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Mandíbula Vinicius Soares

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Mandíbula

Vinicius Soares

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Mandíbula

(Vinicius Soares)

Personagens

Delegado Régio

Tadeu

Crista

Maria das Graças de Freitas

Porteiro Dione Walker

Repórter

Início

(4 esteiras de corrida dispostas em cena, uma para cada personagem. Ao longo da tensão crescente entre eles, cada personagem correrá, causando a exaustão em sua fisicalidade e na atuação)

(Régio anda numa esteira lentamente, lê o livro Elogio da Loucura, de Erasmo)

Régio =  Nota  sobre  a  minha  morte.  Erasmo.  Elogio  à  Loucura:   “Vamos  parar  por aqui, pois eu acredito que vocês podem muito bem observar o quanto o amor próprio proporciona satisfação a todos e a cada um em particular. O amor próprio tem por ímã a adulação e os dois muito se assemelham pois o amor próprio se acaricia em si mesmo, enquanto a adulação acaricia os outros. A adulação está desacreditada nos dias de hoje, pelo menos por parte daqueles para quem as palavras valem mais que os fatos. Acreditam que a sinceridade é

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incompatível com a adulação, enquanto poderiam dar-se conta de quanto se enganam simplesmente observando os animais que lhe demonstram o contrário. Qual deles é mais adulador que o cão e ao mesmo tempo o mais fiel? Qual acaricia mais que o esquilo, mas qual é mais amigo do homem que este? A menos que não pretendesse considerar mais úteis ao homem os leões ferozes, os tigres cruéis e os irriquietos leopardos. É bem verdade que há uma adulação, certamente perniciosa, que por vezes a maldade e a ridicularização utilizam para arruinar os pobres ingênuos. Mas, pode-se dizer, é um grande mal ser enganado. Há um pior ainda: não ser enganado. Erasmo. Encomium, ID EST, Stutitiae Laus.

(Dione e Régio estão na esteira. Aumentam a velocidade gradativamente. Dione aumenta mais que Régio, ficando mais cansado)

Dione = Eu juro por Deus e minha mãezinha que já está a sete palmos desse chão que eu não vi nada de suspeito não. Ali ninguém entra não doutor. Os vigias ali tudo tem hombridades para o serviço. O senhor pode perguntar pros familiar da gente também, ninguém entra ali sem ter a vida pesquisada, ali ninguém gosta de gente envolvida com parada ruim não.

Régio = Há quanto tempo o senhor está no Rio?

Dione = Tem uns trinta anos doutor. E nesse tempo todo nunca vi nada desse tipo. Como é que o ser humano faz dessas coisas? Eu num sei. E nem quero saber. O senhor deve ver essas coisas todo dia, essas histórias estranhas que não deixam a gente dormir e eu não durmo faz uns três dias já, fico acordado pensando naquilo...por isso que vim aqui falar com o senhor, mas num sei quem pôs aquele treco lá não...

Régio (cortando Dione) = Era o seu turno, o senhor não viu quem colocou o embrulho?

Dione (nervoso) = Surgiu do nada doutor. Quando vi, já estava lá, que nem mágica.

Régio (revelando certa autoridade) = Senhor Dione, lamento dizer, mas nada surge do nada. E se o senhor acredita que as coisas aparecem assim, de repente, só existem duas possibilidades. A primeira: o senhor está com sérios problemas mentais. A segunda: foi o senhor quem pôs o embrulho na portaria.

Dione = Foi eu não doutor, num sou maluco não, eu já falei, eu não vi nada, apareceu do nada. Sou dessas coisas não doutor, eu sou direitinho, to com tudo pago, as prestações pagas, não tem nada sujo no meu nome não.

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Régio (abranda o tom da voz em atitude ameaçadora) = O senhor vai ficar detido aqui. Se não é testemunha, é suspeito.

Dione = Doutor, eu não posso ficar aqui não, amanhã tenho turno de novo doutor. Se eu faltar vou perder o emprego, dinheiro, tô com as contas pra pagar ainda, tenho três filhos e uma mulher pra sustentar doutor, posso ficar aqui não, posso não doutor...

(Régio faz um gesto de cansaço)

Régio = Senhor Dione. O senhor está detido até a segunda ordem. O senhor não quer colaborar comigo, então não tem porque eu colaborar com o senhor.

(Luz se apaga em Dione, quebra brusca, baixo toca jazz, luz acende na cadeira onde estava Dione, ambientação de bar, tudo é feito com rapidez. Dione vai para a esteira, velocidade aumentando gradativamente. Entra Crista com dois copos)

Crista = E ele disse que não sabia de nada. Surgiu de repente uma mandíbula na frente dele?

Régio = O cara está transtornado. Parece ser uma pessoa boa.

Crista = E quem não parece?

Régio = Essa merda tinha que acontecer justamente agora? Perdi minhas férias. Viagem marcada para o Porto de Galinhas.

Crista = Não era França?

Régio (brincante) = França é coisa de viado. Mulher e viado. Homem que é homem não vai pra França.

Crista = Que horror.

Régio = Pode ver, o sonho de todo o viado é ir pra França.

Crista = E o cara vai ficar detido até quando? Ser pobre é foda.

Régio = Não vou por um suspeito na rua. E mesmo que fosse rico, estaria lá onde o paraíba está agora.

Crista = Você disse que ele era uma boa pessoa.

Régio = Sim. E você foi quem disse que ninguém é uma boa pessoa.

Crista = Não coloque palavras na minha boca.

Régio = Queria colocar outras coisas na sua boca, mas...

Crista = Quantos porteiros existem no condomínio?

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Régio = Uns dez ao todo.

Crista = Também não são suspeitos?

Régio = Sim. Cinco estão detidos.

Crista = Você está louco? Agora deu pra prender os pobres? E os ricos que moram lá? Não são suspeitos também? Não me faça ter vergonha de você a essa altura do jogo.

Régio = Você puta fica uma gracinha. Não tem esse pessoal todo no condomínio não. Só tem um porteiro detido. Sabe qual o nome dele? Dione. Dione Walker.

(os dois riem)

Crista = Que tipo de pai e mãe colocam o nome do filho de Dione Walker? E estando ele preso agora, a desgraça se completa. Previsão de quando vão coloca-lo em liberdade?

Régio = Se fosse simples. A vasilha foi achada no turno do cara, envolta com um saco plástico. Está certo que ele chamou a polícia, mas as digitais dele estão por toda a parte. Disse que manuseou a vasilha misteriosa por trivialidade, que ele não estava sendo curioso, mas que aquilo tinha despertado a atenção dele por se tratar de uma coisa inusitada na portaria, tirou a sacola plástica e ligou desesperado pra delegacia.

Crista = História estranha. De quem era a mandíbula?

Régio = Ninguém tem a menor ideia. Dentro do embrulho tinha o nome do Augusto de Freitas.

Crista = O empresário do ramo alimentício? Puta que pariu. Quanto tempo até a mídia saber?

Régio = Sai amanhã no jornal. Mandíbula endereçada a empresário. Entende a merda toda que isso vai dar?

Crista = Senhor delegado, parabéns. Você vai ver sua glória ou sua cova, ou as duas coisas.

Régio = Você é muito otimista. Já pensou em trabalhar num banco de esperma para homens com disfunção erétil?

Crista = Olha, eu não entendi o porquê desse encontro a essa hora, nem vou procurar entender? Bateu saudade?

Régio = Queria uma ajuda sua.

Crista = Devo me sentir honrada ou fodida?

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Régio = As duas coisas.

Crista = Qual é a missão agora?

Régio = Conversar com a Angélica.

Crista = Sou professora, não psicóloga.

Régio = Dá no mesmo.

Crista = Você chama uma ex-namorada pra conversar com sua filha e acha isso super normal? Sua praticidade me espanta, sabia?

Régio = Crista, por favor, ela te adora. Tá numa crise com a mãe. Fala com ela. Faz esse favor pra mim, eu pago.

Crista = Me paga uma viagem pra França?

Régio = Sim, só a ida, mas pago.

Crista = Olha, vou pensar na possibilidade, e isso não quer dizer um sim. É inicialmente um não.

Régio = Faz esse favor faz...

Crista = Olha, sinto que, se eu me meter nessa história, vou estar mais fodida que o tal do Dione.

(luz muda, rapidamente. Dione está suado, exausto, em desespero. Régio senta de maneira desleixada na cadeira, come ou bebe algo, quando percebe que quem está na sala é régio, se anima)

Dione = Doutor, por favor doutor, eu num fiz nada não. Me tira daqui doutor. Me tira daqui, eu tô jurando falar somente a verdade doutor...

Régio = Existem questões em aberto, por isso você está aqui. Responda com sinceridade que você sai.

Dione = Doutor eu tô falando a verdade, eu não tô mentindo não.

Régio = Eu não tenho dúvida do seu caráter, mas tenho dúvidas das suas respostas. Homens de caráter são os piores mentirosos, mas também são os melhores assassinos. Todo psicopata é um homem de caráter.

Dione = Fui eu não doutor.

Régio = Tua mulher e teus filhos estão lá fora. Tua mulher quer te ver e as crianças também. O que eu digo pra eles? Digo que o pai deles se acha o Paul Morel do Rubem Fonseca?

(Dione se emociona e chora)

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Dione = Eu dormi doutor. Dormi nos fundos, no quartinho do vigia. Tava dobrando direto pra poder pagar as conta e num aguentei, era o terceiro pernoite. Num fala isso no relatório não doutor, senão eles vão me despedir.

Régio = Senhor Dione, então o senhor se ausentou do seu posto, e, quando voltou, a vasilha estava lá. Isso?

