de segmento à multidão desafios para a consolidação do … · principais autores utilizados...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE MEDICINA
Rio de Janeiro
2014
Francine de Souza Dias
De Segmento à Multidão: desafios para a
consolidação do movimento de pessoas com deficiência em máquina de guerra
3
Monografia de especialização lato-sensu
apresentada à Pós-Graduação da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio de
Janeiro para obtenção do título de Especialista
em Acessibilidade Cultural.
Rio de Janeiro 2014
Francine de Souza Dias
De Segmento à Multidão: Desafios para a consolidação do movimento de pessoas com
deficiência em máquina de guerra
Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius Machado de Almeida
COMISSÃO JULGADORA
______________________________________
Orientador
_____________________________________
Convidado
4
AGRADECIMENTOS
À Associação de Pais e amigos da Audição – APADA Niterói;
Associação Fluminense de Amparo aos Cegos – AFAC;
ao Centro de Atenção e Atendimento à Aids – CAAAIDS;
e ao Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência de Niterói - COMPEDE:
pelo apoio e compreensão.
Ao querido professor Marcus Vinícius, orientador deste trabalho e fonte de inspiração à parte.
5
DIAS, Francine de Souza. De Segmento à Multidão: desafios para a consolidação do movimento de pessoas com deficiência em máquina de guerra. 2014. 65f. (Monografia de Especialização em
Acessibilidade Cultural) - Faculdade de Medicina. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo refletir e propor estratégias para a resignificação da
cidade num espaço social de múltiplas singularidades, através dos conceitos de lugar e de
espaço — balizados pela obra de Milton Santos — e sua produção /reprodução a partir dos
afetos e das relações sociais construídas ao longo da história.
Neste contexto, o movimento de pessoas com deficiência surge como objeto de
estudo, onde será considerado elemento potencialmente transformador do cenário atual,
necessitando, para tanto, de uma profunda reavaliação e reestruturação, para tornar-se
capaz de promover as mudanças necessárias no bojo das relações da pessoa com
deficiência com a cidade, vislumbrando a formação de um espaço livre, plural e democrático.
Para alcançar o objetivo proposto, foi adotado o método de pesquisa genealógico.
Os principais autores utilizados como fundamentação teórica foram: Milton Santos, Michel de
Certau, Gaston Bachelard, David Harvey, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri e
Michel Hardt. O estudo foi elaborado a partir da transversalização de dados multidisciplinares
com o elemento ‘cultura’, para compor uma reflexão transdisciplinar sobre a formação
material e subjetiva das cidades e o acesso da pessoa com deficiência como parte do
processo.
Palavras-chave: Deficiência. Movimento Social. Potência. Lugar. Espaço.
6
DIAS, Francine de Souza. Segment of the crowd: challenges for strengthening the moviment of peaple with disability in the war machine. 2014. 65f. (Monografia de Especialização em Acessibilidade Cultural) -
Faculdade de Medicina. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
ABSTRACT
This paper aims to reflect and propose alternatives for reframing the city in a
social space of multiple singularities through reflection on the concepts of place and space
- buoyed by the work of Milton Santos - and their production / reproduction from the
affections and social relationships built throughout history.
In this context, the movement of people with disabilities emerged as an object of
study, which will be considered potentially transformative element of the current scenario,
requiring, therefore, a profound reassessment and restructuring to become able to make
the necessary changes in the bulge of the person with disabilities relationships with the
city, seeing the formation of a space free, plural and democratic.
To achieve the proposed goal, we adopted the method of genealogical
research. The principal authors were used as theoretical foundation: Milton Santos, Michel
Certau, Gaston Bachelard, David Harvey, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri
and Michael Hardt. The study was prepared from the transversalization of multidisciplinary
data with the element 'culture', to compose an interdisciplinary reflection about the material
formation and subjective of the cities and the access of the people with disabilities as part
of the process.
Keywords: Disability. Social movement. Power. Place. Space.
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SUMÁRIO
Introdução 8
1- Espaços Sociais e Relações Espaciais - territórios habitados, desterritorializados e reteritorializados
12
1.1- Espaço e Relações Sociais 13
1.2- Cidade de afetos, sentimentos e potências 26
2- Pessoas com Deficiência e Organização Biopolítica: o poder do movimento
social na construção de outros espaços possíveis
37
2.1- Movimento de Pessoas com Deficiência no Brasil – elementos históricos, políticos e sociais (Breves apontamentos)
38
2.2- Biopolitica, Multidão e Máquina de Guerra: O movimento de Pessoas com Deficiência repensado como Potência
49
Considerações Finais 58
Referências 64
8
INTRODUÇÃO
Ao longo dos últimos 20 anos, autores de diferentes áreas de conhecimento
têm desenvolvido estudos e publicações sobre pessoas com deficiência. A complexidade
deste assunto faz com que para pesquisá-lo, seja necessário o investimento em uma
multiplicidade de campos de saber. Apesar da existência de nomes de referência para os
diversos temas que englobam este universo – sexualidade, acessibilidade, saúde e
reabilitação, assistência social, empregabilidade, educação, tecnologia assistiva, família,
etc. – temos, ainda, uma preocupante escassez de material produzido a respeito de
outros assuntos de grande relevância para estes sujeitos.
Discussões como direito à cidade, ocupação e sentido do espaço público para
as pessoas com deficiência, bem como movimentos sociais que se formaram ao longo
das últimas seis décadas, representam algumas das abordagens fundamentais para
discutir elementos como direito e cidadania, inclusive, para problematizar os temas
citados anteriormente. No entanto, são raros, ou mesmo inexistentes estudos que tenham
sido aprofundados nesse sentido.
Creio que as universidades brasileiras tenham importante responsabilidade
sobre este fato, devido seu despreparo evidente nos diferentes currículos que as
compõem, em estimular debates e promover pesquisas sobre ‘deficiência’ desde a
graduação até os cursos de pós-graduação, nas modalidades lato e stricto-senso. Cabe
ressaltar que disciplinas que preparam os futuros licenciados para lidar com as pessoas
com deficiência, somente se tornaram obrigatórias na última década. E nem mesmo
algumas formações da área de saúde possuem disciplinas específicas para esta esfera.
São poucos os professores e currículos que se abrem a esta possibilidade,
preocupando-se e reconhecendo a importância da Educação Superior para a promoção
de mudanças efetivas no cenário atual - precisamos reconhecer e agradecer seu esforço
pessoal e acadêmico – numa realidade onde uma proposta de estudo sobre assuntos
9
relacionados à deficiência ainda seja desprezada e mal quista pelas diferentes cadeiras
nas elitistas universidades públicas e privadas do país.
Ao longo dos últimos oito anos, faço parte da imensa rede de incomodados
com a forma como o direito das pessoas com deficiência tem sido apropriado pelo
sistema através do Estado, das universidades e da própria sociedade nas suas diferentes
estruturas, bem como com as soluções encontradas para atender as demandas sociais
que se materializam no cotidiano de 23,9% da população brasileira.
Algumas das alternativas adotadas para intervir sobre esta realidade e
promover algum impacto sobre espaços coletivos, tem sido a produção de artigos
acadêmicos com apresentação e publicação em diferentes espaços de discussão, em
todas as regiões do país – inclusive espaços onde deficiência não seja um tema central –
bem como participação em conselhos de direito e conferências, além de atuação
profissional em instituições de atenção à pessoa com deficiência onde existe um esforço
diário de estender e problematizar estas preocupações junto a outros profissionais e,
principalmente, junto aos próprios protagonistas deste cenário.
Sou assistente social e atualmente trabalho na Associação de Pais e Amigos
dos Deficientes da Audição – APADA Niterói, que tem como público alvo pessoas com
deficiência auditiva – ou múltipla, estando surdez associada. Durante o período do curso
estava atuando ainda na Associação Fluminense de Amparo aos Cegos – AFAC.
Também já atuei em instituições de atendimento a outras categorias de deficiência,
especialmente no setor de reabilitação. Assim, estar envolvida ativamente junto ao
movimento de pessoas com deficiência oportunizou um laço estreito com a causa e,
sobretudo, o surgimento de um profundo desejo de pensar estratégias para fortalecê-lo,
principalmente pelos freqüentes desabafos desanimados de figuras tão importantes neste
trajeto de luta que possibilitou a garantia dos direitos estabelecidos hoje.
Foram muitas as indagações até chegar a este tema. Será que a cidade, tal
como ela foi concebida, apresenta-se como um lugar de negação de direitos? Terá sido
ela pensada e construída por (e para) todos? Será que as relações sociais concebidas ao
longo da história têm alguma influência sobre a realidade existente e sustentada na
contemporaneidade? Qual terá sido o papel do movimento de pessoas com deficiência
10
nesse contexto? Será possível transformar nossa forma de sentir, pensar, produzir e se
relacionar com o espaço e com os demais sujeitos? Poderemos, a partir disso,
transformar a cidade num lugar democrático, livre e plural?
Tentamos produzir um estudo através de diferentes fontes de saber, com o
objetivo de encontrar respostas para essas indagações que por tanto tempo tem
estimulado nossa mobilização em prol de uma sociedade onde as diferenças não sejam
somente respeitadas, mas sejam encaradas como potência.
Neste sentido, este trabalho pretende problematizar a relação entre a formação
das cidades, dos afetos, das relações sociais e o acesso das pessoas com deficiência,
considerando o papel do movimento social neste contexto.
Para isso, utilizaremos a genealogia como método de investigação, buscando
transversalizar diferentes estudos numa perspectiva transdisciplinar, já que não há
intenção ou possibilidade de atribuir o produto obtido a uma área de conhecimento
específica.
O método Genealógico foi adotado devido à realização de uma investigação
histórica sobre cidade, relações sociais e movimento de pessoas com deficiência para
refletir e problematizar os processos que os compõem, buscando subsidiar o
entendimento do contexto atual e a formulação de pistas que vislumbrem sua
transformação.
Nietzsche aponta a utilização do método genealógico em três direções: busca
de pluralidades; investigação do saber sobre a origem do que existe; e o genealogista
como parte do objeto de investigação. (PASCHOAL, 2000)
O método é característico pela abordagem da totalidade dos processos desde
o estudo histórico do objeto, à compreensão dos sentidos e do poder adquirido ao longo
de seu desenvolvimento a partir das disputas engendradas no seu interior. A interpretação
através da genealogia busca inverter ou evidenciar o sentido da interpretação dominante.
(DELEUZE, 1978). Neste contexto o pesquisador apresenta e interpreta os fatos
demonstrando envolvimento com os mesmos. O que neste quadro, justifica a escolha do
método como o mais pertinente para a abordagem proposta. E uma das funções mais
11
importantes da genealogia, é trazer à tona histórias menores que foram sepultadas,
apagadas, veladas, tornadas invisíveis pelo jogo da interpretação dominante da própria
história.
O trabalho está estruturado em dois capítulos. No primeiro, cujo tema é
“Espaços Sociais e Relações Espaciais - territórios habitados, desterritorializados e
reteritorializados”, serão trabalhadas diferentes definições sobre cidade, espaço e lugar. O
objetivo consiste em refletir a dinâmica das estruturas envolvidas entre estes e a forma
como o homem produz a cidade e constrói suas relações sociais nesse contexto. Os
principais autores utilizados serão Milton Santos, Michel de Certau, Gaston Bachelard,
David Harvey, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
No segundo capítulo, intitulado “Pessoas com Deficiência e Organização
Biopolítica: o poder do movimento social na construção de outros espaços possíveis”
abordaremos o surgimento, a organização do movimento de pessoas com deficiência e
seus impactos no contexto de luta por direitos. Deste modo, buscaremos refletir outras
possibilidades para sua estruturação e intervenção social, pensando o movimento como
potência transformadora da realidade social no contexto de participação das pessoas com
deficiência, no espaço das cidades. Como fundamentação teórica, utilizaremos,
principalmente, as obras de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antonio Negri e Michel Hardt.
12
1 ESPAÇOS SOCIAIS E RELAÇÕES ESPACIAIS - TERRITÓRIOS
HABITADOS, DESTERRITORIALIZADOS E RETERITORIALIZADOS
Neste primeiro capítulo abordaremos o conceito de cidade, a partir da análise
dos elementos ‘lugar’ e ‘espaço’, buscando refletir as dinâmicas presentes nas estruturas
formantes desses dois universos e o modo como o homem produz e reproduz a vida, ao
longo do seu processo de desenvolvimento enquanto sujeito social. Também será tratado
o universo dos afetos1 nesta dinâmica, considerando este elemento algo fundamental na
forma como o homem transforma a natureza e os espaços sociais do qual participa.
Estas reflexões pretendem subsidiar o estudo seguinte. Este abordará a
organização e intervenção do movimento de pessoas com deficiência ao longo de sua
trajetória de luta, os impactos e resultados a partir da garantia e acesso aos direitos pelo
segmento. Cumpre ressaltar que o termo ‘segmento’ é bastante utilizado pelos
movimentos sociais com o objetivo de definir os diferentes tipos de grupos existentes na
sociedade (ciganos, pessoas com deficiência, mulheres, crianças e adolescentes, LGBT,
etc), tendo como foco, principalmente, a referência a grupos minoritários, o que será alvo
de reflexão e crítica ao longo deste trabalho.
O estudo também abordará o movimento de pessoas com deficiência na
participação da formação das cidades – elucidando aspectos objetivos (físicos e
arquitetônicos) e subjetivos (relações sociais e afetivas), além de outras possibilidades
para esta organização coletiva – o movimento de pessoas com deficiência como potência
– a partir das obras de Deleuze e Guattari, Negri e outros autores.
1 Utilizaremos a definição de afeto em Benedictus de Spinoza: “Por afeto compreendo as afecções do corpo,
pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.” (SPINOZA, 2013: 98). Desta forma, entendemos que o afeto se define por uma variação de intensidade, que se relaciona diretamente com a variação das nossas potências. O autor sinaliza principalmente a alegria e a tristeza como fatores que podem aumentar ou diminuir a potência dos sujeitos.
13
Em ambos os momentos, buscar-se-á transversalizar os debates com a
perspectiva de acesso à cultura pelas pessoas com deficiência, mostrando o
distanciamento desta com a noção de direito, por parte desses sujeitos (fruto também da
elitização do acesso) que representa o pano de fundo deste trabalho.
