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Carlos Alberto
Carlos Alberto
De Flavio Freitas
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OBRA DO ACASO

PERSONAGENS:

Henrique −  autor  teatral,  57  anos

Gilda −  mulher  de  Henrique,  loura,  bonita,  25  anos

Sofia                                                −  empregada  da  fazenda,  30  a  40  anos

Mário                                              −  rapaz  da  cidade,  30  anos

Narrador                                    −  maduro,  sem  definição de idade

CENÁRIO:

Sala de estar de casa de pessoa bem sucedida.

Um balcão de bar com dois bancos altos.

Sofás, mesa de centro, candelabro, quadros, espelho, aparelho de som e uma coluna

em estilo grego, de aproximadamente um metro e setenta de altura, e mais o que for

característico de uma sala deste tipo.

Existem duas saídas: uma à esquerda para a porta da rua e outra à direita para

o interior da casa. (visão da plateia). Ao fundo, uma grande janela.

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OBRA DO ACASO

(MÚSICA DE BHETOVEEN. FOCO NO NARRADOR, À FRENTE DA CORTINA

FECHADA. ESTÁ ELEGANTEMENTE TRAJADO (SMOKING). TEM ALGO DE

DIABÓLICO NO SEU MODO DE FALAR E PORTAR-SE)

NARRADOR    − O ser humano desde seus primeiros passos traz dentro de si um desejo

desesperado: ser profeta do seu próprio destino. Assim como o homem da ciência que

antecipa o próximo movimento da maré, a mudança da lua, ou o itinerário dos astros,

o homem almeja ter um dom que é privilégio dos deuses: o dom de prever o futuro.

Na ânsia de saber do acontecido antes do acontecimento, vende sua alma a Deus e

até ao diabo, para roçar, nem que seja por breve momento, no manto da divindade.

Ignora, porém, que sob essa aspiração infundada de tudo prever, lateja oculta,

esperando a oportunidade de irromper como um vulcão, uma força avassaladora: a

força do acaso. A força do imprevisto que desvia o homem dos caminhos traçados por

ele e o coloca em rumos inesperados. O ser humano depende, quer queira ou não,

das inexplicáveis coincidências, dos acasos que o atingem com a força da

predestinação.

(APAGA FOCO. ABRE CORTINA. NARRADOR VAI PARA O BAR. QUADRO VIVO

DO NARRADOR. ILUMINAÇÃO COM SOMBRAS. GILDA E MARIO ESTÃO NUS,

AJOELHADOS UM DEFRONTE DO OUTRO, A CENA DEVE SER POÉTICA. GILDA

TEM NO CORPO UMA VESTE TRANSPARENTE. A MOVIMENTAÇÃO DOS

ATORES DEVE SER DELICADA. TROCAM CARÍCIAS E BEIJOS. DE REPENTE, A

MÚSICA PARA. CLICK DE GRAVADOR DESLIGANDO OS DOIS PARAM E OLHAM

ASSUSTADOS PARA A PLATÉIA, COMO SE PEGOS EM FLAGRANTE. SAEM, UM

PARA CADA LADO. CENA COREOGRAFADA.)

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(B.O.)

(O NARRADOR SE MOVIMENTA NO BAR QUE SERÁ SUA ÁREA DE ATUAÇÃO.

OUTRA MÚSICA DE BEETHOVEN. LUZ VAI SUBINDO)

(QUADRO VIVO. HENRIQUE NO SOM. SOFIA COM GARRAFA DE VINHO E DUAS

TAÇAS NUMA BANDEJA. SOMENTE O NARRADOR SE MOVIMENTA SERVINDO

SE DE BEBIDA)

NARRADOR− Um homem, ao ficar viúvo, se arrisca ao dizer com plena convicção, que

nunca voltará a casar-se. Declarações definitivas como esta geram dentro dele um

impulso perverso de contradizê-las. É só o homem dizer isso e começa asentir uma

comichãozinha, que deve ser a urticária do diabo, para ele fazer justamente o

contrário. Um homem experiente até sabe disso. Mas, saber, não o protege do

sentimento chamado amor.

(NARRADOR FICA À VONTADE NO BAR, OBSERVANDO A CENA)

(HENRIQUE E SOFIA MOVIMENTAM-SE).

HENRIQUE  − Coloque na mesa, Sofia.

SOFIA − Tá bom, patrão. (COLOCA O CALICE, AJEITA ALGUMA COISA NA SALA)

Mais alguma coisa, seu Henrique? Tá tudo a gosto, ou tá precisado de mais capricho?

HENRIQUE  −  Tá  bom  assim,  Sofia.

SOFIA                −  Porque  carecendo de mais, é só chamar.

(SOFIA VAI SAINDO)

HENRIQUE  −  Vem  cá,  Sofia.  Vamos  conversar.  Encha  uma  taça  para  você  e  se  sente.  

SOFIA −  Eu?  Sentar  na  frente  do  senhor?

HENRIQUE −  Senta,  e  não  faz  cara  de  lesa.  

SOFIA                    −    É  que  não  é  do costume. O senhor mandou sentar, nunca mandou... Uma

metade de mim tá abilolada e a outra metade, tá desconfiada.

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HENRIQUE  −    Gosto  de  conversar  com  você.

SOFIA                  −    Puxa...  Brigada,  seu  Henrique.

HENRIQUE  −  Você  é  mulher de força, Sofia. Mulher de opinião. Tua verdade sai da boca

feito ventania disparada.

SOFIA              −  Não  há  de  quê,  coronel.    Os  olhos  do  senhor  é  que  são  dos  bons.  Por  essa  

luz que me alumia, sou de franqueza, sim, senhor.. Quando eu falo, é porque é

mesmo.

HENRIQUE  −  Sinceridade... Falta isso no mundo. Eu às vezes saio para pescar trutas e

quem come a isca são as traíras.

SOFIA                  −  Tô  tentando  entender.

HENRIQUE    −    Você  já  se  apaixonou  por  alguém?

SOFIA                    −    Tá  de  troça  comigo,  patrão?  Que  pergunta  é essa, assim de supetão? Me

apaixonar? Tenho desses luxo, não.

HENRIQUE    −  Cadê a franqueza, Sofia?

SOFIA −  Dizer  verdade,  faço  questão desses feitiços de amor, não. Um homem,

desses que andam por aí e que não seja muito fraquinho de feição, que tenha

ideia boa de cabeça - não seja uma besta – e que tope dividir a despesa, já tá muito

bão. Só não tem que ser manhozão porque se não for pra pegar no batente, e ficar só

amaciando o galo, ah... vai encostar em outra jaqueira. Em mim, não.

HENRIQUE − Eu já me apaixonei, Sofia.

SOFIA − E não é que já? O senhor é bonitão, é ricaço... sabe escrever pro teatro.

Teatro tá assim de mulher bonita. E fácil de se apaixonar. Já, eu, que só encontro uns

trambolhos de homem feio, num dá pra criar paixão. Mas, me diz uma coisa, seu

Henrique, a dona Gilda já sabe desse seu causo?

HENRIQUE −  Claro  que  sabe,  Sofia.  

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SOFIA                      −  Danou-se!

HENRIQUE    −  Gilda é o meu caso. A minha paixão.

SOFIA − Faz isso comigo não, patrão. Por essa luz que me alumia, quase cai da

cadeira de susto. Nossa! Mas, então, tá tudo certo. Dona Gilda é a patroa e o patrão tá

fofo do juízo por ela. Tá tudo certo, né?

HENRIQUE −  O problema é que não está tudo certo.

SOFIA − Hum... Caiu cisco no olho?

HENRIQUE − Einh?

SOFIA − É sempre assim. Nada nunca tá tudo certo. Olha, eu queria escutar resposta,

mas se o senhor achar que é abuso da minha pessoa, eu num pergunto.

HENRIQUE−   Pode perguntar.

SOFIA − Bão... O senhor tá espiritado nela, e ela nem se liga no senhor, é isso?

(HENRIQUE FICA EM SILÊNCIO) Que chato, né? (TEMPO) Puxa, já viu metedice

igual a essa na vida dos outros? Vige... Desculpa, patrão... É que... Pasmei.

HENRIQUE − Quando Lúcia morreu foi como se todas as mulheres tivessem ido com ela.

SOFIA                  −  Alembro,  coronel.  O  senhor  se  enfiou  lá  na  sua  fazenda  e  nem  aparecia  por  

aqui. Ficava por lá escrevendo os seus teatros. Tenho saudade da dona Lúcia. Era

mulher acolchoada, mulher de presenciamento...

HENRIQUE  −  Mas,  morreu...    

SOFIA                    −  Alembro.  Foi  desgosto  só.

HENRIQUE  −  É...  tão de repente... O tempo parou.

