de ideis de agostinho de hipona e alguns passos...

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Platonismo e Aristotelismo no século XIII: A questão De ideis de Agostinho de Hipona e alguns passos de sua repercussão medieval. Coletânea de textos Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira. São Paulo 2014

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Platonismo e Aristotelismo no século XIII:

A questão De ideis de Agostinho de Hipona e alguns passos de

sua repercussão medieval.

Coletânea de textos

Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.

São Paulo

2014

2

Índice:

Datas aproximadas de composição das obras citadas 03 Apresentação 04

Textos:

ALEXANDRE DE HALES:

Glosa para os Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, Livro I, Distinção 36 05

Questões "Antes que fosse frade", Questão 46 10 Questões "Antes que fosse frade", Apêndice II, Questão 2 14 Suma Teológica, Tomo I, Livro I, Quinto Tratado, Seção I,

Questão única 18 ALBERTO MAGNO:

Comentários para o Primeiro Livro das Sentenças, Distinção 35 35 Comentários para o Primeiro Livro das Sentenças, Distinção 36 46 Suma de Teologia, Parte I, Questão 55, Segundo Membro 48 Os oito livros da Física, Livro I, Tratado III, Capítulo XVII 56 BOAVENTURA DE BAGNOREGIO:

Comentários para os Quatro Livros das Sentenças do Mestre Pedro Lombardo, Livro I, Distinção 35 57

TOMÁS DE AQUINO:

Comentário para o Primeiro Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, Distinção 36 71

Suma de Teologia, Parte I, Questão 15 77 Quodlibeta, Livro IV, Questão 1 82 Trechos de textos complementares à Suma de Teologia I, q. 15 84

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Datas aproximadas de composição das obras citadas e fontes para a datação:

ALEXANDRE DE HALES:

Glosa para os Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo: 1220-12271. Questões "Antes que fosse frade": 1220/21-1236. Suma Teológica2: anterior a 1245. BOEHNER, PH. & GILSON, E. 1995. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Tradu-

ção e nota introdutória de Raimundo Vier. 6ª edição, p. 414 s. HUMBRECHT, T.-D. 2005. Théologie négative et noms divins chez Saint Thomas d’Aquin. Paris : Vrin, p. 89. OSBORNE, K. B. 1994, Alexander of Hales. OSBORNE, K. B. (ed.) 1994, The History of Franciscan Theology.

New York: The Franciscan Institute of St. Bonaventure University, p. 1-38. ALBERTO MAGNO:

Comentários para o Primeiro Livro das Sentenças: antes de 1246-1249. Oito livros da Física: posterior a 1250. Suma de Teologia3: posterior a 1270. LIBERA, A. DE 1990. Albert le Grand et la philosophie. Paris : Vrin, p. 19 e 21

BOAVENTURA DE BAGNOREGIO:

Comentários para os Quatro Livros das Sentenças do Mestre Pedro Lombardo: 1250-1255. MARENBON, J. 1998. Bonaventure, the German Dominicans and the new translations. PARKINSON, G.H.R. &

SHANKER, S.G. (ed.), Routledge History of Philosophy, vol. III., London and New York: Routledge, p. 227.

TOMÁS DE AQUINO:

Comentário para as Sentenças de Pedro Lombardo: 1252-1256. Questões disputadas sobre a verdade: 1256-1259. Suma Contra os Gentios: 1259-1265. Suma de Teologia: 1265-1268, para a Primeira Parte. Comentário sobre os oito livros da “Física” de Aristóteles: ca. 1268-1269. Quodlibeta, Livro IV: 1269-1271. Comentário sobre os doze livros da “Metafísica de Aristóteles: ca. 1270-1271. TORRELL, J.-P. 2011. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e obra. Tradução: Luiz Paulo Rouanet.

São Paulo: Loyola, 3ª edição, passim.

1 OSBORNE,1994, p. 9, propõe uma periodização mais estendida: 1220/21-1229. 2 Há dúvida sobre se essa obra retrata fielmente as opiniões de Alexandre, uma vez que, embora tenha sido redigida sob sua orientação geral, ela apenas foi concluída após a intervenção de vários colabora-dores. O trecho aqui traduzido consta entre os redigidos provavelmente por João de la Rochelle. Ainda assim, parece retratar exatamente a mesma opinião defendida por Alexandre em sua Glosa. 3 Trata-se da segunda Suma de Teologia composta, em Colônia, por Alberto Magno, também conhecida como Suma sobre a admirável ciência de Deus. Sua primeira Suma de Teologia foi composta em Paris no ano de 1246 e reúne os opúsculos: Sobre os sacramentos, Sobre a encarnação e Sobre a ressurreição.

4

Apresentação:

Os textos aqui apresentados compõem parte do material a ser utilizado na disciplina “FLF0269

História da Filosofia Medieval II” no primeiro semestre de 2014.

Com o título “Sobre Platão, a Teologia e Aristóteles: alguns passos da fortuna medieval da

questão Sobre as ideias de Agostinho de Hipona”, o objetivo da disciplina é tratar alguns as-

pectos da crítica medieval à filosofia platônica sob o impacto da recepção do aristotelismo no

século XIII, traçando a gênese dessa discussão nos textos de Alexandre de Hales, Alberto Mag-

no, Boaventura de Bagnoregio e Tomás de Aquino.

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ALEXANDRE DE HALES*

Glosa para os Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo

[Livro I

Distinção 36]

1. Costuma-se perguntar aqui [224, 214]; sobre se deve ser concedido [224, 23]5. An-

selmo, no Monologio6: “Todos, antes de serem feitos, bem como quando são feitos, quando

são corrompidos ou variam de algum modo, sempre são nele. Não que sejam em si mesmos,

mas o que é ele mesmo. Com efeito, [em] si mesmos são essência mutável, criada segundo a

noção imutável. No próprio Deus, são a própria primeira essência e primeira verdade do exis-

tir. No entanto, na medida em que são mais semelhantes a ele em tudo, assim existem mais

verdadeiramente e mais eminentemente”. Dessa autoridade se toma que, nele, as criaturas

são a própria essência de Deus, o que é próximo daquela heresia: “tudo é Deus”7, na medida

em que se diz: “Júpiter é tudo o que vês”8. – No entanto, cumpre dizer, distinguindo, que é

diferente dizer “tudo é a essência divina” e “todos nele são a essência divina”. Com efeito,

quando se diz “tudo é a essência divina”, são supostas as criaturas, na medida em que são no

seu ser; mas quando se diz “todos são nele a essência divina”, pelas coisas mutáveis, são su-

postas as noções eternas, noções que são a essência de Deus, visto que a sabedoria de Deus. E

não se segue disso que sejam na essência de Deus, embora sejam em sua sabedoria: com efei-

to, ser na sabedoria de Deus não é senão ser conhecido por ele; de fato, ser em sua essência é

dizê-lo verdadeiramente sobre aqueles: o que não acontece com nenhuma criatura.

2. Sobre no entanto, escolhe [225, 6-7]. Há a eleição eterna e a temporal. Sobre a

eterna se diz “tem os eleitos” [225, 7]; sobre a temporal, diz-se “são eleitos pelo criador” [225,

7]. E a eleição eterna não é nada diverso da previsão para a graça e a glória; a eleição tempo-

ral, porém, é a subscrição da graça no presente.

3. Sobre em sua presença [225, 8]. Dionísio, Sobre os nomes divinos9: “A alma divina

contém tudo desde a ciência remota de tudo, ao pré-obter tudo em si mesmo junto à causa de

tudo”, presente em si mesmo, “ciente, antes que os anjos fossem feitos, e condutor, ao trazer,

na essência, os anjos e tudo o mais”.

4. Depois do que foi dito antes, pergunta-se [225, 20]. Visto que é diverso o modo se-

gundo o qual os bens e os males têm ser na cognição de Deus, então, resolve isso agora. Se a

ideia, a noção e a sabedoria são o mesmo segundo a substância, que diferença há? As ideias

* MAGISTRI ALEXANDRI DE HALES, Glossa in Quatuor libros Sententiarum Petri Lombardi : In librum Primum. Nunc Demum reperta atque primum edita studio et cura PP. Collegii S. Bonaventurae. Florença: Quarac-chi, 1951, p. 356-363. 4 O trecho em negrito cita o texto de Pedro Lombardo. Os números entre colchetes, a página e a linha da citação, segundo a seguinte edição: PEDRO LOMBARDO, Libri IV Sententiarum : Liber I et II. Tomus I. Studio et Cura PP. Collegii S. Bonaventurae. Florença: Quaracchi, 1916, 2ª edição. 5 Isto é, “se deve ser concedido que tudo tenha ser na essência divina ou, pela essência, em Deus.” 6 Cap. 34 (PL 158, 189). 7 “E há a heresia de Alexandre, o Filósofo, e de alguns outros”, disse Alberto Magno na Suma Teológica, I, tr. 15, q. 60 (XXXI, 611b). É também a heresia de Amalrico de Bena, condenada em Paris em1210. 8 Lucano, Pharsalia, IX, v. 593. 9 Cap. 7, § 2 (PG 3, 870 B; PL 122, 1154 C); versão de Escoto Eriugena, em Dionysiaca I, 396.

6

têm ser na mente divina, como disse Agostinho, A cidade de Deus10, sem duvidar que fosse

infiel aquele que não crê nelas. Ora, a razão segundo a qual diz isso é esta: com efeito, se o

homem que age segundo sua arte é, segundo ela, exemplar das obras que são feitas por ele,

com muito mais propriedade, Deus é exemplar de todas as criaturas. Ora, a ideia não é senão o

exemplar divino. Ora, que as ideias sejam o mesmo que as noções, Agostinho, 83 questões11:

“As ideias são as noções das coisas, estáveis e imutáveis, que estão contidas na inteligência

divina”. – Ora, que sejam o mesmo que a sabedoria de Deus é patente dado que sejam eter-

nas. Com efeito, disse que “elas nem nascem nem morrem, no entanto, diz-se que, segundo

elas, é formado tudo que pode nascer ou ser formado”. Dessa passagem recolhe-se que são a

própria sabedoria eterna de Deus, segundo a qual tudo que é formável se forma. Ora, essas

três diferem segundo o nome, visto que a noção faz referência ao fim, a ideia faz referência à

forma, a sabedoria faz referência ao cognoscente eficiente. E uma vez que um e o mesmo se-

gundo a coisa é a causa exemplar, o fim e a causa cognoscente12, um e o mesmo segundo a

coisa é a sabedoria, a ideia e a noção.

5. Mas, quanto a isso, pergunta-se: visto que a sabedoria de Deus seja una, graças a

que as ideias são várias e as noções são várias? Ora, que as noções sejam várias, é patente por

Agostinho, 83 questões: “A alma não pode vê-las, a não ser a racional, por aquela parte pela

qual é excelente, isto é, pela mente e pela razão, e esta é a alma santa e pura. Portanto, tudo é

criado com razão, e não pela mesma razão o homem e o cavalo: com efeito, isso seria absurdo;

portanto, cada um é criado pela razão própria. Ora, não se deve considerar que essas razões

estejam senão na mente do criador: com efeito, não viu algo posto fora de si.”13. Do que se

tem que as ideias e as noções são várias. – Cumpre dizer que, embora, segundo a coisa, aque-

las três sejam o mesmo, no entanto, diferem segundo o modo de dizer: pois a sabedoria antes

nomeia desde a parte do Deus cognoscente, que é completamente uno; a noção, no entanto,

nomeia o meio; já a ideia, desde a parte da coisa conhecida. E, por isso, assim como as coisas

conhecidas são várias, assim as ideias são várias; e dado que qualquer coisa tenha seu fim pró-

prio, são várias as noções segundo as quais os fins são determinados. Portanto, graças à refe-

rência da ideia para a forma e da noção para o fim, visto que sejam várias as formas e os fins

das coisas, são ditas várias ideias e várias noções.

6. Mas, visto que o temporal, quando for, não é causa do eterno – o uno e o vário se

seguem ao ser –, não se vê que, segundo o nome, a multiplicidade seja determinada na eterni-

dade desde o temporal, e, assim, não devem ser ditas várias ideias ou várias noções, visto que

10 Melhor: Sobre as 83 questões diversas, q. 46, n. 2 (PL 40, 30). Cf. A cidade de Deus, VIII, cap. 4-9 (PL 41, 227 ss.). 11 Questão 46, n. 2 (PL 40, 30), aqui e nas passagens seguintes. 12 Cf. supra, d. 19, n. 22. 13 Mantivemos aqui invariavelmente o termo “razão” com o fim de destacar que a compreensão de “ratio, -onis” como “noção” requer alguma interpretação. De fato, aqui parece haver ao menos dois significados para “razão”: a própria inteligência e algo inteligido. Para a tradução de “ratio”, entendida nesse segundo sentido, como “noção”, TOMÁS DE AQUINO, Suma de Teologia I, q. 32, a. 3, resp.: “chama-se de noção [notio] aquilo que é a própria razão de conhecer [ratio cognoscendi]”, isto é, a intelecção da própria definição ou descrição de algo. Em TOMÁS DE AQUINO, Super Sent. I, d. 2, q. 1, a. 3, resp., lê-se: “ratio, tal qual é tomada aqui, não é senão aquilo que o intelecto apreende sobre o significado de algum nome: e naqueles que têm definição é a própria definição da coisa, segundo o que o Filósofo diz: a ratio que significa o nome é a definição. Mas a ratio assim tomada é dita sobre alguns que não são definidos. [...] E é patente que a ratio da sabedoria que é dita sobre Deus é aquilo que é concebido sobre o signifi-cado daquele nome, embora a própria sabedoria divina não possa ser definida.”. Compare a tradução desse mesmo trecho, infra, ALEXANDRE DE HALES, Suma Teológica, T. I, L. I, Seção I, Q. Única, Membro IV, Cap. 1, II, n. 175: “Ora, que as noções...”. (N. do T.).

7

tanto as formas como os fins são vários. – Cumpre dizer que as ideias são ditas várias graças à

referência das criaturas para elas, não porque teriam o ser desde as próprias criaturas ou por-

que delas recebem a multiplicidade.

7. Mas, quanto a isso, há a questão sobre o que disse Agostinho: “não são criados pela

mesma noção o homem e o cavalo”, e, assim, vê-se que sejam várias desde a eternidade, visto

que aquelas noções são eternas, do mesmo modo que se tem na mesma autoridade: “As no-

ções das coisas são estáveis”. – Cumpre dizer que é pela mesma noção segundo a coisa que é

criado o homem e o cavalo, mas não é a mesma enquanto noção. Eis um exemplo: o ponto

que é termo de várias linhas é um ponto, mas é dito vários princípios, dado que seja princípio

de várias linhas. Ora, o nome “noção” nomeia a modo de princípio; o nome “sabedoria” no-

meia aquilo mesmo, mas de modo absoluto. Quanto a isso, quando falamos sobre estes, fala-

mos, proporcionalmente, sobre a unidade e a multiplicidade quanto à sabedoria humana e às

noções das coisas que hão de ser feitas e às espécies. Com efeito, dizemos que uma é a sabe-

doria edificadora pela qual muitas casas são feitas; no entanto, por uma noção diversa se faz

esta e aquela casa, e diversa é a forma exemplar própria desta e daquela.

8. Depois, há a questão: a. Visto que tudo seja nele vida ou luz14, por que nem tudo ne-

le é potência ou sabedoria ou cognição? – Atos dos Apóstolos 17, 28: Nele vivemos, nos move-

mos e somos. Por que, então, não é tudo dito nele uma essência ou um movimento, assim

como uma vida? – Igualmente, um e muitos seguem-se ao ser: se, então, tudo é em Deus, é

um ou muitos? Se um, então, tudo é um; se muitos, então, a multiplicidade é desde a eterni-

dade. – Quanto a isso, segundo que modo de ser de “em” diz-se que tudo é em Deus?

b. Para o primeiro cumpre dizer que tudo é dito ser nele vida ou luz graças a isso que

“viver” é nome comum tanto das coisas corporais como das espirituais, e, enquanto corporais,

participam das espirituais. Com efeito, diz-se que o corpo vive pela alma. Dessa semelhança,

tudo é dito viver nele, visto que segundo ele não têm um ser deficiente; e, embora eles sejam

deficientes em si, a cognição deles, no entanto, não é deficiente. Mas todos são ditos luz nele

porque a luz é a disposição comum nas coisas corporais e espirituais; nas corporais, porém,

segundo a participação. E graças a isso são ditos ser luz nele: porque reluzem em sua cognição,

isto é, são sem deficiência. Ora, a sabedoria e a cognição nomeiam aquilo que é próprio do

Deus cognoscente: com efeito, não sabe ou conhece pela criatura. Mas a potência é a própria

disposição do agente, por isso, todos não são ditos serem potência nele, a não ser que se diga

de modo ablativo15. E toma-se a potência pelo poder, diferentemente da potência material,

para que não caiamos naquela heresia que diz que Deus seja a matéria de tudo16.

c. Aquilo que é dito em Atos dos Apóstolos 17, 28 é tomado equivocamente; também

quando se diz que “tudo era vida nele”17. Pois quando se diz “nele vivemos”, pela preposição

destaca-se a causa eficiente: com efeito, a partir dele dá-se o nosso viver. E quando se diz “era

vida nele”, destaca-se a causa exemplar. Ora, todos nele são ditos vida e não movimento ou

essência porque “movimento” é o nome apropriado para as coisas corporais, já “essência”,

embora seja nome comum, não é tomado aqui porque cada um tem uma essência própria.

14 João 1, 4. 15 Isto é, a não ser que se diga que todos são nele pela potência divina. A palavra latina potentia tem a mesma forma no nominativo e no ablativo, portanto, esse potentia in ipso, de acordo com o nominativo, é lida assim: ser potência nele, de acordo com o ablativo, assim: ser nele pela potência. 16 A heresia de David de Dinant, condenada em Paris no ano de 1210. Cf. H. Denifle, Chart. Univ. Paris., I, n. 11; G. Théry, Autour du dècret de 1210, 1: David de Dinant (Bibl. thomiste, VI), Kain 1925, 127 ss. 17 João 1, 3-4.

8

Portanto, para que não se creia que tudo não difere em essência, não se tem “são nele como

essência”. Mas quando se diz “nele”, destaca-se o ser no eficiente, não em ato, mas quanto ao

poder.

d. Para o que se perguntou, se “tudo é em Deus, portanto, ou um ou muitos” se segue,

cumpre dizer que a divisão “um, muitos” segue o ente em ato, mas não na medida em que tem

o ser segundo o aspecto do gênero. Ora, segundo o aspecto do gênero é o ser da criatura em

Deus, enquanto ser em si, é ser absolutamente. E não se segue: “tudo é em Deus, portanto, o

homem é homem em Deus”, visto que ser em Deus é ser pela não distinção do gênero e da

espécie: “com efeito, o causado está na causa a modo de causa”18. E se diz que tudo é em Deus

assim como naquilo que move; ora, aquilo que move é dito de dois modos, a saber, efetivo e

cognitivo.

9. Sobre diz-se que os males têm ser em Deus pela cognição [225, 27-28]. Visto que se

deve conceder que “os males têm ser na cognição de Deus”, [pergunta-se] se esta deve ser

concedida: “os males têm ser no Deus cognoscente”? – Cumpre dizer que não se segue. Com

efeito, quando se diz “os males têm ser no Deus cognoscente”, destaca-se duplamente o “ser

em”, a saber, ser em Deus pela causalidade e ser nele pela cognição. Dado que os males não

têm ser em Deus pela causalidade, por isso não têm ser no Deus cognoscente. De modo seme-

lhante, não têm ser em Deus pela exemplaridade, visto que Deus não é exemplar deles.

10. Igualmente, [pergunta-se] se isso se segue: todos os bens foram em Deus, então,

todos foram na essência divina. – Respondo: não se segue. Com efeito, na noção da qual se diz

que sejam nele, Deus supõe a causa. Mas a essência divina, ainda que seja causa, no entanto,

não diz a referência senão para aquilo de que é essência. Donde mais acima se disse19: Deus de

Abraão, Deus de Jacó e não a essência divina de Abraão e de Jacó.

11. Agostinho, Sobre as duas almas20: “Qual é o modo de conhecer os males? Assim

como os olhos, ao não ver, conhecem as trevas, assim se conhece as malícias: dado que sejam

onde não devem ser.” Igualmente, Agostinho, Sobre o livre arbítrio21: “As naturezas são tão

viciosas quanto se afastam da arte daquele pela qual são feitas; e são retamente censuradas

tanto quanto, delas, o censor vê a arte pela qual são feitas, visto que [censure] nelas aquilo

que ali não vê”. Portanto, os males não são vistos. – Igualmente, dado que os males são co-

nhecidos de um modo, mas o verdadeiro de dois modos, visto que a cognição pertença à ver-

dade, o verdadeiro é comum ao bem e ao mal? – Cumpre dizer que há a cognição intelectiva e

a prática, e, por isso, [a intelecção] é dupla; e dos dois modos os bens são na ciência de Deus,

mas os males apenas de um modo. Com efeito, o verdadeiro não está privado do mal, mas o

bem. Ora, a ciência prática diz respeito unicamente ao bem, a cognição, ao verdadeiro. Ora, os

males são ditos ser na notícia simples de Deus. Não porque os bens sejam na ciência composta

de Deus, mas porque eles são a modo de verdadeiro e a modo de bem. Cumpre dizer, no en-

tanto, que os males não são ditos na cognição de Deus ao modo do verdadeiro, mas ao modo

do verdadeiro para o qual são opostos.

12. Por conseguinte, se diligentemente [227, 14]; sobre o autor daqueles [227, 26],

Dionísio, Sobre os nomes divinos (cap. 7, § 4): “Como é louvada a razão de Deus, não só porque

é mais extenso em sabedoria e razão, mas porque obteve em si mesmo uniformemente as

18 Livro sobre as causas, § 11. 19 Ex. 3, 15. Cf. supra, introdução, n. 1. 20 Cap. 6, n. 7 e cap. 8, n. 10 (PL 2, 98, 101), quanto ao sentido. 21 Livro III, cap. 15, n. 42 (PL 32, 1292).

9

causas de tudo, e porque tudo implementa, chegando até o fim de tudo. Essa razão é a verda-

de simples e verdadeiramente existente”. Com efeito, Deus é dito razão de dois modos: ao

conhecer e ao fazer. – Igualmente, “costumam22, entendendo mal, considerar o nada como

algo e o pecado nada é, bem como nada fazem os homens quando pecam, e o ídolo não foi

feito pelo Verbo, pois o ídolo nada é: 1Cor 8, 4”. Mas essa privação, no termo “não algo”, deve

ser entendida no gênero do costume e uma vez que “não algo” é intermediário entre algo e

nada, como disse Agostinho no livro das Respostas23: “Com efeito, o pecado é um ato que inci-

de desde o defeito do bem”.

13. Sobre não observam a natureza [228, 4]24. Toca a passagem de Boécio25: “O ser é

que retém a ordem e observa a natureza”; e de Agostinho no livro Sobre a natureza do bem26:

“O pecado é a corrupção do modo, da espécie e da ordem”.

14. Sobre nascem a partir da vontade [228, 5]27. Note que o verbo “nascer” é dito

impropriamente, assim como em “ausente o sol, nascem as trevas”. No entanto, há uma des-

semelhança, visto que a ausência do sol é a causa das trevas, mas a subtração da graça não é a

causa do pecado, mas antes a conversão28. Donde, da palavra “nascem”, apresentam o argu-

mento de que o pecado é algo. Além disso, Romanos 11, 32: Tudo encerrou na infidelidade,

para que tivesse piedade de tudo. – Cumpre dizer que “ser algo” faz oposição a “nada ser”; e a

“não algo” na medida em que é termo infinito: e assim entende Agostinho, Sobre João29: “Sem

ele foi feito o nada30, isto é, o pecado”. Com efeito, este termo “nada” é tomado privativamen-

te. Donde estas são suas palavras: “Muitos costumam, entendendo mal, considerar o nada

como algo”. Mas a privação do termo “nada” é entendida no gênero do costume e uma vez

que “não algo” é intermediário entre “algo” e “nada”, como disse Agostinho no livro das Cinco

respostas31: “O pecado é o ato que incide desde o defeito do bem”.

22 Agostinho, In Ioan., tr. 1, n. 13 (PL 35, 1385). 23 Hypognosticon IV, cap. 1, n. 1 (PL 45, 1639). Trata-se do Pseudo-Agostinho. 24 Eis o texto: “Donde Agostinho, no livro Sobre a natureza do bem, cap. 28, diz: ‘Quando ouvimos que tudo seja a partir de Deus e por ele e nele, devemos entender, portanto, todas as naturezas e tudo que é naturalmente. Com efeito, não têm ser a partir dele os pecados, os quais não observam a natureza, mas viciam aqueles que nascem a partir da vontade dos que pecam’.”. 25 Sobre a consolação da filosofia, IV, pr. 2 (PL 63, 795). 26 Cap. 4 (PL 42, 553). 27 Cf. a nota referente ao texto de Lombardo citada no § 13. 28 Isto é, “o pecado é a causa da subtração da graça”. 29 Tratado I, n. 13 (PL 35, 1385). 30 João 1, 3. 31 Hypognosticon IV, cap. 1, n. 1 (PL 45, 1639). Note-se que aqui se repete muito do que havia sido dito acima no final do n. 12.

10

ALEXANDRE DE HALES*

Questões Disputadas

“Antes que fosse frade”

Questão 46

Sobre o modo de ser das coisas em Deus

Disputa I

1. Pergunta-se, em razão destas palavras que são ditas no Evangelho32: O que foi feito, era nele

vida e em razão de Rm 11, 36: Todos são a partir dele e por ele e nele, se as criaturas são em

Deus; e se são nele, se são nele segundo um modo ou segundo vários, e se são um ou vários

nele. Depois, pergunta-se se as criaturas são ditas ser nele por três modos, assim como ele é

dito ser nelas por três modos, a saber, essencialmente, potencialmente, presencialmente;

ainda, se todos são nele, se segundo este modo são nele os bens e os males, os perfeitos e os

imperfeitos, os móveis e os imóveis, os possíveis e os atuais, os corruptíveis e os incorruptíveis.

[...]

[Membro 3

Se todos que são em Deus são ali um ou muitos,

isto é, uma ideia ou noção ou muitas].

23. Depois, segue-se se são um nele, isto é, se há muitas ideias ou uma; e não digo ‘muitas’

porque de muitos, mas se muitas em si. Com efeito, se todas as criaturas têm nele a noção

própria, então, haverá tantas noções quantas forem as coisas, de modo que as noções não

sejam ditas ‘muitas’ graças às coisas, mas em si mesmas. De fato, se todos são um nele, e ser

nele é ser verdadeiramente, resta, então, que todos são verdadeiramente um. Isso é falso:

portanto, o primeiro. – Respondo, a esse argumento, que não vale. Porque, assumindo que

‘ser nele é ser verdadeiramente’, digo que o ser de Deus é verdadeiro; no entanto, aquele ser

da coisa que nele é vida não é verdadeiro: com efeito, não é porque Deus foi presciente de que

ele fosse desde a eternidade que foi verdadeiramente homem; donde não se segue que todos

sejam um. Com efeito, o sentido daquela conclusão é que, no seu gênero de existência, todos

são um: confusos ou graças à unidade da matéria ou à unidade da forma. O que é falso, por-

que nem todos têm a matéria comum, porque os espíritos não têm a matéria comum com os

corporais, nem, semelhantemente, os corpos espirituais têm [a comum] com os corruptíveis.

Portanto, embora seja uma a forma exemplar que é do exterior, não graças a isso serão todos

um.

24. Depois, pergunta-se se devem ser ditas noções comuns diferentes em si, ou se a mesma. E

vê-se que diferentes. Com efeito, maior é a distinção de quaisquer que sejam as coisas em seu

ser que das espécies entre si, sejam elas quais forem; e tomo ‘coisas’ no seu gênero, ou coisas

da substância, ou da quantidade, ou da relação. – Isso é patente: com efeito, é maior a distin-

ção da gramática e da música no seu gênero que das espécies da brancura e da negrura na

alma, porque as espécies não têm alguma oposição na alma, enquanto as coisas têm. Com

* Cf. MAGISTRI ALEXANDRI DE HALES, Quaestiones Disputatae ‘Antequam Esset Frater’. Nunc primum editae studio et cura PP. Collegii S. Bonaventurae. Florença: Quaracchi, 1960, Vol. II, Quaestiones 34-59, p. 783.795-801. 32 Jo 1, 3-4: E sem ele nada foi feito do que foi feito. Nele era a vida etc.

11

efeito, embora possa dizer que o gramático e o músico são um, não posso dizer, no entanto,

que a gramática e a música sejam um; mas sobre quaisquer que sejam as espécies posso dizer

que são um, porque, pela união, são o mesmo quanto ao próprio intelecto. Portanto, resta que

maior é a distinção de quaisquer que sejam as coisas que a de quaisquer que sejam as espé-

cies. – Ora, a distinção do Pai e do Filho e do Espírito Santo é a distinção das relações, enquan-

to as relações são coisas, porque são ditas três coisas pelas quais fruímos.33 Mas foi provada

[maior] a distinção das coisas que a das espécies; portanto, é menor a distinção das espécies

que a das pessoas. Portanto, resta que, visto que não repugne à simplicidade da essência a

distinção das pessoas, com muito mais força não repugnará a das espécies. Nem há impedi-

mento de outro lugar, como se vê, que possa haver a distinção das espécies na essência divina;

porque unicamente nisso diferem as espécies que são em Deus e as que são na alma: porque

as espécies na alma são feitas; ora, em Deus não são feitas, mas feitoras. Ora, que sejam feito-

ras não impede que ali possa haver a distinção das espécies, e mais não se encontra ali, e con-

vém à potência dele que sejam várias; portanto, dir-se-á que há na mente divina muitas no-

ções em si, e não unicamente em comparação às coisas.

25. Ainda, Agostinho diz nas 83 Questões34: “O cavalo não foi criado pela mesma noção que o

homem, mas cada um foi criado pelas noções próprias. Ora, não se deve arbitrar que essas

noções sejam senão na mente do Criador: com efeito, não foi posto fora de si o que quer que

tenha visto”. Portanto, se o cavalo não é pela mesma noção que é o homem, então, as noções

próprias eternas de cada um são na mente do Criador. – Ainda, Agostinho, em Sobre a Trinda-

de VI35, diz que é “arte plena” sempre “de todas as noções dos viventes”.

26. Se for dito que ‘muitas’ são ditas graças à referência para as coisas que são ideadas ou são

feitas segundo elas: donde essa multiplicidade não é senão na referência – contra, Remígio36:

“Cada um tem a noção graças à qual é feito”. Ora, consta que uma é a noção graças à qual é

feito o homem e outra graças à qual é feito o asno; ora, essa distinção não é nas próprias coi-

sas: com efeito, embora haja utilidades nas coisas, as noções, no entanto, não são nas coisas,

mas junto ao feitor. Portanto, se são postas muitas utilidades, e pelas utilidades correspondem

as noções junto ao feitor – com efeito, o artífice não faz senão graças à noção que é junto a si;

e, além disso, uma é a noção de um feito e outra a de outro, e essas são junto ao feitor –, en-

tão, resta que há várias noções em Deus.

27. Contra, a saber, que todos sejam segundo uma noção em Deus, Agostinho37: “A arte é ple-

na das noções de todos os viventes”; e segue-se: “Todos nela são um, assim como ela é um

sobre o uno, com o qual um”. Portanto, todas aquelas noções são um segundo o que são nele.

28. Além disso, o Damasceno38: “Todos são um em Deus para além da não geração, da geração

e da processão”; e as noções são nele para além delas segundo a noção inteligida; portanto,

resta que todas as ideias sejam um nele, porque as próprias ideias não são a não geração ou a

geração ou a processão.

33 Agostinho, Sobre a doutrina cristã I, cap. 5: “Portanto, as coisas pelas quais se deve fruir: o Pai, o Filho e o Espírito Santo” (PL 34, 21). Cf. Lombardo, Sent. I, d. 1, cap. 2. 34 Questão 46, n. 2 (PL 40, 30). 35 Cap. 10, n. 11 (PL 42, 931). 36 Isto é, Nemésio de Emesa, De natura hominis, c. 1 (PG 40, 526 A). 37 Sobre a trindade VI, cap. 10, n. 11 (PL 42, 931). 38 Sobre a fé ortodoxa, I, cap. 2 (PG 94, 791 D); versão de Burgúndios, cap. 2, n. 2: “O Pai, o Filho e o Espírito Santo segundo todos são um, para além da não geração e da geração e da processão” (ed. E. Buytaert, p. 14).

12

29. Ainda, quanto ao mesmo: é maior perfeição inteligir muitos por um do que muitos por

muitos, sendo que pode igualmente [ser feito] por um e por muitos; porque o uno é antes de

muitos, e, assim, mais se aproxima da perfeição do que os muitos. Portanto, resta, visto que as

noções digam aquilo pelo que as coisas são feitas, [que] mais se aproxima da perfeição que

uma ideia em si faça muitas coisas que muitas. Ora, o que mais se aproxima da perfeição é

atribuído a Deus39, no qual há a suma perfeição; portanto, todos são ditos nele apenas segun-

do uma noção.

30. Se for dito que não são ditas uma ideia ‘em si’, mas porque vêm ao uno pela ordem, isto

nada é. Com efeito, entendamos, pelo impossível, que as coisas não sejam ordenadas: quanto

a isso, se a multiplicidade for entendida sem a ordem e a intelecção for pelas espécies, é ne-

cessário que aqueles muitos sejam inteligidos por suas espécies. Mas, assim, não pode ser

dito, daquilo que são ordenadas a um, que as espécies sejam um. De modo semelhante, as

espécies das coisas são junto ao intelecto divino, sejam as coisas ordenadas ou não. Portanto,

vê-se quanto a isso que todos não são ditos uma ideia porque são ordenados a um.

31. Ainda, quanto ao mesmo, Agostinho40: “O Sumo Espírito, pelo mesmo verbo pelo qual diz a

si mesmo, diz tudo ser feito”. Ora, o verbo pelo qual diz a si é a semelhança expressíssima de-

le41; portanto, também ele será a semelhança expressíssima das coisas; portanto, será uma

semelhança de tudo.

32. Depois, pergunta-se incidentalmente se pode ser dita expressíssima a semelhança das cria-

turas: porque ou semelhança acidental ou substancial. Não acidental: porque expressíssima,

não pode ser senão substancial; além disso, nenhum acidente é comum a Deus e à criatura.

Contudo, se for substancial, então, vê-se que as criaturas sejam sobre a substância de Deus, o

que é falso.

