov.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/leis1871/pdf17.pdf#page=6http://www.camara.gov.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/leis1871/pdf17.pdf#page=6
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    Alm dos processos econmicos na colnia, a obra de Antonil17 traz tambm uma

    anlise do sistema escravista nesse perodo. O autor18ressalta a predominncia da mo de obra de

    escravos africanos nos engenhos do Brasil descrevendo as obrigaes que o senhor deveria ter

    para com seus escravos. Sobre os casamentos entre estes, o autor escreve:

    Opem-se alguns senhores aos casamentos dos escravos, e escravas, e nosomente no fazem caso dos seus amancebamentos, mas quase claramente osconsentem, e lhes do princpio, dizendo: Tu fulano a seu tempo casars comfulana: e da por diante os deixam conversar entre si, como se j fossemrecebidos por marido, e mulher [...].19

    Para formalizar seu casamento na Igreja o escravo precisava do consentimento do

    senhor, que muitas vezes no o permitia. Mas isso no significava a ausncia, no cativeiro, dos

    laos entre os cativos e nem a proibio desses laos por parte do senhor. A situao escapava

    das regras de uma sociedade crist que criticava as unies consensuais. No texto de Antonil,

    verifica-se que estas ocorriam com a permisso dos senhores, mas no eram aceitas pelos

    religiosos, que pregavam a formalizao desses laos.

    No Etope resgatado..,20, do padre Manuel Ribeiro Rocha21, possvel perceber a

    preocupao do padre em doutrinar os proprietrios e os escravos africanos no catolicismo,

    valendo-se algumas vezes de passagens bblicas para comprovar as obrigaes cabveis aos

    senhores frente ao(s) seu(s) escravo(s) e do escravo perante seu senhor.

    No que se refere ao tratamento dado sobre a formao familiar cativa, o autor direciona

    seu discurso a instruir os possuidores e os escravos nos bons costumes, ou seja, mostrar que os

    habitantes do Brasil deveriam seguir as leis divinas, obedecer aos sacramentos da Igreja Catlica e

    viver como cristos seguindo as normas da Igreja. Nesse sentido fica evidente a importncia dada

    17ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: EDUSP, 1982.18Joo Antonil (Joo Antnio Andreoni, S.J), nascido em 8 de fevereiro de 1649 em Luca, na Toscana, entrou para aCompanhia de Jesus a 20 de maio de 1667. Chegou ao Brasil, a convite do padre Antnio Vieira, aos 32 anos deidade, na qualidade de visitador de sua Ordem. Na Bahia, onde faleceu aos sessenta e sete anos, a 13 de maro de1716, exerceu os cargos de reitor do Colgio dos Jesutas e Provincial do Brasil. Informaes sobre Antonil constamnaNota Bibliogrficade Cultura e opulncia do Brasil.Escrita por Fernando Sales, p.11.19ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil,p. 90.20 ROCHA, Manoel Ribeiro. Etope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instrudo e libertado (1758). Campinas:IFCH/Unicamp, 1991. Cadernos do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, v.21. (1 ed.: Lisboa: Of. Patriarchal deFrancisco Luiz Ameno, 1758.21 Informaes sobre ROCHA, Manuel Ribeiro, escritas por Paulo Suess na introduo de: Etope resgatado..., ondeconsta que a obra foi escrita na Bahia pelo sacerdote e advogado portugus Manoel Ribeiro Rocha. Suess escreve queat hoje, sabe-se pouco sobre o autor do Etope resgatado. O frontispcio original do livro declara Manoel RibeiroRocha natural de Lisboa, formado bacharel na Universidade de Coimbra, morador da cidade da Bahia, onde atuavacomo advogado. Ver ROCHA, Manoel Ribeiro. Etope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instrudo e libertado:

    discurso Teolgico-jurdico sobre a libertao dos escravos no Brasil de 1758. Introduo crtica de Paulo Suess. Petrpolis;Vozes; So Paulo: CEHILA, 1992.

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    pelo padre formalizao dos laos afetivos entre os cativos e o respeito ao casamento entre os

    mesmos por parte dos senhores.

    Ribeiro Rocha escreveu sobre a importncia de manter juntos os escravos casados, no

    os separando pela venda ou mudana do proprietrio para longe, distanciando os escravos que

    formalizassemseusmatrimnios:

    Conforme o direito Divino e humano, os escravos e escravas podem casar comoutras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhes no podem impedir oMatrimnio, [...] nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro,por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento, o no possa seguir [...]. 22

    Mesmo se tratando de um discurso teolgico no qual se percebem os interesses dos

    sacerdotes catlicos na constituio de uma sociedade pautada pelos moldes cristos,

    importante considerar as instrues dirigidas aos proprietrios sobre o casamento entre os

    cativos. Prezando por sua manuteno, evitando a venda e a distncia; demonstrando uma forma

    de evitar as unies consensuais, no aceitas pela Igreja Catlica, e a necessidade de formalizar as

    unies perante um padre, j que sem o consentimento do senhor os cativos no poderiam faz-

    lo. Alm da formalidade nas unies, vislumbra-se que, mesmo em cativeiro, ocorriam entre os

    escravos manifestaes afetivas e relaes parentais indcio claro de formao de famlias entre

    os cativos inseridos em um discurso que, a rigor, no dava centralidade a essa temtica.

    Para o tema aqui proposto, as obras citadas foram relevantes. Isso porque, ao

    escreverem sobre os escravos africanos e seus descendentes na poca colonial, todos trataram do

    casamento entre os cativos, e o tratamento dado ao tema praticamente o mesmo nos trs textos

    setecentistas. Mostra-se o incentivo aos senhores em casarem seus escravos e a preocupao em

    mostrar a esses senhores que no proibissem nem impedissem o casamento e a formao familiar

    entre os cativos, no sendo aceita tambm a separao dessas famlias ou dos casais por motivo

    de venda.