SOFIA                    −  Alembro.  O  senhor  num via mais de-dia e nem de-noite, nem sol e estrela... O

senhor tava largado feito balão apagado no vento Só ficou uma brasinha chocha

daquele patrão que era fogaréu de incêndio.

HENRIQUE  −  De  uns  amigos  de  idas  e  vindas  eu  ouvia:  “−  Henrique,  Henrique,  assim  você  

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vai  também”.

SOFIA                  −  Alembro.  E  meu  palavrório  pros  ouvidos  dos  vizinhos  era  assim:  "−  Dou  um  

mês e seu Henrique bate a caçoleta.". Verdade. Desculpa. Era o jeito que tava de

assuceder.

HENRIQUE – Alguns amigos disseram:  ”−  Pé  sem  sapato  só  arruma  carrapato”. “−Trem  

parado no desvio, precisa de maquinista”. Eu respondia: “−  Pra que sapato, pra que

maquinista? Amar? Nunca mais.”

SOFIA                −  Minha  mãe  - que Deus a tenha sentada do seu lado direito, amém – era da

roça. Um dia, alembro bem, quando foi jogar lavagem pro porco disse palavra de

pensamento: “−  Amar  e  defecar  ninguém  deve de  obrigar.”.  

HENRIQUE −  Pois  é...  Mas,  de  repente,  o  tempo,  sempre  o  tempo,  voador  que  só  ele,  

aprumou suas asas e partiu. Fui junto, sacudindo a poeira da saudade.

SOFIA −  E  a  vontade  de  amar  voltou.  Dona  Gilda  apareceu  e  o  mel  caiu  na  sopa.  

HENRIQUE −  Foi num “shopping”.  Esbarrei nela e derrubei um pacote que ela levava.

Apanhei o pacote e quando nossos olhos se encontraram senti uma sensação de...

SOFIA − Num precisa de explicação que já entendi direitinho. Amor bom é assim

mesmo. Começa meio de sem querer.

HNERIQUE    −  Dali, fui comprar um livro e vinha folheando-o quando...

SOFIA                    −  Tropicou  nela  de  novo.

HENRIQUE    −  Tal  coincidência...  Como  se  deu  conta,  Sofia?

SOFIA                    −  E  não  é  que  me  dei?

HENRIQUE − Dessa vez, Gilda vinha da loja de revelar fotografias. As fotos se espalharam

pelo chão. Nos abaixamos juntos para pegá-las e nossos olhos caçaram um dentro

do outro. Ela riu. Apanhamos as fotos do chão e ela foi embora, deixando-me

ajoelhado em pleno “shopping”, escravo do seu perfume e de sua risada.

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HENRIQUE − Neste mesmo dia, à noite, lá estava ela...

SOFIA − No  “shopp”?

HENRIQUE − Não. No teatro. Fotografava a estreia da minha peça para sua revista.

Era muita coincidência e imaginei que Deus, o destino, ou lá quem seja, havia

escolhido aquela mulher para mim. Não pensei muito e casei com ela. Hoje, não sei

se fiz certo, Sofia.

SOFIA − O patrão tá de brincadeira. Fez certo, sim. Me ponho no seu lugar. Se

Deus Nosso Senhor ou o tinhoso, porque eu digo, sou mulher, mas que mulher, às

vezes, parece coisa de demônio lá, isso parece... pois é, repito, outra vez, de novo,

pra não ter dúvida de esclarecimento: se Deus ou o tinhoso joga um mulherão feito

dona  Gilda,  nem  uma  nem  duas  −  foram  três  vezes,  patrão  −  se  joga  três vezes na

minha frente, ah, por essa luz que me alumia, nem penso com razão. Se sou homem,

endoido de vez e levo pra casa.

HENRIQUE  −  Um  amor  de  louco,  Sofia.  Valia  a  pena  viver.  Não  havia  como  resistir.  Os  

deuses haviam me escolhido.

(QUADRO VIVO)

NARRADOR − Sentir-se o eleito dos deuses! (GARGALHA) Quanta ingenuidade! Mas, o

acaso é assim mesmo. Terreno pantanoso... Pedra limosa... A gente pisa distraído, e

ó, já foi. Afunda ou escorrega. Alguns acham que descobriram o caminho das pedras

e pensam: “−  Tropeções  por  acidente,  achamentos  por acaso, ah, é a mão da

felicidade batendo na minha porta". Engano desses sabidos. A capa de coincidência é

o chamariz do capeta. Usa desses truques para prender o sujeito na armadilha do

amor tesudo. Tudo com certo disfarce de simplicidade, mas fazendo parte de um

diabólico programa universal cujo acesso à senha é vedado ao homem. Assim,

inocentes encontros acidentais, acontecimentos fortuitos podem criar relações

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amorosas de grande intensidade. Mas, não será que estes mesmos singelos acasos

podem vir a destruí-las? (GARGALHA)

HENRIQUE − Você já sentiu ciúmes?

SOFIA                  − Sinceridade? Já. Ah, sim... quer dizer... Então... O mais perfeito é não ter

desses zelos. Não é não? Só que a gente tem. Essa é que é a verdade: a gente tem.

Eu tive um namorisquinho, muito de antigamente, com um rapaz que era de amolar os

queixos, e a mulherada não cansava de dar em cima, até diante da minha vista. Como

meu interesse não era botar galhada, eu ficava com os cabelos tremendo na venta. Aí,

não tinha mais-que-mais: eu arrupiava para cima, emendava os bigodes com a cuja e

baixava a jendiroba com vontade. Depois da anguzada toda eu partia pra cima do

desinfeliz. Porque ninguém faz porfia de amor sozinho não, seu Henrique. São sempre

dois. Como ele carecia de tomar jeito, ah, mandei ele pros quintos. Ah... Alembrei.

Tem outro caso de ciúme...

(ENTRA GILDA APRESSADA. VESTIDO DE NOITE, DESCALÇA; COLOCANDO

BRINCOS. SOFIA LEVANTA-SE RAPIDO AO VER GILDA)

Posso ir, patrão?

HENRIQUE− Claro, Sofia! Gostei muito da nossa conversa.

SOFIA                −  Tem  de  quê,  não.  Nem  falo  coisa  com  coisa,  patrão.  É  só  sopa  de  entulho  sem  

tutano.

(NA SAÍDA FICA ESBARRA NÃO ESBARRA EM GILDA. SAI)

GILDA − Não dê papo para criados, Henrique. Eles não são iguais a nós... por mais

que você queira.

HENRIQUE − (SINCERO) Você é muito bonita, Gilda.

(VAI ATÉ À PORTA POR ONDE SOFIA SAIU)

Gosto de conversar com ela.

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GILDA − Meu Deus, deve ser bem monótona essa conversa dfe vocês. Essa menina

não tem escola. Sofia! Meus sapatos vermelhos!

HENRIQUE −  Sofia  aprende  na  melhor  escola:  a  vida.  

GILDA                −  Já  tem  idade  para  ter  saído  do  primário.  

HENRIQUE – É preciso ter a mente e o coração aberto para ver a beleza de sua conversa.

GILDA                  −  Você  fala  em beleza nas palavras de Sofia? Você que é um dos autores que a

crítica mais elogia pela elegância na construção de diálogos?

HENRIQUE  −  Elegância?  Palavras  mortas.  A  crítica  não  repara  que  são  palavras  mortas.

As palavras de Sofia tem sangue, tem espinha, tem pé, tem mão. As palavras voam,

cantam. Não são da cidade. Nascem do ventre da terra. Suas palavras têm cheiro

de terra molhada, têm gosto de pitanga e de goiaba; têm o doce do mel e o fogo da

pimenta. Tem o sabor da roça de onde Sofia veio. Ela me dá inspiração.

GILDA − Você podia arranjar inspiração de outra maneira que não fosse com Sofia.

HENRIQUE − Uma cena de ciúmes?

GILDA − Depois de três anos de casados, Henrique? Me poupe. E ainda mais com

Sofia? (RI) Não seja ridículo. Tente com outra. Quem sabe? Tente! Mas, Sofia...

francamente. (RI)

HENRIQUE  −  Não  quero  outra. Só quero você. Mesmo antes de saber que você existia eu já

a amava.

GILDA                  −  (IRÔNICA)  Que  lindo...  Sofia  inspirando  declarações  de  amor.  Sofia!  Meus  

sapatos!

HENRIQUE − (SINCERO E CALMO) Você não me ama, Gilda.

GILDA − (CHAMANDO) Sofia! Cadê a peste dessa mulher? Sofia! Meus sapatos

vermelhos.

(ENTRA SOFIA CORRENDO. DEIXA OS SAPATOS E SAI COMICA E RAPIDAMENTE.