33. Respondo: Note que ‘noção’ faz referência à causa final: com efeito, a noção é além da

qual a coisa é ou é feita; ‘ideia’ à formal: ora, é ideia segundo a qual é contemplada; ‘exem-

plar’, porém, é para aquilo de cuja similitude é feito ou pode ser feito42. Portanto, digo que a

ideia é intermediária segundo a noção inteligida entre a essência divina e a criatura que ela

faz; ora, nada é intermediário segundo a coisa. E porque é a modo de intermediário segundo a

inteligência, a ideia tem algum modo desde uma parte, e outro desde a outra parte. Desde a

parte das criaturas tem que seja ‘muitas’; ora, desde a arte de Deus, que seja ‘una’. Donde

cumpre notar que não é dita propriamente ‘muitas’ enquanto a multiplicidade que é nelas for

expressa pela dicção que significa a multiplicidade, mas pela dicção que cosignifica a multipli-

cidade. Isso é patente desde as palavras de Agostinho: com efeito, há aquela arte plena das

noções de cada um. E esta é a razão: porque da parte de Deus a ideia se dá mais proximamen-

te, donde mais convém a ele a unidade que a pluralidade; donde, se for propriamente expres-

sa aquela pluralidade, deve ser expressa pela multiplicidade ‘cosignificada’ e não ‘significada’.

Donde esta: ‘ideias’, é própria, esta: ‘muitas ideias’, porém, menos própria. Portanto, cumpre

39 Anselmo, Monológio, cap. 15 (PL 158, 163 C); Damasceno, Sobre a fé ortodoxa IV, cap. 12 (PG 94, 1134 C); versão de Burgúndio, cap. 85, n. 2: “Com efeito, tudo deve ser mais bem devolvido a Deus”. 40 Confissões, XI, cap. 7, n. 9 (PL 32, 813); Anselmo, Monológio, cap. 33 (PL 158, 188 C). 41 Agostinho, Sobre as 83 questões diversas, q. 74 (PL 40, 86); Sobre a trindade XV, cap. 14, n. 23 (PL 42, 1076). 42 Cf. Alexandre de Hales, Glosa para Sentenças I, d. 36, n. 4, ou, aqui, n. 8: “Ainda, exemplar, noção, ideia são o mesmo na coisa, mas o exemplar enquanto causa eficiente, a ideia enquanto formal, a noção enquanto final. [...]”.

13

dizer que as noções são várias na conversão para as coisas, são um na conversão para Deus;

donde “a arte é plena de todas as noções dos viventes, e todos são um nela”43.

34. Mas se são um, de que modo todos são ditos por aquele uno? Isto será dito depois, na

questão Sobre a ciência.44

35. Para a objeção de que mais é sustentar a pluralidade de quaisquer que sejam as coisas do

que a das espécies (24), digo que são excedentes e excessivas. Com efeito, o Pai, o Filho e o

Espírito Santo são três coisas distintas, mas se têm mais proximamente da essência da pessoa

que da ideia. Isso é patente desde as palavras de Agostinho, que diz: “Todas as noções são um

nela”, a saber, na arte, “assim como ela um sobre o uno”. Donde esta é a ordem segundo a

inteligência nos divinos: primeiro é que o Pai e o Filho [e o Espírito Santo] são um na essência

divina; depois é que o Filho é desde o Pai [e o Espírito Santo desde ambos]; depois são as no-

ções das coisas. Com efeito, a primeira manifestação de Deus está nisto que gera o Filho sobre

sua substância e que espira o Espírito Santo; a segunda manifestação que se segue a estas é o

criar; ainda, há outra, pela qual as coisas são inteligidas pelo anjo ou pela alma. Portanto, há

nos divinos uma dupla manifestação: uma pela qual o Verbo é desde o Pai, outra pela qual o

Espírito Santo é desde ambos. Segundo estas manifestações há duas na criatura. Uma é a ma-

nifestação no homem ou no anjo, segundo o que as criaturas são inteligidas por eles; e esta

corresponde àquela manifestação da virtude de Deus [que é] segundo o que o Filho é desde o

Pai. Outra é a manifestação nas coisas segundo o que são criadas, e esta corresponde à mani-

festação que é segundo o que o Espírito Santo é desde o Pai e desde o Filho. Portanto, antes

que intelijamos a multiplicidade das coisas, há aquela manifestação pela qual se manifesta no

Filho e no Espírito Santo. – Portanto, quando se diz ‘maior é a distinção das coisas que a das

espécies das próprias coisas’, é verdadeiro e é falso. Porque se dissermos ‘espécies’ segundo o

que são na alma e ‘coisas’ as criaturas, digo que é verdadeiro. No entanto, se dissermos ‘coi-

sas’ a paternidade, a filiação e a espiração, digo que é menor a distinção daqueles que a das

ideias que são na mente de Deus, porque esta distinção precede necessariamente àquela que

é das espécies. Donde é mínima entre todas aquela distinção que é das pessoas, porque é tal

qual o exemplar de tudo; ali há a suma perfeição naqueles três. Donde diz Agostinho45: “O

mesmo verbo pelo qual diz a si, diz tudo ser feito”.

36. Para a pergunta de se o Verbo de Deus é a semelhança expressíssima das criaturas (31),

digo que não; ou melhor, é unicamente a semelhança expressíssima do Pai.

37. Para a pergunta de se a semelhança acidental ou substancial das coisas (32), digo que essa

divisão se dá quando há a semelhança na coisa assemelhada; ora, o Verbo é a semelhança que

assemelha; ora, aquilo deve ser entendido sobre a semelhança assemelhada. Por exemplo,

dois convêm na brancura, ou convêm na semelhança; ora, a própria semelhança não convém

em algo outro? Não; ou melhor: ela é semelhança de si mesma. Assim deve ser entendida ali, e

muito mais excelentemente.

43 Agostinho, Sobre a trindade VI, cap. 10, n. 11 (PL 42, 931). 44 Questão ainda não encontrada, a não ser que se trate da questão 2 do Apêndice II. 45 Supra, n. 31.

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ALEXANDRE DE HALES*

Questões Disputadas

“Antes que fosse frade”

Apêndice II

Questão 2

Sobre a ciência divina46

[...]

11. Depois, pergunta-se: tendo dito Agostinho nas 83 Questões47 que há ideias na mente divi-

na, “nas quais, quem não crê, julgo que seja infiel”, dado que disse no mesmo livro que “cada

um é criado pela noção própria”: há a questão de se são o mesmo que a essência divina e don-

de são ditas muitas.

12. Argumenta-se que [as mesmas ideias] não sejam [as essências] divinas por certa considera-

ção no livro Sobre o acidente48, que é a seguinte: Se alguém disser que o saber é o inteligir ao

fazer referência ao uno e aos vários quando são dissonantes: se são dissonantes, isto não é

aquilo. Por exemplo, visto que a essência divina seja una de todos os modos, e há várias ideias

ou noções, a essência divina não será as ideias ou noções. – Ainda, a essência não é própria a

nada a não ser a si mesma, mas as noções são próprias a cada um; portanto, a essência divina

não é aquelas noções.

13. Ainda, ou uma noção é outra, ou não. Argumenta-se que não a partir disso que os singula-

res têm noções próprias; ora, nos próprios nenhum é o outro. De fato, se nenhuma daquelas é

a outra, e são a essência divina, nela haverá a multiplicidade para além das pessoas; portanto,

não é completamente simples, assim como a alma não é posta completamente simples, visto

que, por natureza, tenha a multiplicidade das espécies inteligíveis.

14. Donde pergunta-se: visto que há muitas ideias, mas a multiplicidade não pode ser desde a

parte da essência divina nem nelas mesmas, dado que apenas há um desde a eternidade, en-

tão, (a multiplicidade) será segundo a referência às coisas a serem criadas ou criadas; portan-

to, a multiplicidade é naturalmente pré-inteligida tanto nas coisas criadas quanto nas ideias;

portanto, vê-se que o temporal é causa do eterno.

15. Ainda, toma-se a unidade e a multiplicidade nas ideias: por que não as outras disposições,

como a mutabilidade e a imutabilidade, a substancialidade e a acidentalidade?

* Cf. MAGISTRI ALEXANDRI DE HALES, Quaestiones Disputatae ‘Antequam Esset Frater’. Nunc primum editae studio et cura PP. Collegii S. Bonaventurae. Florença: Quaracchi, 1960, Vol. III, Quaestiones 60-68, Ap-pendix II, p. 1461-1465. 46 Segundo observa WOOD, R. 1993, Distinct Ideas and Perfect Solicitude: Alexander of Hales, Richard Rufus, and Odo Rigaldus. Franciscan Studies, Vol. 53, p. 9, n. 7, ainda que seja “muito provável”, há certa dúvida sobre se Alexandre é de fato o autor desta questão. 47 Questão 46, n. 2 (PL 40,30). 48 Aristóteles, Topica, II, c. 10: “Ora, ainda é preciso considerar quanto ao uno se também se dá seme-lhantemente a vários. Com efeito, às vezes há diferença. Por exemplo, se saber é cogitar, saber muitos também é cogitar muitos... Portanto, se não houver isso, também não se diz o outro sobre o uno, que o saber seja o cogitar” (Bekker, 114b 32-36).

15

16. E deve-se dizer que as ideias são o mesmo que a essência divina, e, semelhantemente, as

noções. Ora, diferem pela noção e pela referência. Pois é dita essência divina enquanto é con-

siderada absolutamente, mas é dita ideia segundo a referência à criatura. E não se segue, se

um for dito segundo a unidade e a multiplicidade e o outro não, que isto não seja aquilo. Com

efeito, isto não é requerido para ela essencialmente e segundo a substância ou o sujeito. Pois

um homem é um animal, e muitos homens muitos animais; e um homem um branco, e muitos

homens muitos brancos; e, no entanto, muitos animais um animal, e muitos homens um ho-

mem. E aquela unidade é a da noção. Não se dá assim onde uma voz significa muitos; no en-

tanto, diz-se mais convenientemente o signo de muitos ou a ideia de muitos.

17. Quanto à objeção sobre as noções, diga-se que as noções são ditas próprias segundo o que

são noções; porque as noções voltam-se para a causa final, porém, há diferentes causas finais

criadas. Mas todas aquelas, que são as noções, se dão desde a causa final incriada. Portanto,

que sejam “próprias”, não se dá em referência daquilo que é eterno, mas do temporal. Que

sejam “noções”, isto se dá daquilo que é eterno, e são eternamente noções. Ora, que aquelas

noções sejam eternas é tomado daquilo que disse Agostinho nas 83 Questões49. Com efeito,

disse que não se dá que se as sustente em outro que em Deus, e não temporalmente, mas

desde a eternidade.

18. Para o que se pergunta, se deve-se dizer mutáveis ou imutáveis, assim como unos ou mui-

tos, diga-se que não, pois a unidade [e] a multiplicidade são disposições consequentes ao ente

inteligível e são no exemplar e no exemplo; ora, a mutabilidade é a disposição quanto ao prin-

cípio, o qual é o não ser: com efeito, é mutável do não ser ao ser.

19. Quanto à objeção de que se vê que o temporal seja a causa do eterno, diga-se que nada

proíbe que o temporal seja o princípio da intelecção do eterno, mas não do ser. Portanto, a

multiplicidade das ideias não é senão cosignificada, não principiando a substância delas. Por

isso, se inteligimos a ideia desde a parte dos ideados, cointeligimos a multiplicidade pela ideia.

20. Donde pode-se perguntar: dado que as ideias e as noções são ditas várias pela cosignifica-

ção, dado também que são ditas respectivamente, graças a que não (são) sabedoria ou ciên-

cia? E, novamente, convém separar pelas noções qual é a diferença entre estas três. – Para

isso, diga-se que, segundo o modo de inteligir, entre a essência divina e as coisas criadas caem

intermediárias a sabedoria e [a ideia] e a noção. Segundo o modo de inteligir, a sabedoria ou

ciência se dá mais proximamente com a essência do ciente; a noção e a ideia, da parte das

coisas criadas. Mas de modo diferente, pois a noção é mais próxima que a ideia: com efeito, a

ideia nem sempre é dita própria, mas a noção sempre é dita própria. E, por isso, a sabedoria

ou ciência não é dita uma e própria. Ora, as ideias são ditas muitas, mas não próprias, as no-

ções muitas e próprias. E segundo isso há o considerar na alma humana, na qual há ciência e a

espécie e a noção. E há diferença, visto que a noção se volta à causa final, a ideia à exemplar, a

ciência à efetiva, que é a vontade; e estas três compreendem a eficiente: a potência, a vontade

e a ciência.

21. Ainda há a questão: se as ideias são várias, ou pela coisa, ou pela noção. Se pela coisa, en-

tão há muitas desde a eternidade. Se pela noção, ou, novamente, as noções são coisas, ou

intelecções. Se coisas, novamente, há o inconveniente como acima; se intelecções, vê-se que o

intelecto componha a multiplicidade onde não há. – Respondo: Há a multiplicidade da noção e

a multiplicidade da coisa. A primeira está na ideia, e, desde a multiplicidade, há essa noção nos

49 Questão 46, n. 2 (PL 40,30).

16

ideados; e não põe a multiplicidade na ideia, mas na compreensão da ideia. E a intelecção não

é vazia e vã graças a que não põe nenhuma multiplicidade na substância da ideia, mas (põe a

multiplicidade) naquilo que é dito para ela. Com efeito, digo, falando propriamente, que o

ideado (põe a multiplicidade) para a ideia e também a semelhança (põe a multiplicidade) para

a coisa desde a qual é, pois a semelhança e o ideado (põem a multiplicidade) desde a ideia.

22. Donde pergunta-se se apenas os bons são sabidos. O que se vê, uma vez que nada é sabido

senão aquilo de que há exemplar no Deus ciente; portanto, os males não são sabidos, visto

que não há exemplar dos males no Deus ciente.

23. Agostinho quanto ao mesmo, Sobre o livre arbítrio50: “As naturezas são tão viciosas quanto

se afastam da arte daquele pela qual são feitas; e são tão retamente censuradas quanto, delas,

o censor vê a arte pela qual são feitas, visto que censure nelas aquilo que ali não vê”. – Ainda,

Cassiodoro, sobre o Salmo51: “Os pecados são escondidos de Deus”.

24. Ainda, se os males são na ciência de Deus, os males são no Deus ciente. Ora, o mesmo é

segundo a coisa Deus e Deus ciente; portanto, são em Deus. – Contra, Agostinho52, Rm [11, 36:

A partir dele e por ele e nele são todos]: “São por ele e nele aqueles dos quais é autor”.

25. Contra, o Profeta disse: Conhece de longe os altos, Glosa53: “Soberba”. Ainda, de que modo

puniria os pecados a não ser que soubesse que pecasse? Com efeito, convém residir junto ao

juiz o conhecimento do delito.

26. Respondo: Saber é dito de dois modos, proporcionalmente àquilo que é o saber em nós:

pois há o saber especulativo ou contemplativo e o saber prático; e esse é dito a ciência do que

é beneplácito em Deus. Ora, novamente, o saber contemplativo é dito de dois modos: pois de

um modo o saber é dito aquilo de que a causa reside junto ao intelecto; de outro modo, de

que a privação da causa está junto a ele. E por este último modo os males são sabidos, porque

em tais não é encontrada a similitude de Deus enquanto são deste modo, mas são ignorados

dos outros dois modos. E, segundo isso, são procedentes as autoridades referidas em contrá-

rio.

27. Ainda, há a questão de se ele conhece tudo como causa ou não, porque sobre isso os Filó-

sofos tinham várias opiniões. Com efeito, alguns provam que as ideias são várias em Deus, e

não permanece, graças a isso, que seja a causa suma e suprema. E assumem essa prova uni-

versal: o uno não é aquilo pelo qual muitos distintos são conhecidos; mas os universais são

conhecidos como distintos por Deus, pois se não fossem conhecidos [como distintos], a cogni-

ção do homem seria mais perfeita que a de Deus; portanto, há a cognição divina pela multipli-

cidade das ideias. – Ainda, quanto ao mesmo, fazem uma indução semelhante: que resultem

no espelho corporal imagens ou semelhanças, não mostra a impotência do espelho, mas a

potência; ora, que façam referência (!), mostra a impotência. Porque, se desde a eternidade há

as ideias de tudo, nisso se mostra a virtude do Primeiro, não a imperfeição, porque é pôr a

suma perfeição nele.

50 Livro III, cap. 15, n. 42 (PL 32, 1291s.). 51 In Ps. 16,14: Do escondido para ti, está repleto o ventre deles (PL 70, 122A) 52 Melhor, P. Lombardo, Sent. I, d. 36, c. 2, donde foram tomadas todas as autoridades aqui referidas. 53 De Lombardo: “Isto é, os soberbos” (PL 191, 1208 C).

17

28. Contra isso, faz-se objeção de muitos modos: primeiro, que se houvesse ideias em Deus, ou

seriam finitas em número ou infinitas. Não infinitas, pois isso seria supérfluo, pois todo conhe-

cimento e natureza é refratário à infinidade. Ora, se finitas, então seria impossível que Deus

conhecesse várias coisas que foram ou serão: ora, várias podem ser. Portanto, visto que a po-

tência de Deus seja infinita, aquelas coisas não são conhecidas por Deus, embora tenha a se-

melhança delas. Portanto, segundo isso, nem tudo é conhecido por ele. Dado que isso seja

falso, resta que o primeiro54 seja falso. – Ainda, visto que é mais perfeito conhecer muitos por

um que muitos por muitos, pois o uno é anterior a muitos, e isso é possível, porque infinitos

singulares são conhecidos por um universal. – Ainda, é mais perfeito conhecer na causa que na

não causa, e [na] causa não dependente de mudança ou do mutável que na dependente. Ora,

há uma causa do imutável; portanto, conheceria a si mesma.

29. O que deve ser concedido. Ora, cumpre distinguir...55 que a ciência divina é diversa da hu-

mana. Com efeito, a ciência divina é sobre as coisas pela causa das coisas, que é anterior a

todas, na qual as coisas têm a sua perfeição. E não é da perfeição da intelecção ter a multipli-

cidade de fantasias, desde as quais se dá a distinção das intelecções, ou melhor, assim como,

no seu ser, as coisas procedem distintas desde a própria causa feitora, na qual não se distin-

guem, assim as coisas são conhecidas distintamente pelo mesmo cognoscente, embora não

haja nenhuma distinção nelas. E assim como por um universal são compreendidos vários singu-

lares, que entre si são diversos, por uma causa todos os causados: com efeito, não é possível

haver um universal tal como há uma causa de todos os causados. – Ora, não há semelhança

entre o espelho e a ciência divina: pois, que o espelho tenha muitas semelhanças das coisas,

cabe à virtude do esplendor do terminado para o terminado transparente, a saber, o vidro

extenso. De outra parte, visto que seja completamente simples, não há duas naturezas em

Deus, das quais uma possa ser a multiplicidade segundo a recepção das imagens desde as coi-

sas exteriores, visto que nada recebe destes que são exteriores.

[...]

54 Isto é, o primeiro argumento que defende que as ideias não são infinitas em Deus. 55 Nota da edição crítica: “segue-se uma pequena adição marginal, infelizmente ilegível em nosso exem-plar”.

18

ALEXANDRE DE HALES*

Suma Teológica

Tomo I

Livro I

Quinto Tratado

Sobre a ciência de Deus

Seção I. – Sobre a ciência de Deus considerada absolutamente.

Questão Única

Sobre a Natureza e a as condições da ciência divina.

Auxiliando a graça do Salvador, após a investigação sobre a potência, deve-se perguntar deste

modo sobre a ciência divina:

Primeiro, o que é segundo a noção inteligida; segundo, pelo que é; terceiro, do que é; quarto,

como é.

163

MEMBRO I

O que é a ciência divina.

Acerca do primeiro, pergunta-se: o que é a ciência divina segundo a noção inteligida?

Quanto a isso, se procede assim: a. Agostinho, no livro Sobre a trindade:56 “A ciência é a pró-

pria sabedoria, a sabedoria o mesmo que a própria essência, porque naquela Trindade o saber

não é diverso do ser”. Portanto, a ciência não é nada diverso da essência divina.

I. Pergunta-se, então, se, na ciência, algo é conotado para além da noção da essência.57

E parece que sim: 1. Com efeito, Hugo de São Vitor diz58: “Nada é a ciência que não é sobre

nada. Portanto, toda ciência é sobre algo, porque se não houvesse nada sobre o que haver

ciência, a ciência não seria nada.” Portanto, em toda ciência conota-se a referência àquilo que

pode ser sabido.

2. Ainda, a ciência é a assimilação do intelecto à coisa sabida59. Portanto, se a assimilação co-

nota a referência, de modo semelhante também a ciência a conotará.

3. Ainda, Hugo de São Vitor, em suas Sentenças:60 “A ciência é dos existentes, a presciência,

dos futuros” etc. Portanto, a ciência diz a referência para as coisas existentes, assim como a

presciência para as coisas futuras.

* DOCTORIS IRREFRAGABILIS ALEXANDRI DE HALES, Summa Theologica. Studio et cura PP. Collegii S. Bonaventu-rae ad Fidem Codicum Edita. Tomus I. Liber Primus. Florença: Quaracchi, 1924, p. 244-250.257-261. 56 XV, c. 13 (PL 42, 1076). 57 Cf. Guilherme de Auxerre, Summa, I, c. 8, q. 1. 58 De sacr. christ. fid., I,p. 2,c. 14 (PL 176, 212). 59 Cf. Aristóteles, De anima III, 8.

19

Contra: a. 35 Dist.61 diz: “Se nada fossem os futuros, nada seria a presciência, ainda que hou-

vesse ciência em Deus”; ora, se não houvesse coisas futuras, não haveria o dizer a referência à

criatura; portanto, na ciência não é requerida a referência à criatura.

b. Ainda, quando se diz que Deus sabe a si, se diz a essência divina, mas não é contada a refe-

rência à criatura; portanto, não está importada a referência à criatura em virtude do significa-

do do nome de ciência.

c. Igualmente, quanto ao mesmo, Dionísio, no livro Sobre os nomes divinos:62 “a sabedoria

divina, ao conhecer a si mesma, conhece tudo”. Portanto, não conhece e sabe de outro modo

que por si mesma; ora, quando digo: “conhece a si ou sabe”, não está conotada a referência à

criatura; portanto, de modo semelhante, nem quando se diz “sabe a coisa”.

d. Para isso é possível responder que “saber” às vezes é dito absolutamente, e, assim, não está

conotada a referência. Às vezes é dito respectivamente com a determinação, mas isso de dois

modos, porque, às vezes, com a determinação da própria referência de si, e, assim, não é im-

portada a referência. Às vezes, com referência ao diverso, e, assim, a referência é importada, e

isso de dois modos, assim: como que em ato ou como que em hábito. – Mas, contra, diz-se que

Deus sabe a si, sabe a criatura: portanto, ou univocamente ou equivocamente. Se univocamen-

te, então há uma única noção inteligida quanto aos dois: portanto, se a referência não está

conotada quando se diz “sabe a si”, de modo semelhante, não está conotada quando se diz

“sabe as criaturas”. Se equivocamente, então por uma noção diversa sabe a si e as criaturas –

contra: ao saber-se, sabe as criaturas, como disse Dionísio63, portanto, não sabe a si e as cria-

turas por uma noção diversa, então, pela mesma.

e. Ainda, contra isso que foi dito, faz-se a objeção: ao se dizer “Deus sabe as criaturas”, está

conotada a referência, ao se dizer “Deus sabe”, de modo absoluto, não está conotada nenhu-

ma referência. Portanto, se aqui não está conotada nenhuma referência, então, em virtude do

nome, a ciência não conota nada. – Vê-se isso de um segundo modo: com efeito, há que se

considerar o nome divino em si e na coordenação. Se algum nome nada conota em si, também

não conota algo na coordenação em virtude do nome. Ora, é patente que, em todos os nomes

divinos que conotam, há conotação também fora da coordenação: como é patente neste no-

me “criador”, em “senhor” e semelhantes, e assim por diante. Se, portanto, este verbo “sabe”

nada conota fora da coordenação, também não conotará na coordenação em virtude do signi-

ficado do nome.

II. Ainda, faz-se uma objeção contra o dito de que “nada é conotado quando se diz: Deus sabe

a si” e dá-se a prova de que está conotada a referência, mas não à criatura. Pois, ao se dizer

ciência, há a intelecção da essência; portanto, ao se dizer “ciência”, ou algo é acrescentado na

noção inteligida à essência ou não. E consta que sim, porque a ciência é a assimilação do inte-

lecto à coisa sabida; ora, como diz Hilário64: “A semelhança não se dá em si”, ou melhor, a se-

melhança sempre diz que alguns convêm em algo uno; portanto, onde há semelhança, há

também a referência da pluralidade; portanto, quando a ciência é inteligida, é inteligida a refe-

rência pela qual se prova a pluralidade das pessoas. Portanto, por mais que a ciência divina

60 Pseudo-Hugo, Summa, tr. 1, c. 12 e Hugo de S. Vitor, De sacram. christ. fid., I, p. 2, c. 9 (PL 176, 61, 210). 61 Pedro Lombardo, I Sent., d. 35, c. 7 e 8. 62 Cap. 7, § 2 (PG 3, 870, PL 122, 1154). 63 Loc. cit. 64 De Trinit. III, n. 23 (PL 10, 92).

20

seja dita para si, como quando se diz “Deus sabe a si”, no entanto, está conotada a referência

das pessoas, porque está conotada a semelhança ou a assimilação.

III. Mas pergunta-se, além disso, se essa semelhança é entendida como exemplar, segundo o

que se diz que a ciência divina não é nada diverso da essência divina significada como exem-

plar65. Se assim, – contra: a ciência não é a causa das coisas, porque há a ciência de Deus dos

males, no entanto, Deus não é a causa dos males; ora, o exemplar é causa formal: com efeito,

Deus é a causa formal exemplar; portanto, a ciência não diz a essência divina como exemplar.

– Ainda, não há exemplar das coisas não existentes; ora, há ciência das coisas não existentes;

portanto, não são o mesmo a ciência e o exemplar.

IV. Ainda, pergunta-se porque a ciência divina é nomeada de modos diversos, como é patente

na distinção 35 do livro I das Sentenças66: com efeito, a ciência é nomeada sabedoria, presci-

ência, disposição, providência, predestinação.

1. Com efeito, vê-se que deveria ser nomeada de vários modos, pois, assim como a predesti-

nação é a presciência dos que hão de ser salvos, assim a reprovação é a presciência dos que

hão de ser condenados; portanto, assim como a predestinação é dita uma diferença da ciência,

assim deve ser dita a reprovação.

2. Ainda, pergunta-se por que a memória não é dita a ciência dos passados, assim como a

presciência [é dita a ciência] dos futuros, dado que, assim, são sabidos por ele tanto os passa-

dos como os futuros.

Respondo: I. O nome “ciência” significa principalmente a essência divina, no entanto, não sig-

nifica a essência divina como essência, mas como hábito: com efeito, a ciência em nós é o há-

bito quanto ao que há de ser conhecido, assim como a virtude é o hábito quanto ao que há de

ser operado. Ora, a ciência ou esse hábito não é nada diverso da assimilação do intelecto à

coisa. Ora, a semelhança pode ser em ato ou em hábito, assim como é patente: posto que

nada seria a cor e que a luz teria a semelhança de todas as cores, a luz teria a semelhança para

todas as cores em hábito; de modo semelhante, para os sabíveis remotos, a ciência, que é

assim como a luz, tem semelhança para eles em hábito, mas não em ato. Portanto, cumpre

dizer que é semelhança em ato e semelhança em hábito; ainda, é semelhança para as coisas e

é semelhança desde as coisas: semelhança para as coisas como é patente na arte; ainda, é

semelhança da coisa graças ao intelecto especulativo e semelhança da coisa graças ao intelec-

to prático, a qual é dita arte se for comparada à obra. Portanto, a ciência de Deus, falando

segundo nós, diz a semelhança especulativa não desde as coisas, mas para as coisas; em hábi-

to, não em ato. Para si, porém, em ato. Ora, digo que sabe “em ato” quando intelige as coisas

que existem em ato ou na natureza própria, não apenas na causa; “em hábito”, quando inteli-

ge em seu exemplar ou na arte. Portanto, diz-se que a semelhança é “especulativa” para mos-

trar que a primeira intenção da ciência, uma vez que é dos bens e dos males, não é como a

intenção da arte, que é deste modo: ou do exemplar, ou da virtude. De fato, é dita “para a

coisa” não segundo a dependência, mas segundo a causa, para que seja separada da ciência

humana, que recebe desde as coisas. Donde Dionísio, Sobre os nomes divinos67: “O intelecto

divino não aprende os entes a partir dos entes, mas a partir de si; em si, segundo a causa, pre-

concebe a notícia e a ciência de tudo”. Mas é dita “para a coisa” em hábito porque, como diz

65 Guilherme de Auxerre, loc. cit. 66 Cap. 1. 67 Cap. 7, § 2 (PG 3, 870, PL 122, 1154).

21

Hugo de São Vitor68: “Dizemos, por acaso, que, desde a eternidade, tiveram ser no Criador

todos os incriados que são criados temporalmente? E ali se sabia onde se dariam, e desse mo-

do se sabia pelo que se dariam, e não conheceu algo fora de si o Deus que tudo tinha em si”.

Porém, é dita “para si” em ato porque sempre está presente para ele em ato.

[Para as objeções]: 1. Portanto, para aquela objeção de Hugo de que “a ciência é sobre algo”:

diga-se que, quanto toca ao nome “ciência”, não diz respeito às criaturas em ato, mas em hábi-

to; mas quando se diz “sabe as criaturas”, como que a referência é reduzida de hábito em ato:

com efeito, então diz respeito em ato.

3. Quanto àquilo a que se faz a objeção de que “a ciência é dos existentes”: diga-se que a exis-

tência é entendida ou em sua natureza ou na causa; ainda, na causa são entendidos ou como

na potência da causa ou como na disposição de sua causa. Portanto, quando se diz “a ciência é

dos existentes”, deve-se tomar “dos existentes” na potência da causa, assim como Hugo disse.

2. Semelhantemente, diga-se que a assimilação deve ser entendida em hábito, não em ato,

quando a ciência é dita como que a assimilação do intelecto para a coisa.

a-e. Ainda, quanto àquilo a que se faz a objeção de que “quando se diz Deus sabe a si, não está

conotada alguma referência”69, respondo: é verdadeiro, não está conotada a referência em

ato, mas a essência divina está significada como semelhança. Ora, a própria natureza divina

tem a semelhança sobre seu poder: não a semelhança que é desde as criaturas, mas, antes, a

semelhança que é para as criaturas, mesmo que não haja criatura70: donde também está cono-

tada a referência em hábito. Portanto, conceda-se que Deus sabe a si e sabe a criatura pela

mesma noção71; mas, quando se diz “Deus sabe a si”, a referência está conotada em hábito;

quando se diz “sabe a criatura”, em ato.

II. Quanto àquilo que se pergunta se é notada a referência das pessoas, quando se diz “Deus

sabe a si”: diga-se que alguns disseram que não; ou melhor, abstraídas as pessoas, dever-se-ia

dizer: “Deus sabe a si, intelige a si, recorda a si”; no entanto, quando se diz “Deus sabe a si”, a

essência divina é inteligida como semelhança, e não há diversidade a não ser segundo a noção

inteligida. – Ou diga-se, como se diz por outros, segundo Anselmo, que se dá para a fé que a

própria ciência, que é semelhança, significa a essência e conota a pluralidade das pessoas,

porque é semelhança de vários. Donde Anselmo, no Proslogio72: “Nisto que o sumo espírito

intelige a si, o Pai gera e o Filho é gerado, porque o inteligir a si põe que a semelhança esteja

junto a si”; e, assim, se sustenta a relação de um e de outro, que, no entanto, são por tudo

semelhantes, isto é, a mesma essência.

III. Quanto àquilo que se pergunta “se pelo nome ‘ciência’ se entende a noção do exemplar”,

respondo: há a ciência simples da notícia ou especulativa e há a ciência prática ou com aprova-

ção73. Do primeiro modo, a ciência não diz a noção exemplar, mas do segundo modo.

IV. Quanto àquilo que se pergunta sobre a distinção daquelas palavras pelas quais se nomeia a

ciência divina, alguns74 disseram que a inteligência divina pode ser considerada segundo o que

68 De sacram. christ. fid., I, p. 2, c. 15 (PL 176, 212). 69 Cf. b. 70 Cf. a. 71 Cf. d. 72 Cf., antes, Monologio, c. 32 e 63 (PL 158, 186 e 209). 73 Cf. Guilherme de Auxerre, Summa I, c. 8, q. 2. 74 Cf. Pedro de Poitiers, I Sent., c. 14 (PL 211, 845).

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a referência é abstraída das coisas que são sob o tempo ou segundo o que faz referência às

coisas que são sob o tempo. Segundo o que faz referência às coisas abstraindo a referência da

condição do tempo, assim é dita sabedoria e ciência; de fato, segundo o que faz referência às

coisas sob a condição do tempo, assim é presciência, disposição, predestinação, etc. Ora, há

diferença entre a sabedoria e a ciência: pois há o considerar a própria causa, e segundo isso se

diz sabedoria; ou o efeito na causa, e assim é dita ciência, porque a ciência é a compreensão

da coisa pela causa75. Ainda, segundo o que a inteligência divina considera as coisas sob a con-

dição do tempo, há diferença: porque ou, de modo comum, diz respeito ao bem e ao mal e,

assim, é presciência; ou apenas ao bem e isso de muitos modos: pois alguns dizem respeito

aos bens tanto da natureza quanto da graça, outros ao bem unicamente da graça. Ora, o bem

da natureza é duplo: ou no que se está por fazer ou no que está feito. Se no que se está por

fazer, então, é disposição, se no que está feito, então, é providência. O bem da graça, no en-

tanto, diz respeito à predestinação. – Ou, diferentemente, segundo o que diz Hugo de São

Vitor em suas Sentenças76: “Ora a sabedoria e ciência divina é chamada tanto presciência como

disposição, predestinação, providência: ciência dos existentes, presciência dos futuros, dispo-

sição dos que hão de ser feitos, predestinação dos que hão de ser salvos, providência dos su-

jeitos”.

1. Que se pergunte por que entre esses não se nomeia a reprovação: diga-se que nada acres-

centa sobre estes ou além. Pois na intelecção da reprovação não há senão dois: a presciência

da iniquidade e a preparação da pena77; a presciência da iniquidade é inteligida na presciência,

a preparação da pena na disposição; ora, a predestinação acrescenta, porque diz a referência

para o bem da graça.

2. Quanto àquilo a que se propôs a objeção “por que não se diz memória a ciência dos passa-

dos, assim como se diz presciência a ciência dos futuros”, diga-se que se faz isso para que não

pareça que as coisas antecedem a ciência divina.

MEMBRO II

Pelo que há a ciência divina.

Segundo, pergunta-se pelo que há a ciência de Deus. E, primeiro, se Deus sabe as coisas por si

ou por outro; segundo, se pela causa ou pela não-causa; terceiro, se por um ou por muitos,

quarto, se pelo exemplar.

164

CAPÍTULO I

SE DEUS SABE AS COISAS POR SI OU POR OUTRO78.

Quanto ao primeiro, assim se procede e se prova que sabe por si: a. Porque o inteligível é a

perfeição do intelecto79. Portanto, se aquilo pelo que inteligimos é o princípio da perfeição, se

Deus inteligisse por outro que por si, aquele e seria a perfeição de seu intelecto. Ora, é impos-

sível que tenha uma perfeição exterior; portanto, não pode inteligir por outro que por si.

