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Gaston Bachelard A formação do espírito científico CONTRIBUIÇÃO PARA UMA PSICANÁLISE DO CONHECIMENTO CONTRAPONTO Tradução Estela dos Santos Abreu 5ª' reimpressão

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Gaston Bachelard

A formação doespírito científico

CONTRIBUIÇÃO PARA UMAPSICANÁLISE DO CONHECIMENTO

CONTRAPONTO

Tradução

Estela dos Santos Abreu

5ª' reimpressão

Título original:La Formarion de Pesprit scientifique :

contribution à une psychanalyse de Ia connaissance

© Libraine Philosophique J. Vrin, Paris, 1938

© da tradução, Esteia dos Santos Abreu, 1996

Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcialdeste livro sem autorização da editora.

Direitos adquiridos para a língua portuguesa por

CONTRAPONTO EDITORA LIDA.

Caixa Postal 56066 - CEP 22292-970Tel./fax (21) 2544-0206 2215-6148

Rio de Janeiro, RJ - Brasile-maih [email protected]

site: www.contrapontoeditora.com.br

1ª edição, maio de 1996

5ª reimpressão, janeiro de 2005Tiragem: 1.000 exemplares

Projeto gráfico

Regina Ferraz

Revisão tipográfica

Maria Clotilde Santoro

B119 Bachelard, Gaston, 1884-1962A formação do espírito científico : contribuição para

uma psicanálise do conhecimento / Gaston Bachelard;tradução Esteia dos Santos Abreu. - Rio de Janeiro : Con-traponto, 1996.

316 p.

Tradução de: La Formation de 1'esprit scientifique :contribution à une psychanalyse de Ia connaissance

ISBN 85-85910-11-9

1. Epistemologia. 2. Ciência - Filosofia. 3. Teoria doconhecimento. I. Abreu, Esteia dos Santos. II. Título.

CDD 121

CAPÍTULO PRIMEIRO

A noção de obstáculo epistemológicoPlano da obra

Quando se procuram as condições psicológicas do progressoda ciência, logo se chega à convicção de que é em termos deobstáculos que o problema do conhecimento científico deveser colocado. E não se trata de considerar obstáculos exter-nos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos,nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito hu-mano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem,por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e confli-tos. É aí que mostraremos causas de estagnação e até de re-gressão, detectaremos causas de inércia às quais daremos onome de obstáculos epistemológicos. O conhecimento do realé luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediatoe pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é"o que se poderia achar" mas é sempre o que se deveria terpensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quan-do o conjunto de argumentos fica estabelecido. Ao retomarum passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autên-tico arrependimento intelectual. No fundo, o ato de conhecerdá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conheci-mentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espíri-to, é obstáculo à espiritualização.

A idéia de partir de zero para fundamentar e aumentar opróprio acervo só pode vingar em culturas de simples jus-taposição, em que um fato conhecido é imediatamente uma

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riqueza. Mas, diante do mistério do real, a alma não po-de, por decreto, tornar-se ingênua. É impossível anular, deum só golpe, todos os conhecimentos habituais. Diante doreal, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deve-ríamos saber. Quando o espírito se apresenta à cultura cien-tífica, nunca é jovem. Aliás, é bem velho, porque tem a idadede seus preconceitos. Aceder à ciência é rejuvenescer espi-ritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz opassado.

A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento comopor princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em deter-minada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diver-sos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opi-nião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa mal;não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao desig-nar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los.Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é precisodestruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Nãobasta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, man-tendo, como uma espécie de moral provisória, um conhe-cimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe quetenhamos uma opinião sobre questões que não compreen-demos, sobre questões que não sabemos formular com clare-za. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas.E, digam o que disserem, na vida científica os problemas nãose formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentidodo problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico.Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta auma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conheci-mento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo éconstruído.

O conhecimento adquirido pelo esforço científico podedeclinar. A pergunta abstrata e franca se desgasta: a respos-ta concreta fica. A partir daí, a atividade espiritual se inverte

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e se bloqueia. Um obstáculo epistemológico se incrusta noconhecimento não questionado. Hábitos intelectuais que fo-ram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa.Bergson1 diz com justeza: "Nosso espírito tem a tendênciairresistível de considerar como mais clara a idéia que costu-ma utilizar com freqüência". A idéia ganha assim uma clare-za intrínseca abusiva. Com o uso, as idéias se valorizam inde-vidamente. Um valor em si opõe-se à circulação dos valores.É fator de inércia para o espírito. Às vezes, uma idéia domi-nante polariza todo o espírito. Um epistemólogo irreverentedizia, há vinte anos, que os grandes homens são úteis à ciên-cia na primeira metade de sua vida e nocivos na outra meta-de. O instinto formativo é tão persistente em alguns pensado-res, que essa pilhéria não deve surpreender. Mas, o instintoformativo acaba por ceder a vez ao instinto conservativo.Chega o momento em que o espírito prefere o que confirmaseu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de res-postas do que de perguntas. O instinto conservativo passaentão a dominar, e cessa o crescimento espiritual.