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GILDA CALÇA-OS DESENVOLTA E SENSUAL. HENRIQUE OBSERVA)

GILDA − Ainda bem que você resolveu dar um sopro de vida nesta casa recebendo

pessoas. Fato raro, e boa ocasião para eu botar este vestido. Estava mofando no

armário. Que tal o decote? (EXIBINDO-SE) Estou indecente?

HENRIQUE − Mesmo com hábito de freira, você seria indecente, Gilda. Seu jeito de rir,

sentar-se, de se curvar, de andar, sempre foi... obsceno. (APROXIMA-SE) Mas,

talvez, seja por isso que eu a amo.

GILDA − Você, às vezes, é bem grosseiro.

HENRIQUE − (SINCERO) Foi elogio, meu amor. Você não entendeu.

(TENTA BEIJÁ-LA. GILDA ESCAPA) Me dá um beijo.

GILDA − (IRRITADA) Não se pede beijos à pessoa amada. Espere, pois, se ela o amar,

ela oferecerá. O grande Henrique Gouveia deveria saber disso. O cara autossuficiente

que conhece tudo da vida das pessoas, das emoções das pessoas...

HENRIQUE − O que falta a você, Gilda?

GILDA − Tudo! Tudo! Sem liberdade e sem juventude a gente não é nada.

HENRIQUE− Mas, você é jovem.

GILDA − Você não é, Henrique. E a cada dia está mais... acabado. E isto não é um

elogio, ouviu?

HENRIQUE− Eu sempre fui claro com você, a respeito da nossa idade. Sempre te alertei

para isto. A degradação física após os cinquenta anos fica mais evidente do que em

alguém com vinte e poucos anos. Você dizia que não era empecilho. Que me amava.

Que amava o homem que eu era.

GILDA − Você disse bem. O homem que você era. Você agora está envelhecendo por

dentro e por fora. E tem mais, não aguento ficar enclausurada nesta casa dia e noite.

Longe de tudo e de todos.

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HENRIQUE − Eu já não lhe basto, como você dizia?

GILDA −  A  gente  se  deixa  empolgar...  Se  deixa  levar...  O  famoso  Henrique  Gouveia...  

Mas quando a realidade bate...Eu quero liberdade, Henrique! Eu quero ar! Ar!

HENRIQUE − Nós temos ar, liberdade. Esta casa, sobre o mar, é o local ideal para eu poder

escrever, me concentrar...

GILDA − E pra mim o que sobra, senhor egoísta?

HENRIQUE − Você pode fotografar aqui com calma, fazer um tranquilo trabalho artístico.

GILDA − Estou cheia de fotografar céu e mar, mar e céu. Estou cheia! Eu quero ver

gente, muita gente, da minha idade, com a minha juventude.

HENRIQUE − Cale-se!

GILDA − O quê? Repete! Vamos, repete! Manda eu calar a boca! Manda. Depois

manda eu falar. Assim como faz com os personagens de suas peças: AGORA GILDA

SAI; GILDA ENTRA; AGORA GILDA FALA; AGORA GILDA SE CALA e só fala,

quando seu mestre mandar. Você é totalmente ridículo, Henrique!

HENRIQUE − Pelo amor de Deus, pare!

GILDA − Você quer acabar com a minha noite. É duro pra você me ver nova,

exuberante, que ... sabe de uma coisa? Por que você não morre... de verdade, e nos...

e me deixa em paz?

HENRIQUE − E rica, não é?

GILDA − E rica!!!

HENRIQUE − É o fim, Gilda?

(GILDA VIRA DE COSTAS PARA HENRIQUE)

(QUADRO VIVO)

NARRADOR − Um cansaço irresistível se abate sobre o homem traído. O desejo insano de

vingança, de fazer justiça com as próprias mãos, compete com a fadiga suicida que o

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atrai para o descanso final. Deixar-se cair é a tentação. Despencar em queda livre,

sentindo o ar passar velozmente por seu corpo. E sem tempo para pensar, chegar ao

fundo do abismo com um baque definitivo. E perder toda a consciência.

(VOLTAM AO MOVIMENTO)

GILDA − Mário está atrasado. Detesto atrasos.

(HENRIQUE AGORA É FRIO E CALCULISTA)

HENRIQUE − Você nunca é pontual.

GILDA − E você é sempre irritante.

(TOCA A CAMPAINHA DA PORTA DA RUA. SOFIA PASSA CORRENDO).

(VOLTA ANUNCIANDO)

SOFIA − Seu Mário!

HENRIQUE    −  Os  acasos  da  vida, Gilda. Ou serão as coincidências do teatro? Damos a

deixa e Mário entra.

MARIO − Olá! Olá! (BEIJA HENRIQUE NO ROSTO) Desculpem pelo atraso.

HENRIQUE − Não se desculpe.

GILDA − Oi, Mário. (BEIJA-O) (GILDA VÊ SOFIA PARADA) O que ainda está fazendo

aqui?

SOFIA − Nada... nadinha...com licença.

(ATRAVESSA A CENA E SAI)

HENRIQUE − É um truque que nunca falha.

MARIO − O que?

HENRIQUE − Chegar atrasado para chamar a atenção.

GILDA − Henrique está insuportável hoje.

MARIO − O que ele disse tem sentido, Gilda.

GILDA                −  Então,  esperou  você  chegar  para  dizer  alguma  coisa  com  sentido.

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HENRIQUE  −  (CHAMA)  Sofia,  Sofia!  

SOFIA                  −  (APARECENDO  NA  PORTA)  Toda  presteza,  seu  Henrique.

HENRIQUE  −  Sirva  um  licor  pro  seu  Mário.

SOFIA                    −  No  momento já.

(SOFIA SOME E IMEDIATAMENTE ENTRA, COM UM CÁLICE NA BANDEJA)

HENRIQUE - (FALSAMENTE POLIDO PARA GILDA) É do seu gosto também, querida?

(SOFIA DÁ MEIA VOLTA PARA APANHAR OUTRO CÁLICE, MAS COMO

GILDA NÃO RESPONDE DÁ NOVA MEIA-VOLTA E SERVE MÁRIO).

GILDA                −  Já  faz  mais  de  um  ano  que  eu  não  te  vejo.

MARIO −  É...  A última vez foi na apresentação daquele musical.

GILDA                    −  Aliás,  muito  bonito...

MARIO                    −  Concordo  com  você,  mas  a  critica  não  concordou  com  a  gente...  e  daí...    

Mudando de assunto... Estou impressionado, você cada dia está mais bonita.

GILDA                      −  Obrigada,  Mário.  Você  é  muito  gentil.

MARIO                      −  Dizer  a  verdade  não  é  gentileza.  (PARA  HENRIQUE)  Parabéns  pela  mulher.

(HENRIQUE NÃO RESPONDE. SILÊNCIO CONSTRANGEDOR)

Então, quem é o cara que fará da minha próxima produção um sucesso?

GILDA                        −  O  que  será  desta  vez,  Mário?

MARIO −  Vou  produzir  outro  musical  e  com  a  ajuda,  que  espero  receber  hoje,  confio  

em não precisar mais mendigar patrocinador. Quem vem pra festa, além de nós?

HENRIQUE        −  Segredo.

MARIO                      −  Uma  pista  pelo  menos:  um  ator  famoso,  um  patrocinador  com  muita  grana,  

um diretor? Dê uma pista...

HENRIQUE  −  Na  hora  certa.

GILDA                  −  Henrique  está  assim,  hoje.  Misterioso  e  chato.

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MARIO                −  Calma,  Gilda,  Não  vamos  irritar  o  homem.  O  suspense  faz  parte  e  preciso  

desse empurrãozinho pra montar o meu espetáculo.

GILDA                    −  Corajoso...                                        

MARIO                    −  O  mundo  é  um  cassino.  Para  ganhar  é  preciso  arriscar.

HENRIQUE      −  E  se  a  bolinha  teimar  de  não  cair  no  número  que  você  escolheu?

MARIO                    −  Tento  a  sorte.  Mas  não  sou  escravo  dela.  Nem  do  acaso.  Se  o  obstáculo  

pode ser contornado eu contorno. Senão, eu passo por cima. É simples.

GILDA −  Admiro  o  estilo.

HENRIQUE  −  Simples  e  imoral.

MARIO −    Sigo  as  regras  da  vida.    Me  chame  de  imoral,  mas  não  de  ingrato.  Agradeço  

o seu interesse em intermediar esse encontro entre mim e... não sei quem...

(HENRIQUE VAI À JANELA) Quando essa misteriosa pessoa chegar é só fazer as

apresentações. O resto é comigo. Confio no meu taco. Gilda, a partir de hoje ninguém

me segura.

GILDA                  −  Voando  alto,  Mário?

MARIO                −  Se  é  para  voar,  além  do  céu  é  o  limite.  