O estudo sobre espaço vem sendo aprofundado por diversos estudiosos, Milton
Santos (passim), por exemplo, utiliza-se de diferentes categorias que realizam uma
divisão do espaço – espaço social, espaço humano, espaço geográfico, espaço como
categoria histórica e universal, espaço físico, espaço como sistema de relações, como
fato(r) social, espaço construído, espaço como instância social, espaço urbano, espaço
organizado, espaço total, espaço local, espaço político, espaço dialético, subespaço,
macroespaço, microespaço – para conceituar e refletir esse pluralismo nas interpretações.
Neste primeiro capítulo, os conceitos de espaço de Milton Santos (social,
humano, geográfico, urbano, local, bem como espaço como sistema de relações e como
fato(r) social, espaço organizado e espaço político) serão fundamentais. Necessitaremos
ainda de conceitos de Deleuze como os de território, territorialização, desterritorialização
e reterritorialização, subjetivação e processos maquinímicos, além da obra de outros
autores como Harvey, Certeau, Bachelard e Durkheim, para fundamentação teórica do
estudo.
1.1 Espaço e Relações Sociais
O que é a cidade? Cidade é espaço, é lugar? Por que e para quem a cidade foi
criada? Neste trabalho – apoiados em Certeau (2013), Santos (2012) e Conton (2012) -
consideraremos cidade algo caracterizado pela sua multiplicidade de papéis, todo o
espaço territorializado formado por gente heterogênea, por uma diversidade de símbolos,
redes, afetos e sentidos, por diferentes corpos que interagem entre si e com o meio, por
toda a parte e a todo o tempo.
14
Definir “cidade” não é tarefa simples e haja vista a diversidade de áreas de
conhecimento, experiências, objetos de análise e interpretações, realizaremos uma
pesquisa Multidisciplinar2 utilizando-se das fontes da Sociologia, Filosofia, Ciência
Política, Arquitetura, Geografia e Psicanálise, buscando transversalizar as informações
estudadas em cada fonte, para que seja produzido um conhecimento transdisciplinar3 e
intenso sobre o espaço social.
Podemos considerar por “cidade” um espaço habitado, organizado e em
constante modificação, a partir das necessidades que surgem com a formação das
diferentes relações estabelecidas ao longo do processo de desenvolvimento da
humanidade.
Poeticamente, Harvey define a cidade, com base em Jonathan Raban, como
algo semelhante a “uma série de palcos em que os indivíduos podiam operar sua própria
magia distintiva enquanto representavam uma multiplicidade de papéis” (HARVEY, 2012:
15) já que este universo inclui o mundo privado e o mundo público, onde o mesmo
homem se apresenta e se organiza de diferentes maneiras. Certeau (2013: 161)
acrescenta ainda que “a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se
compensam e se combinam fora do poder panóptico”, poder de controle e observação.
Esses movimentos contraditórios representam as diferentes forças existentes
no espaço da cidade a partir da forma como o homem se organiza social e
economicamente, criando novas relações e estruturas que, devido sua diversidade de
objetivos e papéis, compõem uma arena de conflitos onde não há sujeitos passivos.
2 Para Milton Santos, “quando se fala em multidisciplinaridade se está dizendo que o estudo de um
fenômeno supõe a colaboração multilateral de diversas disciplinas, mas isso não é por si mesmo uma garantia de integração entre elas” (SANTOS, 2012: 133.)
3 Entendemos a noção de transdisciplinaridade aqui adotada para além da lógica das disciplinas, assim
nenhuma disciplina é respeitada exclusivamente em seu saber, também não é um novo saber que surge como na interdisciplinaridade. Mas aqui, sustentamos um modo de pesquisa que não quer estar em nenhum saber delimitado, mas quer estar apenas nas bordas ‘mal’ delineadas de vários saberes.
15
Dentre tantas outras definições possíveis, selecionamos ainda a ‘cidade’ do
ponto de vista de Kevin Lynch, importante Urbanista cujas obras são de profundo
reconhecimento na área de arquitetura e urbanismo:
Uma cidade é uma organização mutável e polivalente, um espaço com muitas funções, erguido por muitas mãos num período de tempo relativamente rápido. A especialização completa e o entrelaçamento definitivo são improváveis e indesejáveis. A forma deve ser de algum modo descompromissada e adaptável aos objetivos e às percepções de seus cidadãos.” (LYNCH, 1999: 101)
Esta abordagem sobre a percepção da cidade é comum aos demais autores
utilizados nesta pesquisa ao ponto em que concorda com a diversidade de funções do
espaço e dos sujeitos que o habitam, bem como do seu caráter de constante
transformação.
No entanto, a ideia de ‘descompromisso’ e ‘adaptação aos objetivos’ pode
gerar polêmica devido sua possível associação à noção de transitoriedade e
descontinuidade aculturadas, onde os valores histórico-culturais de um povo podem ser
perdidos durante o processo, discussão presente na crítica negativa ao pós-modernismo.
No entanto, é preciso considerar as transformações sociais e suas influências na
organização e formação da cidade, historicamente.
A ideia de espaço propõe novas perspectivas para este estudo, a partir do
momento em que a diversidade de categorias de análise desse conceito vem sendo
dividida em diversos conhecimentos de forma multidisciplinar.
Milton Santos é um importante geógrafo brasileiro, criador de conceitos originais
para estudar a geografia política. Tentando entender os espaços produzidos pelos
homens em suas relações, o autor cria uma distinção entre os conceitos de espaço e
lugar - também presente na obra de outros estudiosos.
O espaço, para ele, seria entendido pelo espaço geográfico modificado pela ação
do homem sobre a natureza, que o transforma em espaço humano ou social através de
sua ocupação e organização. Lugar por sua vez seria o resultado das respectivas ações
do homem sobre o espaço. A cidade pode ser assim analisada por estes conceitos nos
permitindo um entendimento mais amplo sobre a forma como está estruturada. Milton
16
Santos, apoiado em Whitehead4 (1938) utiliza como ponto de partida a relação entre o
espaço natural e o espaço social:
O espaço geográfico é a natureza modificada pelo homem mediante seu trabalho. A concepção de uma natureza natural, onde o homem não existisse ou não fora seu centro, cede lugar a ideia de uma construção permanente da natureza artificial ou social, sinônimo de espaço humano. (SANTOS, 2012: 150)
Devido o nível de intervenção do homem nos diversos espaços e a
possibilidade de deslocamento e exploração subsidiadas pelo desenvolvimento do
sistema capitalista, são escassos os lugares que ainda conseguem manter sua
característica de “natureza natural”, citada pelo autor. A maior parte dos lugares já sofreu
ações do homem e, uma vez transformados, perdem essa característica independente de
se tornar um espaço habitado ou não.
Certeau (2013) fala em “lugar praticado”, afirmando que o espaço “é o efeito
produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a
funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades
contratuais” (CERTEAU, 2013: 184). Este conceito vai de encontro à ideia de espaço
social elucidado por Santos, aproximando-se ainda do conceito de cidade em Certau e
Harvey.
E o lugar? Para Milton Santos (2012: 258), “o lugar é, pois, resultado de ações
multilaterais que se realizam em tempos desiguais sobre cada um e em todos os pontos
da superfície terrestre.” O mesmo vai além, afirmando que “cada lugar é, a cada
momento, um sistema espacial, seja qual for a “idade”, dos seus elementos e a ordem em
que se instalaram,” o que sugere que o lugar faz parte do espaço.
Ainda sobre lugar, em concordância com Santos, Katia Conton, a partir de
Anthony Giddens, afirma que “‘lugar’ se refere a uma noção específica do espaço: trata-se
4 Alfred North Whitehead foi um renomado Filósofo e Matemático britânico, pesquisador na área de Filosofia
da Ciência. Milton Santos utilizou três obras deste autor na elaboração do livro “Por uma Geografia Nova”. As obras que serviram de referência para o geógrafo foram: “Essays in Science and Philosophy”, de 1948; “The Concepto f Nature”, de 1964 e; “Process and Reality”, de 1968. Whitehead faleceu em 1987, com 86 anos de idade, na cidade de Cambridge.
17
de um espaço particular, familiar, responsável pela construção de nossas raízes e nossas
referências no mundo.” (CONTON, 2012: 15).
Este conceito de lugar apresentado pela autora aponta para muitas abordagens
subjetivas ao situá-lo como referência de mundo e construção de raízes, algo que será
mais aprofundado adiante a partir dos estudos sobre afeto, em Bachelard.
O espaço social sendo formado por sujeitos heterogêneos possui sistemas que
também refletem essa pluralidade na forma de participação dos sujeitos e da apropriação
dos produtos produzidos coletivamente, o que aponta para diferentes modos de
organização entre os grupos e, consequentemente, diferentes maneiras de interagir, de
contribuir e modificar as relações existentes.
Para Certeau, “um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições.
Implica uma indicação de estabilidade (CERTEAU, 2013: 184).
Neste mesmo processo de construção de relações entre sujeitos heterogêneos,
são produzidos referenciais e relações de poder, o que indica diferentes posições,
conforme afirmado por Certeau. Assim, a noção de lugar é polarizada pelos efeitos da
desigualdade na ocupação do espaço, bem como na forma como cada um terá
possibilidades de construir e ocupar este espaço particular elucidado por Conton.
A desigualdade e a pluralidade estimulam novas orientações para Milton Santos,
a partir do conceito de espaço habitado, que para ele sofre alterações a partir da
Revolução Industrial. (Santos, 1988).
Uma das características do 'espaço habitado é, pois, a sua heterogeneidade, seja em termos da distribuição numérica entre continentes e países (e também dentro destes), seja em termos de sua evolução. Aliás, essas duas dimensões escondem e incluem outra: a enorme diversidade qualitativa sobre a superfície da terra, quanto a raças, culturas, credos, níveis de vida etc. (SANTOS, 1988: 15)
Sob o mesmo solo onde essa diversidade quantitativa é formada, formam-se
também os diversos modos de segregação, discriminação, violência e negação da
diferença, interferindo nas possibilidades de existência e de reprodução dos sujeitos, na
formação dos afetos e na construção coletiva dos espaços.
18
Pela análise histórica, entendemos que a cidade sofreu intensas mudanças no
mundo ocidental. Caracterizada pela possibilidade de trabalho livre, em tempos de
transição do feudalismo para o período pré-industrial no século XV, a cidade diferenciava-
se do campo pela diversidade de oportunidades existentes no seu espaço, até o momento
em que o capitalismo se estabelece e outras questões sociais formam um novo cenário
de precarização e sobretrabalho.5
A cidade limitada da aristocracia, dominada pelo senhor feudal, não
possibilitava qualquer alternativa para escravos e camponeses. Não havia destino para
estes homens subalternos. Com a emergência do sistema capitalista, esta realidade
modifica-se dando forma a um espaço de possibilidades com a abertura do comércio
local, a instituição de indústrias e o surgimento do salário pelo tempo socialmente
necessário à produção de novas mercadorias, este último somente ganhou estabilidade
com o amadurecimento do sistema.
Cumpre ressaltar que Marshall afirma que “o elemento contratual no feudalismo
coexistiu com um sistema de classes baseado em status” [...] e que o contrato moderno
assumido pela emergência do capital, “é essencialmente um acordo entre homens que
são livres e iguais em status, embora não necessariamente em poder.” (MARSHALL,
1967: 80)
O período de acumulação primitiva do capital, seguinte ao capitalismo pré-
industrial, ainda se apresenta como espaço de dominação sobre os artesãos, por
exemplo, posto que a maior parcela do lucro dos produtos produzidos é concentrada nas
mãos dos comerciantes da região, o que já aponta o lugar de poder assumido por este
grupo.
É somente no capitalismo industrial que o salário é estabelecido e, de fato, com
a ampliação das ferrovias, dos meios de transporte e com a forte imigração, que as
cidades são ampliadas. A burguesia se legitima sobre o feudo e surgem os conceitos de
5 Por sobretrabalho, entendemos o período de trabalho do proletário que surge como excedente à
manutenção do seu próprio trabalho e do sistema capitalista. Sua carga-horária de trabalho não se modifica com a utilização de recursos tecnológicos para a produção, passando o sujeito a produzir além do equivalente a sua remuneração. Este tempo de trabalho otimimizado não é revertido pelo aumento da produção, transformando-se em mais-valia, ao favorecer o capitalista através do trabalho acumulado e do lucro pelo consequente aumento da produção. (THIRY-CHERQUES, 2012)
19
classe trabalhadora e detentores dos meios de produção. Novas técnicas são utilizadas
nas indústrias e o capitalismo se expande rapidamente.
O Estado passa a investir no espaço público para favorecer a manutenção
deste sistema. O Estado também estreita suas relações com o capital e cedendo às
manifestações do proletário conforme pressionado pela classe, que constantemente se
organizava em prol da luta por direitos, sobretudo trabalhistas e serviços sociais básicos
para manutenção da própria vida.
A ampliação das cidades e seus desdobramentos geográficos em novos
espaços de produção, naturalmente, estimularam a emergência de novas demandas para
o trabalhador, já que o homem proletário tem suas necessidades sociais aumentadas
para viver nesse espaço de intensa modificação.
Ao entenderem que seus problemas representavam demandas coletivas e não
individuais este grupo de sujeitos, o proletariado, finalmente se apropriou da consciência
de classe e se organizou a fim de vislumbrar, junto ao capital e ao Estado, aquilo que
julgavam essencial para garantir condições mínimas de existência.
Todo esse movimento traz novos elementos para a constituição do espaço, que
se modifica aceleradamente de acordo com as intervenções de ambos os atores, na
medida em que as relações sociais são modificadas em virtude do modo de produção e
de ocupação da cidade, formando novas estruturas desconhecidas até então.
A apropriação de novas técnicas possibilita a intensificação dos resultados do
processo de produção e das relações comerciais, nacional e internacionalmente. A
indústria se especializa em diferentes atividades, promovendo intercâmbios culturais, o
que oportuniza grande circulação e ocupação desses espaços que, num ritmo intenso,
dão forma às cidades capitalistas. Octavio Ianni define este modo de produção como
um sistema de mercantilização universal e de produção de mais-valia. Ele mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas. Ao mesmo tempo, pois, mercantiliza a força de trabalho, a energia humana que produz valor. Por isso mesmo, transforma as próprias pessoas em mercadorias, tornando-as adjetivas de sua força de trabalho. (IANNI,1980: 08)
20
Neste contexto, a existência de homens à margem do sistema de produção,
possibilita ao capital maior controle sobre os trabalhadores. Com a diminuição do tempo
socialmente necessário à produção de mercadorias – trabalho excedente ou
sobretrabalho, já mencionados – através do emprego de máquinas, os homens produzem
mais num mesmo espaço de tempo aumentando o lucro do capitalista – o que Marx
denomina mais-valia, processo pelo qual o homem perde a autonomia criativa sobre o
produto de seu trabalho, que se divide em processos executados por outros sujeitos,
perdendo a noção de totalidade. Estas modificações interferem no modo como os
trabalhadores percebem a si próprios e aos outros, transformando, consequentemente, as
relações humanas e o espaço social de produção e reprodução. (THIRY-CHERQUES,
2012)
Cumpre então, ressaltar a importância de compreensão do espaço nas suas
relações entre passado e presente. O espaço é determinado pelas “formas
representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura
representada por relações sociais que estão acontecendo diante de nossos olhos e que
se manifestam através de processos e funções” (SANTOS, 2012: 153). Logo, temos a
necessidade de retornar a momentos passados para entender o espaço na sua
conjuntura atual, que também é transitória e encontra-se em fase de modificação
enquanto tentamos defini-la nesse momento.