Como se vê, não hesitamos em invocar o instinto para des-tacar a justa resistência de certos obstáculos epistemológicos.É um ponto de vista que em nossa exposição tentaremos justi-ficar. Mas, desde já, é preciso perceber que o conhecimentoempírico, praticamente o único que estudamos neste livro, en-volve o homem sensível por todas as expressões de sua sen-sibilidade. Quando o conhecimento empírico se racionaliza,nunca se pode garantir que valores sensíveis primitivos nãointerfiram nos argumentos. De modo visível, pode-se reconhe-cer que a idéia científica muito usual fica carregada de umconcreto psicológico pesado demais, que ela reúne inúmerasanalogias, imagens, metáforas, e perde aos poucos seu vetorde abstração, sua afiada ponta abstrata. É otimismo tolo pen-

1. BERGSON. La Pensée et le Mouvant. Paris, 1934, p. 231.

Elizabeth
Highlight

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sar que saber serve, automaticamente, para saber, que a cul-tura torna-se tanto mais fácil quanto mais extensa for, quea inteligência enfim, sancionada por êxitos precoces ou porsimples concursos universitários, se capitaliza qual riquezamaterial. Admitindo até que uma cabeça bem feita escape aonarcisismo intelectual tão freqüente na cultura literária e naadesão apaixonada aos juízos do gosto, pode-se com certezadizer que uma cabeça bem feita é infelizmente uma cabeça fe-chada. É um produto de escola.

Com efeito, as crises de crescimento do pensamento im-plicam uma reorganização total do sistema de saber. A cabe-ça bem feita precisa então ser refeita. Ela muda de espécie.Opõe-se à espécie anterior por uma função decisiva. Pelas re-voluções espirituais que a invenção científica exige, o homemtorna-se uma espécie mutante, ou melhor dizendo, uma espé-cie que tem necessidade de mudar, que sofre se não mudar.Espiritualmente, o homem tem necessidade de necessidades.Se considerarmos, por exemplo, a modificação psíquica quese verifica com a compreensão de doutrinas como a da Re-latividade ou como a da Mecânica Ondulatória, talvez nãoachemos tais expressões exageradas, sobretudo se refletirmossobre a real solidez da ciência pré-relativista. Mas voltaremosa essas questões no último capítulo, depois de termos apre-sentado muitos exemplos de revoluções espirituais.

Costuma-se dizer também que a ciência é ávida de unida-de, que tende a considerar fenômenos de aspectos diversoscomo idênticos, que busca simplicidade ou economia nosprincípios e nos métodos. Tal unidade seria logo encontradase a ciência pudesse contentar-se com isso. Ao inverso, o pro-gresso científico efetua suas etapas mais marcantes quandoabandona os fatores filosóficos de unificação fácil, tais comoa unidade de ação do Criador, a unidade de organização daNatureza, a unidade lógica. De fato, esses fatores de unidade,ainda ativos no pensamento pré-científico do século XVIII,

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não são mais invocados. Seria tachado de pretensioso o pes-quisador contemporâneo que quisesse reunir a cosmologia ea teologia.

E, até no pormenor da pesquisa científica, diante de umaexperiência bem específica que possa ser consignada como tal,como verdadeiramente una e completa, sempre será possívelao espírito científico variar-lhe as condições, em suma, sair dacontemplação do mesmo para buscar o outro, para dialetizara experiência. É assim que a química multiplica e completasuas séries homólogas, até sair da Natureza para materializaros corpos mais ou menos hipotéticos sugeridos pelo pensa-mento inventivo. É assim que, em todas as ciências rigorosas,um pensamento inquieto desconfia das identidades mais oumenos aparentes e exige sem cessar mais precisão e, por con-seguinte, mais ocasiões de distinguir. Precisar, retificar, diver-sificar são tipos de pensamento dinâmico que fogem da certe-za e da unidade, e que encontram nos sistemas homogêneosmais obstáculos do que estímulo. Em resumo, o homem movi-do pelo espírito científico deseja saber, mas para, imediata-mente, melhor questionar.

