de benguela a contra costa volume ii nova edicao revisado

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Como eu Atravessei a África do Atlântico ao Mar Índico – Viagem de Benguela à Contra- Costa Através de Regiões Desconhecidas Determinações Geográficas e Estudos Etnográficos Por Serpa Pinto Dois Volumes Contendo 15 mapas e fac-símiles - e 133 gravuras feitas dos desenhos do autor. Volume Segundo

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Este é um excelentíssimo livro (pura aventura e história), que eu tive o prazer e o longo trabalho de reeditar completamente, corrigindo o texto que estava repleto de problemas de escaneamento, apondo notas explicativas e vocabulário essencial, além da atualização ortográfica completa.Você poderá continuar lendo o seu livro sobre vampetas virgens e vegetarianas - ou até continuar naquele bruxinho que voa por aí com o rabo espetado no cabo da vassoura... O problema é seu.

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Como eu Atravessei a África do Atlântico ao Mar Índico – Viagem de Benguela à Contra-

Costa Através de Regiões Desconhecidas

Determinações Geográficas e Estudos Etnográficos

Por Serpa Pinto Dois Volumes

Contendo 15 mapas e fac-símiles - e 133 gravuras feitas dos desenhos do autor.

Volume Segundo

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Nota desta edição Por Fernando de Almeida Soares Tenho o prazer de apresentar, pela primeiravez editado em português atualizado, o relatoda expedição de Alexandre Alberto da Rochade Serpa Pinto, oficial lusitano que cruzou decosta a costa a África (1877-1879), no sentidoAtântico-Índico, a pé, enfrentando perigosseveros e à custa de esforços admiráveis. Esta edição eletrônica do relato maravilhoso dajornada de quase dois anos, foi corrigida deinúmeras falhas de escaneamento e de “semirevisões” anteriores - que deixaram muito adesejar, inclusive naquilo que é mais simples:os erros de digitação. Editei o livro de forma pessoal e não comercial,usando para isto apenas dois elementos: oamor de bibliófilo e a experiência de 50 anoscompletados de leituras incessantes. Se a algum leitor escandalizar nas minhasnotas o traço crítico, justifico-me lembrandoque o próprio autor não se poupou a elas - quese referem a aspectos graves da sociedadeportuguesa de seu tempo.

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De minha parte, apenas procurei elaborarmelhor tais pontos críticos, assentado navaranda panorâmica da História - que mepermite enxergar desdobramentos queocorreram durante as muitas décadas que sepassaram desde o fim da existência do viajanteportuguês. Também desejo avisar ao leitor que a presenteedição não se enquadra nos moldestradicionais das editoras comerciais, queconsidero tacanhos, rígidos (no pior dossentidos) e, enfim, pouco inteligentes. Serpa Pinto foi grande explorador e exímioatirador. Foi tudo isto e muito mais. Mas,aquilo que Serpa Pinto jamais chegou a ser foium escriba razoável. A sua pontuação écrudelíssima, emaranhada – o que faz o textoficar pouco compreensível e pesado naquelesperíodos intermináveis que ele constrói aorelatar a sua história. Procurei sanar o que foi possível, dando umanova pontuação, reconstruindo algumas

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sentenças – e mesmo períodos inteiros – queme pareceram terem sido escritos inabilmente. Fiz isto, é claro, usando as próprias palavras doautor – e “remontando períodos” através deuma simplificação sintática, com o rearranjo desentenças e do reposicionamento de uma jámencionada pontuação disparatada. O relato do grande sertanista foi feito a partirde notas do seu diário - notas essas que foramtomadas em circunstâncias terríveis de doençastropicais e demais percalços de viagem. Essesmementos foram depois compiladas pelopróprio viajante, em Londres, e logo a seguir olivro foi impresso na Inglaterra. Ele não pareceter tido o apoio necessário de um bom editorportuguês - chegando até nós uma obra quetem o conteúdo de uma saga, mas que éapresentada com a proficiência linguística deum cavalariano. Erros ainda terão escapado ao meu exame, eseria uma boa contribuição daqueles que osencontrarem, corrigirem-nos – voltando a

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“upar” o texto, até que tenhamos uma versãocorreta, livre de falhas berrantes. Verti a linguagem original para o portuguêsatual, tentando não macular demais a elegânciaque existiu no passado recente do nossoidioma. No entanto, tive que despojar estalinguagem de algumas palavras que, hoje,pareceriam arcaísmos indecifráveis a muitos.Esses termos foram simplesmente substituídospelos seus correspondentes de sentido maispróximo possível e que estejam em usocorrente. As pequenas notas que enxertei no livro foramprimordialmente voltadas ao significado depalavras pouco conhecidas - e àqueles verbetesmarcantemente africanos, cujas fontes depequisa de significação não estão disponíveisao leitor comum. Tais notas foram postas(sempre) o mais próximas possível daspalavras a que se referem, como deveriam sertodos os elucidários: facilitadores – e nãoquebra-cabeças. Notas curtas e essenciais. As

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exceções foram raras e absolutamenteindispensáveis. E aqui vai uma observação sobre o autor, SerpaPinto; sobre esta obra e sua época - a segundametade do século XIX. Serpa Pinto, oficial superior do ExércitoPortuguês, foi um monarquista ardoroso eobviamente conservador (ele, que esteve entreos últimos fidalgos portugueses). Dele receberemos um retrato do homemafricano que parecerá, nos dias de hoje, umverdadeiro sacrilégio. O mesmo se dará com a própria África, inteira- e o que fazer com ela para levar-lhe o máximobenefício da civilização (leia-se a posse dasterras e a extração de tudo o que não fossemuito demorado, em benefício da“civilização”). Civilização portuguesa, é claro. Não importa. Vale a viagem, a aventuraarriscadíssima – e o fato mais surpreendente:apesar de todas as probabilidades apontarem ocontrário, Serpa Pinto conseguiu cruzar o

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continente africano com os poucos recursos deque dispôs. À aventura arriscada, mais ainda do queaquelas que podem ser encontradas nos livrosde ficção juvenil, nós, leitores modernosbrasileiros, poderemos também acrescentar aaventura de olhar - tão de perto - algunsaspectos do nosso passado nativo, atravésdaqueles que foram os nossos “civilizadores”.Isto sem correr o risco de ter de embarcarnuma perigosa “máquina do tempo” - piorainda, de fabricação brasileira. Embarquemos numa mais segura, que são oslivros do tipo deste, verdadeiros emuladoresda máquina do tempo. É impressionante. Impressiona, neste e em tantos dos livros quefazem a crônica de um Portugal colonizador,ver a inépcia, o descuro com o bem comum; odesleixo com tudo aquilo que, em tese, deveriabeneficiar as gentes a que se pretende governar– e tributar. É o hospital em ruínas, o porto que não podereceber mais do que canoas, o próprio “palácio

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governamental” - prestes a cair sobre ascabeças de seus moradores, dos convidados edo séquito, que nunca foi pequeno. Seria fatigante enumerar aqui os problemas dotipo “ruas imundas”, “policiamento feito porbandidos degredados”, “soldados matrapilhose famintos”, “corrupção endêmica” e etc. Isto jáestá relatado no livro, pelo autor. Veremos, aqui, o comerciante-aventureiroportuguês, ávido por lucros rápidos eextremamente empreendedor, lado a lado como governador que roubou, enriqueceu – e foiembora lindamente com o produto de suarapina: sem perseguidores e sem transtornospenitenciários. Ele apenas dará lugar a umoutro, “ao próximo”, ao seguinte na fila. A um outro governador que foi escolhido porcritérios de “simpatia” e de “amizade”;indicação batismal, de padrinho. E lá vai oindicado, governar em África. Vai afilhado - evai pagão -, desconhecedor emérito dequalquer rudimento dos problemas e afazeresque o estão esperando no pequeno feudo

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recebido como presente. Aliás, ele não foi atrabalho. Pela janela desta “máquina do tempo”,podemos ver a forja, as fôrmas, tudo - até ocarvão que entrou na nossa fabricaçãobrasileira. E se, em um momento qualquer, acriatura ultrapassou o criador, isto só nosmostra que a evolução funciona em todas asdireções, para o bem e para o mal – porqueadaptações que são boas para aautoperpetuação parecem estar incluídas na“deriva genética”, não importando para anatureza que o bacilo passe a matar mais emelhor. Enfim, “quem sai aos seus não degenera” - e oBrasil superou em muito àquele Portugal desempre, em falta de seriedade e de escrúpulos. Este livro ajuda a explicar o Brasil. O de ontem– desde 1500 -, o de hoje, e sem a menordúvida, o Brasil de amanhã (e de enquanto eleexistir). Apreende-se isto na leitura desta obra- e em dezenas de outros livros escritos pelos

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nossos civilizadores, além da leitura cotidianados jornais brasileiros por inúmeras décadas. Porém, muito antes de provocar o desprezo ouressentimento contra os varões peninsularesque nos trouxeram ao mundo e o mundo,aquilo que de melhor poderia causar um livrodeste tipo seria fazer-nos apreciar e entenderos nossos mecanismos nacionais – mentais,sentimentais, espirituais e “educacionaisancestrais”. Porque o entendimento consola. Trata-se de um livro que nada tem demonótono, de planejado demais: puraaventura, no interior de uma África do séculoXIX que nos é descrita como belíssima,surpreendente e semidesconhecida. Sobre a KindleGarten Edições: A KindleGarten a rigor não existe; trata-seapenas de uma brincadeira. A chegada dos leitores eletrônicos agora nospermite ler obras que não são maisencontradas - algumas delas sequer nas pobresbibliotecas brasileiras. Foi a salvação.

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Mas nem tanto, infelizmente, porque há umaimensa pilha de livros-lixo disponíveis nossites de downloads de ebooks. Este tipo deliteratura atende, é claro, à “mentalidadepredominante” e abunda numa proporção de200 para 1. Duzentos livros-lixo para cada umlivro que possa de fato receber este nome:livro. Mas, e aqueles que gostam de obrassubstancias (com conteúdo e qualidade) e quenão se contentam com o que foi feito domercado editorial? É justamente aí que entra a KindleGartenEdições, como uma fonte de consolação para osleitores que desejam livros que não estãodisponíveis nas luxuosas vitrines – agorareservadas aos vampiros, zumbis, auto-ajudaimbecilizante, religiosidade mercenária e boçal,esoterismo grosseiro e etc. “Bem, pelo menos... na Internet é gratuito”... E isto adianta alguma coisa? “De graça, atéônibus errado”? Pense bem... Não! .

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O meu propósito é colocar bons livros naInternet. Quer também fazer isto? Entãoescreva para [email protected] paratrocarmos ideias de como semear o máximopossível de livros valiosos – e que não sejamaqueles clássicos mofados do porte de um“Noite na Taberna” ou, pior ainda, “Como e PorQue Sou Romancista” (e ufanista, e helenista, eprolixo, e datado). Basta! Isto já temos demais – e também nãodeixa de ser lixo, com pompas ridículas. Coloquemos livros “de graça” [gratuidade] e“com graça” [espírito, valor], para aqueles quenão se dão bem com o monturo que sai daseditoras no presente.

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Como Eu Atravessei a África (Continuação da Primeira Parte)

A Carabina D’El Rei Capítulo IX. No Baroze No alto Zambeze—O rei Lobossi—O reino doBaroze, Lui ou Ungenge—Os conselheiros do rei—Grande audiência—Audiências particulares—Parece que tudo me corre bem—Eu explicandogeografia a Gambela—Volta-se a face aosnegócios—Intrigas—Os Bihenos querem voltar—Uma embaixada a Benguela—Quimbundos eQuimbares—A preta Mariana—Tentativa deassassinato—6 de Setembro—Incêndio e combate—Retiro para as montanhas. A 25 de agosto levantei-me muito incomodadoe ardendo com febre. Estava no alto Zambeze,junto do 15o paralelo austral, na cidade deLialui, nova capital estabelecida pelo reiLobossi, do reino do Baroze, Lui ou Ungenge,que todos estes nomes pode ter o vasto impérioda África tropical do sul. Como se sabe pelas

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descrições de David Livingstone, um homemvindo do Sul à frente de um exército poderoso,o guerreiro Chibitano, Basuto de origem,atravessou o Zambeze junto da sua confluênciacom o Cuando, e invadiu os territórios do altoZambeze, sujeitando ao seu domínio todas astribos que habitavam o vasto país conquistado. Chibitano, o mais notável capitão que temexistido na África Austral, partira das margensdo Gariep com um pequeno exército formadode Basutos e Betjuanas, ao qual foi agregandoos rapazes dos povos que vencia, e ao passoque caminhava ao norte, ia organizando essasfalanges - que depois se tornaram tão terríveis,já na conquista do alto Zambeze, já na defesado país conquistado. A esse exército, formado de elementosdiferentes, de povos de muitas raças e origens,deu o seu chefe o nome de Cololos, e daí lheveio o nome de Macololos que tão conhecidose tornou em África. No alto Zambeze encontrou Chibitano muitospovos distintos, governados por chefes

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independentes, que não puderam, separadoscomo estavam, opor séria resistência ao terrívelguerreiro Basuto. Tão sábio legislador - como prudenteadministrador e audaz guerreiro -, Chibitanosoube dar união aos povos conquistados, efazer com que eles se considerassem irmãos nointeresse comum. Estes podiam agrupar-se em três divisões,marcando três raças distintas. Ao sul, abaixo da região das cataratas, osMacalacas; no centro, os Cangenjes ou Barozes;e ao norte, os Luinas, raça mais vigorosa einteligente, que devia substituir um dia osMacololos no governo do país. É própriamente no país do Baroze ou Ungenge,que se tem conservado as sedes do governodesde o tempo de Chicreto, o filho e sucessorde Chibitano; e todos os povos de Oestechamam ao vasto império Lui ou Ungenge, aopasso que os povos do sul lhe dão o nome deBaroze. Mais tarde, neste capítulo, terei ocasiãode falar na história deste povo desde a última

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visita de Livingstone até á minha passagem ali,prosseguindo agora a narrativa das minhasaventuras sob o reinado de Lobossi - e do seuconselheiro íntimo Gambela. A organização política do reino do Lui é muitodiferente da dos outros povos que eu tinhavisitado em África. Ali há dois ministériosperfeitamente definidos, o da guerra e dosnegócios estrangeiros - sendo este últimodividido em duas seções, cada uma com o seuministro. Uma delas trata dos negócios deOeste, outra dos do Sul. Isto é, uma trata comportugueses de Benguela, outra com osingleses do Cabo. Na ocasião da minha chegada, os conselheirosdo rei eram quatro, dois dos quais não tinhampasta - sendo ministro dos negóciosestrangeiros de Oeste um tal Matagja.Acumulando duas pastas, a da guerra e a dosnegócios estrangeiros do sul, Gambela, opresidente do conselho do rei. Aprendi bemestes detalhes, para regular a minha condutanas graves questões que tinha a tratar.

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Logo de manhã, fui avisado de que o reiLobossi me esperava. Larguei os meusandrajos e vesti o único vestuário que jápossuía, dirigindo-me em seguida à grandepraça onde devia ter lugar a audiência. Ele estava sentado em uma cadeira deespaldar, no meio da grande praça, e pordetraz dele um negro fazia-lhe sombra com umguarda-sol. Era um rapaz de 20 anos, de estatura elevada eproporcionalmente gordo. Vestia um casaco decasimira preta sobre uma camisa de cor - e emlugar de gravata, trazia ao pescoço um sem-número de amuletos. As calças eram de casimira de cor e deixavamver as meias de fio de escócia, muito alvas, e osapato baixo bem lustrado. Um grande cobertor de listas multicores amode de capote, e na cabeça um chapéucinzento - ornado de duas grandes e belaspenas de avestruz -, completavam o traje dogrande potentado. .

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Na mão um pedaço de madeira lavrada, aoqual estavam presas muitas crinas de cavalo,servia-lhe para enxotar as moscas - ação queele fazia com toda a gravidade. À sua direita,em cadeira mais baixa, estava sentado oGambela - e na frente os três conselheiros.Umas mil pessoas, sentadas no chão em semi-círculo, deixavam perceber a sua hierarquiapelas distâncias a que estavam do soberano.

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À minha chegada o rei Lobossi levantou-se, elogo em seguida os conselheiros e todo o povo.Troquei um aperto de mão com ele e comGambela, abaixei a cabeça a Matagja e aosoutros dois conselheiros, e sentei-me junto aLobossi e a Gambela. Depois de uma troca de comprimentos e definezas, que mais pareciam de uma corteeuropeia do que de um povo bárbaro, eu disseao rei que não era negociante; que vinha visitá-lo por ordem do Rei de Portugal - e que tinha afalar-lhe em assuuntos que não podiam sertratados ali, diante de tão numerosaassembleia. . . . . . . . . .