Para além de qualquer definição possível para espaço, devemos considerá-lo
como um “campo de forças”, uma arena de conflitos que se origina justamente da
diversidade de conjunturas e interesses que o legitimam.
Segundo a acepção durkheimiana, o espaço é, pois, uma coisa; ele existe fora do indivíduo e se impõe tanto ao indivíduo como à sociedade considerada como um todo. Assim, o espaço é um fato social, uma realidade objetiva. Como resultado histórico, ele se impõe aos indivíduos. Estes podem ter dele diferentes percepções e isso é próprio das relações entre sujeito e objeto. Mas, uma coisa é a percepção individual do espaço, outra é a sua objetividade. O espaço não é nem a soma e nem a síntese das percepções individuais. Sendo um produto, isto é, um resultado da produção, o espaço é um objeto social como qualquer outro. Se, como para qualquer outro objeto social, ele pode ser apreendido sob múltiplas pseudoconcreções, isto de nenhuma forma o esvazia de sua realidade objetiva. (SANTOS, 2012: 150)
21
Através da abordagem de Durkheim sobre o tema, podemos dizer que o
espaço se forma a partir do resultado da troca da percepção e ações que os indivíduos
que convivem ao mesmo tempo e no mesmo lugar, tem sobre ele. E que esses resultados
influenciam diretamente os produtos seguintes. Não concordamos com a afirmativa de
que produto é um objeto social como qualquer outro e que sua realidade seja objetiva.
O espaço é o filtro de um processo de percepção individual de sujeitos
heterogêneos, que formam uma sociedade plural. Mas devemos entender que este
resultado é inacabado e em constante processo de modificação, repleto de sentidos,
percepções, sensações, valores, sentimentos, experiências e referenciais simbólicos que,
no cotidiano, se apresenta através dos mais diferentes modos de existência. Concluímos
então que o espaço é um ‘produto’ social e não é possível, por tanto, caracterizá-lo como
algo objetivo, mas como um campo de subjetividades.
Por outro lado, o espaço não pode ser considerado um objeto social como outro
qualquer a partir do momento em que não diz respeito a algo característico ou
pertencente a um grupo específico, mas sim, a reações dissimétricas entre grupos
diferentes.
Como exemplo, podemos citar a má distribuição de renda num mesmo espaço
geográfico. A pobreza é um objeto, um fato ou uma questão social. Ela se apresenta de
diferentes formas para os sujeitos pobres. Ela pode estar presente no mesmo território
onde há riqueza. Quem concentra a renda pode não se sentir afetado pelo grau de
pobreza existente ao seu redor. Isso não faz com que o problema deixe de existir para
aquele que encontram-se desprovido de renda, embora para o outro, isso não tenha
nenhuma representatividade afetiva, somente econômica, já que a riqueza está garantida
e justificada na má distribuição de seus dividendos.
O espaço diz respeito aos dois universos, ao da riqueza e ao da pobreza. Ele
comporta os dois universos e todas as características presentes em ambos. Ele comporta
o lugar do pobre e o lugar do rico. Ele tem para si todas as alegrias e sofrimentos destes
sujeitos, ele comporta ainda o conflito entre as estruturas que se fazem presentes. Nele
se formam diferentes culturas que não se encontram distantes no espaço geográfico.
Logo, o espaço não é um objeto social como outro qualquer, ele é o campo social que
22
acolhe todos os outros objetos sociais nas suas estruturas, sentidos e representações e
sofre constantes alterações de acordo com os movimentos existentes no seu interior.
Para Milton Santos (2012:163) ”quando se admite que o espaço é um fato
social, é o mesmo que recusar sua interpretação fora das relações sociais que o definem.
Muitos fenômenos, apresentados como se fossem naturais são, de fato, sociais.” Cumpre
ressaltar que Aron define ‘fato social’, nas palavras de Émile Durkheim, como “toda
maneira de fazer, suscetível de exercer uma coerção externa sobre o indivíduo” (ARON,
2000: 337), reconhecido como um fenômeno social.
A naturalização da injustiça, da desigualdade, das relações de exploração e da
violência é permitida quando pensamos o espaço como fato ou fenômeno social. Elas
deixam de ser característica – e necessidade de sobrevivência – do sistema econômico
de produção. A noção de direito torna-se inviável, não existem mais possibilidades para
os ‘dominados’, para os miseráveis.
Frequentemente as abordagens sobre o ‘espaço’ tem como pano de fundo o
aspecto econômico, de produção de riqueza, como se estivesse subordinado a esta,
sendo pouco associado ao debate social.
Se tratando de um espaço humano e social, é preciso abranger outras
realidades que formam sua base, não somente a econômica. O aspecto político, por
exemplo, é fundamental na construção de todas as relações, inclusive, na estrutura
econômica. Este mesmo espaço tem um papel ativo em todas as manifestações, embora
tenhamos nos preocupado até aqui em mostrar como ele é impactado pelos movimentos
que o compõe.
“O espaço como forma não tem, de modo algum, um papel fantasmagórico,
pois os objetos espaciais são periodicamente revivados pelo movimento social.” Essas
formas sofrem constante transformação, conforme as finalidades que lhes deram origem,
tornando-se “resistentes à mudança social e uma das razões disso está em que elas são
também ou antes de tudo matéria.”, matéria essa que não dispõe “de autonomia de
comportamento, mas de existência. (SANTOS, 2012: 187).
23
É possível que esta linha tênue entre o espaço, sua forma e seus objetos
espaciais associadas à ideia de matéria - ou objeto, alimente o seu entendimento a partir
do viés econômico e o espaço seja visto como mercadoria, onde sua estrutura é
analisada somente enquanto lugar de produção de bens e não de relações humanas.
Santos (2012) explica ainda seu reconhecimento enquanto resultado da produção:
O ato de produzir é igualmente o ato de produzir espaço. A promoção do homem animal a homem-social deu-se quando ele começou a produzir. Produzir significa tirar da natureza os elementos indispensáveis à reprodução da vida. A produção, pois, supõe uma intermediação entre o homem e a natureza, através das técnicas e dos instrumentos de trabalho inventados para o exercício desse intermédio. (SANTOS, 2012: 202)
É a partir deste entendimento de produção que o homem conhece o trabalho
cooperado com os demais sujeitos, passando a utilizar instrumentos e ferramentas que o
possibilitem alcançar o objetivo idealizado, o que o leva também a organizar seu tempo e
espaço nessa direção. Por conseguinte, nunca mais foi possível retornar ao modo de vida
anterior, já que suas necessidades foram aumentadas em virtude do maior grau de
organização dos grupos, da divisão de responsabilidades e da construção de novas
ferramentas para dar conta de seus novos desejos.
A noção de tempo espaço surge quando ele percebe que cada ação tem um
lugar próprio para ser executada, por sujeitos que se dividem em diferentes papéis para
exercer funções que necessitam de frações de tempo distintas para serem iniciadas e
concluídas. Daí a importância do tempo na organização do espaço, o que se comprova
na definição dos diferentes autores utilizados.
Conforme o tempo e a organização para fazê-las modifica, o espaço é
modificado também. “É por essa forma que o espaço é criado como Natureza Segunda,
natureza transformada, natureza social ou socializada. O ato de produzir é, ao mesmo
tempo, o ato de produzir espaço.” (SANTOS, 2012: 202). E mais importante ainda é
lembrar que neste processo onde o homem transforma suas relações a e natureza, ele
transforma a si mesmo também.
24
Ao produzir matérias diversificadas, o homem abre caminhos para o
surgimento de novas atividades dentro da cadeia produtiva, onde o trabalho de
intelectuais, artesãos, artistas e sacerdotes também é desenvolvido.
Uma vez intensificada a produção social, surgem seus excedentes e a
necessidade de um mercado de troca entre os grupos que produzem diferentes produtos.
Santos (2012) aponta para o fato de que tudo muda quando o comércio torna-se
especulativo e não há discussão sobre o preço de determinadas mercadorias, sendo seu
valor imposto arbitrariamente aos demais, introduzindo, nas palavras do autor, “uma nova
escala de valores”. “O valor de cada produto é dado pelo valor, estranho ao grupo, das
mercadorias que é preciso comprar.” (SANTOS, 2012: 206).
Esta transformação nas relações econômicas leva o homem a criar a moeda,
que surge como um instrumento que vem a favorecer as transições comerciais nesse
novo contexto de liberdade. Com a sua introdução nas relações comerciais, os homens
passam a produzir aquilo que acreditam lucrar mais dinheiro, pois esta é a forma de obter
recursos para atender suas demais necessidades.
Com o estabelecimento desta noção de valor e da livre comercialização dos
seus produtos, portanto, do aumento do poder aquisitivo de alguns, o homem conhece o
que hoje chamamos de classes sociais. Em escala crescente esse processo foi
reorganizado e intensificado a partir da exploração de uns sobre os outros, inclusive
através de regimes de escravidão, passando pela industrialização, que através do sistema
capitalista promoveu a universalização das relações econômicas e dos espaços
sociais/produtivos.
Hoje, o espaço das sociedades não é a soma dos espaços correspondentes a cada sociedade particular existente, tampouco esse espaço social é exclusivamente o habitat dos homens, graças à nova natureza das relações intrassociais e entre sociedades. A noção de espaço tornou-se bem diferente, e talvez distante, da noção ecúmeno. O espaço social é muito mais que o conjunto de habitats, graças ao novo tipo de relações cujo âmbito ultrapassou o das comunidades isoladas, e mesmo dos países, para tornar-se mundial. Além do mais, a construção do espaço em nossos dias não resulta unicamente da atividade econômica direta e imediata. Mas também das expectativas de valorização de áreas atualmente não ocupadas ou consideradas sem valor econômico. [...] A própria noção de soberania nacional muda de conteúdo porque os Estados, mesmo com os mais pobres, não sabendo exatamente o que tem a defender, se vêem obrigados a um comando mais estrito da totalidade do seu território e de suas potencialidades, isto é, são obrigados a defender tudo.
(SANTOS, 2012: 211)
25
Essa universalização dos espaços e da produção não acontece de forma
homogênea, tampouco num sentido horizontal. Ela se dá verticalmente, de cima para
baixo em benefício da menor parcela da população, aqueles que detém o poder através
do controle do capital. Milton Santos chama este processo de “universalização perversa”,
na medida em que a maioria mantém-se em estado de fragilidade e pobreza,
conseqüência do modo de produção característico do sistema capitalista, apoiado pelo
Estado através de suas estruturas.
“A força motriz é a totalidade social que se encaixa numa adequação dinâmica
às condições preexistentes por meio de uma variedade de processos políticos,
econômicos, culturais, ideológicos etc”. (SANTOS, 2012: 217)
Isso também reflete diretamente na organização de determinados espaços,
onde alguns concentrarão maior número de produtos e serviços enquanto outros contarão
com quantidade insuficiente para prover as necessidades de seus habitantes.
O mesmo desequilíbrio acontece com a oferta de trabalho, com os níveis de
remuneração e exploração da mão-de-obra dos trabalhadores e na sua conseqüente
capacidade de usufruir dos bens produzidos. Estende-se ao acesso aos equipamentos e
bens culturais e educacionais pela população, inclusive no que se refere à reprodução
cultural de seus agentes e à formação de uma cultura popular nos diversos territórios. O
acesso a esses organismos continua representando um direito das elites.
Cumpre ressaltar que os processos mencionados ao longo do estudo também
representam força, potências. São considerados pelo autor como força movimentada,
haja vista o constante processo de movimento da sociedade e das transformações que
por este motivo, ele sofre permanentemente, gerando ainda novos processos
Desta forma, destaca-se a importância da organização política dos diferentes
grupos sociais, pois sendo o espaço social caracterizado por lugar de forças antagônicas
(capital X Estado X Sociedade) os movimentos engendrados na luta por uma sociedade
mais justa e igualitária deve ser reconhecido como potência, não os seus resultados,
exclusivamente.
26
1.2 Cidade de afetos, sentimentos e potências
A cidade também é lugar de sentir. Se as relações que o homem constrói com
o espaço e com os seus pares tem como ponto de partida o ato de produzir (extrair da
natureza o que se faz necessário através de ferramentas criadas com objetivos diversos),
conforme sinalizado pelos autores, o universo dos afetos – ainda que no âmbito privado –
antecede o processo de produção.
Gaston Barchelard, Filósofo e Poeta Francês, cuja obra “A Poética do Espaço”
será bastante abordada nesta etapa do estudo, utiliza-se de diversas imagens poéticas
sobre o espaço que os artistas tomam em seus diferentes processos de criação. Uma
destas imagens poéticas é o elemento ‘casa’ que ele analisa para abordar o espaço do
ser íntimo, das raízes, do abrigo, dos devaneios e dos sonhos, temas aprofundados pelo
autor, mundialmente conhecidos e valorizados nas suas obras.
Para Bachelard, a casa “é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano.
Antes de ser “jogado no mundo”, como professam as metafísicas apressadas, o homem é
colocado no berço de sua casa. E sempre, nos nossos devaneios, ela é um grande
berço.” (BACHELARD, 2012: 26). Nesta direção, o espaço não pode ser entendido como
uma unidade metafísica existente antes do ser. Mas o espaço é sempre singularizado e, a
casa, o nosso primeiro espaço ontológico.
Estando a casa situada no campo ou na cidade, é nesse espaço modificado e
habitado coletivamente que este ‘lugar’ singular está construído.
Ainda na pré-história, antes de existir a arquitetura do lar tal como ela é
conhecida hoje, o afeto já se fazia presente na intimidade do homem, nas suas relações
intra-familiares. Os homens se relacionavam minimamente para além de suas
necessidades vitais, ou mesmo com o objetivo de reprodução, conforme apontado pela
ciência. Acreditamos que qualquer relação entre sujeitos é o bastante para a formação do
afeto. Entendemos, pois, que o afeto integra o cuidado para além da noção de instinto,
ainda que isto não se apresente conscientemente.