Dione = Num diz isso no relatório não doutor.

Régio = Se eu não digo, então foi você quem pôs a vasilha no local. (...) O que o senhor sabe sobe o Augusto de Freitas?

Dione = Sei de nada não.

Régio (para alguém) = Traz as crianças pra cá.

Dione (desesperado) = Doutor num faz isso. Minhas crianças não. Não deixa eles me verem assim nessa situação não, doutor. Criança num aguenta tranco de ver pai metido em cadeia não doutor. Faz isso não.

Régio = Augusto de Freitas. Empresário. (...) (Régio berra) Ooo Celso! Traz as crianças e a mulher!

Dione = Corno! Ele era chifrudo doutor. O Augusto era galhudo! Todo mundo dizia. Todo mundo via a mulher dele dar mole pros cara. Ela chegava em casa toda vez com homem mais novo, todo dia um diferente. Todo mundo comeu essa piranha. Era uma piranha gostosa. Gostosa pra caralho. Daí um dia picharam o carro do marido no estacionamento. Picharam um Mercedez novinho.  Um  Mercedez  branco  novinho,  todo  pichado,  escrito  “corno”.

Régio = E o que ele fez?

Dione = Fez nada não. Homem que é corno não tem língua, não tem punho, não tem dignidade, não tem nada.

Régio = E ficou por isso mesmo? E tudo ficou feliz? E todos viveram felizes para sempre? E então apareceu a Branca de Neve e consertou o carro? Isso? Celso!

Dione = Ele fodeu o carro! (...) Esse homem é maluco. Ele quebrou o Mercedez todo. Fodeu o carro todo. (...) Talvez, na cabeça dele, fodendo o carro ele quis imaginar que estava esmurrando a cara da mulher. (...) Perguntou pra gente se a gente sabia de algo. Ninguém disse nada. Mas aí ele prometeu dinheiro. Daí o boca aberta do Bastião vazou tudo. Contou a porra toda.

Régio = E?

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Dione = (...) Aí a mulher desapareceu. (...) Bastião disse que deu uma briga do caralho no turno dele e que ela tinha ido embora pra casa da mãe com um olho roxo e a boca sangrando. Levou só a roupa do corpo. Era dessas mulher que

os cara rico pega pra criar, dar educação e cultura e dessas coisas toda. Ela foi embora largando os filhos com o marido. Uma merda foderosa.

(Mudança rápida de plano. Crista, enquanto se arruma para sair, fala ao telefone)

Crista = Ele quer que eu fale com a filha dele. Não estou afim. Homem tem dessas coisas e você conhece o Régio. Ele acha que mulher tem que se submeter a tudo. (...) Sim, sim, é a síndrome do macho alfa. É que, assim, todo homem que mora sozinho, tem um santuário. E esse santuário não pode ser conspurcado pela presença longa de uma fêmea. Ele acha que estará perdendo espaço. E quem não quer um canto pra foder de graça com quantas pessoas quiser? (...) Aí é que está, deu alguma merda com ele e a ex-esposa, daí a filha foi morar com ele. A garota não sai de lá. Ele quer que eu a convença de que é melhor ir morar com a mãe. Porra, eu achei isso tão egoísta da parte dele. Puta merda. Lembrei da merda do meu pai. (...) Não, não terminamos por causa da menina. Não! Eu adoro ela, nos damos super bem. Terminamos por outro motivo. Oi? Eu chamo de menina mas é mania, dezessete aninhos, cabeça de trinta, se bobear a menina é mais madura que eu. Diferente da mentalidade do pai. Deve ter puxado a mãe. Sair? Nós três? Olha, eu não sei. Sim, claro que adoro a Angélica, mas eu não vou fazer a vontade do Régio. Aaah sim, pode ser. Encontro de mulheres? Topo. Claro que eu não vou contar nada para o Régio, ele é um filho da puta, daquela vez que saímos nós três, eu você e ele, lembra? Então, ele me disse depois do jantar que queria transar com nós duas. (...) Claro que não Cláudia, você tem cada uma...

(Luz em Régio e Tadeu. Régio comendo algo )

Tadeu = Então o cara disse que Augusto de Freitas é mais chifrudo que o Diabo?

Régio = E que fodeu com um Mercedez novinho.

Tadeu = Você liberou o cara?

Régio = Ainda não. Tá isolado numa cela especial. Eu não estou tendo um bom pressentimento.

Tadeu = E essa ex mulher aí, onde está?

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Régio = O porteiro disse que foi pra casa da mãe. Mas essa mãe não existe e nunca existiu. Madalena de Freitas era órfã de pai e de mãe quando se casou com o Antônio.

Tadeu = E aonde está essa tal Madalena.

Régio = Ninguém sabe.

(Régio e Tadeu vão para a esteira. A velocidade de Régio é mais forte.) (Luz em Crista)

Crista (ao telefone) = Oi. Estou aqui te esperando. Onde você está? Aconteceu algo? (olha no relógio do pulso) Eu vou aguardar mais um pouco, dentro do restaurante. Assim que puder me ligue. Estou preocupada.

(Régio sai da esteira e interroga Dione)

Régio (cansado) = Se existe algo que eu odeio, é mentira. Você já deveria estar ciente disso.

Dione = Doutor, eu num to mentindo. Esse foi o endereço que ele deu lá na portaria.

Régio = Esse número não existe. É um terreno baldio.

Dione = Doutor, na profissão de porteiro a gente aprende a não perguntar nada. Merda quando mexe é foda, fede mais que político. O senhor tá rindo? É mesmo.

Régio = Você é um filósofo. Simpatizei com tua cara. Vou te deixar aqui pra alegrar meus dias. Aqui está o seu celular. No histórico das chamadas tem quarenta ligações pra um tal de Sebastião. (fúria) Ou tu me diz como tu fez essa porra, ou eu vou substituir amor por ódio e encher a tua cara de porrada.

(Dione fica em silêncio. Tadeu aumenta a velocidade da esteira. Régio bate na mesa. Tadeu aumenta a velocidade. Régio bate em Dione)

(Luz em Crista)

Crista = Olha, estou indo embora. Aconteceu alguma coisa? Acredito que sim. Não sei o que fazer, estou bastante preocupada com você. Me ligue assim que puder. Liguei para sua casa e ninguém atende. Aconteceu alguma emergência? Me ligue assim que puder.

(Luz em Dione e Régio. Régio espanca Dione. Tadeu sal da esteira na fala de Crista. Breve silêncio. Tadeu para perto de Dione, com a mão na cintura e duas fotografias)

(Régio senta na frente de Dione)

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Régio = Agora me diz: por que quarenta ligações para o Sebastião? Estavam se comendo?

Dione = O Bastião me devia dinheiro. Tava me enrolando pra pagar. Liguei pra ele pra cobrar a quantia.

Régio = Quanto?

(Dione não responde)

(Cena Crista atende o telefone)

Crista = Oi Claudia. Cheguei agora em casa. O encontro deu merda. O que houve? Você o quê? Puta que pariu, Claudia. (...) Não. Não eu não ligo pra isso. Nada a ver amiga. Não, eu super torço por você. Caralho. Nada, não estou espantada. Xinguei pela força do hábito. Ok, assumo, estou chocada. Chocada e divertida. Ai como sou sórdida. O Régio já sabe? Acho melhor ele saber disso o quando antes.

(Retorna a Cena Dione, Régio e Tadeu)

Régio (berra) = Quanto porra? (para Tadeu) Mostra pra ele..

(Tadeu coloca as fotografias em cima da mesa. Dione, depois de um breve tempo, olha para as fotos e fica transtornado)

Régio = Essas aqui são as fotos do seu amigo. Foi encontrado ontem, por uns miseráveis lá no lixão. Os urubus já estavam fazendo a festa. Olha bem pra essa porra! O corpo dele tinha quarenta buracos de bala. Quarenta. Suponho que não tenha sido suicídio. Você, aparentemente tem o álibi de estar aqui. Segundo a perícia, o corpo foi jogado no lixão no mesmo dia que foi encontrado. Mas, também segundo a perícia, o corpo apresentava sinais de tinha sido congelado. Olha só, que bonito. Deram quarenta pipocos no Sebastião e colocaram ele em algum freezer. Quem ta te ajudando nessa porra?

Dione = Doutor... eu num tenho nada com isso não. Ele foi burro. Eu falei pra ele abrir o bico. Existem certas coisas que se a gente não abrir o bico o bicho engole a gente. Quando o monstro é muito grande, doutor, gente da nossa classe só pode gritar. Gritar mesmo. Gritar e esperar que alguém escute.

Régio = E que merda o Bastião sabia? Que merda que tinha que ter sido gritada?

Dione = Eu...

Régio = Desembucha caralho!

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(Régio bate em Dione)

Dione (depois de um tempo, quando Régio se apronta para lhe lançar outro golpe) = A mandíbula não foi a primeira não. Todo mês o doutor Augusto recebe uma vasilha dessas com a parte do corpo de alguém. Eu é que num aguentei mais e coloquei a boca no trombone e liguei pra cá. Mas eu juro doutor, a gente nunca consegue ver quem coloca essas coisas. Aparecia sempre perto da lixeira. Lá num tem câmera. A lixeira fica dentro a garagem. Pode ser qualquer um que mora no prédio e lá só mora gente graúda.

Tadeu = E não tem câmera na garagem por quê?

Dione = Doutor, naquela garagem acontece de tudo. Tem venda de drogas, tem bebedice, as filhas das madames ficam se agarrando lá. Eles trepam lá a noite toda, fazem coisas estranhas, aí o síndico mandou a gente tirar as câmera de lá. Câmera, doutor, só existe pra pobre. Rico faz as coisas que quiser sem que ninguém fique sabendo.