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Ele respondeu-me que sabia e compreendiaisso, e que a recepção que me mandara fazer navéspera e a que ele mesmo me fazia ali, memostravam que eu não era confundido comum negociante qualquer; que eu era seuhóspede - e teríamos tempo de falar emnegócios, porque ele esperava ter a felicidadede me possuir algum tempo na sua corte.Depois de me dizer esta amabilidade,despediu-se de mim, que voltei a casaabrasado em febre. No meu pátio encontreitrinta bois, que o rei me mandava de presente.

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Disse-me o escravo favorito de Lobossi, queseria delicado da minha parte mandar matar osbois e oferecer a melhor perna de boi ao rei - edar carne à gente da corte. Dei ordem a Augusto para fazer isso - e houvelogo uma carnificina enorme, sendo todos osbois mortos e a sua carne distriboída entre osmeus carregadores e a gente da corte, tendo ocuidado de mandar ao rei e aos quatroconselheiros a melhor parte e cabendo aindaassim o melhor quinhão a Gambela, a quem fiznotar a distinção que fazia.

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As peles, que ali são muito estimadas, oferecieu a Matagja e Gambela. Pela 1 hora, fuirecebido pelo rei em audiência particular emuma casa também semi-cilíndrica - mas degrandes dimensões, que não contava menos de20 metros de comprimento por 8 de largura. Lobossi estava sentado em uma esteira, e emfrente dele os quatro conselheiros ocupavamoutra - em companhia de alguns fidalgos, entreos quais estava um velho vigoroso, cujafisionomia simpática e expressiva meimpressionou. Era Machauana, o antigocompanheiro de Livingstone na viagem que océlebre explorador fez do Zambeze a Luanda -e de quem ele fala, no seu roteiro, com tantoelogio. Uma enorme panela de quimbombo* foicolocada no meio da casa, e depois de o rei terbebido, beberam todos com profusão - e nemme ofereceram, sabendo que eu só água bebia. * espécie de cerveja. Conversamos sobre coisas indiferentes, e euentendi não dever falar-lhe ainda dos meus

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negócios. Entre outras coisas, falamos arespeito de línguas diferentes, e Lobossi pediu-me que falasse um bocado em oortuguês, paraele ouvir. Recitei-lhe as “Flores da Alma”, dopoema “D. Jayme,” e os pretos ficaramencantados ao escutar a harmonia da nossalíngua, que o mimoso e grande poeta, ThomasRibeiro, soube imprimir e fazer ressaltarnaquelas estrofes singelas. Quando eu ia retirar-me, o rei disse-me baixo,de modo que ninguém percebeu, que lhe fossefalar depois de ser noite fechada. Pouco depois de eu chegar a casa, apareceu-meali Machauana, com quem conversei sobreLivingstone - e que me fez os maiores protestosde amizade. À noite, pelas 9 horas, fui à morada do rei. Eleestava num dos pátios interiores, sentado emuma esteira, junto a um grande fogo que ardianuma bacia de barro de dois metros dediâmetro. Na sua frente, em semi-círculo, uns20 homens, armados de azagaias e escudos,conservavam a maior imobilidade e silêncio.

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Pouco depois de eu chegar, chegou o Gambela,e começou a nossa conferência. Eu principieipor lhe dizer que tinha sido obrigado a deixarno caminho os ricos presentes que lhe trazia,mas que, ainda assim, tinha podido salvaralgumas pequenas coisas que lhe daria - e entreelas uma farda e um chapéu, que lheapresentei logo. Era uma dessas fardas ricamente agaloadas,que toda Lisboa viu nos lacaios postados nasantecâmaras do Marquês de Penafiel - e queforam vendidas quando o opulento fidalgotrocou a sua residência luxuosa de Lisboa peloviver mais buliçoso da capital da França. Lobossi ficou encantado com a farda e com ochapéu armado, e fez-me mil agradecimentos.Depois de uma pequena conversa semimportância, entramos no assunto. No Baroze falam-se três línguas: o Ganguela, alíngua Luina e o Sezuto, idioma deixado alipelos Macololos - que modificaram oscostumes daqueles povos a tal ponto, que até

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lhes implantaram a sua língua, que é a línguaoficial e elegante da corte. Era neste idioma que falavam Lobossi eGambela, servindo-me de intérpretesVeríssimo e Caiumbuca. Eu disse ao régulo,que vinha da parte do rei de Portugal (oMueneputo), nome pelo qual Sua MagestadeFideléssima é conhecido entre todos os povosda África Austral, e que é formado por duaspalavras: Muene, que quer dizer Rei, e Puto,nome dado em África a Portugal. Disse-lhe que o meu fim principal era abrircaminhos ao comércio, e que estando o Lui nocentro de África e já em comunicação comBenguela, desejava abrir o caminho do Zumbo- e assim um mercado muito mais perto, ondeeles poderiam ir abastecer-se dos gêneroseuropeus de que precisassem. Ele queixou-se muito da falta que nos últimostempos lhe havia feito o não virem alinegociantes de Benguela, não me ocultandoque, entre outras coisas, estava sem pólvora.Eu respondi-lhe que eles viriam, se com eles

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fizessem bons negócios - e que eu lhe podiaafirmar que o Mueneputo estava disposto aproteger o comércio com ele, se ele secomprometesse a não consentir nos seusestados a compra e a venda de escravos. Não lhe ocultei a falta de meios com que eulutava, e mostrando-lhe o desejo e empenhoque tinha em abrir o caminho do Zumbo,prometi-lhe, se ele me coadjuvasse na empresa,fazer-lhe chegar de Tete, no menor tempopossível, a pólvora e demais artigos de que elecarecia. O Gambela, homem inteligente e finodiplomata (também os há pretos), quis porvezes enredar-me, mas eu não saía da verdadee da lógica, e ele foi vencido. No fim de muito discutir, ficou decidido que orei Lobossi mandaria uma comitiva aBenguela, e para guiar a qual eu lhe daria umhomem de confiança - com cartas para ogovernador e para Silva Porto, e que ele medaria a gente de que eu precisasse para ircomigo ao Zumbo.

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Era uma hora da noite quando eu me retirei, eainda que sempre desconfiado de pretos, nãoposso deixar de confessar que me retireisatisfeito. O dia foi todo muito ocupado, edepois de recolher-me à uma da manhã,sobreveio-me um enorme acesso de febre. Levantei-me muito doente no dia seguinte, emandei logo Quimbundos e Quimbaresconstruírem um acampamento meioquilômetro ao sul de Lialui, para o que obtiveautorização do rei. Pelas 10 horas, fui visitar Lobossi - queencontrei numa grande casa circular, cercadode gente e tendo diante de si seis enormespanelas de capata. O meu Augusto, Veríssimo,Caiumbuca e a gente do régulo dentro empouco estavam bêbados de cair, e ninguém seentendia ali. Eu voltei a casa e tive de deitar-me, de tal modo me recresceu a febre. Foi imensa gente visitar-me, e como eu nãotinha remédio senão ouvir uns e outros,porque aqueles negros não têm a menorconsideração por um doente, piorei muito.

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Lobossi mandou-me seis bois, cuja carne foitoda furtada pela gente dele - porque a minhaestava longe construindo o acampamento, eAugusto, Veríssimo e Camutombocompletamente bêbados, não quiseram saberdisso. No dia imediato, Lobossi veio visitar-me logode manhã; eu estava um pouco melhor, mas afebre era constante e não queria ceder aosmedicamentos. Às 10 horas, Lobossi mandou-me pedir para comparecer diante do seugrande conselho, que fizera convocarexpressamente para eu expor os meus projetos. Outra vez Gambela, que presidia à assembleia,me quis embaraçar, e outra vez se saiu mal.Tive de explicar geografia a Gambela e aosconselheiros da coroa. Tracei-lhes no chão o curso do Zambeze, e aleste, paralelo a ele, o curso do Loengue, quecom o nome de Cafucué, vai entrar noZambeze à jusante dos rápidos de Cariba. Mostrei-lhes que em 15 dias alcançaria apovoação de Cainco, situada em uma ilha do

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Loengue - e que desceríamos o rio embarcadosaté ao Zambeze, e por este ao Zumbo. Afirmei-lhes que o Loengue não tinhacataratas, e que o Zambeze de Cariba aoZumbo era perfeitamente navegável. Insisti pois neste ponto, demonstrando-lhesque apenas com uma travessia por terra de 15dias, que se podia reduzir mesmo em 10(citando-lhes para isso o fato de uma expediçãoLuina que, partindo de Narieze, tinhaalcansado Cainco em 8 dias), com umapequena travessia por terra eles estariam emrápida comunicação com os estabelecimentosportugueses de Leste, por vias fluviaiscompletamente navegáveis. O público estava admirado da minha erudição,e Gambela, que sabia mais geografia africanado que muitos ministros de estado europeus, eque conhecia ser verdade o que eu expunha,cedeu àss razões. Depois de longa e acalorada discussão, foiresolvido que se enviasse a comitiva aBenguela - e que me fosse dada a gente

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suficiente para atravessar o Chuculumbe atéCainco, deixando três ou quatro fortes postosno caminho, para segurar a passagem àquelesque, indo comigo até ao Zumbo, tivessem deregressar. No fim da sessão, houve grandeentusiasmo - e foram logo nomeados os chefesque deviam ir a Benguela e os que me deviamacompanhar. Voltei a casa com um tal acesso de febre queperdi a razão, melhorando ás 6 horas da tarde.À noite, anunciaram-me a visita deMunutumueno, filho do rei Chipopa, oprimeiro rei da dinastia Luina. Mandei-oentrar, e vi um rapaz de 16 a 17 anos, muitoelegante e simpático. Trazia uma calça preta e uma farda de alferesde cavallaria ligeira, em muito bom estado.Fez-me profunda impressão ver aquela farda!A quem teria pertencido? Como teria ido pararno centro da África? Talvez alguma viúvanecessitada encontrasse na venda daqueleobjeto, que pertencera a um esposo amado,algumas migalhas de pão para matar a fome.

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Perguntei a Munutumueno como tinha obtidoaquela farda - e ele respondeu-me que tinhasido presente de um sertanejo Biheno, havia jámuito tempo. Indaguei se não lhe havia encontrado nada nosbolsos, e ele respondeu-me que não tinhabolsos. Uma farda de oficial sem bolsos eraimpossível. Pedi-lhe para ma deixar examinar,e tendo ele desabotoado o peito, efetivamentevi que não tinha bolso ali. Roguei-lhe que se voltasse, e comecei aexplorar-lhe os bolsos das abas. Ele estavaadmirado, porque não sabia que tinha bolsosali. Em um deles os meus dedos encontraramum pequenino bilhete. Iria saber a quem tinha pertencido aquelafarda? O que conteria aquele papelinhodobrado que eu tinha diante dos olhos e nãome atrevia a abrir? Cheio de comoção, desdobrei o papel - e vinele algumas linhas escritas a lápis, que liavidamente. Não pude conter uma gargalhada. .

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O papel dizia assim: “Se lhe não souindiferente, rogo-lhe o obséquio de me indicaro modo de nos correspondermos.” Por baixoum nome e uma morada. Sabia de quem fora a farda. O nome era o deum dos meus amigos e antigo condiscípulo,que hoje ocupa uma distintíssima posiçãonuma das armas científicas do ExércitoPortuguês. Um dia, em público, cometi a indiscrição depronunciar o nome do signatário do bilhete,que eu possuo - e ainda que indiscreto fui, nãocreio ter de modo algum ofendido aquelenobre oficial e distinto cavalheiro. Uma farda que o talento e a aplicação aoestudo fizeram trocar por outra, mais distinta;que, abandonada ou dada a algum criado, pelainstabilidade das coisas, foi parar ao centro deÁfrica, creio é coisa que não desdouraninguém. E quanto ao bilhete de amores, creiobem que ainda menos o deve vexar. . .

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Infelizes daqueles que, aos dezoito anos, nãoescreveram bilhetes assim - e mais infelizes osque depois dos trinta já os não podem escrever.“Aquilo, meu amigo, foi coisa que um papá, ouuma mamã, sempre impertinentes em taiscasos, te não deixou entregar, ao sair do teatroou de um baile, à tua Dulcineia daquela noite,ou que a tua timidez dos dezoito anos fezrecolher ao bolso. Imagino, meu amigo, que tedeves ter rido, sabendo que aquele bilheteesquecido, depois de atravessar os mares,atravessou aqueles inóspitos países e andouem companhia de um preto no alto Zambeze. Éverdade que, para te consolares, sabes que essepreto era filho de rei.” Nesta aventura, eu fui o único tolo, em ter tidopensamentos tristes à vista do bilheteencontrado no bolso da farda de um alferes decavalaria - porque logo devia supor que talbilhete só podia ser um bilhete de amor. Um alferes de cavalaria, em Portugal, como emtodos os países, é sempre um fogacho onde asmariposas vêm queimar as asas douradas.

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Pensando na proposição que acabo deformular, deitei-me cheio de tristeza,lembrando-me que ja era major. No dia imediato, recresceu a febre a ponto deeu não poder andar. Lobossi foi visitar-me, elevou consigo o seu médico de confiança. Eraum velho pequeno e magro, de barba e cabelobranco. Princípiou ele por tirar do pescoço um cordãoonde tinha enfiado oito metades de caroços deuma fruta qualquer que eu não conhecia.Começou, com grande recolhimento, apronunciar umas palavras mágicas, e atiroucom os caroços ao chão. Destes, uns ficaramcom a parte interna voltada para a terra, outroscom a externa. Ele leu naquela disposição,concluindo da leitura que os meus parentesmortos se tinham apossado de mim - e que erapreciso dar-lhes alguma coisa para eles medeixarem. Eu aturei tudo com a maiorpaciência, fingindo acreditar o que ele me dizia- e dei-lhe um pequeno presente de pólvora.

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Naquele dia o Gambela deu-me um presentede dez cargas de milho e massambala. Estandoconcluído o meu acampamento, mudei paraele. No dia 29 de agosto, a febre cedeu umpouco às fortes doses de quinino que tomei, esenti bastantes melhoras. O meu estado moralé que piorava de instante a instante. Tinha alguns momentos de desalentoinexplicáveis. A minha energia cedia ante afraqueza moral que se apossava de mim.Estava sob o peso esmagador de um terrívelataque de nostalgia. O rei mostrava muitos cuidados pelo meuestado - mas cada portador que vinhaencarregado de saber da minha saúde eraemissário de um pedido cada vez maisimpertinente. Naquele dia, mandou ele os seus músicostocarem e cantarem para me entreter, masmandou em seguida pedir-me dois cartuchosde pólvora por cada músico. Nessa tarde ouvi grandes toques de tamboresna cidade, e o rei mandou-me pedir que

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mandasse dar alguns tiros na grande praça,desejo que eu satisfiz mandando doze homensdar fogo. Soube depois que aquilo era uma convocação àguerra - e antes de falar nos motivos dela, direiem poucas palavras a história do Lui, desde oponto em que ficou narrada pelo Dr.Livingstone, isto é, desde a morte de Chicrêto. O império, poderosamente sustentado pelamão de ferro, sábia prudência e fina política deChibitano, marcou-se com uma profundapegada de decadência no reinado de seu filhoChicrêto. David Livingstone, muito grato aosfavores de Chicrêto, que lhe deu os meios de ira Luanda e a Moçambique, é talvez bastantesuspeito nos elogios que dispensa a este rei - emesmo na narrativa da viagem que ali fezdepois com seu irmão Carlos e o Doutor Kirk,não pôde deixar de narrar a desordem eprofunda decadência em que encontrou oimpério Macololo. Das gentes vindas do sul com Chibitano, isto é,Macololos, poucos existiam já - tendo sido

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dizimados pelas febres do país, que nem aosnaturais poupam. A embriaguez e o uso dobangue*, de mistura com os desregramentosdos chefes, tinham feito perder toda aautoridade aos invasores. Morto Chicrêto,sucedeu-lhe seu sobrinho Omborolo, que deviareinar durante a minoridade de Pepe, irmãomuito mais novo de Chicrêto e filho ainda doGrande Chibitano. *Maconha. Os Luinas conspiravam, e um dia Pepe foiassassinado. Omborolo não tardou a ter amesma sorte - e tendo sido ordenada uma SaintBarthélemi* pelos Luinas, os restos desse forteexército invasor foi assassinado, escapandoapenas poucos, sob o comando de Siroque,irmão da mãe de Chicrêto, que fugiu paraOeste, passando o Zambeze em Nariere. * Noite de São Bartolomeu, histórico massacre. Os Luinas, depois dessa carnificina traiçoeira,aclamaram seu chefe Chipópa, homem de tino,que não deixou desmembrar o país e procurouconservar o império poderoso, como em tempode Chibitano.