27
Para Bachelard, “todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção
de casa” (2012:25), o que mais uma vez, traduz a existência do afeto por esse ambiente,
uma referência de desejo e posse.
A partir deste referencial, o homem não só desenvolve afeto pelo lugar, como
também a noção de ‘valor’. O autor afirma ainda que “se a casa do sonhador estiver
situada na cidade, não é raro que o sonho seja o de dominar, pela profundidade, os
porões circunvizinhos” (2012: 39), o que aponta para uma intensa relação entre o espaço,
os sentimentos e o desejo.
A casa também denota o sentimento de proteção, de abrigo, bem como nas
ruas da cidade, outrora, o sentimento de ocupação desse espaço poderia ser
representado pelo de encontro. O sentido desses espaços sofre mutações na medida em
que o homem cria novas formas de se relacionar, de produzir e de compreender a
totalidade. Ainda assim,
qualquer que seja o pólo da dialética em que o sonhador se situe, qualquer que seja a casa ou o universo, a dialética dinamiza-se. A casa e o universo não são simplesmente dois espaços justapostos. No reino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente em devaneios opostos. (BACHELARD, 2012: 59)
Entendemos que a casa e o universo estão integrados não somente no plano
da imaginação e da formação dos afetos, mas na própria noção de relações sociais entre
os homens, no modo como este vai se relacionar com os demais sujeitos e, ainda, no seu
modo de perceber e transformar o espaço coletivo.
Acreditamos que a partir da imaginação são criadas as imagens e os códigos
que orientam o ser humano no espaço. A imaginação é produtora de sentidos. Esses
códigos são responsáveis pela percepção de interioridade e exterioridade. Eles são
potencializados através do afeto, que o leva a sentir o espaço como um lugar de abrigo ou
de risco.
A imaginação, ou ato de imaginar, tem papel fundamental nessa interpretação,
motivo pelo qual discutiremos seu conceito brevemente. Para Descartes, “imaginar é
basicamente contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal” (DESCARTES,
1996: 22), para ele a imaginação faz parte do pensamento.
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Já para Kant, autor cuja abordagem mais se identifica com este trabalho – se
aproximando também das definições de Deleuze e Guattari, que não citaremos por
considerá-la contemplada [em Hebeche (2002)] – a imaginação surge como um
componente necessário à percepção, estando vinculada à memória, às representações e
à concepção de juízos sintéticos, podendo ser reprodutiva ou produtiva. Também possui
ligação íntima com o espírito e com a intuição, e posiciona-se entre o mundo inteligível e o
mundo sensível, conectando entendimento, experiências e sensibilidades, considerando
passado, presente e futuro, estando além de qualquer juízo. Não funciona como mera
recepção de informações e imagens e tem o poder de tornar presente o que está ausente.
(HEBECHE, 2002)
Apoiado em Raban, Harvey (2012:17) afirma que “a cidade é lugar em que o
fato e a imaginação têm de se fundir”. Ele vai além ao afirmar que
A cidade também era um lugar em que as pessoas tinham relativa liberdade para agir como queriam e para se tornar o que queriam. “A identidade pessoal tinha se tornado suave, fluída, interminavelmente aberta” ao exercício da vontade e da imaginação. (HARVEY, 2012: 17)
Daí a necessidade de considerar os elementos do plano subjetivo, não
somente o espaço no seu conceito físico, geográfico. Qualquer relação entre sujeito e
objeto transforma a natureza, a natureza natural ou a própria ideia de natureza imaginada
pelos homens. “Os valores de proteção e de resistência da casa são transpostos em
valores humanos. A casa adquire energias físicas e morais de um corpo humano”
(BACHELARD, 2012: 62), porque existem energias diferentes envolvidas, energias que
entram em contato e se metamorfoseiam através das relações, da imaginação e dos
afetos.
Nessa comunicação dinâmica entre o homem e a casa, nessa realidade dinâmica entre a casa e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico. (BACHELARD, 2012: 59)
A casa é um espaço habitado que compõe a cidade, juntamente com outras
estruturas privadas. A cidade já foi percebida como lugar de possibilidades, como espaço
de múltiplas expressões e intervenções, como espaço diversificado, plural. Isto nos leva a
29
acreditar que é na e pela cidade a possibilidade de se criar novos sentidos para a
reconstrução da dinâmica existente hoje, a oportunidade de resignificar a cidade num
espaço que represente as diversas singularidades existentes no seu corpo social.
O sistema capitalista ao longo de sua existência desenvolveu uma série de
padrões que foram incorporados socialmente e, consequentemente, influenciaram os
modos de perceber e recriar o espaço público e privado.
O lugar que antes comportava algo de diversidade e liberdade passou a
padronizar corpos, comportamentos e pensamentos. As influências culturais externas
contribuíram ainda mais com a imposição de uma organização cultural unificada,
marginalizando os sujeitos avessos às respectivas ‘orientações’ globais.
No Brasil, particularmente, podemos citar como grande período de tensão o
Golpe Militar de 1964, quando a censura e a violência atingiram todas as classes sociais e
profissionais, inclusive o universo da arte, o que, em contrapartida, serviu como mola
propulsora para a organização coletiva dos sujeitos de diferentes grupos sociais.
Neste contexto de lutas, espaço e tempo foram compartilhados por diferentes
atores, onde os diversos corpos lutaram contra a massificação e homogeneização
imposta pelo Estado e pelo capital. Lutou-se por direitos, por liberdade de expressão,
criação e produção, pela liberdade de existência. Lutou-se contra a imposição de uma
cultura estrangeira e unificada, pelo livre exercício da vontade e da imaginação,
constituindo uma grandiosa rede de singularidades no espaço urbano. O espaço tornou-
se lugar de múltiplas centralidades.
Para melhor compreensão desta arena de lutas e subjetividades que a cidade
se tornou, a partir da ocupação do espaço público pelas diferentes forças sociais,
utilizaremos – principalmente, a obra de Deleuze e Guattari, entendendo que seus
conceitos são indispensáveis para continuação deste trabalho. Para isso, é importante
definir a própria noção de ‘conceito’:
O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem ao pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é evidentemente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento, que não se confunde com o estado das coisas no qual se encarna. Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia
30
quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos.[...] (DELEUZE e GUATARRI, 1992: 46)
A utilização das obras de Deleuze e Guatari apresenta-se como um grande
desafio neste trabalho, no entanto, não podemos abster-se de considerar a importância
de alguns conceitos criados por estes autores – territorialização; desterritotialização;
agenciamento; máquina de guerra - para dar forma às reflexões que ora vem sendo
construídas.
Talvez a maior dificuldade em transportar suas abordagens para este universo
esteja no fato de que os conceitos aqui utilizados fazem referência a outros conceitos –
sobretudo a respeito de associações a jogos e períodos históricos – cujas definições não
seriam objeto direto das respectivas análises, levando a uma necessidade de
prolongamento nas definições dos mesmos para promover um melhor entendimento
sobre o espaço, nosso objeto de estudo neste primeiro capítulo.
Para compreender as forças sociais existentes no espaço da cidade, também
precisaremos discutir sobre o papel do Estado. Apesar de ter como objetivo e
característica permanentes o ‘aparelho de captura’ - conceito criado por Deleuze que será
aprofundado mais adiante – Santos (2012: 223) sinaliza o Estado como sistema
necessário à organização social pelo fato de “ser o único intermediário possível entre o
modo de produção em escala internacional e a sociedade nacional”, o que justifica seu
papel na sociedade atual. Ele afirma ainda que “a reorganização de um subespaço sob a
influência de forças externas depende sempre do papel que o Estado exerce” (2012: 226),
não deixando de admitir que as características locais e culturais da dinâmica existente
devam ser levadas sempre em consideração.
Ainda para o autor (2012:180) Harvey e Castells (1973) consideram o espaço
urbano uma “estrutura social”, conceito este que associado a ideia de Formação Social
também contribui para esta análise do espaço e de sua ocupação. Ele continua,
embasado nos autores mencionados, afirmando que
não é o espaço urbano que se constitui em estrutura social, mas o espaço urbano tomado em seu conjunto. Isso nos obriga a um outro exercício metodológico e
31
teórico fundamental, o de apontar qual o lugar real que tem o espaço humano na sociedade global, ou ainda melhor, na formação econômica e social. (SANTOS, 2012: 217)
Este exercício metodológico desafiador apresenta-se como estímulo para a
realização desta pesquisa, cujo objetivo está em problematizar o lugar do ser humano
(com deficiência), sua organização coletiva através dos movimentos sociais e o impacto
deste sobre as estruturas formantes da cidade.
Entendendo o espaço como estrutura social cujos territórios refletem as
características da sociedade global, é possível afirmar seu desdobramento em novas
estruturas que não se limitam à organização econômica. Para Santos
A existência de um Estado atribui à Formação Social um quadro jurídico, político, fiscal, financeiro, econômico e social definido, tudo isso tendo como conseqüência o fato de que a estrutura econômica e social própria a cada país se torna um dado ainda mais específico, mediante suas próprias transformações operadas sob o impulso de um sem-número de fatores internos e externos. (SANTOS, 2012: 236)
Este poder exercido pelo Estado sobre as relações sociais e econômicas é
caracterizado por Deleuze e Guattari (2012) um ‘fenômeno de intraconsistência’ – O
Estado se constitui e fortalece a partir desse direcionamento de controle e poder.
Eles afirmam ainda que há um movimento de desterritorialização6 na sua
intervenção a partir do momento em que o território torna-se objeto a ser estratificado.
Para o autor, cada Estado “é uma operação de estratificação do território.” (DELEUZE e
GUATTARI, 2012: 133).
A ideia de território pode ser considerada em diversas escalas que vão da
abordagem psicológica e filosófica à abordagem geográfica. Com base em Deleuze e
Guattari (2012), ‘território’ consiste no ambiente de um ou mais grupos, onde estes 6 A desterrotirialização compreende um processo de abertura, onde linhas de fuga são ativadas desfazendo
os territórios originais. Trata-se de um movimento de abandono de território. Ela pode ser relativa ou absoluta. A primeira possui maior proximidade com o espaço geográfico, consiste num movimento de abandono de território criado em determinada sociedade, seguido de um reterritorialização. Esta diz respeito ao próprio socius. A segunda diz respeito ao pensamento, já que para o autor, pensar é desterritorializar-se, pois o ato de pensar rompe com um território existente criando outro diferente, uma nova ideia, um novo conceito. Este processo de desterritorialização é acompanhado por um processo de reterritorialização, pois novos agenciamentos são necessários para dar forma ao novo espaço que se criou. (DELEUZE e GUATTARI, 2012)
32
constituem padrões de interação entre si e com o meio através de diferentes relações. O
território também é considerado pelos autores um agenciamento7, o que lhe confere uma
interpretação para além da geografia.
Pode-se considerar ainda que a criação do território se dá através de
agenciamentos sociais, coletivos ou de enunciação, formados por um regime de signos
compartilhados - e maquinímicos8 (corpos sociais, animais e cósmicos), poder e desejo –
entendidos em sua obra como forças criadoras. Este seria um processo de
territorialização.
Agenciamentos são definidos como “composições do desejo”, como “todo
conjunto de singularidades e de traços extraídos do fluxo – selecionados, organizados e
estratificados – de maneira a convergir” [...], podendo agrupar-se em conjuntos,
constituindo ‘culturas’, dividindo-se em outros diversos ou introduzindo “descontinuidades
seletivas na continuidade ideal da matéria-movimento. (DELEUZE e GUATTARI, 2012:
94) Esta matéria torna-se desestratificada ou desterritorializada. Ressalta-se ainda que
tudo pode ser agenciado, desterritorializado e reterritorializado.
A desterritorialização é considerada “a operação de linha de fuga” onde os
agenciamentos são desterritorializados (ou se desterritorializam). A reterritorialização, o
ato de territorializar este território a partir de novos agenciamentos, o que difere da
alternativa inviável de territorialidade primitiva. Estes processos são indissociáveis e
concomitantes, pois a partir do momento em que um movimento é iniciado, outro
automaticamente se processa.
De um lado, à matéria formada ou formável é preciso acrescentar toda uma materialidade energética em movimento, portadora de singularidades [...] que já são como forças implícitas [...] e que se combinam com processos de deformação [...]. De outro lado, às propriedades essenciais que na matéria decorrem da essência formal é preciso acrescentar afectos variáveis intensivos, e que ora
7 “Denominamos agenciamento todo o conjunto de singularidades e traços extraídos do fluxo –
selecionados, organizados, estratificados – de maneira a convergir (consistência) artificialmente e naturalmente: um agenciamento, nesse sentido, é uma verdadeira invenção. (DELEUZE e GUATTARI, 2012: 94)
8 Por signos maquinímicos consideramos, a partir de Deleuze e Guattari, signos potentes, capazes de
produzir novas condições e realidades e/ou transformar o que já existe. São formados por diversos elementos, ritmos e ligações internas. São resistentes à ação externa e podem estar a serviço de diferentes organismos, de acordo com a relação existente entre os sujeitos e sua capacidade de resistir, criar novos agenciamentos e desterritorializar-se.
33
resultam da operação, ora a tornam possível [...] O phylum maquinímico é a materialidade, natural ou artificial, e os dois ao mesmo tempo, a matéria em movimento, em fluxo, em variação, como portadora de singularidadese traços de expressão. [...] Essa matéria fluxo só pode ser seguida. O phylum maquinímico passa por todos os agenciamentos; nada é mais desterritorializado que a matéria em movimento. [...] Mas, no outro lado, os agenciamentos sedentários e os aparelhos de Estado operam uma captura do phylum, tomam os traços de expressão numa forma ou num código. [...] (DELEUZE e GUATTARI, 2012: 96, 97, 106 e 107)
A partir deste entendimento, fortalecendo-se internamente através da
imposição do seu poder e agenciamento sobre a sociedade, o Estado mistifica a sua
atuação através de um processo de desterritorialização, conferindo novas características
para o território – ou para o espaço social, que se encontra sob seu domínio – de acordo
com seus desejos e intenções. Não sendo impedido pela força da sociedade através da
sua organização (outro agenciamento maquinímico), as demandas sociais são ignoradas
e suas ações servem exclusivamente ao capital.
