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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE MEDICINA Rio de Janeiro 2014 Francine de Souza Dias De Segmento à Multidão: desafios para a consolidação do movimento de pessoas com deficiência em máquina de guerra

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Page 1: De Segmento à Multidão desafios para a consolidação do … · principais autores utilizados serão Milton Santos, Michel de Certau, Gaston Bachelard, David Harvey, Gilles Deleuze

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE MEDICINA

Rio de Janeiro

2014

Francine de Souza Dias

De Segmento à Multidão: desafios para a

consolidação do movimento de pessoas com deficiência em máquina de guerra

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Monografia de especialização lato-sensu

apresentada à Pós-Graduação da Faculdade de

Medicina da Universidade Federal do Rio de

Janeiro para obtenção do título de Especialista

em Acessibilidade Cultural.

Rio de Janeiro 2014

Francine de Souza Dias

De Segmento à Multidão: Desafios para a consolidação do movimento de pessoas com

deficiência em máquina de guerra

Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius Machado de Almeida

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COMISSÃO JULGADORA

______________________________________

Orientador

_____________________________________

Convidado

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4

AGRADECIMENTOS

À Associação de Pais e amigos da Audição – APADA Niterói;

Associação Fluminense de Amparo aos Cegos – AFAC;

ao Centro de Atenção e Atendimento à Aids – CAAAIDS;

e ao Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência de Niterói - COMPEDE:

pelo apoio e compreensão.

Ao querido professor Marcus Vinícius, orientador deste trabalho e fonte de inspiração à parte.

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DIAS, Francine de Souza. De Segmento à Multidão: desafios para a consolidação do movimento de pessoas com deficiência em máquina de guerra. 2014. 65f. (Monografia de Especialização em

Acessibilidade Cultural) - Faculdade de Medicina. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo refletir e propor estratégias para a resignificação da

cidade num espaço social de múltiplas singularidades, através dos conceitos de lugar e de

espaço — balizados pela obra de Milton Santos — e sua produção /reprodução a partir dos

afetos e das relações sociais construídas ao longo da história.

Neste contexto, o movimento de pessoas com deficiência surge como objeto de

estudo, onde será considerado elemento potencialmente transformador do cenário atual,

necessitando, para tanto, de uma profunda reavaliação e reestruturação, para tornar-se

capaz de promover as mudanças necessárias no bojo das relações da pessoa com

deficiência com a cidade, vislumbrando a formação de um espaço livre, plural e democrático.

Para alcançar o objetivo proposto, foi adotado o método de pesquisa genealógico.

Os principais autores utilizados como fundamentação teórica foram: Milton Santos, Michel de

Certau, Gaston Bachelard, David Harvey, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri e

Michel Hardt. O estudo foi elaborado a partir da transversalização de dados multidisciplinares

com o elemento ‘cultura’, para compor uma reflexão transdisciplinar sobre a formação

material e subjetiva das cidades e o acesso da pessoa com deficiência como parte do

processo.

Palavras-chave: Deficiência. Movimento Social. Potência. Lugar. Espaço.

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DIAS, Francine de Souza. Segment of the crowd: challenges for strengthening the moviment of peaple with disability in the war machine. 2014. 65f. (Monografia de Especialização em Acessibilidade Cultural) -

Faculdade de Medicina. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

ABSTRACT

This paper aims to reflect and propose alternatives for reframing the city in a

social space of multiple singularities through reflection on the concepts of place and space

- buoyed by the work of Milton Santos - and their production / reproduction from the

affections and social relationships built throughout history.

In this context, the movement of people with disabilities emerged as an object of

study, which will be considered potentially transformative element of the current scenario,

requiring, therefore, a profound reassessment and restructuring to become able to make

the necessary changes in the bulge of the person with disabilities relationships with the

city, seeing the formation of a space free, plural and democratic.

To achieve the proposed goal, we adopted the method of genealogical

research. The principal authors were used as theoretical foundation: Milton Santos, Michel

Certau, Gaston Bachelard, David Harvey, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri

and Michael Hardt. The study was prepared from the transversalization of multidisciplinary

data with the element 'culture', to compose an interdisciplinary reflection about the material

formation and subjective of the cities and the access of the people with disabilities as part

of the process.

Keywords: Disability. Social movement. Power. Place. Space.

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SUMÁRIO

Introdução 8

1- Espaços Sociais e Relações Espaciais - territórios habitados, desterritorializados e reteritorializados

12

1.1- Espaço e Relações Sociais 13

1.2- Cidade de afetos, sentimentos e potências 26

2- Pessoas com Deficiência e Organização Biopolítica: o poder do movimento

social na construção de outros espaços possíveis

37

2.1- Movimento de Pessoas com Deficiência no Brasil – elementos históricos, políticos e sociais (Breves apontamentos)

38

2.2- Biopolitica, Multidão e Máquina de Guerra: O movimento de Pessoas com Deficiência repensado como Potência

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Considerações Finais 58

Referências 64

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INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos 20 anos, autores de diferentes áreas de conhecimento

têm desenvolvido estudos e publicações sobre pessoas com deficiência. A complexidade

deste assunto faz com que para pesquisá-lo, seja necessário o investimento em uma

multiplicidade de campos de saber. Apesar da existência de nomes de referência para os

diversos temas que englobam este universo – sexualidade, acessibilidade, saúde e

reabilitação, assistência social, empregabilidade, educação, tecnologia assistiva, família,

etc. – temos, ainda, uma preocupante escassez de material produzido a respeito de

outros assuntos de grande relevância para estes sujeitos.

Discussões como direito à cidade, ocupação e sentido do espaço público para

as pessoas com deficiência, bem como movimentos sociais que se formaram ao longo

das últimas seis décadas, representam algumas das abordagens fundamentais para

discutir elementos como direito e cidadania, inclusive, para problematizar os temas

citados anteriormente. No entanto, são raros, ou mesmo inexistentes estudos que tenham

sido aprofundados nesse sentido.

Creio que as universidades brasileiras tenham importante responsabilidade

sobre este fato, devido seu despreparo evidente nos diferentes currículos que as

compõem, em estimular debates e promover pesquisas sobre ‘deficiência’ desde a

graduação até os cursos de pós-graduação, nas modalidades lato e stricto-senso. Cabe

ressaltar que disciplinas que preparam os futuros licenciados para lidar com as pessoas

com deficiência, somente se tornaram obrigatórias na última década. E nem mesmo

algumas formações da área de saúde possuem disciplinas específicas para esta esfera.

São poucos os professores e currículos que se abrem a esta possibilidade,

preocupando-se e reconhecendo a importância da Educação Superior para a promoção

de mudanças efetivas no cenário atual - precisamos reconhecer e agradecer seu esforço

pessoal e acadêmico – numa realidade onde uma proposta de estudo sobre assuntos

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relacionados à deficiência ainda seja desprezada e mal quista pelas diferentes cadeiras

nas elitistas universidades públicas e privadas do país.

Ao longo dos últimos oito anos, faço parte da imensa rede de incomodados

com a forma como o direito das pessoas com deficiência tem sido apropriado pelo

sistema através do Estado, das universidades e da própria sociedade nas suas diferentes

estruturas, bem como com as soluções encontradas para atender as demandas sociais

que se materializam no cotidiano de 23,9% da população brasileira.

Algumas das alternativas adotadas para intervir sobre esta realidade e

promover algum impacto sobre espaços coletivos, tem sido a produção de artigos

acadêmicos com apresentação e publicação em diferentes espaços de discussão, em

todas as regiões do país – inclusive espaços onde deficiência não seja um tema central –

bem como participação em conselhos de direito e conferências, além de atuação

profissional em instituições de atenção à pessoa com deficiência onde existe um esforço

diário de estender e problematizar estas preocupações junto a outros profissionais e,

principalmente, junto aos próprios protagonistas deste cenário.

Sou assistente social e atualmente trabalho na Associação de Pais e Amigos

dos Deficientes da Audição – APADA Niterói, que tem como público alvo pessoas com

deficiência auditiva – ou múltipla, estando surdez associada. Durante o período do curso

estava atuando ainda na Associação Fluminense de Amparo aos Cegos – AFAC.

Também já atuei em instituições de atendimento a outras categorias de deficiência,

especialmente no setor de reabilitação. Assim, estar envolvida ativamente junto ao

movimento de pessoas com deficiência oportunizou um laço estreito com a causa e,

sobretudo, o surgimento de um profundo desejo de pensar estratégias para fortalecê-lo,

principalmente pelos freqüentes desabafos desanimados de figuras tão importantes neste

trajeto de luta que possibilitou a garantia dos direitos estabelecidos hoje.

Foram muitas as indagações até chegar a este tema. Será que a cidade, tal

como ela foi concebida, apresenta-se como um lugar de negação de direitos? Terá sido

ela pensada e construída por (e para) todos? Será que as relações sociais concebidas ao

longo da história têm alguma influência sobre a realidade existente e sustentada na

contemporaneidade? Qual terá sido o papel do movimento de pessoas com deficiência

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nesse contexto? Será possível transformar nossa forma de sentir, pensar, produzir e se

relacionar com o espaço e com os demais sujeitos? Poderemos, a partir disso,

transformar a cidade num lugar democrático, livre e plural?

Tentamos produzir um estudo através de diferentes fontes de saber, com o

objetivo de encontrar respostas para essas indagações que por tanto tempo tem

estimulado nossa mobilização em prol de uma sociedade onde as diferenças não sejam

somente respeitadas, mas sejam encaradas como potência.

Neste sentido, este trabalho pretende problematizar a relação entre a formação

das cidades, dos afetos, das relações sociais e o acesso das pessoas com deficiência,

considerando o papel do movimento social neste contexto.

Para isso, utilizaremos a genealogia como método de investigação, buscando

transversalizar diferentes estudos numa perspectiva transdisciplinar, já que não há

intenção ou possibilidade de atribuir o produto obtido a uma área de conhecimento

específica.

O método Genealógico foi adotado devido à realização de uma investigação

histórica sobre cidade, relações sociais e movimento de pessoas com deficiência para

refletir e problematizar os processos que os compõem, buscando subsidiar o

entendimento do contexto atual e a formulação de pistas que vislumbrem sua

transformação.

Nietzsche aponta a utilização do método genealógico em três direções: busca

de pluralidades; investigação do saber sobre a origem do que existe; e o genealogista

como parte do objeto de investigação. (PASCHOAL, 2000)

O método é característico pela abordagem da totalidade dos processos desde

o estudo histórico do objeto, à compreensão dos sentidos e do poder adquirido ao longo

de seu desenvolvimento a partir das disputas engendradas no seu interior. A interpretação

através da genealogia busca inverter ou evidenciar o sentido da interpretação dominante.

(DELEUZE, 1978). Neste contexto o pesquisador apresenta e interpreta os fatos

demonstrando envolvimento com os mesmos. O que neste quadro, justifica a escolha do

método como o mais pertinente para a abordagem proposta. E uma das funções mais

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importantes da genealogia, é trazer à tona histórias menores que foram sepultadas,

apagadas, veladas, tornadas invisíveis pelo jogo da interpretação dominante da própria

história.

O trabalho está estruturado em dois capítulos. No primeiro, cujo tema é

“Espaços Sociais e Relações Espaciais - territórios habitados, desterritorializados e

reteritorializados”, serão trabalhadas diferentes definições sobre cidade, espaço e lugar. O

objetivo consiste em refletir a dinâmica das estruturas envolvidas entre estes e a forma

como o homem produz a cidade e constrói suas relações sociais nesse contexto. Os

principais autores utilizados serão Milton Santos, Michel de Certau, Gaston Bachelard,

David Harvey, Gilles Deleuze e Félix Guattari.

No segundo capítulo, intitulado “Pessoas com Deficiência e Organização

Biopolítica: o poder do movimento social na construção de outros espaços possíveis”

abordaremos o surgimento, a organização do movimento de pessoas com deficiência e

seus impactos no contexto de luta por direitos. Deste modo, buscaremos refletir outras

possibilidades para sua estruturação e intervenção social, pensando o movimento como

potência transformadora da realidade social no contexto de participação das pessoas com

deficiência, no espaço das cidades. Como fundamentação teórica, utilizaremos,

principalmente, as obras de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri e Michel Hardt.

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1 ESPAÇOS SOCIAIS E RELAÇÕES ESPACIAIS - TERRITÓRIOS

HABITADOS, DESTERRITORIALIZADOS E RETERITORIALIZADOS

Neste primeiro capítulo abordaremos o conceito de cidade, a partir da análise

dos elementos ‘lugar’ e ‘espaço’, buscando refletir as dinâmicas presentes nas estruturas

formantes desses dois universos e o modo como o homem produz e reproduz a vida, ao

longo do seu processo de desenvolvimento enquanto sujeito social. Também será tratado

o universo dos afetos1 nesta dinâmica, considerando este elemento algo fundamental na

forma como o homem transforma a natureza e os espaços sociais do qual participa.

Estas reflexões pretendem subsidiar o estudo seguinte. Este abordará a

organização e intervenção do movimento de pessoas com deficiência ao longo de sua

trajetória de luta, os impactos e resultados a partir da garantia e acesso aos direitos pelo

segmento. Cumpre ressaltar que o termo ‘segmento’ é bastante utilizado pelos

movimentos sociais com o objetivo de definir os diferentes tipos de grupos existentes na

sociedade (ciganos, pessoas com deficiência, mulheres, crianças e adolescentes, LGBT,

etc), tendo como foco, principalmente, a referência a grupos minoritários, o que será alvo

de reflexão e crítica ao longo deste trabalho.

O estudo também abordará o movimento de pessoas com deficiência na

participação da formação das cidades – elucidando aspectos objetivos (físicos e

arquitetônicos) e subjetivos (relações sociais e afetivas), além de outras possibilidades

para esta organização coletiva – o movimento de pessoas com deficiência como potência

– a partir das obras de Deleuze e Guattari, Negri e outros autores.

1 Utilizaremos a definição de afeto em Benedictus de Spinoza: “Por afeto compreendo as afecções do corpo,

pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.” (SPINOZA, 2013: 98). Desta forma, entendemos que o afeto se define por uma variação de intensidade, que se relaciona diretamente com a variação das nossas potências. O autor sinaliza principalmente a alegria e a tristeza como fatores que podem aumentar ou diminuir a potência dos sujeitos.

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Em ambos os momentos, buscar-se-á transversalizar os debates com a

perspectiva de acesso à cultura pelas pessoas com deficiência, mostrando o

distanciamento desta com a noção de direito, por parte desses sujeitos (fruto também da

elitização do acesso) que representa o pano de fundo deste trabalho.