Tadeu = Isso vai dar uma merda do caralho.

Dione = Pronto doutor, já disse tudo que eu sabia. Me deixa sair pra ver minhas crianças?

Régio = Se você sair daqui, aí é que você não ver mesmo as suas crianças. Tadeu, manda colocarem ele numa cela especial.

Tadeu = Ok. O que o cansaço e a exaustão não fazem, né senhor Dione? Freira revela que é puta e puta assume que ama.

Régio (para Dione) = Há quanto tempo o doutor Augusto de Freitas tem recebido esses pedaços humanos?

Dione = Um ano. Ele recebe um por mês. Todo dia seis. O Bastião é mais antigo que eu lá e me disse. Eu comecei a trabalhar lá fazem três meses. O Bastião e eu fomos falar com o síndico quando vimos um outro embrulho e mandaram a gente jogar os pedaços fora pra ninguém saber que era um escândalo aquilo de parte de corpo de gente, que se alguma criança visse ia dar merda. Colocavam sempre lá perto da lixeira. Só que esse último aí deixaram na portaria.

Tadeu = A mandíbula na portaria.

Régio = Quais eram os outros pedaços. Aonde vocês jogaram essa porra?

Dione = Sei lá doutor, eu não gostava de ver. Teve um dia que vi um dedo e nunca mais quis saber dessa merda. Falei que ia chamar a polícia.

Régio = Quem jogava essa porra fora?

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Dione = O Bastião. Eu num queria saber disso não. O doutor Augusto pagava uma nota pra ele sumir com os pedaços.

Régio = Quem mais sabia disso?

Dione = Só eu, o Bastião, o Caboclo, que foi demitido, e o doutor Augusto.

Régio = Tadeu, localize esse tal Caboclo. O senhor também disse que o síndico sabia. Qual nome dele?

Dione = O síndico é mulher doutor. Dona Maria das Graças de Freitas. Mãe do seu Augusto.

Tadeu = Puta que pariu.

(Cena – Régio e Crista)

Crista = Sabe de uma coisa? Você está muito fodido.

Régio = O quê você está bebendo aí?

Crista = Desde quando isso é da sua conta? Quer um igual?

Régio = Te liguei ontem, você não atendeu. Estava aonde?

Crista = Num encontro amoroso.

Régio = Com quem?

Crista = Isso não é da sua conta.

Régio = Pelo visto o encontro foi uma merda.

Crista = Pra sua felicidade, foi uma merda mesmo. Levei um bolo. Fiquei sozinha plantada igual uma idiota.

Régio = Eu não deixava você assim.

Crista = Quer reconciliação? Isso? Por isso que me ligou a essa hora?

Régio = Queria saber se você conversou com ela.

Crista = Não vou mandar sua filha ir morar com a mãe só pra você ter um espaço livre pra você foder quem quiser.

Régio = Ciúme?

Crista = Pena.

Régio = De mim?

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Crista = Da sua filha.

Régio = Por que?

Crista = Por ter um pai que pensa com a cabeça do pau.

Régio = Você era mais divertida quando era menos frígida.

Crista = Saiba de uma coisa, quando essa porra parar de subir não vai ter mais ninguém pra te levantar. E sabe porquê? Porque você vai cair junto com sua rola. Vai murchar que nem ela. Mudemos de assunto. Do quê falávamos? Aaaah, que você está muito fodido. Já preparou a aposentadoria?

Régio = Você já foi mais aventureira, mais atrevida.

Crista = Vai mesmo se meter com Augusto de Freitas?

Régio = Que indivíduo manda ocultar que recebe anonimamente partes de um cadáver?

Crista = Talvez alguém que tenha algo mais importante a zelar do que a própria segurança?

Régio = E o que é mais importante do que se sentir seguro?

Crista = Preservar a autoimagem. Você devia saber disso melhor que todo mundo. Quer preservar sua imagem de pai mandando eu falar com sua filha.

Régio = Já esqueci essa porra. To feliz com a menina lá em casa. Estamos nos dando super bem. Perguntei se você tinha falado com ela pra eu fazer um pedido para que não falasse mais.

Crista = Nossa. Que evolução maravilhosa. Saiu de Jurassic Park para Uma Odisséia no Espaço.

Régio = Eita mulher debochada. Isso me excita sabia?

Crista = Já que resolveu o caso com a menina. Me ligou pra que então? Quer me foder?

Régio = Quero uma ajuda sua junto com o legista do caso.

Crista = Querem uma professora de biologia metida o caso do magnata Augusto de Freitas? É pra ter um lugar mais fraco onde a corda possa arrebentar? Sem contar que, segundo a testemunha existem mais partes corporais que foram aniquiladas a mando do próprio Augusto. É entrar vestido de bunda em festa de pica.

Régio = Eu sei que você gosta de uma emoção. Comprovado o fato que suspeitávamos, a mandíbula é de mulher. Isso incomoda o seu lado feminista?

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Crista = Puta merda.

Régio = O legista detectou terra e umas plantinhas na mandíbula. Uns musgos, sei lá o que era aquela porra. Segundo o legista, essa tal plantinha não é muito comum. Não é igual a você. Não dá em qualquer lugar.

Crista = Dou por prazer, não por necessidade. E essa sua insônia, como vai?

Régio = Estou sem dormir há dois dias. Porra. Quero que você dê uma olhada amanhã. O legista disse que não dá conta do recado pois não é biólogo.

Crista = Terra e uma plantinha rara na mandíbula. Isso significa que?

Régio = Que, seja lá quem mandou essa porra pro Augusto de Freitas, está literalmente desenterrando cadáveres. Ou a mandíbula saiu da cova e quer falar alguma coisa.

(Sons de rock. Banda ao vivo. Régio e Tadeu na esteira. Velocidade de Régio mais forte)

(Régio e Tadeu param)

(Cena – Régio e Tadeu)

(Régio vira a cadeira com raiva. Tadeu permanece calmo, controlado)

Régio (berrando) = Eu quero a porra do nome de todos esses fodidos. De todos que estavam aqui ontem. Eu quero todo mundo nessa porra agora! Eu mesmo vou me encarregar da demissão de todo o pessoal. Eu quero esses fodidos no olho da rua. Esse bando de merda. Tudo cu fodido! Quero fuzilar a cara de cada um que estava aqui ontem de plantão!

Tadeu = Régio, calma.

Régio = Calma é o caralho! Tu sabe o quanto de colhão de merda existe nessa porra. Quero saber quem estava no quarto de hora quando essa porra aconteceu. Ninguém viu nem ouviu porra nenhuma? Bando de viado de cu arrombado!

Tadeu = O legista já analisou o corpo. Foi suicídio.

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Régio = Suicídio é a puta que te pariu. Nesse país ninguém se suicida. Ou se morre de fome, ou se morre de assassinato. Pobre não se mata. Quem se mata é filhinho de papai mimado ou empresário falido. Mulher que não trepa é quem se suicida. Porra. Caralho! A gente perdeu uma testemunha do caralho. E agora? Como eu coloco o filho da puta do Freitas e a mamãezinha dele na cadeia?

Tadeu = Você realmente acreditava nessa possibilidade? Essa gente não entra em cana.

Régio = Que tipo de agente da lei você é?

Tadeu = Do tipo realista. Que acredita nos mesmos ideais que você mas sabe que não é tão fácil assim. Prender um Freitas não é como prender um Dione.

Régio = Tomar no cu essa sociedade de merda. Bando de filhos da puta. Riquinhos do caralho, nas suas mansões de merda cagando na nossa cara, fodendo nossas filhas, lanhando nossas costas com chibatadas institucionalizadas. Bando de burguês de merda. Estão cagando pro povo. Querem mais é que o povo se foda e que o pau deles cresça.

Tadeu = Você precisa controlar esse ódio todo com a classe abastada. Esqueceu que você também mora na Zona Sul? Seu salário não é do povão.

Régio = Que porra essa Tadeu? Comeu merda? Tá do lado deles?

Tadeu = Não estou do lado de ninguém. Só estou tentando ser coeso, claro e imparcial. A porra do Dione se matou ontem, dentro da cela. Quanto a isso você não tem como ir além. Não pode culpar ninguém, o único culpado é o morto.

Régio = Tadeu, eu olhei dentro dos olhos dele. Eu senti a alma desse cara. Ele jamais iria se matar se enforcando com um lençol de merda. Eu olhei dentro da retina dele.

Tadeu = Talvez o que você tenha visto nos olhos desse cara tenha sido algo muito mais profundo

Régio = O quê? A boceta da sua mãe? Teu cu?

Tadeu = Não. Pior. O retrato de você mesmo.