II

A noção de obstáculo epistemológico pode ser estudada nodesenvolvimento histórico do pensamento científico e na prá-tica da educação. Em ambos os casos, esse estudo não é fácil.A história, por princípio, é hostil a todo juízo normativo. É noentanto necessário colocar-se num ponto de vista normativo,se houver a intenção de julgar a eficácia de um pensamento.Muito do que se encontra na história do pensamento científi-co está longe de servir, de fato, à evolução desse pensamento.Certos conhecimentos, embora corretos, interrompem cedodemais pesquisas úteis. O epistemólogo deve, portanto, fazeruma escolha nos documentos coligidos pelo historiador. Deve

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julgá-los da perspectiva da razão, e até da perspectiva da ra-zão evoluída, porque é só com as luzes atuais que podemosjulgar com plenitude os erros do passado espiritual. Aliás,mesmo nas ciências experimentais é sempre a interpretaçãoracional que põe os fatos em seu devido lugar. É no eixo expe-riência-razão e no sentido da racionalização que se encontramao mesmo tempo o risco e o êxito. Só a razão dinamiza a pes-quisa, porque é a única que sugere, para além da experiênciacomum (imediata e sedutora), a experiência científica (indi-reta e fecunda). Portanto, é o esforço de racionalidade e deconstrução que deve reter a atenção do epistemólogo. Perce-be-se assim a diferença entre o ofício de epistemólogo e o dehistoriador da ciência. O historiador da ciência deve tomar asidéias como se fossem fatos. O epistemólogo deve tomar osfatos como se fossem idéias, inserindo-as num sistema de pen-samento. Um fato mal interpretado por uma época permane-ce, para o historiador, um fato. Para o epistemólogo, é umobstáculo, um contra-pensamento.

É sobretudo ao aprofundar a noção de obstáculo episte-mológico que se confere pleno valor espiritual à história dopensamento científico. Muitas vezes, a preocupação com aobjetividade, que leva o historiador da ciência a arrolar to-dos os textos, não chega até o ponto de medir as variaçõespsicológicas na interpretação de um determinado texto. Nu-ma mesma época, sob uma mesma palavra, coexistem con-ceitos tão diferentes! O que engana é que a mesma palavratanto designa quanto explica. A designação é a mesma; a ex-plicação é diferente. Por exemplo, a telefone correspondemconceitos que são totalmente diferentes para o assinante,a telefonista, o engenheiro, o matemático preocupado comequações diferenciais da corrente telefônica. O epistemólogodeve, pois, captar os conceitos científicos em sínteses psico-lógicas efetivas, isto é, em sínteses psicológicas progressivas,estabelecendo, a respeito de cada noção, uma escala de con-

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ceitos, mostrando como um conceito deu origem a outro, co-mo está relacionado a outro. Terá, então, alguma probabi-lidade de avaliar a eficácia epistemológica. O pensamentocientífico vai logo aparecer como dificuldade vencida, comoobstáculo superado.

Na educação, a noção de obstáculo pedagógico também édesconhecida. Acho surpreendente que os professores de ciên-cias, mais do que os outros se possível fosse, não compreen-dam que alguém não compreenda. Poucos são os que se de-tiveram na psicologia do erro, da ignorância e da irreflexão.O livro de Gérard Varet2 não teve repercussão. Os professoresde ciências imaginam que o espírito começa como uma aula,que é sempre possível reconstruir uma cultura falha pela repe-tição da lição, que se pode fazer entender uma demonstraçãorepetindo-a ponto por ponto. Não levam em conta que o ado-lescente entra na aula de física com conhecimentos empíricosjá constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultu-ra experimental, mas sim de mudar de cultura experimental,de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidia-na. Um exemplo: o equilíbrio dos corpos flutuantes é objetode uma intuição habitual que é um amontoado de erros. Demodo mais ou menos claro, atribui-se uma atividade ao corpoque flutua, ou, melhor, ao corpo que nada. Se tentarmos coma mão afundar um pedaço de pau na água, ele resiste. Não écostume atribuir-se essa resistência à água. Assim, é difícil ex-plicar o princípio de Arquimedes, de tão grande simplicida-de matemática, se antes não for criticado e desfeito o impurocomplexo de intuições primeiras. Em particular, sem essa psi-canálise dos erros iniciais, não se conseguirá explicar que ocorpo que emerge e o corpo completamente imerso obedecemà mesma lei.