Para Deleuze o capitalismo triunfa justamente pela ‘forma-Estado’, não pela
‘forma-Cidade’. Ele também busca definir as formações sociais por ‘processos
maquinímicos’ e não por modos de produção. Neste sentido, a formações sociais são
configuradas como estruturas de potência, não objetos de dominação pelo Estado e pelo
capital. O autor afirma que
as sociedades com Estado se definem por aparelhos de captura; as sociedades urbanas, por instrumentos de polarização; as sociedades nômades, por máquinas de guerra; as organizações internacionais, ou antes, ecumênicas, se definem enfim pelo englobamento de formações sociais heterogêneas. (DELEUZE e GUATTARI, 2012: 133)
Esta relação de poder e controle é assumida pelos diferentes atores envolvidos
– sujeitos coletivos, Estado e capital – na medida em que suas necessidades não se
percebem atendidas ou em condições de manutenção. É um movimento cíclico onde as
peças percorrem todo o espaço, mas, frequentemente, os lugares de poder são ocupados
mais vezes pela mesma figura. Daí a existência de uma linha muito tênue entre os
interesses do capital, o controle do Estado e a garantia de direitos.
Assim, cabe à desterritorialização de Estado moderar a desterritorialização superior do capital e fornecer a este reterritorializações compensatórias. Mais geralmente, independente desse exemplo extremo, devemos levar em conta uma
34
determinação “materialista” do Estado moderno ou do Estado-nação: um grupo de produtores em que trabalho e capital circulam livremente, ou seja, em que a homogeneidade e a concorrência do capital se efetuam em princípio sem obstáculos exteriores. O capitalismo sempre teve necessidade de uma nova força e um novo direito dos Estados para se efetuar, tanto no nível do fluxo de trabalho nu, quanto no nível do fluxo de capital independente. (DELEUZE E GUATTARI, 2012: 165)
Independente da formação do Estado, este não é capaz de se omitir das
relações com o capital, inclusive pelo fato de muitas vezes ele mesmo ocupar espaços de
produção. Deleuze (2012: 167) fala da servidão dos homens como peças de uma
máquina, onde tem-se a substituição de uma “sujeição maquinímica por uma sujeição
social” onde o homem não somente se torna ferramenta, como é submetido a ela, o que
torna o capitalismo uma “empresa mundial de subjetivação”.
Nesse contexto se manifestam as relações de controle e de poder onde o
homem perde sua característica de trabalhador tornando-se objeto e o contrato de
trabalho aparece como processo dessa subjetivação, cujo resultado é a sujeição,
problema também aprofundado por Karl Marx.
Aron afirma que para Durkheim o problema social não é um problema
econômico, mas de socialização, o que nos remete novamente à ideia de afeto. Com
base na obra deste Filósofo, Sociólogo e Antropólogo Francês, Aron prossegue afirmando
que “trata-se de fazer do indivíduo um membro da coletividade, de inculcar-lhe o respeito
pelos imperativos, pelas obrigações e proibições sem as quais a vida coletiva se tornaria
impossível”. (2000: 346).
Neste sentido, trata-se de possibilitar a todos os sujeitos uma participação
social regida pelos mesmos princípios, no entanto, tais imperativos são manipulados pelo
capital e as regras tornam-se favoráveis a este, posto a fragilidade dos movimentos
sociais em enfrentar o Estado numa perspectiva de equidade.
E para que o indivíduo se aproprie dessa regulação social faz-se necessário
que o mesmo sinta-se parte da coletividade, este afeto de pertencimento que deve
acontecer num movimento de reciprocidade é fundamental para que as normas definidas
pelo grupo tenham sentido para este e sua participação seja possível na vida coletiva.
35
Durkheim, sobre sociedade e consciência coletiva – em obra intitulada
igualmente – reproduzida em estudos de Michel Lallement, afirma que “a sociedade não
compreende outras forças atuantes senão a dos indivíduos; somente os indivíduos,
unindo-se, formam um ser psíquico de espécie nova que, por conseguinte, tem sua
maneira própria de pensar e sentir.” (LALLEMENT, 2004: 232)
Esta afirmativa finalmente concorda com os elementos elucidados por Deleuze
e Guattari, Milton Santos, Gaston Bachelard e demais autores abordados ao longo deste
trabalho, ao reconhecer a potência da organização coletiva dos homens, bem como
assumir o surgimento de um novo referencial simbólico coletivo a partir da troca de
experiências, afetos e informações entre os sujeitos e sua transformação individual após
este processo. Também considera a consciência coletiva como formadora de sentido em
relações e espaços antagônicos.
Quanto ao Estado, Durkheim afirma que este “é, propriamente falando, o
conjunto dos corpos sociais, os únicos qualificados para falar e agir em nome da
sociedade”, (LALLEMENT, 2004: 215) o que o configura como um organismo
sobrecarregado devido o acúmulo de funções que assumiu sem condições ou capacidade
para fazê-lo. Sendo inviável exercê-las adequadamente, Durkheim o classifica como
invasor e impotente.
Consideramos ingênua esta afirmativa pelo fato de ignorar as forças sociais
antagônicas existentes entre Capitalismo, Estado e Sociedade, além do fato de que a sua
instituição configurada tal como é, nos dias de hoje, parece surgir como algo natural e
inevitável, além de justificar as ações equivocadas que desvirtuam sua ‘obrigação social’
de atuar em prol da sociedade o qual esta ‘destinado’ a representar.
Refletir a formação e atuação do Estado, dos territórios e espaços, nas suas
singularidades e multiplicidade de papéis, contradições e noções de poder, é fundamental
para identificar o lugar simbólico e físico da participação dos sujeitos na construção e na
transformação da cidade e das relações sociais.
Ignorar partes do processo é ignorar o poder de transformação existente na
diversidade de códigos cotidianos das redes, da interação e das práticas sociais. A
36
produção social não pode ser considerada somente do ponto de vista objetivo, mas
simbólico, também.
É preciso produzir novas percepções sobre a cidade substituindo o discurso da
falta pela valorização dos sujeitos políticos que integram e dão vida ao espaço social
através do afeto, da crítica e da cooperação, vislumbrando a transformação do espaço
excludente em espaço de múltiplas centralidades. É possível refletir a produção de outras
cidades a partir da potência existente na sociedade civil e nos movimentos sociais.
No próximo capítulo buscaremos oferecer elementos para refletir o movimento
de pessoas com deficiência dentro da conjuntura desvendada neste capítulo, a fim de
analisar e propor a produção de outros espaços possíveis, que sejam, de fato,
construídos coletivamente pela sociedade.
37
2 PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E ORGANIZAÇÃO BIOPOLÍTICA: O
PODER DO MOVIMENTO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE OUTROS
ESPAÇOS POSSÍVEIS
No primeiro capítulo construímos bases para o entendimento a respeito da
formação social do espaço, das forças antagônicas e estruturantes que o compõem, bem
como das relações construídas e modificadas pelo homem através de sua interação com
seus pares e com a natureza.
A partir de agora, propomos a reflexão sobre a organização coletiva dos
sujeitos através do que conhecemos por Movimentos Sociais, neste caso,
especificamente, o movimento de pessoas com deficiência, a partir do seu entendimento
enquanto potência capaz de transformar a cidade em um lugar de possibilidades, de
liberdade e de múltiplas singularidades.
Deleuze e Guattari (2012) continuarão fundamentando as abordagens a seguir,
através de novos conceitos, sobretudo o de ‘máquina de guerra’.
Antonio Negri e Michel Hardt, filósofos e ativistas políticos, também serão
utilizados devido à importância de suas obras na contemporaneidade, cujos elementos
contribuem singularmente para a visibilidade da organização política dos sujeitos como
instrumento capaz de mobilizar as estruturas sociais e construir uma sociedade
globalmente democrática.
Eucenir Fredini Rocha, Terapeuta Ocupacional atuante na área de atenção à
pessoa com deficiência e pesquisadora na USP, nos apoiará no intuito de abordar
questões relativas ao corpo e aos modelos de serviços de assistência e saúde.
38
2.1 Movimento de Pessoas com Deficiência no Brasil – elementos históricos,
políticos e sociais (Breves apontamentos)
O interesse central deste capítulo consiste na problematização do movimento
social das pessoas com deficiência e não do seu histórico. Desejamos entendê-lo em sua
organização na contemporaneidade e na reflexão – a partir da utilização de diferentes
conceitos filosóficos e sociológicos criados por estudiosos ativistas sociais – sobre as
possibilidades de uma reorientação geral na intenção de tornar-se potência capaz de
transformar o espaço socialmente ocupado pela pessoa com deficiência nos dias atuais.
Nesse sentido, apresentaremos breves apontamentos que representam – para
esta reflexão – a essência do desenvolvimento do movimento de pessoas com deficiência
no país, necessários à discussão sobre a formação de novos espaços possíveis. O que
não representa, de forma alguma, a negação da importância de cada intervenção e
conquista alcançada pelo mesmo ao longo de sua trajetória.
Antes de iniciar, cumpre ressaltar que, quando falamos em movimento(s) de
pessoas com deficiência, nos reportamos a algumas categorias diferentes:
1- No sentido stricto-sensu, falamos em ‘Movimento de Pessoas com Deficiência’, no
singular. O que se refere a um movimento maior que possui múltiplas centralidades
(luta por direitos, vida independente, cidade para todos, etc.) ou movimentos
menores: movimento de surdos, de cegos, de pessoas com deficiência física,
intelectual ou múltipla. Estamos falando na totalidade. De todas as organizações de
pessoas com deficiência existentes no país.
2- No sentido lato-sensu, referimo-nos à ‘Movimentos de Pessoas com Deficiência’
considerando que este movimento maior se orientou em diferentes perspectivas:
luta por direitos; luta pela vida independente e; luta por uma cidade para todos
(utilizaremos estes por considerá-los os principais nesta categoria), que contempla
acessibilidade arquitetônica e urbanística, produtos, serviços e participação social.
Estas perspectivas são consideradas pelos seus integrantes como outros
movimentos sociais, mas a palavra movimento, nesse caso, diz respeito muito mais
39
a uma orientação dentro do espaço político, ou seja, o que vem a ser discutido no
seu interior, as temáticas pertinentes. Neste caso, considerar-se-á: Movimento de
Vida Independente; Movimento dos Direitos das Pessoas com Deficiência;
Movimento Cidade para Todos.
2.1- Neste mesmo sentido nos referimos ainda a um movimento social que comporta
diferentes singularidades, característica que levou seus integrantes a se
organizarem em subgrupos por tipo de deficiência9. Tal mobilização ocorreu com o
objetivo de identificar as características e demandas relacionadas aos diferentes
9 O Decreto 5.296 de 02 de Dezembro de 2004, que regulamenta a Lei 10.098 de 08 de Novembro de 2000,
que classifica pessoa com mobilidade reduzida aquela que, não se enquadrando no conceito de pessoa com deficiência, tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se permanente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção e, Pessoa com Deficiência, como aquela que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadre nas seguintes categorias:
a)deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
b)deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;
c)deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60 graus; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;
d)deficiência intelectual: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
1. comunicação;
2. cuidado pessoal;
3. habilidades sociais;
4. utilização dos recursos da comunidade;
5. saúde e segurança;
6. habilidades acadêmicas;
7. lazer; e
8. trabalho
e)deficiência múltipla: associação de duas ou mais deficiências;
40
tipos de deficiência, bem como discutir os recursos necessários para atendê-las nas
suas especificidades. Nesse contexto são considerados ainda os movimentos de
pessoas surdas; de pessoas cegas; de pessoas com deficiência física e; de pessoas
com deficiência intelectual e/ou múltipla.
3- Por fim, precisamos alertar ainda para o fato de que a noção de
“movimentos sociais’ de pessoas com deficiência também se estende em
número, pois eles se multiplicam em regiões, Estados e até mesmo diferentes
cidades do país. Logo, é comum ouvir falar no movimento X do Rio de Janeiro,
por exemplo. Mas quando nos referirmos ao ‘movimento’ de pessoas com
deficiência, estaremos sempre falando daquele que comporta todas essas
pluralidades, o primeiro destacado.
Podemos sinalizar o surgimento de um movimento internacional de pessoas
com deficiência no início da década de 50, a partir dos estímulos provocados ao redor do
globo com a promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1848. No
entanto, é apenas na década de 70 que estes sujeitos protagonizam as arenas de luta no
Brasil.
Mesmo antes desta conquista, já existia alguma organização pontual
direcionada ao âmbito da saúde, a partir dos soldados feridos que retornaram das guerras
com os mais diversos tipos de deficiência. Pois o primeiro momento de preocupação com
o que fazer com as pessoas com deficiência é datada historicamente do período pós-
guerra, com o retorno dos respectivos combatentes aos países de origem.
Contudo, os direitos existentes na legislação vigente até então, foram
considerados nos planos de ação do Estado, somente a partir da Constituição da
República Federativa do Brasil, em 1988, período em que o movimento já estava
solidificado politicamente e protagonizou, junto a outros movimentos sociais, as
intervenções coletivas em prol da ampliação e garantia de direitos.
A partir de então, os sujeitos com deficiência tornaram-se visíveis à sociedade
e passaram a dispor de um número maior de mecanismos para reivindicar seus direitos à
41
Educação, Saúde, Transporte, dentre outros. Nos anos subsequentes foram criados
conselhos de direito, nas três esferas de governo, bem como secretarias especiais em
diversas regiões do país.
A organização política do movimento ganhou força a partir da década de 70,
cujas principais reivindicações se orientaram em torno da saúde, da educação, da
acessibilidade em espaços arquitetônicos e urbanísticos bem como no fornecimento de
tecnologias capazes de minimizar os efeitos da funcionalidade prejudicada em virtude das
barreiras existentes no meio ambiente.
O período histórico em questão – pós 64 – também representa um divisor de
águas para outros movimentos sociais, momento em que os diversos segmentos ocupam
o cenário político para reivindicar direitos. Cumpre ressaltar a proximidade com o fim do
regime militar, marco principal de estímulo às camadas populares em prol da luta por um
processo de redemocratização que se estendeu até a década de 80.
Nos anos 50 temos a emergência de instituições específicas de atendimento à
pessoa com deficiência, que vão se debruçar sobre as demandas reivindicadas
anteriormente. O Estado do Rio de Janeiro é o primeiro local onde se forma uma
instituição de atendimento com esta finalidade. Tão logo, os demais Estados se
organizaram nesse sentido, conquista ampliada de acordo com a movimentação do
segmento nos diferentes territórios.