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Chipópa reinou muitos anos, mas as ambiçõesapareceram e, em 1876, um tal Gambela fê-loassassinar - e aclamar seu sobrinhoManuanino, criança de 17 anos. O primeiro ato do poder de Manuanino foimandar cortar a cabeça a Gambela, que o tinhafeito rei - e desprezando todos os parentes eamigos do pai que o elevaram ao poder,chamou para junto de si só os parentesmaternos. Aqueles conspiraram, fizeram umarevolução e tentaram assassiná-lo, em marçode 1878 - mas Manuanino, tendo alguns fiéis,pôde escapar e fugiu para o Cuando, ondeassaltou e devastou a povoação deMutambanja. Lobossi, aclamado rei, enviuu contra ele umexército, e Manuanino teve de retirar dali, erepassando o Zambeze em Quisséque,internou-se no país do Choculumbe,atravessou este país, e foi juntar-se a unsbrancos, caçadores de elefantes, que estavamna margem do Cafuque. Lobossi entendeu, quea sua segurança dependia da morte de

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Manuanino - e mandou contra ele um novoexército. Foi do resultado daquela expediçãoque nesse dia chegaram notícias. Chegados perto do lugar onde estava o ex-soberano com os brancos, que eles chamamMozungos, intimaram estes a que lhesentregassem Manuanino para o matarem.Como houvesse recusa, eles os atacaram, mascom tanta infelicidade que foramcompletamente batidos pelos brancos,escapando muito poucos - que nessa tardechegaram a Lialui a narrar o seu desastre. Eis aqui o motivo porque os tambores tocavamconvocando a guerra - e porque o rei Lobossime pediu que mandasse dar tiros na grandepraça da cidade. Já que falei na história do Lui, não devoprosseguir sem narrar um dos seus episódiosmais interessantes, porque se refere a um tipoverdadeiramente simpático. É Siroque, aquele Macololo, que, na ocasião daSaint Barthélemi dos Macololos, conseguiu

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escapar com um grupo de gente, passando oZambeze. Siroque, intrépido e audaz, caminhou a oesteaté encontrar o Cubango - onde se estabeleceu,vivendo da caça dos elefantes. Depois subiu o rio até ao Bihé, e fixou-se alipor muito tempo - chegando por vezes a ir aBenguela em comitivas sertanejas. Um diaporém, tendo umas questões em que bateu osque o atacaram, retirou por prudência para ointerior, indo acampar no rio Cuando abaixodo Cuchibi, onde continuou a vida de caçador. Siroque era inteligente e bravo - e de umafamília que tinha reinado. Não podia deixar deser ambicioso. Sonhou com o restabelecimentoda monarquia Macolola no Lui e foi-seaproximando dali pelo Cuando. Um pombeiro do Bihé, seu amigo e que lhetinha fornecido pólvora, denunciou-o - eManuanino, então aclamado de pouco, fê-loassassinar junto da povoação de Mutambanja,pela mais covarde traição. Todos os seus foram

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vítimas, e a azagaia do assassino de Siroqueabriu o túmulo ao último dos Macololos. Aquele dia amanhecido tão bonançoso para oadolescente monarca, que só via sorrir-lhe avida, tornara-se de repente sombrio ecarregado - envolvido em nuvens detempestade. As notícias más sucedem-se, e corria o boato deque Lo Bengula, o poderoso rei do Matebeli,projetava um ataque contra o Lui. Andavam todos desorientados, todos emitiamalvitres, todos pensavam loucuras. Só doishomens se conservavam serenos no meiodaquele povo semi-louco. Eram Machauana eGambela – Gambela, o ministro da Guerra,Machauana, o general em chefe. Ordens acertadas e rápidas eram dadas poreles a emissários fiéis, que partiam parapovoações distantes. O que seria de mim no meio dos novosacontecimentos que agitavam o país? Diziam e repetiam, que foram os Muzungos*que mataram os sicários de Lobossi, enviados

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contra Manuanino, e se ali se soubesse que euera Muzungo, estava irremédiavelmenteperdido. Estes povos felizmente ignoram isso,e pensam que os portugueses de leste são deoutra raça diferente dos portugueses de oeste. * Brancos europeus (e o africano tinha dificuldadesem distinguir entre ingleses, portugueses,holandeses, belgas, franceses e etc). No Lui, os portugueses das colônias de oestesam chamados Chiudéres, nome que lhes damos Bihenos; os das colônias de leste, Muzungos;e os ingleses do sul, Macúas. A todo e qualquerpreto que vem das colônias portuguesaschamam Mambares, decerto corrupção dapalavra Quimbares, com que são designadosos pretos semi-civilizados de Benguela. Daíproveio o erro do Doutor Livingstone,colocando a oeste das serras de Tala Mugongouma raça de Mambares. Os Quimbares são pretos de qualquerprocedência, geralmente escravos ou libertos,que já são meio civilizados. São, finalmente, agente das senzalas de Benguela e asescravaturas dos brancos da costa. Em

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Benguela chamam Quimbundos ao gentioselvagem do interior, designando com essenome mais particularmente os Bihenos. No dia 30, logo de manhã, Lobossi mandoudar-me parte de que se ia fazer a guerra - e dosmotivos que a isso o obrigavam. O emissário foi o próprio Gambela, que medisse logo, que, sendo o Chuculumbe o teatroda guerra, era impossível a minha viagem porali - e por isso, que tudo o que havíamoscombinado estava prejudicado. Aqueles acontecimentos tornavam muitocrítica a minha posição. Nessa tarde, estandoeu com um novo e violento acesso de febre,vieram prevenir-me de que os pombeirosBihenos me queriam falar. Levantei-me a custoe fui ouví-los. Depois de variados preâmbulos, disseram-me,que me iam deixar, porque viam o maucaminho que as coisas tomavam no Lui, e sódesejavam voltar ao Bihé. Covardes! Abandonavam-me no momento emque eu mais precisava deles! Miguel, o caçador

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de elefantes, o pombeiro Chaquiçongo e doiscarregadores, além de Catiba, de umcarregador e do Doutor Chacaiombe, vieramprotestar-me a sua amizade - e declarar-meque ficavam comigo. Todos os Quimbares mevieram fazer igual declaração. Aquela resolução inesperada dos Bihenos fez-me recobrar o sangue frio que já não tinha hádias. Aumentavam as dificuldades, era precisolutar, e eu sacudi o entorpecimento moral quese ia apossando de mim. Imediatamente despedi os Bihenos, que pusfora do acampamento, entregando-os ao pretoAntonio, o velho Antonio que eu tinhadesignado a Lobossi para ser chefe e guia dacomitiva que ele ia mandar a Benguela. Fiz em seguida a conta à minha gente - e achei-me com 58 homens. No dia imediato, Lobossi veio a minha casa efez-me repetidas exigências de coisas que eunão possuía - e ele queria por força que eutivesse e lhe desse. Estava cada vez maisimportuno. Era uma criança, mas criança

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impertinentíssima. Precisava de uma paciênciasem limites para o aturar. Lobossi mandou-me chamar nessa noite. Fuilá, e ele disse-me que a minha viagem peloChuculumbe era impossível, mas que me dariaguias e alguma gente para eu tornear pelo sul eir ao Zumbo. Disse-me que o boato a respeito dos Matebelesnão tinha fundamento; que daquele lado haviapaz e ele terminaria facilmente comManuanino. Queixou-se muito amargamentede eu lhe dar poucas coisas, dizendo, que se eunada mais tinha, lhe desse todas as armas e apólvora que possuía, porque, seguindo para oZumbo com gente dele, seria defendido por ela- e não precisava levar tanta gente armada. Ofereci-lhe as armas dos Bihenos que metinham deixado nesse dia - e que tive ocuidado de lhes tirar - e sete barris de pólvora,mas neguei-me formalmente a dar-lhe uma sóque fosse das outras, dos homens que meficaram, ou das minhas particulares. Retirei-mepouco satisfeito daquela entrevista.

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No primeiro de setembro, levantei-me muitodoente e depois de ter feito as observações damanhã tornei a deitar-me - quando o Veríssimoentrou espavorido na barraca e me disse queLobossi mandara chamar toda a minha gente, elhe expusera que eu tinha vindo ali depropósito para me ir juntar aos Muzungos queestavam no Cafuque com o Manuanino, efazer-lhe guerra a ele. Isso estava demonstradopela minha insistência em querer ir aoChuculumbe. Nessa noite fora ele prevenidodos projetos que eu meditava - e portanto meia obrigar a sair dos seus estados e só medeixaria livre o caminho do Bihé. Encarregara ele o Veríssimo de me vir fazer aintimação, coisa que em nada me desconcertouo espírito, porque, desde a véspera à noite, euesperava novidade grande. Mandei chamar o Gambela, mas ele teve ocuidado de fazer com que o não encontrassemem todo o dia. Um recado que fiz chegar aLobossi, mostrando-lhe a inconveniência dopasso que dava, porque eu lhe podia fazer

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muito mal impedindo os sertanejos do Bihé devirem ali, teve por única resposta novomandado de despejo - e só livre o caminho doBihé. À tarde, nova prevenção de que as forças queestavam reunidas para a guerra, não sairiamsem eu ter deixado o país do Lui em caminhode Benguela. Respondi ao enviado que dissesse ao reiLobossi que dormisse sobre o caso, porque anoite era boa conselheira - e que esperavaainda a sua última decisão, no dia imediato. A 2 de setembro, logo de manhã, recebi a visitade Gambela - que vinha da parte do reiordenar-me que saísse do seu reinoimediatamente, e que o único caminho livreera o do Bihé. Não pode passar nem por ali,nem por ali, nem por ali, me disse ele,apontando para o N., E. e S. Contra todos os usos do país, o Gambela,enquanto esteve em minha casa, conservou asarmas na mão - e eu entretive-me brincandocom um magnífico revólver Adams-Colt.

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Fingi que meditei a minha resposta e disse-lhe:“Amigo Gambela, vá dizer a Lobossi, ou tomeo recado para si, que eu não arredo um passodaqui para seguir o caminho de Benguela. Temaí um numeroso exército, que me venha atacar.Eu saberei defender-me - e se morrer, oMueneputo lhe tomará contas disso. Vocêsestão indispostos com os Matebeles,ameaçados pela guerra civil levantada porManuanino; indisponham-se também com oMueneputo, e estão perdidos. Outra vez lherepito, que não sairei daqui senão para seguir omeu caminho.” Gambela saiu da minhabarraca furioso. Nessa noite Machauana veio furtivamentevisitar-me. Previniu-me ele de que Gambelaaconselhara ao rei para me mandar matar - eque Lobossi se negara a isso terminantemente.O caso foi passado em conselho, a que assistiaMachauana, que me fez mil prevenções paraestar de sobreaviso. A larga conversação que tive com o antigocompanheiro de Livingstone, mostrou-me que

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entre ele e Gambela havia rixa velha. O antigoguerreiro de Chibitano, depois muito afeiçoadoao rei Chipopa, só pensava em ver ocupar otrono do Lui ao filho deste, seu pupilo e seuprotegido, o joven Munutumueno, o meualferes de cavalaria ligeira. Tendo podido ler no coração do velho aqueleódio e aquela afeição, considerei-me salvo. Oseu poder era grande, porque ele tinhainfluência numa enorme parte das tribos doLui - e por isso as azagaias, que tanto ferem alinas revoluções, o tinham poupado. Fiz-lhemuitos protestos de gratidão, e pedi-lhe queme prevenisse logo que o rei Lobossideterminasse matar-me. Ele prometeu, eretirou-se. Eu fui deitar-me, levando a referver na menteum plano singelo - que me abstive decomunicar a Machauana, para lhe evitar ideiascobiçosas, que ele não tinha naquele momento. Resolvi, se acaso Lobossi decretasse a minhamorte, chamar cinco dos meus homens maisdecididos, uma espécie de cães que eu tinha

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comigo, como eram Augusto, Camutombo eoutros, e ir com eles logo à audiência do rei,onde todos estão desarmados, e fazê-los, a umsinal meu, saltarem sobre Lobossi, Gambela,Matagja e os outros dois conselheiros íntimos,e eu de um pulo acercar-me de Machauana ogeneral em chefe, o homem que tinha aliacampados dez mil guerreiros, e gritar-lhe bemalto “Viva Munutumueno, rei do Lui, viva ofilho de Chipopa!” Uma revolução feita nestes termos não podiadeixar de dar bom resultado num país que amaas revoluções, e onde se faria a primeira emque não houvesse uma gota de sanguederramado. Acalentando este pensamento salvador,adormeci profundamente, para acordar, no dia3, ao chamamento do meu moleque Catraio,que me vinha prevenir de que Lobossi estavaali - e me queria falar. Levantei-me e fui receber o rei. Ele vinhaparticipar-me que tinha mudado de parecer, e

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que todos os caminhos estavam livres paramim. Que me daria guias até ao Quisséque, mas que,em vista das coisas que se estavam passandonos seus estados, não podia dar-me força parame seguir - nem se responsabilizava porqualquer desastre que me pudesse acontecer,indo eu com 58 homens apenas. Agradeci-lhe aquela decisão e declarei-lhe quetinha por costume só eu mesmo meresponsabilizar pela minha vida, e não tornarninguém responsável por ela. Antes de se retirar, fez-me muitos pedidos, queficaram sem satisfação - por não ter nada doque ele queria. Um dos pedidos que me faziatodos os dias, era o de seis cavalos. Tendo-mevisto chegar a pé, e sabendo que eu não tinhacavalos, era impertinência tal desejo. Soube depois, que a nova decisão tomada porLobossi fora filha de reiteradas instâncias doMachauana, que lhe mostrou a inconveniênciado passo que dava, fazendo-me sair dos seusestados contra minha vontade.

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No dia 4, de manhã, estando um pouco melhorda febre, fui assistir a uma audiência do rei,que se mostrou em extremo amável paracomigo. Logo ao nascer do sol, Lobossi sai dosseus aposentos, e ao som de marimbas etambores dirige-se à grande praça, onde vaisentar-se junto a uma alta sebe semi-circular,cujo centro é ocupado pela cadeira real. Por detraz dele senta-se a gente que compõe acorte, e à sua direita Gambela e os outrosconselheiros, se estão presentes. Na frente do régulo, a 20 passos, a música emlinha - e aos lados, em muitas fileiras, o povo. Ali tratam-se um certo número de negócios,que não precisam ser tratados em conselhoprivado. Aquela audiência é também judicial.Naquele dia tratava-se de um crime de furto. Oqueixoso chamou o acusado, que veio sentar-seem frente dele, e fez a acusação. O acusadonegou o crime, e logo dentre o povo saiu umhomem que veio advogar em favor do réu. Aliqualquer amigo ou parente pode defender oamigo ou parente.

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Gambela tomou a palavra, e o acusado veioajoelhar em frente dele; fez-lhe váriasperguntas e mandou-o embora. Continuou o debate, comparecendotestemunhas de acusação e defesa. O crime foiprovado, e o acusador pediu, que lheentregassem a mulher do ladrão - ficandoindenizado da perda de uns fios de miçanga,objeto do roubo, pela posse da mulher. Terminado este debate, aparaceu outro homemacusando a mulher de lhe não obedecer. Estaacusação foi seguida de muitas outrassemelhantes, e mais de vinte súditos deLobossi fizeram amargas queixas contra asesposas - demonstrando-me que as mulheresem Lialui estavam em completa revoltadoméstica. Depois de alguma discussão, foiresolvido que toda a mulher que nãoobedecesse cega e absolutamente ao maridofosse amarrada e metida na lagoa, ondepassaria uma noite - só com a cabeça de fora. . .