75 Cf. Aristóteles, Anal. Post. I, c. 2. 76 De sacram. christ. fid. I, p. 2, c. 9 (PL 176, 210). 77 Cf. Lombardo, I Sent. d. 40, c. 2. 78 Cf. S. Boaventura, I Sent. , d. 40, c. 2; Breviloq. P. 1, c. 8. 79 Cf. Aristóteles, Metafísica XI, c. 9.

23

b. Ainda, mais perfeito e mais nobre é agir e inteligir por si do que por outro; ora, o mais nobre

deve ser atribuído a Deus; portanto, o inteligir por si deve ser atribuído a Deus.

c. Ainda, se inteligisse as coisas pelas próprias coisas, seu intelecto vilesceria80; ora, seu intelec-

to não pode vilescer; portanto, etc.

d. Ainda, Dionísio, no livro Sobre os nomes divinos81: “Deus, ao conhecer a si, conhece tudo”.

Portanto, não conhece por outro.

Contra: 1. Diz-se que Deus opera e sabe e ambos são ditos com referência à criatura, porque

opera e sabe as criaturas. Portanto, se “Deus opera pela criatura” não é dito inconveniente-

mente, do mesmo modo não será inconveniente dizer “Deus sabe pela criatura”, ou diga-se a

razão por que se dirá operar por um e não saber pelo outro.

Respondo, segundo Dionísio, no livro Sobre os nomes divinos82: “Deus sabe tudo enquanto

entes em si e pré-subsistentes em si, e não recebe a ciência dos entes a partir deles”.

[Para as objeções]: 1. Para a objeção, diga-se que a ação que é significada por “saber” difere

da ação que é significada por “operar”, como é patente na alma: com efeito, a alma sabe, a

alma opera. Ora, quando se diz que a alma opera, tem-se significado o movimento desde a

alma. Porém, quando se diz que sabe, está dito, para a alma, o movimento. Semelhantemente

em Deus: quando se diz que Deus opera, tem-se significado o movimente desde si, mas quan-

do se diz que sabe, “sabe” está dito, para ele, enquanto movimento. Ora, a preposição “por”

diz a noção do princípio como se um meio, assim como quando se diz “percutir pelo cajado”,

assim como “a partir de” ou “desde” diz a noção do primeiro princípio: donde quando se diz

“desde o artífice se faz a casa pelo machado”, “desde” diz o primeiro princípio, “pelo” diz a

noção do princípio como se o meio. Portanto, onde está significada a ação que passa dele à

criatura, a saber, a que diz o movimento desde si, bem se usa a preposição “pelo” como se

fosse algo intermediário, de modo que Deus sabe na noção do primeiro princípio. De fato,

“pelo” diz a noção do princípio como se o meio, como quando se diz: “Deus faz a casa pelo

artífice”. No entanto, a preposição “pelo” não deve ser usada onde, para ele, está significado o

movimento. Donde, quando pelo verbo “saber” for dito, para ele, o movimento, ali não deve

ser usada a preposição “pelo”, porque, assim, seguir-se-ia que a criatura seria o princípio em

referência a Deus, o que é falso. – No entanto, é possível fazer uma distinção em “Deus opera

pela criatura”, porque se a preposição “pela” determina o verbo em comparação com o supos-

to83, como se dissesse a causa dele, que supõe pelo nominativo84, é falsa, e tem o sentido:

“Deus, pela criatura, é operador”; ou pode determinar o verbo em comparação com o acusati-

vo85, e assim é verdadeira e o sentido é: “Deus é operador mediante a criatura”. E assim a so-

lução86 é patente.

165

CAPÍTULO II

80 Cf. Aristóteles, loc. cit. 81 Cap. 7, § 2 (PG 3, 870, PL 122, 1154). 82 Loc. cit. 83 O “suposto”, termo técnico da lógica medieval que, aqui, significa aquilo a que o verbo é predicado, nomeado pelo sujeito da oração. 84 Isto é, pelo sujeito do verbo. 85 Isto é, pelo predicado do verbo. 86 Cf. Guilherme de Auxerre, Summa I, c. 8, q. 1.

24

SE DEUS SABE PELA CAUSA.

Segundo, pergunta-se se Deus sabe pela causa.

Parece que sim: a. Dionísio, no livro Sobre os nomes divinos87: “Segundo uma única causa sabe

todos, enquanto existentes a partir dele e nele subsistentes”. Portanto, etc.

b. Ainda, mais nobre é a ciência que é pela causa do que aquela que não é pela causa; ora, o

mais nobre deve ser atribuído a Deus; portanto, a ciência de Deus é pela causa, a saber, a cau-

sa por si.

Contra: 1. Deus sabe os males, porém, não é causa dos males; portanto, nem tudo que sabe,

sabe pela causa, porque de tudo que sabe pela causa, sabe a causa por si; ora, não sabe os

males pela causa por si; portanto, etc.

2. Ainda, ele sabe os não-entes; ora, os que não são existentes, não têm causa, como aqueles

que passaram e muitos contingentes que não serão; portanto, não sabe pela causa tudo o que

sabe.

Respondo, segundo Dionísio, no livro Sobre os nomes divinos88: “Se segundo uma causa Deus

reparte o ser para todos os entes, segundo a mesma causa singular tanto conhece todos en-

quanto entes em si e pré-subsistentes em si como não recebe a ciência deles a partir dos exis-

tentes”. Segundo isso, diga-se que há o considerar aquilo que é causa e há o considerar a causa

na noção de causa. Ora, Deus é a causa de tudo, portanto, Deus pode ser considerado ou en-

quanto aquilo que é causa ou na noção de causa. Se for considerado aquilo mesmo que é cau-

sa, tudo sabe pela causa, porque tudo sabe por si, que é a causa de tudo. Mas não sabe tudo

na noção de causa, pois onde o inteligente e a intelecção são o mesmo, não é necessária uma

causa intermediária, como é patente: quando a alma se intelige, não se intelige pela causa.

Ainda, onde a intelecção não tem causa, não é preciso que ela seja inteligida pela causa. Por-

tanto, onde a intelecção é diversa e tem causa, é verdadeiro que saber é conhecer [pelas] cau-

sas. – De modo semelhante, deve-se entender que aquele “mais nobre é a ciência pela causa”

é verdadeiro onde a intelecção tem causa; mas onde não há causa, aquele é sabido mais ver-

dadeiramente sem a causa que o outro pela causa.

[Para as objeções]: 1. Ainda, para a objeção de que “os males não são sabidos pela causa”,

diga-se que, aquilo por si, é verdadeiro que os males não são sabidos pela causa, no entanto,

por acidente, é verdadeiro que os males são sabidos pela causa, a saber, não a própria, mas

pela causa dos bens, como se dirá mais abaixo89.

2. Para a objeção que diz que aqueles que não são “não têm causa”, diga-se que têm causa em

potência, mas não em ato; com efeito, Deus é causa que pode criar aqueles que não são, cri-

ando em ato, porém, apenas aqueles que são.

Para a objeção de que “sabe a si não pela causa”, diga-se que conhece a si não pela causa na

noção de causa, no entanto, aquele que é causa conhece a si por si.

166

CAPÍTULO III

87 Cap. 7, § 2 (PG 3, 870, PL 122, 1154). 88 Loc. cit. 89 Cf. n. 170.

25

SE DEUS CONHECE POR UM OU POR MUITOS.

Terceiro, pergunta-se se conhece por um ou por muitos.

Parece que por muitos: 1. No livro das 83 questões90: “haver coisas na ciência de Deus não é

senão haver noções das coisas na ciência de Deus”. Ora, como ele diz no mesmo lugar: “Tudo

ou cada um é criado pelas noções próprias; com efeito, por uma noção foi criado o homem,

por outra o cavalo”. Portanto: cada um tem as noções próprias. Ora, ele sabe pelas noções.

Portanto, sabe por muitas.

2. Ainda, o ente, segundo toda diferença, tem ser em Deus. Ora, as diferenças do ente são um

e muitos. Portanto, há ali o exemplar da unidade e da multiplicidade. Portanto, assim como

conhece um por um exemplar, assim, muitos por muitos exemplares.

3. Ainda, ou conhece um por um ou um por muitos. Se por muitos, tenho o proposto. Portan-

to, se por um, visto que conhece todos a seu modo – ora, nele todos são um –, então, não

conhece senão o um.

Contra: a. Dionísio, Sobre os nomes divinos91: “Em toda causa de tudo”, isto é, a perfeita causa

de tudo, “todas as naturezas dos singulares são entrelaçadas por uma unidade não confusa”; e

põe o exemplo sobre a unidade e o centro. Portanto, por uma unidade são conhecidas todas as

naturezas dos singulares.

b. Ainda, no livro Sobre os nomes divinos92: “Conhece universalmente muitos por um”; com

efeito, diz assim: “A sabedoria divina ao conhecer a si mesma, conhece tudo e universalmente

muitos por um”.

Respondo: Conhece tudo por si mesmo, e conhece tudo pelo um. E a razão disso é: porque é

mais perfeito conhecer muitos e um pelo um do que muitos por muitos e um pelo um; e o que

é mais perfeito deve ser atribuído a Deus; portanto, conhece um e muitos por um. E há o

exemplo sobre a unidade: com efeito, seja dada a intelecção da unidade, intelecção, digo, de

sua essência e de sua virtude e de sua referência, e, semelhantemente, com o centro93. Se

assim, a unidade, ao inteligir a si, inteligirá a unidade e também a sua virtude; e visto que sua

virtude seja que de sua multiplicação surge todo número, ela, ao inteligir sua virtude, inteligiria

todo número. De modo semelhante, Deus, ao inteligir a si, intelige tudo. Do mesmo modo, é

patente com o centro: se inteligisse a si e a sua virtude, por uma intelecção simples inteligiria

infinitas linhas que podem ser conduzidas a partir de si.

[Para as objeções]: 1. Portanto, para a objeção de que “cada um foi criado pela noção pró-

pria”, diga-se que não vale esta argumentação: “muitas são as noções e conhece pelas noções,

portanto, conhece por muitos”; pois tanto há muitas noções como há uma: com efeito, a no-

ção tem a comparação para aquilo de que é e para aquela referência dos quais é. Ora, na com-

paração para aqueles dos quais é, há muitas noções, mas na comparação para aquilo de que é,

há apenas uma. Assim como é patente a respeito do ponto para as linhas: com efeito, a refe-

rência do ponto, segundo o que é ponto, é uma e simples, na comparação a várias linhas, é

muitas. Portanto, há o sofisma do acidente naquela argumentação; pois, segundo o que co-

nhece aqueles por si, não há muitas noções, mas apenas uma.

90 Quest. 46, n. 2 (PL 40, 30). 91 Cap. 5, § 7 (PG 3, 822, PL 122, 1149). 92 Cap. 7, § 2 (PG 3, 870, PL 122, 1154). 93 Cf. Dionísio, loc. cit., cap. 5, § 7 (PG 3, 822, PL 122, 1149).

26

2. Para o outro diga-se que Deus, por si, pelo um, conhece um e muitos; ora, o um é exemplar

da unidade e da multiplicidade; mas, considerado segundo o ato, o um é exemplar da unidade,

considerado segundo a potência, o um é exemplar da multiplicidade.

3. Para a objeção “conhece segundo o que são nele. Ora, segundo o que são nele, são um.

Portanto, não conhece senão o um”, diga-se que não vale. Ora, a inferência deveria ser: “por-

tanto, não conhece senão enquanto um”, e não se seguiria, além disso: “portanto, não conhe-

ce senão o um”.

167

CAPÍTULO IV

SE HÁ CIÊNCIA DIVINA PELO EXEMPLAR.

Quarto, pergunta-se se há ciência divina pelo exemplar94.

Quanto ao que sim: a. Agostinho, nas 83 questões95: “Onde se deve considerar serem as ideias

ou noções senão na mente do Criador? Com efeito, não foi posto fora o que quer que tenha

visto para que, segundo aquilo, constituísse o que constituiu”. Portanto, visto que a ideia não

seja senão o exemplar da coisa, Deus vê a coisa pela ideia, assim como se estabelece a partir

dessa autoridade; portanto, conhece a coisa pelo exemplar.

b. Ainda, tudo que age pela noção, age pelo exemplar ou pela ideia da coisa que tem junto a si.

Portanto, também o próprio Deus, que age maximamente pela noção. Ora, aquilo pelo que

opera a coisa e pelo que pré-conhece a coisa é o mesmo. Portanto, pré-conhece a coisa pela

ideia.

Contra: 1. Dionísio, Sobre os nomes divinos96: “Tem antes e pré-concebe a notícia e a ciência e

a substância de tudo, não segundo a ideia”.

2. Ainda, pelo mesmo conhece os bens e os males. Ora, não conhece os males pela ideia. Por-

tanto, nem os bens. Portanto, não conhece pelo exemplar.

Solução: 1. Se a ideia ou o exemplar for dita diferente da essência divina, não há, de nenhum

modo, ciência divina pelo exemplar ou ideia. Donde Platão97 ter errado nisto que sustentou

três princípios: Deus, a ideia e a matéria, e isso não pretende o bem-aventurado Dionísio. De

fato, se a ideia disser a própria essência, enquanto é arte ou a espécie segundo a qual há as

coisas, segundo isso há a ciência divina pela ideia, porque por si mesma, que é arte e exemplar

das coisas.

2. E para a objeção sobre os males, há a resposta: porque conhece o mal pela ideia do bem,

enquanto dele tem falta, como será patente abaixo. Donde Dionísio põe o exemplo da luz que,

segundo a causa, percebe em si a notícia das trevas, “não conhecendo as trevas de outro lugar

que da falta da luz”.

94 Cf. Boaventura, I Sent., d. 35, a. unico, q. 1. 95 Questão 46, n. 2 (PL 40, 30). 96 Cap. 7, § 2 (PG 3, 879, PL 122, 1154). 97 No Timeu, III. Cf. Ambrósio, Hexaem., 1, n. 1 (PL 14, 123); Agostinho, A cidade de deus, VII, c. 28 (PL 41, 218); Walafrido Strabo, Prothemata Glossae Ordinariae (PL 113, 64); Lombardo, II Sent. D. 1, c. 1; Filipe o Chanceler, Summa II: “Nisto vê-se que Platão tenha se afastado da verdade: ao dizer que a ideia não seja o mesmo que o Primeiro”.

27

MEMBRO III

De que há ciência divina?

Terceiro, pergunta-se de que há ciência divina. E, primeiro, pergunta-se se há dos entes e dos

não entes; segundo, se dos finitos ou dos infinitos; terceiro, se dos bens e dos males; quarto,

se dos necessários e dos contingentes; quinto, se dos enunciáveis; sexto, se dos singulares;

sétimo, se dos opostos.

[...]

170

CAPÍTULO III

SE HÁ CIÊNCIA DE DEUS DOS BENS E DOS MALES.

Depois, pergunta-se se há ciência de Deus dos bens e dos males.

Para que sim: a. Deus não julgaria sobre os bens e os males a não ser que tivesse ciência sobre

eles. Ora, julga sobre eles. Portanto, sabe-os.

b. Ainda, tudo que a ciência humana abrange, a divina abrange. Ora, a ciência humana é capaz

dos males. Portanto, também a divina.

Contra: 1. Agostinho, na distinção 36 das Sentenças:98 “O ventre deles está repleto do que está

oculto para ti”. Diz: estão ocultos os pecados que se escondem da luz de tua verdade.

2. Ainda, a ciência nada mais é que a assimilação do intelecto à coisa sabida. Ora, nenhuma é a

assimilação do intelecto de Deus para o mal, porque nenhuma é a participação de Cristo em

Belial99. Portanto, etc.

3. Ainda, a ciência dele é pela causa. Ora, ele não é a causa dos males. Portanto, não sabe os

males.

4. Ainda, pergunta de que modo sabe os males, se os vê fora de si ou em si100. Se fora de si,

então, sabe por outro que é fora de si, e isso é inconveniente. Se vê em si, contra: não há em si

algum mal nem algum defeito. Portanto, não pode ver os males em si.

5. Ainda, Agostinho, Sobre o livre arbítrio101: “As naturezas viciosas são retamente censuradas

tanto quanto aquele que censura vê delas a arte pela qual são feitas, visto que censure nelas

aquilo que ali não vê”. Portanto, Deus não vê, na arte, os vícios das naturezas.

Respondo: 1. Para isso, diga-se segundo Cassiodoro. O profeta disse102: Deus não se afasta

nem do oriente nem do ocidente. Ao expor isso, Cassiodoro disse103: “Deus não se afasta nem

dos bons nem dos maus, mas está presente a todos e é conhecedor de todos”. Portanto, Deus

conhece os bens e os males pela ciência, mas conhece os bens também pela aprovação e pelo

beneplácito, os males, porém, não. Donde Cassiodoro disse sobre o Salmo104: “Os pecados são

98 Enarr. in Psalmos 16, 4, n. 13 (PL 36, 147); apud Lombardo, I Sent, d. 36, c. 2, p. 226. 99 Cf. 2Cor 6, 15; Guilherme de Auxerre, loc. cit.. 100 Cf. Guilherme de Auxerre, loc. cit. 101 Livro III, cap. 15, n. 42 (PL 32, 1292). 102 Sl 74, 6. 103 Expos. in Psalter., in Ps. 74, 6 (PL 70, 538). 104 Loc. cit., Sl 16, 16 (PL 70, 122).

28

ocultos para Deus, uma vez que não conhece, isto é, não aprova”. E neste sentido Agostinho

havia dito que eles se escondem da luz de Deus: essas são as palavras da distinção 36 do livro I

das Sentenças. Portanto, diga-se que há a ciência da aprovação e a ciência da notícia simples.

Pela ciência da aprovação, Deus não conhece os males, como se tem de Mt 25, 12: Não vos

conheço etc. e no Salmo105: Perguntavam-me o que ignorava etc. Mas sabe os próprios ma-

les106 pela ciência da notícia simples, e ela, isto é, por si mesmo, sabe os bens e os males. E há

o exemplo de Agostinho107 quanto à arte. Com efeito, assim Deus sabe o mal: assim como a

arte conhece o vício. Com efeito, alguns são na arte como o que há de ser aprovado, outros,

como o que há de ser reprovado, assim como, na gramática, a concordância e a não concor-

dância: a concordância como o que há de ser aprovado, a não concordância como o que há de

ser reprovado. Desse modo, em si mesmo, Deus sabe pela arte o mal como o que há de ser

reprovado, o bem, porém, como o que há de ser aprovado. E o exemplo disso é patente quan-

to à luz, dado que se a luz visse a si e sua operação, veria bem que este seria receptivo de sua

luz, aquele não, a saber, a treva, e, assim, por si, veria tanto a si como as trevas. Donde Dioní-

sio108: “Assim como a luz, segundo a causa, percebe em si a notícia das trevas, ao conhecer as

trevas não de outro lugar que da falta da luz”, do mesmo modo, o reto é o princípio do conhe-

cimento de si e da obliquidade. E assim acontece com a ciência de Deus.

2. Portanto, para a objeção de que “a ciência é a assimilação à coisa sabida”, diga-se que al-

gumas são as coisas que são sabidas por si e outras as que são sabidas por acidente. Com efei-

to, uma coisa é sabida como posição, e essa é sabida como a assimilação do intelecto à coisa.

Outra é sabida como privação, e essa não é sabida como assimilação, mas como dessemelhan-

ça. No entanto, a semelhança é o princípio do conhecimento do semelhante e do desseme-

lhante. Portanto, o bem, que é semelhante, é sabido por Deus pela semelhança; o mal, porém,

que é dessemelhante, pela mesma semelhança.

3. Para a objeção de que “a ciência de Deus é pela causa”, diga-se que há ciência dos males em

Deus não pela causa dos males, mas pela causa dos bens109. Com efeito, alguns são sabidos por

sua causa, assim como aqueles que têm causa, como os bens; outros, não pela causa própria,

mas pela alheia, como os males, que não têm causa: com efeito, não são conhecidos senão

pelo que falha desde a causa.

4. Para a pergunta sobre “se vê os males em si” etc., diga-se que conhece os males em si. No

entanto, não se segue que o mal seja nele, mas que seja nele o bem ou o exemplar do bem

pelo qual conhece o bem assim como o efeito, o mal, porém, como o que faz falta a partir de-

le.

5. Ainda, para a objeção de Agostinho de que “as naturezas viciosas” etc., diga-se que os males

não são na arte divina, ainda que sejam reprovados e sabidos. Contudo, são na ciência divina:

com efeito, a arte acrescenta a causalidade sobre a ciência110. Ora, Deus não é causa dos ma-

les, e, por isso, os males não são na arte divina, embora sejam na ciência.

[...]

174

105 Sl 34, 11. 106 Cf. Lombardo, loc. cit. (p. 227); Guilherme de Auxerre, loc. cit. I, cap. 8, q. 2. 107 Enarr. in Psalmos 34, n. 2 (PL 36, 334); Quaest. in Heptat., II, q. 152 (PL 34, 647). 108 Sobre os nomes divinos, c. 7, § 2 (PG 3, 870, PL 122, 1154). 109 Cf. Guilherme de Auxerre, loc. cit., I, c. 8, q. 1. 110 Cf. Aristóteles, Ética Nicomaquéia, VI, cap. 4.

29

MEMBRO IV

Sobre o modo da ciência divina.

Consequentemente, deve-se perguntar, sobre o modo da ciência divina, como sabe. E visto

que conheça as coisas em si mesmo e por si mesmo, pergunta-se de que modo as coisas são

em Deus; graças ao que se pergunta:

Sobre as ideias das coisas e as noções segundo as quais se diz haver sabedoria em Deus; se-

gundo, visto que os males não têm ser em Deus, de que modo são conhecidos por Deus; ter-

ceiro, de que modo sabe tudo presentemente; quarto, de que modo sabe tudo simultanea-

mente; quinto, de que modo sabe tudo perfeitamente; sexto, de que modo sabe tudo imuta-

velmente.

175

CAPÍTULO I

SOBRE AS IDEIAS E AS NOÇÕES DAS COISAS NA SABEDORIA DE DEUS111.

Quanto ao primeiro, perguntam-se vários. I. Primeiro, pergunta-se aqui, se assim é que a ideia,

bem como a noção e a sabedoria são o mesmo segundo a substância, qual é a diferença se-

gundo a noção?

Que sejam o mesmo, mostra-se assim: Agostinho, no livro Sobre a cidade de Deus112: “As idei-

as são na mente divina”, sem duvidar que fosse infiel aquele que não crê nelas; ora, o homem

que age segundo a sua arte é, segundo ela, exemplar das obras que são feitas desde si; com

muito mais propriedade, Deus é o exemplar de todas as criaturas que são feitas a partir dele;

ora, a ideia não é nada diverso do exemplar divino; portanto, a ideia e o exemplar são o mes-

mo. – Ora, que as ideias sejam o mesmo que as noções, Agostinho, no livro das 83 questões,

diz que as ideias são “as noções das coisas estáveis ou invariáveis e que estão contidas na inte-

ligência divina”. – Ora, que sejam o mesmo que a própria sabedoria de Deus, é patente por

isso que ele disse: “Ainda que elas nem nasçam nem morram, segundo elas, porém, se diz que

é formado tudo que pode nascer e morrer”; ora, no Salmo (103, 24) se diz que tudo que é feito

é formado segundo a sabedoria divina: Tudo fizeste na sabedoria. Portanto, resta que [sc. as

ideias] sejam o mesmo que a sabedoria de Deus, que é eterna e segundo a qual toda criatura é

formada.

Respondo que, embora sejam o mesmo segundo a coisa, no entanto, há diferença entre estas

segundo o nome, porque a noção diz a referência para o fim, a ideia para a forma, o exemplar

para a eficiente, a sabedoria para a cognição, assim como a arte para a operação. Donde, na

medida em que eficiente, sabe como deve operar: segundo o exemplar é dito sábio, enquanto,

porém, pode operar quando quer é dito artífice, e uma vez que uma e a mesma segundo a

coisa é a causa exemplar, a final e a causa que conhece, uma e a mesma segundo a coisa é a

sabedoria, a ideia e a noção.

111 Cf. Boaventura, I Sent., d. 35, a. un., q. 1 e d. 36, a. 1, q. 2; Quaest. disput. de scientia Christi, qq. 2 e 3. 112 Mais corretamente: Sobre as 83 questões diversas, q. 46, n. 2 (PL 40, 30), quando ao sentido; cf. A cidade de Deus VII, c. 28 (PL 41, 218).

30

II. Segundo, quanto a isso se pergunta, visto que a sabedoria de Deus seja uma, por que há

várias noções e ideias, mas uma sabedoria113.

Ora, que as noções sejam várias, é patente pelo que é dito no livro das 83 questões: “A alma

não pode vê-las, exceto a racional, desde aquela parte pela qual é excelente, isto é, pela men-

te e pela razão, e esta é a alma santa e pura. Portanto, são criados pela noção, não pela mes-

ma noção o homem e o asno, com efeito, isso seria absurdo; portanto, cada um é criado pelas

noções próprias. Ora, não se deve reputar que tais noções sejam senão na mente do Criador:

com efeito, não teria visto nada posto fora de si”. Do que se tem que as noções e as ideias são

várias, no entanto, a sabedoria de Deus é uma.

Respondo que embora sejam o mesmo segundo aquela coisa, diferem, no entanto, segundo o

modo de serem ditas nisto: a sabedoria, o exemplar e a arte se dão mais da parte do Deus

cognoscente, que é completamente uno. Por isso, essas não recebem a pluralidade, como se

fossem ditas vários exemplares, várias sabedorias, várias artes; por outro lado, a noção e a

ideia se dão por parte da coisa conhecida e, segundo isso, assim como as coisas conhecidas são

várias, também as ideias são várias e, segundo isso, porque qualquer coisa tem um fim pró-

prio, há várias noções segundo as quais os fins são determinados. Portanto, graças à referência

da ideia para a forma e da noção para o fim, visto que sejam várias as ideias e vários os fins,

diz-se que sejam várias as noções e as ideias.

III. Ora, quanto a isso pergunta-se, em terceiro lugar, se o temporal não é causa do eterno.

Com efeito, o uno e o múltiplo seguem-se ao ser; não parece que a multiplicidade seja deter-

minada desde o temporal, segundo o nome, naquilo que é eterno, e, assim, as ideias ou no-

ções não devem ser ditas várias em vista das formas e dos fins das várias criaturas.

Respondo: Diga-se várias as ideias ou noções graças à referência das criaturas para elas, não

de que sejam desde as criaturas ou desde elas recebam a unidade ou a multiplicidade.

IV. Mas, quanto a isso, pergunta-se sobre aquilo que disse Agostinho: que “não foi criado pela

mesma noção o homem e o cavalo”: com efeito, segundo isso vê-se que sejam várias desde a

eternidade, visto que aquelas noções são eternas, como se tem na mesma autoridade: “As

noções das coisas são estáveis”.

Respondo que é a mesma segundo a coisa a noção eterna pela qual o homem é criado e pela

qual é criado o cavalo, mas não a mesma enquanto noção. Exemplo disso: o ponto em que

várias linhas têm termo é um ponto, mas é dito “vários”, porque princípio de vários. Ora, o

nome “noção” nomeia a modo de princípio, mas o nome “sabedoria” nomeia aquilo mesmo de

modo absoluto. Além disso, quando falamos em tais, falamos, proporcionalmente, sobre a

unidade e a multiplicidade do mesmo modo que falamos sobre a sabedoria humana e as no-

ções daqueles que hão de ser feitos segundo ela e as espécies que são nela. Com efeito, dize-

mos que uma é a sabedoria edificadora pela qual várias casas são feitas, no entanto, por uma

noção se faz esta casa, por outra, aquela, e uma é a forma exemplar própria desta e outra a

forma própria daquela.

V. Em quinto lugar, pergunta-se: 1. Visto que todos sejam nele enquanto vida114 ou luz, por

que não são todos nele sabedoria ou potência115?

113 Cf. Boaventura, I Sent. , d. 25, a. un. q. 3, 4 e 5. 114 Cf. Jo 1, 4.

31

2. Além disso, assim como se tem em At. 17, 28: Nele vivemos, nos movemos e somos. Portan-

to, em razão disso, não são ditos todos uma essência ou um movimento nele, assim como to-

dos são ditos uma vida nele.

3. Vê-se que Anselmo diga isso no Monologio116: “Todos, antes de serem feitos, bem como

quando são feitos, quando são corrompidos ou variam de algum modo, sempre são nele. Não

que sejam em si mesmos, mas o que é ele mesmo. Com efeito, em si mesmos são essência

mutável, criada segundo a noção imutável. No entanto, no próprio Deus são a própria primeira

essência e primeira verdade do existir, e na medida em que mais são semelhantes a ele em

tudo, assim existem mais verdadeiramente e mais eminentemente”. Dessa autoridade tem-se

que as criaturas são nele a própria essência de Deus; o que é muito próximo daquele herege117

que disse que tudo é Deus, segundo isso118: “Júpiter é tudo o que vês”.

4. Além disso, o um e o múltiplo seguem-se ao ser. Portanto, se todos são em Deus, a questão

é: ou um ou vários. Se um, então, todos são um. Se vários, então, a multiplicidade se dá desde

a eternidade, visto que todos sejam em Deus desde a eternidade.

5. Além disso, todos são ditos ser em Deus; pergunta-se: segundo qual modo de ser?

Respondo119 1. que se diz todos serem vida ou luz nele graças a que o viver é comum tanto às

coisas corporais como às espirituais e enquanto as corporais participam das espirituais, tal

como se diz que o corpo vive pela alma: a partir dessa semelhança se diz que todos vivam nele,

porque não têm, quanto a ele, um ser deficiente; e, embora sejam deficientes em si, no entan-

to, a cognição sobre eles não é deficiente. No entanto, todos são ditos luz nele: com efeito,

semelhantemente, a luz é uma disposição comum aos corporais e aos espirituais. Ora, aos

corporais, pela participação, e graças a isso todos são ditos ser luz nele, porque todos, na cog-

nição de Deus, reluzem e são manifestos. A sabedoria, porém, é a cognição que nomeia aquilo

que é próprio do Deus cognoscente: com efeito, não a criatura, enquanto criatura, sabe ou

conhece. Ora, a potência é a disposição própria do agente: porque não são ditos todos ser

potência nele, a não ser que esse nome “potência” seja tomado no ablativo120 e se tome ali a

potência pelo poder, diferenciando-a da potência material.

3. Para não cairmos naquela heresia que diz que Deus é a natureza de tudo, deve-se dizer,

quanto à autoridade de Anselmo, que é diferente dizer “todos são a essência divina” e dizer

“todos nele são a essência divina”. Com efeito, quando se diz “todos são a essência divina”,

são supostas as criaturas na medida em que são em seu ser, mas, quando se diz “todos são

nele a essência divina”, são supostas as noções eternas sobre estas coisas, noções eternas que

são a própria sabedoria de Deus e, assim, consequentemente, a essência divina. E não se se-

gue disso que sejam na essência de Deus, embora sejam na sabedoria dele: com efeito, ser na

sabedoria de Deus não é nada diverso de ser conhecido por ele, porém, ser na sua essência é:

115 Cf. Lombardo, I Sent., d. 36, c. 3; Boaventura, I Sent., d. 36, a. 2, q. 1. 116 Cap. 34 (PL 158, 189). 117 Alberto Magno, Summa theologiae, tr. 15, q. 60: “Que toda criatura seja Deus, o que é herético: e é a heresia de Alexendre, o Filósofo, e de alguns outros que também é reprovada por Aristóteles no primei-ro da Primeira Filosofia”. 118 Lucano, De bello civili IX, v. 593. 119 Para toda a solução, cf. Agostinho, In Ioan., tr. 1, c. 1, n. 16 (PL 35, 1387). 120 Isto é, que todos sejam em Deus pela potência divina. A palavra latina potentia tem a mesma forma no nominativo e no ablativo, portanto, esse potentia in ipso, de acordo com o nominativo, é lida assim: ser potência nele, de acordo com o ablativo, assim: ser nele pela potência.

32

que a própria essência seja verdadeiramente dita sobre elas, o que não acontece com nenhu-

ma criatura.

2. Além disso, o que é dito: Nele vivemos etc. é tomado equivocamente. Também quando se

diz121 “todos eram vida nele”. Pois quando é dito Nele vivemos, nota-se com o “em”122 a causa

eficiente, isto é, o nosso viver é desde ele; quando se diz “todos são vida nele”, nota-se com o

“em” a causa exemplar. Ora, o movimento ou a essência não são ditos vida nele, pois o movi-

mento é um nome apropriado às coisas feitas e não é comum àquele que faz e ao feito ou ao

cognoscente e ao conhecido. A essência, embora seja um nome comum, não é retomada aqui,

porque qualquer um tem uma essência própria. Portanto, para que não creiam que todos não

sejam diferentes na essência, não se admite “nele todos são a essência”, no entanto, admite-

se isso: “todos são nele”. Ora, quando se diz “todos são nele”, nota-se o ser na causa eficiente

e cognoscente; ora, digo eficiente não em ato, mas em hábito.

4. Quanto ao outro, responda-se que não se segue “são em Deus, portanto, um ou vários”.

Com efeito, esta divisão “um, vários” segue-se ao ente depois de que é ente em si mesmo, mas

não na medida em que tem o ser segundo o aspecto do gênero. Ora, o ser segundo o aspecto

do gênero é o ser da criatura quando é dito ser em Deus: no entanto, “ser em si” é ser absolu-

tamente, pois ali é dito ser divino visto que ser divino é ser absolutamente. E não se segue:

“todos são em Deus, portanto, o homem é em Deus”, pois “ser homem” é ser determinado na

espécie, mas “ser em Deus” é ser pela indistinção do gênero e da espécie.

5. Para o outro dizemos que em “ser em”, o ser é tomado ali como naquilo que move. Ora,

entende-se “aquilo que move” de dois modos: efetivo ou cognitivo. E são ditos ser em Deus

dos dois modos, como se na causa cognoscente e operante.

VI. Consequentemente, são feitas aqui, incidentalmente, duas questões: primeiro, visto que

todos são ditos ser em Deus, se se segue: “portanto, todos são na essência divina”.

Respondo que não. Com efeito, são ditos ser em Deus porque “Deus” supõe a causa na noção

da qual se diz que sejam nele. Mas a essência divina, ainda que seja causa, não diz a referên-

cia, porém, para aquilo de que é causa na medida em que é nomeada “essência”; e, uma vez

que a essência de Deus não é a essência da criatura, não se diz de modo adequado que todos

sejam na essência, com efeito, ainda que se diga Deus de Abraão123 etc., não se diz, porém, “a

divina essência de Abraão”, etc.

Segundo, pergunta-se: não se deve conceder que todas as criaturas sejam desde a eternidade

com Deus?

1. Com efeito, “com” marca a associação; ora, não há associação senão onde há a multiplicida-

de – que não era desde a eternidade – das criaturas. Portanto, etc.

Contra: a. Agostinho, sobre aquele Salmo124: A beleza do campo está comigo: “Por isso, disse,

está comigo, porque junto de Deus nada passa, nada é futuro; com ele estão todos os futuros,

dele não se afastam os já passados e com ele estão todos”.

Respondo: toma-se impropriamente a preposição “com” e se entende isso em virtude das

próprias noções sobre as coisas que hão de ser feitas que estão na própria sabedoria divina.