Neste caso, falamos especificamente de instituições na área de atenção a
saúde da pessoa com deficiência, pois desde o império grandes instituições para este fins
de acolhimento institucional e educação foram criadas, como o Instituto Nacional de
Educação de Surdos e Instituto Benjamin Constant. Temos ainda o Hospital Pedro II,
construído no mesmo período, que destinava-se ao atendimento hoje denominado saúde
mental.
Ao longo dos anos a deficiência foi conceituada em diferentes perspectivas:
deficiências físicas, auditivas, visuais, intelectuais e/ou múltiplas. Sujeitos com essas
deficiências foram os responsáveis pela formação do movimento de pessoas com
deficiência, juntamente com familiares, profissionais de saúde e outros. Pessoas com
hanseníase já fizeram parte no início do seu processo de formação, e hoje, pessoas com
42
bolsas de ostomia partilham políticas públicas comuns às pessoas com deficiência,
encontrando-se contempladas na legislação específica.
Os principais direcionamentos do movimento ao longo dos últimos anos – que
permanecem nos cenários de discussão atuais, – além da delimitação e definição de
conceitos sobre os diferentes tipos de deficiência é o rompimento dos modelos de
atenção básica e especial. As diversas intervenções do Estado através de políticas e
serviços públicos foram se metamorfoseando na medida em que a deficiência passou a
ser vista de diferentes formas pela sociedade.
Eucenir Fredini Rocha, em seu livro intitulado “Reabilitação de Pessoas com
Deficiência” (2006) aponta as concepções: ortopédica, fisiátrica, baseada na comunidade
e a de vida independente como os principais modelos de intervenção na área de saúde.
Isto se deve ao longo período em que a pessoa com deficiência foi concebida
somente a partir da concepção médica, tendo os demais aspectos que lhe tornam um
sujeito social ignorados pela medicina, o que contribuiu com uma visão secundária da
pessoa, tornando o sujeito um objeto de análise focado na sua limitação, não nas suas
pontencialidades.
Neste contexto os modelos de atenção à saúde, inicialmente, buscavam corrigir
as ‘imperfeições’ do corpo com deficiência, objetivando restabelecer, na medida do
possível, as funções biológicas compatíveis àquelas de um corpo ‘normal’.
Contudo, a partir de novas concepções introduzidas nos anos 90, o Modelo
médico começa a ser confrontando com o modelo de reabilitação baseada na
comunidade. Este modelo tem como princípios o conhecimento do espaço social do qual
a pessoa com deficiência faz parte, no sentido de utilizar-se dos recursos disponíveis na
comunidade na intervenção terapêutica em reabilitação.
Com a reabilitação baseada na comunidade - RBC, pela primeira vez, o
espaço social ocupado pelo sujeito passa a ser considerado no processo, e as
intervenções – que agora tornam-se interdisciplinares – buscam compreender a pessoa
com deficiência de forma mais abrangente.
43
Neste modelo, além da elaboração de recursos na unidade de saúde, outras
alternativas surgem dentro do próprio espaço comunitário, expandindo a concepção de
necessidade. Isto representa autonomia e possibilidades por um lado, mas por outro,
aponta para a precarização na oferta de recursos pelo poder público, já que muitas
comunidades dispõem de parcos materiais que muitas vezes não podem ser utilizados
com essa finalidade. Nas unidades de atenção básica à saúde também não há
disponibilidade de materiais de maior complexidade para utilização nesta perspectiva,
logo, este modelo é visto de modo divergente entre os profissionais de saúde.
A concepção de Vida independente veio explorar a utilização de recursos que
viabilizam o máximo possível a independência da pessoa com deficiência nos diversos
ambientes, contando com a denominada tecnologia assistiva10 para minimizar as
dificuldades impostas pela limitação do corpo e das barreiras nos diversos espaços.
O debate no tempo presente defende a adoção de um modelo de atenção
biopsicossocial, que considera o sujeito na sua totalidade, oferecendo todos os recursos
necessários à sua reabilitação, acesso aos serviços e políticas públicas necessárias e
participação na vida social. Daí a importância da acessibilidade nos diversos setores da
máquina pública (saúde, educação e trabalho, assistência social, cultura, lazer e esporte,
etc.) bem como a necessidade da intersetorialidade para promoção desse acesso.
Um dos maiores desafios para consolidação de um movimento social de
pessoas com deficiência no seu período de emergência deu-se pela diversidade de
deficiências existentes e da necessidade de diferentes recursos para atender suas
especificidades. Embora o amadurecimento político do grupo tenha contribuído com a
criação de soluções coletivas nesse sentido, este é um desafio que se mantém presente
na contemporaneidade, facilmente perceptível nos espaços de participação e controle
social.
Este desafio de integração das singularidades existentes no seio do movimento
apresenta-se, ao nosso entendimento, como principal fator de enfraquecimento político e
10
Tecnologia Assistiva ou Ajudas Técnicas, conforme sinalizado na legislação consiste em “produtos, instrumentos, equipamentos ou tecnologias adapatados ou especialmente projetados para melhorar a funcionalidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, favorecendo a autonomia pessoal, total ou assistida. (BRASIL, 2004)
44
social das pessoas com deficiência ao longo da história. Pois interfere no seu
conhecimento em quanto um corpo social composto por diferentes membros e funções,
além de refletir seu posicionamento coletivo diante dos espaços de reivindicação. No
entanto, é importante destacar que outros movimentos sociais, sobretudo no país, se
organizaram de modo semelhante e também apresentam esta visão polarizada sobre
seus membros, tornando-se ora mais potentes, ora mais frágeis, ao longo da história.
Estas dificuldades não impediram a conquista de consideráveis avanços nos
campos político, legal e social. A contribuição de profissionais que formam a rede de
atenção à pessoa com deficiência, também foi fundamental neste processo. Os ganhos
vão desde a criação de um profundo conteúdo legal versando sobre diferentes áreas do
direito até a mudança na visão socialmente construída ao longo dos anos sobre
deficiência, que envolve muitos mitos, preconceitos e incertezas.
Nesse sentido, entendemos que há um movimento importante em desvincular a deficiência de estereótipos e preconceitos tão presentes na história desse conceito, traduzido por uma concepção erigida na positividade do conceito de saúde e de suas alterações, enquanto uma produção social, histórica, em um tempo e um espaço específico onde os indivíduos vivem. (ROCHA, 2006: 25)
Romper com os estigmas construídos e fortalecidos ao longo de tantos anos
não é tarefa fácil. Caminhar nesta direção significa se esforçar para entender a pessoa
com deficiência como um ser social que por esta característica se relaciona com
ambientes, pessoas e estruturas diversas. Representa ainda a necessidade de entender o
sentido da deficiência para o sujeito, sua família, comunidade e para a sociedade de
modo geral. É preciso refletir o lugar que este sujeito ocupa nestas relações diversas.
Trata-se da necessidade de deslocar o foco da intervenção de um corpo patológico e individual para um corpo relacional, singular em sua constituição, que prevê estar em uma determinada comunidade, cultural e historicamente contextualizada, com necessidades e possibilidades específicas. (ROCHA, 2006: 130)
Se as instituições de atendimento às pessoas com deficiência tiveram papel
fundamental na formação das bases para a legitimidade do movimento, por outro lado,
também contribuíram para a visibilidade desses sujeitos não como fruto e membro de
45
uma coletividade formada por diferentes espaços, mas como integrantes somente dos
lugares destinados às pessoas com as mesmas características ‘física’, ‘intelectual’ ou
‘sensorial’ que as suas.
As organizações associativistas criadas partir do século XX, eram formadas
pelas pessoas com deficiência, seus familiares e profissionais. Muitas dessas
organizações formam, hoje, a maior parte dos centros de reabilitação e unidades de
referência em educação e assistência social para o segmento, já que a formação da rede
de serviços públicos no país é composta, principalmente, por instituições do terceiro setor.
Dentro do movimento de pessoas com deficiência foram formados os
movimentos menores – movimentos de cegos, de surdos, de pessoas com deficiência
intelectual, de pessoas com deficiência física. Estas formações contribuíram para o
fortalecimento individual dos subgrupos no sentido de construir mapeamento de
demandas e planejamento de ações específicas. Possibilitou a formação de uma
consciência política e coletiva na sua totalidade, contribuindo com a organização e
fortalecimento do movimento de modo geral.
No entanto, cumpre ressaltar também as singularidades existentes dentro
desses subgrupos, haja vista a diversidade de níveis de perda auditiva, de déficits visuais
e cognitivos e de lesões de natureza física. Tudo isso torna seus espaços individuais de
discussão fortes zonas de conflito, não necessariamente saudáveis e respeitosos em
relação à pluralidade.
Além disso, essa pluralidade apresenta-se como desafio na garantia da
acessibilidade, já que culturalmente existe a ideia de que, disponibilizando algum recurso
especifico para determinada categoria de deficiência, estará atendendo à toda diversidade
existente nesse grupo. No âmbito da acessibilidade cultural esta deve ser uma grande
preocupação, pois negar essa diversidade é negar direitos e cultivar espaços excludentes
e discriminatórios.
Ainda assim, esta movimentação interna possibilitou muitas conquistas para o
grupo, formando lideranças que futuramente passaram a ocupar importantes posições na
sociedade civil organizada e no poder público executivo e legislativo. As pessoas com
46
deficiência se fortaleceram coletivamente ao se fazerem representar por seus pares
diante dos diversos espaços políticos.
A partir de então, o próprio movimento de pessoas com deficiência se
desdobrou em diferentes frentes, podemos sinalizar como as principais o movimento de
direitos, o movimento de vida independente e o movimento cidade para todos, que juntos
lutam em prol das prerrogativas presentes no modelo biopsicossocial supracitado.
É fundamental ressaltar a importância das conferências11 realizadas a partir de
2005, responsáveis pelo debate entre governo e sociedade civil e pela criação de
propostas para composição do plano nacional dos direitos das pessoas com deficiência
para a gestão seguinte. Em 2012 foi realizada a terceira edição, o que demonstra o
quanto se tem a caminhar em prol da garantia dos direitos já conquistados.
A partir de 2004 importantes conquistas renovaram as forças do movimento de
pessoas com deficiência, quando documentos legais foram criados e outros
regulamentados, versando sobre diferentes assuntos, além da Ratificação da Convenção
sobre os direitos das pessoas com deficiência, que contempla e sistematiza todos os
objetos de ação sinalizados na legislação vigente. Neste mesmo período a nomenclatura
também foi modificada. O termo ‘pessoa com deficiência’ passou a ser utilizado
justamente para estimular a sociedade a perceber antes de qualquer coisa o sujeito, não
a característica ou limitação existente em virtude da deficiência
Em 2010 foi realizado o Censo Demográfico que descreveu uma nova
realidade em números, sobre a situação das pessoas com deficiência em todas as
regiões do país. Foi divulgado o quantitativo de 45.606.048 brasileiros com algum tipo de
deficiência, o que representa 23,9% da população. (IBGE, 2010) Esses resultados
vislumbram o rompimento com a ideia de minorias, a qual o ‘segmento’ de pessoas com
11
As conferências são espaços de discussão oficiais, garantidos através da Constituição de 1988 e das legislações específicas de cada área, onde sociedade civil e governo discutem paritariamente a implementação de políticas públicas, neste caso, as políticas de atenção à pessoa com deficiência, onde é analisado o panorama atual e são criadas propostas para orientação do plano de gestão seguinte. As conferências acontecem nos níveis municipal, estadual e nacional. O MDS afirma que as conferências compõem as estratégias de controle social; este “implica o planejamento, acompanhamento, avaliação e fiscalização da oferta dos programas, serviços e benefícios socioassistenciais.” (MDS, 2014)
47
deficiência é associado, além de alertar sobre a necessidade de melhor organização do
movimento social e do poder público para o estabelecimento de políticas necessárias.
Em 2011, foi lançado o Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência – Viver sem Limite, que comporta as ações planejadas pelo governo para os
próximos anos de gestão. O ‘plano’ conta com itens que dizem respeito à Educação,
Inclusão Social, Acessibilidade e Atenção à Saúde. Seu conteúdo torna-se limitado ou
inexistente para muitas áreas da gestão pública haja vista a própria organização do
movimento social que se mantém basicamente em torno da reivindicação pelas matérias
de mesma natureza.
A Política Cultural, por exemplo, não foi sinalizada no documento. Por sua vez,
os planos de cultura nas três esferas de governo também não contemplam a
acessibilidade cultural e as ações de incentivo à produção artística da pessoa com
deficiência. O Plano Nacional de Cultura aponta sua existência, mas não desenvolve.
O Brasil ainda se encontra numa discussão extremamente primária, que é a de
acessibilidade, no sentido stricto-senso. As pessoas com deficiência, na conjuntura atual,
ainda não são atendidas nas suas necessidades básicas de sobrevivência, o que resulta
numa difícil mobilização no sentido de lutar pela ampliação do acesso negado em outras
áreas ou mesmo em percebê-los enquanto um direito.
Na própria política cultural percebemos o grande atraso em relação ao acesso
da população de modo geral, comprovado pela necessidade de discutir e sinalizar através
de legislações e debates diversos a democratização da cultura.
Assim como a maior parte das classes sociais desfavorecidas, as pessoas com
deficiência, na sua maioria, não contam com condições sociais favoráveis ao
desenvolvimento do afeto e do sentimento de pertencimento aos equipamentos culturais.
Isto também contribui com a não ocupação desses espaços, cujas estruturas têm, na sua
essência, um preparo especificamente direcionado ao atendimento das elites. A elitização
se estende ainda aos editais de fomento, onde sujeitos individuais e grupos artístico-
culturais de base, dificilmente têm acesso aos incentivos financeiros que compõem o
sistema de cultura.
48
Tudo isso configura o Brasil como um país de direitos, não de justiça, já que o
maior desafio da atualidade concentra-se na necessidade de garantir a execução da
legislação através das práticas sociais e a implantação e implementação de políticas
públicas correspondentes ao que já foi estabelecido pela lei. É preciso pensar a
elaboração de tais políticas dentro do contexto social e urbano contemporâneos.
Historicamente o movimento de pessoas com deficiência não se apropriou dos
demais espaços de discussão e controle social, como os conselhos, conferências,
congressos, etc. – de cultura, educação, saúde mental, cidades, mulheres, juventude,
negros, LGBT, sem terra, dentre outros. Não há diálogo com os demais movimentos
sociais. Não existe um movimento de reivindicação ou penetração nesses espaços
plurais. Não há preocupação com a transversalização dos debates, o que resulta na
omissão do poder público em assuntos primordiais que dizem respeito à participação
legítima da pessoa com deficiência nos diferentes espaços e estruturas das cidades.