GILDA                    −  Assim  é  que  se fala. No instante em que se perde a ambição na vida o

melhor a fazer é ceder o lugar a outro.

HENRIQUE −    Chegue  aqui,  Mário.    Venha  apreciar  a  paisagem.

MARIO −    Você  fala  tanto  disto  aqui,  que  estava  doido  para  conhecer.

HENRIQUE    −  Olha  só,  dá  gosto  ver. Lá longe, uma nesguinha de mar... com a costura das

montanhas... Olha o céu... Existe outro mais lindo? E de noite você vê estrelas. Ali

embaixo agora é breu, de dia é verde. Por detrás daquelas árvores... a estradinha

que sobe...

GILDA                −    Essa ribanceira mata qualquer um.

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MARIO              −    Quase  acabou  com  o  motor  do  carro.  Muito  bonito,  mas  não  pra  mim.

(SAI DA JANELA) Respeito seu gosto, sua opção de vida... Acontece que eu sou

cidade. Cheguei há dez minutos e já sinto falta do cheiro de gasolina e do caos do

trânsito. (RI)

GILDA                  −  O  silêncio  é  de  enlouquecer  qualquer  um.  Até  o  Henrique  enlouqueceu.  O  

homem que já ganhou prêmios por escrever textos belíssimos, agora diz que a beleza

está nas palavras de uma analfabeta. A Sofia... Vê se pode? Está louco. Detesto este

lugar.

(MARIO COLOCA-SE FRENTE A FRENTE COM GILDA. HENRIQUE CONTINUA NA

JANELA)

HENRIQUE − A cidade suga nossas forças, Mário. Acima de nós o céu, abaixo o mundo, o

inferno. Mandei construir esta casa na ponta de um penhasco, para jamais esquecer

de como a vida é efêmera.

MARIO −  Meu  Deus,  que  pessimismo.

HENRIQUE    −  Engano  seu,  Mário.  Viver  aqui,  me  faz  querer  aproveitar  todos  os  momentos  

da minha vida, pois, um vento forte pode jogar tudo abaixo.

GILDA −  Se  isto  não  é  pessimismo  não  sei  o  que  é  pessimismo.  Detesto tudo isso.

HENRIQUE − (NA JANELA, SEM SE VIRAR) Você detesta Sofia, você detesta atrasos,

detesta esta casa que é o nosso lar... Só atura tudo isso porque me ama, não é

verdade, Gilda?

(HENRIQUE VIRA-SE E VÊ OS DOIS BEM PRÓXIMOS)

MARIO − (IRÔNICO) Gilda, você vive numa casa sobre o mundo!

GILDA                      −      Prefiro  viver  no  mundo.  (RI  E  SEPARAM-SE)

HENRIQUE      −  Não!  Não  se  separem!  Parados!  Por  favor.  Repita,  Mário.

MARIO                −  O quê? Uma casa sobre o mundo?

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HENRIQUE    −  Voltem  à  mesma  posição.  (DIRIGINDO-OS COMO NO TEATRO)

Não, Gilda, assim... você, Mário, aqui, assim... Isso...

GILDA                  −  Só  faltam  os  fios  pra  você  manipular.  (IMITA  MARIONETE)

MARIO −  Calma,  Gilda. Vamos colaborar com ele.

HENRIQUE    −    Agora  Mário,  a  frase:  “−  Uma  casa  sobre  o  mundo”.

MARIO                    −  Uma  casa  sobre  o  mundo.  Assim?

GILDA −  Que  baboseira  é  esta,  Henrique?

HENRIQUE        −  A  fumaça  do  passado  se  afastou  e  vi  uma  imagem...  Como  se  já  tivesse

visto e ouvido você falar isto.

MARIO                    −  Todos    tiveram,  mesmo  que  por  uma  vez,  a  sensação  de  “dejá  vu”. São

apenas sensações. Nunca disse esta frase, nem nunca estive aqui.

GILDA                    −  Está  vendo  como  Henrique  está?  De  uma  semana  pra cá ficou desse jeito.

MARIO                    −  Ele  é  escritor.  Em  processo  de  criação,  os  artistas  piram.  Não  se  aborreça  

com ele.

GILDA                      −  Eu  não  aguento  mais.  Chega!  Chega  de  fantasia!  Nem  tudo  é  teatro,  

Henrique. Coloque os pés no chão. Tudo aqui anda nas nuvens... a casa... você...

Chega.

HENRIQUE − Gilda é prática. Gilda se regula pelo aqui e agora. Não quer saber do vamos-

ver-depois. Nem quer saber da dor escondida que não aparece no rosto, mas que

explode dentro do peito.

GILDA                −  Do que ele está falando, Mário?

MARIO              −  (RISONHO)  Não  sei.  Deve  ser  texto  da  nova  peça.

GILDA                  −  Eu  não  aguento  mais  isso.  Quero  falar  de  realidade.  Quero  falar  de  planos...  

de vida. A que horas, afinal, chega esse maravilhoso fulano ou fulana, sei lá...?

HENRIQUE −  Tudo  vem  a  tempo.  Relaxa,  querida.  O  encontro  se  aproxima.  Música?

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(GILDA NÃO RESPONDE. HENRIQUE VAI PARA O SOM.)

Beethoven. Não gosta tanto, não é Gilda? Mas, ouça só desta vez, para me fazer a

vontade. Só esta vez. Está bem?

(GILDA NÃO RESPONDE). (COLOCA A MESMA MÚSICA DO INICIO DA PEÇA).

Você gosta de Beethoven, Mário?

MARIO − Ahn? Ah... sim... muito.

HENRIQUE − Sempre tivemos gostos parecidos. Não acha, querida?

(GILDA NÃO RESPONDE) Com licença. Volto já. (SAI CHAMANDO) Sofia, coloque

dois licores. Para dona Gilda e seu Mário.

(ENTRA SOFIA. COLOCA OS DOIS CÁLICES SOBRE A MESA DE CENTRO E SAI)

(QUADRO VIVO)

NARRADOR  −    A  verdade  é  que  somos  reféns  dos  acasos.  Para  o  bem  ou  para  o  mal.  O ser

humano, entretanto, busca justificar acidentes corriqueiros ou fatais como sendo

provocados por alguma força superior. Ou acredita que já estava tudo escrito antes de

ele nascer, ou que se trata de prêmio ou castigo dado por essa força superior que

controla seus atos. Dificilmente crê que tudo não passou de um simples... acaso.

(OS DOIS PEGAM OS CALICES AO MESMO TEMPO EM QUE A MÚSICA É

INTERROMPIDA PELA VOZ GRAVADA DOS DOIS.)

MARIO − Gilda, eu te amo.

GILDA − Me tire daqui, Mário. Eu quero emoção... eu quero viver...

MARIO − Aqui, no alto, nesta casa sobre o mundo, eu conheci o amor...

GILDA − Me beije... me ajude a esquecer esta solidão.

MARIO − Eu adoro sua boca. Não é justo que soframos mais por causa de um...

GILDA − E o revólver? Arranjou?

MARIO − Sim, querida. Temos só que aguardar a oportunidade certa e...

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GILDA − Não fale. Me beije. Quero ser tua...tua para sempre... para sempre.

(CLICK DE FIM DE GRAVAÇÃO. OS DOIS ENCARAM A PLATEÍA COMO NO INICIO

DA PEÇA)

GILDA − Como ele gravou nossas vozes?

MARIO − Não faço ideia. Será que ele já ouviu? Estou com medo.

GILDA − Calma! Sem pânico. Talvez, tenhamos que antecipar nosso plano.

MARIO − Estou preocupado. Ele está meio sinistro.

GILDA − Também acho. Mas, relaxe! Enquanto não tivermos certeza, disfarcemos!

Não é a arte do teatro?

(MARIO SE DESCONTRAI E RI. ENTRA HENRIQUE)

HENRIQUE − É segredo entre os dois ou posso ficar sabendo?

MARIO − Falávamos da magia do teatro.

GILDA − De como se consegue enganar uma platéia, dependendo do talento.

HENRIQUE − Nem sempre é questão de talento. Escrevi algumas peças em que previ

a reação da plateia. Em outras fracassei nas previsões.

GILDA − Se você errou é porque não teve o talento necessário. É fácil para um bom

ator fingir o que não sente e ter sucesso.

MARIO                −  Mentira  com  aparência  de  verdade  passa  a  ser  verdade.  Regra  do  teatro  e  da  

vida.

HENRIQUE  −  Regra  do  teatro, sim, da vida, nem sempre. Quem envereda pela trilha do

disfarce é logo alcançado. Com perna curta a mentira fica no meio do caminho.

GILDA              −  Não  acredite  naquilo  que  dizem,  Henrique.  A  questão  é  escolher  a  máscara  

certa. Quer ver? Sofia! Sofia! Conto com vocês.