    Dessa forma, pode-se entender que os escravos que viviam na Amrica portuguesa nosculo XVIII tinham a possibilidade de formarem famlias e de estabelecerem laos afetivos.

    Ainda que houvesse muitas adversidades inerentes ao sistema escravista, no foi de todo negado

    aos cativos que vivessem com um parceiro(a) e que formassem famlias. Caso contrrio, no faria

    sentido haver, nesses discursos, o aconselhamento aos senhores para no proibirem os

    casamentos.

    22______.Etope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instrudo e libertado (1758), p. 131.

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    Os religiosos aqui citados no se posicionaram contrrios escravizao dos africanos

    no Brasil. No h indcios, em seus textos, de defesa do fim da mo de obra cativa na Amrica: os

    religiosos apenas buscaram escrever sobre as obrigaes que os senhores no Brasil deveriam ter

    com seus escravos. Nessas obrigaes estavam incluso o oferecimento correto de alimento,

    vestimenta e educao religiosa ao cativo. Tambm se manifestaram em relao ao castigo e ao

    trabalho do escravo, porm no se mostraram contrrios a essas atitudes.

    Com efeito, procuravam minimizar o sofrimento do cativo, mas no acabar com o

    cativeiro; mostravam-se contrrios ao excesso e no ao castigo; direcionavam seus discursos para

    o cuidado com o escravo e no ao fim da escravido. No eram, portanto, como algumas vezes

    se escreveu, abolicionistas ou precursores do abolicionismo.

    Emlia Viotti23, por exemplo, tratou o discurso de Ribeiro Rocha, no Etope resgatado...,

    como manifestao contrria escravido africana, sendo considerada, pela autora, uma obra

    precursora do abolicionismo, argumentando contra o trfico, acusando-o de ilegtimo, e

    chegando mesmo a considerar que os escravos deveriam ser libertados mediante resgate, por

    pagamento em dinheiro ou atravs da prestao de vinte anos de servio24.

    O que se encontrou nos discursos religiosos do comeo do sculo XVIII foram crticas

    forma que os africanos eram tratados pelos seus senhores e no uma campanha pela abolio da

    escravido. Procuravam, em seus textos, melhorar a situao dos negros em cativeiro, com

    indicaes aos senhores nas obrigaes que deveriam ter com seus escravos. A mo de obra

    cativa era essencial para a economia agrcola brasileira e seria utilizada enquanto o Brasil no se

    adaptasse exclusivamente ao trabalhador livre.

    Nos escritos do ento bispo de Pernambuco, Jos Joaquim da Cunha Azeredo

    Coutinho25, em fins do sculo XVIII, evidencia-se a defesa da permanncia do trfico e da

    escravido africana, afirmando novamente a posio da Igreja catlica em relao defesa da

    escravido negra. isso o que evidencia, por exemplo, o texto de Anlise sobre a justia do resgate dos

    escravos da Costa da frica26.Assim como outros religiosos do sculo XVIII, Coutinho27no critica

    23COSTA, Emlia Viotti da. Da senzala colnia. So Paulo: Editora da UNESP, 1998, p.391 e seguintes.24______. ______, p.391.25COUTINHO, Jos Joaquim da Cunha Azeredo. Anlise sobre a justia do comrcio do resgate dos escravos dacosta da frica. In: Obras econmicas. So Paulo: Companhia da Editora Nacional, 1966.26______. ______. Obras econmicas, p. 241.27Nascido na vila de So Salvador dos Campos dos Goitacs, capitania da Paraba do Sul, aos 8 de setembro de1742, Jos Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, [..] foi nomeado em 1784 deputado do Santo Oficio [...], em

    1791 faz estampar nas Memrias Econmicas da Academia Real das Cincias de Lisboa seu conhecido tratado sobreo preo do acar, e trs anos depois eleito bispo de Pernambuco[...]. Informaes sobre o autor ver a

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    a escravido: apenas direciona seu discurso para o bom tratamento que o senhor deveria oferecer

    ao seu escravo.

    Importante estudo realizado por Jaime Rodrigues28evidencia essa postura do autor em

    defesa da escravido africana:

    A possibilidade de acabar com o trfico brasileiro parecia ser remota para amaioria dos autores do incio do sculo XIX. Azeredo Coutinho, por exemplo,escreveu nesse perodo obras que faziam uma defesa ferrenha do trfico deescravos e da escravido. Tanto do ponto de vista jurdico quanto religioso, aescravido era legitimada por ele, e, em que pesem os maus tratos a que ocativo estaria sujeito, sua condio era vista como vantajosa se comparada dotrabalhador livre [...].29

    Pode-se entender tambm que, com o bom tratamento oferecido ao escravo, seria

    possvel este viver em famlia, diferentemente do africano livre:

    XXXIV [...] o chamado escravo, quando est doente, tem seu senhor quetrata dele, de sua mulher e de seus pequenos filhos, e que o sustenta, quandono por caridade, ao menos pelo seu mesmo interesse; o chamado livre, quandoest doente ou impossibilitado de trabalhar, se no for a caridade dos homens,ele, sua mulher e seus filhos morrero de fome e de misria: qual, pois, dessesdois de melhor condio? Ou qual desses dois poder dizer com arrogncia:Eu sou livre pelo benefcio das luzes ou pela civilizao dos filsofos?.30

    O escravo poderia, assim, contar com o auxlio do senhor para cuidar dele e de sua

    famlia. Neste ponto, entendia-se o africano em cativeiro em vantagem em relao ao africano

    livre, que no teria quem o tratasse e nem aos seus parentes. Portanto, encontramos tambm em

    Azeredo Coutinho a meno famlia cativa, mas, desta feita, com a inteno de justificar a

    defesa do trfico de africanos.