(Cena – Crista)

(Crista se arruma e fala ao telefone)

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Crista = Sim Claudia. Vou sair de novo. Não foi um bolo, ele estava de serviço. Não conseguiu me ligar pra dizer que tinha sido escalado de última hora. Não estou desesperada. Ele é bom de cama. Amor de pica quando bate fica. Olha, não sei dizer em que ponto ele é melhor que o Régio. O Régio tinha insônia, não dormia. Aaaah era ótimo, me fodia durante horas, mas o problema era que ele gozava e não dormia, o pau ficava mole e ele ficava acordado igual uma coruja, me olhando. Eu sou a única mulher que quer dormir depois da transa? Eu odeio conversinha depois da foda. Converso antes. Problema? Eu tenho personalidade forte, esse é o meu problema. (...) Eu caía no sono, satisfeita, então dormia, acordava de manhã e ele estava com aquele olhos de coruja me olhando. Nada minha filha, de manhã ficava de pau mole, esse era outro problema. Nunca vi homem ficar de pau mole de manhã. Vai ver que é porque ele não dormia. Foder de manhã com o Régio era uma impossibilidade, nesse caso era mais fácil Moisés abrir o mar do que eu abrir as pernas. (...) Você é que está certa. Eu te dou toda razão, estou até pensando em ficar que nem você, pegando mulher também, isso ia me garantir diversidade na cama e sexo na hora que eu quisesse, sem gente que dá bolo e sem gente com insônia celibatária. Aaaah sim meu amor, sobre sexualidade e gastronomia eu penso o seguinte: quem come de tudo, vive de barriga cheia. Claudia, uma última pergunta, quando vocês vão contar tudo pro Régio? Olha, não tenho nada com isso, mas acho que vocês deveriam conversar com ele. Beijo.

(Luz acende em Régio num canto. Olha fixamente o copo de conhaque. Blues ao fundo, bem baixo. Telefone toca. Ao fundo Crista e Tadeu se encontram)

Crista (liga pra Regio enquanto está com Tadeu. Tadeu a agarra com tesão) = Régio. É Crista. Atende essa porra! Olha, não sei se o legista falou com você. Ele é meio lerdo. Eu acho (risos) Eu não estou bêbada. (risos) Descobri umas coisas muito interessantes. Interessantes pra quem? Oi? (risos) . Para (risos). Eu sei que você não dorme. Atende. Está sem dormir há quantos dias? Bateu o recorde dos três dias acordado? Dá pra comparar com Jesus, que dormiu três dias. Me liga assim que puder. Porra nenhuma! Vou falar agora. Anota aí. Lantana Camara. Grava bem esse nome. Lantana Camara. Não é musgo, é um arbusto da família Verbenaceae. Legista burro do caralho esse que vocês tem. Essas porras fazem concurso porque querem estabilidade mas são uns merdas. Tenho duas notícias pra te dar. Uma: no popular essa planta tem um nome ótimo,  é  chamada  ou  de  “chumbinho”,  ou  de  “bem-me-quer”  ou,  essa  é  a  melhor   parte   “mal-me-quer”.   (risos)   Para,   caralho!   Essa   planta   é   venenosa.  Mata um boi. Seu legista é um merda. Um merda. Analisei as amostras, os vestígios  de  lantana  não  “floresceram”  na  mandíbula por ela ser enterrada num lugar específico com a incidência da planta. A mandíbula foi envenenada. A lantana foi triturada e colocada na mandíbula, ou seja, alguém quis envenenar

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a defunta esquartejada. Essa planta é para amantes e inimigos, ou seja, não dá pra  saber  se  foi  colocada  ali  por  um  “bem-me-quer”  ou  “mal-me-quer”.  Pode  ser

alguém que a odiava muito e quer ter a certeza ritualística da morte dessa mulher, ou alguém que a amava profundamente e enviou a mandíbula com Lantana para provar amor eterno, mas essa porra de especulação é trabalho seu, não meu. Para, porra! Aaaahh, a notícia ruim, já ia me esquecendo, se bem que você está todo fodido nesse caso, a notícia ruim é sobre a incidência dessa planta. Ela não vive num lugar específico. Ela não é uma planta rara. Ela pode existir desde a Amazônia até o Rio Grande do Sul, ou seja, você realmente está fodido. (risos) E seu legista é um merda. Beijo.

(Cena Régio, Maria das Graças e Tadeu.)

Régio = Senhora Maria das Graças de Freitas, desculpe a demora. A que devo a honra? A sua vinda me surpreende.

Maria = Nem todo mundo tem medo da polícia, até porque, ela existe para defender a sociedade.

Régio = E também fazer justiça.

Maria = Justiça e mulher, duas palavras femininas, duas coisas relativas e incertas, nunca se sabe o que esperar delas.

Régio = Há quanto tempo a senhora sabe das partes de corpo humano mandadas para o seu filho?

Maria = Pensei que a polícia fosse mais sutil.

Régio = Não sou pago para fazer rodeios.

Maria = Faz seu serviço apenas por dinheiro?

Régio = Todos estamos nesse mundo por causa do dinheiro, a senhora sabe bem.

Maria = Negativo. Discordo. Estamos todos aqui por causa do sexo. Tudo existe por causa do sexo.

Régio = Onde as partes do corpo foram jogadas? A senhora entende que ocultando provas concretas de um assassinato está sendo cúmplice?

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Maria = Não pode acusar uma velha por enterrar os seus mortos.

Régio = Por que não comunicou o fato à polícia?

Maria (irônica) = Quando a polícia resolveu algum problema? Vocês odeiam os ricos, prendem os pobres, vocês são uma escória.

Tadeu = A senhora pode ser presa por desacato.

Maria = Na minha idade eu posso falar o que quiser. E você é mais bonitinho de boca fechada. (...) Aquela puta traiu meu filho com todo mundo. Deu para os porteiros. Me dá um cigarro? Só não deu para o síndico pois o síndico era eu. E até morta essa puta veio atormentar a vida da nossa família.

Régio = A senhora está dizendo que a mandíbula e as outras partes do corpo enviadas a seu filho eram de Madalena de Freitas?

Maria = De Freitas não. Não use o nome da minha família. Mandei fazer um exame de DNA com amostras do meu neto. Compatível. As partes do corpo eram da puta da Madalena.

Régio = A senhora a odiava?

Maria = Só porque estou me referindo a ela como puta? Só estou sendo sincera. Uma mulher deixa de ser puta se a chamarmos de santa? A filha da puta tinha os dentes perfeitos, acredita nisso? A arcada corretinha. Certinha. E eu pagando caro por dentes falsos.

Régio = Onde foram colocada s as outras partes?

Maria = Isso você tem que perguntar ao porteiro Sebastião. Paguei para que ele sumisse com aquela sujeira.

Régio = A mando da senhora, provas concretas de um crime foram destruídas. A senhora passa a ser cúmplice e suspeita de ser a mandante, uma vez que sabia que as partes do corpo eram de Madalena. Isso me leva a supor que o assassino contratado para matar Madalena, estava, por algum motivo chantageando seu filho ou a senhora, enviando partes do corpo da defunta. Puta que pariu, que merda.

Maria = Suposições. Apenas suposições. Não matamos Madalena, não mandamos matar Madalena, a morte dela atrapalha mais do que ajuda. Ela traiu meu filho, desonrou o nome da minha família, sumiu e voltou a aparecer em pedaços.

Régio = Por que não comunicou à polícia quando recebeu a primeira parte do corpo de Madalena? Qual foram as partes?

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Maria = Não me lembro ao certo. Não comuniquei pelo motivo óbvio: uma puta não pode acabar coma imagem de uma família. Uma puta não pode acabar com nada. Apenas com a própria vida. E isso ela fez, fez com maestria.

Régio = A senhora me dá nojo.

Maria = Pelo menos você ainda me chama de senhora, existe um respeito intrínseco. A plebe sempre se curva diante da nobreza, por mais que a odeie.

Régio = Sabia que tenho material suficiente para detê-la aqui?

Maria = Material baseado em quê? Suposições? Confissões de um porteiro suicida viciado em jogo do bicho? Especulações sobre um outro porteiro assassinado também envolvido com a jogatina? Vocês não conseguem nem preservar a vida de uma testemunha e querem prender uma velha? Aonde? Aqui? Minha família tem mais advogados do que os presos dessa joça.

Régio = O que trouxe a senhora aqui?

Maria = Vim apenas dizer ao senhor, delegado, que o senhor está plantando tempestades. Não reclame quando os frutos forem chuvas destruidoras.

Régio = Isso é uma ameaça?

Maria = Na sua profissão o senhor já deveria estar acostumado a ouvir esse tipo de coisa. Não é ameaça. É um aviso. Não se meta com minha família. Haverá um dia que não existirão mais partes do corpo dessa puta, esse doente, seja lá quem for, não mandará mais nada. A polícia não tem feito a sua parte, não vai conseguir achar porra de assassino nenhum, vai ser mais fácil acusar a família da grã-fina. Poupa esforços. Dá visibilidade. Faz o senhor ser promovido e dormir com um senso falso de justiça embutido na cabeça. Mas o senhor é tão merda, que não pensa no senso de justiça dentro da sua própria corporação. Um suposto suicídio de uma testemunha, isso significa que aqui dentro o senhor não passa de um fantoche dançando uma música macabra. Você não acredita que não estou envolvida com a morte daquela puta e eu não acredito na sua eficácia.

Régio (indignado) = Como a senhora sabe da morte do Dione?

Maria = No meu patamar, a gente sabe das coisas antes que elas aconteçam. Portanto, deixe minha família em paz. Deixe essa história em paz. Encerre esse caso. Não enfie a mão na fossa achando que não vai sujar a sua roupa toda. Vai se sujar todo, e de bosta.

Régio = Então a senhora admite estar numa lama total, numa fossa?

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Maria = Na merda, todos nós estamos, desde que nascemos. É a sua escolha: uma promoção decente, digna... ou uma transferência.

Régio (debochado) = A senhora tem poder para me mandar para onde? Para uma delegacia de merda no Acre?

Maria = Acho que o senhor ainda não entendeu. Posso manda-lo para um lugar melhor, onde o senhor vai poder jogar xadrez junto com seu amigo porteiro. Isso se, ele souber jogar xadrez.

Régio = Mais uma ameaça de morte.

Maria = Mortos já estamos, todos. Eu, lá em cima e o senhor aqui em baixo.