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Aprovada esta nova lei, Gambela ordenou aalguns chefes que a promulgassem naspovoações. Uma coisa muito curiosa naquelas audiências éo modo pelo qual Gambela conferência com orei em segredo, diante de todos. A um sinal deGambela, começa a música a tocar - e os oitobatuques fazem uma bulha de tal modoinfernal que é impossível perceber umapalavra das que trocam o rei e o ministro. Em seguida à audiência, o rei vai para umaposento próprio para se embebedarem. Vêm panelas e panelas de capata, e ele e osseus prestão um verdadeiro culto ao deusBaco. Dali vai para a cama, e à tarde, depois denovas libações, dá nova audiência. Logo que,ao anoitecer, termina a audiência, vai comer - esegue para o serralho, de onde raramente saiantes da uma hora, recolhendo a casa paradormir, vai deitar-se ao som ruídoso dostambores. O cessar dos batuques anuncia que o réguloestá recolhido, e então a guarda, composta de

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uns quarenta homens, começa a tocar umamúsica, que, apesar de monótona, é agradável.E toda a noite cantam um coro suave eharmonioso, à meia voz. Esta música, que noBaroze acalenta o sono do soberano, serve paramostrar que a guarda vela em torno do seuaposento. Nestes poucos traços dou uma ideiaresumida do viver monótono do autocrataafricano, viver repartido entre a lascívia torpe ea embriaguez brutal. Naquele dia, 4 de setembro, soube que devia avida a Machauana, que, em conselho privado,se opôs formalmente a que me mandassemassassinar. Dizendo que ele tinha estado emLuanda com Livingstone, e ali tinha sido muitobem tratado pelos brancos, assim como osLuinas que o acompanhavam - e por isso nãopodia consentir que fizessem mal a um brancoda mesma raça. Chegou mesmo a ameaçar os poderesconstituídos, o que era caso grave para eles -porque no Lui os ministros morrem sempre naqueda dos ministérios, precaução tomada

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pelos novos conselheiros, que com algunsgolpes de azagaia cortam pela raiz asoposições. Cá na Europa, algumas vezes, procura-sedenegrir a reputação dos antecessores,buscando desdourá-los aos olhos do povo paralhes diminuir a força moral como oposição. Euacho mais nobre, mais digno e mais seguro osistema político dos Luinas - o que não querdizer que o recomende. O conselho, em vista da atitude e das razões deMachauana, decidiu que eu não morresse, mas,parece que algum dos conselheiros, por contaprópria, decidiu o contrário - porque nessanoite, estando afastado do acampamento,preparando-me para tomar alturas da lua, umaazagaia de arremesso passou tão perto de mimque a aste vergastou-me o braço esquerdo.Olhei para o lado de onde partira a arma e vium preto a vinte passos, empunhando outra.Tirar o revólver e fazer fogo sobre ele foi atomais instintivo do que pensado. Ao estampidodo tiro, o assassino virou costas e correu em

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direção a Lialui. Corri sobre ele. Sentindo-meno encalço, o preto deitou-se por terra. Receeiuma cilada - e foi a passos medidos que meaproximei dele, promto a fazer fogo. Vi que o membrudo indígena estava de bruçoscom as azagaias caídas ao lado. Peguei-lhenum braço, e ao tempo que senti as carnesestremecerem ao contato da minha mão, sentium líquido quente correr-me por entre osdedos. O homem estava ferido. Fi-lo erguer eele disse-me, transido de medo, umas palavrasque eu não entendi. Apontando-lhe o revólver,obriguei-o a acompanhar-me ao acampamento. Ali não fizera sensação o tiro de revólver,porque todas as noites se ouvem mais oumenos tiros. Chamei dois moleques deconfiança e entreguei-lhe o meu prisioneiro,cuja ferida examinei. A bala entrara junto àcabeça superior do úmero direito, perto daclavícula - e não tendo saído, supus estar fixana omoplata. Não lhe aparecendo sangue nasvias respiratórias, calculei que o pulmão nãotinha sido ofendido, assim como o fio de

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sangue que corria da ferida, pela suatenuidade, me mostrava que nenhum dosvasos importantes da circulação tinha sidocortado. Nestas condições a ferida nãoapresentava gravidade, pelo menos demomento. Depois de lhe fazer um ligeiro curativo,mandei chamar o Caiumbuca, e ordenei-lheque me acompanhasse a casa do rei - fazendocom que os moleques conduzissem para ali oferido. Lobossi tinha voltado de casa das amantes econversava com Gambela antes de se deitar.Apresentei-lhe o ferido e perguntei-lhe o queera aquilo. O rei mostrou um grande terror,vendo-me coberto de sangue do assassino -que eu nem tinha lavado. Um olhar trocadoentre Gambela e o ferido, mostrou-me quemtinha sido a cabeça que enviara aquele braço.Lobossi mandou logo retirar dali o preto, edisse-me que aquilo era um grande agouro - eque já não dormiria aquela noite sossegado. .

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Narrei o acontecido - e Gambela apoiou muitoo que eu tinha feito, lastimando que eu nãotivesse morto o preto e dizendo-me que iamatar meio mundo. O preto era desconhecido em Lialui, e os daguarda de Lobosi disseram nunca o teremvisto. Lobossi pediu-me que guardasse sobre ofato o maior segredo, assegurando-me que nãome acontecia outra enquanto estivesse nos seusestados. Eu voltei ao campo mais desconfiado quenunca das amabilidades de Gambela. Por noitefora, senti que alguém tentava penetrar naminha barraca - e pus-me de pé sem ruído,promto a surprender aquele que julgava fazer-me surpresa. A pessoa era decerto conhecida, porque aminha cadela Traviata não ladrava - e faziafestas com a cauda para o ponto por ondealguém se introduzia de rastos. Esperei um momento e, ao clarão da fogueira,conheci a preta Mariana, que, com meio corpo

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dentro da barraca, me fazia sinal para queentivesse calado. Entrou, chegou-se a mim e disse-me: “Tomacautela. O Caiumbuca atraiçoa-te. Depois quevoltou contigo de casa do rei, tornou a Lialui afalar com Gambela. Logo que chegou aqui,reuniu com muito silêncio a gente de SilvaPorto - e esteve a falar com eles na barracadele. Eu fui escutar, e ouvi falar em tematarem. O Veríssimo também lá estava. Elesdisseram que, como tu não entendias a línguado Lui, quando tu lhes dissesses uma coisapara dizer ao rei, eles diriam outra - e tedariam também a resposta trocada, que assimhaviam de fazer com que o rei te matasse. “Toma cautela, olha que eles são muito maus.” Agradeci muito à pequena o aviso e dei-lhe oúnico colar de miçanga que me restava, e queeu reservava para uma das favoritas deMachauana. A declaração da Marianna, veio ferir-meprofundamente. Os homens em que euconfiava eram os primeiros a atraiçoar-me. Mil

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pensamentos tristes, que não conseguiramalquebrar-me o espírito, produziram uma noitede insônia. É verdade, que a prevenção deMariana veio dar-me uma vantagem enormesobre eles, que ignoravam que eu lhes conheciaa traição nos seus detalhes. De manhã, aolevantar-me, eu repetia a mim mesmo o rifãoportuguês de que “um homem avisado valepor quatro.” Gambela foi visitar-me e repetio-me milprotestos de amizade, mas eu presentia que operigo pairava em torno de mim - e que aespada de Dâmocles estava suspensa sobre aminha cabeça. Nesse dia entreguei a Gambela as cartas para ogovernador de Benguela - e a comitiva do reido Lui, comandada por três chefes Luinas eguiada pelo velho Antonio de PungoAndongo, seguiu caminho da costa. Com ela foram os Bihenos que me haviamabandonado. Estava satisfeito com aqueleprimeiro resultado obtido - e se os meustrabalhos se perdessem e mais nada fizesse, o

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ter posto um povo tão poderoso em relaçõescom a civilização europeia da costa, era já umresultado importante da minha viagem. A revelação feita nessa noite por Marianatrazia-me preocupado, e eu só pensava nomeio de parar o golpe que me feria, com atraição daqueles em que eu mais confiava. Formei um plano que decidi por em práticanesse mesmo dia. A narrativa dos repetidos egraves acontecimentos que se deram comigodepois da minha chegada ao Lui, não me temdeixado falar dos povos Luinas e seuscostumes. Em lugar de encontrar ali essa raça forte evigorosa, criada por Chibitano e que existiucom o império Macololo, fui deparar com umaraça abastardada, misto de Calabares, Luinas,Ganguelas e Macalacas, que têm unido o seusangue - marcando cada cruzamento umapegada de decadência. O uso imoderado dobangue ou cangonha (cannabis indica), aembriaguez e a sífilis, têm lançado aquele povo

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no mais abjecto embrutecimento moral eenfraquecimento físico.

O primeiro daqueles três grandes inimigos daraça preta chegou-lhe do sul e leste peloZambeze; os dois outros foram ali importadospelos Bihenos, que lhe trouxeram ainda outroinimigo não menos terrível, o trafico daescravatura. Poucos países africanos levaram tão longecomo os Luinas a pràtica da poligamia.Gambela, à época da minha estada no Baroze,tinha mais de setenta mulheres! O Lui, ou Baroze própriamente dito, isto é, opaís que fica ao norte da primeira região das

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cataratas, compõe-se da enorme planície ondecorre o Zambeze, que tem de 180 a 200 milhasdo N. a S. e, por vezes, de 30 a 35 O. a E.,planície elevada a 1.012 metros do nível domar. Ainda é composto o Baroze do país maiselevado, a leste, onde assentam inúmeraspovoações que vêm estabelecer as suasculturas na grande planície - e ainda daenorme planura do Nhengo, onde corre oNinda. A planura do Nhengo é separada doleito do Zambeze por uma nervura de terrenoelevado de 20 metros, que corre paralela ao rio,e onde estão muitas povoações, livres dasmaiores cheias. Durante o tempo das grandes chuvas, aplanície do Zambeze é inundada, e eu medi emalgumas árvores onde tinham ficado sinais domaior nível das águas três metros. No paralelo 15o tem ela uma largura de trintamilhas, e por isso, na época das cheias,calculando uma corrente mínima de 20 metrospor minuto, devem passar ali 240 milhões demetros cúbicos de água por hora. Isto dá uma

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medida do que são as chuvas na África tropical- acrescentando-se que, regularmente, ainundação atinge o seu máximo em oito dias.O povo Luina, que em grande parte vive naplanície, retira para o país montanhoso duranteas inundações. Ao retirar das águas, volvem a ocupar aspovoações abandonadas na invernia e cobremo campo com os seus rebanhos enormes, que,diga-se a verdade, não encontra ali um pastoviçoso em época alguma do ano; porque osprados são formados, pela maior parte, decaniçal, onde abunda uma espécie docalamagrostis arenaria. As culturas são feitas mais na margem direitado que na esquerda do Zambeze, e semprejunto das encostas. A inundação deixa naplanície um sem-número de pequenas lagoas,que se atulham de vegetação aquática - e quesão outros tantos focos miasmáticos de infeçãopalustre. Há épocas no ano em que os própriosindígenas são fortemente atacados pelas febresendêmicas.

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Nas lagoas abunda peixe e há muitosbatráquios. É destas lagoas que se fornecem deágua potável os indígenas, mas é precisoconfessar que eles só a bebem depois detransformada em Capata. Os Luinas são pouco agricultures e muitopastores. Os seus rebanhos constituim a suaprincipal riqueza, e no leite das vacasencontram o seu principal alimento. O haverdo Luina consiste em algumas vacas e algumasmulheres. O leite fresco e o leite azedo (coalhado) são,com a batata doce, a base da sua alimentação.A farinha de milho é empregada para fazer aCapata, de mistura com a de massambala,principal cultura do país. Os Luinas fabricam o ferro, e todas as suasarmas e todos os seus utensílios são feitos nopaís. Não usam facas, e não podemos deixar denos admirar das esculturas que fazem emmadeira, sabendo que não empregam facas, emais ainda, logo que conheçamos oinstrumento com que trabalham.

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No Lui, onde o machado termina a obra grossade desbaste, começa a obra da azagaia. O ferrodesta é instrumento para tudo. Os bancos ondese assentam, as tigelas em que comem, asvasilhas do leite - e todos os seus utensílios demadeira são cortados com ela.

Entre eles, há um primorosamente trabalhado- e em geral é a colher. Vivendo de leite, oLuina não pode prescindir da colher, edispensa a faca. O seu sistema de alimentaçãoexplica a falta desta e o muito uso daquela. .

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A indústria cerâmica limita-se no Baroze àfabricação de panelas para cozinha - para acapata - e grandes talhas de barro para guardarcereais. Além disto, fornalhas para oscachimbos de fumar o bangue.

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O Luina só fuma o bangue. O muito tabaco quecultivam é empregado exclusivamente paracheirar, e dele fazem grande uso homens emulheres. É este o povo mais coberto queencontrei em África. É raro ver-se ali umhomem ou mulher despidos da cintura paracima. Os homens, como já disse no capítuloanterior, usam umas peles passadas em umcinto, que pendem adiante e atrás, chegandoaté aos joelhos. Um manto de pele, que posto,assemelha as capas do tempo de Henrique III,cobre-lhes o tronco e cai-lhes até meia perna. Um largo cinto de couro, independente do quelhes segura as peles da cinta, muitas manilhase muitos amuletos, completam o seu trajar. Asmulheres trajam uma saia de peles, que adiantechega ao joelho - e atrás desce até ao grosso daperna. Sobre a saia um largo cinto enfeitado debúzio (caurim). Um pequeno manto de peles,muitas miçangas ao pescoço e muitas manilhasnos braços e pernas, são o vestuário do país.Vemos hoje muitos indígenas substituindo aspeles por estofos europeus; os capotes por

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cobertores de algodão - e mesmo todo o trajargentílico pela roupa de homem civilizado. Noentanto, eu aqui não cuido das exceções; falono traje primitivo do país - e não nas inovaçõesque o comércio ali tem levado. É preciso,contudo, revelar que este povo tem umatendência manifesta para se vestir. Decerto,antes da invasão dos Macololos, os Luinasdeviam andar muito pouco cobertos. Os povosChuculumbes, seus vizinhos de leste, andamcompletamente nus, homens e mulheres. Aoeste, os Ambuelas foram também encontradosnus pelos primeiros sertanejos portugueses queali se aventuraram, e ainda hoje não se cobremmuito. . . . . . . . .

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O trajar dos Luinas que eu descrevi é o mesmousado outrora pelos Macololos, e por isso é decrer que fosse introduzido por eles. Essatendência, que eu faço notar - deste povo parase vestir - deve merecer a atenção do comércio,e é uma tendência a explorar em benefício dele,dos indígenas e da civilização. . . . . .

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As mulheres nobres, e em geral as ricas, untamo corpo com manteiga de vaca misturada detalco em pó - que lhes dá à pele um lustroavermelhado, e ao mesmo tempo um cheirodesagradabilíssimo. Entre os Luinas encontram-se muitasespingardas de fulminante, de fabricação

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inglesa, levadas ali pelos sertanejos do sul, eoutras de silex, Belgas, vindas do comércioportuguês de Benguela - mas os indígenas, aocontrário do que acontece com todos os povosda costa de Oeste até ao Zambeze, preferem asarmas de fulminante, e alguns há que sóquerem já carabinas raiadas. Não usamcartucho como os Bihenos e povoscircunvizinhos destes - e trazem a pólvora soltaem chifres ou em cabaças. As armas do paíssão azagaias, tacapes e machadinhas. Nãousam flechas.

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Têm por arma defensiva grandes escudosogivais, de couro de boi armados em madeira.Cada homem traz, em geral, de cinco a seisazagaias de arremeço. Os ferros destasazagaias, sem serem envenenados, não são porisso menos terríveis - devido às farpasdesencontradas que lhes fazem, de modo que,

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na maior parte dos ferimentos, é preciso mataro ferido para arrancá-las do corpo. O que eu vi usarem os Luinas, e mostrou apreferência que têm, foram as miçangaschamadas no comércio de Benguela, miçangaleite, azul celeste e Maria 2a. Os cassungos*finos - branco, azul e encarnado - são tambémestimados. * Contas pequeníssimas, usadas em bordados. Fazendas todas são boas para o Lui, preferindoeles as melhores. O arame de latão, de três aquatro milímetros de diâmetro, tem valor. A aroupa feita, cobertores, armas de percussão,fulminantes, pólvora, chumbo em barra eartigos de caça, são ali cotados em alto preço. Em todo o país o comércio é feitoexclusivamente com o régulo, que faz delemonopólio, pertencendo-lhe todo o marfimque se caça nos seus estados - e todos os gadosdos seus súditos, a quem ele os pede quandoprecisa. Das fazendas, armas e outros artigosque permuta, faz presentes aos seus caçadores,chefes de povoação, corte, etc.

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As mulheres gozam de bastante consideração,e entre a nobreza não fazem nada, passando avida sentadas em esteiras, a beber capata e acheirar tabaco. Possuem muitos escravos, pelamaior parte Macalacas, que as servem. Os grandes rebanhos dos Luinas, são de boisde uma raça magnífica, e mesmo as suasgalinhas e cães são de melhores raças do que osque encontrei até ali. O vale do Baroze está cercado de este a sul daterrível mosca tsé-tsé, o que os obriga aconcentrarem os gados na planície e tornadifícil a saída deles, a não ser para oeste nocaminho de Benguela, todo limpo doprejudicial díptero. Eis em curto resumo o que eu vi desse país,que primeiro, antes da invasão de Chibitano,foi visitado por um português (Silva Porto),que foi visto depois por David Livingstone,debaixo do império dos Macololos, e que euencontrei em condições bem diferentes, sob adinastia Luina, em 1878. .