O estudo sobre espaço vem sendo aprofundado por diversos estudiosos, Milton

Santos (passim), por exemplo, utiliza-se de diferentes categorias que realizam uma

divisão do espaço – espaço social, espaço humano, espaço geográfico, espaço como

categoria histórica e universal, espaço físico, espaço como sistema de relações, como

fato(r) social, espaço construído, espaço como instância social, espaço urbano, espaço

organizado, espaço total, espaço local, espaço político, espaço dialético, subespaço,

macroespaço, microespaço – para conceituar e refletir esse pluralismo nas interpretações.

Neste primeiro capítulo, os conceitos de espaço de Milton Santos (social,

humano, geográfico, urbano, local, bem como espaço como sistema de relações e como

fato(r) social, espaço organizado e espaço político) serão fundamentais. Necessitaremos

ainda de conceitos de Deleuze como os de território, territorialização, desterritorialização

e reterritorialização, subjetivação e processos maquinímicos, além da obra de outros

autores como Harvey, Certeau, Bachelard e Durkheim, para fundamentação teórica do

estudo.

1.1 Espaço e Relações Sociais

O que é a cidade? Cidade é espaço, é lugar? Por que e para quem a cidade foi

criada? Neste trabalho – apoiados em Certeau (2013), Santos (2012) e Conton (2012) -

consideraremos cidade algo caracterizado pela sua multiplicidade de papéis, todo o

espaço territorializado formado por gente heterogênea, por uma diversidade de símbolos,

redes, afetos e sentidos, por diferentes corpos que interagem entre si e com o meio, por

toda a parte e a todo o tempo.

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Definir “cidade” não é tarefa simples e haja vista a diversidade de áreas de

conhecimento, experiências, objetos de análise e interpretações, realizaremos uma

pesquisa Multidisciplinar2 utilizando-se das fontes da Sociologia, Filosofia, Ciência

Política, Arquitetura, Geografia e Psicanálise, buscando transversalizar as informações

estudadas em cada fonte, para que seja produzido um conhecimento transdisciplinar3 e

intenso sobre o espaço social.

Podemos considerar por “cidade” um espaço habitado, organizado e em

constante modificação, a partir das necessidades que surgem com a formação das

diferentes relações estabelecidas ao longo do processo de desenvolvimento da

humanidade.

Poeticamente, Harvey define a cidade, com base em Jonathan Raban, como

algo semelhante a “uma série de palcos em que os indivíduos podiam operar sua própria

magia distintiva enquanto representavam uma multiplicidade de papéis” (HARVEY, 2012:

15) já que este universo inclui o mundo privado e o mundo público, onde o mesmo

homem se apresenta e se organiza de diferentes maneiras. Certeau (2013: 161)

acrescenta ainda que “a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se

compensam e se combinam fora do poder panóptico”, poder de controle e observação.

Esses movimentos contraditórios representam as diferentes forças existentes

no espaço da cidade a partir da forma como o homem se organiza social e

economicamente, criando novas relações e estruturas que, devido sua diversidade de

objetivos e papéis, compõem uma arena de conflitos onde não há sujeitos passivos.

2 Para Milton Santos, “quando se fala em multidisciplinaridade se está dizendo que o estudo de um

fenômeno supõe a colaboração multilateral de diversas disciplinas, mas isso não é por si mesmo uma garantia de integração entre elas” (SANTOS, 2012: 133.)

3 Entendemos a noção de transdisciplinaridade aqui adotada para além da lógica das disciplinas, assim

nenhuma disciplina é respeitada exclusivamente em seu saber, também não é um novo saber que surge como na interdisciplinaridade. Mas aqui, sustentamos um modo de pesquisa que não quer estar em nenhum saber delimitado, mas quer estar apenas nas bordas ‘mal’ delineadas de vários saberes.

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Dentre tantas outras definições possíveis, selecionamos ainda a ‘cidade’ do

ponto de vista de Kevin Lynch, importante Urbanista cujas obras são de profundo

reconhecimento na área de arquitetura e urbanismo:

Uma cidade é uma organização mutável e polivalente, um espaço com muitas funções, erguido por muitas mãos num período de tempo relativamente rápido. A especialização completa e o entrelaçamento definitivo são improváveis e indesejáveis. A forma deve ser de algum modo descompromissada e adaptável aos objetivos e às percepções de seus cidadãos.” (LYNCH, 1999: 101)

Esta abordagem sobre a percepção da cidade é comum aos demais autores

utilizados nesta pesquisa ao ponto em que concorda com a diversidade de funções do

espaço e dos sujeitos que o habitam, bem como do seu caráter de constante

transformação.

No entanto, a ideia de ‘descompromisso’ e ‘adaptação aos objetivos’ pode

gerar polêmica devido sua possível associação à noção de transitoriedade e

descontinuidade aculturadas, onde os valores histórico-culturais de um povo podem ser

perdidos durante o processo, discussão presente na crítica negativa ao pós-modernismo.

No entanto, é preciso considerar as transformações sociais e suas influências na

organização e formação da cidade, historicamente.

A ideia de espaço propõe novas perspectivas para este estudo, a partir do

momento em que a diversidade de categorias de análise desse conceito vem sendo

dividida em diversos conhecimentos de forma multidisciplinar.

Milton Santos é um importante geógrafo brasileiro, criador de conceitos originais

para estudar a geografia política. Tentando entender os espaços produzidos pelos

homens em suas relações, o autor cria uma distinção entre os conceitos de espaço e

lugar - também presente na obra de outros estudiosos.

O espaço, para ele, seria entendido pelo espaço geográfico modificado pela ação

do homem sobre a natureza, que o transforma em espaço humano ou social através de

sua ocupação e organização. Lugar por sua vez seria o resultado das respectivas ações

do homem sobre o espaço. A cidade pode ser assim analisada por estes conceitos nos

permitindo um entendimento mais amplo sobre a forma como está estruturada. Milton

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Santos, apoiado em Whitehead4 (1938) utiliza como ponto de partida a relação entre o

espaço natural e o espaço social:

O espaço geográfico é a natureza modificada pelo homem mediante seu trabalho. A concepção de uma natureza natural, onde o homem não existisse ou não fora seu centro, cede lugar a ideia de uma construção permanente da natureza artificial ou social, sinônimo de espaço humano. (SANTOS, 2012: 150)

Devido o nível de intervenção do homem nos diversos espaços e a

possibilidade de deslocamento e exploração subsidiadas pelo desenvolvimento do

sistema capitalista, são escassos os lugares que ainda conseguem manter sua

característica de “natureza natural”, citada pelo autor. A maior parte dos lugares já sofreu

ações do homem e, uma vez transformados, perdem essa característica independente de

se tornar um espaço habitado ou não.

Certeau (2013) fala em “lugar praticado”, afirmando que o espaço “é o efeito

produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a

funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades

contratuais” (CERTEAU, 2013: 184). Este conceito vai de encontro à ideia de espaço

social elucidado por Santos, aproximando-se ainda do conceito de cidade em Certau e

Harvey.

E o lugar? Para Milton Santos (2012: 258), “o lugar é, pois, resultado de ações

multilaterais que se realizam em tempos desiguais sobre cada um e em todos os pontos

da superfície terrestre.” O mesmo vai além, afirmando que “cada lugar é, a cada

momento, um sistema espacial, seja qual for a “idade”, dos seus elementos e a ordem em

que se instalaram,” o que sugere que o lugar faz parte do espaço.

Ainda sobre lugar, em concordância com Santos, Katia Conton, a partir de

Anthony Giddens, afirma que “‘lugar’ se refere a uma noção específica do espaço: trata-se

4 Alfred North Whitehead foi um renomado Filósofo e Matemático britânico, pesquisador na área de Filosofia

da Ciência. Milton Santos utilizou três obras deste autor na elaboração do livro “Por uma Geografia Nova”. As obras que serviram de referência para o geógrafo foram: “Essays in Science and Philosophy”, de 1948; “The Concepto f Nature”, de 1964 e; “Process and Reality”, de 1968. Whitehead faleceu em 1987, com 86 anos de idade, na cidade de Cambridge.

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de um espaço particular, familiar, responsável pela construção de nossas raízes e nossas

referências no mundo.” (CONTON, 2012: 15).

Este conceito de lugar apresentado pela autora aponta para muitas abordagens

subjetivas ao situá-lo como referência de mundo e construção de raízes, algo que será

mais aprofundado adiante a partir dos estudos sobre afeto, em Bachelard.

O espaço social sendo formado por sujeitos heterogêneos possui sistemas que

também refletem essa pluralidade na forma de participação dos sujeitos e da apropriação

dos produtos produzidos coletivamente, o que aponta para diferentes modos de

organização entre os grupos e, consequentemente, diferentes maneiras de interagir, de

contribuir e modificar as relações existentes.

Para Certeau, “um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições.

Implica uma indicação de estabilidade (CERTEAU, 2013: 184).

Neste mesmo processo de construção de relações entre sujeitos heterogêneos,

são produzidos referenciais e relações de poder, o que indica diferentes posições,

conforme afirmado por Certeau. Assim, a noção de lugar é polarizada pelos efeitos da

desigualdade na ocupação do espaço, bem como na forma como cada um terá

possibilidades de construir e ocupar este espaço particular elucidado por Conton.

A desigualdade e a pluralidade estimulam novas orientações para Milton Santos,

a partir do conceito de espaço habitado, que para ele sofre alterações a partir da

Revolução Industrial. (Santos, 1988).

Uma das características do 'espaço habitado é, pois, a sua heterogeneidade, seja em termos da distribuição numérica entre continentes e países (e também dentro destes), seja em termos de sua evolução. Aliás, essas duas dimensões escondem e incluem outra: a enorme diversidade qualitativa sobre a superfície da terra, quanto a raças, culturas, credos, níveis de vida etc. (SANTOS, 1988: 15)

Sob o mesmo solo onde essa diversidade quantitativa é formada, formam-se

também os diversos modos de segregação, discriminação, violência e negação da

diferença, interferindo nas possibilidades de existência e de reprodução dos sujeitos, na

formação dos afetos e na construção coletiva dos espaços.

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Pela análise histórica, entendemos que a cidade sofreu intensas mudanças no

mundo ocidental. Caracterizada pela possibilidade de trabalho livre, em tempos de

transição do feudalismo para o período pré-industrial no século XV, a cidade diferenciava-

se do campo pela diversidade de oportunidades existentes no seu espaço, até o momento

em que o capitalismo se estabelece e outras questões sociais formam um novo cenário

de precarização e sobretrabalho.5

A cidade limitada da aristocracia, dominada pelo senhor feudal, não

possibilitava qualquer alternativa para escravos e camponeses. Não havia destino para

estes homens subalternos. Com a emergência do sistema capitalista, esta realidade

modifica-se dando forma a um espaço de possibilidades com a abertura do comércio

local, a instituição de indústrias e o surgimento do salário pelo tempo socialmente

necessário à produção de novas mercadorias, este último somente ganhou estabilidade

com o amadurecimento do sistema.

Cumpre ressaltar que Marshall afirma que “o elemento contratual no feudalismo

coexistiu com um sistema de classes baseado em status” [...] e que o contrato moderno

assumido pela emergência do capital, “é essencialmente um acordo entre homens que

são livres e iguais em status, embora não necessariamente em poder.” (MARSHALL,

1967: 80)

O período de acumulação primitiva do capital, seguinte ao capitalismo pré-

industrial, ainda se apresenta como espaço de dominação sobre os artesãos, por

exemplo, posto que a maior parcela do lucro dos produtos produzidos é concentrada nas

mãos dos comerciantes da região, o que já aponta o lugar de poder assumido por este

grupo.

É somente no capitalismo industrial que o salário é estabelecido e, de fato, com

a ampliação das ferrovias, dos meios de transporte e com a forte imigração, que as

cidades são ampliadas. A burguesia se legitima sobre o feudo e surgem os conceitos de

5 Por sobretrabalho, entendemos o período de trabalho do proletário que surge como excedente à

manutenção do seu próprio trabalho e do sistema capitalista. Sua carga-horária de trabalho não se modifica com a utilização de recursos tecnológicos para a produção, passando o sujeito a produzir além do equivalente a sua remuneração. Este tempo de trabalho otimimizado não é revertido pelo aumento da produção, transformando-se em mais-valia, ao favorecer o capitalista através do trabalho acumulado e do lucro pelo consequente aumento da produção. (THIRY-CHERQUES, 2012)

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classe trabalhadora e detentores dos meios de produção. Novas técnicas são utilizadas

nas indústrias e o capitalismo se expande rapidamente.

O Estado passa a investir no espaço público para favorecer a manutenção

deste sistema. O Estado também estreita suas relações com o capital e cedendo às

manifestações do proletário conforme pressionado pela classe, que constantemente se

organizava em prol da luta por direitos, sobretudo trabalhistas e serviços sociais básicos

para manutenção da própria vida.

A ampliação das cidades e seus desdobramentos geográficos em novos

espaços de produção, naturalmente, estimularam a emergência de novas demandas para

o trabalhador, já que o homem proletário tem suas necessidades sociais aumentadas

para viver nesse espaço de intensa modificação.

Ao entenderem que seus problemas representavam demandas coletivas e não

individuais este grupo de sujeitos, o proletariado, finalmente se apropriou da consciência

de classe e se organizou a fim de vislumbrar, junto ao capital e ao Estado, aquilo que

julgavam essencial para garantir condições mínimas de existência.

Todo esse movimento traz novos elementos para a constituição do espaço, que

se modifica aceleradamente de acordo com as intervenções de ambos os atores, na

medida em que as relações sociais são modificadas em virtude do modo de produção e

de ocupação da cidade, formando novas estruturas desconhecidas até então.