Régio = Eu sinto um cheiro de podridão tão grande nessa sala. Estou sendo ameaçado? Estou sendo coagido? A senhora escute bem. Eu não vou parar de investigar. Eu não vou parar de fuçar isso tudo. Eu não vou desistir até colocar tudo às claras. A senhora está me ouvindo bem? Você pode ser a bam bam bam do caralho A4, mas eu vou fazer o seu castelo ruir, não porque quero te ver ruir, mas porque gente como você é melhor estar fora desse mundo. Eu não sou pago pra pensar em justiça ética ou moralidades de família nobre, sou pago para expor os fatos, fuçar que nem um cão perdigueiro. Tanto para pobres como para ricos. Aqui seu dinheiro não vale nada. Não estou aqui pra acabar com sua classezinha de merda, com seu mordomo engravatado que te defende por ganhar uma mísera cesta básica no fim do mês. Pouco me importa o que a senhora é. Enfie no seu cu essa arrogância toda, suas taças de cristal, seu status quo que mais é um status cu. Enfia no seu rabo seus jantares de gala, suas empresas, seu nome de família pois na verdade o cu é a única coisa digna dentro da senhora.

(Maria ergue as duas mãos para Régio)

Maria = Me prenda. Vai. Vim aqui para você me prender. Vai dizer o quê? Que mediante a confissão de uma velha, o assunto está resolvido? Vai ter colhão para aguentar essa pica?

Régio = A senhora é uma filha de uma puta da mais baixa vileza.

Maria = Seu problema é subestimar as senhoras da alta sociedade, nem todas são palermas sanguessugas do dinheiro do marido. Existe gente de viço. Quero sair daqui num camburão. Presa. Acusada de assassinato. Quero os repórteres em cima do senhor. O governador em cima do senhor. Gente graúda colada no seu rabo.

Régio = O povo não merece ter gente como a senhora.

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Maria = A família De Freitas tem mais filantropias espalhadas pelo mundo do que seus falsos gestos de benevolência. A autópsia do corpo do senhor Dione revelou que ele tinha várias escoriações, marcas, hematomas, feitas antes de morte. Sendo o senhor responsável pela testemunha, poderia me explicar o fato? Ele foi agredido para confessar esses disparates de que sou acusada? Tenho também aqui um parecer do seu médico. Doutor Chenubi. Péssimo nome. Olhe. Pegue. Segundo consta, o senhor sofre de insônia, tem tomado remédios tarja preta, sofre à noite com algumas alucinações, tem comportamento instável, variações agressivas de humor. Suspeita de bipolaridade e, quem sabe, esquizofrenia, uma vez que as alucinações tem se tornado freqüentes. Delegado Régio Antunes de Paula, a sua esposa pediu o divórcio. Mora fora do país. Segundo consta, ela pediu o divórcio por ter sido agredida. Prestou a queixa mas retirou-a. Tenho também uma cópia do exame de corpo de delito, ela ficou com um belo hematoma nos olhos. Somando toda essa merda, acho que o senhor é um grande filho da puta, agressivo, espancador de mulher, um verdadeiro misógino, que não tem nenhuma qualificação mental para exercer o cargo que exerce. E eu, a filha da puta grã- fina, a vadia da alta classe, quero ser presa pelo senhor, vim aqui só pra isso.

(Régio avança para agredir Maria, Tadeu o segura)

Maria (para Tadeu) = Pelo menos alguém aqui tem a cabeça no lugar, mas da próxima vez, deixe que ele me bata. Como já disse: vim aqui só para isso.

(Maria sai)

(Cena Tadeu – Repórter)

(Tadeu lê um jornal)

Repórter = Gostaria de falar com o Delegado Régio.

Tadeu = Hoje ele não se encontra, está de folga. Do que se trata?

Repórter = Um delegado de folga enquanto o mundo todo está explodindo lá fora?

Tadeu = Hoje é domingo, e as explosões podem esperar.

Repórter = Mas ninguém pode esperar. A imprensa nunca dorme, nunca tira folga.

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Tadeu = Foda-se a imprensa e a porra da mídia especulativa. Vá fazer matérias sobre o domingo das celebridades.

Repórter = Se a imprensa não fosse importante, o senhor não estaria lendo esse jornal. Que aliás, é o mesmo que eu represento.

Tadeu = Quer ver minha mão representar alguma coisa no meio da sua cara?

Repórter = Isso seria abuso de poder para com uma pessoa.

Tadeu = Repórteres não são pessoas, são urubus atrás de uma carniça. E quando não existe carniça, eles matam algum urubu e comem a si mesmos.

Repórter = O que o senhor tem a dizer sobre o Caso Mandíbula?

Tadeu (surpreendido) = Eu é que te pergunto o que você sabe sobre isso.

Repórter = Tenho fontes confiáveis que afirmam que uma mandíbula foi achada no condomínio de luxo Erasmo. Condomínio este em que vive o alto executivo do nosso país, o doutor Augusto de Freitas. Procede a informação de que a mandíbula encontrada na portaria pelo porteiro Dione Walker pertencia à Madalena de Freitas, a mulher desaparecida do doutor Augusto?

Tadeu = Primeiro: tudo o que eu ouvi de você foi bosta, merda, cocô, fossa. Não existe nenhuma mandíbula, nenhum Dione, nenhuma ex -mulher desaparecida e nem sei quem é Augusto de Freitas. É de comer?

Repórter = É verdadeiro o fato do suicídio do senhor Dione Walker dentro desta delegacia ou ele foi assassinado? A polícia se responsabiliza pelo fato? Quem são os suspeitos? Tratava-se de alguma briga de facção ou queima de arquivo?

Tadeu (rindo) = Facção na delegacia?

Repórter = Me refiro às facções dentro da corporação. Os chamados bandidos de farda.

Tadeu = Mais uma palavra e eu te faço engolir esse bloco de anotações junto com essa canetinha que é tão medíocre quanto você. Só que eu vou fazer você engoli-la pelo cu. Que tal? Empalado na cadeia. Empalado igual Antônio Conselheiro.

Repórter = A polícia está dificultando o acesso de informação para a mídia? Trata-se de um assassino psicopata ou o doutor Augusto de Freitas encomendou a morte da esposa. Havia um motivo claro para isso? O doutor Augusto de Freitas já veio depor?

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Tadeu = Sim.

Repórter = Sim, o quê? Já houve um depoimento?

Tadeu = Não.

Repórter = Então não houve um depoimento?

Tadeu = Sim.

Repórter = O doutor Augusto de Freitas é inocente?

(Tadeu retira a arma da cintura. Carrega. Coloca em cima da mesa)

Tadeu = Qual o seu nome?

Repórter = Fernando.

Tadeu = Fernando tipo o Pessoa?

Repórter = Sim, só que sou de Souza.

Tadeu = Sabe quantos Fernandos de Souza somem por dia?

Repórter = Se esta é uma ameaça, quero dizer que sou um estagiário mas deixei uma rede de amigos avisados que eu viria pra cá.

Tadeu = Sua rede de amigos sabe que você é envolvido com o tráfico?

Repórter = Eu não entendi...

Tadeu = Aqui, em cima dessa mesa, está minha menina. Calibre 38. Linda. Eficaz. Ela é uma menina muito pirracenta. Berra de vez em quando. Só que ela berra sem deixar vestígios. É uma menina mimada. Pega. Pega nela. Pega logo porra!

(O Repórter pega a arma com a mão trêmula)

Tadeu = Agora você escolhe. Ou me dá um tiro no peito, ou dá um tiro em você mesmo. Ou então, brinca com a minha menina. Ela gosta de brincar de salada mista. Ela gosta de beijar na boca de gentinha que nem você. Vai. Beija ela. Beija. Vai. Isso. Beija. Dá um sorrisinho. Dá um sorriso pra mim. (grita) Beija logo essa porra!

(Repórter nervoso dá um disparo acidental. O tiro acerta o chão. Tadeu levanta rápido, tira a pistola da mão de Fernando e lhe dá um tapa forte na cara. Fernando está apavorado)

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Tadeu = Tá vendo a merda que você fez, seu porra? Estagiário fodido. Não volte aqui senão te prendo por tentativa de assassinato. Fodo sua vida antes mesmo dela ter começado. Na sua idade eu estava tirando cabaço por aí ao invés de meter o meu bedelho em vespeiro de pica. Some daqui!

(Cena Crista e Régio. Casa de Régio)

Crista = O Tadeu me disse que você estava de folga. Conseguiu dormir?

Régio = O Tadeu está te comendo?

Crista = Tá louco? O Tadeu? Depois de você eu comecei a ter bom gosto.

Régio = Era ele te fodendo quando você me ligou para falar da lantana?

Crista = Você está tendo alucinações de novo?

Régio = Acho que sim, estou na merda.

Crista = Eu te disse que esse caso de mandíbula ia te foder. Por que não encerra logo esse caso?

Régio = Tô na merda por causa da Angélica.

Crista = O que houve?

Régio = Mas tu é uma cínica do caralho. Desde quando você sabia?

Crista = Olha, eu soube não tem nem dois dias.

Régio = Mentira. Por que não me contou? Crista = Por que isso não é da minha conta. Régio = Mas você é amiga das duas.

Crista = Então é mais um motivo pra não ter te contado nada. Como descobriu?

Régio = Descobri hoje. Angélica não sabia que eu estaria de folga hoje. Pensou que eu ia virar o final de semana na delegacia. Encontrei as duas nuas na minha cama. Se lambendo que nem gato.

Crista = E qual tipo de merda você fez? Expulsou sua filha de casa?