(ENTRA SOFIA) Sofia querida, vou lhe contar uma novidade.

SOFIA            −  Olha,  dona  Gilda.  Por  essa  luz  que  me  alumia,  não  sou  boa  pra  ficar  ciente  das  

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novas. Se for desgraça eu choro mais do que quando bezerro desmama. Agora, se

for, das boas, o berreiro é maior ainda.

GILDA                −  Sofia,  eu  vou...  oh...  Estou  sentindo  mal...  me  ajude...  água,  por  favor,  Sofia..

(SOFIA  SAI  E  VOLTA  CORRENDO  COM  COPO  D’ÁGUA)

SOFIA                  −  Pronto,  dona  Gilda.  Bebe  devagar...  assim...  está  melhor?

GILDA                − Oh... passou. Essas coisas são normais quando a gente está no terceiro mês.

SOFIA                  −  (CHORAMINGA)  A  senhora  vai  ganhar  criança?

GILDA                  −  Vou.

SOFIA                  −  (CHORAMINGA)  Ah,  seu  Henrique,  por  essa  luz  que  me  alumia,  é  uma  

bênção... Parabéns... Posso abraçar o senhor? Parabéns...

GILDA                  −  Não  seja  boba,  Sofia.  Dê  parabéns  ao  seu  Mário.  Ele  é  o  pai  do  neném.

SOFIA                  −  Ahn?  A  senhora  tem  o  desplante  de  falar  esse  disparate  na  frente  do  patrão?

(PARA MARIO) O senhor não tem vergonha?

MARIO                −  Algum  mal  nisso,  Sofia?

SOFIA                −  (CHAMANDO  A  ATENÇÃO)  Seu  Henrique!  Se  o  senhor  não  soltar  os  

cachorros em cima desses dois, por essa luz que me alumia, eu solto.

HENRIQUE  −  Calma,  Sofia.  Invenção  da  dona  Gilda.

SOFIA                    −  A senhora tá de peta comigo é, dona Gilda?

GILDA −  Não  estou, não.

SOFIA                  −  Então,  quer  dizer  que  não  tá  prenha?

MARIO                −  Dona  Gilda  não  está  grávida,  Sofia.  

SOFIA                  −  Então,  tá  de  peta  comigo,  sim,  dona  Gilda.  (SAI  RECLAMANDO) Vige, nossa!

Imbica prum canto e leva a gente junto; depois, imbica pro outro canto e diz que não é

mais pra aquele canto... Arre égua! Que desaforamento! Gente mais desparafusada...

Desgastei meu choro à toa. (SAI)

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(SAI RECLAMANDO)

GILDA − (RINDO) Viram a cara dela?

MARIO                −  Você  tem  talento.

HENRIQUE    −  Sofia  não  merecia  passar  por  isso.  Mas...  Dou  a  mão  ao  castigo.  Devia  se  

apurar na arte de fingir, querida.

GILDA − Eu disse que era fácil.

MARIO − Para mim não foi. Fico nervoso.

HENRIQUE − Seu forte é produzir o espetáculo. Tragédias, farsas... (CHAMANDO) Sofia!

(SOFIA ENTRA) Sirva... os canapés.

SOFIA                  −  Tá  bom.  Não  é  assunto pro meu alvitre, seu Henrique, mas mulher grávida

(OLHA PARA GILDA) não pode comer canapé. Faz mal pro neném.

GILDA                  −  (FINGINDO)    Obrigada  pelos  cuidados,  Sofia  querida.  (RI)

SOFIA                −    Hum...      (SOFIA  SAI)

MARIO                −  (OLHA  RELÓGIO)  É  provável  que  a  figura  convidada  nem  apareça  mais.

GILDA                −  É  claro. É muito otimismo achar que alguém se arriscará por estes caminhos, à

noite.

MARIO −  Com  certeza, não vem mais.

GILDA − Deve ter se perdido neste fim de mundo.

HENRIQUE − Quem sabe ele não chega de repente?

(QUADRO VIVO)

NARRADOR−   (PREPARANDO BEBIDA) Deus e o diabo são faces de uma mesma

verdade. Um Deus brincalhão é difícil de imaginar. Suponhamos, então, que foi um

demônio arteiro que misturou amor, sexo e ... acasos.

(VOLTA MOVIMENTO)

GILDA                  −  Faça  alguma  coisa,  Henrique.  Telefone para saber se ele vem ou não. Vamos

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ficar aqui esperando feito dois de paus?

(HENRIQUE VÊ UM REVOLVER SOBRE O SOFÁ)

HNRIQUE      −  Quem esqueceu isto? (PARA MÁRIO) É seu? (COLOCA SOBRE A MESA)

MARIO              −  É  sim.  Caiu  do  meu  bolso.

(MARIO TENTA APANHÁ-LO. HENRIQUE SE ANTECIPA)

HNERIQUE − (BRINCANDO) Você vem a uma festa em minha casa e traz um revólver?

(APONTA PARA MÁRIO E GILDA)  ” −  Deixem as armas com o xerife antes de entrar

no saloon”. Bang! Bang!

GILDA − Não gosto de brincadeiras com armas.

HENRIQUE − (IRONICO E BRINCALHÃO) Não é brincadeira. (RI)

MARIO − Vim armado, porque esta região é deserta. Uma arma protege...

HENRIQUE    −  (INDO  Á  JANELA  COM  A  ARMA  NA  MÃO) A vida é cheia de inesperados. Os

sucedidos de importância brotam sempre dum pedacinho de tempo, assim no

momento, de repente. Acidente, morte, desmaio, chegada... e partida. Não é excitante

o imprevisível que a vida nos proporciona? Nós três balançando sobre o mundo,

equilibrados na ponta de um penhasco à espera do imprevisto, do casual, do...

acidental, que a qualquer momento pode entrar por aquela porta..

(ENTRA SOFIA COM OS CANAPÉS. OLHA HENRIQUE COM O REVOLVER)

(HENRIQUE COLOCA O REVOLVER SOBRE A MESA E SERVE-SE)

HENRIQUE    −  Está  delicioso.  Coma,  Gilda.

GILDA                  −  Não  quero.

HENRIQUE  −  Mário?

MARIO                −  Não...  agora  não...  mais  tarde.

SOFIA                  −  Come  aí,  seu  Mário.  Estão  ótimos.  Seu  Henrique  ajudou  a  fazer.  Não  foi  

patrão?

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HENRIQUE  −  Ajudei,  Mário.  Coma.

MARIO                −  Não,  não...Eu...  eu não estou com fome...

GILDA                  −  Eu  também  não.

SOFIA                  −  Come  aí,  dona  Gilda.  O  bebê  “percisa”.

GILDA                  −  Saia  daqui,  Sofia.  

SOFIA                  −  (SAINDO  COM  SORRISO)  Ixe  nossa!  Agora  deu!

HENRIQUE – (SAINDO ATRÁS) Para o champanhe não aceito recusa. (EM OFF) Sofia!

Vamos servir o champanhe.

SOFIA                − (EM OFF) Todo dispor, patrão.

(MARIO PEGA O REVOLVER E ENFIA NO BOLSO)

(GILDA CORRE PARA ELE)

MARIO −  Não temos mais por que esperar. Se é pra fazer, vamos fazer logo.

GILDA              −  Calma, meu amor. Vamos aguardar a melhor hora. Sofia daqui a pouco irá

dormir e aí... Calma, meu amor. (BEIJAM-SE)

(ENTRAM SOFIA E HENRIQUE COM CHAMPANHE E BANDEJA COM QUATRO

TAÇAS)

HENRIQUE  −  Sirva  o  champanhe,  Sofia.

GILDA                  −  Sai,  sai  pra lá, Sofia. Eu mesma coloco.

SOFIA                  −  Ixe!  Nossa!  Deu  a  peste.    (SOFIA  SAI)

(GILDA SERVE AS TAÇAS. MARIO PEGA A SUA E VAI BEBER)

HENRIQUE − Espere, Mário. Brindemos a este momento. À esta festa tão especial,

principalmente para você. (PEGAM AS TAÇAS) Ergamos nossas taças como se elas

contivessem a essência de nossas vidas. Bebamos, agora, de uma só vez toda nossa

existência. Que num único trago possamos sorver da vida todas as grandes emoções.

Do nascimento à morte. Num único trago.

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(BEBE E É ACOMPANHADO PELOS OUTROS. ENCHE A QUARTA TAÇA)

MARIO − Um brinde um tanto ou quanto macabro. (RI)

GILDA                − Do jeito que Henrique está nesta noite.

MARIO                − (PEGANDO A QUARTA TAÇA) Excelente champanhe.

HENRIQUE − Não, não faça isto. Esta taça tem dono.