A apropriação de novas técnicas possibilita a intensificação dos resultados do

processo de produção e das relações comerciais, nacional e internacionalmente. A

indústria se especializa em diferentes atividades, promovendo intercâmbios culturais, o

que oportuniza grande circulação e ocupação desses espaços que, num ritmo intenso,

dão forma às cidades capitalistas. Octavio Ianni define este modo de produção como

um sistema de mercantilização universal e de produção de mais-valia. Ele mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas. Ao mesmo tempo, pois, mercantiliza a força de trabalho, a energia humana que produz valor. Por isso mesmo, transforma as próprias pessoas em mercadorias, tornando-as adjetivas de sua força de trabalho. (IANNI,1980: 08)

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Neste contexto, a existência de homens à margem do sistema de produção,

possibilita ao capital maior controle sobre os trabalhadores. Com a diminuição do tempo

socialmente necessário à produção de mercadorias – trabalho excedente ou

sobretrabalho, já mencionados – através do emprego de máquinas, os homens produzem

mais num mesmo espaço de tempo aumentando o lucro do capitalista – o que Marx

denomina mais-valia, processo pelo qual o homem perde a autonomia criativa sobre o

produto de seu trabalho, que se divide em processos executados por outros sujeitos,

perdendo a noção de totalidade. Estas modificações interferem no modo como os

trabalhadores percebem a si próprios e aos outros, transformando, consequentemente, as

relações humanas e o espaço social de produção e reprodução. (THIRY-CHERQUES,

2012)

Cumpre então, ressaltar a importância de compreensão do espaço nas suas

relações entre passado e presente. O espaço é determinado pelas “formas

representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura

representada por relações sociais que estão acontecendo diante de nossos olhos e que

se manifestam através de processos e funções” (SANTOS, 2012: 153). Logo, temos a

necessidade de retornar a momentos passados para entender o espaço na sua

conjuntura atual, que também é transitória e encontra-se em fase de modificação

enquanto tentamos defini-la nesse momento.

Para além de qualquer definição possível para espaço, devemos considerá-lo

como um “campo de forças”, uma arena de conflitos que se origina justamente da

diversidade de conjunturas e interesses que o legitimam.

Segundo a acepção durkheimiana, o espaço é, pois, uma coisa; ele existe fora do indivíduo e se impõe tanto ao indivíduo como à sociedade considerada como um todo. Assim, o espaço é um fato social, uma realidade objetiva. Como resultado histórico, ele se impõe aos indivíduos. Estes podem ter dele diferentes percepções e isso é próprio das relações entre sujeito e objeto. Mas, uma coisa é a percepção individual do espaço, outra é a sua objetividade. O espaço não é nem a soma e nem a síntese das percepções individuais. Sendo um produto, isto é, um resultado da produção, o espaço é um objeto social como qualquer outro. Se, como para qualquer outro objeto social, ele pode ser apreendido sob múltiplas pseudoconcreções, isto de nenhuma forma o esvazia de sua realidade objetiva. (SANTOS, 2012: 150)

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Através da abordagem de Durkheim sobre o tema, podemos dizer que o

espaço se forma a partir do resultado da troca da percepção e ações que os indivíduos

que convivem ao mesmo tempo e no mesmo lugar, tem sobre ele. E que esses resultados

influenciam diretamente os produtos seguintes. Não concordamos com a afirmativa de

que produto é um objeto social como qualquer outro e que sua realidade seja objetiva.

O espaço é o filtro de um processo de percepção individual de sujeitos

heterogêneos, que formam uma sociedade plural. Mas devemos entender que este

resultado é inacabado e em constante processo de modificação, repleto de sentidos,

percepções, sensações, valores, sentimentos, experiências e referenciais simbólicos que,

no cotidiano, se apresenta através dos mais diferentes modos de existência. Concluímos

então que o espaço é um ‘produto’ social e não é possível, por tanto, caracterizá-lo como

algo objetivo, mas como um campo de subjetividades.

Por outro lado, o espaço não pode ser considerado um objeto social como outro

qualquer a partir do momento em que não diz respeito a algo característico ou

pertencente a um grupo específico, mas sim, a reações dissimétricas entre grupos

diferentes.

Como exemplo, podemos citar a má distribuição de renda num mesmo espaço

geográfico. A pobreza é um objeto, um fato ou uma questão social. Ela se apresenta de

diferentes formas para os sujeitos pobres. Ela pode estar presente no mesmo território

onde há riqueza. Quem concentra a renda pode não se sentir afetado pelo grau de

pobreza existente ao seu redor. Isso não faz com que o problema deixe de existir para

aquele que encontram-se desprovido de renda, embora para o outro, isso não tenha

nenhuma representatividade afetiva, somente econômica, já que a riqueza está garantida

e justificada na má distribuição de seus dividendos.

O espaço diz respeito aos dois universos, ao da riqueza e ao da pobreza. Ele

comporta os dois universos e todas as características presentes em ambos. Ele comporta

o lugar do pobre e o lugar do rico. Ele tem para si todas as alegrias e sofrimentos destes

sujeitos, ele comporta ainda o conflito entre as estruturas que se fazem presentes. Nele

se formam diferentes culturas que não se encontram distantes no espaço geográfico.

Logo, o espaço não é um objeto social como outro qualquer, ele é o campo social que

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acolhe todos os outros objetos sociais nas suas estruturas, sentidos e representações e

sofre constantes alterações de acordo com os movimentos existentes no seu interior.

Para Milton Santos (2012:163) ”quando se admite que o espaço é um fato

social, é o mesmo que recusar sua interpretação fora das relações sociais que o definem.

Muitos fenômenos, apresentados como se fossem naturais são, de fato, sociais.” Cumpre

ressaltar que Aron define ‘fato social’, nas palavras de Émile Durkheim, como “toda

maneira de fazer, suscetível de exercer uma coerção externa sobre o indivíduo” (ARON,

2000: 337), reconhecido como um fenômeno social.

A naturalização da injustiça, da desigualdade, das relações de exploração e da

violência é permitida quando pensamos o espaço como fato ou fenômeno social. Elas

deixam de ser característica – e necessidade de sobrevivência – do sistema econômico

de produção. A noção de direito torna-se inviável, não existem mais possibilidades para

os ‘dominados’, para os miseráveis.

Frequentemente as abordagens sobre o ‘espaço’ tem como pano de fundo o

aspecto econômico, de produção de riqueza, como se estivesse subordinado a esta,

sendo pouco associado ao debate social.

Se tratando de um espaço humano e social, é preciso abranger outras

realidades que formam sua base, não somente a econômica. O aspecto político, por

exemplo, é fundamental na construção de todas as relações, inclusive, na estrutura

econômica. Este mesmo espaço tem um papel ativo em todas as manifestações, embora

tenhamos nos preocupado até aqui em mostrar como ele é impactado pelos movimentos

que o compõe.

“O espaço como forma não tem, de modo algum, um papel fantasmagórico,

pois os objetos espaciais são periodicamente revivados pelo movimento social.” Essas

formas sofrem constante transformação, conforme as finalidades que lhes deram origem,

tornando-se “resistentes à mudança social e uma das razões disso está em que elas são

também ou antes de tudo matéria.”, matéria essa que não dispõe “de autonomia de

comportamento, mas de existência. (SANTOS, 2012: 187).

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É possível que esta linha tênue entre o espaço, sua forma e seus objetos

espaciais associadas à ideia de matéria - ou objeto, alimente o seu entendimento a partir

do viés econômico e o espaço seja visto como mercadoria, onde sua estrutura é

analisada somente enquanto lugar de produção de bens e não de relações humanas.

Santos (2012) explica ainda seu reconhecimento enquanto resultado da produção:

O ato de produzir é igualmente o ato de produzir espaço. A promoção do homem animal a homem-social deu-se quando ele começou a produzir. Produzir significa tirar da natureza os elementos indispensáveis à reprodução da vida. A produção, pois, supõe uma intermediação entre o homem e a natureza, através das técnicas e dos instrumentos de trabalho inventados para o exercício desse intermédio. (SANTOS, 2012: 202)

É a partir deste entendimento de produção que o homem conhece o trabalho

cooperado com os demais sujeitos, passando a utilizar instrumentos e ferramentas que o

possibilitem alcançar o objetivo idealizado, o que o leva também a organizar seu tempo e

espaço nessa direção. Por conseguinte, nunca mais foi possível retornar ao modo de vida

anterior, já que suas necessidades foram aumentadas em virtude do maior grau de

organização dos grupos, da divisão de responsabilidades e da construção de novas

ferramentas para dar conta de seus novos desejos.

A noção de tempo espaço surge quando ele percebe que cada ação tem um

lugar próprio para ser executada, por sujeitos que se dividem em diferentes papéis para

exercer funções que necessitam de frações de tempo distintas para serem iniciadas e

concluídas. Daí a importância do tempo na organização do espaço, o que se comprova

na definição dos diferentes autores utilizados.

Conforme o tempo e a organização para fazê-las modifica, o espaço é

modificado também. “É por essa forma que o espaço é criado como Natureza Segunda,

natureza transformada, natureza social ou socializada. O ato de produzir é, ao mesmo

tempo, o ato de produzir espaço.” (SANTOS, 2012: 202). E mais importante ainda é

lembrar que neste processo onde o homem transforma suas relações a e natureza, ele

transforma a si mesmo também.

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Ao produzir matérias diversificadas, o homem abre caminhos para o

surgimento de novas atividades dentro da cadeia produtiva, onde o trabalho de

intelectuais, artesãos, artistas e sacerdotes também é desenvolvido.

Uma vez intensificada a produção social, surgem seus excedentes e a

necessidade de um mercado de troca entre os grupos que produzem diferentes produtos.

Santos (2012) aponta para o fato de que tudo muda quando o comércio torna-se

especulativo e não há discussão sobre o preço de determinadas mercadorias, sendo seu

valor imposto arbitrariamente aos demais, introduzindo, nas palavras do autor, “uma nova

escala de valores”. “O valor de cada produto é dado pelo valor, estranho ao grupo, das

mercadorias que é preciso comprar.” (SANTOS, 2012: 206).

Esta transformação nas relações econômicas leva o homem a criar a moeda,

que surge como um instrumento que vem a favorecer as transições comerciais nesse

novo contexto de liberdade. Com a sua introdução nas relações comerciais, os homens

passam a produzir aquilo que acreditam lucrar mais dinheiro, pois esta é a forma de obter

recursos para atender suas demais necessidades.

Com o estabelecimento desta noção de valor e da livre comercialização dos

seus produtos, portanto, do aumento do poder aquisitivo de alguns, o homem conhece o

que hoje chamamos de classes sociais. Em escala crescente esse processo foi

reorganizado e intensificado a partir da exploração de uns sobre os outros, inclusive

através de regimes de escravidão, passando pela industrialização, que através do sistema

capitalista promoveu a universalização das relações econômicas e dos espaços

sociais/produtivos.

Hoje, o espaço das sociedades não é a soma dos espaços correspondentes a cada sociedade particular existente, tampouco esse espaço social é exclusivamente o habitat dos homens, graças à nova natureza das relações intrassociais e entre sociedades. A noção de espaço tornou-se bem diferente, e talvez distante, da noção ecúmeno. O espaço social é muito mais que o conjunto de habitats, graças ao novo tipo de relações cujo âmbito ultrapassou o das comunidades isoladas, e mesmo dos países, para tornar-se mundial. Além do mais, a construção do espaço em nossos dias não resulta unicamente da atividade econômica direta e imediata. Mas também das expectativas de valorização de áreas atualmente não ocupadas ou consideradas sem valor econômico. [...] A própria noção de soberania nacional muda de conteúdo porque os Estados, mesmo com os mais pobres, não sabendo exatamente o que tem a defender, se vêem obrigados a um comando mais estrito da totalidade do seu território e de suas potencialidades, isto é, são obrigados a defender tudo.

(SANTOS, 2012: 211)

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Essa universalização dos espaços e da produção não acontece de forma

homogênea, tampouco num sentido horizontal. Ela se dá verticalmente, de cima para

baixo em benefício da menor parcela da população, aqueles que detém o poder através

do controle do capital. Milton Santos chama este processo de “universalização perversa”,

na medida em que a maioria mantém-se em estado de fragilidade e pobreza,

conseqüência do modo de produção característico do sistema capitalista, apoiado pelo

Estado através de suas estruturas.

“A força motriz é a totalidade social que se encaixa numa adequação dinâmica

às condições preexistentes por meio de uma variedade de processos políticos,

econômicos, culturais, ideológicos etc”. (SANTOS, 2012: 217)

Isso também reflete diretamente na organização de determinados espaços,

onde alguns concentrarão maior número de produtos e serviços enquanto outros contarão

com quantidade insuficiente para prover as necessidades de seus habitantes.

O mesmo desequilíbrio acontece com a oferta de trabalho, com os níveis de

remuneração e exploração da mão-de-obra dos trabalhadores e na sua conseqüente

capacidade de usufruir dos bens produzidos. Estende-se ao acesso aos equipamentos e

bens culturais e educacionais pela população, inclusive no que se refere à reprodução

cultural de seus agentes e à formação de uma cultura popular nos diversos territórios. O

acesso a esses organismos continua representando um direito das elites.

Cumpre ressaltar que os processos mencionados ao longo do estudo também

representam força, potências. São considerados pelo autor como força movimentada,

haja vista o constante processo de movimento da sociedade e das transformações que

por este motivo, ele sofre permanentemente, gerando ainda novos processos

Desta forma, destaca-se a importância da organização política dos diferentes

grupos sociais, pois sendo o espaço social caracterizado por lugar de forças antagônicas

(capital X Estado X Sociedade) os movimentos engendrados na luta por uma sociedade

mais justa e igualitária deve ser reconhecido como potência, não os seus resultados,

exclusivamente.

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1.2 Cidade de afetos, sentimentos e potências

A cidade também é lugar de sentir. Se as relações que o homem constrói com

o espaço e com os seus pares tem como ponto de partida o ato de produzir (extrair da

natureza o que se faz necessário através de ferramentas criadas com objetivos diversos),

conforme sinalizado pelos autores, o universo dos afetos – ainda que no âmbito privado –

antecede o processo de produção.

Gaston Barchelard, Filósofo e Poeta Francês, cuja obra “A Poética do Espaço”

será bastante abordada nesta etapa do estudo, utiliza-se de diversas imagens poéticas

sobre o espaço que os artistas tomam em seus diferentes processos de criação. Uma

destas imagens poéticas é o elemento ‘casa’ que ele analisa para abordar o espaço do

ser íntimo, das raízes, do abrigo, dos devaneios e dos sonhos, temas aprofundados pelo

autor, mundialmente conhecidos e valorizados nas suas obras.

Para Bachelard, a casa “é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano.

Antes de ser “jogado no mundo”, como professam as metafísicas apressadas, o homem é

colocado no berço de sua casa. E sempre, nos nossos devaneios, ela é um grande

berço.” (BACHELARD, 2012: 26). Nesta direção, o espaço não pode ser entendido como

uma unidade metafísica existente antes do ser. Mas o espaço é sempre singularizado e, a

casa, o nosso primeiro espaço ontológico.

Estando a casa situada no campo ou na cidade, é nesse espaço modificado e

habitado coletivamente que este ‘lugar’ singular está construído.