2. Gérard VARET. Essai de Psychologie objective. Vlgnorance et Vlrréflexion.Paris, 1898.

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Logo, toda cultura científica deve começar, como será lon-gamente explicado, por uma catarse intelectual e afetiva. Res-ta, então, a tarefa mais difícil: colocar a cultura científica emestado de mobilização permanente, substituir o saber fechadoe estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dialetizartodas as variáveis experimentais, oferecer enfim à razão ra-zões para evoluir.

Tais observações podem, aliás, ser generalizadas: são maisvisíveis no ensino de ciências, mas aplicam-se a qualquer es-forço educativo. No decurso de minha longa e variada car-reira, nunca vi um educador mudar de método pedagógico.O educador não tem o senso do fracasso justamente porquese acha um mestre. Quem ensina manda. Daí, a torrente deinstintos. Von Monakow e Mourgue3 assinalaram essa difi-culdade de reforma dos métodos pedagógicos ao invocar opeso do instinto nos educadores:

Há indivíduos para quem todo conselho referente aos errospedagógicos que cometem é absolutamente inútil, porqueos ditos erros são a mera expressão de um comportamentoinstintivo.

De fato, Von Monakow e Mourgue têm em mira "indivíduospsicopatas", mas a relação psicológica professor-aluno é mui-tas vezes relação patogênica. Educador e educando merecemuma psicanálise especial. Em todo caso, o exame das formasinferiores do psiquismo não deve ser esquecido se pretende-mos caracterizar todos os elementos da energia espirituale preparar uma regulação cognitivo-afetiva indispensável aoprogresso do espírito científico. De maneira mais precisa, de-tectar os obstáculos epistemológicos é um passo para funda-mentar os rudimentos da psicanálise da razão.

3. VON MONAKOW & MOURGUE. Introducüon biologique à Vétude de IaNeurologie et de Ia Psychopathologie. Paris, 1928, p. 89.

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Mas o sentido dessas observações gerais aparecerá melhorquando tivermos estudado obstáculos epistemológicos espe-cíficos e dificuldades bem definidas. Eis o plano que vamosseguir neste estudo:

A primeira experiência ou, para ser mais exato, a obser-vação primeira é sempre um obstáculo inicial para a culturacientífica. De fato, essa observação primeira se apresenta re-pleta de imagens; é pitoresca, concreta, natural, fácil. Bastadescrevê-la para se ficar encantado. Parece que a compreende-mos. Vamos começar nossa investigação caracterizando esseobstáculo e mostrando que há ruptura, e não continuidade,entre a observação e a experimentação.

Logo depois de ter descrito o fascínio da observação parti-cular e colorida, vamos mostrar o perigo de seguir as generali-dades de primeira vista, pois como diz tão bem d'Alembert,generalizam-se as primeiras observações no instante seguinte,quando não se observa mais nada. Vamos perceber assim oespírito científico entravado já na origem por dois obstáculos,de certa forma opostos. Será a ocasião de vermos o pensamen-to empírico numa oscilação cheia de tropeços e de conflitos,que acaba em desarticulação. Mas essa desarticulação tornapossíveis movimentos úteis. De forma que o próprio episte-mólogo é joguete de valorizações contrárias, que podem serresumidas nas seguintes objeções: é preciso que o pensamentoabandone o empirismo imediato. O pensamento empíricoassume, portanto, um sistema. Mas o primeiro sistema é falso.É falso mas, ao menos, tem a utilidade de desprender o pensa-mento, afastando-o do conhecimento sensível; o primeiro sis-tema mobiliza o pensamento. O espírito constituído em siste-ma pode então voltar à experiência com idéias barrocas masagressivas, questionadoras, com uma espécie de ironia meta-física bem perceptível nos jovens pesquisadores, tão seguros

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de si, tão prontos a observar o real em função de suas teorias.Da observação ao sistema, passa-se assim de olhos deslum-brados a olhos fechados.

É aliás notável que, de modo geral, os obstáculos à culturacientífica se apresentem sempre aos pares. A tal ponto, que sepode falar de uma lei psicológica da bipolaridade dos erros.Assim que uma dificuldade se revela importante, pode-se ter acerteza de que, ao superá-la, vai-se deparar com um obstácu-lo oposto. Tal regularidade na dialética dos erros não podeprovir naturalmente do mundo objetivo. A nosso ver, ela pro-cede da atitude polêmica do pensamento científico diante dacidadela dos sábios. Como na atividade científica, temos deinventar, temos de considerar o fenômeno sob outro pontode vista. Mas é preciso legitimar nossa invenção: concebemosentão nosso fenômeno, criticando o fenômeno dos outros.Pouco a pouco, somos levados a converter nossas objeçõesem objetos, a transformar nossas críticas em leis. Insistimosem variar o fenômeno no sentido de nossa oposição ao saberdo outro. É sobretudo numa ciência jovem que se encontraessa indesejável originalidade que só contribui para reforçaros obstáculos contrários.