Régio = Não fiz nada. Elas me olharam como quem tinha acabado de ver uma assombração grotesca. Saí. Fui andar na rua. Quando voltei as duas não estavam mais aqui. Angélica deixou um bilhete dizendo que me amava e que também amava Claudia e ia morar com ela. Deixou o endereço e o número do telefone.

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Crista = Pois é, até que, no fim, o desfecho foi o que você queria desde o início. Sua filha fora do seu caminho liberando o seu motel particular pra você trepar até o pau ficar roxo.

Régio = Tanta mulher no mundo e ela pegou logo a Claudia.

Crista = A menina tem o mesmo gosto do pai. Fica feliz, pelo menos ela “comeu”   a  Claudia   por   você.   Se   lembra   quando você quis comer nós duas? Sua filha está na sua frente.

Régio = Ela e você também...

Crista = Não. Gosto de piru. Boceta é bom só pra homem. Daqueles que gostam, é claro, que não tem frescurinha e caem dentro. Com ou sem depilação. Pois bem, buceta é pra quem gosta.

Régio = Não deixei de gostar. Só que esse desmoronamento está fodendo minha cabeça. A de cima e a de baixo. Cansei de pensar na vida. Cansei de pensar e existir. Cogito ergo sum é minha bola esquerda.

Crista = Vai fazer o quê?

Régio = Não sei. Estou lendo Erasmo. Elogio à Loucura. Erasmo é o nome do condomínio onde os picotes do corpo de Madalena foram entregues. Onde moram o Augusto, os filhos e a avó pervertida.

Crista = Não sabia que você gostava de ler. Virou viado?

Régio = Sabia que o machismo é algo que parte principalmente das mulheres?

Crista = Ééé, virou viado mesmo.

Régio = A mãe é quem fica a maior parte do tempo com o menino. É ela que ensina a ele a não fazer as tarefas domésticas, a não brincar com meninas, a não abaixar a tampa do vaso. É a mulher que ensina o filho a ter várias namoradinhas, depois reclama que o marido a trai. É uma bola de neve.

Crista = Fale por você. Na minha casa todo mundo sempre fez tudo. Meu irmão mais velho cozinha melhor que eu.

Régio = Ele é viado?

Crista = Xoxoteiro de marca maior. Só não comeu as irmãs, mas as primas...

Régio = Você está sendo machista de novo.

Crista = Amansou agora? Ficou sensível ao descobrir que a filha é lésbica? Adoro o castigo dos destino.

Régio = Pra você a homossexualidade é castigo?

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Crista = Você entendeu o que quis dizer. Esse papo está chato. Volte a falar do Erasmo.

Régio (lendo o livro) = “A  loucura  livra  das  preocupações.  Sei  muito  bem  o  que  os homens acham de mim e sei também de todo o mal que falam sobre a Loucura...” ele escreveu loucura com letra maiúscula, como se ela fosse uma persona, “Sei  muito   bem  o   que   os  homens   acham  de  mim  e   sei   também  de  todo o mal que falam sobre a Loucura, até mesmo entre os que são loucos. Todavia, eu sou o único indivíduo capaz de alegrar aos deuses e aos homens. Ele mesmo, a prova incontestável aí está, portanto bastou aparecer diante deste numeroso auditório para fazer brilhar em todos os olhos uma radiante alegria. De fato, o rosto de todos se ergueu, fixo em mim, e vosso amável riso me aplaudiu alegremente. Todos aqui, distingo-vos, embriagados com o néctar dos  deuses  de  Homero,  néctar  misturado  com  um  pouco  de  nepente.” aqui eu quero mudar nepente para Lantana, o arbusto maldito dos amantes e dos inimigos, “Entretanto, há pouco, estivestes sentados, tristes e preocupados, como  aqueles  que  acabaram  de  sair  da  caverna  de  Trofônio.”

Crista = Profundo.

Régio = Decidi. Vou entrar na caverna de Trofônio.

Crista = Devia saber quem foi ele?

Régio = Não faz diferença.

Crista (tira um envelope da bolsa) = Aqui estão os dados da amostra recolhida da mandíbula. Os dados toxicológicos da amostra e informações sobre a Lantana Camara.

Régio = Você não liga?

Crista = Para o quê?

Régio = Para essa merda toda?

Crista = Estou dormente.

Régio = Todos estão. Ninguém liga para a Madalena. Tratam ela como mandíbula. Essa porra toda recebeu o nome de Caso Mandíbula. A mandíbula de Madalena é mais gente que ela.

Crista = A sociedade de hoje é assim. Trepa a varejo e faz do próprio corpo um atacado. Não somos pessoas, somos Crista peituda, a Fulana coxuda, o Ciclano de peitoral definido. Somos peças de carne no açougue da vida. Aí você escolhe qual é a sua melhor parte e a explora, a expõe para o mundo.

Régio = Madalena não pode escolher qual parte do corpo mais gostava.

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Crista = Pois é. Ao que parece ela estava acostumada desde sempre a escolherem as coisas por ela.

Régio = Ela pôde escolher os amantes para chifrar o marido.

Crista = Amante a gente não escolhe. Amante surge. Surge nos seus momentos de merda, quando você duvida do amor que seu cônjuge tem. Quando você se sente feia e gorda e quer ser desejada. Quando você se sente deslocada de uma realidade, ou aspira um mundo melhor que nunca chega.

O amante serve pra isso, para fazer o que Lázaro fez com o homem rico, molhou o dedo na ponta da saliva e o refrescou nos infernos.

Régio = Você devia escrever um livro.

Crista = As pessoas não perdem o tempo lendo livros hoje em dia.

Régio = Madalena. A puta. Apedrejada no passado e esquartejada no futuro. A mãe sem filhos, a nora sem sogra, a esposa sem marido. A insignificante que só serviu pra fazer a raça dos De Freitas colocar mais de seus genes de merda nesse mundo. Madalena não é ninguém. Dione não é ninguém. Eu não sou ninguém. Somos peças de manobra. Todos Severinos. Quando eu era criança minha mãe lia sempre o mesmo salmo antes de dormirmos. Éramos cinco. Meu pai tinha morrido. Dormíamos eu, mais três irmãos e mamãe na mesma cama. Ela cobria se certificava que cada um estava coberto. Ninguém com os pés para fora. Ela dormia com frio para os filhos terem como dormir bem. Faltava comida, mas nunca faltou cobertor. Ela sorria. Eu sentia a tristeza nos olhos dela. Ela sorria e recitava com voz cálida o Salmo 139:

“Se  tomo  as  asas  da  alvorada  e  me  detenho  nos  confins  do  mares:  ainda  lá  me  haverá de guiar a tua mão e a tua destra me susterá. Se eu digo: as trevas, com efeito, me encobrirão, e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias  trevas  não  te  serão  escuras:  as  trevas  e  a  luz  são  a  mesma  coisa”

Crista = Já sabe o que você vai fazer?

Régio = Sim. Vou entrar na caverna de Trofônio.

(Régio e Tadeu correm na esteira. Rock ao fundo. Maria caminha languidamente na esteira)

(Régio e Tadeu saem da esteira)

(Cena Tadeu e Régio)

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Tadeu = Eu não acredito que você vai fazer essa porra?

Régio = Queria o quê? Quem tem cu tem medo. E eu não vou me foder por causa de três indigentes.

Tadeu = Eu não acredito que você mudou de ideia por causa de uma grã-fina pena cova. Ela nem tem forças pra fazer nada contra você.

Régio = Não tem força mas tem poder. Isso é o que importa. Poder.

Tadeu = Ontem um filho da puta da mídia esteve aqui. Queria falar contigo. Deu um disparo com minha arma em cima de mim.

Régio = Vai virar chacota na corporação. É essa a sua meta? O que ele queria?

Tadeu = Sabia tudo do caso. A informação vazou. Veio averiguar aqui. É só questão de tempo pra essa bomba explodir. Tem X9 nessa porra de delegacia.

Régio = Agora você acredita nisso?

Tadeu = Não digo isso sobre o suicídio do Dione. Digo sobre a informação ter vazado. Não dá mais pra retroceder.

Régio = Tudo dá. Até freira. Até pra morte se tem jeito. Conhece Kardec? Acredita nele?

Tadeu = Não acredito que o cara mais foda que eu conheço vai se deixar abater por uma velha de merda.

Régio = Já estou velho para tais aventuras. Que se foda o mundo e que meu pau cresça. Pegue o caso você.

Tadeu = Não tenho a sua astúcia.

Régio = Pois é, gozar com o pau alheio é fácil, quero ver sujar a mão de merda.

Tadeu = O grande Delgado Régio se acovardando.

Régio = Ta me provocando, filho da puta? Se eu morrer quem é que vai cuidar da minha filha?

Tadeu = Quantos anos ela tem?

Régio = Dezessete.

Tadeu = Já deve dar um caldo.

Régio = Da fruta que tu gosta ela lambe até o grelo. Ela é mais macho que você.

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Tadeu = Os filhos crescem. Vão embora. Você se importa?

Régio= Com o quê?

Tadeu = Da sua filha sumir, ir embora.

Régio = Pai é pai, por mais que seja retardado que nem eu, quer ver os filhos bem.

Tadeu = Já pensou no pai da Madalena? Na mãe? Procurei informações. Ela tem uma tia-avó. Internada no asilo Nossa Senhora das Mercês. Um lugar relativamente bom. Digno.

Régio = Tu é foda. Mas e eu com isso?

Tadeu = Ela não sabia do assassinato da sobrinha neta. Disse que criou ela como filha quando trouxe ela pra cidade. Vieram do interior, da zona rural. Depois que Madalena casou com Augusto, nunca mais teve notícias, mas recebia uma pensão gorda misteriosa todo o mês.