Neste contexto, percebemos que a organização política das pessoas com
deficiência é de data recente e que seu movimento encontra-se, na maior parte do
processo, segmentado e enfraquecido no território social e político.
Isto nos leva a fortalecer a hipótese central desta pesquisa:
A pessoa com deficiência não participou do processo de produção no período
de implantação do sistema capitalista, não ocupou os espaços públicos, não participou da
construção coletiva das cidades e não se apropriou do espaço público como outros
movimentos sociais.
Isto interferiu não somente na conscientização da sociedade a respeito de sua
existência e no surgimento de mitos e estigmas sobre suas capacidades, mas também na
própria formação dos afetos entre o espaço e os demais sujeitos socais.
Deste modo, cidade não se apresenta enquanto espaço capaz de atender toda
multiplicidade de singularidades presente neste grupo, não somente do ponto de vista
arquitetônico e urbanístico, mas da própria consciência coletiva e ainda da relação de
afeto que não teve lugar ou momento para ser construída.
49
A situação torna-se mais grave ainda se considerarmos que as primeiras
instituições de atendimento à pessoa com deficiência no Brasil funcionavam numa
perspectiva de abrigamento. O que nos remete a uma grande fragilidade também nas
suas relações de natureza privada, na sua consciência de lugar e referência no mundo.
Tudo isso é potencializado pelo fato da pessoa com deficiência ter sempre um
lugar particular para estudar, cuidar de sua saúde, realizar outros tipos de atividade. A
ideia do atendimento especial ou especializado contribuiu ainda mais com essa ausência
espacial no sentido físico e simbólico de participação.
Deste modo, resta-nos questionar se é possível produzir outra cidade (e outras
percepções sobre a cidade), outras relações sociais e outras noções de lugar e
participação. Será possível romper os padrões de massificação e homogeneização
produzidos pelo sistema econômico e social ao longo de tantos anos? Esta talvez seja a
questão maior desta pesquisa que nos moveu a construir estas problematizações.
Um movimento social é formado por redes diversas que se constroem e
consolidam através de lutas diárias e que se modificam dentro dos processos de
mudança no contexto urbano. Tem como objeto central o enfrentamento aos poderes
constituídos pelo capital e pelo Estado. Motivo pelo qual defendemos a necessidade de
uma reestruturação no seio do movimento de pessoas com deficiência e acreditamos no
seu potencial a partir da incorporação de novos elementos ainda não pensados por esses
sujeitos. A seguir, buscaremos refletir esses mecanismos e possibilidades a partir das
obras de autores da filosofia, sociologia e antropologia e sugerir a criação de novos
sentidos e percepções sobre o poder constituinte formantes da essência e do espírito dos
movimentos sociais.
2.2 - Biopolitica, Multidão e Máquina de Guerra: O movimento de Pessoas com
Deficiência repensado como Potência
Optamos por uma abordagem e reflexão críticas a respeito da organização e
reestruturação do movimento de pessoas com deficiência, a partir dos conceitos de
50
‘biopoder’, ‘biopolítica’, ‘multidão’, e ‘máquina de guerra’ elucidados nas obras de Negri,
Hardt, Deleuze, Guattari e Foucault devido à multiplicidade de sentidos e noções de
potência que buscam legitimar a força existente nas múltiplas singularidades que
compõem a essência da organização política dos sujeitos, pelos movimentos sociais.
Embora estes conceitos estejam intimamente ligados e direcionados ao debate
econômico-político em relação ao espaço ocupado pela produção e pelo trabalho na
contemporaneidade, podemos transportá-los para este universo por tornarem-se bastante
pertinentes à reflexão proposta sobre este objeto de estudo.
O conceito de Multidão em Antonio Negri e Michael Hardt (2005) diz respeito a
um projeto que além de vislumbrar uma sociedade mais justa, livre, igualitária e
globalmente democrática, propõe meios para torná-la tangível. Ela é representada pela
resistência dos homens em prol da formação de um corpo social e politicamente potente,
capaz de se compor das diferentes configurações da produção social, recusando qualquer
forma de domínio e submissão.
Os autores também propõem a interpretação da multidão como uma ‘rede
aberta e em expansão’, onde as singularidades dos sujeitos são expressas sem
discriminação e preconceito, proporcionando modos de vida e trabalho em comum, onde
a comunicação e a cooperação representam potência interna capaz de transformar o
espaço social do qual fazem parte.
As ações que possibilitam tal potência a se constituir e se estabelecer de forma
democrática representam a essência da produção biopolítica, cujos objetivos apontam
para a transformação do Estado em um lugar capaz de apreender suas multiplicidades e
atendê-las através de ações compatíveis com sua essência plural e libertária.
A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares. (HARDT e NEGRI, 2005:12)
Por sua característica múltipla – que se representa na potência da sua
capacidade de comunicação e ação conjunta entre homens singulares – a multidão se
51
diferencia dos conceitos de povo, massas e classes trabalhadora. O povo é considerado
uno por apresentar uma identidade única na sua concepção, por ser um corpo social. As
massas, por sua vez, são compostas por diferentes espécies que não representam
pluralidades ou diferentes identidades sociais, formando um ‘aglomerado’, posto a
negação e recusa das diferenças entre os sujeitos que a formam.
Na multidão, as diferenças sociais mantém-se diferentes, a multidão é multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferente. (HARDT e NEGRI, 2005:13)
É justamente a partir dessas diferenças internas que caracterizam a multidão,
que os sujeitos devem descobrir, coletivamente, um modo de comunicação e organização
comum que permita sua ação conjunta. Isso representa o conceito de biopolítica, ou seja,
a produção da vida em comum, que se cria através das singularidades cooperativas que
dialogam numa relação de respeito mútuo e democracia. Isto possibilita a criação de
estratégias de resistência e enfrentamento do poder constituinte do aparelho de Estado.
Neste contexto, a multidão dá forma a um novo ser onde seu poder político se expressa a
partir do desenvolvimento da capacidade de decidir sobre si mesma.
Ao expressarem sua singularidade num patamar de igualdade com os demais
sujeitos, os homens criam condições de lutar pelo que desejam. Isto somente se torna
viável através da comunicação e da democracia interna da multidão.
É neste sentido que propomos a organização interna do movimento de pessoas
com deficiência. A partir da sua transformação num corpo social capaz de dialogar e de
construir ações coletivamente, onde suas diferenças não se tornem um impeditivo para
isso, mas uma potência. É preciso construir um lugar, uma comunicação e uma ação
comum que possibilitem a manutenção da sua produção e movimento. O movimento
social precisar torna-se sinônimo de poder e revolução, pois essas características já são
parte formadora de sua essência.
O movimento de pessoas com deficiência enquanto multidão apresenta-se
através de uma infinitude de corpos singulares e potentes em si. Suas capacidades não
52
podem ser definidas pela forma desses corpos, tampouco pela imagem externa que
outras representações possam criar a respeito. Interagindo entre si esses corpos se
transformam dando forma a um ‘outro’ espírito que produz subjetividades. Através da luta
e do enfrentamento tornam-se potências ainda maiores e continuam em permanente
transformação, não podendo ser capturados pelo poder do Estado.
Firmes nos seus objetivos e fortalecidos internamente, não são capazes de
aceitar medidas paliativas em prol de uma falsa ideia de garantia de direitos e respeito à
diversidade. Sua força se transforma em poder e é capaz de penetrar os diversos
espaços, promovendo o fortalecimento da sua essência democrática e plural em todo o
território. Sua singularidade não pode ser reduzida à ‘tipos’ de deficiência. Não é capaz de
se dividir em segmentos, não pode ser mensurada ou limitada.
Guattari acrescenta outros elementos para pensar o poder dos movimentos
sociais em prol da transformação do espaço. Ele aponta a necessidade de “inserção em
níveis de relações de força local, de fazer e desfazer alianças, etc.” (GUATTARI e
ROLNIK, 1996: 46) O que mais uma vez nos remete à necessidade de diálogo com outros
movimentos sociais e com as demais estruturas que constituem o espaço social e político
da cidade.
O autor nos alerta também para a noção de identidade. Ele afirma que trata-se
de “um conceito de referenciação de circunscrição da realidade a quadros de referência” o
que na psicanálise é conhecido como processo de identificação. (1996: 68) Ele aponta
ainda para uma associação da ideia de identidade cultural a uma ação política,
considerando este conceito reacionário, na medida em que homogeneíza a multiplicidade
de singularidades existente numa determinada cultura ou lugar, reafirmando seu “caráter
mercados capitalísticos.” (GUATTARI e ROLNIK, 1996: 70)
Como exemplo disso, cabe problematizar rapidamente a organização das
pessoas com deficiência auditiva no contexto social e político. A formação de uma
identidade e de uma cultura surdas, que se diferenciam das demais a partir do uso da
Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS como principal meio de comunicação, além de
causar fortes impactos sociais na vida daqueles sujeitos que apresentam o mesmo grau
de perda auditiva, mas optaram por outras formas de educação, comunicação e processo
53
de reabilitação, também contribui com a negação do reconhecimento destes (surdos
oralizados) enquanto pessoas com deficiência, o que interfere diretamente no seu acesso
e garantia aos direitos. Entende-se por surdos oralizados os sujeitos com perda autitiva
que optam pela comunicação através da fala ou comunicação oral.
Em contrapartida a própria ‘comunidade surda’ divide opiniões a respeito
de se considerarem pessoas com deficiência ou não, pois alguns afirmam tão
somente pertencerem a outra cultura. Desta forma, percebemos que a negação
das diferenças também foi incorporada no seio dos movimentos sociais,
contribuindo para a polarização e enfraquecimento de sua organização política.
A ideia de subjetivação coletiva singular não se refere, forçosamente, a uma alma imanente ou transcendente, que seria a alma de um grupo social: todas essas concepções que referem os fenômenos subjetivos a identidades culturais, em minha opinião, tem sempre um fundinho de etnocentrismo. Uma subjetividade pode estar envolvida em processos de singularização – [...] – sem que se tenha, por isso, que se projetar sobre essa produção de subjetividade a referência de uma identidade cultural. (GUATTARI e ROLNIK, 1996: 71)
Daí a necessidade de discutir internamente o modo como os diversos
sujeitos que compõem um movimento social se identificam diante do espaço e qual
a sua ideia do todo sobre o mesmo território. Esse diálogo é necessário ao
fortalecimento dos movimentos sociais e pode evitar implicações políticas e
micropolíticas desastrosas (73), conforme aponta Guattari. O autor ainda reforça
para o risco desses movimentos classificados em ‘minorias’, serem suscetíveis à
apropriação pelas massas e diminuírem sua potência de diferenciação e criação e,
consequentemente, de resistência.
Essa diversidade de aspectos a serem considerados nos leva a entender
que a formação de uma multidão envolve processos que vão da singularidade à
subjetividade, se expressando como potência ao longo do caminho. A multidão não
se forma em instantes, e passa por um processo que se dá no universo biopolítico.
A ideia de uma formação biopolítica – fruto dessa troca onde as
singularidades interagem e transformam-se num produto novo, composto por
múltiplas centralidades – demonstra a característica produtiva da multidão. O plano
54
biopolítico produz subjetividades e a multidão fornece os meios de consolidação do
comum, ela constrói o terreno de comunicação e formação de redes. Daí seu
direcionamento enquanto poder constituinte capaz de romper com a soberania
reguladora das relações.
Podemos considerar que vivemos num território biopolítico, onde o
trabalho e a então denominada ‘luta de classes’ se fazem presentes em todas as
esferas, motivo pelo qual Negri considera a biopolítica como extensão dessa luta
de classes. Ele entende (e nós concordamos) o poder como potência que se
manifesta a partir de uma arena de lutas e das relações antagônicas de força que
se expressa no campo social, ele situa a cidade como poder constituinte, haja vista
sua capacidade de comportar diferentes conflitos sociais.
Para o autor, enquanto o biopoder se configura como algo transcendente
à sociedade, impondo suas regras e ordens através do Estado e do Capital,
representados pela tecnologia e pelo saber, disciplinando corpos, espaços e
relações, a produção biopolítica é força proveniente da sociedade, a partir da sua
capacidade de criar novas relações e espaços comuns entre os homens. Ele
sintetiza afirmando que o bloco do biopoder se representa pela “elite econômica e
pela direita social e política”. (2005: 22)
Embora estejamos utilizando a obra de Hardt e Negri, cumpre ressaltar
que estes autores apropriam-se dos conceitos de ‘biopoder’ e ‘biopolítica’, criados
por Michel Foucault, para desenvolver suas teorias à respeito das relações entre
sociedade, Estado e capital.
Destaca-se ainda que para Foucault, o termo biopolítica foi criado para
designar a transformação do poder entre o final do século XIX e o início do século
XX, devido a implementação de práticas disciplinares aplicadas para controlar os
indivíduos, sendo aplicada ao controle da coletividade no século XX. Neste caso,
ela surge como uma forma de regulamentação através do biopoder. O biopoder,
por sua vez, surge como uma tecnologia do poder utilizada para regulação dos
corpos através do Estado, cuja emergência se dá a partir da governabilidade.
Refere-se à ideia de um poder soberano. (DANNER, 2010)
55
Hardt e Negri explicam que a
produção biopolítica não só envolve a produção de bens materiais em sentido estritamente econômico como também afeta e produz todas as facetas da vida social, sejam econômicas, culturais ou políticas. Esta produção biopolítica e a expansão do comum que acarreta é um dos principais pilares em que se assenta hoje a possibilidade de democracia global. (HARDT e NEGRI, 2005:15)
Na conjuntura atual, defendemos a necessidade de pensar formas de
cooperação entre os sujeitos que compõem o movimento de pessoas com deficiência. Se
apesar da sua fragilidade e polarização interna foi possível alcançar conquistas, legitimá-
las através de ações compatíveis ao conteúdo legal exige um novo esforço de
conscientização sobre o poder existente na sua diversidade.
E é justamente a partir dessa multiplicidade de corpos e subjetividades que
será possível construir novos caminhos comuns, cujo destino seja uma cidade plural, livre
e democrática, potente nas suas múltiplas singularidades e firmes diante do biopoder.
O conceito de ‘máquina de guerra’, criado por Deleuze e Guattari, é pautado
sob a mesma essência de potência identificada no conceito de multidões. No entanto, ele
estabelece ligações diretas com o nomadismo para explicar a necessidade de movimento
e de compreensão do território, que surgem como mais um facilitador impeditivo de
captura pelo biopoder classificado em Foucault, já que a potência associada ao
movimento dificulta ou inviabiliza sua captura.