    Manuais de agricultores

    Publicado pela primeira vez em 1839, no Rio de Janeiro, Taunay31exps em seu livro o

    tema da escravido africana e exportao de produtos agrcolas. Taunay32posicionava-se a favor

    Apresentao de Srgio Buarque de Holanda In: ______. Anlise sobre a justia do comrcio do resgate dosescravos da costa da frica, p. 13-53.28RODRIGUES, Jaime. O infame comrcio: proposta e experincias no final do trfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da UNICAMP. 2000.29______. ______, p.71.30COUTINHO, Jos Joaquim da Cunha Azeredo. Anlise sobre a justia do comrcio...,p. 256-257.31 TAUNAY, Carlos Augusto. In: MARQUESE, Rafael de Bivar. (Org.) Manual do agricultor brasileiro. [1839]. SoPaulo: Companhia das Letras, 2001.32Carlos Augusto Taunay (1791-1867), filho do pintor Nicolas Antoine Taunay, ingressou jovem nas tropas deNapoleo e lutou nas principais batalhas do final do Imprio francs. Em 1822, seis anos aps chegar com suafamlia ao Rio de Janeiro, alistou-se no Exrcito, participando, na Bahia, dos combates pela Independncia do Brasil.A partir de meados da dcada de 1820, passou a se interessar por assuntos agrcolas, sendo o responsvel pela gesto

    do stio de sua famlia no macio da Tijuca, especializado no cultivo do caf. Informaes sobre o autor escrita porRafael de Bivar Marquese retiradas da presente obra.

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    da escravido negra no Brasil porque dela resultava o sucesso da agricultura brasileira. A

    dependncia da mo de obra cativa para o trabalho na lavoura do Brasil no permitia, segundo

    Taunay, a possibilidade de libertao dos escravos ou mesmo a proibio do trfico negreiro,

    porque isso poderia ocasionar prejuzos economia.

    Apesar de sua obra ter sido lanada em 1839, posicionando-se em defesa da escravido

    africana e da continuidade do trfico, o comrcio de negros entre frica e Brasil foi proibido pela

    primeira vez em 1831, porm essa proibio no foi severa o suficiente para impedir a entrada de

    africanos no Brasil em navios negreiros. O trfico continuou mesmo ilegalmente. Provavelmente

    no houve uma fiscalizao eficaz e o comrcio ilegal de africanos permaneceu at 1850, com a

    implantao de uma nova legislao para abolir o trfico. Portanto, a defesa do autor em relao a

    continuidade do trfico de africanos pode ser considerada tambm uma crtica a essa primeira

    tentativa de proibio, que, apesar de no ter sido cumprida, muitos agricultores temeram que a

    economia decasse caso houvesse diminuio da mo-de-obra escrava.

    Para manter os escravos africanos no trabalho, Taunay orientou os senhores a

    estabelecerem uma disciplina rigorosa para que os cativos trabalhassem com mais rigor nos

    campos. Essa disciplina determinaria a prosperidade da agricultura em cada lugar: Sempre que

    os homens so aplicados a um trabalho superior ao prmio que dele recebem, ou mesmo

    repugnante a sua natureza, preciso sujeit-los a uma rigorosa disciplina, e mostrar-lhes o castigoinevitvel33.

    A disciplina bem administrada pelo senhor poderia acarretar no aumento da escravaria

    sem precisar adquirir novos escravos por meio de compra. O crescimento da mo de obra seria

    decorrente das unies entre os escravos, encorajadas pelo senhor porque delas resultariam filhos,

    tambm escravos. A relao entre os sexos se daria naturalmente. Cabia ao senhor apenas aceitar

    essas unies: Ter o senhor o direito de obrigar os seus escravos a produzirem filhos?

    Responderemos que nem tem direito, nem precisam disso, e que para o conseguir bastar nocontrariar a natureza que convida os sexos a se reunirem34.

    A legitimidade das unies no deveria ser forada pelos senhores, ficando escolha dos

    cativos casarem-se ou no na Igreja: E estas unies devero ser legitimas, ou passageiras? A

    33TAUNAY, Carlos Augusto.Manual do agricultor brasileiro, p. 55.34______. ______, p. 78.

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    religio e boa ordem pedem que sejam legitimas, [...] por conseqncia julgamos acertadssimo

    deixar absolutamente vontade dos interessados a legitimao da sua unio ao p do altar35.

    Taunay recomenda que mesmo os casados continuassem vivendo separadamente: Os

    casados devem continuar a viver cada um no rancho de seu sexo, e reunir-se somente de noite

    nas suas senzalas. Podero passar os domingos com suas mulheres, depois de assistir aos ofcios

    divinos, como julgarem conveniente36.

    A inteno de unir os escravos em favor do aumento da mo de obra cativa poderia ser

    explicada, provavelmente, pelo temor da eficcia da lei que proibiu o trfico, j presente desde

    1831. A preocupao com a economia agrcola brasileira, que dependia exclusivamente do

    trabalho escravo para se manter, no suportaria a diminuio na mo de obra. Por esse motivo, o

    agricultor buscou alternativas para o aumento da populao escrava sem depender do trfico,

    decorrente da reproduo entre os cativos que j estavam no Brasil.

    H tambm meno sobre a separao dos escravos que viviam em famlia, orientando

    os senhores a no venderem seus escravos casados:

    Porm, uma vez que os casamentos forem celebrados na Igreja, o cdigo paraos escravos deve ordenar que jamais os esposos e filhos possam ser separadospor herana ou venda parcial, menos no caso de pssima conduta eincorrigibilidade, no deixando ao arbtrio dos senhores, e sim dos juzes de paz

    dos distintos ouvidos ou vigrios, a sentena sumaria em tais casos. 37Esse texto permite verificar a forma pela qual os povos africanos eram vistos. Tratados

    como uma raa inferior e sem vontade para o trabalho em sua terra e no Brasil, os argumentos de

    Taunay serviam para legitimar a escravido negra.