Régio = Velha de sorte.

Tadeu = Ela recebe a pensão até hoje, mas se sente mais segura no asilo.

Régio = Como ela sabe que ainda recebe?

Tadeu = Tem caixa eletrônico no asilo. Não se fazem mais velhos como antigamente. Estão mais espertos, menos emotivos.

Régio = Pois é, até quem é viado um dia cansa de só tomar no cu, também vai querer foder.

Tadeu = Seu problema são esses livros que você anda lendo. Polícia não tem que filosofar, não tem que pensar, tem que agir.

Régio = Pensar e agir, essa é a real diferença entre velhos e jovens.

Tadeu = Madalena merecia mais que isso. O porteiro Sebastião, quarenta tiros nas costas. Um número cabalístico. Quem se importa? Qualquer um mereceria. Alguém tem que limpar essa lama toda. Só te garanto uma coisa, minha pá é pequena demais pra fazer esse tipo de serviço.

Régio = Tua pá é do tamanho do teu pau.

Tadeu = E sobre ter tudo e não ter nada. Madalena nunca teve nada, nem mesmo quando casou com Augusto e teve tudo. Você podia ajudar ela a ter alguma coisa. Fazer essa mulher deixar de ser uma mandíbula.

Régio = Já ouvi isso antes. Acho que ouvi da minha boca mesmo. Ta fodendo a Crista é?

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Tadeu = Tirando as suas alucinações loucas, você é um bom homem. Pena que pensa demais.

Régio = Cogito ergo sum...

Tadeu = Da vida só vale o seguinte: uma boa foda, uma boa comida e uma boa morte.

Régio = Esqueci quem sou eu. Entrei na caverna de Trofônio.

Tadeu = Você pensa demais.

Régio = Talvez você tenha razão. Talvez. Faço minhas as palavras do Rodrigo S.M.,  aquele  da  Lispector,  perguntar  “quem  sou  eu?”  provoca  necessidade.  E  como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.

Tadeu = Quando você parar de se indagar eu te direi  “vai  e  não  peques  mais”.  Foi o que Jesus disse à Madalena depois de tê-la salvado do apedrejamento.

Régio = Minha Madalena já está morta. Apedrejada e esquartejada.

Tadeu = Viva ou morta, a tia-avó continua recebendo uma pensão gorda todo mês.

Régio = O que significa?

Tadeu = Que alguém foi apedrejado mas não quer continuar pecando.

(Cena Repórter- Crista)

Repórter = Senhora Crista Barros?

Crista = Senhorita.

Repórter = Obrigado por ter vindo. Sei que a senhora está ajudando nas investigações do Caso Mandíbula. A senhora poderia me fornecer algumas informações? Garanto que o seu nome será preservado, ficando em completo sigilo.

Crista = O que eu ganho te ajudando?

Repórter = A senhora ganha....

Crista (cortando) = Senhorita.

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Repórter = A senhorita ganha a satisfação por ter ajudado o povo a ter acesso a uma informação muito relevante.

Crista = Quantos dígitos tem essa satisfação?

Repórter = Não disponho de nenhum recurso no momento, mas posso providenciar.

Crista = Não perguntei o que você tem, perguntei quanto custa cada palavra saída da minha boca.

Repórter = Qual seu preço?

Crista = Meu pai me ensinou que quarenta é um número excelente, fecha um ciclo de perfeição. É cabalístico. Quarenta anos no deserto. Quarenta dias de chuva no dilúvio. Quarenta dias sem comer antes de ser tentado por Satã. Quarenta mil pela conversa.

Repórter = O que a senhorita sabe sobre o caso?

Crista = Nada mais que você.

Repórter = Não me faça de bobo.

Crista = Para um estagiário, até que você canta bem de galo. Que tal uma conversa amanhã? Com a satisfação em forma de cédulas?

(Cena Régio, Tadeu e Maria)

(mesa, cadeira, delegacia, uma planta num vaso no centro)

(Maria sai da caminhada vagarosa na esteira. Entra)

Maria = A quem devo a honra de ser chamada aqui?

Régio = Bom dia.

Maria = Bela plantinha. É um projeto da polícia virar uma floricultura? Flores não faltam por aqui.

Régio = É uma bela planta. Uma Lantana Camara. Conhecida como chumbinho,  ou  “mal-me-quer”,  “bem-me-quer”.  Veio  junto  com  a  mandíbula.

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Maria = Ótimo. Temos um assassino politicamente correto. Amante da natureza.

Régio = A senhora sente remorso por alguma coisa nessa vida?

Maria = Virou psicólogo agora?

Régio = Todo o mês a senhora deposita uma quantia bastante significativa na conta da senhora Cineia. Cineia, sem sobrenome. Registro na certidão de nascimento apenas Cineia.

Maria = Nunca ouvi falar.

Régio = Cineia, tia-avó de Madalena. Madalena De Freitas. Também sem sobrenome antes de casar-se com Augusto de Freitas.

Maria = Aaaah, a puta.

Régio = Algumas coisas não se encaixam. Como a senhora sabia que Madalena depositava dinheiro na conta da tia-avó?

Maria = Aquela puta, pelo menos, deu importância pra família.

Régio = E porque a senhora continua a depositar, da sua conta, um valor três vezes maior?

Maria = Depois que Madalena morreu, comecei a fazer os depósitos para Cineia. Simples. Até que, para uma delegado de merda, o senhor tem boas informações.

Régio = Tenho amigos graúdos, que nem a senhora. E nessa vida, não importa a quantidade de dinheiro, mas sim a quantidade de amigos. Por que depositar o triplo do dinheiro para a tia-avó da mulher que você faz questão de chamar de puta?

Maria = Olha pra mim Delegado. Olhe bem. Conte as rugas, se conseguir. Sou velha e rica, mas sei muito bem a crueldade que é ser velha e pobre. Me trouxe aqui só para isso? Para ressaltar esse fato e dizer que sou uma mulher boa?

Régio = Pedi para que viesse para dizer que o caso continuará a ser investigado. A senhora, seu filho, seu neto e toda a corja que eu achar necessária, será convidada para depor. Já adianto a senhora que será autuada por cúmplice e por ter ocultado provas.

Maria (rindo) = Eu trouxe umas fotos que saíram num jornal. Não são bonitas. Acho que o fotógrafo até tentou tirar poesia delas, mas não conseguiu. Esse jornal é daqueles informativos carniceiros que expõem as fotos dos seus

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mortos. É de São Luís, do Maranhão. Conhece a cara do morto? Não tem como né? Quarenta tiros na cara. Sobrou o quê? Nada. Achado numa estrada batida, numa cidadezinha do interior. Fernando Silva Cupertino. Nome bonito. O senhor o conhece? Deveria. Trabalhava no meu prédio. Mais conhecido como Caboclo. O Terceiro porteiro. O senhor deveria saber dessas coisas. Eu não deveria estar fazendo o seu serviço. Mas já que estou fazendo, o senhor bem que podia ser porteiro no meu prédio. Delegado Régio, nada é tão difícil quanto não se enganar a si próprio... Tenha bons sonhos.

(Cena Tadeu e Crista)

(Tadeu e Crista se agarram. Crista tem nas mãos uma garrafa de espumante e taças)

Crista = Do jeito que você queria?

Tadeu = Não sei ainda. E do seu?

Crista = Não é uma fortuna, mas ninguém joga quarentinha fora. Já dá pra comprar um carro popular furreca.

Tadeu = Você e essa sina por dinheiro.

Crista = Na verdade, a sede é por sexo. O resto gira em torno do sexo, tudo gira em torno do sexo, o poder, o dinheiro, a religião. Sim, até a religião, pois o que ela mais reprime é a sexualidade. Se não existisse os motéis não existiriam as igrejas. É o equilíbrio do universo. O universo é um pau imenso.

Tadeu = Você é uma leviana. Uma louca.

Crista = Mas sou sincera e digo a verdade. E existe coisa melhor do que ser recompensada por dizer a verdade? Em todo o caso, estou ajudando.

Tadeu = Quando essa merda explodir eu quero estar bem longe.

Crista = Eu não. Quero estar aqui para ver. Tacar gasolina se necessário. Ninguém vai se foder nisso tudo. Eles já estão fodidos. Os ricos já estão fodidos. Já nasceram fodidos.

Tadeu = Vai dizer que não queria ser uma grã-fina?

Crista = Nunca! Gosto do dinheiro não da riqueza.

Tadeu = Você é louca.

Crista = Sou estratégica. Bélica. Discípula de Sun Tzu. Vai ficar todo mundo bem. Todo mundo vai sair bem disso. Você vai ver.

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Tadeu = E o Régio?

Crista = Com uma gorda aposentadoria. Em casa. Descansando e dormindo. Você no lugar dele. Eu com meu carro novo. Já telefonou pra grã-fina para se oferecer como aliado? Ela vai te amar. Se ela já não te ama. Você é pior que eu. Um filho da puta pior que eu.

Tadeu = Ela é uma velha esperta.

Crista = Você tem um trunfo na mão. Vai fazer ela comer merda se quiser. Anda, liga pra ela. Vai, liga agora. Diz que você vai ajudar a colocar o Régio no sofá de casa. Vai, liga. Estou excitada.

Tadeu = Vou dizer o quê?

Crista = Começa pela verdade. Da sua influência na delegacia. Da confiança que o Régio tem na sua índole. Do rabo preso que o legista tem contigo. Humm, e depois coloque a cereja no bolo, dizendo a melhor parte, que você encomendou a morte dos porteiros.