121 Cf. Jo 1, 3 ss. 122 Lembre-se: “nele” = “em + ele”. 123 Gn 26, 24; Ex 3, 6; Mc 12, 26 et passim. 124 Enarr. in Psalm. 49, 11 (PL 36, 577); cf. Lombardo, I Sent., d. 35, c. 9 (p. 224).

33

Ora, essas noções são a própria sabedoria divina, que é eternamente e é dita estar com ele

não porque seja diversa na essência, mas porque, quando se diz Deus e quando se diz sabedo-

ria ou noção, [há] uma noção diversa do que cumpre dizer.

176

CAPÍTULO II

DE QUE MODO OS MALES SÃO CONHECIDOS POR DEUS.

Consequentemente, pergunta-se, visto que os males não têm ser em Deus, de que modos são

conhecidos por Deus125?

Pois diz a. Agostinho126: “Visto que saiba os pecados de todos, acaso deve-se entende-los in-

cluídos naquela generalidade da fala pela qual o Apóstolo disse que tudo é em Deus (Rm 11,

36: A partir dele, diz, e por ele e nele todos são)? Ora, quem, a não ser um insano, diria que os

males têm ser em Deus? Com efeito, são inteligidos em seu ser aqueles que são a partir dele e

por ele. No entanto, são por ele e a partir dele aqueles dos quais é autor. Ora, não é autor se-

não dos bens. Portanto, a partir dele e por ele não são senão os bens. Portanto, assim também

não são nele senão os bens. Portanto, os males não são em Deus”.

b. Ainda, Agostinho, no livro Sobre a natureza do bem127, diz: “Quando ouvimos: todos são a

partir de Deus, por ele e nele, certamente devemos entender todas as naturezas e todos que

são naturalmente. Com efeito, não são a partir dele os pecados que não seguem a natureza,

mas a viciam, os quais nascem, todos, da vontade daqueles que pecam”.

Portanto, desses resta que os males não são de nenhum modo em Deus.

Segundo isso, então, faz-se a objeção: 1. Se os males não são em Deus nem segundo a seme-

lhança nem segundo a causalidade, de que modo são conhecidos por Deus? Não parece que

em si mesmo.

2. Ainda, dado que não se diz que os males têm ser em Deus, há uma questão. Visto que “os

males têm ser na cognição de Deus” deve ser concedida, se, de modo semelhante, também

“os males têm ser no Deus cognoscente”. Se for assim, então, os males têm ser em Deus.

3. Ainda, Agostinho, no livro Sobre o livre arbítrio128: “As naturezas são tão viciosas quanto se

afastam da arte daquele pela qual são feitas; e são retamente censuradas tanto quanto, delas,

o censor vê a arte pela qual são feitas, visto que censure nelas aquilo que ali não vê”. Do que

se assume que os males não são vistos por Deus. – Se alguém disser: não são vistos pela apro-

vação, no entanto, são vistos pela notícia simples, pergunta-se, quanto a isso, por que os bens

multiplamente, se é dito que os males são conhecidos unicamente de um modo, visto que a

cognição caiba à verdade. Ora, o verdadeiro é comum ao bem e ao mal.

Respondo: 1. Agostinho, no livro das Confissões129: Quando Deus prevê ou tem a presciência

dos males, não há a visão na semelhança do mal ou desde a semelhança que tem ser em Deus

assim como se diz que as semelhanças exemplares têm ser nele. Donde cumpre ser notado

que as semelhanças primeiro são feitas na alma, segundo, o são na mente do artífice. Deus

125 Cf. Lombardo, I Sent., d. 36, a. 3, q. 1. 126 Melhor: Lombardo, I Sent., d. 36, a. 3, q. 1. 127 Cap. 28 (PL 42, 560). 128 Livro III, cap. 15, n. 42 (PL 32, 1291). 129 Cf. livro VII, cap 13, n. 19 (PL 32, 743), quanto ao sentido.

34

não tem a presciência dos males nem por essa nem por aquela semelhança, mas em certa

dessemelhança, assim como a medicina [conhece] as doenças não porque a elas é assemelha-

da. Donde o Salmo130: Perguntavam-me aquilo que ignorava; Glosa131: “Deus conhece o peca-

do, assim como a arte o vício”. E Dionísio, no livro Sobre os nomes divinos132: “Não se lança aos

singulares segundo a visão, mas segundo uma circunscrição da causa que tudo circunscreve e

sabe, assim como, segundo a causa, previamente, a luz toma por si mesma a visão das trevas

ao ver as trevas não desde outro lugar que da luz”.

2. Para o segundo, diga-se que não se segue: “os males têm ser na cognição de Deus, portanto,

no Deus cognoscente”. Com efeito, quando se diz “os males tem ser no Deus cognoscente”,

nota-se de dois modos o “ser em”, a saber, ser em Deus pela causalidade e ser em Deus pela

cognição. No entanto, uma vez que os males não têm ser em Deus pela causalidade, “os males

têm ser no Deus cognoscente” não é concedida. De modo semelhante, não têm ser em Deus

pela exemplaridade: com efeito, Deus não é exemplar dos males133.

3. Para o último, diga-se que se diz que os bens e os males são conhecidos de dois modos. Com

efeito, há a cognição intelectiva e a cognição prática, donde o intelecto é dito cognitivo e práti-

co. Ora, os bens são dos dois modos na ciência de Deus, mas os males unicamente de um mo-

do. Ora, o verdadeiro não é privado do mal, mas o bem. Ora, a ciência prática diz respeito ao

bom, a cognitiva, ao verdadeiro. Ora, os males são ditos ser simplicíssimos na cognição de

Deus. Não porque os bens seriam compostos em sua cognição ou notícia, mas porque eles são

ali tanto a modo de verdadeiro como a modo de bem. – Ora, acaso deve-se conceder que os

males sejam na cognição de Deus a modo de verdadeiro? Respondo: não é a modo de verda-

deiro que os próprios males são, mas a modo de verdadeiro no bem para o qual são opostos.

[...]

130 Sl 34, 11. 131 de Lombardo, sobre essa passagem (PL 191, 351), por Agostinho, sobre essa passagem, Sermão 2, n. 2 (PL 36, 334). 132 Cap. 7, § 2 (PG 3, 870, PL 122, 1154). 133 Cf. Guilherme de Auxerre, Summa I, cap. 18, q. 1.

35

ALBERTO MAGNO*

Comentários para o Primeiro Livro das Sentenças

[Distinção 35

Sobre a ciência de Deus em geral segundo si

E. Por que se diz que tudo tem ser em Deus e que o que é feito tem o ser da vida em Deus?

Artigo 7

Há ideias na mente divina?]

Depois, pergunta-se sobre aquilo que disse ali: “Graças a isso se diz que tudo tem ser em Deus,

etc.”

Com efeito, toca aqui na questão sobre as ideias134, sobre as quais, a fim de que siga a com-

preensão, fazemos quatro questões das quais a primeira é: há ideias na mente divina?

Segunda, há na noção do sabível o especulativo ou o prático?

Terceira, se há uma ou várias ideias.

Quarta, se há ideias em Deus de tudo ou não de tudo.

Quanto à primeira, procede-se assim:

1. Agostinho diz no Livro das 83 questões: “As ideias são as noções estáveis e imutáveis das

coisas, que estão contidas na inteligência divina. E ainda que elas nem nasçam nem morram,

no entanto, segundo elas se diz a forma de tudo aquilo que pode nascer e morrer.”135 Daí to-

ma-se o que são as ideias, para que são e onde são, e, por isso, esta autoridade é extremamen-

te notável.

2. Igualmente, no mesmo lugar: “Tudo é criado pela noção, mas não pela mesma noção o ho-

mem e o cavalo: com efeito, pensar isso é absurdo. Portanto, cada um é criado por uma noção

própria. Ora, não se deve arbitrar que essas noções estejam senão na mente do criador: com

efeito, não está posto fora dele o que quer que ele veja”.

3. Igualmente, Agostinho no livro das Retratações: “E Platão não errou nisso que disse haver

um mundo inteligível, etc. Certamente Platão chamou de mundo inteligível a própria noção

sempiterna pela qual Deus fez o mundo: se alguém negar que ela seja, segue-se que diz que

Deus tenha feito irracionalmente o que fez”136.

4. Igualmente, diz no livro A cidade de Deus: Platão sustenta as ideias, e não há dúvidas de que

seja infiel quem as nega, pois nega o Filho de Deus.

* ALBERTO MAGNO, Commentarii In Primum Librum Sententiarum (Dist. XXVI-XLVIII). A. Borgnet (Ed.). Vo-lume 26 [=Opera Omnia. Ex Editione Ludugnensi Religiose Castigata, et pro auctoritatibus ad fidem vul-gatae versionis accuratiorumque patrologiae textuum revocata, auctaque B. Albertii vita ac bibliographia suorum operum a PP. Quétif et Echard exataris, etiam revisa et locupletata.]. Paris: Vivès, 1893, p. 189-196.199-201.202 s. 215 s.. 134 Cf. ALBERTO MAGNO, ST I, q. 55 e II, q. 4, memb. 1 e 2. 135 AGOSTINHO, Livro das 83 questões, q. 44. 136 Idem, Retratações I, cap. 3.

36

5. Igualmente, Boécio diz no livro sobre A consolação da Filosofia: Tu, superno, a tudo condu-

zes com o exemplo; belo, ao belíssimo mundo administras com a mente...

6. Igualmente, Hebreus 11, 3: “Entendemos pela fé que os séculos tenham sido postos pelo

verbo de Deus, como se desde o invisível fosse feito o visível”. Ora, diz-se que o invisível, ali,

seja as ideias e as noções arquetípicas do mundo na mente de Deus.

7. Isso também é provado pela razão, assim: consta que Deus não age pela necessidade da

natureza, como se viu antes: portanto, age pelo intelecto. Ora, tudo que age pelo intelecto

tem consigo a noção e o exemplar da obra ou ignora o que faz. Portanto, dado que Deus saiba

o que faz, tem consigo as noções de todos seus operáveis, e elas são chamadas de ideias. Por-

tanto, tem ideias consigo.

Mas em sentido contrário:

1. Há maior oposição naquilo que é numa essência diversa do que naquilo que é distinto ainda

que permanecendo na mesma essência: portanto, em Deus, há maior oposição na referência

àquilo que é numa essência diversa do que àquilo que é em Deus entre aqueles que são da

mesma essência. Ora, a referência entre aqueles que são da mesma essência faz a distinção

das pessoas no divino. Portanto, a referência àquilo que é de essências diversas faria a diversi-

dade das essências, visto que há maior oposição. Ora, tal é a referência das ideias. Portanto, as

ideias, em Deus, fazem a diversidade das essências, o que não pode ser. Portanto, não há idei-

as em Deus.

2. Igualmente, é necessário que toda diversidade que está na causa e no causado seja reduzida

a um princípio da universalidade, porque, de outro modo, haveria vários princípios. Ora, antes

é princípio uno aquele que é uno pela essência e pela noção do que aquele que certamente é

uno pela essência, mas vários pela noção. Portanto, é necessário que esse seja tomado como

uno pela essência e pela noção. Portanto, nele não há as noções ideais.

3. Igualmente, vemos, nos princípios da natureza, que toda diversidade que está nas qualida-

des próprias ao que é natural é reduzida às qualidades primeiras agentes e pacientes, a saber,

às diferenças dos elementos quente, frio, úmido, seco. Ora, a diversidade múltipla da ação

daquelas qualidades é reduzida ao movimento diverso do céu, que, no entanto, é menos di-

verso que a ação dos elementos. Ora, a diversidade do movimento do céu, dado que seja múl-

tipla, é reduzida ao número dos móveis que são oito ou nove e a diversidade destes, igualmen-

te, é reduzida ao primeiro motor. Portanto, é necessário que o primeiro no que se dá a redu-

ção de tudo seja uno pela noção e que mova segundo a diversidade das noções: e, dado isso,

não haverá ideias. Portanto, como se vê, não há ideias.

4. Igualmente, se há ideias, para que são? Com efeito, é supérfluo na causa o que não é para a

produção do causado, como se vê. Ora, a diversidade dos gerados e dos corruptíveis pode ser

causada de outro modo, segundo o que dizem os filósofos, visto que a natureza da nona esfera

é fazer a uniformidade naqueles que são numa natureza e de uma noção. Ora, é da natureza

da esfera que tem muitas estrelas o fazer a diversidade da figura e da forma nos gerados e

corruptíveis. Ora, é da natureza da esfera da lua o mover a água segundo o lugar diverso na

mistura diversa, dado que a mistura faça o contínuo, uma vez que a terra não faz a pura conti-

nuação, mas a separação. Ora, é da natureza do sol o mover o fogo para a emissão do calor

que move, digere e amadurece o misto contínuo. Ora, é da natureza das esferas dos cinco ou-

tros planetas o mover o ar, segundo o que há muitos movimentos no ar, visto que há para

aqueles planetas a diversidade nos movimentos de declinação, involução, descida, subida,

37

parada, direção, retrogradação e outros que tais. Portanto, visto que daquela diversidade seja

suficientemente causada a diversidade das formas, como se vê, é supérfluo que se sustente as

ideias.

Solução:

Cumpre dizer que, sem dúvida, é necessário sustentar as ideias também filosoficamente, como

disse Agostinho, porque, de outro modo, se seguiria que Deus tivesse criado o mundo sem a

noção pela qual conheceria o mundo.

Portanto, cumpre dizer para o primeiro que há, em contrário, a objeção de que a relação não

diversifica a não ser pelo fato de que tem a natureza da oposição: com efeito, os lógicos dizem,

e é verdade, que de um modo se argumentaria desde os relativos enquanto são relativos e de

outro modo desde os relativos opostos segundo o que são opostos; com efeito, segundo o que

são relativos, os postos são postos e os perecidos perecem; ora, por isso que são opostos, se-

gue-se que um não seja o outro e, por isso, nas pessoas nas quais há realmente a relação, é

verdadeiro que sejam distintos e removidos por si. Ora, há a relação do intelecto de Deus para

as coisas criadas segundo a noção, mas dos criados para ele segundo a coisa: e, por isso, o

criador certamente difere essencialmente do criado, mas a relação da relação não: porque

entre relação e relação não há oposição, e, por isso, por aquela relação Deus não é senão prin-

cípio uno, como será patente abaixo, e aquelas relações nele não têm distância, oposição ou

diversidade, embora signifiquem de modo plural visto que se dão para coisas diversas.

Para o outro, cumpre dizer que, indubitavelmente, toda diversidade é reduzida ao uno essen-

cialmente e pela noção em função dele; ora, não há universalidade e diversidade do princípio a

não ser que seja referido a diversos; e, por isso, aquelas noções são multiplicadas em função

das relações da parte do que é posterior, isto é, segundo o que são da parte das criaturas or-

denadas para ele, mas não de sua parte, porque ele, por si mesmo, é causa de qualquer que

seja o causado: e, assim, resta que, quanto a isso, haja ideia na noção daquelas referências às

coisas criadas.

Para o outro, cumpre dizer que, com agrado, concedo isso: que tal redução está nas causas

naturais, mas ela não retira a relação imediata do que quer que seja com o primeiro; com efei-

to, o primeiro não é, tal como disseram certos Filósofos equivocados, de tal modo que tenha

influência imediata sobre o primeiro móvel e não sobre os outros, mas influi imediatamente

em todos, e ainda, influi por outros: e da parte daquela relação pela qual influi no ser do que

quer que seja, sustenta-se a noção ideal.

Para o outro, cumpre dizer que há necessidade das ideias porque a diversidade das estrelas,

das imagens e da proporção dos lugares desde o movimento das esferas jamais fariam uma

forma diversa a não ser que fossem influenciados desde Deus, que é o princípio universal: e,

ainda, aceita a noção de forma, não poderiam influir a não ser que Deus influísse mais imedia-

tamente, assim como se tem em João, 5, 17: “Tal como opera meu Pai, também eu opero”. E

por isso é necessário sustentar as ideias, que são as noções dessas formas.

[Artigo 8

Há ideias na mente divina na noção do que é sabido

de modo especulativo ou prático?]

38

Em segundo lugar, pergunta-se se há ideias na noção do que é sabido de modo especulativo ou

prático.

Ora, vê-se que unicamente prático, porque:

1. As ideias são para o que há de ser feito, portanto, são exemplares dos operáveis; ora, tais

são do intelecto prático; portanto, há ideias segundo a noção do inteligível prático.

2. Igualmente, Agostinho chamava-as acima de noções ao dizer que por uma noção é formado

o homem e por outra o cavalo, portanto, são em Deus enquanto práticas, não enquanto espe-

culativas.

Mas em sentido contrário:

Deus tem a ciência especulativa do mundo: com efeito, não basta que ele saiba fazer o mundo,

a não ser que saiba também toda a natureza do mundo; portanto, vê-se que é necessário sus-

tentar naquela noção também as noções ideais.

Solução. Cumpre dizer que as ideias são ditas relações para as coisas, e, por isso, são, falando

propriamente, segundo o intelecto prático.

Ora, para a objeção em contrário, cumpre dizer que Deus tem toda ciência, tanto de si, como

do mundo, mas porque, no entanto, o intelecto especulativo, enquanto é especulativo, nada

põe sobre a coisa, por isso, da parte dela não tem relação ideal. Ora, põe a noção do prático,

que tem em si, sobre a obra, segundo o que diz o Filósofo, que a sanidade que está no animal,

ou no homem, é a sanidade que vem da sanidade que está na alma do médico, querendo pro-

var com isso, como diz o Comentador, que o motor primeiro seja de algum modo a forma da-

queles que são formados a partir dele. Se disseres que embora o intelecto especulativo nada

ponha a respeito da coisa, no entanto, recebe desde a coisa e, por isso, tem ideias desde aque-

la parte: isso é falso em Deus, mas é verdadeiro em nós, porque a nossa ciência é causada des-

de as coisas, como se teve acima; ora, Deus, ao se inteligir, intelige tudo, e a multiplicidade das

ideias não se dá por parte dele, assim como será patente depois, mas unicamente é inteligida a

partir da relação dos ideados para ele: e, assim, não há propriamente o intelecto especulativo

do ideal em Deus enquanto é especulativo, assim como o prático segundo o que é prático. No

entanto, é verdade que Deus especula a si enquanto é princípio de tudo, e, assim, de algum

modo, como exemplar e causa: e, por isso, alguns dizem que intelige a si enquanto ideia.

[Artigo 9

Há uma única ideia em Deus ou várias?]

Em terceiro lugar, pergunta-se se há uma única ideia em Deus ou várias.

1. E argumenta-se desde certa consideração presente no segundo livro dos Tópicos, que é uma

só e a seguinte: se alguém disser que o saber é o inteligir, cumpriria considerar se o uno e o

múltiplo seriam dissonantes, pois, se forem dissonantes, um não é o outro. Ora, consta que a

ideia é a essência divina, uma vez que nada há em Deus senão Deus; portanto, visto que a es-

39

sência e a ideia sejam o mesmo, tal como a essência é una, haverá unicamente uma ideia, pois

se fossem várias ideias, segundo a consideração apresentada, a essência não seria ideia.

2. Igualmente, na alma, dá-se assim: a potência de inteligir não é completamente simples, uma

vez que está naturalmente apta a ter várias noções. Portanto, se o intelecto de Deus tivesse

várias ideias, não seria completamente simples, o que é falso. Portanto, não há várias ideias.

3. Igualmente, se são várias, ou pela coisa, ou pela noção. Se pela coisa, então, seguir-se-á que

mais do que três coisas foram desde a eternidade, o que é herético, uma vez que as coisas não

foram desde a eternidade, exceto o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que são três coisas, como

Agostinho diz no livro sobre A doutrina cristã. Se, porém, forem várias unicamente pela noção:

ora, Boécio diz que é noção vazia e vã aquela que não pode ser sustentada acerca da coisa,

portanto, aquela noção será vazia e vã. E se disseres que o dito de Boécio é contrário ao dito

do Filósofo, que diz não haver mentira dos que são abstraídos – e alguns glosam: visto que a

abstração não seja posta acerca da coisa, assim, também podemos inteligir algo que não é na

coisa – contra: haveria mentira dos que são abstraídos se fosse abstraído o que não pode ser

abstraído nem pelo ser nem pela noção definidora, como a carne do chumbo ou do ar: com

efeito, a carne jamais é encontrada no chumbo ou no ar, mas o círculo e o reto são encontra-

dos numa noção em matérias diversas pela espécie e, por isso, podem ser abstraídos de qual-

quer que seja delas, porque nenhuma daquelas matérias entra na sua definição. Ora, não se dá

assim aqui, porque nada poderia ser dado de cuja definição ou ser sustentes as noções de vá-

rias ideias.

4. Se disseres que a pluralidade é causada desde as coisas relativas ao próprio Deus na medida

em que causante pelo intelecto, contra: as coisas são temporais. Ora, o temporal não é causa

do eterno, portanto, as coisas não causam o haver noções diversas em Deus.

5. Igualmente, antes de haver as coisas, não havia a relação de vários com Deus, portanto,

então não causavam tal pluralidade de noções; e assim, não havia desde a eternidade essas

várias noções, como se vê, mas unicamente uma ideia, portanto, a pluralidade está antes nas

coisas que nas ideias, o que é contra Agostinho no Livro das 83 questões, que diz: “Não se dá

que sustentemos tais noções fora de Deus”137. Donde ele significa que elas sejam várias em

Deus.

6. Igualmente, se as coisas causam a unidade e a multiplicidade nas ideias, visto que a unidade,

a composição, a necessidade e a contingência sejam também consequência das coisas, vê-se

que as ideias recebam a unidade, a composição, etc., desde as coisas, o que é falso, visto que

Agostinho diga que nem nascem, nem morrem, nem mudam, mas são estáveis.

7. Igualmente, se a multiplicidade das coisas criadas é causa da multiplicidade das ideias, en-

tão, a multiplicidade por parte das coisas é pré-inteligida à multiplicidade das ideias. Ora, a

multiplicidade das coisas criadas se dá no tempo e a multiplicidade das ideias desde a eterni-

dade. Portanto, aquilo que é desde o tempo seria pré-inteligido àquilo que é eterno, o que é

impossível. Portanto, vê-se que as ideias não sejam várias de nenhum modo.

Mas em sentido contrário:

1. Se isso for concedido, será contra o dito de Agostinho apresentado acima: que Deus não

forma por uma noção o homem e o cavalo.

137 AGOSTINHO, Livro das 83 questões, q. 44.

40

2. Igualmente, as noções da coisa não são próprias senão à coisa: ora, nos próprios há a dife-

rença e a multiplicidade, portanto, vê-se que as ideias próprias e as noções são múltiplas. Se

disseres que Deus não tem ideias senão dos universais, como alguns disseram, e não tem idei-

as próprias, disso seguiria a heresia de que não conhece as coisas propriamente, mas unica-

mente de modo comum, o que no princípio desta distinção é reprovado, porque Deus conhece

pela ideia e aquilo de que não há ideia não tem cognição na mente divina, ou é conhecido co-

mo privação, como o Mestre dirá abaixo sobre a cognição do mal.

Solução. Cumpre dizer, sem prejuízo, que a ideia é considerada de modo tríplice, a saber, se-

gundo aquilo que é, e, assim, é a essência divina e o intelecto divino e é uma só. Igualmente, é

considerada em comparação com o inteligente pela ideia ou o operante, e, assim, igualmente

não é várias, mas unicamente uma, porque o inteligente é um indivisível. Em terceiro lugar, é

considerada com relação à obra daqueles dos quais é ideia, e, assim, tem a pluralidade por

parte da referência àqueles. Donde, a meu juízo, melhor se diz ideia de muitos que muitas

ideias. Dionísio põe como exemplo disso o centro do círculo, que é o princípio do qual saem os

segmentos de linha quanto à circunferência e também [o princípio] da circunferência, porque

toda a circunferência é gerada por meio dele e é movida a partir dele, como dizem os sábios, e

ele certamente é uno segundo aquilo que é: e se pusermos nele o ser, o motor da circunferên-

cia e o mover pelos segmentos de linhas que saem dele – assim como, na roda, os raios mo-

vem a circunferência desde o eixo –, haverá um centro uno em comparação a todo movimen-

to; ora, em comparação às linhas pelas quais se dá o movimento do todo, haverá o mesmo na

noção de muitos, e é antes de muitos do que seja muitos, mas as referências, no entanto, se-

rão nele segundo o hábito de muitos para ele. Donde é propriamente significado quando se diz

de um motor que é em si uno ao receber muitos de modos diversos: ora, essa multiplicidade

de referências é causada por aqueles que estão fora dele e, por isso, ele não é multiplicado em

si. Pela semelhança, entendamos desse modo a natureza imóvel de Deus que causa e move

toda a roda do mundo: pelos segmentos de linha que saem entendamos cada um dos criados,

pelos quais, pela sucessão das coisas criadas, como que por geração circular, o mundo é movi-

do; e, então, digamos que aquele primeiro imóvel é princípio uno, ainda que de muitos que

saem dele; e digamos que a ideia dá nome a ele não segundo a coisa que é, mas, antes, segun-

do a referência dele para aquilo de que é princípio; e visto que aquela relação se torne várias

segundo a multiplicidade dos principiados, segue-se que há muitas ideias e noções, mas que,

no entanto, não há muitos intelectos ou princípios moventes.

Portanto, diga-se para o primeiro que se entende aquela consideração sobre aqueles nos quais

um é posto com o outro como absolutamente o mesmo, seja essencialmente, seja acidental-

mente, significando o inerir absoluto (que pertence ao livro sobre o acidente). Por exemplo, se

for dito que o homem é animal, segue-se que vários homens sejam vários animais, e se for dito

que o homem é branco, segue-se que vários homens são vários brancos. Ora, na relação se dá

de outro modo, porque ela é multiplicada por aquilo que, fora, é relativo quanto à referência

na qual é necessário recolher aquilo que é referido a ele e, por isso, não se segue que, se a

essência é ideia, que assim como há unicamente uma essência, assim há unicamente uma

ideia.

Para o outro deve-se dizer que é diferente na alma, porque a alma tem as formas recebidas,

que são causadas por muitos e, por isso, que fazem nela várias comparações. Mas em Deus

não é assim, como já se viu, porque ele é causa por sua essência e por seu intelecto e, por isso,

não há diversidade senão de referências e não de espécies ou de formas e, por isso, não se

induz alguma composição nele, porque, assim como se mostrou acima, a partir da relação iso-

41

lada nada se torna mais composto do que era antes, precipuamente naqueles relativos nos

quais a dependência real não está em cada um dos relativos, mas unicamente em um, assim

como se dá com a ideia e o ideado.

Para o outro cumpre dizer que é multiplicidade apenas na noção, e menor quanto a isso, se

pode ser menor, porque há a multiplicidade pela noção, a multiplicidade pela coisa e há a mul-

tiplicidade da noção acerca da coisa. A multiplicidade apenas na noção é a multiplicidade do

que é cosignificado a partir da significação de outro, assim como, por exemplo, se eu sou bran-

co e tu negro e te tornares branco sem que nenhuma mudança se dê em mim, há aqui várias

semelhanças, e a pluralidade que é importada ali com “semelhança” é cosignificada pela tua

relação comigo não pela minha relação, mas pela minha correlação contigo, porque uma se-

melhança posta em ti deve necessariamente cosignificar outra em mim, a qual, no entanto,

não é causada por algo que adviria a mim. Quanto a isso, esta multiplicidade é mais clara

quanto ao centro do círculo que é o princípio das linhas. Com efeito, para as linhas significadas

pluralmente, é necessário significar a pluralidade de referências do centro para elas, e assim é

a multiplicidade de noções cosignificada nas ideias, e, por isso, talvez, frequentemente se en-

contra junto aos santos que digam as ideias cosignificando unicamente a variedade, e não di-

zem, ou raramente dizem várias ideias, apontando a variedade pelo significado principal da-

quela dicção que é várias. Ora, a variedade da coisa é suficientemente patente. De modo se-

melhante, também a variedade de noções que é sustentada acerca da coisa.

Portanto, para a objeção em contrário, cumpre dizer que o temporal não é causa do eterno

porque as criaturas não causam o eterno, mas o eterno pode, porém, cosignificar de algum

modo com o temporal e ser conhecido com o temporal em alguma noção, na qual não é signi-

ficado ou conhecido na medida em que é eterno e, por isso, aquela noção não é vazia e vã,

visto que de algum modo seja sustentada sobre a coisa, a saber, não considerada em si, mas

na medida em que conhece pela comparação do temporal a ele, com efeito, isto basta para

salvaguardar o entendimento.

Para o outro cumpre dizer que embora as coisas em si e no próprio ser não sejam desde a

eternidade, são, no entanto, em potência desde a eternidade. E se perguntares: em que po-

tência? Digo que na potência da causa eficiente. Ora, se fizeres a objeção de que, segundo

isso, não são várias e, por isso, não se referem como muitas para as ideias, cumpre dizer que

as coisas, segundo o que são ali, não são muitas, no entanto, na medida em que significam ser

partidas dali, são como muitas, e, assim, como muitas se referem às suas ideias segundo as

quais partem, e nisso é causada a multiplicidade significada segundo a noção que é mínima de

toda pluralidade: porque as próprias coisas são em potência e a referência é em potência e a

pluralidade cosignificada é unicamente da noção cosignificada e não da coisa significada.

Para o outro, cumpre dizer que o uno e o múltiplo seguem o ente em si, seja significado na

causa, na potência ou no efeito, e a diversidade, bem como a oposição, a composição, a muta-

bilidade, a materialidade, a necessidade e a contingência não seguem as coisas segundo o que

são em si de qualquer modo, mas, antes, segundo o que são criadas depois de não ser, porque

o criável é convertível, e convertível em oposto, diverso, outro oposto, e assim por diante, e,

por isso, não podem ser transferidas desse modo para as coisas significadas na causa, assim

como o uno e o múltiplo, no entanto, não me parece que deva ser dito que sejam muitas idei-

as, embora digamos ideias cosignificando a pluralidade, e se concedermos haver várias ideias,

não será preciso que concedamos graças a isso muitas ou diversas ideias, porque para a plura-

lidade basta qualquer diferença, mas não para a multiplicidade, da qual o signo é que digamos

várias quanto às pessoas divinas, mas não muitas, falando propriamente.

42

Para o outro cumpre dizer que o pré-inteligir a multiplicidade das criaturas se dá de dois mo-

dos, a saber, como existentes, e assim é falso, ou como prestes a sair da causa, e assim é ver-

dadeiro, visto que é pré-inteligido como temporal, não como temporal eterno, porque o eter-

no certamente não pode ser causado desde o temporal, mas, enquanto é significado com ele,

pode receber alguma noção para cosignificar, a qual, sem ele, não significa.

[Artigo 10

Há, em Deus, ideias de tudo e, maximamente, da matéria prima?]

Depois, pergunta-se: se há, em Deus, ideia de tudo, e isso, precipuamente, em razão da maté-

ria prima, porque:

1. Se a ideia é a noção da forma, não parece ter relação senão com a forma, portanto, não com

a matéria, como se vê.

2. Igualmente, a ideia é o princípio do conhecer: ora, tudo o que é conhecido, é sabido desde a

forma; portanto, vê-se que não há nenhuma ideia da matéria.

Mas em sentido contrário:

Tudo o que é criado tem a noção ideal na mente divina, ou seja, do criador: a matéria prima é

criada; portanto, tem ideia na mente do criador. Se, acaso, disseres que a matéria prima é

conhecida pela forma: isso nada é, porque perguntamos sobre aquela cognição pela qual é

conhecida por si mesma.

Além disso, é absurdo dizer o que tu dizes: que Deus recebe a cognição de um pelo outro, as-

sim como nós recebemos, porque então haveria algo de que a cognição não se daria senão

pelo acidente e não por si mesmo, o que é falso: portanto, conhece a matéria prima por si

mesma.

Se, acaso, quiseres dizer que a privação não é separável da matéria porque, por si mesma, ela

é potência para a forma, como alguns dizem, vê-se três inconvenientes contra isso, dos quais o

primeiro é que algo aquém do primeiro é sua potência. O segundo é que a privação não é co-

nhecida por Deus senão pelo hábito, como o Mestre dirá abaixo. Portanto, dado que a potên-

cia da matéria seja a privação, não tem ideia própria na qual a ideia seja formada. O terceiro

inconveniente é, como antes, que a matéria é conhecida por Deus por outro e não por si mes-

ma na natureza própria.

Solução. Digo, sem prejuízo, que Deus conhece a matéria e o faz imediatamente pela ideia da

matéria. Com efeito, embora, segundo Boécio e Avicena, aqueles que são unicamente em po-

tência, como a matéria, ou sempre misturados à potência segundo sua sucessão de potência a

ato, como o movimento e o tempo, ou misturados à potência para aquilo que é contrário ao

ato no qual são, como o vácuo e o infinito, não sejam inteligíveis para nós por intelecção plena,

no entanto, são conhecidos por Deus por intelecção plena, e, por isso, digo que a ideia seja a

espécie eficiente que o efeito imita o quanto pode. Ora, alguns a imitam unicamente segundo

a potência do ente, como a matéria prima, e, outros, segundo o ato misturado à potência na

sucessão, como o movimento e o tempo, ou no repouso, como o vácuo ou o infinito, outros,

ainda, atingindo a forma determinada em ato não misturado ao mais nobre ou ao mais ignóbil,

como as criaturas que são determinadas pelo número, espécie e ordem da natureza própria.

43

E por meio disso é patente a solução do todo.

[...]

[Artigo 12

Se todos são em Deus vida e luz e, se sim, se na noção especulativa ou na prática?]

Depois, pergunta-se sobre o que disse ali: “Tudo o que foi feito é dito ser vida nele, etc.”.

Com efeito, isso também é visto naquilo que Agostinho disse sobre o início do Evangelho de

João: “Eis, do modo que posso, o que digo para vossa caridade: a arca, na obra, não é vida. Na

arte, a arca é vida, porque a alma do artífice vive em todos os que são antes que sejam profe-

ridos. A sabedoria de Deus, segundo a qual todos são feitos, contém assim a todos antes de os

fabricar.” Ora, vê-se que Agostinho supõe aqui o falso em sua indução quanto ao semelhante:

com efeito, a espécie no intelecto nem vive nem é vida, mas é um acidente do próprio intelec-

to.

Ainda, pergunta-se: se são vida e luz em razão do intelecto especulativo ou do prático?

Com efeito, vê-se que em razão do especulativo: porque a luz é própria daquele; portanto,

visto que a luz esteja unida com a vida, ambos devem ser referidos ao especulativo.

MAS, CONTRA isso, vê-se que ainda há que:

1. Os males se seguem ao intelecto especulativo em Deus, no entanto, não se diz que também

sejam vida nele.

2. Além disso, visto que sabedoria, potência, vontade dizem aqueles que são exigidos para que

se crie a criatura, vê-se que as coisas existentes na causa antes sejam nela potência, sabedoria,

vontade que vida e luz. Se disseres, segundo o que se costuma geralmente dizer, que a potên-

cia, a sabedoria, a vontade não são comunicadas às criaturas produzidas, mas a luz e a vida:

isso é patentemente falso, porque nem todos os criados vivem e luzem. Se disseres que estes

são comunicados às criaturas segundo os gêneros delas, que são o corporal e o espiritual, uma

vez que, dos corporais, alguns vivem, os espirituais, todos, dos corporais, alguns luzem, os

espirituais, todos. CONTRA: quando se diz que todos sejam vida e luz em Deus isso não é enten-

dido segundo os gêneros, mas, além disso, segundo as espécies e os indivíduos; portanto, vê-

se que aquelas devem participar na espécie e no indivíduo.