(PEGA A TAÇA E COLOCA-A SOBRE O PEDESTAL)

GILDA                  −  A  esta  hora  não  chega  mais  ninguém,  Henrique.

HENRIQUE  −  Não  é  para  quem  vai  chegar.  É  para  quem  já  está  aqui.

GILDA −  Por  favor,  não  misture  Sofia  conosco.

HENRIQUE  −  Não  é  Sofia.

GILDA −  Que  palhaçada  é  essa?

MARIO −  (IRÔNICO)  Oh, um enigma.

(QUADRO VIVO)

NARRADOR  −  Quando  o  diabo  percebe  alguém,  com  o  coração  transbordando  de  raiva,  

encarna nele a alma da onça caçadora. O infeliz, a serviço do demônio, ganha a

esperteza do animal. E a coisa se dá assim: A pintada bota olho na presa, fica

zanzando em volta, negaceia, vai que vai... mas não vai. Não tem pressa. Quer

saborear o que já está ganho. Para se divertir por mais tempo, continua com o jogo.

Brinca, se esquiva, se embrenha na sombra, se mostra no claro, tudo para dar nos

nervos da caça. De repente, a besta-caçadora se amoita, fica quietinha, de tocaia,

nem respira... E quando a caça ajuíza que passou o perigo, tarde demais. A onça já

está a meio-caminho do banquete.

(VOLTA O MOVIMENTO)

HENRIQUE    −  Não  é  palhaçada,  não  é  enigma. Vamos prestar uma pequena homenagem às

coincidências da vida. Ao acidente que fez Lúcia escorregar numa pedra e ser levada

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pela correnteza; aos maravilhosos esbarrões que fez você entrar na minha vida, meu

amor. E ao imprevisto que pode nos surpreender a cada instante. Portanto, é justo que

prestemos tributo ao nosso quarto convidado: o acaso.

GILDA − O que você pretende, Henrique? O que está acontecendo com ele, Mário?

HENRIQUE  −  (TOM  RECITATIVO  DELIRANTE)  “E  como  fruta  verde  quanto  travo  amargo  

adicionaste  ao  prazer  da  minha  mordida”.  

GILDA              −  Meu Deus, você só diz coisas sem sentido. Estamos perdendo horas de

sono para ficar ouvindo bobagens. Essa festa perdeu a razão de ser.

HENRIQUE  −    A  pressa...  A  juventude  é  sempre  apressada.  Esse açodamento atrapalha o

viver, minha mulher. Não se aflija se amanhã dormir até tarde. Só se espreguice na

cama depois que o sol passear inteiro no céu. Você sempre gostou de cama. Calma,

meu bem, é galanteio de quem gosta. De quem gosta de te ver jogada na cama até

tarde. De quem gosta de admirar seu mulher bonita, largado... pernas e braços

dobrados sensualmente... seu corpo escorregado para fora do lençol e mostrando seu

belo traseiro.

(MARIO PIGARREIA)

GILDA −  Henrique!

HENRIQUE      −  Lição para aprender, Mário: Assim como o dinheiro, os traseiros, os belos

traseiros, tem prioridade sobre inúmeros valores tidos como importantes. Laços

morais, humanitários, políticos, afetivos, fraternais e até filiais se desfazem. Sólidos

vínculos se diluem, se esfumaçam, por causa de um belo traseiro. E você, Gilda, tem

um belo traseiro.

GILDA                −    Você  está  me  humilhando,  me constrangendo na frente do Mário.

(GILDA LEVANTA-SE)

HENRIQUE − (BARRANDO GILDA) Aonde você vai? Nós somos os anfitriões e, portanto,

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todos nós vamos ficar para receber o nosso convidado.

GILDA                    − Henrique, você enlouqueceu. Fala, fala coisas sem nexo.

HENRIQUE − Perdão, Gilda. Você está corretíssima. Chega de falar. O teatro precisa de

um texto, mas é a ação que prende a atenção do público.

MARIO − Não estamos fazendo teatro.

HENRIQUE − Não? É claro que estamos. Todos nós. O teatro está no sangue de todos os

homens. As máscaras... Ah, como são importantes. Como nos protegem. Como

escondem bem a face da nossa verdade...

GILDA                  −  Henrique  está  certo, Mário. O público quer ação, e quer chegar logo ao final.

MARIO −  (TIRA O REVOLVER DO BOLSO) Muito bem, se é assim, vamos ao acerto de

contas.

HENRIQUE – (SIMULANDO UM DUELO DE FAROESTE) Quer o quê? Um duelo para ver

quem acaba com a mocinha?

GILDA −      Acabou  a  diversão,  papai.  Estamos  dispostos  a  tudo. Acabou o jogo.

HENRIQUE – A esperança é a derradeira. Enquanto está vivo tem adiamento.

MARIO              −  Acabou  a  vida  para  você.  Para  nós  começa  agora.    Eu  amo  Gilda  e  ela  me  

ama. E você é obstáculo difícil de ser contornado.

HENRIQUE −  Eh,  juventude  afobada! Tudo que é bem da minha posse passará para você,

meu filho. Incluso no pacote a viúva-madrasta. Pela maneira da correção da vida

quem deverá desembarcar primeiro sou eu.

MARIO −  Mas  quando você morrerá? Quando? A vida é muito lenta e nós, você tem

razão, nós temos pressa. Mario Gouveia, filho do grande Henrique Gouveia aprendeu

com ele a provocar vida e fazê-la acontecer espremida em duas horas.

GILDA −  Aprendemos  a  criar  roteiros.  Sem  interferência  de  acasos,  não  é  querido?

MARIO −  Coloque  champanhe  para  mim.  Minha  boca  está  seca.

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(GILDA COLOCA CHAMPANHE NAS TAÇAS)

GILDA                      −  Fique  calmo,  meu  amor,  Tudo  vai  se  resolver.

MARIO                      −  Satisfaça  nossa  curiosidade.  Como  descobriu?

(MARIO BEBE DE UMA VEZ. GILDA COLOCA MAIS)

HENRIQUE – Mais uma obra do acaso. Uma semana atrás eu gravava um texto para uma

peça tendo como fundo uma sonata de Bethoven. Eu saí, esqueci microfone,

gravador, tudo ligado. Vocês chegaram... Ou quem sabe, o Mário já estava escondido

na casa, enfiado num canto, igual ladrão que vem roubar um bem precioso. Ou então,

foi avisado de que o marido não estava em casa e veio correndo feito amante patético

de folhetim barato. Quando voltei encontrei vozes violentando a grandeza de um

gênio. Palavras soltas, no ar... palavras ao acaso...

(ENTRA GRAVAÇÃO COM PALAVRAS DO DIALOGO, DE FORMA ALEATÓRIA)

HENRIQUE  −    (DELIRANTE) Eu as via... podia peg´-las... (CITANDO) “As palavras têm

canto e plumagem”.   Estas são plumosas da cor do corvo. Estas entoam um canto

lúgubre, agourento... (CITANDO) “As palavras têm canto e plumagem”.

(HENRIQUE CORRE COMO DEMENTE, ATRÁS DAS PALAVRAS QUE ESTÃO

SENDO DITAS) ...solidão... solidão... amor... beijo... beijo... boca... boca... boca...

(VAI ATÉ GILDA E CAI DE JOELHOS DIANTE DELA)

GILDA    −  Você  quer  a  minha  boca?  Você  quer  um  beijo?  Atenderei  seu  último  desejo.                      

Venha, lhe dou a minha boca (BEIJA-O), dou o meu corpo, lhe dou a minha

vagina... só não dou a minha juventude. (RI) Vamos acabar logo com essa

pantomima, Mário. (BEBE)

HENRIQUE    −  (VOLTANDO À RAZÃO) Assassinato é crime.

MARIO                  −  Suicídio  não  é.  Você  vai  se  suicidar  e  nós  somos  testemunhas  do  seu  

precário estado mental.

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GILDA                  −  Tanto  que  marcou  consulta  com  o  psiquiatra.

HENRIQUE  −  Eu?

GILDA                −  Lembra-se que mandou Sofia telefonar para o dr. Jonas, marcando consulta?

HENRIQUE −  Para fazer óculos novos.

GILDA −  Troquei  o  número  do  telefone  e  Sofia  marcou  consulta  com  Dr.  Jonas,  o  

psiquiatra. Para a próxima semana.

MARIO              −  (RI)  Não  falte.

GILDA −  E  se  isto  não  for  suficiente  para  o  juiz  decidir  pelo  suicídio,  não  esqueça:  

Sofia o viu com a arma na mão há poucos minutos.

HENRIQUE     −    Meus  dois   eficientes   discípulos.  Muito   bem.  Agora,   sigam  o   “script”.  Atire.

Mas, não atire no coração, pois este você já matou, meu filho.. Atire na cabeça, e

rápido, porque se me deixar usá-la talvez perca a chance. Atire. Não me decepcione,

mais uma vez.