Ainda na pré-história, antes de existir a arquitetura do lar tal como ela é

conhecida hoje, o afeto já se fazia presente na intimidade do homem, nas suas relações

intra-familiares. Os homens se relacionavam minimamente para além de suas

necessidades vitais, ou mesmo com o objetivo de reprodução, conforme apontado pela

ciência. Acreditamos que qualquer relação entre sujeitos é o bastante para a formação do

afeto. Entendemos, pois, que o afeto integra o cuidado para além da noção de instinto,

ainda que isto não se apresente conscientemente.

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Para Bachelard, “todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção

de casa” (2012:25), o que mais uma vez, traduz a existência do afeto por esse ambiente,

uma referência de desejo e posse.

A partir deste referencial, o homem não só desenvolve afeto pelo lugar, como

também a noção de ‘valor’. O autor afirma ainda que “se a casa do sonhador estiver

situada na cidade, não é raro que o sonho seja o de dominar, pela profundidade, os

porões circunvizinhos” (2012: 39), o que aponta para uma intensa relação entre o espaço,

os sentimentos e o desejo.

A casa também denota o sentimento de proteção, de abrigo, bem como nas

ruas da cidade, outrora, o sentimento de ocupação desse espaço poderia ser

representado pelo de encontro. O sentido desses espaços sofre mutações na medida em

que o homem cria novas formas de se relacionar, de produzir e de compreender a

totalidade. Ainda assim,

qualquer que seja o pólo da dialética em que o sonhador se situe, qualquer que seja a casa ou o universo, a dialética dinamiza-se. A casa e o universo não são simplesmente dois espaços justapostos. No reino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente em devaneios opostos. (BACHELARD, 2012: 59)

Entendemos que a casa e o universo estão integrados não somente no plano

da imaginação e da formação dos afetos, mas na própria noção de relações sociais entre

os homens, no modo como este vai se relacionar com os demais sujeitos e, ainda, no seu

modo de perceber e transformar o espaço coletivo.

Acreditamos que a partir da imaginação são criadas as imagens e os códigos

que orientam o ser humano no espaço. A imaginação é produtora de sentidos. Esses

códigos são responsáveis pela percepção de interioridade e exterioridade. Eles são

potencializados através do afeto, que o leva a sentir o espaço como um lugar de abrigo ou

de risco.

A imaginação, ou ato de imaginar, tem papel fundamental nessa interpretação,

motivo pelo qual discutiremos seu conceito brevemente. Para Descartes, “imaginar é

basicamente contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal” (DESCARTES,

1996: 22), para ele a imaginação faz parte do pensamento.

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Já para Kant, autor cuja abordagem mais se identifica com este trabalho – se

aproximando também das definições de Deleuze e Guattari, que não citaremos por

considerá-la contemplada [em Hebeche (2002)] – a imaginação surge como um

componente necessário à percepção, estando vinculada à memória, às representações e

à concepção de juízos sintéticos, podendo ser reprodutiva ou produtiva. Também possui

ligação íntima com o espírito e com a intuição, e posiciona-se entre o mundo inteligível e o

mundo sensível, conectando entendimento, experiências e sensibilidades, considerando

passado, presente e futuro, estando além de qualquer juízo. Não funciona como mera

recepção de informações e imagens e tem o poder de tornar presente o que está ausente.

(HEBECHE, 2002)

Apoiado em Raban, Harvey (2012:17) afirma que “a cidade é lugar em que o

fato e a imaginação têm de se fundir”. Ele vai além ao afirmar que

A cidade também era um lugar em que as pessoas tinham relativa liberdade para agir como queriam e para se tornar o que queriam. “A identidade pessoal tinha se tornado suave, fluída, interminavelmente aberta” ao exercício da vontade e da imaginação. (HARVEY, 2012: 17)

Daí a necessidade de considerar os elementos do plano subjetivo, não

somente o espaço no seu conceito físico, geográfico. Qualquer relação entre sujeito e

objeto transforma a natureza, a natureza natural ou a própria ideia de natureza imaginada

pelos homens. “Os valores de proteção e de resistência da casa são transpostos em

valores humanos. A casa adquire energias físicas e morais de um corpo humano”

(BACHELARD, 2012: 62), porque existem energias diferentes envolvidas, energias que

entram em contato e se metamorfoseiam através das relações, da imaginação e dos

afetos.

Nessa comunicação dinâmica entre o homem e a casa, nessa realidade dinâmica entre a casa e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico. (BACHELARD, 2012: 59)

A casa é um espaço habitado que compõe a cidade, juntamente com outras

estruturas privadas. A cidade já foi percebida como lugar de possibilidades, como espaço

de múltiplas expressões e intervenções, como espaço diversificado, plural. Isto nos leva a

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acreditar que é na e pela cidade a possibilidade de se criar novos sentidos para a

reconstrução da dinâmica existente hoje, a oportunidade de resignificar a cidade num

espaço que represente as diversas singularidades existentes no seu corpo social.

O sistema capitalista ao longo de sua existência desenvolveu uma série de

padrões que foram incorporados socialmente e, consequentemente, influenciaram os

modos de perceber e recriar o espaço público e privado.

O lugar que antes comportava algo de diversidade e liberdade passou a

padronizar corpos, comportamentos e pensamentos. As influências culturais externas

contribuíram ainda mais com a imposição de uma organização cultural unificada,

marginalizando os sujeitos avessos às respectivas ‘orientações’ globais.

No Brasil, particularmente, podemos citar como grande período de tensão o

Golpe Militar de 1964, quando a censura e a violência atingiram todas as classes sociais e

profissionais, inclusive o universo da arte, o que, em contrapartida, serviu como mola

propulsora para a organização coletiva dos sujeitos de diferentes grupos sociais.

Neste contexto de lutas, espaço e tempo foram compartilhados por diferentes

atores, onde os diversos corpos lutaram contra a massificação e homogeneização

imposta pelo Estado e pelo capital. Lutou-se por direitos, por liberdade de expressão,

criação e produção, pela liberdade de existência. Lutou-se contra a imposição de uma

cultura estrangeira e unificada, pelo livre exercício da vontade e da imaginação,

constituindo uma grandiosa rede de singularidades no espaço urbano. O espaço tornou-

se lugar de múltiplas centralidades.

Para melhor compreensão desta arena de lutas e subjetividades que a cidade

se tornou, a partir da ocupação do espaço público pelas diferentes forças sociais,

utilizaremos – principalmente, a obra de Deleuze e Guattari, entendendo que seus

conceitos são indispensáveis para continuação deste trabalho. Para isso, é importante

definir a própria noção de ‘conceito’:

O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem ao pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é evidentemente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento, que não se confunde com o estado das coisas no qual se encarna. Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia

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quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos.[...] (DELEUZE e GUATARRI, 1992: 46)

A utilização das obras de Deleuze e Guatari apresenta-se como um grande

desafio neste trabalho, no entanto, não podemos abster-se de considerar a importância

de alguns conceitos criados por estes autores – territorialização; desterritotialização;

agenciamento; máquina de guerra - para dar forma às reflexões que ora vem sendo

construídas.

Talvez a maior dificuldade em transportar suas abordagens para este universo

esteja no fato de que os conceitos aqui utilizados fazem referência a outros conceitos –

sobretudo a respeito de associações a jogos e períodos históricos – cujas definições não

seriam objeto direto das respectivas análises, levando a uma necessidade de

prolongamento nas definições dos mesmos para promover um melhor entendimento

sobre o espaço, nosso objeto de estudo neste primeiro capítulo.

Para compreender as forças sociais existentes no espaço da cidade, também

precisaremos discutir sobre o papel do Estado. Apesar de ter como objetivo e

característica permanentes o ‘aparelho de captura’ - conceito criado por Deleuze que será

aprofundado mais adiante – Santos (2012: 223) sinaliza o Estado como sistema

necessário à organização social pelo fato de “ser o único intermediário possível entre o

modo de produção em escala internacional e a sociedade nacional”, o que justifica seu

papel na sociedade atual. Ele afirma ainda que “a reorganização de um subespaço sob a

influência de forças externas depende sempre do papel que o Estado exerce” (2012: 226),

não deixando de admitir que as características locais e culturais da dinâmica existente

devam ser levadas sempre em consideração.

Ainda para o autor (2012:180) Harvey e Castells (1973) consideram o espaço

urbano uma “estrutura social”, conceito este que associado a ideia de Formação Social

também contribui para esta análise do espaço e de sua ocupação. Ele continua,

embasado nos autores mencionados, afirmando que

não é o espaço urbano que se constitui em estrutura social, mas o espaço urbano tomado em seu conjunto. Isso nos obriga a um outro exercício metodológico e

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teórico fundamental, o de apontar qual o lugar real que tem o espaço humano na sociedade global, ou ainda melhor, na formação econômica e social. (SANTOS, 2012: 217)

Este exercício metodológico desafiador apresenta-se como estímulo para a

realização desta pesquisa, cujo objetivo está em problematizar o lugar do ser humano

(com deficiência), sua organização coletiva através dos movimentos sociais e o impacto

deste sobre as estruturas formantes da cidade.

Entendendo o espaço como estrutura social cujos territórios refletem as

características da sociedade global, é possível afirmar seu desdobramento em novas

estruturas que não se limitam à organização econômica. Para Santos

A existência de um Estado atribui à Formação Social um quadro jurídico, político, fiscal, financeiro, econômico e social definido, tudo isso tendo como conseqüência o fato de que a estrutura econômica e social própria a cada país se torna um dado ainda mais específico, mediante suas próprias transformações operadas sob o impulso de um sem-número de fatores internos e externos. (SANTOS, 2012: 236)

Este poder exercido pelo Estado sobre as relações sociais e econômicas é

caracterizado por Deleuze e Guattari (2012) um ‘fenômeno de intraconsistência’ – O

Estado se constitui e fortalece a partir desse direcionamento de controle e poder.

Eles afirmam ainda que há um movimento de desterritorialização6 na sua

intervenção a partir do momento em que o território torna-se objeto a ser estratificado.

Para o autor, cada Estado “é uma operação de estratificação do território.” (DELEUZE e

GUATTARI, 2012: 133).

A ideia de território pode ser considerada em diversas escalas que vão da

abordagem psicológica e filosófica à abordagem geográfica. Com base em Deleuze e

Guattari (2012), ‘território’ consiste no ambiente de um ou mais grupos, onde estes 6 A desterrotirialização compreende um processo de abertura, onde linhas de fuga são ativadas desfazendo

os territórios originais. Trata-se de um movimento de abandono de território. Ela pode ser relativa ou absoluta. A primeira possui maior proximidade com o espaço geográfico, consiste num movimento de abandono de território criado em determinada sociedade, seguido de um reterritorialização. Esta diz respeito ao próprio socius. A segunda diz respeito ao pensamento, já que para o autor, pensar é desterritorializar-se, pois o ato de pensar rompe com um território existente criando outro diferente, uma nova ideia, um novo conceito. Este processo de desterritorialização é acompanhado por um processo de reterritorialização, pois novos agenciamentos são necessários para dar forma ao novo espaço que se criou. (DELEUZE e GUATTARI, 2012)

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constituem padrões de interação entre si e com o meio através de diferentes relações. O

território também é considerado pelos autores um agenciamento7, o que lhe confere uma

interpretação para além da geografia.

Pode-se considerar ainda que a criação do território se dá através de

agenciamentos sociais, coletivos ou de enunciação, formados por um regime de signos

compartilhados - e maquinímicos8 (corpos sociais, animais e cósmicos), poder e desejo –

entendidos em sua obra como forças criadoras. Este seria um processo de

territorialização.

Agenciamentos são definidos como “composições do desejo”, como “todo

conjunto de singularidades e de traços extraídos do fluxo – selecionados, organizados e

estratificados – de maneira a convergir” [...], podendo agrupar-se em conjuntos,

constituindo ‘culturas’, dividindo-se em outros diversos ou introduzindo “descontinuidades

seletivas na continuidade ideal da matéria-movimento. (DELEUZE e GUATTARI, 2012:

94) Esta matéria torna-se desestratificada ou desterritorializada. Ressalta-se ainda que

tudo pode ser agenciado, desterritorializado e reterritorializado.

A desterritorialização é considerada “a operação de linha de fuga” onde os

agenciamentos são desterritorializados (ou se desterritorializam). A reterritorialização, o

ato de territorializar este território a partir de novos agenciamentos, o que difere da

alternativa inviável de territorialidade primitiva. Estes processos são indissociáveis e

concomitantes, pois a partir do momento em que um movimento é iniciado, outro

automaticamente se processa.

De um lado, à matéria formada ou formável é preciso acrescentar toda uma materialidade energética em movimento, portadora de singularidades [...] que já são como forças implícitas [...] e que se combinam com processos de deformação [...]. De outro lado, às propriedades essenciais que na matéria decorrem da essência formal é preciso acrescentar afectos variáveis intensivos, e que ora

7 “Denominamos agenciamento todo o conjunto de singularidades e traços extraídos do fluxo –

selecionados, organizados, estratificados – de maneira a convergir (consistência) artificialmente e naturalmente: um agenciamento, nesse sentido, é uma verdadeira invenção. (DELEUZE e GUATTARI, 2012: 94)

8 Por signos maquinímicos consideramos, a partir de Deleuze e Guattari, signos potentes, capazes de

produzir novas condições e realidades e/ou transformar o que já existe. São formados por diversos elementos, ritmos e ligações internas. São resistentes à ação externa e podem estar a serviço de diferentes organismos, de acordo com a relação existente entre os sujeitos e sua capacidade de resistir, criar novos agenciamentos e desterritorializar-se.

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resultam da operação, ora a tornam possível [...] O phylum maquinímico é a materialidade, natural ou artificial, e os dois ao mesmo tempo, a matéria em movimento, em fluxo, em variação, como portadora de singularidadese traços de expressão. [...] Essa matéria fluxo só pode ser seguida. O phylum maquinímico passa por todos os agenciamentos; nada é mais desterritorializado que a matéria em movimento. [...] Mas, no outro lado, os agenciamentos sedentários e os aparelhos de Estado operam uma captura do phylum, tomam os traços de expressão numa forma ou num código. [...] (DELEUZE e GUATTARI, 2012: 96, 97, 106 e 107)

A partir deste entendimento, fortalecendo-se internamente através da

imposição do seu poder e agenciamento sobre a sociedade, o Estado mistifica a sua

atuação através de um processo de desterritorialização, conferindo novas características

para o território – ou para o espaço social, que se encontra sob seu domínio – de acordo

com seus desejos e intenções. Não sendo impedido pela força da sociedade através da

sua organização (outro agenciamento maquinímico), as demandas sociais são ignoradas

e suas ações servem exclusivamente ao capital.