    Ao senhor bastaria se valer de uma rigorosa disciplina sobre os escravos para garantir o

    desenvolvimento de sua agricultura, sendo obrigado a oferecer adequadamente aos seus cativos

    alimento, vestimentas, moradia e educao religiosa. O aumento da mo de obra escrava tambm

    seria resultado da boa disciplina da escravaria. O senhor no precisaria interferir, mas sim deixarque os escravos se unissem e os filhos viriam naturalmente dessas unies.

    A forma como Taunay tratou os laos afetivos entre os negros que viviam em cativeiro,

    como apenas para proporcionar ao senhor o aumento no seu nmero de escravos, pode ser

    considerada como uma tentativa de solucionar o problema da quantidade de africanos

    35______. ______, p. 79.36______. ______, p. 79.37TAUNAY, Carlos Augusto.Manual do agricultor brasileiro, p. 80.

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    escravizados no Brasil, caso ocorresse de fato a proibio de compra de novos cativos vindos da

    frica.

    Desconsiderar as dificuldades e aceitar apenas que as unies dos escravos se davam da

    forma exposta por Taunay seria desconsiderar os estudos sobre esse tema analisados at esse

    momento, que indicaram a possibilidade dessas unies, mas demonstraram as dificuldades para a

    realizao das mesmas.

    O livro de Taunay traz informaes sobre o desenvolvimento de produtos agrcolas no

    Brasil nas primeiras dcadas do sculo XIX e a importncia da agricultura para a economia

    brasileira. Com isso, ele evidencia a campanha senhorial pela continuidade da utilizao da mo

    de obra escrava em pleno sculo XIX. Mesmo sendo considerados inferiores, os africanos foram

    os responsveis pelo desenvolvimento da economia do Brasil durante sculos, deixando marcas

    de seu trabalho, sua cultura e experincias passadas de gerao a gerao.

    Vestgios sobre a formao familiar cativa verificou-se tambm no texto de Francisco

    Peixoto de Lacerda Werneck38, publicado em 1847. Trata-se de uma obra importante para o

    estudo da agricultura cafeeira no Brasil do sculo XIX, principalmente por ter sido escrita por um

    fazendeiro brasileiro para ajudar outros agricultores residentes no pas. Trata-se de um diferencial

    em relao s outras obras aqui analisadas, que tambm se destinavam aos fazendeiros, mas

    foram escritas por estrangeiros, principalmente jesutas, muitos dos quais desde uma perspectiva

    fundamentalmente religiosa.

    Da mesma forma que as obras escritas pelos jesutas no sculo XVIII, o livro de

    Lacerda Werneck39tambm importante para o desenvolvimento deste trabalho. Nessa obra,

    possvel perceber os laos afetivos formados pelos cativos. Ao escrever sobre a forma de

    construir a casa do fazendeiro e a senzala para os escravos, Werneck orienta: Principiareis a

    vossa fazenda edificando primeiro uma casa ordinria para vossa moradia temporria, e tantas

    quantas forem precisas para acomodar os escravos e camaradas [...]40.

    38WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda (Baro de Pati do Alferes). Memria sobre a fundao de uma fazenda naprovncia do Rio de Janeiro(1847-1878). Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa/Senado Federal, 1985.39Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o Baro de Pati do Alferes, era filho nico do aoriano Francisco Peixotode Lacerda e de Ana Matilde Werneck. Em meados do sculo XIX, com o apogeu da cafeicultura escravista, LacerdaWerneck levaria ao mximo a concentrao de propriedadesterra e escravos e, conseqentemente, de poder eprestgio da famlia. Deixaria ao morrer, a 22 de novembro de 1861, sete fazendas montadas, com cerca de milescravos, terras no rio So Pedro, fronteira com Minas Gerais, e diversos pousos espalhados ao longo da Estrada doComrcio. Um conjunto de bens que foi classificado como uma das maiores fortunas fundirias amealhadas ataquela data no Municpio de Vassouras. Informaes sobre Francisco. P. L. Werneck In: WERNECK, Francisco

    Peixoto de Lacerda.Memria sobre a fundao de uma fazenda na provncia do Rio de Janeiro(1847-1878), p. 17.40______. ______, p. 57.

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    Sobre a forma como deveriam ser construdas as moradias dos cativos, as instrues

    eram as seguintes:

    [...] as senzalas dos pretos, que devem ser voltadas para o nascente ou poente, e

    em uma s linha, se for possvel, com quartos de 24 palmos em quadro, e umavaranda, de oito de largo em todo o comprimento. Cada quarto destes deveacomodar quatro pretos solteiros, e se forem casados, marido e mulher com osfilhos unicamente.41

    A nfase na construo das moradias dos negros cativos referia-se principalmente s

    varandas nas senzalas, que ele considerava serem de muita utilidade porque o preto, na visita que

    faz ao seu parceiro, no molha os ps se est a chover; quase sempre esto eles ao p do fogo,

    saem quentes para o ar frio e chuva, constipam, e adoecem 42. Exps sua prpria experincia:

    Depois que fiz todas as senzalas avarandadas adoece muito menor nmero de pretos, a lm de se

    conservarem mais robustos43.

    Manter os escravos saudveis foi outra indicao feita por Werneck: As senzalas devem

    ser feitas no lugar mais sadio e enxuto da fazenda; da conservao da escravatura que depende a

    prosperidade do fazendeiro [...]44.

    Assim, a moradia escrava no era motivo de impedimento para a formao de famlias

    entre os negros cativos, j que havia essa diviso dos quartos na construo das senzalas em

    algumas fazendas, demonstrando que era consentido, pelos senhores, os escravos viverem juntode suas famlias.

    Outro manual para o agricultor brasileiro escrito por Miguel Calmon Du Pin e

    Almeida45, publicado em 1834 tambm traz informaes sobre a formao de famlia escrava. Du

    Pin46 tratou da existncia de laos entre os escravos no sentido de se conservar os negros

    africanos caso houvesse a diminuio dessa mo de obra devido ao fim do trfico negreiro.