(MARIO CHEGA PERTO DE HENRIQUE QUE ESTÁ AJOELHADO E ACIONA

O GATILHO. DESCARREGA A ARMA E NENHUM TIRO É DISPARADO)

MARIO              −  Onde  você  colocou  as  balas?  

(HENRIQUE APONTA A JANELA)

GILDA −  Louco  maldito.                            

HENRIQUE − (TIRA UM REVOLVER DO BOLSO) Você jogou e não foi feliz. A roleta não

parou onde você queria. Agora é a minha vez, Mário. Você é um jogador, você disse,

e portanto deve ter o e espírito necessário para apreciar o jogo que vou propor.

GILDA                  −  Estou sentindo mal... Estou ficando tonta... (DESMAIA)

HENRIQUE  −  (CHAMA)  Sofia!

(SOFIA ENTRA)

SOFIA                  −  Chamou? Ih! Outra vez? Que que é isso? Não tô achando graça nenhuma.

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HENRIQUE  −  Gilda  está  passando  mal  de  verdade.  

SOFIA −  Viu no que deu caçoar de mim? (TENTA REANIMAR GILDA) Oi, dona Gilda,

acorda... Vou buscar uma água pra ela. (SOFIA SAI)

MARIO                −  Está  vendo  o  que  você  fez?

HENRIQUE  −  Eu  não  fiz  nada.  Alguém  fez.  (SOFIA  ENTRA COM  COPO  D’ÁGUA)

SOFIA                    −  (RESPINGANDO  ÁGUA  NO  ROSTO  DE  GILDA)  Acorda,  dona  Gilda.

HENRIQUE −  (CUIDANDO  DE  GILDA)  Você  gosta de mim, Sofia?

SOFIA −    É...  o  senhor  é  bom.  Não  aporrinha.

HENRIQUE  −  E  da  patroa,  o  que  você  acha?

SOFIA                −  Por  essa  luz,    se  é    pra    contar  lorota  é  melhor  o  senhor  perguntar  pra  outro.

HENRIQUE  −  É  pra  falar  a  verdade, Sofia.

SOFIA −  Vou  falar  verdade,  depois  não  reclama. (JOGA ÁGUA) Acorda, dona Gilda.

Bão... essa aí, não é porque ela tá desmaiada não, mas ela não é santa da minha

devoção. Ah não é, não é. Vou dar de exemplo. Patrão, outro dia ela pisou no meu pé

e pediu desculpa pro senhor? Nem pra mim. Nadinha. Se viu? E aquela bobice de

bebê? O senhor  foi  “tistimunha”. Olha, por essa luz que me alumia, tá atravessado.

Foi o mesmo que oferecer sapato pra cobra. Isso ofende, coronel. Fazer de boba na

frente de todo mundo. (JOGA ÁGUA) Acorda, dona Gilda!

(GILDA VAI ACORDANDO. SOFIA SE ASSUSTA) Ih... acordou... Bom... Posso ir?

HENRIQUE  −  Pode.  Sofia.  E, olhe, o acaso chegou e vai deixar um presentão pra você.

SOFIA                  −  Por  essa  luz,  que  não  sei  quem  é,  não  senhor.

HENRIQUE  −  Não  sabe  quem  é quem?

SOFIA                    −  Esse  tal  de  seu  acauso.

HENRIQUE − Não precisa saber. Não é promessa. Mas pode ser que chova na sua horta.

SOFIA                −  Tomara  que  Deus  exista  e  tenha  orelha  e  ouvido  pra  escutar,  coronel.

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(SOFIA SAI)

GILDA − (ACORDANDO) Oh, Mário... você...

HENRIQUE − Não é Mário. Sou eu, Henrique. Ah, as palavras, os nomes surgem

ao sabor do momento.

GILDA − Henrique....

HENRIQUE − Não se aborreça, querida. Só porque trocou meu nome pelo do Mário. Eu

compreendo. As mulheres da minha vida sempre se misturaram na minha cabeça.

Lembra quantas vezes te chamei de Lúcia? (PARA MÁRIO) Vê, Mário? Palavras

ao acaso revelam mais do que as concebidas pela razão.

MARIO                  − Por favor, seja direto. Qual o seu objetivo?

HENRIQUE − (MANEJANDO O REVOLVER) Aqui do alto, desta casa sobre o mundo,

presenciando dia após dia a dança imperturbável da natureza, compreendi e aceitei o

caminho a percorrer. O sol mostrou-me que pode existir beleza tanto na aurora quanto

no ocaso. É só questão de ponto de vista. Ah, e o mar... Ah, o mar sou eu...

GILDA − Você está louco.

HENRIQUE − Não, Gilda, eu não estou louco. Eu estava louco. Louco de amor por você.

Meu amor tinha a profundeza oceânica. Infelizmente, da onda mansa de um grande

amor me transformei na vaga voraz e gigantesca de um grande ódio que engole tudo

e todos...

(QUADRO VIVO DE GILDA E MARIO)

NARRADOR − Não há manifestação de acaso mais excitantemente perfeita do que a roleta

russa. Três pessoas em torno de uma arma. Três pessoas e somente uma bala. Uma

delas será vítima do acaso que acionará a bala na hora certa. É genial.

Diabolicamente genial. Não saber para quem o demônio apontará o seu dedo. Esperar

o inesperado que dá sentido e beleza ao mistério de viver e morrer. É genial!

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(VOLTA MOVIMENTO)

HENRIQUE − Você perguntou qual o meu objetivo, Mário. Como já disse, propor um jogo.

(COLOCA O REVOLVER NA CABEÇA E ACIONA O GATiILHO) Viram? As chances

de continuar vivo são bem razoáveis. É a sua vez, Mário. Neste caso, querida,

mulheres por último. Vamos.

MARIO − (NERVOSO) Você passou do limite.

HENRIQUE − Você me pede que tenha limite, mas você já perdeu o seu. Olhe no espelho.

Você agora é personagem de um melodrama derramado, sem limites. Veja, suas

emoções, meu filho. Estão pulando pela boca, pelos olhos, pelos gestos.

MARIO − Você não pode me obrigar a me matar.

HENRIQUE − Não vou obrigá-lo. Vou tentar convencê-lo. Veja bem, Mário. A vida é feita de

pequenas mortes. A todo o momento você morre um pouco. Agora, compare este

momento, em que está diante da morte, como o momento do primeiro coito com a

mulher desejada. Você sente profunda excitação que o acompanha, até penetrar no

templo onde você imola seu corpo e sua alma à deusa da loucura. É um momento

eterno que, paradoxalmente, dura poucos segundos. Vamos, Mário. Experimente um

pouco deste orgasmo sem volta.

GILDA − Isto é loucura.

HENRIQUE − (RECITANDO) “Deste  corpo  quero  descolar  a  carne  fétida  e  deixar  apenas  a  

essência”. Aproveitem a oportunidade que estou lhes dando. (APONTA O

REVOLVER PARA MARIO) Uma bala apenas. Suas chances são grandes. É preciso

não ter sorte para não acertar.

MARIO − Não seja bobo.

HENRIQUE − Você não é um bom anfitrião. Estamos prestando uma homenagem ao

acaso, esqueceu? Não seja ingrato com nosso convidado. Lembre-se, você está no

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mundo graças a um espermatozóide que, por conta do acaso, alcançou o óvulo.

(GILDA LEVANTA-SE E TENTA SAIR. A PARTIR DAQUI HENRIQUE PASSA A SER

SÉRIO E VIOLENTO)

HENRIQUE − (SEGURA GILDA E AMEAÇA-A COM REVOLVER) Você não vai sair daqui.

GILDA − (HISTÉRICA) Deixe-me.

HENRIQUE − (EMPURRA-A PARA O SOFÁ) Sente-se. Vamos, Mário. (MÁRIO NÃO

REAGE) Já que você não quer, serei obrigado a fazê-lo.

(APROXIMA A ARMA DA CABEÇA DE MÁRIO)

MARIO − Você não teria coragem de matar seu próprio filho.

HENRIQUE − (TRISTE) É... Meu próprio filho... (ACIONA O GATILHO)

GILDA − (GRITA) Ai!

(A ARMA NÃO DISPARA. ENTRA SOFIA CORRENDO)

SOFIA − Chamou, dona Gilda?

HENRIQUE − Não, Sofia. Saia!

SOFIA − (SAINDO) Ah, outra... outra daquelas...

HENRIQUE − Desta vez sua música não tocou, Mário. Quem sabe, na próxima.

(HENRIQUE OFERECE A ARMA PARA GILDA)

GILDA − (CÍNICA) Chegou a minha vez de oferecer uma dança ao nosso convidado.