Para Deleuze o capitalismo triunfa justamente pela ‘forma-Estado’, não pela

‘forma-Cidade’. Ele também busca definir as formações sociais por ‘processos

maquinímicos’ e não por modos de produção. Neste sentido, a formações sociais são

configuradas como estruturas de potência, não objetos de dominação pelo Estado e pelo

capital. O autor afirma que

as sociedades com Estado se definem por aparelhos de captura; as sociedades urbanas, por instrumentos de polarização; as sociedades nômades, por máquinas de guerra; as organizações internacionais, ou antes, ecumênicas, se definem enfim pelo englobamento de formações sociais heterogêneas. (DELEUZE e GUATTARI, 2012: 133)

Esta relação de poder e controle é assumida pelos diferentes atores envolvidos

– sujeitos coletivos, Estado e capital – na medida em que suas necessidades não se

percebem atendidas ou em condições de manutenção. É um movimento cíclico onde as

peças percorrem todo o espaço, mas, frequentemente, os lugares de poder são ocupados

mais vezes pela mesma figura. Daí a existência de uma linha muito tênue entre os

interesses do capital, o controle do Estado e a garantia de direitos.

Assim, cabe à desterritorialização de Estado moderar a desterritorialização superior do capital e fornecer a este reterritorializações compensatórias. Mais geralmente, independente desse exemplo extremo, devemos levar em conta uma

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determinação “materialista” do Estado moderno ou do Estado-nação: um grupo de produtores em que trabalho e capital circulam livremente, ou seja, em que a homogeneidade e a concorrência do capital se efetuam em princípio sem obstáculos exteriores. O capitalismo sempre teve necessidade de uma nova força e um novo direito dos Estados para se efetuar, tanto no nível do fluxo de trabalho nu, quanto no nível do fluxo de capital independente. (DELEUZE E GUATTARI, 2012: 165)

Independente da formação do Estado, este não é capaz de se omitir das

relações com o capital, inclusive pelo fato de muitas vezes ele mesmo ocupar espaços de

produção. Deleuze (2012: 167) fala da servidão dos homens como peças de uma

máquina, onde tem-se a substituição de uma “sujeição maquinímica por uma sujeição

social” onde o homem não somente se torna ferramenta, como é submetido a ela, o que

torna o capitalismo uma “empresa mundial de subjetivação”.

Nesse contexto se manifestam as relações de controle e de poder onde o

homem perde sua característica de trabalhador tornando-se objeto e o contrato de

trabalho aparece como processo dessa subjetivação, cujo resultado é a sujeição,

problema também aprofundado por Karl Marx.

Aron afirma que para Durkheim o problema social não é um problema

econômico, mas de socialização, o que nos remete novamente à ideia de afeto. Com

base na obra deste Filósofo, Sociólogo e Antropólogo Francês, Aron prossegue afirmando

que “trata-se de fazer do indivíduo um membro da coletividade, de inculcar-lhe o respeito

pelos imperativos, pelas obrigações e proibições sem as quais a vida coletiva se tornaria

impossível”. (2000: 346).

Neste sentido, trata-se de possibilitar a todos os sujeitos uma participação

social regida pelos mesmos princípios, no entanto, tais imperativos são manipulados pelo

capital e as regras tornam-se favoráveis a este, posto a fragilidade dos movimentos

sociais em enfrentar o Estado numa perspectiva de equidade.

E para que o indivíduo se aproprie dessa regulação social faz-se necessário

que o mesmo sinta-se parte da coletividade, este afeto de pertencimento que deve

acontecer num movimento de reciprocidade é fundamental para que as normas definidas

pelo grupo tenham sentido para este e sua participação seja possível na vida coletiva.

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Durkheim, sobre sociedade e consciência coletiva – em obra intitulada

igualmente – reproduzida em estudos de Michel Lallement, afirma que “a sociedade não

compreende outras forças atuantes senão a dos indivíduos; somente os indivíduos,

unindo-se, formam um ser psíquico de espécie nova que, por conseguinte, tem sua

maneira própria de pensar e sentir.” (LALLEMENT, 2004: 232)

Esta afirmativa finalmente concorda com os elementos elucidados por Deleuze

e Guattari, Milton Santos, Gaston Bachelard e demais autores abordados ao longo deste

trabalho, ao reconhecer a potência da organização coletiva dos homens, bem como

assumir o surgimento de um novo referencial simbólico coletivo a partir da troca de

experiências, afetos e informações entre os sujeitos e sua transformação individual após

este processo. Também considera a consciência coletiva como formadora de sentido em

relações e espaços antagônicos.

Quanto ao Estado, Durkheim afirma que este “é, propriamente falando, o

conjunto dos corpos sociais, os únicos qualificados para falar e agir em nome da

sociedade”, (LALLEMENT, 2004: 215) o que o configura como um organismo

sobrecarregado devido o acúmulo de funções que assumiu sem condições ou capacidade

para fazê-lo. Sendo inviável exercê-las adequadamente, Durkheim o classifica como

invasor e impotente.

Consideramos ingênua esta afirmativa pelo fato de ignorar as forças sociais

antagônicas existentes entre Capitalismo, Estado e Sociedade, além do fato de que a sua

instituição configurada tal como é, nos dias de hoje, parece surgir como algo natural e

inevitável, além de justificar as ações equivocadas que desvirtuam sua ‘obrigação social’

de atuar em prol da sociedade o qual esta ‘destinado’ a representar.

Refletir a formação e atuação do Estado, dos territórios e espaços, nas suas

singularidades e multiplicidade de papéis, contradições e noções de poder, é fundamental

para identificar o lugar simbólico e físico da participação dos sujeitos na construção e na

transformação da cidade e das relações sociais.

Ignorar partes do processo é ignorar o poder de transformação existente na

diversidade de códigos cotidianos das redes, da interação e das práticas sociais. A

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produção social não pode ser considerada somente do ponto de vista objetivo, mas

simbólico, também.

É preciso produzir novas percepções sobre a cidade substituindo o discurso da

falta pela valorização dos sujeitos políticos que integram e dão vida ao espaço social

através do afeto, da crítica e da cooperação, vislumbrando a transformação do espaço

excludente em espaço de múltiplas centralidades. É possível refletir a produção de outras

cidades a partir da potência existente na sociedade civil e nos movimentos sociais.

No próximo capítulo buscaremos oferecer elementos para refletir o movimento

de pessoas com deficiência dentro da conjuntura desvendada neste capítulo, a fim de

analisar e propor a produção de outros espaços possíveis, que sejam, de fato,

construídos coletivamente pela sociedade.

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2 PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E ORGANIZAÇÃO BIOPOLÍTICA: O

PODER DO MOVIMENTO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE OUTROS

ESPAÇOS POSSÍVEIS

No primeiro capítulo construímos bases para o entendimento a respeito da

formação social do espaço, das forças antagônicas e estruturantes que o compõem, bem

como das relações construídas e modificadas pelo homem através de sua interação com

seus pares e com a natureza.

A partir de agora, propomos a reflexão sobre a organização coletiva dos

sujeitos através do que conhecemos por Movimentos Sociais, neste caso,

especificamente, o movimento de pessoas com deficiência, a partir do seu entendimento

enquanto potência capaz de transformar a cidade em um lugar de possibilidades, de

liberdade e de múltiplas singularidades.

Deleuze e Guattari (2012) continuarão fundamentando as abordagens a seguir,

através de novos conceitos, sobretudo o de ‘máquina de guerra’.

Antonio Negri e Michel Hardt, filósofos e ativistas políticos, também serão

utilizados devido à importância de suas obras na contemporaneidade, cujos elementos

contribuem singularmente para a visibilidade da organização política dos sujeitos como

instrumento capaz de mobilizar as estruturas sociais e construir uma sociedade

globalmente democrática.

Eucenir Fredini Rocha, Terapeuta Ocupacional atuante na área de atenção à

pessoa com deficiência e pesquisadora na USP, nos apoiará no intuito de abordar

questões relativas ao corpo e aos modelos de serviços de assistência e saúde.

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2.1 Movimento de Pessoas com Deficiência no Brasil – elementos históricos,

políticos e sociais (Breves apontamentos)

O interesse central deste capítulo consiste na problematização do movimento

social das pessoas com deficiência e não do seu histórico. Desejamos entendê-lo em sua

organização na contemporaneidade e na reflexão – a partir da utilização de diferentes

conceitos filosóficos e sociológicos criados por estudiosos ativistas sociais – sobre as

possibilidades de uma reorientação geral na intenção de tornar-se potência capaz de

transformar o espaço socialmente ocupado pela pessoa com deficiência nos dias atuais.

Nesse sentido, apresentaremos breves apontamentos que representam – para

esta reflexão – a essência do desenvolvimento do movimento de pessoas com deficiência

no país, necessários à discussão sobre a formação de novos espaços possíveis. O que

não representa, de forma alguma, a negação da importância de cada intervenção e

conquista alcançada pelo mesmo ao longo de sua trajetória.

Antes de iniciar, cumpre ressaltar que, quando falamos em movimento(s) de

pessoas com deficiência, nos reportamos a algumas categorias diferentes:

1- No sentido stricto-sensu, falamos em ‘Movimento de Pessoas com Deficiência’, no

singular. O que se refere a um movimento maior que possui múltiplas centralidades

(luta por direitos, vida independente, cidade para todos, etc.) ou movimentos

menores: movimento de surdos, de cegos, de pessoas com deficiência física,

intelectual ou múltipla. Estamos falando na totalidade. De todas as organizações de

pessoas com deficiência existentes no país.

2- No sentido lato-sensu, referimo-nos à ‘Movimentos de Pessoas com Deficiência’

considerando que este movimento maior se orientou em diferentes perspectivas:

luta por direitos; luta pela vida independente e; luta por uma cidade para todos

(utilizaremos estes por considerá-los os principais nesta categoria), que contempla

acessibilidade arquitetônica e urbanística, produtos, serviços e participação social.

Estas perspectivas são consideradas pelos seus integrantes como outros

movimentos sociais, mas a palavra movimento, nesse caso, diz respeito muito mais

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a uma orientação dentro do espaço político, ou seja, o que vem a ser discutido no

seu interior, as temáticas pertinentes. Neste caso, considerar-se-á: Movimento de

Vida Independente; Movimento dos Direitos das Pessoas com Deficiência;

Movimento Cidade para Todos.

2.1- Neste mesmo sentido nos referimos ainda a um movimento social que comporta

diferentes singularidades, característica que levou seus integrantes a se

organizarem em subgrupos por tipo de deficiência9. Tal mobilização ocorreu com o

objetivo de identificar as características e demandas relacionadas aos diferentes

9 O Decreto 5.296 de 02 de Dezembro de 2004, que regulamenta a Lei 10.098 de 08 de Novembro de 2000,

que classifica pessoa com mobilidade reduzida aquela que, não se enquadrando no conceito de pessoa com deficiência, tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se permanente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção e, Pessoa com Deficiência, como aquela que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadre nas seguintes categorias:

a)deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

b)deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;

c)deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60 graus; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;

d)deficiência intelectual: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

1. comunicação;

2. cuidado pessoal;

3. habilidades sociais;

4. utilização dos recursos da comunidade;

5. saúde e segurança;

6. habilidades acadêmicas;

7. lazer; e

8. trabalho

e)deficiência múltipla: associação de duas ou mais deficiências;

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tipos de deficiência, bem como discutir os recursos necessários para atendê-las nas

suas especificidades. Nesse contexto são considerados ainda os movimentos de

pessoas surdas; de pessoas cegas; de pessoas com deficiência física e; de pessoas

com deficiência intelectual e/ou múltipla.

3- Por fim, precisamos alertar ainda para o fato de que a noção de

“movimentos sociais’ de pessoas com deficiência também se estende em

número, pois eles se multiplicam em regiões, Estados e até mesmo diferentes

cidades do país. Logo, é comum ouvir falar no movimento X do Rio de Janeiro,

por exemplo. Mas quando nos referirmos ao ‘movimento’ de pessoas com

deficiência, estaremos sempre falando daquele que comporta todas essas

pluralidades, o primeiro destacado.

Podemos sinalizar o surgimento de um movimento internacional de pessoas

com deficiência no início da década de 50, a partir dos estímulos provocados ao redor do

globo com a promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1848. No

entanto, é apenas na década de 70 que estes sujeitos protagonizam as arenas de luta no

Brasil.

Mesmo antes desta conquista, já existia alguma organização pontual

direcionada ao âmbito da saúde, a partir dos soldados feridos que retornaram das guerras

com os mais diversos tipos de deficiência. Pois o primeiro momento de preocupação com

o que fazer com as pessoas com deficiência é datada historicamente do período pós-

guerra, com o retorno dos respectivos combatentes aos países de origem.

Contudo, os direitos existentes na legislação vigente até então, foram

considerados nos planos de ação do Estado, somente a partir da Constituição da

República Federativa do Brasil, em 1988, período em que o movimento já estava

solidificado politicamente e protagonizou, junto a outros movimentos sociais, as

intervenções coletivas em prol da ampliação e garantia de direitos.

A partir de então, os sujeitos com deficiência tornaram-se visíveis à sociedade

e passaram a dispor de um número maior de mecanismos para reivindicar seus direitos à

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Educação, Saúde, Transporte, dentre outros. Nos anos subsequentes foram criados

conselhos de direito, nas três esferas de governo, bem como secretarias especiais em

diversas regiões do país.

A organização política do movimento ganhou força a partir da década de 70,

cujas principais reivindicações se orientaram em torno da saúde, da educação, da

acessibilidade em espaços arquitetônicos e urbanísticos bem como no fornecimento de

tecnologias capazes de minimizar os efeitos da funcionalidade prejudicada em virtude das

barreiras existentes no meio ambiente.

O período histórico em questão – pós 64 – também representa um divisor de

águas para outros movimentos sociais, momento em que os diversos segmentos ocupam

o cenário político para reivindicar direitos. Cumpre ressaltar a proximidade com o fim do

regime militar, marco principal de estímulo às camadas populares em prol da luta por um

processo de redemocratização que se estendeu até a década de 80.

Nos anos 50 temos a emergência de instituições específicas de atendimento à

pessoa com deficiência, que vão se debruçar sobre as demandas reivindicadas

anteriormente. O Estado do Rio de Janeiro é o primeiro local onde se forma uma

instituição de atendimento com esta finalidade. Tão logo, os demais Estados se

organizaram nesse sentido, conquista ampliada de acordo com a movimentação do

segmento nos diferentes territórios.