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Retomando a narrativa das minhas tristesaventuras, no dia 5 de setembro, dia seguinteao da revelação de Mariana, resolvi fazer comque os traidores fossem traídos por um dosseus - e lancei as minhas vistas sobre VeríssimoGonçalvez. Chamei-o à minha barraca e mostrei-lhe, antesde lhe falar, a cópia de uma carta apócrifa,escrita para Benguela, em que eu dizia aogovernador, que, tendo desconfianças deVeríssimo, lhe pedia que mandasse prender amulher, o filho e a mãe dele, e se acasoacontecesse eu ser vítima de alguma traição, asmandasse para Portugal, onde eu disse aoVeríssimo que os meus parentes as fariamqueimar vivas. Depois deste exórdio, assegurei-lhe que aquelacarta fora escrita como simples prevenção,porque eu confiava plenamente na suadedicação por mim - mas que essa dedicaçãotinha de estar vigilante, porque eu desconfiavalevemente do Caiumbuca, e se me acontecessealguma desgraça, eu não poderia evitar os

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horrores que estavam reservados aos entes quelhe eram caros. Disse-lhe, sobretudo, quedesconfiava que Caiumbuca não transmittia aorei o que eu lhe dizia, assim como me davatranstornadas as respostas de Lobossi. Que eledeveria estar sempre presente nas minhasentrevistas com Lobossi, e dizer-me emportuguês (Caiumbuca não falava português) oque ele dizia ao rei. Veríssimo, embaraçado, disse-me que eu nãome enganava - e contou-me tudo. Eu preveni-oque não deixasse perceber nada a Caiumbuca,e que me tivesse ao corrente do que eletramava. Nessa tarde, Lobossi mandou-me dizer queestava pronta a gente que me deviaacompanhar, para eu seguir para a costa deMoçambique, e por isso podia partir quandoeu quisesse. Eu estava um pouco melhor, e desde a minhachegada ao Zambeze ainda não tinha passadotão bem como nesse dia. .

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O meu acampamento era muito grande,porque os Quimbares se haviam dividido pelasbarracas dos Quimbundos depois da saídadestes. O centro era um largo circular, de nãomenos de cem metros de diâmetro. A um lado,dentro da fila das barracas, ficava a minhabarraca, cercada por uma sebe de canas quefechava um recinto, onde só entravam os meusmoleques de serviço. Era a 6 de setembro. O termômetro durante odia tinha marcado com persistência 33 grauscentígrados, e o calor refletido pela areia tinhasido incômodo. A noite apresentou-se serena e fresca, e eu,sentado à porta da minha tenda, pensava nomeu Portugal, nos meus e nos amigos; nofuturo da minha empresa, tão ameaçada ali, eora alegre ora triste, não perdia a fé e esperava.O acontecimento da ante-véspera vinha pairarcomo nuvem negra sobre o céu límpido daesperança. Os meus Quimbares, recolhidos nas barracas,conversavam junto das fogueiras, só eu estava

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fora. De súbito prendeu-me a atenção um sem-número de pontos luminosos que viatravessarem o espaço. Sem saber ao princípio explicar o que seriaaquilo, tive um pressentimento - e saí docercado de caniço que rodeiava a barraca. Logo que cheguei fora, tudo me foi revelado, eum grito pungente de angústia supremaescapou-se-me da garganta. Alguns centos de indígenas cercavam oacampamento e lançavam achas ardentes sobreas barracas cobertas de erva seca. Em um minuto o incêndio, ateado por umvento forte de este, tomava incrementohorrível. Os Quimbares saíam espavoridos dasbarracas incandescentes, e pareciam loucos.Augusto e a gente de Benguela reuniram-se emtorno de mim. Em presença de um perigo tão terrível,aconteceu-me o que por mais de uma vez metem acontecido em iguais circunstâncias.Fiquei sereno e tranquilo de espírito, pensandosó em lutar e vencer.

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Gritei à minha gente, semi-louca de se verapertada em um círculo de fogo, e conseguireuní-la no meio do espaço interior do campo. À frente de Augusto e dos moleques deBenguela, entrei na minha barraca em chamas,e consegui tirar dali as malas dos instrumentos,os meus papéis e trabalhos - e a pólvora. A essetempo as barracas abrasavam todas, mas ofogo não podia atingir-nos. Veríssimo estava ameu lado, inclinei-me para ele e disse-lhe: “Eudefendo-me aqui por muito tempo, passa poronde puderes e como puderes, e vai a Lialuidizer a Lobossi que a sua gente me ataca; diztambém a Machauana o perigo que corro.” Veríssimo correu às barracas em chamas, e euvi-o desaparecer por entre as labaredas. A essetempo já as azagaias ferviam em torno de nós,e já haviam alguns ferimentos graves, entreeles um do preto Jamba de Silva Porto, quetinha uma azagaia cravada no sobrolho direito.Às azagaias respondiam os meus Quimbarescom as balas das carabinas, mas o gentioavançava sempre, e já entrava no

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acampamento - onde as barracas consumidasnão ofereciam barreira insuperável. Em tornode mim, que desarmado segurava a bandeirada minha pátria, estavam batendo-se comoverdadeiros bravos os meus valentesQuimbares. Estavam todos? Não. Faltava alium homem, um homem que deveria estar aomeu lado e que ninguém tinha visto:Caiumbuca, o meu imediato, desaparecera!

Ao amortecer do incêndio, eu vi que o perigoera real e enorme. Eram cem contra um.Parecia a imagem do inferno ver aqueles vultosnegros, que com estridente grita pulavam ao

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clarão das chamas, avançando para nóscobertos com o alto escudo e brandindo asserrilhadas azagaias. Foi um combaterencarniçado em que as carabinas de carregarpela culatra, pelo seu fogo sustentado,continham em respeito aquela horda selvagem. Contudo eu calculava que o têrmo do combatenão estava longe, porque as muniçõesdesapareciam rapidamente; eu só tinha nocomeço quatro mil tiros para as carabinasSnider, e vinte mil para as armas de carregarpela boca - mas não seriam essas as que medefenderiam. Logo que o fogo abrandasse, porfaltarem as armas de carregamento rápido,seríamos esmagados pelo gentio desvairado. O meu Augusto, que parecia um leão raivoso,chegou-se a mim com suprema angústia,mostrando-me a carabina, que acabava derebentar. Disse ao meu moleque Pepéca, quelhe entregasse a minha carabina de elefante e acartucheira. Augusto correu para a frente, e fezfogo para onde o grupo do gentio era maiscompacto. Um momento depois, a grita

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infernal dos assaltantes tomou um tomdiferente - e virando costas, tomaram elesprecipitada fuga. Só no dia seguinte, pelo rei Lobossi, eu deviasaber o que produzira um tal reviramento.Foram os tiros do meu Augusto. Na cartucheira de que ele lançou mão haviabalas carregadas de nitroglicerina. O efeitodestas - fazendo desaparecer em bocados, pelaexplosão, as cabeças e os peitos em queacertavam -, produziu o pânico no meiodaquele gentio ignaro, que viu numa coisanova para ele, um feitiço irresistível. Foi aProvidência que me quis valer. Conheci que estava salvo. Meia hora depois,apareceu-me o Veríssimo com uma grandeforça capitaneada por Machauana, que vinhaem meu socorro, por ordem do rei Lobossi.Lobossi mandava dizer-me que era estranho atudo, e que, provavelmente, o seu povo,sabendo que eu fora ali para os atacar decombinação com os Muzungos de leste, queestavam com Manuanino, fizeram aquilo por

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sua conta - mas que ele ia tomar as maisvigorosas providências para eu não sofrer maisagressões. Tudo aquilo, se não foi ordenadopor ele, foi por Gambela. Veríssimo, vendo os desastrês do combate,perguntou-me o que haviamos de fazer - e eurespondi-lhe com as palavras de um dosmaiores homens Portugueses dos últimossèculos: ”Enterrar os mortos, e tratar dosvivos.”* * Ordem proferida pelo Marquês de Pombal, dianteda imensa catástofre do terremoto que destruiuLisboa, no dia 1o de novembro de 1755. No incêndio sofremos perdas graves - masmais graves eram as perdas de vidas por tãoinsólito ataque. A bandeira portuguesa estavafurada das azagaias selvagens, e salpicada dosangue dos bravos - mas as manchas que tinha,só serviam para fazer realçar a sua purezaimaculada. Mais uma vez, longe da pátria, epor terras ignotas, tinha-se sabido fazerrespeitar, como sempre o soube, e comosempre o saberá.

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Depus as armas de soldado para meimprovisar em cirurgião cuidadoso - e o restoda noite foi passado a curar os feridos e aalentar os sãos, sempre apercebido e vigilante,apesar dos novos protestos do rei Lobossi. Logo que amanheceu, fui procurar o rei - efalei-lhe asperamente sobre o acontecimento danoite. Tornei-o, diante do seu povo,responsável pelas desgraças daquela noite - edisse bem alto que aqueles que tivessem achorar a perda de parentes, só a ele deviamlançar culpas. Disse-lhe que queria seguir sem perda detempo e anunciei-lhe que ia estabelecer o meucampo nas montanhas, onde pudesse comvantagem resistir a um novo ataque. Ele teimou muito comigo, para lhe dar ouensinar o feitiço que eu tinha empregado navéspera, fazendo com que os pretosrebentassem por si. Era assim que elesexplicavam o caso funesto das balas explosivasinconscientemente empregadas pelo meuAugusto.

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Apesar da muita vontade que eu tinha dedeixar a planície e ir para as montanhas, nãopude realizar esse desejo senão a 9, por causado estado dos feridos. No dia 7 e 8 lutamoscom a fome, porque ninguém nos quis venderde comer - e o rei dizia que nada tinha para medar. Foram as lagoas que forneceramabundante pesca e alguns patos muito magros.Machauana mandou-me leite, e continuou amostrar-me a maior dedicação. Foi, como disse, a 9 que deixei a planície ealcancei as montanhas perto de Catongo,chegando todos, feridos e sãos, no maiorestado de fraqueza. O novo sistema adotado, de nos matarem pelafome, preocupou-me - e dava-me sérioscuidados num país sem caça. Tinha-mos, é verdade, a pesca das lagoas. . . . . .

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Capítulo X A Carabina D’El-Rei A traição—Perdido—A Carabina d’El-Rei—Miséria—Novas cenas com o rei Lobossi—Partida—No Zambeze—Caça—Moangana—OItufa—As pirogas—Sioma—Catarata de Gonha—Belezas naturais—O basalto—A região dascataratas superiores—Balle—Bombué—Na foz dorio Goco—Catarata de Nambue—Os rápidos—Viagem vertiginosa—Catima Moriro—Quisseque—Eliazar—Carimuque—O rioMachila—Muita caça—Tragédia—Embarira. Depois de marcha de 15 milhas, acampei nafloresta que cobre os flancos das montanhas deCatongo. Marcava esta aldeia a S.E. uma milhadistante do lugar que escolhi para acampar. Junto do meu campo havia uma pequenaaldeola, onde eu mandei pedir de comer.Algumas mulheres vieram vender pouca coisaa troco dos invólucros metálicos dos cartuchosqueimados das carabinas Winchester. . .

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Depois de construído o campo, fomos pescarnas lagoas próximas, e tiramos algum peixe,que se comia cozido em água sem sal. De Caiumbuca não havia notícias, e euconvencia-me que ele tinha partido com agente que retrocedera ao Bihé, quando, nessatarde me vieram dizer que ele estava noacampamento e me queria falar. Apresentou-se, dizendo que fora acompanhara comitiva de Lobossi, que seguira com o pretoAntonio, porque tinha de mandar prevenir agente da sua libata no Bihé, de que tinha muitademora ainda no sertão, pois seguia comigopara a costa de leste. Eu fiquei perplexo e sem saber o que deveriafazer com relação a ele. Depois de pensar ummomento, resolvi aceitar a desculpa daausência dele na noite do combate - e não lhemostrar que tinha perdido a minha confiança eque sabia da sua projetada traição. Ele pediu-me para regressar nessa noite a Lialui, dizendoque voltaria no dia imediato com a gente queLobossi me deveria mandar, para eu seguir

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para Quisseque, logo que o estado de algunsferidos permitisse. Disse-lhe que pedisse ao rei para mandar-medar mantimentos, a menos que quisesse quemerressemos de fome no seu país. Caiumbucapartiu sem falar a ninguém da minha gente. No dia 10, continuei a mandar pescar naslagoas para ter que comer e os meus. Passei odia trabalhando e tendo para o lado de oesteum horizonte sem fim, onde, como em plenomar, o espaço azulado vinha unir-se à terra emcírculo enorme. Lembrei-me de determinar avariação da agulha magnética pela amplitude,método mais simples do que o dos azimutes,que eu tinha sido forçado a empregar atéentão. Preparei a agulha de marcar, e estavadispondo-a para a observação, muito antes detempo - porque o sol estava ainda elevado nohorizonte uns dez graus - quando umfenômeno curiosíssimo se deu na atmosfera.Estava ela límpida, de um azul um poucocarregado mas sem uma nuvem, sem um

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estrato no horizonte. De repente o limboinferior do sol começou a perder a sua formacircular, e a desaparecer lentamente, como seeu observasse um ocaso no oceano - e isto dezgraus acima do horizonte, por céu na aparêncialimpo, como já disse. Só depois do seucompleto desaparecimento é que se podia malperceber, pelo feixe de luz que em leque seespargia no céu, uma barra de estratos, tãoiguais em cor ao azul da atmosfera, que a vistamais apurada a confundiria com ela,parecendo que a limpidez do firmamento nãoera interrompida até ao horizonte. Algumasvezes mais observei igual fenômeno, mas não atanta altura, nem tão perfeitamente definido. Como eu esperava, nesse dia não me apareceu,nem Caiumbuca, nem a gente que Lobossidevia mandar-me. Na noite de 10 para 11, eu queria observar umreaparecimento do 1o satélite de Júpiter, quedeveria ter lugar próximo da meia-noite - ecomo eu não quisesse perder essa observação,por encontrar grande diferença em longitude

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na posição do Zambeze, recomendei aoAugusto que me chamasse quando a luaestivesse na altura que lhe indiquei, o quecorrespondia ás 11 horas. Cheio de fadiga,deitei-me cedo - e adormeci profundamente,esperando que Augusto velasse, depois dainstante recomendação que eu lhe tinha feito.Por noite fora, acordei ao chamamento deAugusto - e acordei sem sobressalto, julgandoser a hora indicada por mim. Mas, logo querespondi ao meu fiel negro, ele disse-me, cheiode comoção: “Senhor, estãoos atraiçoados. Agente fugiu toda, e roubáram tudo.” Levantei-me, e saí da barraca. O acampamentoestava deserto. Lá fora, Augusto, Veríssimo, Camutombo,Catraio, Moêro e Pepéca - e as mulheres dosmoleques -, estavam silênciosos e pasmadosolhando uns para os outros. Não pude conter uma gargalhada. O que me admirava ali era ver Augusto, oVeríssimo e Camutombo ao pé de mim. Era tãocrítica a minha posição, vivendo no meio de

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tantas misérias, redeado de tantos perigos, quenão sei mesmo quem neles quereria ser meusócio. Ânimos mais fortes e espíritos maisenérgicos do que os dos pretos que acabavamde fugir, não teriam querido partilhar daminha sorte. Sentei-me, redeado das oito pessoas quehaviam ficado e pus-me a indagar o sucedido.Queria pormenores que ninguém me dava. Agente tinha fugido toda, sem que algum dospresentes a pressentisse. Os cães, habituadoscom eles, não ladraram. O Pepéca foi passarrevista às barracas, e nada encontrou. As poucas cargas que tinham ficado à porta daminha barraca, e que consistiam em pólvora ecartuchos, haviam desaparecido. Fugiram roubando a minha própria miséria. Sóme restava o que havia dentro da minhabarraca. Eram os meus papéis, os meusinstrumentos e as minhas armas - mas armasde nenhum valor, porque uma das cargasroubadas continha os meus cartuchos, e semeles de nada serviam.