AINDA, pergunta-se: se todos são vida e luz em Deus, deve ser concedido que todos vivem e

luzem em Deus?

1. Vê-se que sim: porque, por si, a vida sempre incute a vida e, por si, a luz sempre a luz: por-

tanto, visto que em Deus não possa ser senão a vida em si e a luz em si, vê-se que vivam e lu-

zam.

2. Ainda, vê-se que, na primeira causa, antes devam ser ditos ente, verdadeiro e bom do que

vida e luz, porque o ente, o bem, o verdadeiro e o uno são sobre os primeiros participados por

Deus; ora, a vida e a luz não são participados geralmente, visto que Dionísio diga no livro sobre

Os nomes divinos que a vida não se estende para além da vida das plantas.

Solução. Cumpre dizer que todos são vida e luz em Deus e isso segundo o que é próprio à cau-

sa e não segundo o que é próprio ao causado: com efeito, isso convém à criatura não em si,

mas segundo o que é na causa primeira. Ora, a vida é ato e espírito contínuo no que é ou no

44

corpo. Ora, na causa é tomada como vida, segundo o que é ato contínuo, que é causa da con-

tinuidade do ser, segundo os que os filósofos disseram sobre o movimento dos céus, que é

algo imortal e sem repouso, como a vida certa natureza para todos os existentes: e, por isso,

convém esse ser segundo a relação para a causa de todos segundo o que ela é causa ao criar e

dispor pelas ideias a continuação de toda natureza: com efeito, não sustentamos o movimento

dos céus a primeira causa da continuidade do ser e da diversidade das espécies, mas, antes, a

perpetuidade de Deus pela ciência prática que causa tanto o ser como a diversidade e a conti-

nuidade nele: e quanto a isso ele é dito vida de toda natureza. Por isso, como disse Agostinho

no livro sobre A cidade de Deus, alguns filósofos chamavam-no alma do mundo pelo movimen-

to e pela noção que governa e move o mundo, embora tenham sido passíveis de repreensão

por terem chamado de alma o Criador que é vida da natureza (porque move e contém conti-

nuamente) e não de Criador da alma. Portanto, é dito desse modo que a criatura seja vida

nele, porque é ideia pelo movimento e noção que move o mundo na continuidade da geração.

Ora, é luz quanto à noção de ideia, segundo o que, além disso, os filósofos sustentavam dois, a

saber, que moveria pelo movimento e quanto a isso convém a ele ser a vida pela natureza e

pela noção como quanto a isso convém a ele a luz. Ora, a criatura que se origina dele não par-

ticipa destas, porque não convêm à criatura segundo o que se origina, mas segundo o que é na

noção que permanece nele, como foi dito.

PARA O PRIMEIRO, portanto, diga-se que é verdadeiro o que disse Agostinho, porque a ideia da

arca na mente do artífice é vida desse modo: porque é movente e luz para que a arca seja fei-

ta; e a ideia não é acidente, porque em todo intelecto a espécie é dúplice, a saber, da coisa e

da espécie. Com efeito o intelecto, como disse o Filósofo, é a espécie das espécies, assim como

a mão, o órgão dos órgãos: e isso é verdadeiro precipuamente sobre o agente de cuja luz há a

espécie de todos os inteligíveis, porque por ele os simples são feitos inteligíveis: e esta espécie

não é acidente, mas vida que move no intelecto prático e contemplação no especulativo. E,

quanto a isso, Agostinho disse o verdadeiro.

PARA AQUILO, porém, que se perguntou para além disso, diga-se que a relação primeira e pró-

xima da criatura, enquanto vida e luz, está no intelecto prático, porque aquele ente, vida e luz,

é causa da continuidade em toda natureza pelo fato de que ele é o princípio de todos os seres

criados, no entanto, também intelige a coisa especulativamente, mas, desse modo, não se diz

que seja propriamente vida e luz, mas pode ser dito unicamente luz.

PARA AQUILO, porém, a que se faz a objeção, diga-se que a luz é reitora da obra no prático: e

isso convém à ideia operativa: e, por isso, a luz pertence ao prático, assim como ao especulati-

vo.

PARA O OUTRO, diga-se que a potência, a sabedoria e a vontade não dizem aquilo que é próximo

da produção das criaturas: porque aquilo que é próximo é, de algum modo, a noção da criatu-

ra, assim como é ideia: e, por isso, visto que toda relação sempre esteja no próximo segundo a

noção da criatura relacionada à causa, não são ditos potência, sabedoria e vontade, mas, an-

tes, vida e luz, que são convenientes à ideia, como foi dito.

PARA O OUTRO, diga-se que não se deve conceder que todos vivam e luzam, porque quando a

vida e a luz é significada verbalmente, então a criatura é notada enquanto a substância desde

a qual provém o ato da vida e da luz: e isso não é conveniente, porque assim como já foi dito,

estes convêm à criatura segundo o que ela é ideia que cria, não segundo o que é significada ser

em ato: com efeito, nada age a não ser o que é em ato, e, por isso, não se pode dizer que a

criatura então viva e luza.

45

PARA O OUTRO, diga-se que o ente, o bom, o verdadeiro e o uno efluem do Criador sobre a cria-

tura universalmente: e, por isso, não convêm à criatura unicamente segundo o que permanece

no Criador, mas também segundo o que é em si mesma: e, por isso, não são ditos assim.

Além disso, embora o ente seja indistinto, no entanto, o verdadeiro, o uno e o bom dizem cer-

tas distinções: e uma vez que a criatura no Criador não é no ser distinto, por isso novamente

não convém.

[...]

[Artigo 14

Acaso ser em Deus é ser na cognição de Deus? e Por que, assim como se diz serem várias as

ideias ou noções, não se diz serem várias ciências ou sabedorias ou várias palavras? e De que

modo diferem os paradigmas, os exemplares, as ideias e as noções?]

Depois, pergunta-se sobre isso que disse: “Todos são em Deus, ou com Deus, ou junto a Deus,

ou vida nele, etc.”.

Ora, há a dúvida de se ser em Deus é ser na cognição de Deus, como indica aqui.

AINDA, pergunta-se: por que se diz serem várias ideias ou noções e não várias sabedorias ou

ciências ou várias palavras?

Ainda, de que modo digo vários paradigmas, exemplares, ideias e noções? Graças a que se

alcança a diferença desses quanto ao nome?

SOLUÇÃO. Diga-se, como se teve acima, que a pluralidade das ideias ou das noções antes é co-

significada com respeito à coisa do que significada nisso que é ideia ou nisso em que é ideia.

Portanto, é patente que a sabedoria, a arte e a ciência não podem ser significadas pluralmen-

te, visto que antes se deem da parte do sábio e da essência divina que da parte das coisas so-

bre as quais são, uma vez que a sabedoria, a arte e a ciência são ditos hábitos que repousam

ou estão localizados na alma. E, de modo semelhante, a palavra não diz a relação senão para

aquilo de que é palavra: ora, a ideia, a noção e o exemplar não são assim: e, por isso, tem a

pluralidade cosignificada.

PARA O OUTRO, diga-se que se diz paradigma de , que é junto e que é instruindo,

como se instruindo por aquilo que está junto, assim como é a forma da madeira no aspecto do

calçado: e, por isso, porque são além da ideia, são ditos paradigmas: e, por isso, Boécio chama

as formas que são na matéria de imagens deles, porque a imagem imita: portanto, chama-os

de formas porque permanecem exteriores e são aqueles que formam. Além disso, são, às ve-

zes, chamadas espécies segundo o que se referem à cognição. Ora, é propriamente exemplar

quanto àquilo de cuja semelhança algo é feito pela referência a ele, e não pela extensão sobre

ele: donde as ideias são ditas exemplares segundo o que o artífice da natureza faz referência a

elas em si quando produz as formas da natureza. De fato, ideia vem de idos, em grego, que

expressa a forma primeira, assim como hyle expressa a matéria prima: e porque aquelas po-

tências são e permanecem exteriores, por isso são ditas ideias pela referência à forma. Ora, a

noção pertence ao fim: porque desde o fim é tomado o nome e a noção da coisa, como diz o

Filósofo. E, por isso, pela referência ao fim da obra, são ditas noções aquelas que são na mente

divina.138

138 Veja-se, abaixo, a versão paralela deste trecho em ALBERTO MAGNO, Physicorum libr. VIII., cap. XVII.

46

[Distinção 36

De que modo as coisas são em Deus?

B. Se os males devem ser ditos ser em Deus, onde todos são bons, visto que ambos sejam em sua

cognição e presciência: com efeito, conhece tudo.

Artigo 6

Acaso os males têm espécie ou ideia em Deus ou são conhecidos enquanto discordam da arte?

e Se são conhecidos por Deus segundo o intelecto especulativo ou prático? e Acaso o mal é vida

e luz em Deus?]

Depois, pergunta-se sobre isso que disse: “Depois do que foi dito anteriormente, pergunta-se:

visto que todos são ditos ser em Deus, etc.”

E o Mestre pergunta aqui especialmente sobre o mal: e sua solução é que os males não têm

espécie ou ideia em Deus, mas são conhecidos enquanto discordam da arte: e todos os Douto-

res aquiesceram à solução do Mestre.

Mas, contra, faz-se objeção, assim:

1. Conhecer algo pelo seu oposto e não por si é conhecer pelo acidente: ora, a cognição pelo

acidente é uma cognição débil e enferma: portanto, não deve ser atribuída a Deus, a quem

deve-se reservar tudo de melhor.

2. Ainda, o mal não é privação pura, mas tem algo de bom: assim como diz Dionísio, que o mal

não é nada diverso do bem particular: portanto, vê-se que aquilo que se dá sobre o ente ou

não se dá desde Deus, o que é temerário dizer, ou se é, terá a ideia em Deus: portanto, aquilo

que é mal, tem ideia em Deus; portanto, não é conhecido unicamente pelo oposto.

3. Ainda, quando digo aquele que fornica, não digo unicamente o defeito, mas, além disso, o

ato proveniente da potência do livre arbítrio: ora, esse ato é algo; portanto, ou é desde Deus,

ou desde outro princípio: não desde outro princípio, porque não há outro princípio; portanto,

desde Deus; portanto, tem ideia em Deus, porque apreendemos na última parte desta distin-

ção que tudo que é desde Deus tem ideia em Deus.

MAS, ENTÃO, pergunta-se se aquele ato é vida e luz em Deus.

Ora, vê-se que não: porque não tem em si nada sobre as disposições da vida e da luz. MAS,

CONTRA: as coisas não são vida em Deus senão segundo a ideia; ora, estes têm ideia; portanto,

são vida e luz em Deus.

ALÉM DISSO, pergunta-se sobre a solução de alguns que dizem aqui que o mal é conhecido por

Deus segundo o intelecto especulativo e não o prático. Com efeito, vê-se que isso seja contrá-

rio à razão, porque:

1. Há uma ciência dos opostos e uma potência una: portanto, se o bem for conhecido por Deus

segundo o prático, segundo o mesmo conheceria também o mal.

2. Ainda, o verdadeiro abstrai do bem e do mal: com efeito, há o verdadeiro bom, como o ser

Deus, e há o verdadeiro mal, como que tu sejas pecador; ora, todo verdadeiro é conhecido por

47

si por Deus, não por acidente: portanto, o mal verdadeiro será conhecido a Deus por si, não

por acidente: e, assim, nada é o que dizem os Doutores: que os males sejam conhecidos por

Deus por acidente.

SOLUÇÃO. Pode-se dizer para isso segundo a solução comum que o mal é sabido por Deus por

acidente e segundo o intelecto especulativo e não o prático. E isso, quanto à primeira parte, é

provado assim: com efeito, embora o mal tenha um sujeito, no entanto, aquele sujeito não é

separável dele a não ser unicamente segundo o intelecto: e, por isso, seu sujeito não se refere

à causa a não ser unido à deformidade; ora, unido à deformidade, não pode se referir senão ao

livre arbítrio como à causa, e não, além disso, a Deus; portanto, o mal não tem ideia em Deus:

com efeito, Deus não incute o ato com a deformidade, mas unicamente o ato, e a deformidade

incide nele a partir do defeito do livre arbítrio. Quanto à outra parte, prova-se assim: porque

(como diz Prisciano) as palavras a favor da heresia miram o infinitivo, como “sei fazer a casa” e

“não sei a casa”. Donde, se Deus soubesse o mal por ciência operativa, ele saberia fazer o mal

e poderia fazer o mal e faria o mal: todas afirmações falsas. Portanto, embora não possam

dizer “sabe fazer o mal”, mas unicamente que “sabe o mal”, é patente que, para estes, a ciên-

cia é especulativa, não prática, porque as palavras especulativas não miram o infinitivo que

denota a obra, mas, antes, o ativo no qual o ato passa à palavra: e, assim, prova-se a solução

dos Doutores quanto às duas partes.

DIGA-SE, portanto, para o primeiro, que quando se diz: Deus conhece o mal por acidente, ali,

por acidente se refere ao verbo da parte do ato da matéria: e isso se dá desde a parte do co-

nhecido e não desde a parte do cognoscente: e, por isso, denota o defeito no conhecido e não

no cognoscente.

PARA O OUTRO, diga-se que o ato, naquilo que é ato, é desde Deus e tem ideia, mas não o ato

mau naquilo que é mau, mas na espécie daquele ato é conhecido o mal: porque é ato voluntá-

rio carente de bem. E, por isso, também é patente a solução para o que se segue.

PARA O OUTRO, diga-se que não se deve conceder que o mal tenha ideia em Deus nem que seja

vida em Deus nem que seja desde Deus; ora, o ato separado da deformidade segundo o inte-

lecto já não será mau, e, por isso, segundo aquilo que é assim, pode ser vida em Deus e ter

ideia, mas disso não se segue que o mal seja em Deus, assim como já ficou patente.

PARA AQUILO a que, além disso, se fez a objeção sobre a solução dos Doutores, diga-se que o

mal e o bem que são ordenados a serem feitos pelo cognoscente são nele segundo o prático: e

isso certamente se dá em nós, mas não em Deus; e, por isso, o mal não tem práxis na cognição

de Deus, a não ser que digamos que a reprovação se dá a respeito do mal, mas depois haverá

questão sobre isso.

PARA O OUTRO, diga-se que há a verdade do signo e há a verdade da coisa. A verdade do signo

abstrai do bem e do mal e Deus conhece esse bem por si e esse tem ideia em Deus; mas o mal

não é verdadeiro pela verdade da coisa, visto que seja a corrupção da própria espécie da qual

deveria ser verdadeiro na coisa: donde antes é deficiente desde a forma do que tem a forma e,

por isso, não é verdadeiro.

48

ALBERTO MAGNO*

Suma de Teologia

Parte I

Questão 55

Sobre as três causas assinaladas, a saber, eficiente, formal e final:

de qual modo convêm a Deus?

Segundo Membro

Artigo 1

Deus é causa formal das coisas?

Para o primeiro, há objeção, assim:

1. No livro sobre Os nomes divinos (cap. 5), Dionísio diz assim: “E são princípios: e primeiro são

e depois são princípios”. Portanto, primeiro são princípios formáveis das coisas e, depois, são o

princípio. Ora, se são primeiro, não podem ser senão idealmente na arte da mente divina, por-

que ela é a causa primeira das coisas. Portanto, os exemplares de todas as coisas são princípio

na mente divina. E, assim, a mente divina, segundo o que é arte ou princípio factivo das coisas

com a noção – com efeito, assim Aristóteles define a arte em Ética VI –, é causa formal e

exemplar das coisas.

2. Sobre a mesma palavra de Dionísio, Máximo, no comentário, diz assim: “As causas primordi-

ais são os princípios que os gregos chamam de ideias, isto é, espécies ou formas eternas e no-

ções incomutáveis, segundo as quais e nas quais o mundo visível é formado e regido. E por

isso, mereceram ser chamadas pelos sábios gregos de πόθιν, isto é, exemplos principais, que o

Pai fez no Filho e pelo Espírito Santo divide e multiplica em seus efeitos. Também são chama-

dos πορίσματα, isto é, predestinações. Com efeito, neles o que quer que venha a ser feito e

seja feito pela providência divina, simultaneamente, semelhantemente e incomutavelmente

são predestinados. Com efeito, nada naturalmente visível ou invisível nasce sem que neles,

antes de todos os tempos e lugares, esteja predefinido e ordenado.” A partir disso toma-se

que há na mente divina as ideias de todas as coisas e são os principais exemplos de tudo que

nasce nas coisas.

3. Quanto a isso, Máximo, no mesmo lugar, pouco depois: “As ideias costumam ser chamadas

pelos filósofos de vontades divinas, e principalmente por Platão: visto que o que quer que

Deus tenha querido fazer, fez nelas primordialmente e causalmente”. Disso argumenta-se co-

mo antes: que Deus e a mente divina é causa primordial e exemplar das coisas.

4.Quanto a isso, Máximo, no mesmo lugar: “Estas formas ou ideias são chamadas por Dionísio

e outros santos de bondade por si mesma, essência por si mesma, vida por si mesma, virtude

por si mesma, sabedoria por si mesma. Com efeito, o que quer que seja bom, é bom pela par-

* ALBERTO MAGNO, Summae Theologiae Pars Prima. A. Borgnet (Ed.). Volume 31 [=Opera Omnia. Ex Edi-tione Ludugnensi Religiose Castigata, et pro auctoritatibus ad fidem vulgatae versionis accuratiorumque patrologiae textuum revocata, auctaque B. Albertii vita ac bibliographia operum a PP. Quétif et Echard exataris, etiam revisa et locupletata.]. Paris: Vivès, 1894, p. 559-566.

49

ticipação do bem por si; e o que quer que seja, é pela participação da essência por si; e o que

quer que viva, vive pela participação da vida por si, e assim quanto a outras participações e

participantes. Pois não é encontrada na natureza das coisas nenhuma virtude, seja geral, seja

especial, que não proceda das causas primordiais por inestimável participação.” Disso se toma

o mesmo que antes.

5. Quanto a isso, Hebreus 11, 3: “Entendemos pela fé que os séculos tenham sido postos pelo

verbo de Deus, como se desde o invisível fosse feito o visível”. Ali, a Glosa de Agostinho: “des-

de o invisível significa o mundo invisível, que era na sabedoria de Deus, a cuja semelhança é

feito este mundo visível, isto é, a disposição pela qual dispôs todos estes visíveis para que fos-

sem feitos segundo o exemplar invisível que era na mente de Deus”. Disto resta ainda que os

exemplares das coisas sejam na mente divina: e, assim, Deus é causa exemplar e formal das

coisas.

6. Quanto a isso, o mesmo é argumentado pela razão: com efeito, todo sábio artífice tem con-

sigo tanto as formas como as noções das obras, as quais, se não tivesse, nem saberia a sua

obra, nem dirigiria as noções da obra para a obra, mas operaria pela fortuna e pelo acaso. Com

efeito, Aristóteles diz no livrinho Sobre a fortuna e a boa ação que “a fortuna é a natureza para

além da noção e o intelecto o ímpeto que faz”. Portanto, visto que Deus seja um artífice sapi-

entíssimo, tem consigo as formas e as noções de todas suas obras: e, assim, é causa formal e

exemplar de todas as suas obras, assim como o artífice dos artificiados.

7. Quanto a isso, eis o que disse Agostinho no livro I das Retratações (cap. 3): “Platão chamou

de mundo inteligível a própria noção sempiterna pela qual Deus fez o mundo, a qual quem

negar que seja, segue-se que diga que Deus fizesse irracionalmente o que fez: ou quando o fez,

ou antes que o fizesse, ignorava o que fazia se não estivesse com ele a noção do fazer.”

8. Quanto a isso, Aristóteles disse sobre a causa do universo que em todos há o ato antes da

potência e da razão e da substância e do tempo, de modo que em tais há a casa a partir da

casa, o homem desde o homem, a saúde desde a saúde. E isso não pode ser, a não ser que o

próprio artífice seja idealmente e exemplarmente o ato de tudo, para o qual é formado e feito

tudo que, em ato, é isto ou aquilo. Portanto, o artífice é causa exemplar de todas as coisas.

9. Quanto a isso, Aristóteles diz em Física II que “Polícleto é causa da estátua por acidente, mas

o fazedor de estátuas é causa da estátua por si.” Disso se toma que não é causa por si a não

ser aquele que tem antes a causa do formado: ora, Deus é causa por si de toda coisa que faz

portanto, tem antes causalmente e idealmente as formas de tudo o que faz: ora, que tenha

antes as formas dos causados, é causa formal e exemplar deles; portanto, Deus é causa formal

e exemplar de tudo o que é criado.

EM SENTIDO CONTRÁRIO está que, segundo isso, vê-se induzir a posição de Platão, a saber, que

sejam antes da coisa as formas por si a partir das quais as coisas são formadas. Posição que é

reprovada por Aristóteles, porque se são fora das coisas e antes das coisas, não servem para o

ser, visto que a forma não confere ao ser senão que seja na coisa; nem servem para o saber,

visto que as mesmas são princípios do ser e do saber, como diz Aristóteles no princípio de Físi-

ca I. E visto que a forma não seja senão enquanto seja princípio do ser e do saber, a defesa da

forma que é fora da coisa e anterior à coisa será inútil.

SOLUÇÃO: Para a primeira questão cumpre dizer que há ideias na mente divina segundo o que é

arte de toda criação. Assim, tem antes e tem absolutamente as espécies e as noções de toda

criação, as quais (assim como diz Agostinho) são o mesmo que a própria mente divina. Com

50

efeito, Deus não conhece senão a si mesmo, uno e o mesmo, e não assim como o intelecto

criado, que recebe o meio de conhecimento ou a espécie do cognoscível: ora, conhece a si

mesmo enquanto, a saber, a própria espécie e a noção de toda cognição e de todo cognoscível.

Ora, os argumentos apresentados quanto a isso – que são exemplares das coisas na mente

divina –, devem ser concedidos do modo que foi dito, a saber, que são causas primordiais e

fontais da criação.

Para a objeção contrária à posição de Platão, cumpre dizer que não foi aquela a posição de

Platão reprovada por Aristóteles: ora, Platão sustentou que as formas que são anteriores à

coisa e princípios da coisa existam em si mesmas e que a coisa estaria assinalada nelas assim

como para o selo, e não as sustentou na mente divina, mas em si mesmas. E é desse modo que

Aristóteles a reprova. E, talvez, Platão tenha dito a verdade. Com efeito, é necessário que os

princípios sejam anteriores à natureza, e que sejam antes princípios que principiados. Donde,

se as formas são princípios das coisas e dos seres formados, tanto são como são princípios

anteriores aos formados.

E se for perguntado: onde são? É a questão de Porfírio, porque pergunta assim sobre os uni-

versais e os primeiros princípios. Certamente, são em seus princípios, que são as luzes e as

influências da primeira causa nas inteligências, e das inteligências nos orbes, e dos orbes nos

elementos, e dos elementos nas virtudes formativas das semente e dos gerados: com efeito,

assim, as formas ou ideias avançam a partir da mente divina para os ideados ou formados. E,

por isso, Platão teria dito que procedem assim como de certo selo. E Aristóteles não nega isso,

mas nega que as formas são por si mesmas anteriores à coisa e existentes separadamente

segundo si mesmas.

Segundo Membro

Artigo 2

Se os exemplares são na mente divina, são sob a unidade ou a pluralidade?

Para além disso, pergunta-se: se os exemplares são na mente divina, são sob a unidade ou a

pluralidade?

E vê-se que sob a pluralidade.

1. Com efeito, Agostinho diz no livro das 83 questões (q. 46): “As ideias são certas formas prin-

cipais ou noções das coisas, estáveis e incomutáveis, que não são elas mesmas formadas, con-

tidas na inteligência divina. E ainda que elas nem nasçam nem morram, segundo elas, porém,

se diz ser formado tudo que pode nascer ou morrer, e tudo o que nasce e morre”. Aqui, Agos-

tinho sustenta o cosignificado do número plural a respeito das ideias: portanto, vê-se que se-

jam várias.

2. Quanto a isso, Agostinho, no mesmo lugar: “Deus criou tudo racionalmente. E não pela

mesma noção o homem e o cavalo, e semelhantemente se dá sobre os outros diversos pelo

gênero ou pela espécie”. Portanto, vê-se que cada um tenha as ideias e as noções próprias na

mente divina: ora, as noções e as ideias próprias são sob a pluralidade; portanto, as ideias na

mente divina são sob a pluralidade, e não sob a unidade.

51

3. Vê-se que isso mesmo seja provado pela noção dos diferentes formados ou exemplados.

Com efeito, é impossível haver um exemplar: porque a diferença pelo gênero e pela espécie

não podem ter como ponto de partida o mesmo pela imutabilidade, assim como de um selo

não avançam imagens diversas pelo gênero e pela espécie. E essa foi a causa pela qual Platão

sustentou muitas formas existentes por si. Ora, os criados diferem pelo gênero e pela espécie.

Portanto, é necessário que os seus exemplares difiram pelo gênero e pela espécie: e assim são

sob a pluralidade e não sob a unidade.

4. Quanto a isso, assim como os artificiados são na mente do artífice pelas formas exemplares,

assim segundo Agostinho e Beda, sobre João139, são criados na mente do criador. Ora, a casa e

a nave não está segundo o mesmo exemplo na mente do artífice. Portanto, na mente de Deus,

o homem e o cavalo não são segundo um e o mesmo exemplar. Portanto, os exemplares são

na mente divina sob a pluralidade, e não sob a unidade.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, há:

1. O que Dionísio diz no livro sobre Os nomes divinos (cap. 5), assim: “Tudo que existe e que de

algum modo está contido desde o ser está incompreensivelmente, conjuntamente e singular-

mente”. E dá dois exemplos disso. Um quanto aos discretos, dizendo assim: “Com efeito, pree-

xiste na unidade de todo número uniformemente, e todo número tem a unidade em si mesma

singularmente, e todo número certamente está unido à unidade: ora, enquanto procede da

unidade, unicamente é discernido e age na multiplicidade.” O segundo exemplo é sobre o con-

tínuo, sobre o qual diz assim: “E no centro de todo círculo existirão as linhas segundo uma

união, e todas as linhas têm no signo (ou centro) em si mesmo a unidade da uniformidade, e

reciprocamente entre si e quanto a um princípio do qual procederam: e no próprio centro

certamente são perfeitamente unidas. Ora, menos distantes dele, também menos são discer-

nidas, mas mais distantes, também mais são discernidas e absolutamente: e tanto são mais

próximas do centro, quanto também se unem a ele e entre si reciprocamente, e tanto dele se

afastam quanto reciprocamente distinguem-se entre si”. Disso é patente que tudo que proce-

de da primeira causa, é uno na primeira causa, e consiste numa mônada e não na pluralidade.

2. Quanto a isso, Máximo disse sobre o mesmo no comentário: “Na mônada, certamente a

força e o poder são números, de fato, nos gêneros e nas formas em ato e na obra. Ora, a força

substancial deles é a sua virtude pela qual eles existem eternamente e imutavelmente na mô-

nada: de fato, o poder deles é a possibilidade inculcada neles pela qual podem ser multiplica-

dos em gêneros e espécies, e pelas intelecções próprias manifestamente serem feitos deter-

minados termos pelas definições, quantidade pela diversidade, intervalo das diferenças, as

proporções e o proporcionado por admirável igualdade e insolúvel consonância”. Disso se to-

ma que as coisas criadas são em Deus sob a unidade indiferente.

3. Quanto a isso, Máximo, no mesmo lugar, dando o signo desta coisa, disse assim: “O ato do

intelecto é o movimento da alma tomado em números monádicos, números puríssimos em

sua natureza, sem nenhuma imaginação a intuí-los. De fato, é o movimento da alma a obra

pela qual põe os mesmos números na espécie, números puríssimos que, em si mesma, consi-

dera fantasias, ao trazer os significados na notícia de outros como se por certos corpos robus-

tecidos da memória que ali comandam e ordenam, e que tratam das suas noções mais facil-

mente e para o exterior por certos signos dos sentidos corporais. Portanto, os números inte-

lectuais se difundem a partir das mônadas, para que de algum modo resplandeçam na alma:

139 BEDA, O VENERÁVEL, Sobre João: sobre estas palavras de João 1, 3-4: Sem ele nada se fez do que foi feito. Nele havia a vida, etc.

52

donde, fluindo desde a alma para a noção, se tornam mais abertamente patentes, em seguida,

desembocando da noção na memória, excluem as aparições fantásticas pela natureza da pró-

pria memória, nas quais as virtudes de suas múltiplas formas mostram de modo latente suas

inquisições; depois, nos sentidos ou qualidades sensíveis; finalmente, nas figuras: visto que a

diversidade das figuras exige a diversidade das espécies.” Disso se tem que tudo que é criado

em Deus, segundo o que é em Deus, é um, e não se dá para o número ou a diferença a não ser

enquanto são mais ou menos procedentes dele.

E cumpre conceder isso porque essa é a fé católica. Com efeito, em Deus não há senão o mes-

mo que a essência divina, porque, disse Agostinho, “tudo que é em Deus, é Deus”. Ora, a es-

sência divina está sob a unidade e não sob a pluralidade.

SOLUÇÃO. Cumpre dizer que estão na mente divina sob a unidade, isto é, como uno, mas não

como muitos, porque o que está na causa primeira, está nela a modo de causa e não a modo

de causado. Donde, assim como é dito no livro das Causas, o causado, na causa, é causa. No

entanto, por mais que sejam um na causa, têm a pluralidade ainda que relativa, visto que

aquele uno faz referência a muitos, e pela relação formal pela qual faz referência a um, não faz

referência a outro, embora a coisa seja uma e a mesma, assim como excelentemente Dionísio

sustentou o exemplo quanto à unidade e o centro. Com efeito, uma unidade é o princípio de

todos os números, no entanto, a relação pela qual os números e a noção fazem referência a

uma espécie não é uma e a mesma com a relação e com a relação pela qual faz referência à

outra. E, de modo semelhante, se dá sobre o centro, que é o princípio das linhas que se se-

guem do centro para a circunferência, que por relação e noção diversas faz referência tanto a

uma quanto à outra, que são noções das relações, porque segundo Boécio, não acrescentam

nem diminuem nem variam algo na coisa, não induzindo nenhuma pluralidade no centro.

E esta é a intenção de Agostinho. Porque, no entanto, há a pluralidade das relações e não das

coisas, cosignificando isso, disse: “As ideias estão na mente divina” e para remover a pluralida-

de real, não disse várias ideias ou muitas ideias, porque em Deus são como o uno, e não como

muitas.

E o que disse, que por uma noção se faz o homem e por outra o cavalo, mostra isso que foi

dito. Com efeito, a noção faz referência propriamente ao fim da operação que é obra dele, e

obras diversas na forma não podem fazer referência ao artífice por uma relação, e, consequen-

temente, nem o artífice a elas. Nem há semelhança entre o artífice criado e o incriado, porque

o artífice criado não é exemplar da obra, a não ser pela forma tomada das obras: e, por isso,

não pode por uma coisa ser o exemplar de duas. Ora, o artífice da criação, assim como causa a

si mesmo, assim é exemplar de si mesmo, e, por isso, pela mesma coisa, multiplicado pela

relação, é causa exemplar de tudo.

E por isso é patente a solução do todo.

Segundo Membro

Artigo 3

De que a ideia é causa?

A saber, se daquilo que está feito ou unicamente daquilo que há de ser feito, ou, ainda, dos

possíveis ainda que nunca sejam feitos, e se é dos bens e dos males.

53

Para além disso, pergunta-se de quais há, a saber se do que está feito ou unicamente do que

há de ser feito, ou, ainda, dos possíveis ainda que jamais sejam feitos, e se dos bens e dos ma-

les ou unicamente dos bens.

Vê-se que não, excetuando o que está feito ou o que há de ser feito.

1. Com efeito, o que não é alguma forma participante não participa por algo existente segundo

si, segundo Dionísio no livro sobre Os nomes divinos, que chama de participações as primeiras

que são separadas segundo si: e o que não é bom, não participa segundo si da bondade, e o

que não é, não participa segundo si da essência, e o que não é sábio, não participa segundo si

da sabedoria. Portanto, semelhantemente, o que não é em alguma forma, assim como o pas-

sado, ou o presente, ou o futuro, não participa daquilo que segundo si é forma. Ora, o possível

não futuro não participa no ser de alguma forma, porque jamais será. Portanto, a referência

dele não é alguma que é forma segundo si: ora, esta é a ideia; portanto não há ideia dos possí-

veis que não hão de ser feitos.

2. Quanto a isso, foi dito no que se concluiu antes que as ideias são um pela coisa, e que não

cosignificam pluralmente senão a referência daqueles dos quais são. Se, portanto, aquelas não

forem, nem enquanto una, nem enquanto várias, a referência daquelas não será ideia. Ora, as

coisas existentes quanto ao possível, nem são enquanto uno, nem enquanto muitas, porque o

uno e o muito acompanham as coisas existentes em ato ou no passado, ou no presente, ou no

futuro. Portanto, vê-se com referência aos possíveis que não hão de ser feitos, não há nenhu-

ma ideia.

3. Quanto a isso, são possíveis para Deus muitos que segundo a sua natureza são impossíveis;

e visto que eles não sejam em si, nem segundo o ato, nem segundo a potência, vê-se que a

ideia não pode ser referida de nenhum modo para eles.

4. Quanto a isso, o que nunca é, nem foi, nem será exemplado, dele não há exemplar. Ora, dos

possíveis para Deus ou em si mesmos dos quais nenhum foi feito, nem foi no passado, nem é

no presente, nem será no futuro, nada há dos exemplares. Portanto, destes, como se vê, não

há nenhum exemplar. Portanto, nem ideia.

O que se for concedido está contra o que disse Aristóteles nos Primeiros analíticos, que “posto

o falso e não impossível, o que acontece é falso e não impossível”. Portanto, ponha-se que

Deus faça possível algo desse modo. Segue-se que o faz de modo que não diz respeito a si co-

mo à sua ideia. Portanto, faz, segundo Agostinho, não tendo consigo a forma e a noção de sua

obra. Portanto, faz ou ignorante da obra ou irracionalmente. Ora, isto é falso e é impossível.

Portanto, uma posição falsa e impossível.

ALÉM DISSO, pergunta-se se os males têm ideia em Deus.

E vê-se que não.

1. Com efeito, sobre o Salmo 34, 11: Interrogavam-me aquilo que eu desconhecia, diz a Glosa:

“Do modo que a arte ignora o vício, assim eu, que sou a arte do Deus onipotente. E fala o Fi-

lho.”.

2. Quanto a isso, Agostinho no livro II do Livre arbítrio: “tudo que permanece da forma para

alguma coisa que se extingue, é a partir daquela forma, a qual ignora extinguir-se, e não con-

sente que os movimentos próprios das coisas que se extinguem ou surgem excedam as leis dos

54

números.”140. Portanto, visto que o mal não tenha forma, dado que (assim como diz Agosti-

nho) é corrupção do modo da espécie e da ordem, vê-se que o mal não tenha ideia em Deus.