Quando tivermos assim delimitado nosso problema atravésdo exame do espírito concreto e do espírito sistemático, che-garemos a obstáculos mais particulares. Nosso plano será,portanto, forçosamente flutuante e não isento de repetições,porque é próprio do obstáculo epistemológico ser confuso epolimorfo. Também é muito difícil estabelecer uma hierarquiado erro e seguir uma ordem determinada para descrever as de-sordens do pensamento. Vamos pois expor em bloco nossomuseu de horrores, deixando ao leitor o cuidado de abandonaros exemplos cansativos, assim que tenha entendido o sentidode nossas teses. Vamos examinar sucessivamente o perigo daexplicação pela unidade da natureza, pela utilidade dos fenô-menos naturais. Haverá um capítulo especial para mostrar o

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obstáculo verbal, isto é, a falsa explicação obtida com a ajudade uma palavra explicativa, nessa estranha inversão que pre-tende desenvolver o pensamento ao analisar um conceito, emvez de inserir um conceito particular numa síntese racional.

Naturalmente o obstáculo verbal nos levará ao exame deum dos mais difíceis obstáculos a superar, porque apoiado nu-ma filosofia fácil. Referimo-nos ao substancialismo, à expli-cação monótona das propriedades pela substância. Teremosentão de mostrar que, para o físico, e sem prejulgar seu valorpara o filósofo, o realismo é uma metafísica infecunda, já quesusta a investigação, em vez de provocá-la.

Terminaremos essa primeira parte do livro pelo exame deum obstáculo muito especial que podemos delimitar com pre-cisão e que, por isso, oferece um exemplo tão nítido quantopossível da noção de obstáculo epistemológico. Vamos cha-má-lo por seu nome completo: o obstáculo animista nas ciên-cias físicas. Ele foi quase totalmente superado pela física doséculo XIX; mas, como foi muito visível nos séculos XVII eXVIII, a ponto de, a nosso ver, constituir um dos traços distin-tivos do espírito pré-científico, teremos o cuidado de carac-terizá-lo de acordo com os físicos dos séculos XVII e XVIII.Talvez essa limitação torne a demonstração até mais pertinen-te, pois será vista a força de um obstáculo na própria épocaem que foi superado. Esse obstáculo animista, aliás, não temmuita ligação com a mentalidade animista que todos os etnó-logos estudaram exaustivamente. Daremos grande espaço aesse capítulo justamente porque poderia parecer que se tratade um aspecto particular e pobre.

Com a idéia de substância e com a idéia de vida, ambasentendidas de modo ingênuo, introduzem-se nas ciências físi-cas inúmeras valorizações que prejudicam os verdadeiros va-lores do pensamento científico. Proporemos, portanto, psica-nálises especiais para libertar o espírito científico desses falsosvalores.

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Depois dos obstáculos que devem ser superados pelo co-nhecimento empírico, vamos mostrar, no penúltimo capítulo,as dificuldades da informação geométrica e matemática, a di-ficuldade de fundar uma física matemática suscetível de pro-vocar descobertas. Também aí reuniremos exemplos tiradosde sistemas desajeitados, de geometrizações infelizes. Será vis-to como o falso rigor bloqueia o pensamento, como um pri-meiro sistema matemático pode impedir a compreensão deum novo sistema. Vamos limitar-nos a observações elementa-res para conservar o tom fácil do livro. Aliás, para concluirnossa tarefa nesse sentido, seria preciso estudar, do mesmoponto de vista crítico, a formação do espírito matemático.Reservamos esse asunto para outro livro. A nosso ver, essadivisão é possível porque o crescimento do espírito matemáti-co é bem diferente do crescimento do espírito científico emseu esforço para compreender os fenômenos físicos. Com efei-to, a história da matemática é maravilhosamente regular. Co-nhece períodos de pausa. Mas não conhece períodos de erro.Logo, nenhuma das teses que sustentamos neste livro se refereao conhecimento matemático. Tratam apenas do conheci-mento do mundo objetivo.

É esse conhecimento do objeto que, no último capítulo,examinaremos em sua generalidade, assinalando tudo o quelhe pode turvar a pureza e diminuir o valor educativo. Acredi-tamos estar assim colaborando para moralizar a ciência, poisé nossa íntima convicção que o homem que segue as leis domundo já obedece a um grande destino.