Neste caso, falamos especificamente de instituições na área de atenção a

saúde da pessoa com deficiência, pois desde o império grandes instituições para este fins

de acolhimento institucional e educação foram criadas, como o Instituto Nacional de

Educação de Surdos e Instituto Benjamin Constant. Temos ainda o Hospital Pedro II,

construído no mesmo período, que destinava-se ao atendimento hoje denominado saúde

mental.

Ao longo dos anos a deficiência foi conceituada em diferentes perspectivas:

deficiências físicas, auditivas, visuais, intelectuais e/ou múltiplas. Sujeitos com essas

deficiências foram os responsáveis pela formação do movimento de pessoas com

deficiência, juntamente com familiares, profissionais de saúde e outros. Pessoas com

hanseníase já fizeram parte no início do seu processo de formação, e hoje, pessoas com

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bolsas de ostomia partilham políticas públicas comuns às pessoas com deficiência,

encontrando-se contempladas na legislação específica.

Os principais direcionamentos do movimento ao longo dos últimos anos – que

permanecem nos cenários de discussão atuais, – além da delimitação e definição de

conceitos sobre os diferentes tipos de deficiência é o rompimento dos modelos de

atenção básica e especial. As diversas intervenções do Estado através de políticas e

serviços públicos foram se metamorfoseando na medida em que a deficiência passou a

ser vista de diferentes formas pela sociedade.

Eucenir Fredini Rocha, em seu livro intitulado “Reabilitação de Pessoas com

Deficiência” (2006) aponta as concepções: ortopédica, fisiátrica, baseada na comunidade

e a de vida independente como os principais modelos de intervenção na área de saúde.

Isto se deve ao longo período em que a pessoa com deficiência foi concebida

somente a partir da concepção médica, tendo os demais aspectos que lhe tornam um

sujeito social ignorados pela medicina, o que contribuiu com uma visão secundária da

pessoa, tornando o sujeito um objeto de análise focado na sua limitação, não nas suas

pontencialidades.

Neste contexto os modelos de atenção à saúde, inicialmente, buscavam corrigir

as ‘imperfeições’ do corpo com deficiência, objetivando restabelecer, na medida do

possível, as funções biológicas compatíveis àquelas de um corpo ‘normal’.

Contudo, a partir de novas concepções introduzidas nos anos 90, o Modelo

médico começa a ser confrontando com o modelo de reabilitação baseada na

comunidade. Este modelo tem como princípios o conhecimento do espaço social do qual

a pessoa com deficiência faz parte, no sentido de utilizar-se dos recursos disponíveis na

comunidade na intervenção terapêutica em reabilitação.

Com a reabilitação baseada na comunidade - RBC, pela primeira vez, o

espaço social ocupado pelo sujeito passa a ser considerado no processo, e as

intervenções – que agora tornam-se interdisciplinares – buscam compreender a pessoa

com deficiência de forma mais abrangente.

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Neste modelo, além da elaboração de recursos na unidade de saúde, outras

alternativas surgem dentro do próprio espaço comunitário, expandindo a concepção de

necessidade. Isto representa autonomia e possibilidades por um lado, mas por outro,

aponta para a precarização na oferta de recursos pelo poder público, já que muitas

comunidades dispõem de parcos materiais que muitas vezes não podem ser utilizados

com essa finalidade. Nas unidades de atenção básica à saúde também não há

disponibilidade de materiais de maior complexidade para utilização nesta perspectiva,

logo, este modelo é visto de modo divergente entre os profissionais de saúde.

A concepção de Vida independente veio explorar a utilização de recursos que

viabilizam o máximo possível a independência da pessoa com deficiência nos diversos

ambientes, contando com a denominada tecnologia assistiva10 para minimizar as

dificuldades impostas pela limitação do corpo e das barreiras nos diversos espaços.

O debate no tempo presente defende a adoção de um modelo de atenção

biopsicossocial, que considera o sujeito na sua totalidade, oferecendo todos os recursos

necessários à sua reabilitação, acesso aos serviços e políticas públicas necessárias e

participação na vida social. Daí a importância da acessibilidade nos diversos setores da

máquina pública (saúde, educação e trabalho, assistência social, cultura, lazer e esporte,

etc.) bem como a necessidade da intersetorialidade para promoção desse acesso.

Um dos maiores desafios para consolidação de um movimento social de

pessoas com deficiência no seu período de emergência deu-se pela diversidade de

deficiências existentes e da necessidade de diferentes recursos para atender suas

especificidades. Embora o amadurecimento político do grupo tenha contribuído com a

criação de soluções coletivas nesse sentido, este é um desafio que se mantém presente

na contemporaneidade, facilmente perceptível nos espaços de participação e controle

social.

Este desafio de integração das singularidades existentes no seio do movimento

apresenta-se, ao nosso entendimento, como principal fator de enfraquecimento político e

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Tecnologia Assistiva ou Ajudas Técnicas, conforme sinalizado na legislação consiste em “produtos, instrumentos, equipamentos ou tecnologias adapatados ou especialmente projetados para melhorar a funcionalidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, favorecendo a autonomia pessoal, total ou assistida. (BRASIL, 2004)

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social das pessoas com deficiência ao longo da história. Pois interfere no seu

conhecimento em quanto um corpo social composto por diferentes membros e funções,

além de refletir seu posicionamento coletivo diante dos espaços de reivindicação. No

entanto, é importante destacar que outros movimentos sociais, sobretudo no país, se

organizaram de modo semelhante e também apresentam esta visão polarizada sobre

seus membros, tornando-se ora mais potentes, ora mais frágeis, ao longo da história.

Estas dificuldades não impediram a conquista de consideráveis avanços nos

campos político, legal e social. A contribuição de profissionais que formam a rede de

atenção à pessoa com deficiência, também foi fundamental neste processo. Os ganhos

vão desde a criação de um profundo conteúdo legal versando sobre diferentes áreas do

direito até a mudança na visão socialmente construída ao longo dos anos sobre

deficiência, que envolve muitos mitos, preconceitos e incertezas.

Nesse sentido, entendemos que há um movimento importante em desvincular a deficiência de estereótipos e preconceitos tão presentes na história desse conceito, traduzido por uma concepção erigida na positividade do conceito de saúde e de suas alterações, enquanto uma produção social, histórica, em um tempo e um espaço específico onde os indivíduos vivem. (ROCHA, 2006: 25)

Romper com os estigmas construídos e fortalecidos ao longo de tantos anos

não é tarefa fácil. Caminhar nesta direção significa se esforçar para entender a pessoa

com deficiência como um ser social que por esta característica se relaciona com

ambientes, pessoas e estruturas diversas. Representa ainda a necessidade de entender o

sentido da deficiência para o sujeito, sua família, comunidade e para a sociedade de

modo geral. É preciso refletir o lugar que este sujeito ocupa nestas relações diversas.

Trata-se da necessidade de deslocar o foco da intervenção de um corpo patológico e individual para um corpo relacional, singular em sua constituição, que prevê estar em uma determinada comunidade, cultural e historicamente contextualizada, com necessidades e possibilidades específicas. (ROCHA, 2006: 130)

Se as instituições de atendimento às pessoas com deficiência tiveram papel

fundamental na formação das bases para a legitimidade do movimento, por outro lado,

também contribuíram para a visibilidade desses sujeitos não como fruto e membro de

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uma coletividade formada por diferentes espaços, mas como integrantes somente dos

lugares destinados às pessoas com as mesmas características ‘física’, ‘intelectual’ ou

‘sensorial’ que as suas.

As organizações associativistas criadas partir do século XX, eram formadas

pelas pessoas com deficiência, seus familiares e profissionais. Muitas dessas

organizações formam, hoje, a maior parte dos centros de reabilitação e unidades de

referência em educação e assistência social para o segmento, já que a formação da rede

de serviços públicos no país é composta, principalmente, por instituições do terceiro setor.

Dentro do movimento de pessoas com deficiência foram formados os

movimentos menores – movimentos de cegos, de surdos, de pessoas com deficiência

intelectual, de pessoas com deficiência física. Estas formações contribuíram para o

fortalecimento individual dos subgrupos no sentido de construir mapeamento de

demandas e planejamento de ações específicas. Possibilitou a formação de uma

consciência política e coletiva na sua totalidade, contribuindo com a organização e

fortalecimento do movimento de modo geral.

No entanto, cumpre ressaltar também as singularidades existentes dentro

desses subgrupos, haja vista a diversidade de níveis de perda auditiva, de déficits visuais

e cognitivos e de lesões de natureza física. Tudo isso torna seus espaços individuais de

discussão fortes zonas de conflito, não necessariamente saudáveis e respeitosos em

relação à pluralidade.

Além disso, essa pluralidade apresenta-se como desafio na garantia da

acessibilidade, já que culturalmente existe a ideia de que, disponibilizando algum recurso

especifico para determinada categoria de deficiência, estará atendendo à toda diversidade

existente nesse grupo. No âmbito da acessibilidade cultural esta deve ser uma grande

preocupação, pois negar essa diversidade é negar direitos e cultivar espaços excludentes

e discriminatórios.

Ainda assim, esta movimentação interna possibilitou muitas conquistas para o

grupo, formando lideranças que futuramente passaram a ocupar importantes posições na

sociedade civil organizada e no poder público executivo e legislativo. As pessoas com

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deficiência se fortaleceram coletivamente ao se fazerem representar por seus pares

diante dos diversos espaços políticos.

A partir de então, o próprio movimento de pessoas com deficiência se

desdobrou em diferentes frentes, podemos sinalizar como as principais o movimento de

direitos, o movimento de vida independente e o movimento cidade para todos, que juntos

lutam em prol das prerrogativas presentes no modelo biopsicossocial supracitado.

É fundamental ressaltar a importância das conferências11 realizadas a partir de

2005, responsáveis pelo debate entre governo e sociedade civil e pela criação de

propostas para composição do plano nacional dos direitos das pessoas com deficiência

para a gestão seguinte. Em 2012 foi realizada a terceira edição, o que demonstra o

quanto se tem a caminhar em prol da garantia dos direitos já conquistados.

A partir de 2004 importantes conquistas renovaram as forças do movimento de

pessoas com deficiência, quando documentos legais foram criados e outros

regulamentados, versando sobre diferentes assuntos, além da Ratificação da Convenção

sobre os direitos das pessoas com deficiência, que contempla e sistematiza todos os

objetos de ação sinalizados na legislação vigente. Neste mesmo período a nomenclatura

também foi modificada. O termo ‘pessoa com deficiência’ passou a ser utilizado

justamente para estimular a sociedade a perceber antes de qualquer coisa o sujeito, não

a característica ou limitação existente em virtude da deficiência

Em 2010 foi realizado o Censo Demográfico que descreveu uma nova

realidade em números, sobre a situação das pessoas com deficiência em todas as

regiões do país. Foi divulgado o quantitativo de 45.606.048 brasileiros com algum tipo de

deficiência, o que representa 23,9% da população. (IBGE, 2010) Esses resultados

vislumbram o rompimento com a ideia de minorias, a qual o ‘segmento’ de pessoas com

11

As conferências são espaços de discussão oficiais, garantidos através da Constituição de 1988 e das legislações específicas de cada área, onde sociedade civil e governo discutem paritariamente a implementação de políticas públicas, neste caso, as políticas de atenção à pessoa com deficiência, onde é analisado o panorama atual e são criadas propostas para orientação do plano de gestão seguinte. As conferências acontecem nos níveis municipal, estadual e nacional. O MDS afirma que as conferências compõem as estratégias de controle social; este “implica o planejamento, acompanhamento, avaliação e fiscalização da oferta dos programas, serviços e benefícios socioassistenciais.” (MDS, 2014)

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deficiência é associado, além de alertar sobre a necessidade de melhor organização do

movimento social e do poder público para o estabelecimento de políticas necessárias.

Em 2011, foi lançado o Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com

Deficiência – Viver sem Limite, que comporta as ações planejadas pelo governo para os

próximos anos de gestão. O ‘plano’ conta com itens que dizem respeito à Educação,

Inclusão Social, Acessibilidade e Atenção à Saúde. Seu conteúdo torna-se limitado ou

inexistente para muitas áreas da gestão pública haja vista a própria organização do

movimento social que se mantém basicamente em torno da reivindicação pelas matérias

de mesma natureza.

A Política Cultural, por exemplo, não foi sinalizada no documento. Por sua vez,

os planos de cultura nas três esferas de governo também não contemplam a

acessibilidade cultural e as ações de incentivo à produção artística da pessoa com

deficiência. O Plano Nacional de Cultura aponta sua existência, mas não desenvolve.

O Brasil ainda se encontra numa discussão extremamente primária, que é a de

acessibilidade, no sentido stricto-senso. As pessoas com deficiência, na conjuntura atual,

ainda não são atendidas nas suas necessidades básicas de sobrevivência, o que resulta

numa difícil mobilização no sentido de lutar pela ampliação do acesso negado em outras

áreas ou mesmo em percebê-los enquanto um direito.

Na própria política cultural percebemos o grande atraso em relação ao acesso

da população de modo geral, comprovado pela necessidade de discutir e sinalizar através

de legislações e debates diversos a democratização da cultura.

Assim como a maior parte das classes sociais desfavorecidas, as pessoas com

deficiência, na sua maioria, não contam com condições sociais favoráveis ao

desenvolvimento do afeto e do sentimento de pertencimento aos equipamentos culturais.

Isto também contribui com a não ocupação desses espaços, cujas estruturas têm, na sua

essência, um preparo especificamente direcionado ao atendimento das elites. A elitização

se estende ainda aos editais de fomento, onde sujeitos individuais e grupos artístico-

culturais de base, dificilmente têm acesso aos incentivos financeiros que compõem o

sistema de cultura.

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Tudo isso configura o Brasil como um país de direitos, não de justiça, já que o

maior desafio da atualidade concentra-se na necessidade de garantir a execução da

legislação através das práticas sociais e a implantação e implementação de políticas

públicas correspondentes ao que já foi estabelecido pela lei. É preciso pensar a

elaboração de tais políticas dentro do contexto social e urbano contemporâneos.

Historicamente o movimento de pessoas com deficiência não se apropriou dos

demais espaços de discussão e controle social, como os conselhos, conferências,

congressos, etc. – de cultura, educação, saúde mental, cidades, mulheres, juventude,

negros, LGBT, sem terra, dentre outros. Não há diálogo com os demais movimentos

sociais. Não existe um movimento de reivindicação ou penetração nesses espaços

plurais. Não há preocupação com a transversalização dos debates, o que resulta na

omissão do poder público em assuntos primordiais que dizem respeito à participação

legítima da pessoa com deficiência nos diferentes espaços e estruturas das cidades.