3. Quanto a isso, no terceiro livro do Livre arbítrio: “As naturezas, enquanto são, são desde

Deus. Ora, enquanto viciosas se afastam daquilo de que são feitas com arte. Ora, o censor

tanto vê a arte pela qual são retamente censuradas quanto a arte daquelas que são feitas na-

turezas, e censura nelas o que ali não vê.”141 A partir disso é patente que na arte primeira não

há a ideia de mal.

4. Quanto a isso, prova-se o mesmo pela razão: com efeito, não há em Deus exemplar senão

daqueles que são possíveis de serem feitos por ele, ou são feitos, ou foram feitos. Ora, os ma-

les nem são feitos, nem foram feitos, nem é possível que sejam feitos por Deus. Portanto, não

há exemplar ou ideia em Deus dos males.

EM SENTIDO CONTRÁRIO quanto a isso, tem-se que:

1. Os males são punidos por Deus. Ora, não é bem nem justamente punido o que é desconhe-

cido. Portanto, são conhecidos por Deus. Ora, o que quer que seja conhecido, tem a noção da

cognição junto ao cognoscente. Portanto, a noção da cognição dos males está junto a Deus. E

daqueles de que a noção da cognição está junto a Deus, a ideia está junto a Deus, porque a

noção da cognição é a ideia. Portanto, há ideia dos males em Deus.

2. Quanto a isso, Anselmo, no Monologio (cap. 60): “Para o sumo espírito, dizer não é senão

ver como que cogitando”. Ora, o sumo espírito ao cogitar vê os males, quando condena e vin-

ga. Portanto, vê-se que disse males. Ora, do que quer que tenha dito, tem consigo a noção e a

ideia do dizer. Portanto, os males têm ideia e noção junto a Deus.

SOLUÇÃO. Para a primeira pergunta deve-se dizer que assim como foi provado desde o necessá-

rio e é expressamente tomado desde as palavras de Agostinho, a ideia não é unicamente dos

que são feitos existentes e futuros, mas também dos possíveis para Deus, ainda que jamais

sejam feitos, assim como a objeção prova necessariamente.

Ora, para a objeção proposta em contrário, cumpre dizer que, segundo Dionísio, tudo que é de

algum modo, participa segundo si a essência segundo suas naturezas e a analogia segundo

suas possibilidades. Ora, o possível, seja para Deus, seja em si, de algum modo se dá para a

forma e para o ato, uma vez que do modo possível: e segundo essa analogia a forma participa-

rá segundo si, e assim tem ideia.

Para o outro cumpre dizer que embora o uno e o muito acompanhem as coisas existentes em

ato, no entanto, por isso que os possíveis têm analogia para o ato, também têm para a unida-

de e a multiplicidade: e, assim, há ideia a respeito deles.

Para o outro, cumpre dizer que há ideia de todo possível para Deus. E é falso o que se diz, que

aqueles não são de nenhum modo, nem em ato nem em potência. Com efeito, são na potência

divina, da qual a potência do sair para o ato segundo a noção está na mente divina, e esta no-

ção exemplar é daqueles que são feitos por tal potência.

Por isso mesmo é patente a solução para os que se seguem.

140 AGOSTINHO, O livre arbítrio II, cap. 17, n. 46. 141 Ibidem III, cap. 15, n. 42.

55

Para aquilo que além disso se pergunta, se os males têm ideia em Deus, cumpre dizer que não.

Com efeito, segundo Dionísio (Sobre os nomes divinos, cap. 5), daquele do qual não há ne-

nhuma participação existente por si, não há nenhuma forma: ora, não há nenhuma participa-

ção existente por si do mal, uma vez que a malícia segundo si nada é: donde o mal não pode

ter exemplar em Deus. E devem ser concedidas as autoridades e as razões aduzidas quanto a

isso.

Para a objeção proposta em contrário cumpre dizer que é diferente ser na notícia do conheci-

mento simples e ser na arte. Com efeito, a arte, como disse Aristóteles em Ética VI, é princípio

factivo com a noção. E o que é na arte, é da obra como exemplar e noção, é nela o princípio

formal da obra. E, por isso, os que, segundo a noção, são em Deus ideias e exemplares, deles

Deus é ou pode ser autor e produtor. Ora, os que são numa notícia simples, às vezes são nela

pela forma, às vezes pela forma da privação. Com efeito, a notícia simples do intelecto é tanto

sobre a forma como sobre a privação: sobre a forma porque é princípio de cognição, sobre a

privação porque se afasta do princípio de cognição. E assim os males estão na notícia simples

de Deus, e não na arte pela ideia ou exemplar, mas antes por isso que se afastam, como disse

Agostinho, da imitação da ideia exemplar e da arte. E não se desconhece segundo qual mérito

são censurados e punidos: porque são na luz da notícia simples, assim como a treva está na

luz, como disse Gregório, uma vez que manifesta a privação da luz.

Para o último cumpre dizer que sem dúvida o sumo espírito não diz os males a não ser repre-

endendo e imprecando, assim como é patente em Mateus 25, 42: Tive fome e não me destes

de comer. Ora, segundo o que dizer é manifestar pela obra – assim como se diz no Salmo 32, 9:

Disse, e foi feito. E Gênesis 1, 3: Disse Deus: Faça-se a luz. E a luz foi feita –, assim não disse os

males: e se ao cogitar viu, isto não foi senão pela cognição da notícia simples, assim como o

privado e aquilo que priva algo é visto. Donde o dito de Anselmo é entendido sobre aqueles

que Deus vê ao cogitar pela notícia do que é beneplácito, a saber, quando lhe agrada o que vê:

graças a isso que realiza a forma da arte para aquilo que vê e imita segundo a analogia de sua

possibilidade. Com efeito, assim como dizem tanto Gregório Nazianzeno como o Damasceno,

primeiro Deus pensou as essências celestes, e seu pensamento foi sua obra. Donde diz que

veja pela notícia do beneplácito: ora, o que viu fazer aversão desde a arte viu com indignação e

com o semblante indignado desde o hábito quanto à privação; não diz que tem aversão desde

a arte, mas, como disse Agostinho, que censura e pune.

56

ALBERTO MAGNO*

Os oito livros da Física

Livro I

Terceiro Tratado

Sobre os princípios segundo a sentença verdadeira.

Capítulo XVII

E há a digressão que declara aquilo que se tem dúvida sobre o apetite da matéria e da privação

para a forma pelas noções e pelos nomes.

[...]

Ora, os nomes da forma, em geral, são vários segundo dois modos, a saber, segundo o que ela

é fim do movimento e segundo o que ela é doadora do ser da coisa formada. Com efeito, se-

gundo o que ela é fim do movimento, desse modo é dita ser o divino e o ótimo e o apetecível.

Ora, segundo o que é doadora do ser, desse modo tem outros nomes. Ora, os nomes se diver-

sificam primeiro segundo a intenção daquilo que se move para ela. Com efeito, a forma pode

ser tomada, segundo o que é fim da intenção, segundo o que é fim do apetite pela intenção do

dirigido. E visto que ela é fim da intenção, isto se dá de dois modos, a saber, segundo a relação

para a causa primeira, à qual assimila a si o quanto pode no ser de algum modo, e assim é o

divino. E segundo o que é fim do movimento absolutamente, desse modo é dita ser o ótimo,

uma vez que o bem é o fim daquilo que se move para ele. Ora, segundo o que repousa o apeti-

te do imperfeito, assim é certo apetecível. Ora, é dita forma visto que distingue e informa a

informidade da matéria. E espécie segundo o que é doadora do ser e da cognição da coisa. E

noção segundo o que dela se toma a verdadeira definição da coisa. Mas é dita ideia e para-

digma e imagem segundo o que procede do seu exemplar que tem na causa primeira. Com

efeito, toda forma que pelo ser está na matéria, foi antes no primeiro motor, graças a que ele

também é dito por Platão mundo arquetípico, graças a que o dito de Boécio é verdadeiro, ao

dizer: “belo, ao belíssimo mundo administras com a mente e o semelhante formas pela ima-

gem”. Portanto, se a forma for considerada no exemplar primeiro, é dita ideia. Se for conside-

rada a noção da forma para a qual toda forma se dá naquela matéria, é dita paradigma. Com

efeito, assim como a madeira do tamanco se dá para o calçado, visto que para ela se faz todo

calçado, assim se dá a noção da forma para as formas que são na matéria. E, por isso, nesta

noção, a forma é dita paradigma. Ora, é dita imagem aquela que é trazida na matéria que a

imita, como disse Boécio. E assim é patente a razão dos nomes.

[...]

* ALBERTO MAGNO, Physicorum libr. VIII. A. Borgnet (Ed.). Volume 03. [=Opera Omnia. Ex Editione Ludu-gnensi Religiose Castigata, et pro auctoritatibus ad fidem vulgatae versionis accuratiorumque patrolo-giae textuum revocata, auctaque B. Albertii vita ac bibliographia operum a PP. Quétif et Echard exataris, etiam revisa et locupletata.]. Paris: Vivès, 1890, p. 89 s..

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BOAVENTURA DE BAGNOREGIO*

Comentários para os Quatro Livros das Sentenças

do Mestre Pedro Lombardo

Livro I

Comentário para a Distinção 35

Sobre a ciência de Deus em geral segundo si

Com o que dissemos acima e mais haveremos de dizer

Divisão do Texto.

Acima o Mestre tratou do sacramento da Trindade e da Unidade; nesta parte trata das condi-

ções segundo as quais há em Deus a noção de causalidade, as quais são, a saber, potência,

sabedoria e vontade. Ora, essa parte tem três partes. Nas quais a primeira trata da ciência, a

segunda da potência, sob a distinção quadragésima segunda: Agora cumpre tratar sobre a

onipotência de Deus; na terceira da vontade, sob a distinção quadragésima quinta: Já sobre a

vontade de Deus etc.

A primeira parte tem três partes. Na primeira trata da ciência em geral segundo si. Na segunda

trata dos modos da cognição divina: se Deus conhece de modo mutável ou imutável e por qual

modo, na distinção trigésima oitava: Portanto, voltando agora ao proposto. Na terceira trata

acerca dos efeitos especiais, sob a distinção quadragésima: A predestinação é sobre os bens

salutares.

A primeira parte é dividida em três. Na primeira, o Mestre determina sobre a própria ciência

de Deus. Na segunda, uma vez que as coisas são conhecidas no ciente ao modo do ciente, de-

termina de que modo as coisas são em Deus, sob a distinção trigésima sexta: Costuma-se per-

guntar aqui, visto que se diga que tudo é na cognição de Deus. Na terceira, determina inciden-

talmente de que modo Deus é nas coisas, sob a distinção trigésima sétima: E visto que foi de-

monstrado a partir da parte.

A primeira parte, que contém a distinção atual, tem três partes. Na primeira, visto que a ciên-

cia de Deus seja una, determina de que modo obtém vários nomes. Na segunda, visto que a

ciência ou presciência de Deus seja eterna, determina de que modo se dá para os temporais ou

criados, ali: Aqui é preciso considerar se a ciência ou a presciência. Na terceira, visto que a ci-

ência de Deus seja ente, de que modo conhece os não entes, ali: Segundo tudo são ditos ser

em Deus etc.

Na primeira parte, dando continuidade à sua exposição, diz que a divina essência tem vários

nomes em razão dos conotados. Na segunda, diz que haveria ciência de Deus se não houvesse

nenhum futuro, e seria ciência, mas não seria chamada presciência. Na terceira mostra que

todas as coisas têm noções em Deus, pelas quais são conhecidas e são nele, e, assim, tudo é

* BOAVENTURA DE BAGNOREGIO, Commentaria In Quatuor Libros Sententiarum Magistri Petri Lombardi : In Primum Librum Sententiarum. Tomus I. Distributio II (Dist. XXIII, Dubia – XLVIII). [=Opera Omnia. Ex iussu et auctoritate Rmi. P. Bernardini a Portu Romatino, Totius Ordinis Minorum S. P. Francisci Ministris Ge-neralis, Edita. Studio et Cura PP. Collegi A S. Bonaventura.]. Florença: Quaracchi, 1883, p. 599-613.

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presente para ele, e, assim, é patente a divisão e a sentença. Com efeito, as subdivisões das

partes são manifestas na letra.

Tratamento das Questões

Para o entendimento da presente distinção, pergunta-se sobre a noção da cognição divina, que

se costuma chamar de ideia.

Primeiro, pergunta-se se em Deus deve ser posta a noção ideal.

Segundo, dado que sim, pergunta-se se tem a pluralidade segundo a coisa.

Terceiro, se tem a pluralidade segundo a noção.

Quatro, se tem a pluralidade segundo o número dos universais ou dos singulares.

Quinto, se tem a pluralidade segundo o número finito ou infinito.

Sexto, se há nas ideias a pluralidade segundo o número ordenado ou confuso.

ARTIGO ÚNICO

Sobre as ideias

QUESTÃO 1

Se devem ser postas ideias em Deus.

Portanto, quanto ao primeiro, pergunta-se se cumpre pôr ideias em Deus. E mostra-se que

sim:

1. Primeiro, pela autoridade de Agostinho, no livro das Oitenta e três questões: “As ideias são

formas eternas e incomutáveis, que estão contidas na inteligência divina”. Destas três condi-

ções conclui-se que há ideia em Deus.

2. Igualmente, pela razão, mostra-se assim: todo agente racionalmente, não por acaso ou por

necessidade, pré-conhece a coisa antes que seja. Ora, todo cognoscente tem a coisa conhecida

ou segundo a verdade ou segundo a semelhança. Ora, as coisas, antes de serem, não podem

ser tidas por Deus segundo a verdade. Portanto, segundo a semelhança. Ora, a semelhança da

coisa, pela qual a coisa é conhecida e produzida, é a ideia. Portanto, etc.

3. Igualmente, tudo que conduz determinadamente para o conhecimento de outro tem em sua

posse a semelhança do conhecido, ou é ele mesmo sua semelhança. Ora, o espelho eterno

leva ao conhecimento de todo o criado as mentes que o veem, assim como disse Agostinho,

que conhecem mais retamente ali que em outro lugar. Portanto, resta que nele residam as

semelhanças. E consta que sejam nele assim como no cognoscente, porque não representa

unicamente a outros, mas a si. Ora, essa é exatamente a noção de ideia. Portanto, etc.

59

4. Igualmente, porque as coisas são produzidas por Deus, por isso são em Deus como no efici-

ente, e Deus é verdadeirissimamente eficiente; semelhantemente, porque têm fim a partir

dele, por isso é verdadeirissimamente fim: portanto, por igual razão, porque são conhecidas e

expressas a partir dele, por si mesmo Deus é verdadeirissimamente exemplar. Ora, não há

exemplar senão naquilo em que há as ideias das coisas exempladas, portanto, etc.

CONTRA: 1. Dionísio, sobre Os nomes divinos: “O intelecto divino conhece, mas desde si mesmo

e por si mesmo, não lançando-se segundo a ideia de cada um, mas conhecendo e contendo

tudo segundo a causa una da excelência”: portanto, Deus não conhece cada um pela ideia.

2. Igualmente, vê-se pela razão: porque a ideia diz a noção da semelhança, e a semelhança diz

a noção da conveniência. Ora, não há nenhuma conveniência de Deus para a criatura, dado

que haja uma suma distância, ou se há, é mínima. Portanto, ou nenhuma semelhança, ou mí-

nima. Portanto, ou não há ideia em Deus, ou se há, há segundo a noção imperfeita. Ora, nada

de imperfeito deve ser posto em Deus, portanto, etc.

3. Igualmente, um modo nobilíssimo de cognição deve ser atribuído a Deus. Ora, a cognição

pela essência da coisa é mais nobre do que pela semelhança da coisa. Portanto, Deus conhece

pela essência da coisa, não pela semelhança. Ora, a ideia é semelhança, não essência da coisa,

e, assim, etc.

4. Igualmente, a ideia não é necessária senão para que dirija no conhecer e regule no operar.

Ora, nada carece de dirigente ou de operante senão o que pode errar ou desviar. Ora, não

cabe a Deus nada disso. Portanto, é inútil que se ponham ideias em Deus.

CONCLUSÃO

Deus conhece por ideias e tem em si as noções e

as semelhanças das coisas, as quais conhece.

RESPONDO dizendo que houve duas opiniões acerca disso.

Com efeito, alguns disseram que Deus não conhece segundo a noção de ideia, mas segundo a

noção de causa. E o propõem segundo uma semelhança: assim como se o ponto conhecesse

sua virtude, conheceria as linhas e a circunferência, de modo semelhante, se a unidade tivesse

a potência cognitiva, pela qual se voltaria sobre si, conheceria todos os números. Dizem que se

dá desse modo com Deus. Com efeito, visto que Deus tem a virtude de produzir tudo e conhe-

ce toda sua virtude, por isso conhece tudo. E entenderam que Dionísio tivesse dito isso, quan-

do disse que “não segundo a ideia, mas segundo a causa una da excelência, conhece tudo”. –

Ora, essa posição não pode ser mantida. Certamente, primeiro, porque Deus conhece não pela

colação proveniente do princípio para o principado, mas por visão simples. E, ainda, ao conhe-

cer tudo, na medida em que é deste modo, é semelhante ao cognoscível: portanto, tem a se-

melhança dele, ou ele é a semelhança. Inversamente, ao conhecer tudo, produz distintamente

porque conhece distintamente, não o inverso; portanto, a noção produtora não é a noção co-

nhecedora. E, ainda, conhece alguns que não são a partir dele. Em razão disso e de semelhan-

tes, deve haver outro modo de dizer.

Por isso, tanto segundo os Santos como segundo os filósofos, há outra posição: que Deus co-

nhece pelas ideias e tem em si as noções e as semelhanças das coisas, as quais conhece, nas

60

quais não conhece unicamente a si, mas também aqueles que vê nele: e Agostinho chama

essas noções de ideias e causas primordiais.

Para o entendimento das objeções, cumpre entender que a ideia é dita semelhança da coisa

conhecida. Ora, a semelhança é dita de dois modos: de um modo segundo a conveniência de

dois no terceiro, e assim é a semelhança segundo a univocidade; de outro modo é a semelhan-

ça segundo a qual um é dito semelhança de outro; e essa semelhança não concerne à conveni-

ência em algo comum, porque a semelhança é semelhante em si mesma, não no terceiro, e,

desse modo, a criatura é dita semelhança de Deus, ou, inversamente, Deus a semelhança da

criatura. Tomando a semelhança desse modo, a semelhança é a noção conhecedora, e essa é

chamada de ideia. – Ora, diversamente, em nós se dá de um modo, em Deus de outro. Certa-

mente, em nós a noção conhecedora é semelhança, o conhecido é verdade. Pois, em nós, a

semelhança é aceita e impressa desde o que é extrínseco, graças a isso que o nosso intelecto,

com referência ao conhecido, é possível e não ato puro. Por isso, se faz em ato por algo conhe-

cido, que é a semelhança daquilo. Ora, em Deus se dá o inverso, porque a noção conhecedora

é a própria verdade, e o conhecido é a semelhança da verdade, a saber, a própria criatura. E

porque a noção do conhecer consiste na própria primeira verdade, por isso a noção conhece-

dora em Deus é sumamente expressiva. E visto que tudo aquilo que exprime sumamente, as-

simila perfeitissimamente o conhecido pela assimilação que compete à cognição, por isso, é

patente que a própria verdade, disso que faz conhecer, é semelhança expressiva e ideia. E para

nós se dá o contrário, porque, por isso mesmo que é semelhança, faz conhecer. A partir disso,

são esclarecidas as objeções.

1. Com efeito, para a objeção de que não se lança segundo a ideia de cada um, cumpre dizer

que Dionísio não quer, com isso, tirar de Deus a noção de ideia, mas quer dizer que não é as-

sim, tal como em nós, que há a multiplicidade e a diferença das ideias em cada um.

2. Para a objeção de que a conveniência é nula ou mínima, cumpre dizer que há a semelhança

da univocidade ou da participação e a semelhança da imitação e da expressão. A semelhança

da participação é exatamente nada, porque nada há de comum. A semelhança da imitação é

pouca, porque no pouco o finito pode imitar o infinito, donde sempre há maior dessemelhança

que semelhança. A semelhança da expressão, porém, é suma, porque é causada desde a in-

tenção da verdade, como se viu, a qual é a própria expressão; por isso Deus conhece tudo su-

mamente.

3. Para a objeção, em terceiro lugar, de que mais nobre é a cognição pela essência, cumpre

dizer que há a semelhança causada desde a verdade da coisa exterior, e sobre essa é verdade

que, se for presente junto a alma, jamais exprime a coisa tão perfeitamente como a própria

coisa. E Deus não conhece essa semelhança. Há outra semelhança, que é a própria verdade

expressiva do conhecido e é semelhança pelo que verdade; e essa semelhança exprime a coisa

melhor que a própria coisa exprime a si mesma, porque a própria coisa toma a noção da ex-

pressão dela e, segundo ela, é uma cognição mais perfeita. E Deus conhece essa.

4. Para a objeção de que a ideia se dá para o que regula e dirige, cumpre dizer que regular e

dirigir pode se dar de dois modos: ou pela regra diferente do dirigido e regulado, e esta põe

imperfeição e a possibilidade do erro, ou pela regra que é o mesmo que o regulado, e esta põe

a impossibilidade de erro. Com efeito, porque a regra não pode errar e Deus é a própria regra

e ideia, por isso é impossível que ele erre. E, assim, é patente que, em Deus, a ideia não põe

imperfeição, mas complemento.

61

QUESTÃO 2

Se a pluralidade nas ideias deve ser sustentada segundo a coisa.

Segundo, pergunta-se: se a pluralidade nas ideias deve ser sustentada segundo a coisa. E que

sim, vê-se:

1. Porque Agostinho disse que “as ideias são as formas eternas e incomutáveis”. Se há várias

formas, dado que “forma” diga aquilo mesmo que é a ideia absolutamente, então, ver-se-á

que há várias segundo o que são absolutamente.

2. Ainda, a ideia é a semelhança que exprime o ideado segundo o todo. Ora, quaisquer unos e

mesmos segundo o todo são semelhantes sem diferir de nenhum modo entre si. Portanto, se a

ideia de tudo, segundo aquilo que é, fosse una, então, todos seriam indiferentes.

3. Ainda, se a ideia é algo uno, ou uma semelhança comum ou uma própria: se uma comum,

então, por ela as coisas jamais se distinguem; se uma própria, então, por ela jamais são conhe-

cidos vários.

4. Ainda, se a ideia é noção cognoscitiva – ora, qualquer cognoscente conhece segundo a exi-

gência da noção cognoscitiva –, então, se a ideia é algo uno, visto que no uno não incorra a

distinção, Deus não conhece as coisas distintamente, mas indistintamente.

CONTRA: 1. Agostinho, Sobre a Trindade VI: “O filho é certa arte do Deus onipotente plena da

noção de todos os viventes e todos nele são um”.

2. Ainda, o que há de mais perfeito deve ser atribuído a Deus; ora, é mais perfeito poder co-

nhecer e operar vários pelo uno do que por vários: portanto, deve ser atribuído a Deus; por-

tanto, Deus conhece a tudo por uma única ideia.

3. Ainda, em todo gênero de causa, há o estado no uno simples, como no gênero do eficiente e

do fim. Portanto, dado que Deus seja o exemplar no qual, de todos os modos, há o estado,

então, há em Deus a suma unidade. Ora, o exemplar que contém vários não é completamente

uno e simples. Portanto, no exemplar divino não há senão uma ideia segundo a coisa.

CONCLUSÃO

As ideias são, em Deus, a própria verdade divina

e, por isso, há uma ideia segundo a coisa.

RESPONDO: Para o entendimento do que foi dito cumpre notar que aqui houve duas opiniões.

Com efeito, alguns disseram que as ideias em Deus têm distinção segundo a coisa. Com efeito,

disseram que cumpre considerar o universo das formas em Deus, na alma e no mundo ou na

matéria. E na matéria ou no universo têm distinção, composição e oposição, porque são ali

materialmente. De fato, na alma humana têm distinção e composição, mas não têm oposição.

E isso porque, espiritualmente, são de algum modo, mas não completamente, uma vez que são

desde as coisas exteriores. Por isso, há composição, com efeito diferem da alma. Em Deus, têm

distinção, mas não composição nem oposição graças à suma simplicidade. E, embora sejam

distintas em Deus, no entanto, são um exemplar, assim como várias formas particulares no

selo fazem um selo. – Ora, essa posição, embora pareça provável em seu início, contém, po-

rém, um erro no fim. Pois, se cumprisse pôr em Deus ideias realmente diferentes ou distintas,

62

então, haveria ali uma pluralidade real outra que a pluralidade de pessoas, o que causaria

aversão aos ouvidos pios. Se disseres que não se deve pôr outra pluralidade absoluta, mas a

referencial, então, pergunto sobre essa referência: ou é algo ou nada. Se nada, não há ne-

nhuma distinção real. Se algo, não cumpre que se dê senão a essência divina. Ora, todos os

essenciais em Deus são um.

E, por isso, há outra posição, que as ideias são o uno segundo a coisa. E isso é patente assim: a

ideia é dita semelhança em Deus, a qual é a noção cognoscitiva. Ora, segundo a coisa, ela é a

própria verdade divina, assim como se mostrou; e, porque ela é una, é patente que segundo a

coisa todas as ideias são um. E Agostinho diz isso expressamente: que naquela arte todos são

um.

1. Portanto, para a objeção de que são formas, diga-se que a forma é dúplice, a saber, a forma

que é a perfeição da coisa e a forma exemplar. E Agostinho toma as ideias na noção de forma

por forma exemplar. No entanto, ambas são ditas relativamente: a primeira, para a matéria,

que informa, mas a segunda, para o exemplado. E, por isso, uma vez que a forma é dita en-

quanto “para o outro”, assim como a semelhança, quando são ditas várias formas, não se nota

disso que haja pluralidade nas ideias segundo a coisa ou segundo aquilo que são, mas segundo

aquilo para que são.

2. Para a objeção de que a ideia é a semelhança que exprime segundo o todo, portanto, etc.,

há um único modo de dizer que a ideia não diz alguma semelhança pela qual o cognoscente

assimilaria outros, mas para a qual muitos são assimilados. E muitos podem ser assimilados ao

uno, assim como se a forma do selo fizer a mesma expressão da figura na cera, poderiam ha-

ver desde a mesma forma una muitas e várias impressões, segundo o que o selo é mais e me-

nos impresso. Assim são entendidas em Deus: visto que a multiplicidade nas coisas se dá se-

gundo o grau e a aproximação quanto ao próprio ser divino. – Mas não basta dizer isso, por-

que Deus faz todos diversos segundo a forma, não unicamente segundo o grau e a dignidade,

e os conhece pelo uno segundo a coisa, que certamente é semelhança do conhecido. – Se tu

disseres que isso se dá porque Deus conhece a si mesmo assim como age por si mesmo, por-

tanto, assim como põe muitos em ato pelo uno, assim conhece muitos pelo uno, não há uma

solução desse modo, porque, desse modo, permanece a questão: de que modo o próprio Deus

pode assimilar muitos?

Sendo assim, diga-se que há certa semelhança segundo aquilo que é próprio do gênero; e so-

bre ela não há dúvida de que não pode haver uma de vários gêneros diferentes; e essa é a

semelhança que é expressa e é causada pela coisa de um gênero determinado. Há outra seme-

lhança absolutamente fora do gênero; e essa, uma vez que não é reduzida a um gênero de-

terminado, pela mesma noção que é de um, é também de outro, e pela mesma noção que de

um segundo a parte, é segundo o todo; e tal semelhança é a verdade divina e a ideia em Deus.

– Se tu perguntares de que modo isso pode ser entendido, pode ser entendido de um modo,

ainda que não seja possível adaptá-lo a qualquer semelhante. Com efeito, visto que, assim

como foi dito, aquela semelhança seja ato puro e a própria verdade, todos os outros cognoscí-

veis, por mais que nobres segundo aquilo que são, são comparados a ela a modo de possível:

assim como o uno segundo a forma pode ser assimilado a vários diversos segundo a matéria,

assim, no proposto, pode haver uma semelhança real de todos os cognoscíveis. E pode-se dar

como exemplo, de algum modo, a luz que, una segundo o número, exprime muitas e várias

espécies de cores. Ora, na nossa cognição, visto que se dá a modo de possível com referência

ao conhecido e de algum modo informável por ele, não é possível encontrar a semelhança:

63

antes se encontra a dessemelhança, e, por isso, ao considerar a nossa cognição, parece-nos

não haver inteligível em Deus.

3. Para aquilo que se pergunta, se aquela semelhança é própria ou comum, diga-se que Deus

não é dito causa universal nem particular absolutamente, mas tem algo da nobreza da causa

universal, porque pode quanto a vários efeitos; de modo semelhante, algo de causa particular,

porque pode imediatamente e suficientemente quanto a qualquer efeito que queira. Assim,

entende-se, quanto a cognição de Deus, que nem está completamente no universal nem com-

pletamente no particular. De modo semelhante, deve-se entender sobre a semelhança e a

ideia, que é comum quanto à indiferença e amplitude, própria quanto à expressão discretíssi-

ma. – A razão disso é que é a semelhança que exprime, não a impressa nem a expressa, porque

ao exprimir completamente, exprime sumamente e segundo todas as condições. E inversamen-

te, disso que não é expressa, não é resumida nem limitada, mas se estende a tudo, assim como

a essência divina, mesmo sendo totalmente no uno, não é, porém, no uno de modo que não

seja em outro.

4. Para a última objeção, de que conhece segundo a exigência das noções, diga-se que assim

como a noção cognoscitiva é una e, no entanto, representa vários conhecidos distintissima-

mente segundo as condições próprias, assim a cognição divina: quanto ao modo de conhecer,

aquilo que é em si, é una e simples, não distinta, mas, em comparação com o objeto, conhece

distintamente. Portanto, quando se diz: Deus conhece todos distintamente, se a distinção for

posta na cognição em comparação com o cognoscente, é falsa; mas, se em comparação com o

conhecido, tem, assim, a verdade.

QUESTÃO 3

Se há a pluralidade em Deus segundo a noção.

Terceiro, pergunta-se: se há nas ideias a pluralidade segundo a noção. E que sim, mostra-se

deste modo:

1. Agostinho, no livro das Oitenta e três questões: “Por uma noção foi criado o homem, por

outra, o cavalo”: portanto, se a ideia diz a própria noção conhecedora, é necessário que se

multiplique segundo a noção.

2. Ainda, mostra-se isso mesmo a partir do modo de falar e de definir, uma vez que Agostinho

fala sobre essas mesmas ideias no plural e as define no plural ao dizer que são formas: portan-

to, se multiplicam pela coisa ou pela noção; ora, não pela coisa; portanto, pela noção.

3. Ainda, a ideia diz a semelhança com o conhecido, e embora a semelhança seja algo absoluto

em Deus, tem o modo de dizer o “para outro” ou a referência. Ora, a multiplicação da seme-

lhança relativa se dá desde a coisa à qual é assimilada. Portanto, visto que as coisas ideadas

sejam várias, são várias as ideias segundo a noção que é dita.

4. Ainda, antes de produzir a coisa, Deus também conhece distintamente em ato. Ora, não há

distinção no Deus cognoscente nem no conhecido. Portanto, é preciso que esteja na noção

conhecedora.

64

CONTRA: 1. Se há multiplicação segundo a noção visto que não há pela coisa, então, vê-se que

tal multiplicidade não é senão vã.

2. Ainda, se houver pluralidade no nome ideia, ou pela noção daquilo que é ou pela noção da-

quilo para o que é: não pela noção daquilo que é, uma vez que é a essência divina; se pela no-

ção daquilo para o que é, então, visto que verbo, exemplar e arte digam a referência para a

criatura, devem ser multiplicadas ao menos segundo o nome, o que, porém, é falso.

3. Ainda, se as ideias são várias não graças ao significado, mas graças ao conotado, então, per-

gunto: ou aquele conotado é eterno ou temporal. Se eterno, então, ver-se-á que há muitos

desde a eternidade; se temporal, então, ver-se-á que não é senão desde o tempo que “ideia”

se diz de Deus, assim como não é senão desde o tempo que se diz senhor e criador.

4. Ainda, se as ideias são várias graças aos ideados, então, ou segundo o ser que os ideados

têm em Deus ou no gênero próprio. Se graças ao ser que têm em Deus, contra: são um em

Deus, portanto, não podem ser ditos vários pela noção daquele ser. Se graças ao ser que têm

no gênero próprio: ora, não têm senão desde o tempo. Portanto, ou as ideias não são várias

senão desde o tempo ou o temporal é a causa do eterno, cada um dos quais é inconveniente.

5. Ainda, ou a ideia diz algo ou nada. Se nada, então, não tem nem pluralidade nem unidade.

Se diz algo, então, se há várias ideias, há várias coisas. Portanto, se há várias ideias desde a

eternidade, há várias coisas desde a eternidade. Ora, não várias coisas pessoalmente, uma vez

que a ideia não diz algo pessoal. Portanto, várias essencialmente.

CONCLUSÃO

As ideias em Deus são um segundo a coisa, mas várias segundo a noção intelectiva.

RESPONDO dizendo que, assim como é patente desde o que foi anteriormente dito na distinção

trigésima, embora não haja, em Deus, referência à criatura desde a parte da coisa, acontece,

porém, que a própria essência seja significada na referência à criatura por vários nomes. E não

é vão o nome nem o vocábulo. Portanto, cumpre entender que o nome ideia significa a essên-

cia divina em comparação ou em referência à criatura. Com efeito, a ideia é a semelhança da

coisa conhecida, a qual, por mais que seja um absoluto em Deus, no entanto, segundo o modo

de inteligir, diz a referência intermediária entre o cognoscente e o conhecido. E, por mais que

aquela referência segundo a coisa se dê mais desde a parte do cognoscente, uma vez que é o

próprio Deus, no entanto, a semelhança se dá mais da parte do conhecido segundo a noção

intelectiva ou a dita. E dado que o cognoscente é uno e os conhecidos são vários, por isso to-

das as ideias em Deus são o uno segundo a coisa, mas várias segundo a noção intelectiva ou

dita. Donde se deve conceder que, em Deus, todas as noções são um algo, mas não uma ideia

ou noção, mas várias.

1. Portanto, para a objeção de que nada subjaz a estas noções da parte da coisa, diga-se que é

falsa, porque, à referência, da parte de Deus, subjaz a essência, não a referência; da parte da

criatura, porém, subjaz a referência verdadeira e, por isso, o significado dessa referência não

traz a falsidade. Assim, para a pluralidade das referências, por mais que a pluralidade não seja

subjacente da parte de Deus, subjaz, porém, da parte dos conotados. Donde, assim multiplica-

da, aquela referência não tem falsidade nem é vã.