    No capitulo Bom tratamento dos escravos, o autor reportou-se aos senhores com

    informaes sobre como conservar os escravos existentes, j que estava em vigor a proibio dotrfico desde 1831. Sua inteno era que a agricultura de cana no Brasil no fosse prejudicada.

    41______. ______, p. 57.42______. ______, p. 58.43______. ______, p. 58.44______. ______, p. 58.45ALMEIDA, Miguel Calmon Du Pin e. OLIVEIRA, Waldir Freitas. (Org.)Ensaio sobre o fabrico do acar. Salvador:FIEB, 2002.46Miguel Calmon Du Pin e Almeida, Marqus de Abrantes, era filho de Jos Gabriel Calmon e Almeida e MariaGermana de Souza Magalhes. Nasceu na vila, hoje cidade, de Santo Amaro, na Bahia, a 22 de dezembro de 1796 efaleceu no Rio de Janeiro a 5 de outubro de 1865. Informaes sobre o autor foram extradas de: BLAKE, Augusto

    Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brasileiro, v. 6, p. 274. Disponvel em:. Acesso em: 11 out. 2012.

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    Como possibilidade de aumentar as escravarias, orientou os senhores a facilitarem as

    reprodues, decorrentes das unies formalizadas entre os escravos: [...] O recurso do

    recrutamento africano acabou; e, por mais que alguns o desejem o trafico no voltar. Que meio

    pois resta? Um s; o de promover a conservao da vida dos atuais escravos, e a sua reproduo

    [...]47.

    O casamento entre os escravos foi mostrado aos senhores tambm como uma forma de

    se evitar a imoralidade e a poligamia entre os africanos cativos:

    tambm de absoluta necessidade que o senhor, por algum prmio, e outrosmeios bvios, fceis anime, e convide o escravo a casar-se com parceira sua.Com quantos seja grande nesta classe, a imoralidade, proveniente da poligamiaafricana, e do deplorvel estado em que vegeta; nem por isso perder-se a

    esperana de que nela se formem algumas famlias [...].48

    A permisso do casamento e o incentivo por parte do senhor pode ser entendido como

    uma forma de prezar pela moralidade, buscando evitar a poligamia. Para isso, era preciso

    oficializar as unies. Neste sentido, considera-se o pensamento cristo contido no escrito de Du

    Pin e Almeida, aconselhando a legalizao das unies para que se evitassem as unies

    consensuais, to criticadas pelos religiosos.

    A possibilidade de acabar com o trfico de africanos em 1830 despertou a preocupao

    em tratar melhor o cativo e incentivar sua reproduo para conservar os africanos que restavamem cativeiro. Desta forma, a formao familiar cativa foi vista como importante apenas para que

    o senhor usufrusse do aumento da mo de obra escrava mesmo com o fim do trfico negreiro.

    Na viso senhorial, a formao de famlias pelos escravos, tratadas em textos como este, foi usada

    como opo para evitar o problema da falta de trabalhadores nas lavouras do Brasil, j que o pas

    no adaptava sua economia ao trabalho livre.

    Neste mesmo vis, a obra de Luis Peixoto de Lacerda Werneck49, filho de Francisco

    Peixoto de Lacerda Werneck, escreve sua obra para chamar a ateno sobre a necessidade deadequar a economia brasileira ao trabalho livre, j que a populao escrava diminuiria por conta

    do fim do trfico transatlntico, a partir de 1850.

    Werneck expe em seu texto que, enquanto a mo de obra livre no fosse adequada ao

    trabalho agrcola, os senhores deveriam utilizar os escravos que j possuam e procurar fazer

    47ALMEIDA, Miguel Calmon Du Pin e. In: OLIVEIRA, Waldir Freitas. (Org.)Ensaio sobre o fabrico do acar, p. 59.48______.______, p. 60.49WERNECK, Luis Peixoto de Lacerda. Ideas sobre a colonizao procedidas de uma succinta exposio dos princpios geraes queregem a populao.Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert, 1855.

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    crescer sua escravaria. As famlias constitudas pelos escravos foram maneiras encontradas pelo

    autor para manter o crescimento da populao escrava, com o fim do trfico:

    [...] Por isso julgamos que embora tenha cessado o trfico, embora no nos

    envie mais a frica a populao de outrora, seria possvel fazer crescer aexistente. [...] Os lavradores deviam promover por todos os meios a propagaodos escravos, uma vez que, esses meios sejam de acordo com a moral e com areligio. Nessa obra meritria conciliam-se os interesses do futuro daagricultura, e ao mesmo tempo a caridade crist. A no um interesse temporalo nico conselheiro, um dever imposto pelas leis divinas e humanas.50

    Os laos afetivos entre os cativos africanos foram considerados por Werneck como

    opo para manter o desenvolvimento da lavoura, sem prejuzos economia agrcola, enquanto

    no se utilizassem trabalhadores livres.

    O casamento e a famlia escrava foram encarados como possibilidades para que no seextinguisse de vez a mo de obra escrava, com a diminuio do nmero de africanos vindos para

    o Brasil que o fim do trfico causaria. Esse discurso de permanncia do trabalho escravo com o

    incentivo reproduo dos que j estavam aqui, visto tambm em autores como Bonifacio,

    Taunay e Maciel da Costa, demonstra os interesses senhoriais nas relaes afetivas escravas.

    As informaes sobre a famlia cativa encontradas nos textos analisados so diferentes

    das informaes sobre este assunto que estudiosos da demografia encontraram, e realam as

    certezas da existncia de laos afetivos entre os escravos em diferentes datas e lugares do Brasilcolonial e imperial. Os estudiosos que utilizam fontes demogrficas demonstram, atravs de

    registros de casamento, batismo, censos nominativos, inventrios post-mortem,entre outras fontes

    seriais, a certeza da existncia de famlias escravas em diversas partes do Brasil e a importncia do

    casamento e da constituio familiar para o escravo ultrapassando, portanto, o olhar senhorial

    sobre a questo.

    o caso do estudo de Florentino e Ges51, que analisaram o casamento entre os

    escravos e as relaes parentais no Rio de Janeiro, mais precisamente no agro fluminense, rearural da provncia do Rio de Janeiro, entre a ltima dcada do Setecentos e a primeira metade do

    Oitocentos (1790-1830).