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Fui sem detença fazer inventário do meumiserável haver, e achei-me com trinta tiros debalas de aço para a carabina Lepage, e comvinte e cinco cartuchos de chumbo grosso daespingarda Devisme - que de pouco ou nadaserviam. Era tudo quanto possuía. Não pude deixar de curvar a cabeça ante esteúltimo golpe que me feria, e um atrozconfrangimento de coração trouxe-me, pelaprimeira vez em África, o pressentimento deque estava perdido. Estava no centro da África,no meio da floresta, sem recursos, dispondo detrinta balas apenas, quando só da caça poderiaviver e só a caça me poderia salvar. E tinha emtorno de mim só três homens, três crianças eduas mulheres! Augusto exprobrava-se o ter adormecido,quando eu o mandara velar, e entrou numfuror louco, querendo ir na pista dos fugitivose matar todos. Custou-me a conter a ira ferozdo meu preto fiel - e sem consciência do quedizia, sem a menor convicção nas palavras queproferia, ordenei-lhes que se fossem deitar, que

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não receassem nada, porque eu remédiariatudo. Eu ficaria de guarda. Recolhidos às barracas, eu fiquei junto dafogueira, quase inconsciente e sem forças. Oabalo moral tinha despedaçado o corpo, jáfortemente abatido pelas febres. Sentado, comos braços encostados nos joelhos e a cabeçaencostada às mãos, eu olhava fito para acrepitação da chama, sem ter um pensamento,sem uma ideia, em perfeito estado deimbecilidade. Contudo, o instinto filho dohábito, fez-me sentir que estava desarmado.Chamei o meu moleque, e sem ter consciênciadisso, pedi-lhe uma arma. Ele entrou nabarraca e trouxe-me uma, que eu, sem reparar,coloquei sobre os joelhos. Durou muito tempo aquele estado deabatimento, até que as ideias principiaram a virmostrar-me os horrores da minha posição.Havia muitos meses que eu caminhava avante,pobre e sem recursos; havia muito tempo queeu contava unicamente com a caça parasustentar a minha caravana. Essa ideia,

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perfeitamente arraigada no meu espírito, tinha-me dado sempre a força de seguir, de ter fé ede esperar. De repente sentia em mim umvazio enorme. A ideia tinha caído por terra, edesaparecido com a caixa que continha osmeus tiros, o meu tesouro, o meu únicorecurso. Deve ser ao encarar uma posição comoa minha que o homem se suicida. Com aquela pungente agonia que medilacerava a alma, deixei pender a cabeça e osmeus olhos fixaram-se na carabina que eutinha pousada nos joelhos. Olhei-a talvez meiominuto, e uma ideia atravessou-me o espírito.De um salto entrei na barraca e corri a levantaras peles do meu leito, debaixo das quais, paralevantar a malinha que me servia detravesseiro, estava um estojo de couro,retangular, baixo e comprido. Foi com mão febril que abri aquele estojoesquecido, e apalpei trêmulo os objetos que elecontinha. As ideias ocorriam-me de novo emtumulto. Deixei o estojo, e abri a mala dosinstrumentos, onde a caixa do meu sextante

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Casela estava entalada por duas latas, que sentidebaixo da mão com que apalpava. Saíprecipitadamente da barraca e, doacampamento, e corri ao mato - onde de diatinha posto a enxugar o meu grande trêsmalho,depois da pesca. A rede estava estendida etensa pelo peso do chumbo que lhe envolvia atralha. Apalpei frenético aquele chumbo, e colhendo arede voltei ao campo, curvado ao peso dela.Cheguei junto à fogueira e depus no chão omeu fardo. Quem visse o que eu tinha feitohavia alguns minutos, julgar-me-ia louco - elouco estava eu de contente. O avaro devorando com os olhos ávidos decobiça o tesouro que empobrece a sua miséria,não deve ter na vista expressão diferente daque eu tinha a olhar para aquela carabina. Éque ela para mim era a vida, a salvação, e tudo.É que ela para o meu país era uma expediçãocoroada de êxito; era a realização de um votoformulado por ele no seu parlamento. Era o

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bom êxito obtido, tanto mais meritório, quantomais estorvado. A arma que afagava nas mãos, como afagariauma filha estremecida, a arma que me iasalvar, e comigo a expedição através da África,era a Carabina d’El-Rei. No estojo daquela arma havia aparelhos parafazer balas, e tudo o necessário para secarregarem os cartuchos, sempre queexistissem os invólucros metálicos - cada umdos quais, pelo seu sistema de construção,pode servir muitas vezes. Uma pequena caixa,que vinha no estojo - já quando El-Rei meoferecera o valioso presente - continhaquinhentos fulminantes. . . . . . . . .

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Figura extra: um presente de rei.

As ideias que se sucediam em mim quando melembrei daquele recurso, trouxeram-me areminiscência de duas latas de pólvora que eudesde, Benguela, empregava - à falta de coisamelhor - para entalar a caixa do sextantedentro da mala. Faltava o chumbo, mas aminha rede de pesca ia fornecer-me. Assim, pois, eu podia dispor de alguns centosde tiros - e com alguns centos de tiros sentia-me com força de criar recursos nesse país de

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caça. O resto da noite foi para mim comomanhã bonançosa depois de noite de temporal. Ao alvorecer, ainda não tinha formado umplano, mas estava tranquilo e confiante.Mandei chamar o chefe da aldeola próxima, econvenci-o a mandar dois homens a Lialuicontar o sucedido ao rei Lobossi. Disse-lhetambém que ia mudar o meu campo para maispróximo da aldeia - e logo nós quatro, eu,Veríssimo, Augusto e Camutombo,construímos quatro barracas e um fortecercado, onde nos recolhemos com o meumagno espólio. Nesse dia trabalhei como um rude lenhador, ede machado em punho, cortei a madeira para aminha barraca, e construi-a eu mesmo. Durou o trabalho até depois do meio-dia, horaa que me estendi nas peles de leopardo do meuleito, dormindo a sono solto até ao pôr-do-sol. O meu Augusto tinha pescado, e tinhamarmado laços aos patos, conseguindo agarrarum. Entretivemos com aquela alimentação semcondimentos a fome já impertinente, e eu volvi

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a deitar-me, mas dormi pouco e pensei muito.Sustentar nove pessoas era mais fácil do quesustentar uma grande comitiva, e por isso aquestão mais momentosa e mais urgente paraser resolvida, estava, se não resolvida, pelomenos muito simplificada por si mesmo. A ideia de prosseguir na minha viagem estavaperfeitamente arraigada em mim, e sem aindasaber como, sem ter chegado a formular umprojeto, sabia que havia de ir - porque queriair. A minha confiança era tal, que os meushomens já estavam descuidosos e indiferentes.Diziam eles, que eu sabia o que havia de fazer -e quando lhes dizia, que não tinha aindaformado um plano, riam-se e diziam: ”osenhor bem sabe já.” Passei o dia preparando cartuchos da Carabinad’El-Rei. Tinha 2 quilogramas de pólvorafiníssima, e como a carga de cada cartucho erade 5 dracmas (8 gramas e meia), podia comaquela pólvora carregar duzentos e trinta ecinco tiros, que com alguns que eu aindapossuía, e com os trinta de balas de aço da

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carabina Lepage, prefaziam um total detrezentos cartuchos. Chumbo para balas havia demais, porque opeso das duzentas e trinta e cinco balas era aomenos de nove quilogramas, sendo o de cadabala de 35 gramas - e o chumbo da rede deviapesar um pouco mais de trinta quilos.Fulminantes tinha duzentos a mais. Voltaram os portadores que mandei a Lobossi,com recado dele para que eu fosse viver paraLialui até tomar uma deliberação. Decidi logo não sair do mato onde estava, emandar o Veríssimo a Lialui tratar com ele.Dei-lhe as minhas ordens, e mandei que saísseantes de amanhecer no dia imediato, para tertempo de voltar no mesmo dia. Um violento acesso de febre prostrou-me, etive de me recolher muito doente. No diaseguinte a febre tinha aumentado, e eu estiveimpaciente até a volta do Veríssimo, que sóchegou de tarde. Vinham com ele uns moleques do régulo, queme traziam alguma comida, e um presente de

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leite coalhado, enviado por Machauana.Lobossi mandava dizer-me, que era muito meuamigo, e que estava pronto a ajudar-me, masque fosse eu viver para casa dele - e que comtempo decidiríamos o que havíamos de fazer.Mandei dizer-lhe pelos moleques que, logo queestivesse melhor, iria falar-lhe - mas que nãodeixaria o mato, e que me era impossível irviver com ele, por causa das febres. Estavaansioso por me achar só com Veríssimo, parater notícias de Lialui. A primeira coisa que ele me contou fez-melogo profunda impressão. Disse-me que,quando chegara a casa de Lobossi, estavareunido o grande conselho em discussãoacalorada. Uns enviados do chefe de Quissique,Carimuque, tinha chegado ali - pedindo acessoao país para um missionário inglês que estavaem Patamatenga e queria vir ao Lui. À entrada desse sujeito no país do Barozeopunha-se com toda a sua eloquência oministro dos estrangeiros Matagja, e daí

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nascera a acalorada discussão a que assistira oVeríssimo - sendo resolvido em conselho quenão fosse concedida a licença para o homempenetrar nos estados do rei Lobossi. O Veríssimo, que me contou este incidente, aque não ligou a menor importância, começou anarrar-me o que tinha podido colher denotícias acerca das intrigas dos moleques deSilva Porto e Caiumbuca - mas eu é que não oescutava já, e aquele missionário inglês(Macúa, diziam eles) não se me tirava dopensamento. Quando o Veríssimo acabou o seuaranzel, que eu não ouvi, tinha resolvido omeu problema, e a resolução consistia em irencontrar aquele missionário. Como realizá-la não sabia ainda, mas que oencontrária era já convicção minha. Fuiavidamente buscar uma péssima carta daÁfrica que tinha, e calculandoaproximadamente onde seria Patamatenga,medi uma distância de seiscentos quilômetros. Seiscentos quilômetros, a uma média de 10quilômetros por dia, eram sessenta dias de

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jornada - e trezentos tiros que eu possuía,divididos por sessenta dias, dava-me cincotiros por dia. Ardia já em desejos de me pôr acaminho, mas ardia em febre também, ecomecei por deitar-me. Nos dias 14 e 15 a febre cresceu de intensidade,não me permitindo sair da barraca; mas tendoalgumas melhoras na noite de 15 para 16,resolvi logo ir a Lialui falar ao rei, e tratar depôr em execução um plano que tinhaconcebido para ir encontrar o missionário,ideia que me não saía da mente. Ainda muito doente, parti logo de manhã paracasa de Lobossi. Fui muito bem recebido porele, que negou ter sido conivente comCaiumbuca e os pretos do Silva Porto na fugados meus Quimbares - o que era falso, porquesem o consentimento dele não poderiam elester passado o Zambeze. Pedi-lhe que me ajudasse a ir encontrar ummissionário que eu sabia estar emPatamatenga, ao que ele respondeuperguntando-me como queria eu ir para ali,

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não tendo carregadores. Esta pergunta do reifoi muito aplaudida pelos assistentes, quenotaram a esperteza dele em ma fazer. Disse-lhe que era verdade não tercarregadores, mas que tinha o rio Liambai e eletinha barcos. Se ele me desse barcos, eudispensava os carregadores, tanto mais quenão tinha cargas. Ele contestou que havia efetivamente oLiambai, mas que o rio tinha cataratas. Comoas poderia eu passar? Novos aplausos da partedo auditório. Respondi que sabia isso, mas que ali os barcose as cargas iam por terra - e à jusante dasquedas continuavamos a navegar. Ele retorquiu que o seu povo tinha muitopouca força, e não podiam arrastrar os barcospor terra. Novamente aplaudido, estavafazendo um gosto imenso em patentear o seuespírito fino diante dos ouvintes - e de salto,sem esperar resposta, perguntou-me por quenão tinha ido viver com ele para Lialui, comome tinha ordenado?

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Respondi serenamente que não tinha ido, nemiria, por muitas razões - sendo a principal o serele um refinado velhaco, que, desde a minhachegada, só tinha procurado enganar-me, parame roubar. Chamei-lhe ladrão e assassino,levantei-me e pus-me a caminho. O auditorio, estupefato do meu atrevimento,nem se lembrou de me embargar o passo.Dirigi-me a casa de Machauana, onde estiveconversando com Monotumueno, o filho do reiChipopa e legítimo herdeiro do poder, a quemfiz a profecia de que ainda seria rei do Lui. Ia a retirar-me para as minhas montanhasquando um enviado de Lobossi veio pedir-meem nome dele para eu lhe ir falar. Fui logo. O rei disse-me que não tinha razão para mezangar com ele, que era muito meu amigo, queia aprontar barcos - e que o Liambai estavalivre para mim. Eu fiz-lhe um grande sermão, em que lhe disseque ele era mal aconselhado; que o que tinhadado o poder e grande nome aos reisMacololos foi a grande proteção que

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dispensaram a Livingstone. Que os Luinasqueriam perder o comércio - e que elecompletaria a ruína do Lui começada porManuanino. Que o seu povo, não a camarilhaque o rodeiava, mas o seu povo sensato, aindao expulsaria do poder, por incapaz degovernar e não fazer mais do que disparates. Fez-me novos protestos de amizade,afirmando-me que me daria os barcos e quenão seria por culpa dele se eu não chegasse aalcançar o missionário, mesmo porque queriaque eu mudasse de opinião a seu respeito. Assegurou-me que voltasse descansado paraCatongo, onde me mandaria dizer que osbarcos estavam prontos, logo que tivessearranjado as tripulações. Chamou diante demim o chefe de Libouta e deu-lhe ordens a esserespeito. Eu não acreditava em nada daquela comédia, edisse-lho. Ele pediu-me que não formassemaus juízos e esperasse os fatos. Voltei a casa de Machauana, que conversoulargamente comigo a respeito de Caiumbuca e

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da fuga dos meus Quimbares. Por ele soubetoda a verdade, nos seus detalhes, e só fiqueiignorando quem fora ao longe o motor dosacontecimentos. Chegado ao Lui, fui sinceramente bemrecebido por aquela gente, e o nome doMueneputo, com que eu me abrigava, foiescutado com respeito. Declarei os meusprojetos, e eles foram calorosamenteaprovados, porque muito convinha aos Luinasestar em comunicação com a costa de Leste.Dias depois da minha chegada, rebentou noChuculumbe a revolução, à testa da qual seachava Manuanino, o rei destronado.Caiumbuca foi então dizer a Lobossi que eunão era estranho àquela revolta, e que queria irpara Leste juntar-me aos brancos queapoiavam Manuanino. Nessa ocasião,Caiumbuca levara os Bihenos a abandonar-me- dizendo-lhes que o rei o prevenira de que meia mandar matar e não poderia impedir quefosse morta a gente que estivesse comigo. .

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Os Bihenos, levados por ele, declararam-meque não queriam estar comigo, e Caiumbucafingiu-se indignado. A primeira e única vez que em África faltei aomeu princípio de sertanejo, de desconfiar ali detodos e de tudo, fui enganado. É verdade queSilva Porto, o homem em quem eu tinha amáxima confiança, disse-me e escreveu-me quepodia fiar-me em Caiumbuca - e eu fiei-menele. Facilmente podia desfazer aquela intriga entrehomens instruídos, mas deve compreender-seque para pretos foi bem tramada e não seriafácil convencê-los da verdade. Apesar disso, a minha atitude chegou aconvencer Lobossi - e foi então que osmoleques de Silva Porto foram dizer ao rei quetinham ordem de seu senhor para meabandonarem ali, mandando-lhe ele dizer queme fizesse matar, se queria que os sertanejosdo Bihé voltassem ali, sem o quê não teria maisrelações com Benguela. .

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Foi então que tentaram matar-me, afirmandoMachauana que Lobossi sempre se opôs a isso,assim como a maioria do seu conselho - masque Gambela era de opinião contrária. Caiumbuca e os moleques de Porto foramdizer a Lobossi que tudo o que eu tinha nasminhas malas eram roupas e fazendas muitoricas, despertando-lhe assim a cobiça, que atantos exploradores tem perdido no continenteAfricano. Apesar de todas as intrigas e dos fatos que elasproduziram, eu ia continuar a minha viagemcom a gente de Benguela, quando o ataque danoite de 6 de setembro ma dizimou - e umanova intriga dos pretos de Silva Porto levou àfuga os restantes. Por ordem de quemtrabalhou Caiumbuca? Eis o que não pudesaber. Por sua conta creio que não, que pouco tinha alucrar nisso. A encomenda vinha feita do Bihé,e eram emissários dela os moleques de SilvaPorto. Caiumbuca tomou o papel principaldepois das instruções recebidas dos pretos de

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Belmonte. O mandatário estava ao longe,muito ao longe. A causa estava na minha missão, e na guerraque, em nome do meu Portugal, eu fazia, semtréguas, ao comércio da escravatura. Alguns exploradores africanos, e sobre todos oCommander Cameron e David Livingstone,têm apontado muitos fatos horríveis everdadeiros do comércio da escravatura, feitono interior da África por sertanejosportugueses. Por muitas vezes, a opinião pública emPortugal tem levantado a sua voz potentecontra as asserções vilipendiosas dosacusadores estrangeiros, querendo negar fatosque eles asseveram - e em que ela não acreditaporque, na sua índole bondosa é incapaz de oscompreender e de os admitir. Infelizmente eles são verdadeiros - e mais oumenos romantizados, não deixam de conterum gérmen de realidade. Mas serão esses fatos uma nódoa paraPortugal? Não são. Afirmo-o e sustento-o. Os

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sertanejos portugueses que mais se aventuramno interior do continente Africano, quando ofazem, deixaram de ser portugueses. São condenados, fugidos dos presídios dacosta, são homens a quem a sociedadesuprimiu as garantias de cidadão, são réprobosa quem a sentença infamante da justiçaimprimiu um indelével ferrete de ignomínia;são os salteadores e assassinos, a quem a pátriabaniu do seu seio com horror, que puderamquebrar o grilhão de ferro com que estavamacorrentados ao patíbulo aviltante - e fugindo aum mundo onde só os espera o desprezo dagente civilizada, vão ao longe buscar entre osselvagens a guarida que perderam, e continuarali a sua vida de crimes. Tais homens não desonram a sua pátria,porque não têm pátria. Querer tornar Portugalsolidário dos crimes dos sertanejos africanos équerer tornar a França responsável dos atos daComuna, a América do assassinio de Lincoln, aItália dos salteadores dos Abruzos. .