Neste contexto, percebemos que a organização política das pessoas com

deficiência é de data recente e que seu movimento encontra-se, na maior parte do

processo, segmentado e enfraquecido no território social e político.

Isto nos leva a fortalecer a hipótese central desta pesquisa:

A pessoa com deficiência não participou do processo de produção no período

de implantação do sistema capitalista, não ocupou os espaços públicos, não participou da

construção coletiva das cidades e não se apropriou do espaço público como outros

movimentos sociais.

Isto interferiu não somente na conscientização da sociedade a respeito de sua

existência e no surgimento de mitos e estigmas sobre suas capacidades, mas também na

própria formação dos afetos entre o espaço e os demais sujeitos socais.

Deste modo, cidade não se apresenta enquanto espaço capaz de atender toda

multiplicidade de singularidades presente neste grupo, não somente do ponto de vista

arquitetônico e urbanístico, mas da própria consciência coletiva e ainda da relação de

afeto que não teve lugar ou momento para ser construída.

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A situação torna-se mais grave ainda se considerarmos que as primeiras

instituições de atendimento à pessoa com deficiência no Brasil funcionavam numa

perspectiva de abrigamento. O que nos remete a uma grande fragilidade também nas

suas relações de natureza privada, na sua consciência de lugar e referência no mundo.

Tudo isso é potencializado pelo fato da pessoa com deficiência ter sempre um

lugar particular para estudar, cuidar de sua saúde, realizar outros tipos de atividade. A

ideia do atendimento especial ou especializado contribuiu ainda mais com essa ausência

espacial no sentido físico e simbólico de participação.

Deste modo, resta-nos questionar se é possível produzir outra cidade (e outras

percepções sobre a cidade), outras relações sociais e outras noções de lugar e

participação. Será possível romper os padrões de massificação e homogeneização

produzidos pelo sistema econômico e social ao longo de tantos anos? Esta talvez seja a

questão maior desta pesquisa que nos moveu a construir estas problematizações.

Um movimento social é formado por redes diversas que se constroem e

consolidam através de lutas diárias e que se modificam dentro dos processos de

mudança no contexto urbano. Tem como objeto central o enfrentamento aos poderes

constituídos pelo capital e pelo Estado. Motivo pelo qual defendemos a necessidade de

uma reestruturação no seio do movimento de pessoas com deficiência e acreditamos no

seu potencial a partir da incorporação de novos elementos ainda não pensados por esses

sujeitos. A seguir, buscaremos refletir esses mecanismos e possibilidades a partir das

obras de autores da filosofia, sociologia e antropologia e sugerir a criação de novos

sentidos e percepções sobre o poder constituinte formantes da essência e do espírito dos

movimentos sociais.

2.2 - Biopolitica, Multidão e Máquina de Guerra: O movimento de Pessoas com

Deficiência repensado como Potência

Optamos por uma abordagem e reflexão críticas a respeito da organização e

reestruturação do movimento de pessoas com deficiência, a partir dos conceitos de

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‘biopoder’, ‘biopolítica’, ‘multidão’, e ‘máquina de guerra’ elucidados nas obras de Negri,

Hardt, Deleuze, Guattari e Foucault devido à multiplicidade de sentidos e noções de

potência que buscam legitimar a força existente nas múltiplas singularidades que

compõem a essência da organização política dos sujeitos, pelos movimentos sociais.

Embora estes conceitos estejam intimamente ligados e direcionados ao debate

econômico-político em relação ao espaço ocupado pela produção e pelo trabalho na

contemporaneidade, podemos transportá-los para este universo por tornarem-se bastante

pertinentes à reflexão proposta sobre este objeto de estudo.

O conceito de Multidão em Antonio Negri e Michael Hardt (2005) diz respeito a

um projeto que além de vislumbrar uma sociedade mais justa, livre, igualitária e

globalmente democrática, propõe meios para torná-la tangível. Ela é representada pela

resistência dos homens em prol da formação de um corpo social e politicamente potente,

capaz de se compor das diferentes configurações da produção social, recusando qualquer

forma de domínio e submissão.

Os autores também propõem a interpretação da multidão como uma ‘rede

aberta e em expansão’, onde as singularidades dos sujeitos são expressas sem

discriminação e preconceito, proporcionando modos de vida e trabalho em comum, onde

a comunicação e a cooperação representam potência interna capaz de transformar o

espaço social do qual fazem parte.

As ações que possibilitam tal potência a se constituir e se estabelecer de forma

democrática representam a essência da produção biopolítica, cujos objetivos apontam

para a transformação do Estado em um lugar capaz de apreender suas multiplicidades e

atendê-las através de ações compatíveis com sua essência plural e libertária.

A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares. (HARDT e NEGRI, 2005:12)

Por sua característica múltipla – que se representa na potência da sua

capacidade de comunicação e ação conjunta entre homens singulares – a multidão se

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diferencia dos conceitos de povo, massas e classes trabalhadora. O povo é considerado

uno por apresentar uma identidade única na sua concepção, por ser um corpo social. As

massas, por sua vez, são compostas por diferentes espécies que não representam

pluralidades ou diferentes identidades sociais, formando um ‘aglomerado’, posto a

negação e recusa das diferenças entre os sujeitos que a formam.

Na multidão, as diferenças sociais mantém-se diferentes, a multidão é multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferente. (HARDT e NEGRI, 2005:13)

É justamente a partir dessas diferenças internas que caracterizam a multidão,

que os sujeitos devem descobrir, coletivamente, um modo de comunicação e organização

comum que permita sua ação conjunta. Isso representa o conceito de biopolítica, ou seja,

a produção da vida em comum, que se cria através das singularidades cooperativas que

dialogam numa relação de respeito mútuo e democracia. Isto possibilita a criação de

estratégias de resistência e enfrentamento do poder constituinte do aparelho de Estado.

Neste contexto, a multidão dá forma a um novo ser onde seu poder político se expressa a

partir do desenvolvimento da capacidade de decidir sobre si mesma.

Ao expressarem sua singularidade num patamar de igualdade com os demais

sujeitos, os homens criam condições de lutar pelo que desejam. Isto somente se torna

viável através da comunicação e da democracia interna da multidão.

É neste sentido que propomos a organização interna do movimento de pessoas

com deficiência. A partir da sua transformação num corpo social capaz de dialogar e de

construir ações coletivamente, onde suas diferenças não se tornem um impeditivo para

isso, mas uma potência. É preciso construir um lugar, uma comunicação e uma ação

comum que possibilitem a manutenção da sua produção e movimento. O movimento

social precisar torna-se sinônimo de poder e revolução, pois essas características já são

parte formadora de sua essência.

O movimento de pessoas com deficiência enquanto multidão apresenta-se

através de uma infinitude de corpos singulares e potentes em si. Suas capacidades não

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podem ser definidas pela forma desses corpos, tampouco pela imagem externa que

outras representações possam criar a respeito. Interagindo entre si esses corpos se

transformam dando forma a um ‘outro’ espírito que produz subjetividades. Através da luta

e do enfrentamento tornam-se potências ainda maiores e continuam em permanente

transformação, não podendo ser capturados pelo poder do Estado.

Firmes nos seus objetivos e fortalecidos internamente, não são capazes de

aceitar medidas paliativas em prol de uma falsa ideia de garantia de direitos e respeito à

diversidade. Sua força se transforma em poder e é capaz de penetrar os diversos

espaços, promovendo o fortalecimento da sua essência democrática e plural em todo o

território. Sua singularidade não pode ser reduzida à ‘tipos’ de deficiência. Não é capaz de

se dividir em segmentos, não pode ser mensurada ou limitada.

Guattari acrescenta outros elementos para pensar o poder dos movimentos

sociais em prol da transformação do espaço. Ele aponta a necessidade de “inserção em

níveis de relações de força local, de fazer e desfazer alianças, etc.” (GUATTARI e

ROLNIK, 1996: 46) O que mais uma vez nos remete à necessidade de diálogo com outros

movimentos sociais e com as demais estruturas que constituem o espaço social e político

da cidade.

O autor nos alerta também para a noção de identidade. Ele afirma que trata-se

de “um conceito de referenciação de circunscrição da realidade a quadros de referência” o

que na psicanálise é conhecido como processo de identificação. (1996: 68) Ele aponta

ainda para uma associação da ideia de identidade cultural a uma ação política,

considerando este conceito reacionário, na medida em que homogeneíza a multiplicidade

de singularidades existente numa determinada cultura ou lugar, reafirmando seu “caráter

mercados capitalísticos.” (GUATTARI e ROLNIK, 1996: 70)

Como exemplo disso, cabe problematizar rapidamente a organização das

pessoas com deficiência auditiva no contexto social e político. A formação de uma

identidade e de uma cultura surdas, que se diferenciam das demais a partir do uso da

Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS como principal meio de comunicação, além de

causar fortes impactos sociais na vida daqueles sujeitos que apresentam o mesmo grau

de perda auditiva, mas optaram por outras formas de educação, comunicação e processo

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de reabilitação, também contribui com a negação do reconhecimento destes (surdos

oralizados) enquanto pessoas com deficiência, o que interfere diretamente no seu acesso

e garantia aos direitos. Entende-se por surdos oralizados os sujeitos com perda autitiva

que optam pela comunicação através da fala ou comunicação oral.

Em contrapartida a própria ‘comunidade surda’ divide opiniões a respeito

de se considerarem pessoas com deficiência ou não, pois alguns afirmam tão

somente pertencerem a outra cultura. Desta forma, percebemos que a negação

das diferenças também foi incorporada no seio dos movimentos sociais,

contribuindo para a polarização e enfraquecimento de sua organização política.

A ideia de subjetivação coletiva singular não se refere, forçosamente, a uma alma imanente ou transcendente, que seria a alma de um grupo social: todas essas concepções que referem os fenômenos subjetivos a identidades culturais, em minha opinião, tem sempre um fundinho de etnocentrismo. Uma subjetividade pode estar envolvida em processos de singularização – [...] – sem que se tenha, por isso, que se projetar sobre essa produção de subjetividade a referência de uma identidade cultural. (GUATTARI e ROLNIK, 1996: 71)

Daí a necessidade de discutir internamente o modo como os diversos

sujeitos que compõem um movimento social se identificam diante do espaço e qual

a sua ideia do todo sobre o mesmo território. Esse diálogo é necessário ao

fortalecimento dos movimentos sociais e pode evitar implicações políticas e

micropolíticas desastrosas (73), conforme aponta Guattari. O autor ainda reforça

para o risco desses movimentos classificados em ‘minorias’, serem suscetíveis à

apropriação pelas massas e diminuírem sua potência de diferenciação e criação e,

consequentemente, de resistência.

Essa diversidade de aspectos a serem considerados nos leva a entender

que a formação de uma multidão envolve processos que vão da singularidade à

subjetividade, se expressando como potência ao longo do caminho. A multidão não

se forma em instantes, e passa por um processo que se dá no universo biopolítico.

A ideia de uma formação biopolítica – fruto dessa troca onde as

singularidades interagem e transformam-se num produto novo, composto por

múltiplas centralidades – demonstra a característica produtiva da multidão. O plano

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biopolítico produz subjetividades e a multidão fornece os meios de consolidação do

comum, ela constrói o terreno de comunicação e formação de redes. Daí seu

direcionamento enquanto poder constituinte capaz de romper com a soberania

reguladora das relações.

Podemos considerar que vivemos num território biopolítico, onde o

trabalho e a então denominada ‘luta de classes’ se fazem presentes em todas as

esferas, motivo pelo qual Negri considera a biopolítica como extensão dessa luta

de classes. Ele entende (e nós concordamos) o poder como potência que se

manifesta a partir de uma arena de lutas e das relações antagônicas de força que

se expressa no campo social, ele situa a cidade como poder constituinte, haja vista

sua capacidade de comportar diferentes conflitos sociais.

Para o autor, enquanto o biopoder se configura como algo transcendente

à sociedade, impondo suas regras e ordens através do Estado e do Capital,

representados pela tecnologia e pelo saber, disciplinando corpos, espaços e

relações, a produção biopolítica é força proveniente da sociedade, a partir da sua

capacidade de criar novas relações e espaços comuns entre os homens. Ele

sintetiza afirmando que o bloco do biopoder se representa pela “elite econômica e

pela direita social e política”. (2005: 22)

Embora estejamos utilizando a obra de Hardt e Negri, cumpre ressaltar

que estes autores apropriam-se dos conceitos de ‘biopoder’ e ‘biopolítica’, criados

por Michel Foucault, para desenvolver suas teorias à respeito das relações entre

sociedade, Estado e capital.

Destaca-se ainda que para Foucault, o termo biopolítica foi criado para

designar a transformação do poder entre o final do século XIX e o início do século

XX, devido a implementação de práticas disciplinares aplicadas para controlar os

indivíduos, sendo aplicada ao controle da coletividade no século XX. Neste caso,

ela surge como uma forma de regulamentação através do biopoder. O biopoder,

por sua vez, surge como uma tecnologia do poder utilizada para regulação dos

corpos através do Estado, cuja emergência se dá a partir da governabilidade.

Refere-se à ideia de um poder soberano. (DANNER, 2010)

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Hardt e Negri explicam que a

produção biopolítica não só envolve a produção de bens materiais em sentido estritamente econômico como também afeta e produz todas as facetas da vida social, sejam econômicas, culturais ou políticas. Esta produção biopolítica e a expansão do comum que acarreta é um dos principais pilares em que se assenta hoje a possibilidade de democracia global. (HARDT e NEGRI, 2005:15)

Na conjuntura atual, defendemos a necessidade de pensar formas de

cooperação entre os sujeitos que compõem o movimento de pessoas com deficiência. Se

apesar da sua fragilidade e polarização interna foi possível alcançar conquistas, legitimá-

las através de ações compatíveis ao conteúdo legal exige um novo esforço de

conscientização sobre o poder existente na sua diversidade.

E é justamente a partir dessa multiplicidade de corpos e subjetividades que

será possível construir novos caminhos comuns, cujo destino seja uma cidade plural, livre

e democrática, potente nas suas múltiplas singularidades e firmes diante do biopoder.

O conceito de ‘máquina de guerra’, criado por Deleuze e Guattari, é pautado

sob a mesma essência de potência identificada no conceito de multidões. No entanto, ele

estabelece ligações diretas com o nomadismo para explicar a necessidade de movimento

e de compreensão do território, que surgem como mais um facilitador impeditivo de

captura pelo biopoder classificado em Foucault, já que a potência associada ao

movimento dificulta ou inviabiliza sua captura.