    Florentino e Ges trataram a famlia escrava como uma forma de se obter a paz entre

    senhores e escravos. Ao mesmo tempo, esses laos familiares trariam para os escravizados uma

    50______.______, p. 24.51FLORENTINO, M. e GES, J. R.A paz das senzalas...

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    forma de sobreviverem ao sistema que lhes era imposto. Ao contrrio do que nos mostram

    outros autores, neles encontramos uma viso diferente sobre o assunto:

    [...] a famlia escrava no era de modo algum mero epifenmeno, nem estava

    diluda no escopo patriarcal dos proprietrios. Tampouco sucumbia violncianem era, primariamente, um veculo de controle senhorial. Pelo contrrio, aocaracterizar-se enquanto meio de organizao e pacificao dos cativos, ela lhesfornecia slidos pilares para a construo e reconstruo de padres mentais ede comportamento prprios de uma cultura afro-brasileira.52

    O tratamento dado pelos autores que escreveram manuais de administrao durante o

    sculo XIX, como Du Pin e Almeida e Luis Werneck, sobre as relaes parentais entre os

    escravos, seguiam no sentido econmico e senhorial. Preocupavam-se com a prosperidade da

    economia agrcola brasileira e prezavam esse crescimento nas lavouras, buscavam solues para a

    mo de obra nas fazendas a partir do fim do trfico de africanos.

    So textos escritos por fazendeiros que, dentre outros assuntos, abordaram as unies

    entre os cativos como possibilidades de manuteno da mo de obra escrava. Por isso,

    importante considerar, nessas fontes, a forma como tratada a famlia escrava, vista apenas como

    soluo para se evitar a diminuio de trabalhadores cativos. Percebe-se, assim, a necessidade de

    proporem formas para manterem seguros os fazendeiros e o desenvolvimento agrcola.

    Discursos Polticos

    A obra analisada,Memrias sobre a escravido53, um livro que no trata da administrao e

    da agricultura no Brasil, mas sim da escravido vigente nas primeiras dcadas do sculo XIX, no

    pas que acabara de se tornar independente. Esto reunidos neste livro os textos de quatro

    autores que escreveram sobre a necessidade de se abolir gradualmente a escravido no Brasil.

    Sero citados dois dos autores, por mencionarem o tema aqui estudado: a famlia

    constituda por escravos. Joo Severiano Maciel da Costa54escreve aMemria sobre a necessidade de

    abolir a introduo dos escravos africanos no Brasil, sobre o modo e condies com que esta abolio se deve fazer e

    52______. ______, p. 44-45.53 COSTA, Joo Severino Maciel. (Org.) Memrias sobre a escravido. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/FundaoPetrnio Portella/Ministrio da Justia, 1988.54Joo Severiano Maciel da Costa (1769-1833), formado no convvio das idias liberais que ento vicejavam peloVelho Mundo, estudou Direito em Coimbra, teve participao destacada nos acontecimentos polticos que marcarama dcada de 1820 no Brasil, foi desembargador do Pao e governador da Guiana Francesa entre 1809 e 1819, essa

    obra publicada em 1821 em Coimbra. Informaes sobre o autor escritas por Graa Salgado, constam naIntroduo da obra: COSTA, Joo Severino Maciel. (Org.)Memrias sobre a escravido...

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    sobre os meios de remediar a falta de braos que pode ocasionar55em Coimbra. A obra foi publicada em

    1821 e faz uma crtica ao sistema escravista do Brasil56.

    O autor analisa a escravido de africanos no Brasil como contrria segurana e

    prosperidade do Estado. Ele procura mostrar que o trabalho escravo no significa crescimento

    econmico e prope o trabalho livre, porque os cativos fazem o trabalho para evitar o castigo do

    senhor. Sobre as relaes afetivas entre os escravos, o autor trata do casamento como forma de

    propagao, para assegurar a quantidade da mo de obra escrava se houvesse a abolio do

    trfico negreiro. Na citao a seguir, possvel perceber sua proposta para manter o trabalho

    agrcola sem precisar exclusivamente do africano:

    [...] passemos a examinar por que meios poderemos manter o nosso trabalho

    agrcola independente do recrutamento dos africanos [...] primeiro, poupar osescravos existentes e promover a propagao entre eles; segundo, inspirar oamor do trabalho nos homens livres da classe do povo de todas as cores efor-los mesmo a isso; terceiro, empregar os povos indgenas [...], quartoprocurar trabalhadores europeus.57

    A inteno de propor o casamento escravo seria uma forma de evitar a compra de

    africanos para o Brasil, mas manteria o uso do trabalho cativo at sua substituio completa pelo

    trabalhador livre.