65

2. Para a objeção de que o verbo e a arte dizem a referência, diga-se que dizem, mas de um

modo diverso da ideia ou da noção. Pois a ideia ou noção conhecedora se dá antes segundo a

noção intelectiva da parte do conhecido. Com efeito, a semelhança, segundo o que é de tal

modo, não diz a referência para aquilo em que é, mas de que é. Ora, o verbo se dá, antes, da

parte do dizer. De modo semelhante, tanto a arte como o exemplar da parte do produzir. E

uma vez que muitos são conhecidos e um é o cognoscente, por isso, várias são as ideias e a

arte apenas uma. – Ou, de outro modo, a noção e a ideia dizem a referência às coisas na medi-

da em que são distintas, não enquanto palavras diversas.

3. Para a objeção de que os conotados não são vários desde a eternidade, diga-se que há plu-

ralidade nas ideias pela noção dos conotados. Ora, há que se falar de modo dúplice sobre os

conotados: ou na medida em que são ou na medida em que são conotados. Na medida em que

são, são deste modo unicamente desde o tempo. Na medida em que são conotados, podem,

assim, ser conotados tanto eternamente como temporalmente: eternamente quando a refe-

rência é importada como no hábito, assim como pelo nome predestinação – por isso, a predes-

tinação é eterna, porque conota o efeito não em ato, mas em hábito – temporalmente, porém,

quando a referência é importada em ato, assim como pelo verbo criar. Portanto, dado que

assim sejam conotados os temporais que são futuros e há muitos futuros, por isso são conota-

dos como muitos. No entanto, conotados desse modo, por mais que sejam conotados desde a

eternidade, não são desde a eternidade, mas desde o tempo. Desse modo, a multiplicidade

dos conotados, por mais que seja dita desde a eternidade, não sustenta a multiplicidade real

senão a partir do tempo.

4. Para a pergunta: se as ideias são várias segundo o ser dos ideados, diga-se que segundo o

ser de que as coisas ideadas hão de ser dadas no gênero próprio e, por mais que não tenham

isso senão desde o tempo, haviam de ser dadas desde a eternidade. E há ideias das coisas en-

quanto são futuras: portanto, não são entendidas várias unicamente desde o tempo, mas

também desde a eternidade. Assim, há diferença em entender que a predestinação e a repro-

vação se dá desde a eternidade: não pela noção daquilo que foi desde a eternidade, mas pela

noção daquilo que era futuro desde o tempo.

5. Para a objeção de que, se várias ideias, então, várias coisas, diga-se que a ideia não diz ape-

nas o que é, mas a referência para aquilo que é futuro ou ainda pode ser; e pela noção dessa

referência recebe a pluralidade. E uma vez que ela nada sustenta em ato, mas unicamente em

potência, daí se tem que a pluralidade eterna das ideias não sustenta alguma pluralidade atual,

assim como não é sustentada se for dito que pode fazer vários. Ora, o nome coisas, ali dito,

importa absolutamente e, por isso, quando se diz haver várias coisas, a pluralidade é sustenta-

da em ato e, por isso, aquele argumento não vale. Ou melhor, ali se dá segundo algo e absolu-

tamente, assim como se fosse dito: vários são possíveis para Deus ou vários são conhecidos,

portanto, há vários. Também não vale desse modo: há várias ideias, portanto, há várias coisas,

porque as ideias não são várias pela noção daquilo que são, mas pela noção daquilo para que

são.

QUESTÃO 4

Se as ideias são multiplicadas pela comparação com os ideados na medida em que elas são di-

versas na espécie ou no indivíduo.

66

Quarto, pergunta-se se as ideias são multiplicadas pela comparação com os ideados segundo a

multiplicidade dos ideados quanto à diversidade dos universais ou dos singulares. E que dos

singulares, vê-se:

1. Visto que pelas ideias há a noção da distinção; ora, Deus não distingue somente o universal

do universal, mas também o singular do singular. Ora, porque distingue o universal do univer-

sal tem várias ideias e noções dos vários universais. Donde, “por uma noção foi criado o cava-

lo, por outra foi criado o homem”. Portanto, etc.

2. Ainda, a cognição da coisa é verdadeiríssima segundo a totalidade da coisa. Ora, o singular

acrescenta algo sobre o universal. Portanto, dado que Deus conheça tudo, não tem apenas a

ideia do universal, mas, também, a que é acrescentada sobre ela, a saber, a do singular. De

modo semelhante, também de outro singular. Portanto, se vários são acrescentados segundo a

noção ou multiplicidade ideal, é patente etc.

3. Ainda, predestina alguns dentre os homens, outros reprova. Ora, predestina por uma noção

e reprova por outra. Portanto, são prescitos e predestinados segundo uma noção e ideia. Ora,

essa é a diversidade individual ou numeral. Portanto, etc.

4. Ainda, no divino, a ideia é multiplicada pela noção da referência e da relação para o ideado.

Portanto, um multiplicado, multiplica-se também a outra. Portanto, visto que o homem, que é

ideado, seja multiplicado em diversos indivíduos segundo a coisa, a ideia será multiplicada com

referência àqueles segundo a noção.

CONTRA: 1. Agostinho para Nebrídio: “Digo, no que diz a referência para o homem, que certa-

mente ali há a noção do homem, não a minha ou a tua”: portanto, a multiplicação ou a distin-

ção das ideias é alcançada unicamente segundo a diversidade dos universais.

2. Ainda, o artífice criado produz vários por uma ideia. Portanto, dado que isso seja algo nobre,

Deus produz por uma ideia muitos diversos pela coisa e pela noção.

3. Ainda, o singular enquanto singular é mais composto que o universal. Portanto, se há em

Deus a ideia do singular, então, há uma outra ideia mais simples, mas isso é inconveniente,

portanto, etc.

4. Ainda, o singular é mais próprio que o universal. Portanto, se há em Deus a ideia do univer-

sal enquanto universal e do singular enquanto singular, então, uma ideia é comum e outra

própria. Ora, o comum é anterior e mais simples do que o próprio. Portanto, uma ideia é ante-

rior e mais simples que a outra. Portanto, cumpre sustentar em Deus a ordem e a composição

essencial. Portanto, etc.

CONCLUSÃO.

As ideias são multiplicadas não apenas segundo a multiplicidade dos universais, mas também

dos singulares.

RESPONDO dizendo que a ideia em Deus, segundo a coisa, é a verdade divina, segundo a noção

intelectiva, é a semelhança do conhecido. Ora, esta semelhança é a noção expressiva conhece-

dora não unicamente do universal, mas também do singular, por mais que ela não seja univer-

sal nem singular, assim como nem Deus. E, por isso, não há unicamente a semelhança do uni-

67

versal enquanto é universal, mas também a do singular enquanto singular e, por isso, porque

há semelhança de ambos, não é multiplicada unicamente segundo a multiplicidade dos univer-

sais, mas também dos singulares. E isso é o que Agostinho diz a Nebrídio: “Digo: quanto ao

homem que há de ser feito há unicamente a noção do homem, porém, quanto ao orbe do

tempo, vivem várias noções dos homens naquela totalidade”.

1. E disso é patente a solução daquela passagem de Agostinho, uma vez que Agostinho disse

que por mais que do universal enquanto universal haja uma ideia, dos singulares enquanto

singulares, porém, há várias. Donde disse no mesmo lugar “que se alguém quiser fazer um

ângulo, basta que tenha a noção do ângulo, porém, se alguém quiser pintar algo com quatro

ângulos, é necessário que tenha a noção de quatro ângulos”.

2. Portanto, para a objeção de que o artífice criado produz muitos por uma ideia, diga-se que

faz isso pela aplicação dela a diversas matérias. Donde, se tem unicamente uma ideia, é impos-

sível entender que, segundo ela, conheça vários por uma visão simples. Ora, Deus, por uma

visão simples, conhece os singulares como diversos de modo que, segundo o todo, tanto se-

gundo as diferenças próprias como segundo as propriedades. Por isso não há semelhança.

3. 4. Para a objeção sobre a composição e a propriedade, diga-se que nem segundo a coisa

nem segundo a noção convém que a ideia tenha as propriedades do ideado. Pois a semelhança

do corporal é espiritual e a semelhança do composto é simples, mesmo nas criaturas. Por isso,

não convém que uma ideia seja mais simples ou anterior à outra. No entanto, a semelhança

segundo a noção intelectiva tem a propriedade do ideado segundo a distinção: seja graças à

correlação, porque convém que multiplicado um dos relativos também o outro seja multiplica-

do ao menos segundo a noção onde há a relação segundo a noção; seja, ainda, porque aquela

semelhança é a noção que há de ser expressa e distinguida, e, por isso, por mais que a propri-

edade da distinção seja recebida, não convém, no entanto, sobre as outras142.

QUESTÃO 5

Se as ideias em Deus são finitas ou infinitas em número.

Quinto, pergunta-se se em Deus deve-se sustentar a multiplicidade das ideias em número fini-

to ou infinito. E que segundo um número infinito, vê-se.

1. Agostinho, Sobre a cidade de Deus, XI: “É una a sabedoria na qual são infinitos os tesouros

de todas as coisas inteligíveis”.

2. Ainda, Agostinho em Sobre a trindade, VI, diz que “o Filho é a arte plena das noções de to-

dos os viventes”. Ora, consta que aquela arte é infinita. Portanto, não está repleta senão do

infinito. Portanto, ali há infinitas noções.

3. Ainda, vê-se pela razão: porque consta que Deus conhece todas as espécies de número,

portanto, todas têm ideias em Deus. Ora, as espécies de número são infinitas, portanto, etc. Se

disseres que são espécies infinitas quanto a nós, não segundo a coisa, contra: sustente-se que

todas as espécies de número sejam na coisa. Isso feito, segue-se, necessariamente, que há

142 Isto é, não convém que as outras propriedades dos ideados sejam recebidas no intelecto para além daquela propriedade da distinção.

68

infinitos absolutamente em ato. Portanto, se há em Deus ideias em ato de todas as espécies de

número, é patente etc.

4. Ainda, Deus pode produzir infinitos. Ora, não pode produzir nada de que não tenha conhe-

cimento e ideia. Portanto, tem ideias dos infinitos. Ora, de vários há várias ideias. Portanto, há

infinitas dos infinitos.

5. Ainda, vários podem ser pensados para todos os finitos, porque para todo finito pode ser

pensado algo maior. Ora, nem Deus nem o homem tem o cogitar mais do que aqueles que

Deus conhece, porque, assim, a ciência de Deus não seria suma: e se é assim, visto que conhe-

ça pelas ideias, é patente etc.

CONTRA: 1. Agostinho, Sobre a cidade de Deus, XII: “Tudo o que é sabido é finito pela compre-

ensão da ciência”. Ora, consta que as noções conhecidas são sabidas, portanto, têm fim. Ora,

tudo o que tem fim é finito. Portanto, etc.

2. Ainda, a multiplicidade das ideias se dá segundo a multiplicidade dos ideados. Ora, consta

que tudo diverso de Deus seja necessariamente finito em ato. Portanto, de modo semelhante,

também as ideias.

3. Onde há a infinidade, há a confusão e a desordem. Ora, no exemplar eterno não incide ne-

nhuma confusão nem desordem. Portanto, etc.

4. Ainda, sustentar a infinidade em ato na criatura é sustentar a imperfeição, donde todo cria-

do é finito por aquilo pelo que é perfeito. Ora, toda criação da imperfeição deve ser afastada

de Deus. Portanto, etc.

CONCLUSÃO.

As ideias divinas não são em número finito, mas infinito.

RESPONDO dizendo que, assim como se diz no Salmo [146, 5], não há número para a sabedoria

divina, e, por isso, nem das noções pelas quais a sabedoria divina conhece; e, visto que não

têm número, não são numeráveis; por isso, não são em número finito, mas infinito. E devem

ser concedidas as razões e as autoridades apontadas quanto a isso.

1. Portanto, para a objeção de que todo sabível é finito, portanto, etc., diga-se que todo sabí-

vel é finito pela compreensão daquele que compreende. Ora, as noções eternas são sabidas

unicamente pela compreensão de Deus, por isso, são finitas apenas para Deus. Mas, de algum

modo, não se segue: isso se iguala ao infinito, portanto, é finito, ou melhor, é ali algo e absolu-

tamente, e, mais fortemente, segue-se o oposto: portanto, não é finito. Desse modo também

se deve julgar no proposto. Ora, aquelas noções não são compreensíveis por algum intelecto

finito, portanto, aquilo é patente.

2. Para a objeção de que a multiplicidade das ideias se dá desde a multiplicidade dos ideados,

diga-se que, assim como foi dito, não vem desde a multiplicidade dos ideados na medida em

que criados, mas na medida em que conotados. Ora, a ideia não conota o ideado segundo a

existência atual, mas unicamente segundo a potência. E porque Deus pode fazer infinitos, por

mais que jamais faça senão finitos, por isso as ideias ou noções conhecidas são infinitas em

69

Deus, porque não são unicamente dos entes ou dos futuros, mas de todos os possíveis para

Deus. Com efeito, Deus não pode nada que não conheça em ato.

3. Para a objeção de que a infinidade sustenta a confusão, diga-se que cumpre sustentar a

infinidade segundo a diversidade real, e, assim, priva tanto a distinção como a ordem se for

posta em ato. Ora, a multiplicidade das ideias não é das coisas diversas, mas diz a imensidão

da verdade divina ao exprimir e conhecer tudo que é possível para Deus, e, isso, certamente é

uno segundo a coisa e o ato: por isso não há confusão.

4. Para a objeção de que a imperfeição é a infinidade na criatura, diga-se que, por mais que

haja imperfeição na criatura, não há, porém, no Criador, porque cumpre entender a infinidade

por falha e por excesso. A infinidade por falha pode ser na criatura como na matéria, e isso é

imperfeição: essa não é de nenhum modo no Criador. Porém, a infinidade por excesso não

pode ser absolutamente na criatura, visto que tem o ser criado e composto e limitado; ora,

Deus não tem nenhum desses, e, por isso, tem a infinidade e essa cabe à suma perfeição.

QUESTÃO 6

Se as ideias têm ordem.

Em sexto e último lugar, pergunta-se se cumpre sustentar nas ideias um número ordenado. E

que sim,

1. Vê-se que Agostinho diga: “O homem foi criado por uma noção diversa da do cavalo”, por-

que um é o homem, outro, o cavalo: portanto, dado que o homem seja mais nobre que o cava-

lo, igualmente, o homem é criado por uma noção mais nobre que a do cavalo. Ora, onde há o

mais e o menos nobre, ali há a ordem; portanto, etc.

2. Ainda, assim como Deus conhece e produz coisas distintas pelas ideias, assim conhece e

produz coisas ordenadas. Portanto, assim como a pluralidade é sustentada nas ideias a partir

da pluralidade dos conhecidos e dos ideados, assim a ordem deve ser sustentada desde a or-

dem.

3. Ainda, onde há pluralidade ou distinção, ou há ordem ou desordem. Ora, em Deus não incide

a desordem nem a confusão. Portanto, têm ordem em Deus.

CONTRA: 1. Há várias ideias, uma vez que, por elas, Deus conhece distintamente. Ora, Deus não

conhece um depois do outro, mas tudo simultaneamente. Portanto, as ideias têm simultanei-

dade em Deus.

2. Ainda, se há ordem, então, ou de prioridade ou de dignidade ou de origem: não de priorida-

de, porque, então, haveria uma outra ideia posterior, o que é inconveniente afirmar; não de

nobreza, porque o que há em Deus é sumamente nobre; não de origem, porque uma se origi-

naria de outra, então, haveria ali uma distinção verdadeira segundo a coisa. Portanto, como se

vê, não há ordem nelas de nenhum modo.

3. Ainda, toda infinidade ou priva completamente a ordem ou tolhe a perfeição desde a or-

dem, porque tolhe o estado e o complemento. Ora, há a infinidade nas ideias, como se viu em

outras problematizações. Portanto, ou nenhuma ordem, ou incompleta. Ora, não incompleta,

portanto, nenhuma.

70

CONCLUSÃO.

Não há ordem nas ideias entre si, nem segundo a coisa, nem segundo a noção, mas unicamen-

te para os ideados.

RESPONDO dizendo que, assim como foi mencionado naquilo que se opôs, não há ordem nas

ideias ou nas noções conhecidas entre si, nem segundo a coisa, nem segundo a noção. Certa-

mente, as ideias têm uma ordem para os ideados, mas não entre si, visto que nem uma é ante-

rior à outra, nem posterior, nem uma é desde outra, nem mais nobre, e por isso, ali não se

sustenta a ordem. – E a razão disso é: porque as ideias dizem a referência para as coisas co-

nhecidas sobre a noção do seu nome. E uma vez que elas são várias, por isso, as ideias a partir

da primeira referência do nome são várias. Ora, a ordem diz a nova referência e o novo hábito,

visto que uma ideia é comparada à outra. E visto que, delimitada aquela referência que se dá

para os ideados, as ideias em Deus são absolutamente um e não têm ordem entre si, por isso

não se deve conceder que as ideias tenham a pluralidade com a ordem entre si.

1. Para a objeção de que diferente é a ideia porque diferente o homem, portanto, mais nobre

porque o homem é mais nobre que o cavalo, diga-se que não há semelhança. Com efeito, a

semelhança, dado que haja o comparar a outro, tem o ser distinguida, mas não tem disso fa-

zer-se nobre, a não ser que receba algo disso a que é comparada. E visto que a ideia de homem

nada recebe do homem, nem a ideia do cavalo do cavalo, por isso, uma não é dita mais nobre

que a outra.

2. Para a objeção de que Deus conhece as coisas ordenadas, diga-se que, por mais que conhe-

ça as ordenadas, no entanto, conhece simultaneamente e de modo igualmente nobre. E, por

isso, assim como se sustentava a distinção nas ideias, porque conhecia distintamente por elas,

assim deve ser sustentada a simultaneidade e a igual nobreza, porque conhece simultanea-

mente e de modo igualmente nobre. E, assim, a ordem não deve ser sustentada. Com efeito,

assim como, por mais que Deus conheça coisas brancas, não há ideias brancas em Deus, assim

por mais que conheça ordenadas, não é preciso que sejam ordenadas em Deus.

3. Para a objeção de que onde há pluralidade sem ordem, há confusão e desordem, diga-se

que é falso, porque pode haver ali a simultaneidade, e assim se dá com as ideias. – Ou diga-se

que aquilo tem lugar onde há a pluralidade real, mas não é assim com as ideias, porque todas

são um, e, por isso, não pode haver desordem.

71

TOMÁS DE AQUINO*

Comentário para o Primeiro Livro das Sentenças

de Pedro Lombardo

Distinção 36

Divisão do Texto

Depois que o Mestre mostra que a ciência de Deus é universalmente de tudo, e disso se diz

que as coisas tenham ser em Deus, aqui, inquire de que modo sejam conhecidas no próprio

Deus cognoscente, e divide duas partes: na primeira, mostra de que modo as coisas que co-

nhece têm ser em Deus; na segunda, de que modo Deus tem ser nas coisas, na distinção 37: “E

visto que se demonstrou a parte de que modo tudo é dito ser em Deus, vê-se acrescentar aqui

por quais modos se diz que Deus tem ser nas coisas”. A primeira em duas: na primeira, inquire

se pode ser dito que tudo que Deus sabe tem ser em sua essência, e mostra que não; na se-

gunda, inquire se tudo pode ser em Deus, ali: “Depois do que foi dito, pergunta-se ..., se cum-

pre conceder que os males tenham ser absolutamente em Deus.”. E acerca disso faz três: pri-

meiro, avança a questão e a determina; segundo, confirma a determinação, ali: “Depois, se

olharmos diligentemente, vê-se que seja o mesmo que tudo tenha o ser desde Deus e por ele e

nele;”, em terceiro, induz, fazendo um epílogo, a conclusão visada em toda a distinção, ali: “É

claro desde as premissas que na cognição de Deus ou presciência, tudo é”. Acerca do segundo,

faz três: primeiro, prova que os males não têm ser em Deus, visto que não tenham ser a partir

dele ou por ele, segundo, mostra de que modo estres três devem ser distinguidos: “Dele, e por

ele, e nele”, segundo o que são feitas referências a pessoas distintas, ali: “Ainda, cumpre sa-

ber;” terceiro, distingue entre ser sobre ele e ser a partir dele, ali: “Ainda aquilo deve ser

acrescentado aqui”.

Aqui há duas questões: primeira, sobre aqueles que são conhecidos por Deus; segunda, sobre

as ideias pelas quais conhece as coisas.

Primeira Questão

Acerca do primeiro, perguntam-se três: 1º se Deus conhece os singulares; 2º se conhece os

males; 3º como se diz que tenham ser nele aqueles que ele conhece143.

[...]

Questão 2

Depois, pergunta-se sobre as ideias; e acerca disso três são as questões. E 1º se há ideias; 2º

sobre a pluralidade das ideias; 3º se as ideias de tudo têm ser em Deus.

* TOMÁS DE AQUINO, Commentum in Lib. I Sententiarum : De Deo. – De Mysterio Trinitatis. Paris: Vivés, 1873, p. 429-430.435-438. [= Thomae Aquinatis Opera Omnia. Vol. 07]. 143 Para a primeira questão, veja-se: ST I, q. 14, a. 2; para a segunda, ST I, q. 19, a. 10; para a terceira, Summa Contra Gentiles I, cap. 47.

72

PRIMEIRO ARTIGO

O que é importado pelo nome “ideia”.

Quanto ao primeiro, procede-se assim. 1. Vê-se que não há ideias. Com efeito, assim como

disse o Filósofo em Metafísica I: “A afirmação de que as ideias sejam exemplares é uma fala vã

e um dizer metáforas poéticas”. Ora, dizemos as ideias exemplares das coisas. Portanto, é vão

dizer as ideias.

2. Além disso, é mais perfeito o agente que não carece de olhar para o exemplar em sua ação

do que aquele que carece de exemplar. Ora, Deus é o agente perfeitíssimo. Portanto, de nada

valem para ele as ideias das quais, como de um exemplar, faria as coisas. Donde, no mesmo

lugar, o Filósofo acrescenta: “Pois, de que vale olhar para as ideias?”.

3. Além disso, segundo Agostinho, a coisa é mais bem sabida por sua essência do que por sua

semelhança. Ora, Deus conhece as coisas nobilissimamente. Portanto, sabe-as pelas essências

delas e não por algumas semelhanças ideais das coisas.

4. Além disso, vê-se que toda cognição que se dá por um meio seja colativa e tenha a passa-

gem discursiva de um para o outro. Ora, Deus conhece por uma visada simples sem discurso e

colação. Portanto, vê-se que não conhece as coisas por meio das ideias.

Contra, há o que diz Agostinho no livro das 83 questões, q. 46: “Aquele que nega haver as idei-

as, nega haver o Filho.” Ora, [negar] o último é herético. Portanto, também o primeiro.

Além disso, o Comentador diz em Metafísica XI que assim como todas as formas estão em

potência na matéria prima, assim estão em ato no primeiro motor. Ora, não dizemos ideias

nada diverso das formas das coisas, que existem em Deus. Portanto, é verdadeiro que há idei-

as.

Solução. – Respondo dizendo que, assim como as formas artificiais têm um ser duplo, um em

ato, segundo o que têm ser na matéria, outro em potência, segundo o que têm ser na mente

do artífice, certamente, não em potência passiva, mas ativa, assim também as formas materi-

ais têm um ser duplo, como diz o Comentador em Metafísica XI, com. 18: um em ato, segundo

o que têm ser nas coisas, outro em potência ativa, segundo o que têm ser nos motores das

órbitas, como ele sustenta, e precipuamente no primeiro motor, lugar do qual nós dizemos

“em Deus”. Donde, em todos os filósofos se diz de modo comum que tudo tem ser na mente

de Deus, assim como os artificiados na mente do artífice, e, por isso, dizemos ideias as formas

das coisas, que existem em Deus, as quais são assim como as formas operativas. Donde Dioní-

sio diz, ao falar sobre as ideias no capítulo 5 dos Nomes divinos: “Dizemos exemplares unifor-

memente preexistentes as noções substantivas existentes em Deus, as quais a teologia chama

de predefinições divinas, boas vontades predeterminativas e produtivas dos existentes.”. No

entanto, Deus não tem apenas o conhecimento prático sobre as coisas, mas também o especu-

lativo, visto que não conheça unicamente as coisas segundo isso que provém dele, mas tam-

bém segundo o que subsistem na natureza própria. Com efeito, se diz “ideia” de “eidos” que é

forma, donde o nome “ideia”, quanto à propriedade do nome, se dá igualmente para a cogni-

ção prática e a especulativa; com efeito, a forma da coisa existente no intelecto, é princípio de

ambas cognições. Com efeito, por mais que segundo a fala costumeira se tome a ideia pela

73

forma que é princípio da cognição prática, segundo o que nomeamos as ideias de formas

exemplares das coisas, no entanto, também é princípio da cognição especulativa, segundo o

que nomeamos as ideias as formas contemplativas das coisas.

Portanto, para o primeiro, diga-se que, assim como diz o Comentador em Metafísica XI, com.

4, Platão e outros filósofos antigos, como que coagidos pela própria verdade, tendiam para

aquilo que de um modo posterior Aristóteles expressou, por mais que não tenham chegado no

mesmo: e, por isso, Platão, ao sustentar as ideias, tendia para isso segundo o que também

Aristóteles sustentou, a saber, que elas tenham ser no intelecto divino; donde o Filósofo não

vise reprovar isso, mas o modo pelo qual Platão sustentou as formas naturais como existentes

por si sem o ser na matéria.

Para o segundo, diga-se que se Deus carecesse de olhar para algum exemplar fora de si, seria

um agente imperfeito; mas isso não acontece se a sua essência for sustentada o exemplar de

todas as coisas, uma vez que ao ver, assim, a sua essência, produz tudo.

Para o terceiro, diga-se que é preciso que aquilo pelo que há a cognição da coisa seja unido ao

cognoscente; donde a essência das coisas criadas, dado que seja separada de Deus, não pode

ser o meio de conhecimento das próprias coisas por Deus, mas ele conhece-as por um meio

mais nobre, uma vez que, assim, nada além de sua essência é o princípio de sua cognição. Com

efeito, seria preciso haver algo diverso se conhecesse as coisas pela essência das coisas como

que pelo meio, visto que o meio do conhecimento seja o princípio da cognição.

Para o quarto, diga-se que a cognição discursiva se dá quando se avança do anteriormente

conhecido para o desconhecido, e não quando pela semelhança da coisa a própria coisa é

apreendida, uma vez que, assim, também o olho, ao ver a pedra, teria a cognição colativa dela:

e, por isso, por mais que Deus saiba a coisa pela semelhança que tem ser nele assim como pelo

meio, e por mais que conheça também a ordem das coisas, não tem, no entanto, uma ciência

discursiva, porque vê tudo simultaneamente.

SEGUNDO ARTIGO

Se há várias ideias.

Quanto ao segundo, procede-se assim. 1. Vê-se que não há várias ideias. Com efeito, a ideia é

dita a semelhança pela qual a coisa é conhecida. Ora, assim como se teve acima, Deus conhece

tudo por sua essência. Portanto, dado que sua essência seja una, vê-se que há unicamente

uma ideia.

2. Se disseres que há várias referências para as coisas; contra. As referências que se dão de

Deus para a criatura, se dão realmente nas criaturas, e não em Deus. Ora, as criaturas não

foram desde a eternidade; portanto, nem as relações de Deus para a criatura. Portanto, as

ideias não foram várias desde a eternidade. Ora, Deus não conhece de um modo diverso as

coisas feitas do que antes de que fossem feitas, como se tem desde as palavras de Agostinho,

no livro V do Comentário literal sobre o Gênesis, cap. 15. Portanto, não conhece de um modo

as coisas por muitas ideias, mas apenas por uma.

3. Além disso, como se disse, a ideia se dá para a coisa da qual é, assim como a forma da arte,

que está na mente do artífice, para o artificiado. Ora, a diversidade dos artificiados provém da

74

pluralidade das formas que têm ser na mente do artífice e não o contrário. Portanto, vê-se que

nem a diversidade das coisas pode induzir a pluralidade das ideias.

4. Além disso, assim como a ideia é dita relativamente ao ideado, assim também a ciência é

dita pela referência ao sabível. Ora, por mais que vários sejam sabidos por Deus, no entanto,

há uma única ciência. Portanto, de todas as coisas que são produzidas por ele, há apenas uma

ciência.

Mas, contra, aquilo no que não há nenhuma pluralidade, não pode ser cosignificado plural-

mente. Ora, Agostinho, no livro das 83 questões, q. 46, nomeia pluralmente as ideias, ao dizer

que as ideias são as noções estáveis das coisas, existentes na mente divina, e, ainda que elas

nem nasçam nem morram, segundo elas, porém, é feito tudo o que nasce e morre. Portanto,

há várias ideias.

Além disso, segundo o Damasceno, no livro III do Sobre a fé ortodoxa, cap. 8, a diferença é a

causa do número. Ora, segundo Agostinho, no livro das 83 questões, loc. cit., Deus criou por

uma noção diversa o homem e o cavalo. Portanto, vê-se que há várias noções ideais das coisas

em Deus.

Solução. – Respondo dizendo que, dado que Deus tenha a cognição própria sobre cada uma

das coisas, é preciso que sua essência seja a semelhança das coisas singulares, segundo o que

coisas diversas de modos diversos e particularmente a imitam segundo sua capacidade por

mais que ela tenha a si completamente imitável de antemão. Ora, que as criaturas não a imi-

tem perfeitamente, mas disformemente, se dá da diversidade e falha delas, como diz Dionísio

no capítulo 2 dos Nomes divinos. Donde, visto que o nome “ideia” nomeie a essência divina

segundo o que é exemplar imitado pela criatura, a essência divina será a ideia própria desta

coisa segundo determinado modo de imitação. E uma vez que a imitam de modos diversos as

diversas criaturas, por isso se diz que é diversa a ideia ou noção pela qual foi criado o homem e

o cavalo; e disso se segue que, segundo a referência a várias coisas que imitam a essência divi-

na de modos diversos, há a pluralidade nas ideias, por mais que a essência imitada seja uma:

por exemplo, assim como é patente desde o que foi anteriormente dito que tudo que é perfei-

ção nas coisas, isso tudo convém a Deus segundo o indivisível uno e o mesmo, a saber, o ser, o

viver e o inteligir, e todos que são deste modo. Ora, visto que todas as criaturas imitem a pró-

pria essência quanto ao ser, no entanto, nem todas quanto ao viver, nem, ainda, aqueles que a

imitam quanto ao ser, participam do mesmo modo do ser, visto que algumas possuam um ser

mais nobre que outras: e tem-se disso uma referência diversa da essência divina para aqueles

que têm unicamente o ser e para aqueles que têm o ser e o viver, e, de modo semelhante,

para aqueles que têm o ser de modos diversos: e, a partir disso, há várias noções ideais, se-

gundo o que Deus intelige a sua essência enquanto imitável deste ou daquele modo. Com efei-

to, as próprias noções inteligidas da imitação ou dos modos, são ideias; com efeito, a ideia,

como é patente do que foi dito, nomeia a forma enquanto inteligida, e não na medida em que

está na natureza do inteligente.

Para o primeiro, portanto, diga-se que a ideia não nomeia unicamente a essência, mas a es-

sência imitável; donde, segundo o que é múltipla a imitabilidade na essência divina, graças à

plenitude de sua perfeição, há a pluralidade das ideias.

Para o segundo, diga-se que, por mais que as referências que se dão de Deus para a criatura

estejam fundadas realmente na criatura, no entanto, segundo a noção e o intelecto também

têm ser em Deus. Ora, não digo unicamente o intelecto humano, mas também o angélico e o

divino; e, por isso, por mais que as criaturas não tenham sido desde a eternidade, no entanto,

75

o intelecto divino foi inteligente, desde a eternidade, de sua essência imitável, de modos di-

versos, pelas criaturas e, graças a isso, desde a eternidade, houve a pluralidade das ideias no

intelecto divino, não em sua natureza. Com efeito, do mesmo modo há em Deus a forma do

cavalo e a vida, uma vez que a forma do cavalo não é em Deus senão tal como a noção inteligi-

da. Ora, a noção de vida é em Deus não unicamente tal como inteligida, mas também tal como

firmada na natureza da coisa.

Para o terceiro, diga-se que, por mais que a pluralidade das ideias seja atingida segundo a refe-

rência às coisas, no entanto, a pluralidade das coisas não é causa da pluralidade das ideias,

mas o contrário. Com efeito, não é porque a coisa imita de modos diversos a essência divina

que aquele intelecto a vê imitável de modos diversos, mas mais fortemente o contrário. Com

efeito, o intelecto divino é causa das coisas. Ora, a distinção das noções ideais se dá segundo a

operação do intelecto divino, na medida em que intelige imitável a sua essência, de modos

diversos, pelas criaturas.

Para o quarto, diga-se que a essência divina é una e referência de vários; e, por isso, aquilo que

nomeia unicamente a essência não pode ser significado pluralmente; assim como é a ciência,

que se dá antes da parte do ciente, como forma dele. Ora, a noção se dá, antes, da parte da

coisa, enquanto pode cosignificar e significar pluralmente. Com efeito, dizemos várias noções.

Ora, a ideia se dá como que de modo intermediário, uma vez que importa a essência e a noção

da imitação, a qual é segundo a referência; e, por isso, ainda que se encontre a pluralidade

cosignificada no nome “ideia”, enquanto seja proferida pluralmente, no entanto, raramente ou

jamais ela é encontrada significada pela adição do termo numeral, como se fossem ditas várias

ideias; com efeito, a pluralidade é expressa antes ao significar que ao cosignificar.

TERCEIRO ARTIGO

Se há, em Deus, ideias de tudo que ele conhece.

Quanto ao terceiro, procede-se assim. 1. Vê-se que não há, em Deus, ideias de tudo que ele

conhece. Com efeito, Deus conhece os males. Ora, não pode haver nele ideia do mal, visto que

a ideia importa a imitação. Ora, seja qual for o mal, ele se dá por isso que se afasta da imitação

de Deus. Portanto, não há ideias de tudo em Deus, visto que há vários males.

2. Além disso, a ideia nomeia a forma; com efeito, é dita de “eidos”, que é forma. Ora, não há

nenhuma forma da matéria prima, assim como nem o ato primeiro, que é Deus, tem alguma

matéria; de outro modo, nenhum seria primeiro. Portanto, não há ideia de tudo em Deus.

3. Além disso, Deus não conhece unicamente os universais, mas também os particulares. Ora,

não se vê haver ideia dos particulares enquanto tais, visto que todos os singulares de uma

espécie convenham na forma. Portanto, não há ideia de todos os conhecidos por Deus.

4. Além disso, não há ideia senão daquilo que dela participa pela imitação. Ora, visto que os

acidentes não sejam subsistentes por si, de nada participam, mas eles mesmos são certa parti-

cipação. Portanto, visto que os acidentes sejam conhecidos por Deus tal como as substâncias,

vê-se que não há ideia em Deus de todos os conhecidos.

76

Mas contra, toda cognição se dá por alguma espécie do conhecido no cognoscente. Ora, as

espécies das coisas existentes em Deus são ditas ideias. Portanto, há ideia em Deus de todos

os conhecidos por ele.