(Todos os personagens na esteira. Menos Maria. Velocidade baixa. Caminham sincronizadamente, durante o vídeo a velocidade de Fernando é mais rápida)

(Gravação em vídeo de Repórteres tentando entrevistar Maria das Graças desce de um carro da polícia para entrar na delegacia. Maria é escoltada por seguranças. Fernando é um dos repórteres que pergunta)

Fernando = Dona Maria Das Graças, a família da senhora está envolvida no assassinato e esquartejamento da senhora Madalena de Freitas?

(vozes ao fundo, muito burburinho)

Algum outro Repórter = O filho e o neto da senhora também estão envolvidos?

Outro Repórter = A senhora tem ciência que esse escândalo pode abalar a estrutura de um dos maiores impérios da economia brasileira?

Fernando = A senhora sabia que a mandíbula endereçada ao seu filho estava com pedaços de uma planta venenosa? O assassino quer mais dinheiro? A senhora foi mandante? O seu filho foi traído por Madalena e encomendou a morte da esposa desaparecida. Há quanto tempo sua família recebe partes do corpo de Madalena? Desde o desaparecimento dela até receberem a primeira parte do corpo, quanto tempo se levou? Por que não avisaram à polícia? Vocês também estão envolvidos com o assassinato do porteiro Sebastião?

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(O vídeo termina. Fernando vai parando de correr. Até caminhar lentamente e desligar a esteira)

(Régio para. Estático. Régio e Crista continuam e aumentam a velocidade no final da cena)

Maria = Vocês deveriam ter assentos mais confortáveis. Já pensaram em estofar os bancos da frota?

Régio = Bandidos não merecem conforto.

Maria = Então sou uma bandida? Mas considerando o fato de que vocês também se locomovem nessas viaturas, podem ser considerados bandidos também?

Régio = A senhora está sendo presa por ter sido mandante e cúmplice do assassinato de Madalena de Freitas.

Maria = De Freitas não. Não suje o meu sobrenome. Tem um cigarro aqui?

Régio = Que tipo de grã-fina é a senhora que não tem dinheiro para o próprio cigarro?

Maria = Quem disse que não tenho? É que quero sentir o gosto desse lugar. Eu gosto. O gosto de bueiro sujo que essa delegacia tem. Sabor de lama. Gosto disso, fumar o seu cigarro enquanto olho você chafurdar nessa fossa. Três porteiros mortos. E uma puta esquartejada. Estou sendo acusada com que provas? Todos estão mortos.

Régio = Disso eu sei.

Maria = O senhor não sabe de porra nenhuma! O senhor não fez o que deveria ter feito. Não fez o seu serviço. Não sabe do mínimo, ou não se deu o trabalho de saber. Por acaso sabe que o tal porteiro Fernando Silva Cupertino, o Caboclo, era o pai da puta? Sabia? Não sabia. Ele era casado com a puta da Cineia. Mataram a filha-neta assim que ela voltou pra casa deles com o rabo entre as pernas e sem um puto no bolso. A família perfeita. Todos bandidos. Cineia se encarregou de mandar as partes do corpo de Madalena para se certificar que todo o dia seis nós depositaríamos uma mesada gorda na conta dela. Três vezes o valor que recebia da puta.

Régio = Por que não deu parte quando recebeu a primeira parte do corpo de Madalena como chantagem.

Maria = Delgado. Delegado. Manter a imagem é mais importante que manter a vida. Não faz bem para os negócios um empresário ser corno e suspeito de assassinato. E pra que serve o dinheiro senão para apagar os erros? E

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Madalena desaparecida, morta, tinha dignidade. Morrer nos torna dignos. Delegado, nesse país só temos uma certeza: a de virar santo depois da morte. Até bandido é canonizado quando vai pra cova.

Régio (joga algumas fotografias em cima da mesa) = Reconhece essa pessoa?

Maria = Não deveria mostrar essas fotos para uma senhora.

Régio = Essa é a Dona Cineia. Foi encontrada morta hoje, pela manhã, no seu quarto do asilo. Não sabemos a causa da morte, mas como você pode ver nas fotos, a mandíbula foi arrancada.

Maria = Então o caso está encerrado.

Régio = A senhora está presa sob a acusação de ser cúmplice do assassinato de Madalena de Freitas e ocultamento de cadáver e de provas. E ainda há a suposta acusação de ter encomendado a morte de Cineia.

Maria = Delegado Régio Antunes de Paula, eu não sou acusada de porra nenhuma. Esse caso está encerrado. Sairei agora e você tem uma coletiva amanhã de manhã para tratar de dizer que tudo não passou de mera especulação, ou, simplesmente faça como sempre se faz: deixe brandamente a poeira baixar e ninguém mais se lembrará desse caso. E como bonificação pelos seus excelentes serviços prestados, aqui está sua transferência. Estou tendo a honra de te entregar o documento. O senhor gosta do Acre? No mundo, se consegue tudo com dinheiro, e amigos... (...) Não vai me bater, Delegado? Vim aqui só pra isso.

Régio = Isso não acaba assim.

Maria = Tem razão. Não acaba. Já acabou.

(Madalena sai)

(Régio vai para a esteira e anda lentamente)

(Crista e Tadeu saem da esteira)

(Cena Tadeu e Crista – Crista está desesperada parte para cima de Tadeu agredindo-o . Tadeu se protege e tenta segura-lá)

Crista (chorando descontrolada) = Seu filho da puta! Filho da puta! Acidente de carro dentro do túnel é o seu cu! Seu porco! Eu quero que você se foda. Você

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me prometeu que não ia acontecer nada com ele! Você me prometeu que ele ia ficar seguro nessa porra toda. Você me prometeu....Filho de uma puta, desgraçado. Me larga! Me solta seu merda!

Tadeu = Calma porra! Se controla caralho!

Crista = Me solta seu ordinário. Seu policialzinho de merda. Seu merda! Me solta!

Tadeu (sacudindo Crista com força) = Calma caralho! Porra! Se controla! Ficar assim não muda as coisas.

Crista = Era só pra afastar ele disso tudo e você armou pra ele. Você mandou matar ele. Seu lixo. (cospe em Tadeu)

Tadeu (berrando) = Eu não matei ninguém porra! Foi a porra da velha que armou tudo. Caralho! E se você não se controlar vai acabar rodando também. Desde o início todo mundo sabia com que tipo de gente estávamos lidando. Nós escolhemos safar nosso pescoço, eu também não queria que terminasse assim, o trato era ele ser afastado, lá pro Acre, e continuar de boa, em casa, dormindo, que nem você disse. Me escuta Crista, me escuta. Agora não dá mais pra chorar. Engole o choro. Eu estou contigo porra. Se controla. Respira.

Crista = Eu não queria que terminasse assim. Não era assim. Estava tudo dando certo, ele não tinha nada com isso. Ele não tinha com essa porra toda entendeu? Que tipo de gente você é.

Tadeu = Do mesmo tipo que você.

Crista = Eu não sou do seu tipo de gente, caralho! Eu não tenho o sangue servil de barata que você tem, um sangue sujo, mesquinho. Mesquinho não, porque até pra ser mesquinho a gente tem que ser gente. E você não é gente. Nem inseto. Você não é porra nenhuma!

Tadeu = Se controla. Calma. Foi melhor assim. O Régio vai poder dormir até não aguentar mais, o caso foi encerrado, assumo a delegacia mês que vem, temos uma gratificação milionária. França. Que tal? Paris, ein? Teu apartamento novo. Teu carro. Quarenta mil não é porra nenhuma agora. Tem mais. Vai vir mais. Ein? Para. Respira. Me olha. Limpa esse rosto. Calma. Sossega. Vai ficar tudo bem. Sossega. Me beija vem. Daqui a quarenta dias tudo volta para o seu lugar.

Crista = Me larga, caralho!

Tadeu = A gente sabia que o Régio ia acabar assim. No fundo, você sabia. Se acalma. Vem cá. Me abraça. A menina está com a Cláudia, talvez volte pra

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casa da mãe. Via receber uma quantia gorda. Tudo se resolve. Daqui há uns quarenta dias tido volta ao normal. Vem cá. Calma. Se acalme.

(Régio volta a andar na esteira, com pressa, cita Erasmo e vai acelerando até correr no final)

(Luz vai se apagando gradativamente nos outros pontos ficando apenas em Régio)

Régio =  Nota  sobre  minha  morte.  Erasmo.  Elogio  à  Loucura.  “Vamos  parar  por  aqui, pois eu acredito que vocês podem muito bem observar o quanto o amor próprio proporciona satisfação a todos e a cada um em particular. O amor próprio tem por ímã a adulação e os dois muito se assemelham pois o amor próprio se acaricia em si mesmo, enquanto a adulação acaricia os outros. A adulação está desacreditada nos dias de hoje, pelo menos por parte daqueles para quem as palavras valem mais que os fatos. Acreditam que a sinceridade é incompatível com a adulação, enquanto poderiam dar-se conta de quanto se enganam simplesmente observando os animais que lhe demonstram o contrário. Qual deles é mais adulador que o cão e ao mesmo tempo o mais fiel? Qual acaricia mais que o esquilo, mas qual é mais amigo do homem que este? A menos que não pretendesse considerar mais úteis ao homem os leões ferozes, os tigres cruéis e os irriquietos leopardos. É bem verdade que há uma adulação, certamente perniciosa, que por vezes a maldade e a ridicularização utilizam para arruinar os pobres ingênuos. Mas, pode-se dizer, é um grande mal ser enganado. Há um pior ainda não ser enganado.”

(Luz se apaga)

(Fim)