    Esse mesmo intuito em relao s unies cativas pode ser observado no texto de Jos

    Bonifcio de Andrada Silva,58Representao Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Imprio do

    Brasil sobre a escravatura59. Nele, o autor escreve artigos para serem apresentados Assemblia

    Constituinte de 1823, com a inteno de promover um novo regulamento para a civilizao geral

    dos ndios do Brasil e uma nova lei sobre o comrcio escravo e o tratamento dado aos cativos. A

    Representaode Bonifcio no foi apresentada a Assemblia Constituinte por falta de tempo. Foi

    55COSTA, Joo Severiano Maciel da. Memria sobre a necessidade de abolir a introduo dos escravos africanos noBrasil (1821).In: ______. (Org.)Memrias sobre a escravido, p. 9-59.56Sobre os escritos de Maciel da Costa e Jos Bonifcio, importante citar o estudo de RODRIGUES, Jaime. Oinfame comrcio..., que analisou essas obras demonstrando as intenes polticas contidas nos discursos desses autoresem relao ao que propunham com a abolio gradual da escravido africana no Brasil.57COSTA, Joo Severino Maciel. (Org.)Memrias sobre a escravido,p. 35.58Jos Bonifcio de Andrada Silva (1763-1838), representante da gerao que comandou a independncia, membrode uma elite intelectual que havia travado contatos na Europa com os princpios do liberalismo. Informaes sobre oautor escritas por Graa Salgado, constam na Introduo da obra ______. (Org.)Memrias sobre a escravido. Rio deJaneiro: Arquivo Nacional/Fundao Petrnio Portella/Ministrio da Justia, 1988,p.6.59SILVA, Jos Bonifcio de Andrada. Representao Assemblia Geral Constituinte e Legislativa do Imprio doBrasil sobre a escravatura (1825). In: COSTA, Joo Severino Maciel. (Org.)Memrias sobre a escravido, p. 61-77.

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    publicada somente em 1825, em francs, quando o autor estava exilado. No perodo da

    publicao, houve pouca repercusso da obra60.

    Esses artigos, alm do fim do comrcio dos escravos africanos, tratam tambm das

    alforrias e dedicam algumas palavras s relaes afetivas entre os cativos. Cabe citar alguns.

    Primeiramente, o que referente separao da famlia escrava: Artigo 9. Nenhum senhor

    poder vender escravo casado com escrava sem vender ao mesmo tempo e ao mesmo comprador

    a mulher e os filhos menores de 12 anos. A mesma disposio tem lugar a respeito da escrava no

    casada e seus filhos dessa idade61.

    Esse artigo demonstra a preocupao em estabelecer em lei a proibio de venda

    separada dos escravos que viviam em famlia. Como j dissemos, essa proibio foi efetivada

    apenas em 1871.

    Outro artigo escrito por Bonifcio refere-se ao impedimento por parte dos senhores ao

    casamento de seus escravos. Artigo 20. O senhor no poder impedir o casamento de seus

    escravos com mulheres livres ou com escravas suas, uma vez que aquelas se obriguem a morar

    com seus maridos ou estas queiram casar com livre vontade62.

    O artigo importante porque mostra a inteno de deixar estabelecida em lei a

    proibio ao senhor de impedir o casamento entre seus escravos, ficando a critrio do escravoescolher seu cnjuge, livre ou cativo.

    Os textos de Maciel da Costa e de Jos Bonifcio tinham como objetivo propor o fim

    gradual da escravido no Brasil. Mas essa abolio gradual deveria ser feita de forma a no

    prejudicar a economia brasileira, ou seja, a mo de obra escrava no seria dispensada se no fosse

    substituda por trabalhadores livres - imigrantes europeus, por exemplo. O fim do trfico era uma

    proposta, no significava apoio ao fim da escravido negra, seria apenas uma forma de evitar a

    entrada de novos africanos no Brasil, devido grande quantidade que desembarcavam nos portosbrasileiros.

    Porm, o trabalho na lavoura continuaria sendo realizado pelos escravos remanescentes

    e, nesse sentido, era proposta a reproduo dos cativos para manter a mo de obra. O casamento

    escravo era visto como uma forma de se conservar a mo de obra cativa at sua substituio

    definitiva, por resultarem dessas unies filhos que aumentariam a escravaria do senhor.

    60As informaes sobre a no apresentao da obra de Bonifcio Assemblia Constituinte foram retiradas deRODRIGUES, Jaime. O infame comrcio, p. 35.61SILVA, Jos Bonifcio de Andrada. In: COSTA, Joo Severino Maciel. (Org.) Memrias sobre a escravido, p.72.62______.______, p.73

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    Bonifcio props o estimulo ao casamento cativo no Artigo 21 da sua Representao: O

    governo fica autorizado a tomar as medidas necessrias para que os senhores de engenho e

    grandes plantaes de cultura tenham, pelo menos dois teros de seus escravos casados63.

    Todavia, considerar que por conta desses estmulos ao casamento decorriam as relaes

    afetivas entre os cativos seria como desconsiderar as mltiplas resistncias escravido por parte

    dos homens e mulheres negros escravizados, seja em preferir abortar o filho ao v-lo escravizado,

    seja escapando a fim de buscar o reencontro da famlia caso ocorresse separao de algum de

    seus membros. Em suma, no se pode considerar a questo apenas do ponto de vista senhorial.

    A constituio de ncleos familiares entre as pessoas negras escravizadas pode ser

    entendida tambm como forma de resistncia cativa se considerar a dificuldade enfrentada por

    tais sujeitos em manter unida sua famlia; a autonomia para escolher o cnjuge e a possibilidade

    de viverem em lugares separados dos escravos solteiros; alm de ver a famlia como forma de

    manuteno de traos da cultura africana.

    Obra de Viajante

    O viajante Herbert H. Smith64 escreveu sua obra em 1879 durante uma viagem ao

    Brasil65, onde acompanhou a rotina de uma fazenda de caf no sul do pas. O viajante no

    menciona em seu relato as relaes afetivas e parentais que pudessem haver entre os escravos dafazenda que visitou. Smith concentra-se em descrever os escravos, as atividades que exerciam

    suas obrigaes e as regras a que estavam submetidos.