HENRIQUE − Enfim, alguém pegou o espírito do jogo. É a sua vez, querida.

(GILDA PEGA A ARMA)

MARIO − Não!

GILDA − Mário. Não dê importância à minúscula questão de estar vivo ou morto. Este

mundo é violento mesmo. (GILDA LEVA A ARMA Á CABEÇA)

HENRIQUE − Você sempre me surpreende, Gilda.

GILDA − Por que não decidirmos nós mesmos a hora de morrer, ao invés de ficarmos

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esperando pelo câncer, pelo atropelamento ou pela bala perdida? Não é verdade, meu

autor favorito?

MARIO − Estão todos loucos? Não, Gilda!

HENRIQUE − Parabéns. A criatura supera o criador. Não é novo, mas sempre encantador.

(GILDA RETIRA A ARMA DA CABEÇA E OLHA-A)

GILDA − (GARGALHADA) Inventar um texto é muito fácil, Henrique. Provei mais uma

vez. E todo o valor que você se atribui como autor de teatro, nada mais é do que pura

pretensão. Você criou um roteiro e achou que iríamos seguí-lo. Ridículo.

HENRIQUE − Bela interpretação.

GILDA − Vou dar-lhe agora um pouco daquilo de que você não me poupou durante

esses anos: seu ranço profissional. Atenção. Vamos lá: AGORA GILDA APONTA A

ARMA PARA HENRIQUE. AGORA HENRIQUE SENTA. Sente-se, vamos. AGORA

MARIO CHEGA PERTO DE GILDA E FALA.

MARIO − Gilda, eu a amo.

GILDA − (CONTINUANDO A ENCENAÇÃO) −  AGORA GILDA ANDA E HENRIQUE

OLHA PARA MARIO QUE VAI BEIJAR GILDA.

MARIO − (BEIJA GILDA) Por um momento, pensei que você fosse se matar. Deixe

comigo.

(TOMA A ARMA DA MÃO DE GILDA. APONTA PARA HENRIQUE).

HENRIQUE − (IRREAL) Zombaste de mim, criatura passageira. Gotejaste teu fel, tua fúria,

teu medo em minhas noites laceradas.

GILDA                    −  Atire  logo,  Mário.

(MARIO FECHA OS OLHOS E ATIRA DIVERSAS VEZES. A ARMA ESTÁ

DESCARREGADA)

(MARIO SE DESESPERA. AGARRA HENRIQUE QUE NÃO REAGE. MARIO

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DESISTE E SENTA-SE CANSADO)

HENRIQUE − (AINDA EM TOM IRREAL) A vida é curta. Não há tempo para guardar

rancores. Se sente amor, ame com toda a intensidade. Se sente ódio, odeia até a

última de suas forças. Assim como o boêmio ama a lua, ou Proust que odeia o tempo

perdido.

(QUADRO VIVO)

NARRADOR − (ACENDENDO CIGARRO E OLHANDO FUMAÇA) Se colocarmos o

elemento químico  “A”  sob  a  ação  do  elemento  “B”,  esta  ação gerará um terceiro

elemento químico “C”  talvez, muito mais poderoso e que jamais suporíamos estar

contido nos elementos  “A”  e  “B”.  Esta  mutação  química vai depender grandemente do

calor exercido.

GILDA − Nós sabíamos onde queríamos chegar. Pena que nosso plano falhou. Mas,

você, eu não entendo, já deu mil voltas e não chegou a lugar algum. Se desejava

vingar-se de nós, por que não o fez usando esta arma?

HENRIQUE − Ainda não perceberam? A roleta russa foi apenas a inspiração. Tiros,

sangue... não é o meu estilo. Vocês me conhecem.

GILDA − Isto é tortura, Henrique. Chega. Nós vamos embora. Fique com seu

dinheiro e com a sua loucura. Não me importa mais.

HENRIQUE − Tarde demais. Gilda. O acaso já chegou na nossa festa, e como penetra

indelicado se apossou dos nossos bens. Enquanto vocês temiam a roleta russa, uma

outra roleta... à francesa... estava sendo jogada. Champanhe! Uma dessas taças

continha veneno ou ... (PEGA A TAÇA QUE ESTÁ NO PEDESTAL)... contém. Cada

uma destas pequenas bolhas espumantes pode encerrar um veneno mortal. (LARGA

A TAÇA E PEGA OUTRA VAZIA) Ou será que ele já está percorrendo a corrente

sanguínea de um de nós? Invadindo os meandros do nosso cérebro e, sem fazer

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escândalo, sem estrondo nem rugido, está serenando a pressa das ambições,

borrando a cor das vaidades ou secando a fonte das angústias?

(HENRIQUE SENTE TONTEIRA)

GILDA − (RI) Você pensa poder controlar a vida como se fosse uma peça de teatro.

Veja, você... Você foi o escolhido do acaso. Você também previu isto?

HENRIQUE − Claro, querida. Tudo está acontecendo como previsto. Que mais pode almejar

um artista do que representar sua própria morte?

(HENRIQUE SENTE NOVA TONTEIRA)

GILDA                  − Mário, Mário, veja... Henrique está morrendo pelas próprias mãos. Não vamos

precisar... Mário... Mário...

(MARIO ESTÁ SENTADO COM OS OLHOS FECHADOS)

Mário... (GRITA) Mário...

HENRIQUE  − Mário está morto.

GILDA − Mas você... você está tonto...você disse que... Mário...

HENRIQUE    − Não fique confusa, querida. Estou tonto, sim. E com a boca seca. Você

também está, não é? Mário também estava com a boca seca.

GILDA − Você...

HENRIQUE – Claro que não poderia deixar tudo por conta do acaso. Ele foi desleal comigo

quando colocou você no meu caminho. (PEGA A QUARTA TAÇA) Matei o acaso que

envenenou a minha existência. (ENQUANTO HENRIQUE FALA GILDA MORRE

CALMAMENTE, NO CHÃO) Não dependo mais das forças imprevistas. Eu escolhi o

cálice, Deus. (RI) Te damos o nome de Deus, mas não serás o... acaso? Morro para

ver a tua face ou será que a morte é outra de tuas armadilhas? Outra de tuas ilusões?

Eu te venci. Agradeço a ti, pela vida escorregadia que me destes, mas a devolvo neste

momento para que faças com ela o que melhor desejares. Decidi sobre minha vida.

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Agora, decido sobre minha fortuna. Sofia! Sofia!

(HENRIQUE ESTÁ CAÍDO, PRATICAMENTE MORIBUNDO SOFIA ENTRA

COMICAMENTE E REAGE AO QUADRO)

Sofia, chegue aqui. Pegue aquela maleta ali embaixo. (SOFIA PEGA) Abra-a!

SOFIA − Patrão! Quanta grana!

HENRIQUE − É tudo seu.

SOFIA − Uau, patrãozinho!. Era isso que o senhor... isso era do seu acaso?

HENRIQUE − Era. Eu joguei com o acaso e ele perdeu. Agora é tudo seu. Eu fiz chover na

sua horta, Sofia.

SOFIA − Alagou, patrão, alagou...

(SOFIA SE AFASTA, OLHANDO O DINHEIRO E PARA EM QUADRO VIVO)

HENRIQUE − É tudo seu. Tudo. Eu venci o acaso!

(DEITA AO LADO DE GILDA, OU SOBRE ELA, E MORRE)

NARRADOR− O demônio sorri toda vez que o acaso intervém nos planos do homem. Desta

vez, porém, o acaso não pôde completar sua obra. Alguém provou que pode burlar o

acaso. Enganá-lo. Antecipando-se a esta força misteriosa, o homem pode sair

vitorioso desta batalha. Não é difícil. Basta ser calculista e determinado. Desta vez, o

diabo engoliu sua gargalhada.

(PEGA A BEBIDA QUE ESTAVA BEBENDO E BRINDA)

Saúde! (BEBE E SAI)

(SOFIA VOLTA A MOVIMENTAR-SE)

SOFIA − (OLHANDO A CENA) Êta ferro! Bebe, bebe, fica tudo doidão e depois ... dorme

que nem defunto. VIrge Nossa! Ah, patrãozinho, que beleza!

(DANÇA ABRAÇADA Á MALETA. SENTA-SE COMO SE FOSSE DONA DA CASA.

SERVE-SE DE CANAPÉ. COME CALMAMENTE. LEVANTA-SE RÁPIDO. PEGA A

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TAÇA DO ACASO QUE ESTÁ NO PEDESTAL. FAZ BRINDE)

Ao patrãozinho e ao tal do seu acauso!

(BEBE DE UMA VEZ SÓ. A LUZ VAI CAINDO., ENQUANTO SOFIA SENTA-SE

CALMAMENTE)

(OUVE-SE A GARGALHADA VITORIOSA DO DIABO)

**** F I M ****