Solução. – Respondo dizendo que, assim como é patente da passagem apresentada de Dioní-

sio, Nomes divinos, cap. 5, a ideia é dita semelhança ou noção da coisa existente em Deus se-

gundo o que é produtora e predeterminadora da própria coisa; e, por isso, seja lá o que for,

segundo o que se dá para isso que seja produzido por Deus, assim se dá para isso que haja em

Deus a ideia dele. Ora, é preciso que tudo que o agente por si produz desde outro, segundo

isso que é um efeito dele, o imite, porque, como prova o Filósofo em Sobre a alma II, o seme-

lhante age o semelhante a si, tanto naqueles que agem pela vontade quanto naqueles que

agem necessariamente. Donde segundo isso que algo é produzido por Deus, segundo isso tem

a semelhança nele, e segundo isso há ideia dele em Deus, e segundo isso é conhecido por

Deus, e, por isso, dado que toda coisa seja produzida por Deus, é preciso haver nele ideias de

todas as coisas.

Para o primeiro, portanto, diga-se que o mal, enquanto mal, nada é, visto que seja certa priva-

ção, assim como a cegueira; e, por isso, há ideia em Deus da coisa má. Certamente, não na

medida em que é má, mas na medida em que é coisa; e o próprio mal é conhecido por Deus

pelo oposto do bem, do qual a coisa sujeitada carece pela privação.

Para o segundo, diga-se que visto que a matéria prima tenha ser a partir de Deus, é preciso

haver nele de algum modo a ideia dela; e, assim como a ela é atribuído o ser, assim a ela se

atribui a ideia em Deus, uma vez que todo ser, na medida em que é perfeito, é exemplarmente

conduzido desde o ser divino. Ora, o ser perfeito não convém à matéria em si, mas unicamente

segundo o que ela está no composto, de fato, tem, em si, o ser imperfeito segundo o grau úl-

timo de ser, que é o ser em potência; e, por isso, não têm a noção perfeita da ideia a não ser

segundo o que está no composto, porque, assim, o ser perfeito é conferido a ela desde Deus;

de fato, considerada em si, tem uma noção imperfeita de ideia em Deus; isto é, no que é dito,

porque a essência divina é imitável pelo composto segundo o ser perfeito, pela matéria segun-

do o ser imperfeito, mas pela privação de nenhum modo. E, por isso, o composto, segundo a

noção de sua forma, tem perfeitamente a ideia em Deus, a matéria imperfeitamente, mas a

privação, de nenhum modo.

Para o terceiro, diga-se que os particulares têm ideias próprias em Deus; donde ser diversa a

noção de Pedro e de Martinho em Deus, assim como diversa é a noção do homem e do cavalo.

Ainda que, porém, de modos diversos, porque a diversidade do homem e do cavalo se dá se-

gundo a forma, à qual a ideia corresponde perfeitamente, mas a distinção dos singulares de

uma espécie essencial se dá segundo a matéria, que não tem ideia perfeitamente; e, por isso, é

mais perfeita a distinção das noções correspondentes a espécies diversas que a indivíduos

diversos; no entanto, de modo que a imperfeição faça referência às coisas que são imitadoras,

e não à essência divina que é por elas imitada.

Para o quarto, diga-se que os acidentes também não têm um ser perfeito, donde carecem da

perfeição da ideia: graças ao que também Platão não sustentou ideias dos acidentes, mas uni-

camente das substâncias, como se diz em Metafísica I. No entanto, segundo o que têm o ser

pela imitação da essência divina, assim a essência divina é a ideia deles.

E assim são patentes todas as objeções, e ainda o que foi dito quanto ao sentido literal.

77

TOMÁS DE AQUINO*

Suma de Teologia

Parte I

Questão 15

Sobre as Ideias

Após a consideração sobre a ciência de Deus (q. 14), resta que se considere sobre as ideias. Há

três questões a esse respeito:

Primeira: se, acaso, há ideias.

Segunda: se há várias ou apenas uma.

Terceira: se há ideias de tudo o que é conhecido por Deus.

ARTIGO 1º.

QUANTO À PRIMEIRA, argumenta-se como se segue. Vê-se que não há ideias.

1. Dionísio, em Sobre os nomes divinos, capítulo 7, diz, com efeito, que Deus não conhece as

coisas segundo a ideia. Ora, as ideias não são sustentadas senão para que as coisas sejam co-

nhecidas por meio delas. Logo, não há ideias.

2. Além disso, Deus conhece tudo em si mesmo, como foi dito acima (q. 14, a. 5). Ora, não

conhece a si mesmo por meio de uma ideia. Logo, nem a outros.

3. Além disso, sustenta-se a ideia como princípio do conhecimento e da operação. Ora, a es-

sência divina é princípio suficiente de todo conhecimento e operação. Logo, não é necessário

sustentar as ideias.

MAS, EM SENTIDO CONTRÁRIO, há o que diz Agostinho no Livro das oitenta e três questões (q. 46):

“se põe tamanha importância nas ideias que, a menos que inteligidas, ninguém pode ser sá-

bio”. (ST I, q. 15, a. 1).

RESPONDO dizendo que é necessário que se sustente que há ideias na mente divina. Com efeito,

“ideia”, em grego, é chamada em latim de “forma”, donde, por “ideias” são inteligidas as for-

mas de coisas diversas, que existem além das próprias coisas. Ora, a forma de alguma coisa

além da própria coisa existente pode se referir a dois: ou para que seja exemplar daquilo de

que é dita forma, ou para que seja princípio de cognição daquilo, segundo o que se diz que as

formas dos cognoscíveis têm ser no cognoscente. E é necessário que se sustente as ideias no

que diz respeito a ambos.

* Reprodução de: TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia, Primeira Parte, Questão 15 : Sobre as Ideias. Tra-dução de Carlos Eduardo de Oliveira. Discurso. Revista do Departamento de Filosofia da USP. São Paulo: Barcarolla/Discurso, 2008(40): 309-328, com correções.

78

É patente que seja assim: em todos que não são gerados por acaso, é necessário que a forma

seja o fim da geração do que quer que seja. Ora, o agente não agiria de acordo com a forma a

não ser na medida em que há nele a similitude da forma, o que certamente acontece de dois

modos. Com efeito, em alguns agentes preexiste a forma da coisa a ser feita segundo o ser

natural, tal como nos que agem por meio da natureza, tal como o homem gera o homem e o

fogo gera o fogo. Mas, noutros, segundo o ser inteligível, como naqueles que agem por meio

do intelecto, assim como a similitude da casa preexiste na mente do construtor. E esta pode

ser dita a ideia de casa, uma vez que o artífice tenciona que a casa seja semelhante à forma

que a mente concebe.

Portanto, uma vez que o mundo não é feito por acaso, mas é feito por Deus, que age por meio

do intelecto, como será patente abaixo (q. 20, a. 4; q. 44, a. 3), é necessário que haja na mente

divina a forma de cuja semelhança o mundo foi feito. Nisso consiste a noção de ideia. (ST I, q.

15, a. 1, resp.).

QUANTO AO PRIMEIRO, portanto, cumpre dizer que Deus não intelige as coisas segundo uma ideia

que exista fora de si. Desse modo também Aristóteles reprova a opinião de Platão sobre as

ideias, segundo o que sustentava que as ideias existissem por si, não no intelecto.

QUANTO AO SEGUNDO, cumpre dizer que, ainda que Deus conheça a si e a outros por meio de sua

essência, sua essência, entretanto, é princípio operativo dos outros, mas não de si mesmo: por

isso tem a noção de ideia segundo o que é comparada a outro, não, porém, segundo o que é

comparada ao próprio Deus.

QUANTO AO TERCEIRO, cumpre dizer que Deus é similitude de todas as coisas segundo sua essên-

cia. Donde a ideia em Deus não é senão a essência de Deus.

ARTIGO 2º

QUANTO À SEGUNDA, argumenta-se como se segue. Vê-se que não há várias ideias.

1. Com efeito, a ideia em Deus é sua essência. Ora, há apenas uma essência de Deus. Logo,

também há uma única ideia.

2. Além disso, assim como a ideia é princípio do conhecimento e da operação, do mesmo mo-

do a arte e a sabedoria. Ora, não há várias artes e sabedorias em Deus. Logo, nem várias idei-

as.

3. Se for dito que as ideias se multiplicam segundo a referência a diversas criaturas, em sentido

contrário está que há a pluralidade das ideias desde a eternidade. Logo, se as ideias são várias,

mas as criaturas são temporais, então, o temporal será causa do eterno.

4. Além disso, essas referências ou são segundo a coisa unicamente nas criaturas, ou também

em Deus. Se unicamente nas criaturas, dado que as criaturas não sejam eternas, a pluralidade

das ideias não será eterna, se forem multiplicadas unicamente de acordo com tais referências.

Ora, se são realmente em Deus, segue-se que há em Deus outra pluralidade real que a plurali-

dade das Pessoas, o que está contra o Damasceno, quando diz que no divino tudo é uno, exce-

to “a não-geração, a geração e a processão”. Desse modo, portanto, não há várias ideias.

79

MAS, EM SENTIDO CONTRÁRIO, há o que diz Agostinho no Livro das oitenta e três questões (q. 46):

“as ideias são certas formas primeiras ou noções estáveis e incomutáveis das coisas, uma vez

que elas mesmas não são formadas, e por isso são eternas e se mantêm sempre do mesmo

modo, contidas na inteligência divina. Mas, dado que elas mesmas não nasçam nem morram,

ainda assim se diz que tudo o que pode nascer e morrer, bem como tudo o que nasce e morre,

é formado de acordo com elas.” (ST I, q. 15, a. 2).

RESPONDO dizendo que é necessário sustentar que há várias ideias. Para a evidência disso, de-

ve-se considerar que em qualquer efeito, aquilo que é o fim último foi propriamente tenciona-

do pelo agente principal, tal como a ordem do exército pelo comandante. Ora, aquilo que é

excelente ao existir nas coisas, é o bem da ordem do universo, como é patente por meio do

Filósofo em Metafísica XII. Portanto, a ordem do universo é propriamente tencionada por

Deus e não proveniente por acidente segundo a sucessão dos agentes, tal como alguns disse-

ram que Deus criou apenas o primeiro criado, o qual, criado, criou o segundo criado, e assim

até que se produziu tamanha variedade de coisas, opinião segundo a qual Deus não teria se-

não a ideia do primeiro criado. Ora, se a própria ordem do universo foi por si criada por ele e

por ele tencionada, é necessário que tenha a ideia da ordem do universo. No entanto, não se

pode ter a noção de algum todo sem que se tenham as noções próprias daqueles a partir dos

quais o todo se constitui, assim como o construtor não poderia conceber a espécie da casa

sem que tivesse consigo a noção própria de cada uma de suas partes. Assim, portanto, é preci-

so que haja na mente divina as noções próprias de todas as coisas. Donde Agostinho, no Livro

das oitenta e três questões (q. 46), diz que “cada qual é criado por Deus na noção que lhe é

própria”. Donde se segue que na mente divina há várias ideias.

É fácil ver, porém, de que modo isso não repugna à simplicidade divina se for considerado que

há na mente do operador a ideia do operado tal como o que é inteligido, mas não tal como a

espécie pela qual é inteligido, que é a forma que faz o intelecto em ato. Com efeito, a forma da

casa na mente do construtor é algo inteligido por ele, por cuja similitude forma a casa na ma-

téria. Ora, não é contrário à simplicidade do intelecto divino que intelija vários, mas seria con-

tra sua simplicidade se seu intelecto fosse formado por meio de várias espécies. Donde há

várias ideias na mente divina como inteligidas por ele.

O que pode ser visto deste modo: ele conhece sua essência perfeitamente, donde a conhece

segundo todo modo pelo qual é cognoscível. Ora, pode ser conhecida não apenas segundo o

que é em si, mas segundo o que é participável segundo algum modo de similitude pelas criatu-

ras. Ora, toda criatura tem uma espécie própria, segundo o que de algum modo participa da

similitude da essência divina. Assim, portanto, enquanto Deus conhece a sua essência como

imitável desse modo por tal criatura, conhece-a como a noção própria e a ideia desta criatura.

E de modo semelhante sobre as outras. Desse modo, é patente que Deus intelige várias noções

próprias de várias coisas, que são várias ideias.

QUANTO AO PRIMEIRO, portanto, cumpre dizer que a ideia não dá nome à essência divina en-

quanto é essência, mas enquanto é uma similitude ou noção desta ou daquela coisa. Donde,

segundo o que são várias as noções inteligidas a partir de uma essência, são ditas várias ideias.

QUANTO AO SEGUNDO, cumpre dizer que a sabedoria e a arte são significadas como aquilo pelo

que Deus intelige, mas a ideia é significada como o que Deus intelige. Ora, por um, Deus inteli-

ge vários, não unicamente segundo o que são em si mesmos, mas também segundo o que são

inteligidos, o que é inteligir várias noções das coisas, assim como se diz que o artífice, enquan-

80

to intelige a forma da casa na matéria, intelige a casa, mas enquanto intelige a forma da casa

como especulada por si, a partir disso que se intelige inteligindo a casa, intelige a ideia ou a

noção de casa. Ora, Deus não apenas intelige muitas coisas por meio de sua essência, mas

também se intelige inteligindo vários por meio de sua essência. Ora, isso é inteligir várias no-

ções das coisas, ou, que há várias ideias em seu intelecto como inteligidas.

QUANTO AO TERCEIRO, cumpre dizer que tais referências, pelas quais as ideias são multiplicadas,

não são causadas pelas coisas, mas pelo intelecto divino ao comparar sua essência às coisas.

QUANTO AO QUARTO, cumpre dizer que as referências que multiplicam as ideias não estão nas

coisas criadas, mas em Deus. Não são, contudo, referências reais, assim como aquelas pelas

quais as Pessoas são distinguidas, mas referências inteligidas por Deus.

ARTIGO 3º.

QUANTO À TERCEIRA, argumenta-se como se segue. Vê-se que não há, em Deus, ideias de tudo o

que ele conhece.

1. Com efeito, não há a ideia de mal em Deus, uma vez que se seguiria que o mal teria ser em

Deus. Ora, os males são conhecidos por Deus. Logo, não há ideias de tudo o que é conhecido

por Deus.

2. Além disso, Deus conhece aqueles que nem são nem serão nem foram, como foi dito acima

(q. 14, a. 9). Ora, desses não há ideias, uma vez que Dionísio diz em Sobre os nomes divinos,

capítulo 5, que “os exemplares são vontades divinas, determinativas e efetivas das coisas”.

Logo, não há, em Deus, ideias de tudo o que é por ele conhecido.

3. Além disso, Deus conhece a matéria prima, que não pode ter ideia, dado que não tenha

nenhuma forma. Portanto, o mesmo que antes.

4. Além disso, consta que Deus não é unicamente ciente das espécies, mas também dos gêne-

ros, bem como dos singulares e dos acidentes. Ora, não há ideias destes, segundo a posição de

Platão, que, como diz Agostinho (no Livro das oitenta e três questões, q. 46), primeiro introdu-

ziu as ideias. Logo, não há ideias em Deus de todo o conhecido por ele.

MAS, EM SENTIDO CONTRÁRIO, as ideias são noções existentes na mente divina, como é patente

por meio de Agostinho (no Livro das oitenta e três questões, q. 46). Ora, de tudo que conhece,

Deus tem as noções próprias. Logo, de tudo que conhece, tem ideia.

RESPONDO dizendo que, visto que as ideias teriam sido postas por Platão como princípios de

cognição das coisas e de sua geração, a ideia se dá para ambos ao ser posta na mente divina. E

segundo o que é princípio do fazer as coisas, pode ser dita “exemplar” e pertence à cognição

prática. Ora, segundo o que é princípio cognoscitivo, é propriamente dita “noção” e pode tam-

bém pertencer à ciência especulativa. Portanto, segundo o que é exemplar, se dá para tudo

que é feito por Deus segundo algum tempo. Segundo o que é princípio cognoscitivo, se dá para

tudo que é conhecido por Deus, ainda que não seja feito em nenhum tempo, e para tudo que é

81

conhecido por Deus segundo uma noção própria e segundo o que é conhecido por ele de mo-

do especulativo.

QUANTO AO PRIMEIRO, portanto, cumpre dizer que o mal não é conhecido por Deus por meio de

uma noção própria, mas por meio da noção de bem. Por isso o mal não tem ideia em Deus,

nem segundo o que a ideia é exemplar, nem segundo o que é noção.

QUANTO AO SEGUNDO, cumpre dizer que daqueles que nem são nem serão nem foram, Deus não

tem cognição prática, senão apenas virtualmente. Donde não há em Deus ideia em referência

àqueles segundo o que a ideia significa “exemplar”, mas unicamente segundo o que significa

“noção”.

QUANTO AO TERCEIRO, cumpre dizer que Platão, segundo alguns, sustentou a matéria não criada,

e, por isso, não sustentou que houvesse uma ideia para a matéria, mas uma co-causa144 com a

matéria. Ora, uma vez que sustentamos a matéria criada por Deus, ainda que não sem forma,

a matéria tem certa ideia em Deus, ainda que não diversa da ideia do composto. Pois a matéria

segundo si mesma nem tem ser, nem é cognoscível.

QUANTO AO QUARTO, cumpre dizer que os gêneros não podem ter uma ideia diversa da ideia de

espécie, segundo o que a ideia significa um exemplar, uma vez que o gênero nunca se faz se-

não em alguma espécie. Também se dá de modo semelhante sobre os acidentes que são inse-

paravelmente concomitantes ao sujeito, uma vez que estes são feitos simultaneamente com o

sujeito. Mas os acidentes que são supervenientes ao sujeito têm uma ideia especial. O artífice,

com efeito, por meio da forma da casa faz todos os acidentes que desde o princípio são con-

comitantes à casa, mas aqueles que são supervenientes à casa já feita, como as pinturas ou

algo outro, faz por alguma outra forma. Os indivíduos, entretanto, não possuíam, segundo

Platão, outra ideia além da ideia de espécie, tanto porque os singulares são individuados por

meio da matéria, que, como dizem alguns, sustentava que fosse incriada e co-causa com a

ideia; como porque a intenção da natureza consiste nas espécies e não produz os particulares

senão para que neles sejam salvas as espécies. Ora, a providência divina não se estende ape-

nas às espécies, mas aos singulares, como se dirá abaixo (q. 22, a. 3).

144 Cf. Pedro Lombardo, Sentenças II, cap. 1, citando uma opinião atribuída a Estrabão (PL 113, 64): “«Pois Platão julgou haver três inícios, a saber, Deus, o exemplar e a matéria, e esta incriada, sem prin-cípio, e Deus como que um artífice, não o criador». Com efeito, Criador é aquele que faz algo do nada.”

82

TOMÁS DE AQUINO*

Quodlibeta

Livro IV

Questão 1

Tendo perguntado sobre as coisas divinas e humanas, pergunta-se sobre as coisas divinas.

Primeiro, sobre as essenciais. Segundo, sobre as pessoais. Acerca das essenciais, pergunta-se:

primeiro, sobre a ciência de Deus. Segundo, sobre sua potência.

Artigo Primeiro

Se há várias ideias em Deus.

Acerca da ciência, pergunta-se se há várias ideias em Deus. 1. E vê-se que sim. Com efeito,

Agostinho diz no livro das 83 questões que Deus criou cada um pelas noções próprias, e por

uma noção o homem e por outra noção o cavalo. Ora, são ditas ideias as noções das coisas na

mente divina, como é patente por Agostinho no mesmo lugar. Portanto, há várias ideias.

2. Além disso, segundo isso, há alguns distintos dos quais Deus conhece a distinção. Ora, co-

nhece a distinção deles em si mesmo. Portanto, há várias e distintas ideias em Deus das coisas

distintas.

3. Mas, contra: todo nome que é dito quanto aos divinos ou é essencial, como “Deus”, ou pes-

soal, como “Pai”, ou nocional, como “gerador”. Ora, o nome “ideia” nem é pessoal nem nocio-

nal, porque não seria conveniente às três pessoas. Portanto, é um nome essencial. Ora, ne-

nhum essencial é multiplicado quanto aos divinos. Portanto, não podemos dizer que há várias

ideias em Deus.

Respondo dizendo que a pluralidade é dúplice. Certamente, uma é a pluralidade das coisas e,

segundo isso, não há várias ideias em Deus. Com efeito, a ideia nomeia a forma exemplar: ora,

há uma única coisa que é exemplar de tudo, a saber, a essência divina, que todos imitam na

medida em que são e são bons. De fato, há outra pluralidade segundo a noção inteligida; e

segundo isso há várias ideias. Com efeito, embora todas as coisas, na medida em que são, imi-

tem a essência divina, no entanto, não a imitam de um modo único e o mesmo, mas de modos

diversos, e segundo graus diversos. Assim, então, a essência divina, segundo o que é imitável

deste modo por esta criatura, é a noção própria e a ideia de tal criatura; e, de modo semelhan-

te, quanto ao mais: donde, há várias ideias segundo isto – segundo o que a essência divina é

inteligida segundo as diversas referências que as coisas têm para ela ao imitá-la de diversos

modos. Ora, tais referências ao próprio Deus não são inteligidas apenas pelo intelecto criado.

Com efeito, Deus sabe, e soube desde a eternidade, que criaturas diversas imitariam sua es-

sência de diversos modos, e, segundo isso, houve na mente divina, desde a eternidade, várias

ideias assim como as noções próprias das coisas inteligidas em Deus. Com efeito, esse é o sig-

* TOMÁS DE AQUINO, Quodlibeta duodecim. Paris: Vivés, 1875, p. 430 s. [= Thomae Aquinatis Opera Omnia. Vol. 15].

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nificado do nome ideia, a saber, que haja, inteligida pelo agente, certa forma de cuja seme-

lhança tem a intenção de produzir a obra exterior, assim como o edificador preconcebe em sua

mente a forma da casa, que é como que a ideia da casa que há de ser feita na matéria.

Portanto, para o primeiro há de se dizer que Agostinho entende que uma e outra sejam no-

ções segundo a diversidade das referências, como foi dito.

Para o segundo, diga-se que quando se diz: “segundo isso as coisas são distintas: na medida

em que Deus conhece a distinção delas”, tal locução é dúplice. Com efeito, o que é dito: “se-

gundo o que Deus conhece”, pode fazer referência ao conhecimento divino desde a parte do

conhecido ou desde a parte do cognoscente. Se desde a parte do conhecido, assim a locução é

verdadeira: com efeito, há o sentido de que as coisas são distintas desse modo: assim como

Deus as conhece serem distintas. De fato, se for feita referência ao conhecimento da parte do

cognoscente, assim a locução é falsa: com efeito, haverá o sentido de que as coisas conhecidas

naquele modo de distinção têm no intelecto divino o que têm em si mesmas, o que é falso,

porque, em si mesmas, as coisas são diversas essencialmente, mas não no intelecto divino, tal

como, ainda, as coisas, em si mesmas, são materialmente, mas, no intelecto divino, imaterial-

mente: e a objeção era procedente nesse último sentido.

Para o terceiro, diga-se que aquele argumento é procedente sobre a pluralidade real: com

efeito, tal pluralidade não é encontrada nos nomes essenciais, mas unicamente a pluralidade

que é segundo a noção inteligida.

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Trechos de textos de Tomás de Aquino complementares à Suma de Teologia I, q. 15:

[Artigo 1º] 1. Ora, cumpre saber que embora o princípio e a causa sejam o mesmo quanto ao sujeito, diferem, porém, quanto à noção. Pois o nome “princípio” importa certa ordem, en-quanto o nome “causa” importa certo influxo para o causado. (In duodecim libros Metaphysi-corum Aristotelis expositio, V, l. 1, n. 3)

2. Com efeito, o elemento é, primariamente, aquilo a partir do que a coisa é composta, e é nela, como se diz no livro V da Metafísica [cap. 2], assim como as letras, mas não as sílabas, são elementos da palavra. São, porém, chamados de causas aqueles desde os quais as coisas dependem segundo o seu ser ou vir a ser. Donde podem ser chamados de causas, mas não de elementos, tanto aqueles dos quais a coisa não é primariamente composta que estão fora da coisa como aqueles dos quais a coisa não é primariamente composta que estão na coisa. Por sua vez, o princípio importa certa ordem de algum avançar, donde pode ser princípio algo que não é causa, assim como aquilo de onde começa o movimento é princípio, mas não causa, do movimento e o ponto é princípio, mas não causa, da linha. Portanto, vê-se, assim, que entende por “princípios” as causas moventes e agentes, nas quais se observa ao máximo a ordem de certo avançar. No entanto, vê-se que por “causas” entende as causas formais e finais, das quais as coisas dependem ao máximo segundo seu ser e vir a ser. Mas, por “elementos”, propriamente, as causas primeiras materiais. (Comentário sobre os oito livros da “Física” de Aristóteles, Livro Primeiro, Lição 1, n. 10-11).

3. Com efeito, uma vez que a similitude daquilo que é feito pelo artífice e que existe na mente do artífice é o princípio da operação por meio do qual aquilo que é feito pelo artífice é consti-tuído, ela é comparada àquilo que é feito pelo artífice como o exemplar àquilo de que ele é exemplar. (Suma contra os Gentios, IV, cap. 11, n. 13).

4. Com efeito, a natureza não difere da arte senão porque a natureza é um princípio intrínseco e a arte é um princípio extrínseco. Com efeito, se a arte de fazer navios fosse intrínseca à ma-deira, o navio seria feito pela natureza tal como agora é feito pela arte. Isso se torna maxima-mente manifesto na arte que está naquilo que é movido, mesmo que acidentalmente, tal co-mo no médico que medica a si mesmo: com efeito, a natureza é maximamente semelhante a essa arte. Donde é patente que a natureza não é nada além da noção de certa arte, a saber, a arte divina, intrínseca às coisas, pela qual as próprias coisas são movidas para um fim determi-nado, tal como se o artífice que faz o navio pudesse dar às madeiras a atribuição de se move-rem por si mesmas a fim de assumir a forma do navio. (Commentaria in octo libros Physicorum Aristotelis, II, l. 14, n. 8).

[Artigo 2º] 5. (...) deve-se dizer que o fim é duplo, a saber, último e próximo. O fim último cer-tamente não requer circunstância, uma vez que todas as circunstâncias são assumidas em vista dele. O fim próximo também é duplo. Um é o fim da obra, segundo o que diz o Filósofo, no livro II da Ética, que alguns se unem para um fim mau; e este fim dá a espécie para o ato. Don-de ou não há circunstância, se for considerado unicamente o gênero da moral, ou, referindo-se à própria substância do ato, algo é incluído nessa circunstância. Outro é o fim do agente, que às vezes tenciona o bem a partir de um ato mau ou o contrário; e este fim é dito o porquê des-ta circunstância. Ora, de tal ato não recebe a espécie própria, mas como que a comum, segun-do o que os atos imperados induzem a espécie da virtude ou do vício do imperar sobre a espé-cie que recebem do hábito produtor. (Commentum in quatuor libros Sententiarum Magistri Petri Lombardi, IV, d. 16, q. 3, a. 1, quaestiuncula 2, ad 3m).

6. (...) Donde ser preciso dizer que a alma cognoscitiva está em potência, tanto para as seme-lhanças que são os princípios do sentir, como para as semelhanças que são os princípios do inteligir. Por isso, Aristóteles sustentou que o intelecto, pelo qual a alma intelige, não tem cer-tas espécies naturalmente introduzidas, mas está de início em potência para todas essas espé-cies. (ST I, q. 84, a. 3, resp. Trad. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento).

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7. o nosso intelecto abstrai a espécie inteligível dos princípios individuantes: donde a espécie inteligível de nosso intelecto não pode ser a semelhança dos princípios individuais. E, por isso, o nosso intelecto não conhece os singulares. Ora, a espécie inteligível do intelecto divino, que é a essência de Deus, não é imaterial por abstração, mas por si mesma, princípio existente de todos os princípios que entram na composição da coisa, sejam princípios da espécie, sejam princípios dos indivíduos. Donde Deus conhece por ela não apenas os universais, mas também os singulares. (ST I, q. 14, a. 11, ad 1m.)

[Artigo 3º] 8. RESPONDO dizendo que uma ciência é apenas especulativa, outra apenas prática, mas outra é, segundo certo aspecto, especulativa e, segundo certo aspecto, prática. Para a evidência disso cumpre saber que uma ciência pode ser dita especulativa de três modos. Pri-meiro, da parte das coisas sabidas que não são operáveis por aquele que tem a ciência, assim como é a ciência do homem sobre as coisas naturais ou divinas. Segundo, quanto ao modo de saber, como, por exemplo, se o edificador considerar a casa ao definir, dividir e considerar os universais que são predicados dela. Com efeito, isso é considerar o que é operável de modo especulativo e não segundo o que é operável, com efeito, o operável torna-se algo por meio da aplicação da forma à matéria, não pela resolução do composto em princípios universais for-mais. Terceiro, quanto ao fim, pois o intelecto prático difere do especulativo pelo fim, assim como é dito no livro III do Sobre a alma. Com efeito, o intelecto prático está ordenado para o fim da operação, mas o fim do intelecto especulativo é a consideração da verdade. Donde, se o edificador considerar de que modo uma casa pode ser feita, não ordenando para o fim da ope-ração, mas apenas para o conhecimento, a consideração será, quanto ao fim, especulativa, ainda que sobre a coisa operável. Portanto, a ciência que é especulativa pela noção da própria coisa sabida, é unicamente especulativa. Aquela que é especulativa seja segundo o modo, seja segundo o fim, é especulativa segundo certo aspecto e prática segundo certo aspecto. De fato, quando está ordenada para o fim da operação, é absolutamente prática. Portanto, segundo isso, deve ser dito que Deus tem sobre si mesmo apenas ciência especulativa, com efeito, ele não é passível de operação. Sobre tudo o mais tem ciência tanto especulativa como prática. Certamente especulativa quanto ao modo, com efeito, tudo o que conhecemos nas coisas ao definir e dividir é conhecido por Deus muito mais perfeitamente. Ora, sobre aqueles que cer-tamente pode fazer, mas não faz em nenhum tempo, não tem ciência prática, segundo o que a ciência é dita prática desde o fim. Ora, tem desse modo a ciência prática sobre aqueles que faz em algum tempo. De fato, os males, embora não sejam operáveis por ele, caem, entretanto, sob seu conhecimento prático, assim como também os bens, enquanto permite-os ou impede-os ou ordena-os, assim como também as doenças caem sob a ciência prática do médico, en-quanto as cura por meio de sua arte. (ST I, q. 14, a. 16, resp.).

9. Cumpre dizer que, assim como se diz no livro III do Sobre a alma, o intelecto prático difere do especulativo pelo fim. Com efeito, o fim do especulativo é a verdade absoluta, mas do prá-tico é a operação, tal como se diz no livro II da Metafísica. Portanto, um conhecimento é dito prático a partir da ordem para a obra, o que se dá de dois modos. Com efeito, às vezes está ordenado em ato para a obra, assim como o artífice propõe realizar naquela matéria a forma preconcebida: e, então, [tal conhecimento] é um conhecimento prático em ato e a forma do conhecimento. Às vezes, porém, é certo conhecimento ordenável em ato, ainda que não esteja ordenado em ato, assim como quando o artífice pensa a forma do artifício e sabe o modo de operar, ainda que não tenha a intenção de operar: e, então, é [conhecimento] prático em ato ou virtualmente, não em ato. (...) Portanto, se falarmos sobre a ideia segundo a noção própria do nome, ela não se estende senão àquela ciência segundo a qual algo pode ser formado: e este é um conhecimento prático em ato ou apenas virtualmente, o qual também é de certo modo especulativo. (Quaestiones disputatae de veritate, q, 3, a. 3, resp. O grifo é nosso.).

10. RESPONDO dizendo que é preciso que quem quer que conheça perfeitamente algo, conheça tudo que possa acontecer a ele. Ora, há alguns bens aos quais pode acontecer de serem cor-

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rompidos por males. Donde Deus não conheceria perfeitamente os bens a não ser que tam-bém conhecesse os males. Ora, assim é cognoscível o que quer que seja: segundo o que é. Donde, visto que o ser do mal consista no ser a privação do bem, pelo próprio fato de Deus conhecer os bens, conhece também os males, assim como as trevas são conhecidas por meio da luz. Donde diz Dionísio, no capítulo VII dos Nomes Divinos, que “Deus alcança a visão das trevas por si mesmo, não vendo as trevas desde outro lugar que da luz”. (ST I, q. 14, a. 10, resp.).

11. Deus sabe tudo, seja o que for e seja como for. Ora, nada proíbe que aqueles que não são absolutamente, sejam de algum modo. Com efeito, são absolutamente os que são em ato. Ora, aqueles que não são em ato, são na potência do próprio Deus ou das criaturas, seja na potência ativa, seja na passiva, seja na potência de opinar ou de imaginar ou de qualquer mo-do de significar. Portanto, o que quer que possa ser feito ou cogitado ou dito pela criatura, e, também, o que quer que ele mesmo possa fazer, Deus conhece tudo, ainda que não seja em ato. E por isso se pode dizer que tem também ciência dos não entes. (ST I, q. 14, a. 9, respon-deo. Os grifos são nossos.).

12. Cumpre dizer que dado que a matéria prima venha a ser por Deus, é preciso que a sua ideia seja igualmente em Deus; e assim como a ela é atribuído o ser, a ela é atribuída a ideia em Deus, uma vez que todo ser, enquanto é perfeito, é exemplarmente conduzido desde o ser divino. Ora, o ser perfeito da matéria não convém em si, mas apenas segundo o que está no composto. De fato, tem em si o ser imperfeito segundo o último grau de ser, que é o ser em potência, e, por isso, não tem uma perfeita noção de ideia a não ser segundo o que é no com-posto, uma vez que assim o ser perfeito é conferido a ela por Deus. De fato, considerada em si, tem em Deus uma noção imperfeita de ideia, isto é, pelo que é dito, porque a essência divina é imitável pelo composto segundo o ser perfeito, pela matéria, segundo o ser imperfeito, mas de nenhum modo desde a privação. E, por isso, o composto, segundo a noção da sua forma, tem perfeitamente a ideia em Deus, a matéria, imperfeitamente, mas a privação de nenhum modo. (Commentum in quatuor libros Sententiarum Magistri Petri Lombardi, I, d. 36, q. 2, a. 3, ad 2m).

13. Cumpre dizer que Platão não sustentou ideias dos singulares, mas unicamente das espécies por duas razões. Uma, porque, segundo ele, as ideias não eram factivas da matéria, mas uni-camente da forma em seus inferiores. Ora, o princípio da singularidade é a matéria. De fato, segundo a forma, cada um dos singulares é colocado na espécie. Por isso, a ideia não corres-ponde ao singular enquanto é singular, mas unicamente pela noção da espécie. Sustentou outra razão porque a ideia não é senão daqueles que são intencionados por ela, como é paten-te do que foi dito. Ora, a intenção da natureza está principalmente quanto à conservação da espécie, donde, embora a geração tenha como termo este homem, a intenção da natureza, entretanto, é gerar o homem. (Quaestiones disputatae de veritate, q. 3, a. 8, resp.).

14. Nós, entretanto, sustentamos que Deus seja a causa do singular tanto quanto à forma co-

mo quanto à matéria. Sustentamos, ainda, que por meio da providência divina são definidos

todos os singulares, e, por isso, é preciso que sustentemos também as ideias dos singulares.

(Quaestiones disputatae de veritate, loc. cit.).