    Mesmo quando menciona as habitaes dos negros, no h informaes se havia

    quartos em que viviam famlias de escravos separadamente. Ele escreve que homens e mulheres

    ficavam em lugares distintos: [...] Os homens e mulheres so, ento, fechados a chave, em

    compartimentos separados, onde deixam-nos dormir durante sete horas, afim de que se

    restaurem para o trabalho do dia seguinte, de quase dezessete horas ininterruptas

    66

    .Os cativos faziam parte da rotina da fazenda, eram os responsveis por todas as etapas

    de processamento do caf, eram a mo de obra predominante na fazenda e estavam submetidos

    s ordens de seus senhores. Desta forma, compreensvel a ausncia de meno s possveis

    SILVA, Jos Bonifcio de Andrada. In:COSTA, Joo Severino Maciel. (Org.)Memrias sobre a escravido,p.7364SMITH, Herbert H. Uma fazenda de caf no tempo do Imprio (1879). Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Caf,1941.65O estadunidense Herbert Huntington Smith (1851-1919) fez sucessivas viagens ao Brasil para estudar espcimesda flora e fauna brasileira e aproveitou para visitar fazendas de caf. Informaes sobre o autor retiradas de:

    _______. Uma fazenda de caf no tempo do Imprio (1879), p. 5.66______. ______, p. 15.

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    formaes familiares ou laos afetivos criados pelos cativos, se considerarmos que os escravos

    no estavam no foco de observao do viajante.

    Contudo, desconsiderar a existncia dos laos parentais entre os cativos a partir da

    leitura desta obra, por no ter sido mencionado na descrio do viajante como fizeram alguns

    autores que no vislumbraram a existncia da famlia cativa , pode resultar na anulao, por

    parte da historiografia, das unies afetivas entre os escravos.

    Suely Robles, por exemplo, usou algumas obras de viajantes como fonte para escrever

    sobre a famlia escrava. A autora, porm, no se aprofundou no estudo sobre o tema e no fez

    uso de outras fontes. Por isso, constatou no ter sido possvel a formao de famlias entre

    escravos que viviam em cativeiro apenas porque no foram mencionadas nos textos dos viajantes

    que ela analisou.

    As opinies dos viajantes divergem muito. H quem considere a possibilidade da

    formao familiar e aqueles que simplesmente no a mencionam ou mesmo no as consideram

    possvel. Porm, apesar da divergncia, a autora conclui que, como a maioria dos relatos no

    mencionarem formao familiar cativa, esta no ocorreu de forma efetiva:

    [...] de toda forma, dos 61 pesquisados, cujo percurso alcanou diferentesregies do Brasil, cerca de 36 ou 60% deles, no fizeram referncia alguma

    famlia escrava, um silncio significativo quando se pensa nas mincias com quedescrevem as riquezas naturais do pas, a gente que o habita, os variadosaspectos da escravido. Quanto as 25 restantes, grande parte fala em escravoscasados, em filhos, em unies legais ou no. Mas nenhum cita exemplos deorganizao familiar estvel, de laos permanentes.67

    Os laos familiares formados pelos cativos poderiam fazer parte da rotina da fazenda de

    caf observada por Smith. Porm, isso pode no ter sido observado ou descrito pelo autor, j que

    as anotaes foram dedicadas mais precisamente ao caf e aos seus processos de cultivo e venda,

    etapas que foram bem descritas nesta obra.

    Consideraes finais

    Com a leitura de vrios ttulos bibliogrficos de autores que dissertaram sobre a

    escravido africana, realizou-se um debate historiogrfico acerca do tema da famlia escrava no

    Brasil. A partir dessas leituras, possibilitou entender porque muitos autores divergiam sobre o

    tema da famlia escrava. Parte deles negou a existncia desses laos, principalmente por basearem

    67 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravido negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.).

    Historiografia brasileira em perspectiva, p. 117.

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    seus argumentos em fontes, como relatos de viajantes. Tambm deve se considerar que esses

    autores no focaram seus estudos somente na famlia cativa, mas na escravido de forma geral.

    Nesse sentido, foram importantes as leituras de autores que afirmaram a existncia de

    laos afetivos entre os escravos, principalmente considerando a demografia histrica. Esses

    autores encontraram em diversos documentos a existncia de ncleos familiares formados por

    cativos em diferentes regies do Brasil e em vrios perodos. Ambas as leituras foram

    importantes por trazerem informaes sobre a escravido africana no Brasil.

    Desta forma, com o prosseguimento da pesquisa e com a inteno de intervir no debate,

    procurei vestgios sobre a formao de famlias escravas durante o sculo XVIII e XIX utilizando

    como fontes os manuais dedicados orientao dos senhores na administrao de suas fazendas

    e seus escravos. Os autores aqui citados mencionaram a famlia escrava de forma diferente.

    Foram analisados textos religiosos, discursos polticos e manuais de agricultura, fontes que,

    mesmo sendo diferentes no tratamento sobre a famlia cativa, foram escritas tendo os senhores

    como pblico alvo. Por isso, demonstram os interesses senhoriais na formao da famlia escrava.

    A maioria dos autores analisados demonstrou a ocorrncia de laos afetivos pelos

    escravos, mesmo tratando-se de fontes senhoriais nas quais as unies entre os cativos eram dadas

    como alternativas para o senhor para a manuteno da escravido, no considerando os

    benefcios que esses laos trariam para o escravo. O importante de se considerar nessas fontes

    justamente que a maioria dos autores mencionou a existncia dessas relaes.

    Apesar de no escreverem diretamente acerca da experincia dos escravizados para o

    viver em famlia, infere-se de tais escritos, pelo tratamento dado famlia negra principalmente

    no contexto de fim do trfico negreiro, que tal experincia era recorrente, posto no ser tratada

    pelos autores como uma novidade.

    Portanto, o importante considerar os benefcios trazidos pelo viver em famlia para ossujeitos africanos ou afro-brasileiros em condio de escravizados, considerando a constituio

    do ncleo familiar inclusive como prtica de resistncia, posto que a presena de um

    companheiro(a) e a importncia de viverem juntos com os filhos garantia a possibilidade de

    transmitir sua cultura de origem na medida do possvel e, nesse sentido, ajudarem no

    enfrentamento das angstias cotidianas do cativeiro.

    Recebido em: 13/11/2012Aprovado em: 21/02/2013