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Há réprobos em toda a parte, e não podem sernódoas nos povos que os esmagam na sua justaindignação. Dos sertanejos europeus que têm estadoestabelecidos no Bihé, de dois apenas tenhonotícia que não pertencessem a tal ordem degente. São eles Silva Porto e Guilherme JoséGonçalves - mas estes foram sempre queridos eestimados do indígena e do europeu. Gozaramsempre da consideração que a sua honradez eprobidade lhes grangearam; foram cidadãosprestantes, que, com um tráfico legal e digno,nem chegaram a fazer fortuna - e foram muitasvezes vítimas dos outros. O nome de Silva Porto é respeitado pelogentio, e conhecido numa grande parte daÁfrica central pela corrupção da palavra“Prôto” - e mais de uma vez me servi dele paradesfazer obstáculos. Em Cassange, como em Tete, outras duasportas da África central, há portugueses dignose nobres, que têm feito um grande serviço àhumanidade no comércio lícito com o interior -

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esse comércio que é o mais seguro mensageiroda civilização na terra dos negros. Não confundamos pois; não confundamos eserá pouco nobre ir buscar a autoridade doexplorador para lançar - apontando fatosverdadeiros, mas nada producentes - um labéusobre um povo nobre, o primeiro que deu mãoforte à Inglaterra contra o tráfico infame; sobreum povo que sacrificou os seus interessesafricanos, legislando a abolição da escravatura;contra um povo, o mais livre do mundo, queestendeu a sua liberdade até a África -mandando para lá as leis que o regem naMetrópole; chegando ao excesso de abolir ali apena de morte e de lhes mandar um códigoque por libérrimo é impossível entre gentemais que semibárbara. Não precisa Portugal justificação - que odefendem os fatos, as leis e a energia queemprega na grande obra da civilizaçãoafricana. Mas, falando do tráfico daescravatura, de que por vezes ia sendo vítima,

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não me pude eximir a pôr a questão nos seusverdadeiros termos. José Alves, Coimbras e outros, esses nem aomenos são portugueses de nascença; não separecem com portugueses na cor, sãoindígenas, sem instrução, verdadeirosselvagens de calças e chapéus. Afirmo também, que é mais difícil viajar emÁfrica por terras onde eles têm andado, do quenas regiões bárbaras dos canibais, que nuncaviram um estranho. Aqui fazem a guerra aoexplorador, quando a fazem, de armas na mão,frente a frente; ali é a traição e a covardia que oesperam. Aqui é explorar na brenha espinhosaonde o leão oculta o seu antro; ali é caminharnum prado relvoso, entre venenosas serpentes. Outra coisa inconveniente ao explorador é ir àssedes dos grandes potentados. Veja-se o quetem acontecido no Muatayanvo; veja-se o queaconteceu a Monteiro e Gamito no Muata-Casembe; veja-se o que me tem acontecido amim com Lobossi, no Lui. .

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O sertanejo Biheno, na cobiça de obter omarfim, dá tudo ao régulo; chega a dar-lhe aroupa que leva vestida, e volta ao Bihé detanga de peles, como os seus carregadores. No Lui, quando era muito frequentado porsertanejos Bihenos, havia o costume de elesentregarem tudo ao régulo - e esperarem queele lhes desse pela fatura que levavam o queentendesse suficiente. O explorador que hojechegue ali e não faça o mesmo, está perdido. Além desta, outra razão deve aconselhar oexplorador a evitar os grandes potentados; éela o caso de uma agressão, sempre de recear. Com os pequenos senhores que povoam amaior parte da África austral, poderá, em talcaso, levar a melhor; enquanto nos grandesimpérios será forçosamente esmagado. Isto pensava eu, voltando ao meu campo nasmontanhas de Catongo, a 17 de setembro,depois de ter comido leite coalhado e batatasem casa de Machauana. Cheguei a Catongo já noite e soube que o meuAugusto tinha morto uma gazela, o que nos

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fazia ótimo arranjo. As armadilhasimprovisadas continuavam a dar patos efrancolins. Nos dias seguintes, os trabalhostomaram-me todo o tempo, tendo podido obteruma longitude muito aproximada e tendo feitouma rigorosa determinação da declinação daagulha, estudos meteorológicos, etc. No dia 19, ainda não tinha recebido mais novasdo rei Lobossi e decidi mandar lá o Veríssimo,a saber se a oferta das canoas era ou nãocomédia. Nesse dia apareceram ali uns pretos,que pelo tipo conheci logo não serem do país.Diziam eles serem da Luêna - e querendoindagar onde ficava essa terra, elesmostravam-me o N.E. e por meio de nós dadosem uma correia fina faziam-me compreenderque tinham andado vinte e seis dias parachegar ali. Vinham em nome do seu chefecumprimentar o rei Lobossi, e sabendo queestava um branco no país vieram ver-me - porser animal novo para eles. Para falarmos, servia-me de intérprete o velhochefe da aldeola, que falava a língua dos

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Machachas, língua em que eles se exprimiambem, dizendo, ainda assim, ser muito diferenteda sua. Disseram-me haver no seu país muitoselefantes, e serem caçadores - empregandopara isso a azagaia, única arma de que usam.São franzinos de corpo e de pequena estatura,com feições bastante regulares. Uns vinte queeu vi, traziam, quase todos, na cabeça unspenachos feitos de cerdas de elefante,demonstrando cada penacho um elefantemorto pelo que o traz. Vestem peles como osdo Cuchibi, e trazem panos de liconde para secobrirem. Traziam manilhas de ferro e de cobrefabricadas por eles. A dificuldade que havia denos entendermos não me permitiu levar muitolonge as averiguações acerca do país deles edos terrenos que atravessaram para chegar ali. No dia 21, Veríssimo voltou de Lialui dizendoque as canoas estavam prontas - e que Lobossime mandava pedir para ir ficar na cidade nodia imediato. Enviei logo um homem ao rei,dizendo-lhe que só iria em dois dias, por estar

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doente - sendo o verdadeiro motivo dessademora o ter de fazer observações e completarestudos meteorológicos no dia 22. Por essemesmo enviado mandei dizer a Gambela queme aprontasse aposento em sua casa, porqueiria ser seu hóspede. Eu queria fazer do ladrãofiel. A 23 de setembro deixei Catongo e caminheipara Lialui, onde cheguei às duas horas e meiada tarde. Gambela esperava-me com pompa efoi conduzir-me ao alojamento que me tinhapreparado. A marcha por um sol abrasadorprostrou-me de fadiga, e só à noite pude irvisitar Lobossi. Ele recebeu-me muito bem,dizendo-me que estava convencido de que forailudido por Caiumbuca e pelos moleques doSilva Porto; que acreditava ser eu um enviadodo governo do Mueneputo - e que me queriadar todas as satisfações pelos transtornos queeu tinha sofrido nos seus estados, de que eledizia não ter tido a menor culpa. Aproveitei tão boas disposições para renovar omeu pedido de gente e auxílio para seguir pelo

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país do Chuculumbe até Caiuco - e descerdepois o Loengue embarcado, e ir ao Zumbopelo Zambeze. Respondeu-me que isso nãopodia ser, porque esse projeto encontrava umagrande oposição nos velhos do seu conselho.Que o Munari (Livingstone), no tempo deChicreto, já tinha feito aquela viagem comgente do Lui e que nenhum dos que com eleforam para leste voltara mais ao país. Os velhos, falando ele nisso, disseram-lhe queme perguntasse o que era feito dos seus irmãosMbia, Caniata e Scuêbu, e muitos outros queforam e não voltaram. Diziam eles, que, aopartir, Livingstone prometeu que os tornaria atrazer ali - e ainda hoje as mulheres e os filhosesperam por maridos e pelos pais. Afirmou-me que, se pudesse, me daria gente -mas a resistência do povo era grande e não lheconvinha ir contra ela. Os três barcos estavamàs minhas ordens para descer o Zambeze, enada mais podia fazer por mim. A 24 de setembro, logo de manhã, recebi avisita de Lobossi - que se vinha despedir de

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mim e apresentar-me os seus escravos quedeviam tripular as canoas até umas povoaçõesdo Zambeze, onde o chefe me deveria darnovos barcos e novas tripulações. Deu-me umapequena ponta de marfim, para eu oferecer aochefe das povoações onde arranjaria os barcos,e trazia também um boi para a matalotagem.Agradeci-lhe muito, e separamo-nos nosmelhores termos de amizade. Segui a S.O. edepois de uma hora de caminho encontrava obraço do rio a que chamam pequeno Liambai.Pouco depois, três pequenas canoas largavama margem, levando a minha bagagem, a mim, aVeríssimo, Camutombo e Pepéca. O Augusto, Moero e Catraio, com as duasmulheres, seguiram por terra acompanhadosdo caçador Jasse e do chefe Mutiquetéra -mandados por Lobossi para seguirem comigo eirem dando as suas ordens aos chefes, a fim deter o caminho livre. Mais dois entes - de que me tenho descuradode falar -, dois entes que representavam duasdedicações inquebráveis, aqueles que desde a

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minha saída não me haviam dado um únicodissabor, estavam ali comigo, sempre prontos aseguir quando eu marchava, a pararemquando acampava, a dispensarem-me milcarícias quando me viam triste, a divertirem-me quando alegre estava. Eram Cora eCalungo, a minha cabrinha e o meu papagaio. A viagem do rio ia separar-me todos os dias deCora, que não podia ir sempre embarcada pelaexiguidade de espaço nas canoas. MasCalungo, voando sem medo para o meuombro, seguiu embarcado. Depois de termos navegado ao sul por umquarto de milha, deixamos o pequeno Liambaie metemos a S.O. por um canalete por onde obraço oeste do rio deita um pequeno veio deágua - de lagoa em lagoa - para o braço leste. No intervalo entre as lagoas, às vezes de maisde cem metros, o navegar é difícil - porque édifícil navegar onde não há água. Foi precisomuitas vezes descarregar os barcos e arrastá-los sobre um fundo de lodo. Nas lagoas o

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caniçal espesso embaraçava também anavegação. Depois de um trabalho violento e aturado,paramos às seis horas na margem de umalagoa, em planície recentemente queimada,onde não havia com que construir o maispequeno abrigo. Tinha havido o cuidado de levar lenha, e comela pudemos assar carne - que eu comi comapetite voraz, por não ter ainda nesse diatomado alimento. Estendi depois a minhacama de peles sobre a terra úmida e deitei-meao relento. Os remadores estiveram toda a noite assandocarne e comendo - fazendo assim desaparecer amaior parte do boi dado por Lobossi emostrando que a capacidade estomacal dossúditos do rei do Lui é verdadeiramenteincomensurável. Depois de uma péssima noite, parti aoalvorecer do dia 25 e naveguei em uma lagoapor meia hora, entrando em seguida no braçoprincipal do Liambai. Aparecia nas margens

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uma tal quantidade de caça que fiz parar aflotilha e entrar em serviço a Carabina d’El-Rei- que, na sua estreia, me forneceu logo víveresque calculei chegariam para dois dias, apesarda voracidade dos Luinas. O Liambai tinha ali uns 200 metros, e muitofundo. A corrente era pequena, e essa mesmanão aproveitada pelos remadores, quereceando os hipopótamos que sem cessarvinham resfolegar no pego, iam sempreencostados às margens - onde a água poucofunda não permitia o acesso aos enormespaquidermes. Tínhamos de parar de instante ainstante para tirarmos água das canoas velhase fendidas. Parei junto a Nariere para calafetar o meubarco, e enquanto os pretos faziam o trabalhocom ervas e barro, medi a velocidade dacorrente, que achei ser de 24 metros porminuto. O meu rumo médio era S.E., mas o riodá ali voltas curtas em grande zig-zag - tendoeu em uma delas navegado por 20 minutos aN.O. Acampei na margem esquerda, pelas

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cinco da tarde, nas mesmas condições davéspera - sem abrigo e ao relento. Muitas vezes, naquele dia, quando fugíamosaos hipopótamos de um lado, apareciam elesno outro - e corremos perigo grave. Eu não lhes quis atirar, para não gastar asmunições. Só quem se vê no centro da Áfricacom pouca pólvora sabe o valor de um tiro. Os barqueiros, que eram escravos do reiLobossi, quiseram ser insolentes comigo - maseu meti-os na ordem a pau, seguindoinstruções recebidas do próprio Lobossi, queprevenira o caso. O Veríssimo, que desde Quillengues resistira àfebre, caiu com um violento acesso e eu mesmonão estava sem ela. No dia imediato naveguei apenas por espaçode uma hora, parando junto à povoação deNalólo, governada por uma mulher, irmã deLobossi. Mandei pedir-lhe desculpa de a não irvisitar, alegando a minha doença e a febre domeu intérprete Veríssimo. Ela aceitou adesculpa, e enviou-me um pequeno presente

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de massambala. Apesar de doente, fui caçar,para fazer nova provisão de víveres, e conseguimatar dois antílopes (pallahs). As peles, comoas da antevéspera, foram secas com cuidado eguardadas. Pude trocar uma perna de carne dePallah por um pequeno cesto de feijãofradinho. Veríssimo piorou muito nesse dia, e eu à noiteardia em febre também, tendo, apesar disso, dedormir ao relento num terreno úmido. Acordeicompletamente encharcado do orvalho, emuito doente. Segui viagem, e depois de seishoras úteis de navegação, com o rumo médiode S.S.E., acampei, sempre na margemesquerda. Apesar de outra noite péssima, a febre iacedendo a fortes doses de quinino, e no dia 28naveguei por hora e meia para alcançar apovoação de Moangana, cujo chefe me deviafornecer um barco por ordem de Lobossi. O velho Moangana era um Luina de cabelosgrisalhos, muito respeitoso, que me recebeumuito bem, dizendo-me que no dia imediato

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me levaria ele mesmo à povoação da Itufa,onde eu devia pernoitar, um barco e algumpresente que me pudesse arranjar. O vento era fortíssimo de leste, e encrespava aságuas do rio - que não tinha menos de umamilha de largo. Havia perigo para canoas tãopequenas como as nossas, mas, apesar disso,seguimos - e em hora e meia chegamos a Itufa,grande aldeia, na margem esquerda. Mais de uma vez estivemos em grande risco desoçobrar, e declaro que é triste perspectiva a decair a um rio coalhado de crocodilos. OVeríssimo ia um pouco melhor e eu mesmo,apesar da febre quase constante que meminava, sentia-me com mais forças. Já me esperavam na aldeia, prevenidos pelosmeus moleques que jornadearam por terra, eque, com o caçador Jasse e com o chefe, haviamchegado nessa manhã. O chefe recebeu-me bem, dando-me logo umacasa e oferecendo-me uma panela de leitecoalhado e uma cesta de farinha de milho -

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mas começou por dizer-me que tinhamenganado Lobossi, e que ele não tinha barco. Comi um pouco de leite e farinha, e os meusmoleques num momento fizeram desaparecero resto do presente do chefe, declarando-meque tinham fome, depois de terem comidotudo. Instei com o chefe para me obter algunsvíveres mais - mas ele respondeu-me que só atroco de fazendas mos dariam, e como eu nãoas tinha, nada se poderia fazer. Dei aos moleques as peles dos antílopes quetinha morto, e a troco delas sempre arranjaramfarinha, ginguba e tabaco. À noite, quando me fui deitar, vi que estavaredeado de aranhas enormes, muito chatas enegras, que desciam das paredes em vagarosocaminhar - e fugi da casa, indo deitar-me nopáteo ao relento. Estava escrito que durante aminha viagem no Zambeze nem uma só noiteum teto abrigaria o meu sono. No dia 29, logo de manhã, chegou o velhoMoangana com o prometido barco. Veiorenovar os seus protestos de amizade, e

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retirou-se; dizendo-me que tinha cumprido asordens do seu rei Lobossi e esperava que euestivesse satisfeito, porque ele queria aamizade dos brancos. Na Itufa continuavam as dificuldades para aoutra canoa; o chefe só fazia repetir-me que anão tinha, e lastimar que houvessem enganadoLobossi e a mim. Os Luinas e Macalacas têm por hábitoesconder as canoas em lagoas interiorescobertas de caniçal, que comunicam com o riopor pequenos canaletes disfarçados pelavegetação e só deles conhecidos. Quando nãoquerem que as vejam, difícil é encontrá-las. O caçador Jasse e o chefe Mutequetera,conhecedores das manhas dos Luinas, tantobuscaram entre os caniçais das lagoas, queencontraram uma canoa - fazendo o chefe daItufa mil protestos de que ignorava que elaestivesse ali. As casas da Itufa são, como todas as dosLuinas, de três formas diferentes - e tais comojá descrevi falando das povoações de Canhete e

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da Tapa, mas aquelas que têm a forma tronco-cônica são de muito grandes dimensões. A queme foi oferecida pelo chefe, a casa das aranhas,média, no quarto interior, 6 metros dediâmetro - e no exterior 10.