Os autores preocupam-se ainda em trabalhar a contextualização do emprego
do ‘número’ na organização do Estado e da sociedade, fazendo uma analogia aos grupos
conhecidos por ‘minorias’, afirmando que “tratar homens como números não é
forçosamente pior do que tratá-los como árvores que se talha”. Em contrapartida, também
sinaliza a composição aritmética a favor da máquina de guerra – onde podemos
considerar as próprias minorias – ao afirmar sua capacidade de produzir um “efeito de
imensidão graças à sua articulação fina, isto é, sua distribuição de heterogeneidade num
espaço livre.” (DELEUZE E GUATTARI, 2012: 71)
Ao tratar dos movimentos sociais, eles afirmam sua possibilidade de
configuração numa “máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça
56
um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento”.
(2012: 117) Em outros momentos também é apontada a necessidade de ‘descodificação’,
ou seja, de transformação interna, mudança de códigos que o definem, estratégias e
organização, para impedir sua captura pelo Estado, já que nesse caso não se trataria de
um fenômeno de evolução, mas de transferência, somente.
Eles concluem afirmando que o poder não se concentra na quantidade de
sujeitos. E que “máquinas de guerra se constituem contra os aparelhos que se apropriam
da máquina de guerra, e que fazem da guerra sua ocupação e seu objeto: elas exaltam
conexões em face da grande conjunção dos aparelhos de captura e dominação”
(DELEUZE E GUATTARI, 2012: 118) o que nos mostra que o conflito surge para o
movimento social como uma necessidade devido às condições sociais impostas pelas
estruturas dominantes, não havendo outra maneira de estabelecer condições favoráveis à
construção de espaços sociais democráticos e heterogêneos senão através do
enfrentamento.
Para Deleuze e Guattari os processos são encarados como potência. Em Hardt
e Negri, este mesmo processo é visto como exercício biopolítico, que também se
configura como potência.
Tanto a multidão quanto a máquina de guerra tem na sua heterogeneidade e
nas múltiplas singularidades um poder imensurável, que se potencializa na medida em
que se tornam capazes de dialogar internamente em prol de um direcionamento comum.
Isto representa poder, já que modifica as formas de vida e de organização entre os
sujeitos dando forma a outra dinâmica. A potência que constitui esse novo organismo é
capaz de transformar o espaço e as relações de dominação exercidas pelo estado e pelo
capital, que formam o que foi chamado de biopoder.
Essa transformação é oportunizada através da resistência e da autonomia da
multidão – ou da máquina de guerra – seu objetivo não consiste em destruir o sistema,
mas em transformá-lo, de modo que a essência da democracia, da pluralidade e das
singularidades seja o instrumento de poder legítimo de suas ações, se materializando
através de uma nova lógica pautada na liberdade e na igualdade, não no domínio e na
coerção.
57
Logo, podemos problematizar que o primeiro e mais importante passo na
produção de novas alternativas e estratégias para a participação social, a construção,
apropriação e reprodução coletiva dos espaços – desta vez com a participação do
movimento de pessoas com deficiência – seja através de uma profunda articulação
interna e, posteriormente, através do diálogo com os outros movimentos e estruturas
sociais.
É preciso construir um caminho comum. A potência do movimento social está
presente de modo intrínseco nas suas estruturas singulares, na sua multiplicidade de
formas e subjetividades. É preciso compreendê-las e externalizá-las, reconstruindo-as
junto à coletividade. É somente através da união de esforços nesse sentido que será
possível produzir novos espaços, nos planos material e simbólico, onde seja possível a
contribuição de todos.
58
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São diversas as metodologias, estilos e técnicas para discutir o tema proposto
neste trabalho. Conforme elucidado na introdução, entendemos que o método
genealógico melhor se encaixaria neste contexto, haja vista a relação do autor com o
tema e os caminhos escolhidos para traçar o desenvolvimento do conteúdo, uma vez que
o tema não compareceu na história monumental, pois a cidade, em sua estruturação, não
foi pensada com e para as pessoas com deficiência. Concluímos esperando que este
percurso tenha se consolidado como melhor opção.
Ao aprofundar a abordagem dos conceitos ‘lugar’ e ‘espaço’, foi possível
perceber a dimensão da condição de marginalidade e exclusão que as pessoas com
deficiência vêm ocupando ao longo da história. O que também nos alerta para a
necessidade de problematizar estes conceitos com qualquer estudo que pretenda discutir
direitos e cidadania.
E mais além, esta reflexão também nos fornece bases para resignificar a
própria noção de acessibilidade, que para nós, ficou claro que não deve se limitar ao
conteúdo material e às atitudes de cada sujeito.
No entanto, este entendimento deve ser alcançado pelo próprio movimento,
pois é somente a partir de sua organização política que novas formas de pensar os
assuntos pertinentes à pessoa com deficiência podem ser incorporadas oficial e
socialmente. Assim, ratificamos que pensar acessibilidade é pensar o lugar da pessoa
com deficiência no espaço enquanto sujeito social. É pensar as ferramentas do acesso
físico, mas é, principalmente, pensar seu lugar na sociedade. Pois não será possível
pensar acessibilidade em outras dimensões se o seu lugar não estiver legitimado no bojo
das relações sociais.
Outro fator fundamental foi a necessidade de utilizar-se de diferentes fontes de
conhecimento para trabalhar cada temática, já que os mesmos conteúdos são abordados
sob distintos aspectos em cada disciplina.
59
Tentamos reunir os conceitos que consideramos fundamentais para propor
uma discussão transversal dos temas, acreditando que seria possível fundamentar esta
reflexão de modo consistente, já que, em nossa busca, não foi encontrado qualquer
estudo científico com a mesma proposta, que pudesse subsidiar uma orientação diferente.
Isto foi bastante desafiador, pois além de sugerir uma abordagem que
consideramos atípica para tratar elementos relacionados à área de deficiência, não foi
possível, através de nossas ferramentas de investigação, encontrar qualquer obra sobre a
categoria, fundamentada no referencial teórico adotado neste trabalho. O que foi motivo
de muitas incertezas sobre a apropriação correta do conteúdo dos autores utilizados.
Como ponto comum entre as diferentes abordagens apresentadas, podemos
citar a existência das relações antagônicas no espaço e nas relações sociais; as
influências decisivas do sistema capitalista sobre o modo como as pessoas constituíram
seus relacionamentos, suas noções de lugar e espaço, bem sua apropriação da cidade.
Podemos sinalizar ainda a necessidade de reorientação por parte dos movimentos sociais
no sentido de fomentar o diálogo interno e a perceber as diferenças no seu interior como
fontes de poder; além da possibilidade real de transformação do quadro social vigente, a
partir do momento em que a sociedade for capaz de compreender suas múltiplas
singularidades e subsidiar espaços comuns de discussão e ação em prol de todos.
A conquista da democracia deve ser incorporada, antes de qualquer coisa,
pelos sujeitos sociais que compõem e dinamizam os espaços. Quando os movimentos
sociais alcançarem este entendimento e forem capazes de dialogar uns com os outros,
será possível transformar a cidade e qualquer outro lugar. Mas a transformação precisa
ser interna. Sendo interna poderá dar forma a uma realidade nova, fruto da diversidade
potente que se fecunda a partir das relações sociais capazes de percebê-las como poder.
No entanto, este é um caminho que necessita ser estimulado e concretizado no
cotidiano dos movimentos sociais, pois são longos anos de lutas solitárias e
individualizadas. Não existem mudanças ou transformações imediatas, mas qualquer
caminho ou orientação nesse sentido devem ser valorizados e considerados como
exercícios de potência. Este movimento também diz respeito a uma mudança de cultura.
60
Outro fator importante a se destacar é a pouca utilização de elementos teóricos
filosóficos e sociológicos para fortalecimento do movimento social. Isto se torna mais
freqüente e comum justamente naquelas áreas cujos esforços do movimento de pessoas
com deficiência vêm sendo direcionados historicamente: educação, saúde, assistência
social e empregabilidade, por exemplo. Mas na sua organização coletiva propriamente
dita, pouco há de mobilização neste sentido, já que os encontros e debates giram em
torno da legislação vigente, seu cumprimento ou violação por parte do estado e do
sistema.
Cumpre ressaltar ainda que a necessidade de se estender sempre na luta pela
garantia das mesmas necessidades básicas, faz com que os movimentos sociais não
percebam a política cultural como direito. No caso da pessoa com deficiência, para além
do acesso aos espaços por uma questão econômica e social, existe ainda a
particularidade da acessibilidade cultural nas perspectivas sinalizadas durante o estudo.
Acreditamos que a analogia do movimento de pessoas com deficiência com os
conceitos de multidão e máquina de guerra é capaz de estimular e sustentar qualquer
organização política potencialmente transformadora de sujeitos e de espaços sociais.
É preciso que os movimentos sociais se apropriem destes e de outros
elementos teóricos que possam contribuir com a reflexão sobre a consolidação de suas
ações nos dias atuais e sobre a necessidade de repensarem suas estrutura e estratégias,
já que sua maior preocupação na contemporaneidade consiste no cumprimento do que
está garantido através de leis.
A fragilidade nas suas organizações e a morosidade do Estado em tudo o que
se refere à garantia de direitos e à participação social, apontam para uma realidade difícil
de ser admitida: grande parte dos direitos sociais estabelecidos hoje, através de
instrumentos legais, se refere muito mais à capacidade do Estado em controlar os
respectivos movimentos sociais do que à força do segundo em lutar pela efetividade das
ações correspondentes.
O movimento social de pessoas com deficiência se constituiu em multidão
entre as décadas de 60 e 80, quando foi capaz de assumir e valorizar suas múltiplas
singularidades e encontrar um ponto comum, formando uma resistência maquinímica
61
diante do sistema. No entanto, não foram capazes de se desterritorializar e reterritorializar
ao longo dos períodos seguintes, sendo capturados pelo Estado através da lei.
Talvez os movimentos sociais não tenham se alertado para esta possibilidade,
ou tenham consciência deste fato, mas enfrentem dificuldades para digeri-lo por uma
questão de auto-estima ou vaidade, que podem se justificar no fato de que acreditar que
reconhecer o poder de dominação do Estado seja ignorar toda sua mobilização ao longo
da história, o que não pode ser negado ou omitido.
Foram longos anos de luta e mobilização dentro de diferentes contextos
sociais, no entanto, para continuar se representando com poder e legitimidade, é preciso
repensar a sua organização dentro do espaço político, sobretudo a partir da compreensão
das relações de forças existentes entre a sua resistência e o poder de dominação e
controle do Estado. É preciso constituir-se em máquina de guerra.
O Estado não tem como parte de suas intenções materializar aquilo que foi
prometido através do principal instrumento de regulação social existente na sociedade
contemporânea: a lei. Lei que ele mesmo cria e descumpre. Trata-se de uma questão de
sobrevivência do próprio sistema, no seu objetivo de massificar, conter e dominar a
sociedade, ceder a determinadas pressões e reivindicações sociais. O que mais uma vez,
faz do Brasil um país de direitos e não de justiça.
É preciso refletir que a lei, com todo o seu poder jurídico e social de regulação,
não é capaz de legitimar o lugar de um sujeito social no espaço. Ela diz muito mais à
respeito do seu direito criar mecanismos para construir esse lugar. O lugar da pessoa com
deficiência deve ser construído pelo movimento social, diariamente, a partir da resistência
e da transformação cotidianas. O seu lugar não pode e não será oferecido pelo Estado,
pelo sistema ou por quaisquer instrumentos legais.
Fica-nos o questionamento de como introduzir esse debate no bojo dos
movimentos sociais. Quais as estratégias necessárias, os caminhos a percorrer para
materializar tudo o que refletimos até aqui? Este é um grande desafio, cujas respostas
precisam ser encontradas, refletidas, problematizadas e construídas.
62
De qualquer modo, é preciso transformar nossas relações em máquinas de
guerra. É preciso que a sociedade se reconheça enquanto multidão, não enquanto
segmentos sociais. É preciso perceber a potência presente na diferença, na
singularidade. Ser capaz de construir pontes que nos levem a um espaço comum.
Que nesse espaço sejamos capazes de reconhecer a riqueza do que já foi feito
e o potencial necessário a ser redescoberto para vislumbrar um caminho comum em prol
da liberdade, da democracia e da pluralidade necessárias à transformação da cidade e
das relações nela constituídas e metamorfoseadas diariamente. Que sejamos capazes de
mantê-las, renovando e estreitando os diferentes laços formados nestas relações.
Desta forma será possível pensar políticas culturais para além da noção de
direito, mas para a efetividade de ações que possibilitem o real acesso de todos os
sujeitos aos espaços e equipamentos culturais e à possibilidade de desenvolver-se
artística e culturalmente. Que os espaços culturais e a arte representem essas múltiplas
singularidades.
Nesta nova cidade é possível que a necessidade de um curso de
especialização em acessibilidade cultural seja para discutir o conteúdo legal e a política
pública que estamos lutando hoje para garantir mais tarde. Para pensar novas estratégias
e possibilidades de ampliação de recursos de acessibilidade, não somente para saber da
sua existência e da dificuldade em garanti-los nos equipamentos públicos culturais.
Que estejamos presentes para a troca de experiências que deram certo e para
propor caminhos aos desafios cotidianos. Que possamos nos reencontrar para um
intercâmbio de resultados e de possibilidades onde diferentes movimentos sociais
estejam presentes, porque não estaremos discutindo o problema de um segmento social
para o próprio segmento social.
Certamente, acreditar que esta realidade é possível e que podemos – e
devemos – contribuir para sua efetivação, foi o principal elemento de inspiração para
todos os atores envolvidos na conclusão do primeiro curso de Especialização em
Acessibilidade Cultural do país.
63
A cidade sempre foi um espaço de grandes tensões entre os atores que nela
habitam. Esta tensão constantemente possui jogos de exclusão de certos grupos,
produzindo uma profunda dissimetria no modo de viver os espaços públicos sua realidade
cotidiana. Alguns poetas, como Thomas More e William Morris, por outro lado, acreditam
que é possível um novo espaço, uma outra cidade, na qual as relações sejam mais
solidárias e éticas entre os diferentes. Entretanto, devemos lembrar que utopia vem de u=
sem e topus = lugar. Logo, utopia não é um lugar ou um espaço! Então, se não há este
lugar, um topus específico, é porque ele deve ser uma conquista cotidiana, sempre em
processo, no qual as diferenças desfilam intensamente em todos os lugares em forma de
uma multidão.
64
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