Os autores preocupam-se ainda em trabalhar a contextualização do emprego

do ‘número’ na organização do Estado e da sociedade, fazendo uma analogia aos grupos

conhecidos por ‘minorias’, afirmando que “tratar homens como números não é

forçosamente pior do que tratá-los como árvores que se talha”. Em contrapartida, também

sinaliza a composição aritmética a favor da máquina de guerra – onde podemos

considerar as próprias minorias – ao afirmar sua capacidade de produzir um “efeito de

imensidão graças à sua articulação fina, isto é, sua distribuição de heterogeneidade num

espaço livre.” (DELEUZE E GUATTARI, 2012: 71)

Ao tratar dos movimentos sociais, eles afirmam sua possibilidade de

configuração numa “máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça

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um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento”.

(2012: 117) Em outros momentos também é apontada a necessidade de ‘descodificação’,

ou seja, de transformação interna, mudança de códigos que o definem, estratégias e

organização, para impedir sua captura pelo Estado, já que nesse caso não se trataria de

um fenômeno de evolução, mas de transferência, somente.

Eles concluem afirmando que o poder não se concentra na quantidade de

sujeitos. E que “máquinas de guerra se constituem contra os aparelhos que se apropriam

da máquina de guerra, e que fazem da guerra sua ocupação e seu objeto: elas exaltam

conexões em face da grande conjunção dos aparelhos de captura e dominação”

(DELEUZE E GUATTARI, 2012: 118) o que nos mostra que o conflito surge para o

movimento social como uma necessidade devido às condições sociais impostas pelas

estruturas dominantes, não havendo outra maneira de estabelecer condições favoráveis à

construção de espaços sociais democráticos e heterogêneos senão através do

enfrentamento.

Para Deleuze e Guattari os processos são encarados como potência. Em Hardt

e Negri, este mesmo processo é visto como exercício biopolítico, que também se

configura como potência.

Tanto a multidão quanto a máquina de guerra tem na sua heterogeneidade e

nas múltiplas singularidades um poder imensurável, que se potencializa na medida em

que se tornam capazes de dialogar internamente em prol de um direcionamento comum.

Isto representa poder, já que modifica as formas de vida e de organização entre os

sujeitos dando forma a outra dinâmica. A potência que constitui esse novo organismo é

capaz de transformar o espaço e as relações de dominação exercidas pelo estado e pelo

capital, que formam o que foi chamado de biopoder.

Essa transformação é oportunizada através da resistência e da autonomia da

multidão – ou da máquina de guerra – seu objetivo não consiste em destruir o sistema,

mas em transformá-lo, de modo que a essência da democracia, da pluralidade e das

singularidades seja o instrumento de poder legítimo de suas ações, se materializando

através de uma nova lógica pautada na liberdade e na igualdade, não no domínio e na

coerção.

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Logo, podemos problematizar que o primeiro e mais importante passo na

produção de novas alternativas e estratégias para a participação social, a construção,

apropriação e reprodução coletiva dos espaços – desta vez com a participação do

movimento de pessoas com deficiência – seja através de uma profunda articulação

interna e, posteriormente, através do diálogo com os outros movimentos e estruturas

sociais.

É preciso construir um caminho comum. A potência do movimento social está

presente de modo intrínseco nas suas estruturas singulares, na sua multiplicidade de

formas e subjetividades. É preciso compreendê-las e externalizá-las, reconstruindo-as

junto à coletividade. É somente através da união de esforços nesse sentido que será

possível produzir novos espaços, nos planos material e simbólico, onde seja possível a

contribuição de todos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

São diversas as metodologias, estilos e técnicas para discutir o tema proposto

neste trabalho. Conforme elucidado na introdução, entendemos que o método

genealógico melhor se encaixaria neste contexto, haja vista a relação do autor com o

tema e os caminhos escolhidos para traçar o desenvolvimento do conteúdo, uma vez que

o tema não compareceu na história monumental, pois a cidade, em sua estruturação, não

foi pensada com e para as pessoas com deficiência. Concluímos esperando que este

percurso tenha se consolidado como melhor opção.

Ao aprofundar a abordagem dos conceitos ‘lugar’ e ‘espaço’, foi possível

perceber a dimensão da condição de marginalidade e exclusão que as pessoas com

deficiência vêm ocupando ao longo da história. O que também nos alerta para a

necessidade de problematizar estes conceitos com qualquer estudo que pretenda discutir

direitos e cidadania.

E mais além, esta reflexão também nos fornece bases para resignificar a

própria noção de acessibilidade, que para nós, ficou claro que não deve se limitar ao

conteúdo material e às atitudes de cada sujeito.

No entanto, este entendimento deve ser alcançado pelo próprio movimento,

pois é somente a partir de sua organização política que novas formas de pensar os

assuntos pertinentes à pessoa com deficiência podem ser incorporadas oficial e

socialmente. Assim, ratificamos que pensar acessibilidade é pensar o lugar da pessoa

com deficiência no espaço enquanto sujeito social. É pensar as ferramentas do acesso

físico, mas é, principalmente, pensar seu lugar na sociedade. Pois não será possível

pensar acessibilidade em outras dimensões se o seu lugar não estiver legitimado no bojo

das relações sociais.

Outro fator fundamental foi a necessidade de utilizar-se de diferentes fontes de

conhecimento para trabalhar cada temática, já que os mesmos conteúdos são abordados

sob distintos aspectos em cada disciplina.

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Tentamos reunir os conceitos que consideramos fundamentais para propor

uma discussão transversal dos temas, acreditando que seria possível fundamentar esta

reflexão de modo consistente, já que, em nossa busca, não foi encontrado qualquer

estudo científico com a mesma proposta, que pudesse subsidiar uma orientação diferente.

Isto foi bastante desafiador, pois além de sugerir uma abordagem que

consideramos atípica para tratar elementos relacionados à área de deficiência, não foi

possível, através de nossas ferramentas de investigação, encontrar qualquer obra sobre a

categoria, fundamentada no referencial teórico adotado neste trabalho. O que foi motivo

de muitas incertezas sobre a apropriação correta do conteúdo dos autores utilizados.

Como ponto comum entre as diferentes abordagens apresentadas, podemos

citar a existência das relações antagônicas no espaço e nas relações sociais; as

influências decisivas do sistema capitalista sobre o modo como as pessoas constituíram

seus relacionamentos, suas noções de lugar e espaço, bem sua apropriação da cidade.

Podemos sinalizar ainda a necessidade de reorientação por parte dos movimentos sociais

no sentido de fomentar o diálogo interno e a perceber as diferenças no seu interior como

fontes de poder; além da possibilidade real de transformação do quadro social vigente, a

partir do momento em que a sociedade for capaz de compreender suas múltiplas

singularidades e subsidiar espaços comuns de discussão e ação em prol de todos.

A conquista da democracia deve ser incorporada, antes de qualquer coisa,

pelos sujeitos sociais que compõem e dinamizam os espaços. Quando os movimentos

sociais alcançarem este entendimento e forem capazes de dialogar uns com os outros,

será possível transformar a cidade e qualquer outro lugar. Mas a transformação precisa

ser interna. Sendo interna poderá dar forma a uma realidade nova, fruto da diversidade

potente que se fecunda a partir das relações sociais capazes de percebê-las como poder.

No entanto, este é um caminho que necessita ser estimulado e concretizado no

cotidiano dos movimentos sociais, pois são longos anos de lutas solitárias e

individualizadas. Não existem mudanças ou transformações imediatas, mas qualquer

caminho ou orientação nesse sentido devem ser valorizados e considerados como

exercícios de potência. Este movimento também diz respeito a uma mudança de cultura.

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Outro fator importante a se destacar é a pouca utilização de elementos teóricos

filosóficos e sociológicos para fortalecimento do movimento social. Isto se torna mais

freqüente e comum justamente naquelas áreas cujos esforços do movimento de pessoas

com deficiência vêm sendo direcionados historicamente: educação, saúde, assistência

social e empregabilidade, por exemplo. Mas na sua organização coletiva propriamente

dita, pouco há de mobilização neste sentido, já que os encontros e debates giram em

torno da legislação vigente, seu cumprimento ou violação por parte do estado e do

sistema.

Cumpre ressaltar ainda que a necessidade de se estender sempre na luta pela

garantia das mesmas necessidades básicas, faz com que os movimentos sociais não

percebam a política cultural como direito. No caso da pessoa com deficiência, para além

do acesso aos espaços por uma questão econômica e social, existe ainda a

particularidade da acessibilidade cultural nas perspectivas sinalizadas durante o estudo.

Acreditamos que a analogia do movimento de pessoas com deficiência com os

conceitos de multidão e máquina de guerra é capaz de estimular e sustentar qualquer

organização política potencialmente transformadora de sujeitos e de espaços sociais.

É preciso que os movimentos sociais se apropriem destes e de outros

elementos teóricos que possam contribuir com a reflexão sobre a consolidação de suas

ações nos dias atuais e sobre a necessidade de repensarem suas estrutura e estratégias,

já que sua maior preocupação na contemporaneidade consiste no cumprimento do que

está garantido através de leis.

A fragilidade nas suas organizações e a morosidade do Estado em tudo o que

se refere à garantia de direitos e à participação social, apontam para uma realidade difícil

de ser admitida: grande parte dos direitos sociais estabelecidos hoje, através de

instrumentos legais, se refere muito mais à capacidade do Estado em controlar os

respectivos movimentos sociais do que à força do segundo em lutar pela efetividade das

ações correspondentes.

O movimento social de pessoas com deficiência se constituiu em multidão

entre as décadas de 60 e 80, quando foi capaz de assumir e valorizar suas múltiplas

singularidades e encontrar um ponto comum, formando uma resistência maquinímica

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diante do sistema. No entanto, não foram capazes de se desterritorializar e reterritorializar

ao longo dos períodos seguintes, sendo capturados pelo Estado através da lei.

Talvez os movimentos sociais não tenham se alertado para esta possibilidade,

ou tenham consciência deste fato, mas enfrentem dificuldades para digeri-lo por uma

questão de auto-estima ou vaidade, que podem se justificar no fato de que acreditar que

reconhecer o poder de dominação do Estado seja ignorar toda sua mobilização ao longo

da história, o que não pode ser negado ou omitido.

Foram longos anos de luta e mobilização dentro de diferentes contextos

sociais, no entanto, para continuar se representando com poder e legitimidade, é preciso

repensar a sua organização dentro do espaço político, sobretudo a partir da compreensão

das relações de forças existentes entre a sua resistência e o poder de dominação e

controle do Estado. É preciso constituir-se em máquina de guerra.

O Estado não tem como parte de suas intenções materializar aquilo que foi

prometido através do principal instrumento de regulação social existente na sociedade

contemporânea: a lei. Lei que ele mesmo cria e descumpre. Trata-se de uma questão de

sobrevivência do próprio sistema, no seu objetivo de massificar, conter e dominar a

sociedade, ceder a determinadas pressões e reivindicações sociais. O que mais uma vez,

faz do Brasil um país de direitos e não de justiça.

É preciso refletir que a lei, com todo o seu poder jurídico e social de regulação,

não é capaz de legitimar o lugar de um sujeito social no espaço. Ela diz muito mais à

respeito do seu direito criar mecanismos para construir esse lugar. O lugar da pessoa com

deficiência deve ser construído pelo movimento social, diariamente, a partir da resistência

e da transformação cotidianas. O seu lugar não pode e não será oferecido pelo Estado,

pelo sistema ou por quaisquer instrumentos legais.

Fica-nos o questionamento de como introduzir esse debate no bojo dos

movimentos sociais. Quais as estratégias necessárias, os caminhos a percorrer para

materializar tudo o que refletimos até aqui? Este é um grande desafio, cujas respostas

precisam ser encontradas, refletidas, problematizadas e construídas.

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De qualquer modo, é preciso transformar nossas relações em máquinas de

guerra. É preciso que a sociedade se reconheça enquanto multidão, não enquanto

segmentos sociais. É preciso perceber a potência presente na diferença, na

singularidade. Ser capaz de construir pontes que nos levem a um espaço comum.

Que nesse espaço sejamos capazes de reconhecer a riqueza do que já foi feito

e o potencial necessário a ser redescoberto para vislumbrar um caminho comum em prol

da liberdade, da democracia e da pluralidade necessárias à transformação da cidade e

das relações nela constituídas e metamorfoseadas diariamente. Que sejamos capazes de

mantê-las, renovando e estreitando os diferentes laços formados nestas relações.

Desta forma será possível pensar políticas culturais para além da noção de

direito, mas para a efetividade de ações que possibilitem o real acesso de todos os

sujeitos aos espaços e equipamentos culturais e à possibilidade de desenvolver-se

artística e culturalmente. Que os espaços culturais e a arte representem essas múltiplas

singularidades.

Nesta nova cidade é possível que a necessidade de um curso de

especialização em acessibilidade cultural seja para discutir o conteúdo legal e a política

pública que estamos lutando hoje para garantir mais tarde. Para pensar novas estratégias

e possibilidades de ampliação de recursos de acessibilidade, não somente para saber da

sua existência e da dificuldade em garanti-los nos equipamentos públicos culturais.

Que estejamos presentes para a troca de experiências que deram certo e para

propor caminhos aos desafios cotidianos. Que possamos nos reencontrar para um

intercâmbio de resultados e de possibilidades onde diferentes movimentos sociais

estejam presentes, porque não estaremos discutindo o problema de um segmento social

para o próprio segmento social.

Certamente, acreditar que esta realidade é possível e que podemos – e

devemos – contribuir para sua efetivação, foi o principal elemento de inspiração para

todos os atores envolvidos na conclusão do primeiro curso de Especialização em

Acessibilidade Cultural do país.

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A cidade sempre foi um espaço de grandes tensões entre os atores que nela

habitam. Esta tensão constantemente possui jogos de exclusão de certos grupos,

produzindo uma profunda dissimetria no modo de viver os espaços públicos sua realidade

cotidiana. Alguns poetas, como Thomas More e William Morris, por outro lado, acreditam

que é possível um novo espaço, uma outra cidade, na qual as relações sejam mais

solidárias e éticas entre os diferentes. Entretanto, devemos lembrar que utopia vem de u=

sem e topus = lugar. Logo, utopia não é um lugar ou um espaço! Então, se não há este

lugar, um topus específico, é porque ele deve ser uma conquista cotidiana, sempre em

processo, no qual as diferenças desfilam intensamente em todos os lugares em forma de

uma multidão.

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