Nestas dimensões não podem, como as outras,ser construídas só de caniços, e umas fortesestacas verticais sustentam o teto, cuja armaçãoé de longas varas de madeira. Há ainda na Itufa outro tipo de casas, que éoriginal dali. São compostas estas de uma casaogival, a que adicionam uma semi-cilíndricadeitada no sentido do eixo, formando assimdois compartimentos distintos. Essas casas são

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grosseiramente construídas, ao passo que acasa tronco-cônica, verdadeiro tipo da casaLuina, é edificada com cuidado e muitoresguardada. Pela primeira vez, depois de ter deixado oBihé, vi gatos em África, que os há emabundância na povoação da Itufa. Há tambémali muitos cães de boa raça, que empregamcom vantagem na caça dos antílopes. Continuava a dificuldade de obter víveres, masa carabina supria a falta de fazendas parapermutações, e sempre íamos obtendo algumafarinha de massambala a troco de carne e peles.As tripulações estavam prontas, e os doisbarcos em ação de seguir, quando uma novadificuldade veio retardar a viagem. Osremadores declararam que não embarcavam,enquanto eu não depusesse nas sepulturas dasmulheres dos antigos chefes da Itufa, algunsmaços de miçanga branca. Sem ser cumprido esse preceito, afirmavameles estarmos sujeitos a inúmeros perigosdurante a viagem, porque as almas das

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mulheres dos chefes, desassossegadas eirritadas, nos perseguiriam sem trégua. Eu, quenão tinha miçanga, nem branca nem preta,chamei o chefe e mostrei-lhe a absolutaimpossibilidade de sossegar as almas dasfidalgas da Itufa. Ele, a muito custo, pôderesolver as tripulações a seguir, mas foi só noprimeiro de outubro que largamos dali. O meu novo barco era uma piroga, cavada emum comprido tronco de Mucusse, e média 10metros de longo por 44 centímetros de boca e40 centímetros de pontal. As duas árvores empregadas no alto Zambezepara a fabricação das almadias*, são o Cuchibie o M’ucussi, enormes leguminosas dasflorestas, da região das cataratas. A madeiradestas árvores gigantes é de extrema dureza, ede maior densidade do que a água. * Embarcação africana típica, feita de um só pau. A minha piroga era tripulada por quatrohomens, um à proa e três a ré. Eu ia sentado nafrente, a um terço do comprimento do barco,sobre a minha mala pequena, que continha os

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meus trabalhos. O duplicado do meu diário,observações iniciais, etc., levava eu amarradosao corpo com uma cinta de lã. As minhasarmas iam ao meu lado, e as peles do meu leitocompletavam a carga. Na outra canoa, Veríssimo, Camutombo ePepéca, as malas da roupa e instrumentos - e acaça que ia matando. Os remadores remamsempre de pé, para equilibrarem as canoas, quese voltariam sem isso. O remar em tais barcos éverdadeiro exercício acrobático.

Uma piroga do alto Zambeze é como um patimgigantesco, em que o remador tem de fazertodos os prodígios de equilíbrio do patinador

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sobre o gelo, para sustentar a posição estável.Foi em tais condições que eu, no dia 1o deoutubro deixei a Itufa e me aventurei sobre orio gigante, cujas ondas levantadas por umforte vendaval de leste ameaçavam a cadamomento submergir as estreitas almadias. Depois de quatro horas de viagem, parei namargem esquerda, em uma pequena enseada,onde a gente que vinha por terra tinha dadoponto de reunião aos barqueiros. As minhasnovas tripulações eram mais comedidas do queos moleques do rei que me trouxeram a Itufa,mas começavam já com pedidos e exigências. Não encontrei caça no mato, mas, tendochegado alguns bandos de patos a uma lagoapróxima, fui ao barco buscar a espingarda decaça miúda, de que só tinha 25 cartuchos, econsegui matar 17 patos, com 6 tiros. O ponto onde eu estava era o extremo sul dagrande planície do Lui. As duas nervuras demontanhas, que no paralelo 15 estãodistanciadas de 30 milhas, convergem ali - sóparando para dar um leito de dois quilômetros

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ao Zambeze. À planície monótona e nuasucede o país acidentado e coberto de luxuosavegetação. Às margens de areia branca efiníssima, uma areia que, comprimida sob ospassos do homem, solta vagidos como os deuma criança, produzindo uma impressãoinexplicável, porque, estando muito seca, imitaum fraco grito humano. A essas margens deareia tão extraordinária, sucede, em transiçãorápida, o terreno vulcânico - e são blocos debasalto que marginam o rio. Foi com o maior sentimento de prazer que osmeus olhos se fixaram sobre esses penedosdenegridos, vomitados em ondas de fogo nasépocas primitivas do mundo. Desde o Bihé quenão via uma pedra, e com satisfação olhavapara aquelas que via ali. Quando o meu cozinheiro Camutombo tratavade acender fogo para cozinhar os patos, o lumecomunicou-se à erva alta e seca que cobria osolo, e logo, assoprado por um vento forte,voou por sobre a terra em ondas de chamas. .

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O atear do incêndio foi tão rápido que por ummomento estivemos envolvidos nele, tendo denos precipitar nas canoas para lhe escapar. No dia imediato parti, sempre a S.S.E., e depoisde quatro horas de navegação comecei aencontrar grandes filões basálticos,atravessando o rio no sentido E.O. Alguns vêmtanto à flor d’água, que tornam difícil anavegação, e ainda que a corrente éinapreciável, foi preciso diminuir a velocidadedos barcos para evitar choques perigososnaqueles paredões naturais. O rio começa, na região basáltica, a serpovoado de ilhas cobertas de vegetaçãopomposa. Pela tarde, avistamos um bando deongiris (strepsiceros kudu) que pastavam namargem direita. Desembarquei um pouco à montante, econsegui matar um dos soberbos antílopes.Mandei seguir o barco e eu caminhei por terrapor espaço de uma hora. Levantei bandos defrancolins, codornizes, e pintadas (numidameleagris), que nunca tantos vi em África. A

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terrível mosca tsé-tsé também éabundantíssima ali, incomodou-me muito nafloresta com as suas picadas dolorosas, masinofensivas para o homem - e tantas havia etanto me perseguiram que, até depois de estarno barco ainda por muito tempo estive cobertodelas. Fui acampar numa ilha muito extensa de umaspecto lindíssimo, depois de seis horas úteisde navegação a rumo de S.S.E. O Veríssimoestava completamente restabelecido, mas euera devorado por uma febre lenta e contínua,que me minava a existência. No dia 3 de outubro, segui viagem, sempre porentre ilhas formosíssimas, cobertas devegetação luxuriante. Navegamos, havia duashoras, quando vimos dois leões que namargem direita bebiam água do rio. Apesar deeu ter estabelecido como regra não meentremeter com feras, sem a isso ser forçado, eapesar ainda do valor que então tinham paramim os cartuchos, os instintos do caçador

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venceram a razão, e mandei abicar a canoa àmargem, direta aos bichos. Os leões, percebendo-nos, deixaram o rio eforam postar-se em uma eminência a duzentosmetros. Saltei em terra e caminhei para eles. Deixaram-me aproximar a uns cem metros, edepois poseram-se lentamente a caminho paramontante do rio, parando de novo depois decurto espaço. Dessa vez acerquei-me acinquenta metros, mas eles caminharam denovo e embrenharam-se em um pequenomaciço de arbustos. Eram dois leões machos degrandeza desigual, tendo um quase o dobro dacorpulência do outro. Cheguei junto do matagal, e perscrutando abrenha, vi a cabeça de um dos majestososanimais, por entre os arbustos, a vinte metrosde mim. Preparei a carabina, e ao apontar,senti um tremor convulso percorrendo todosos membros. Lembrei-me de que estava fraco edébilitado pela febre, e receei que o pulsotremesse ao dar ao gatilho. Tive uma sensaçãosingular que até então não havia

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experimentado, e que provavelmente era a dosusto. Por um esforço de vontade o tremorparou, a carabina tomou firme a direção que eulentamente lhe dava - e como ao atirar a umalvo, quase fui surpreendido pelo meu própriotiro. Passou rápida a nuvem de fumo, e nada vino lugar onde segundos antes se mostrava acabeça da soberba fera. Carreguei novamente ocano vazio, e com dois tiros prontos, dei voltaao maciço. Para o lado do Norte seguiam aspegadas de um leão, mas de um só. O outroestava ainda ali. Aventurei-me no cerrado dearbustos, e entre um tufo de ervas vi o corpoinerte do rei das florestas africanas. A balaexpress esmigalhando-lhe o crânio, cortara-lhede golpe a vida. Chamei gente, e nummomento a pele e garras foram-lhe arrancadas. Na massa encefálica foi encontrada a bala queproduziu a morte. Ao largar a margem, principiamos a sentir, maldistinto, um ruído longínquo, semelhante aodo mar revolto quebrando nas rochas daspraias. Devia ser uma catarata, e essa ideia, que

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logo me ocorreu, foi confirmada pelosremadores. Pouco depois, os filões basálticosmultiplicavam-se, formando paredõesnaturais, sempre no sentido E.O. - mas, aocontrário do que tinha acontecido até ali, o riojá levava uma corrente rápida que tornavaperigosíssimo o navegar. Um bando de Malancas que vimos na margemdireita obrigou-me de novo a parar, econseguindo eu matar uma, proseguimos naviagem depois de nova interrupção de umahora.

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Pela tarde, fomos acampar junto das aldeias daSioma, estabelecendo o meu campo sob umagigante sigueira-sicômoro, perto do rio. Aviagem desse dia foi de cinco horas e meia,sempre a rumo S.S.E. Nessa noite o meu sono foi acalentado peloruído da catarata de Gonha, que, à jusante dosrápidos da Situmba, interrompe a navegaçãodo Zambeze. No dia 4, logo de manhã, depois de ter comidoum prato enorme de ginguba, presente dochefe das povoações, tomei um guia e dirigi-me para as cataratas. O braço do Liambai cujamargem esquerda eu descia, correndo aprincípio a S.E., vai vergando para O., até quechega a correr perfeitamente E.O. - e nessaposição recebe dois outros braços do rio, queformam três ilhas cobertas de vegetaçãoexplêndida. No lugar onde o rio começa acurvar para O., há um desnivelamento de trêsmetros em 120, formando os rápidos daSitumba. Depois da junção dos três braços doZambeze, toma ele uma largura de seiscentos

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metros apenas - e logo ali deita um pequenobraço a S.O., pouco fundo e obstruído. O restodas águas encontram um corte transversal debasalto, com um desnivelamento rápido de 13metros, e nele se precipitam com fragorimenso. O corte é N.N.O. - e forma três grandes quedas,duas aos lados e uma no meio. Por entre asrochas que separam as três grandes massas deágua, caem um sem-número de cascatas demaravilhoso efeito. Ao Norte, um terceirobraço do rio continua a correr no mesmo nívelsuperior da catarata - e despenha-se no ramoprincipal em cinco cascatas lindíssimas, aúltima das quais fica quatrocentos metros àjusante da grande queda. Aí o rio encurva denovo a S.S.E., estreita a 45 metros, e conservauma corrente de 150 metros por minuto. Os diversos pontos de vista que se gozam daborda sobre todo o espaço das quedas, sãosurpreendentes, e nunca vi em país algum dosque tenho visitado, paisagem mais bela. .

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Gonha não tem a imponência das grandescataratas. Ali a paisagem é suave, variada eatraente. A mistura da floresta pomposa, com arocha e com a água, está harmonizada, comopor mão de artista hábil em tela primorosa.

Mesmo o despenhar da água no abismo, nãocausa ruído pavoroso - e é decerto amortecidopela vegetação enorme que a rodeia. . . . . .

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Ali não se elevam vapores, que convertidos emchuva alaguem as vizinhanças; ali o acesso élivre a toda a parte, parecendo que a naturezase comprazeu a tornar fácil a visita à sua belaobra. Gonha é como a vaidosa que se mostra,que se deixa contemplar para que a admirem. Depois de levantar a planta da grandiosacatarata, demorei-me ali até a noite, nãocansando os olhos de ver tão esplêndidoquadro, em que a cada momento descobriauma nova beleza. Voltei ao meu campo, saudoso pela lembrançade que não veria mais em minha vida oespetáculo sublime que deixava para sempre.

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No dia 5, fui ver o caminho por onde deveriampassar os barcos para jusante da catarata, e eraele por floresta espessa e não inferior emextensão a cinco quilômetros - porque em todaessa extensão o Zambeze, apertado emmargens de rocha apenas distanciadas de 40 a50 metros, conserva uma velocidade de 150metros por minuto, e é tal o referver das águasque impossível é navegar nele. Este espaço estreito à jusante da catarata deGonha chama-se o Nanguari - e termina poruma pequena queda do mesmo nome. O pontoonde recomeça a ser navegável chama-se oMamungo. A passagem dos barcos por terra foi feita porgente das povoações da Sioma, povoações deCalacas ou escravos, governados por um chefeLuina - mandado estabelecer ali pelo governodo Lui expressamente para o serviço decarregarem os barcos por terra, serviço a quesão obrigados sem terem direito a retriboiçãoalguma. .

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Foi fatigante aquele trabalho, e eu fiqueiverdadeiramente penalizado de não ter nadaque desse aqueles desgraçados, que tãohumildemente se prestam a trabalho tão rude. O Zambeze, em Mamungo, alarga a duzentosmetros - mas continua apertado em cinta derocha, onde estão marcadas as cheias portraços horizontais provenientes dos depósitosdas águas lodosas. Por esses traços vi que aságuas se elevam ali a 10 metros, nas máximascheias acima do nível de então - que deveriaser o mínimo aproximadamente. Logo que sobre as rochas basálticas começa ahaver terra vegetal, principia uma vegetaçãofrondosa. O aspecto do Zambeze naqueleponto assemelha o do Douro no seu terçomédio, com a diferença apenas de que naqueleo granito é substituído por basalto. Depois de ter navegado por espaço de hora emeia, encontrei a foz do rio Lumbé, onde parei.Este rio vem do N., e tem, próximo daembocadura, 20 metros de largo por um e meiode fundo. Cem metros antes de entrar no

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Liambai, é-lhe superior de trinta metros - e porisso despenha-se em cascatas, que seriamtalvez lindíssimas se ali perto não ficasseGonha. Segui, depois de ter visitado a foz do Lumbé,mas nesse dia apenas naveguei por mais duashoras - porque, tendo visto uns ongris, acampeie fui caçar. Consegui matar dois antílopes, quenos demoramos a preparar - decidindo nãonavegar mais naquele dia. No dia 7, deixei o acampamento e tendonavegado uma hora encontrei a catarata Cale.

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Ali o rio corre a S.E. e toma uma largura denovecentos metros. Três ilhas o dividem emquatro ramos. O segundo, de oeste, é o quecontém maior volume d’água, mas é tambémaquele em que o desnivelamento é maisrápido. Nos outros braços o desnivelamento, que é detrês metros, produz-se em cem de extensão -enquanto neste não se estende a mais dequarenta. Todos os canais são obstruídos comrochedos desencontrados, onde as águasresaltam com fragor imenso. Descarregamos os barcos, que foramarrastados por um canalete junto à margemdireita - e logo à jusante da quedareembarcamos e seguimos viagem. Meia horadepois, passavamos uns rápidos, onde sópequenos canais sãom praticáveis, e por ondeos remadores governaram as pirogas comprodígiosa destreza. . . .

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Pouco depois, outros rápidos foram passadoscom igual felicidade - sendo o resto danavegação desse dia por entre pontas derochas açoitadas por violenta corrente d’água,sem que outros desnivelamentos rápidosaparecessem. Ao acampar, eu sentia-me gravemente doente.A febre havia recrescido, e a falta dealimentação vegetal era sensível. O dormirsempre ao relento - e o nenhum resguardo que

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era forçado a ter, tendo de sustentar a minhagente pela carabina -, faziam piorar o meupadecer constante. Nessa noite, rebentou sobrenós uma violenta trovoada, e com ela caíam asprimeiras gotas d’água daquela nova épocadas chuvas. O dia 8 de outubro veio encontrar-me maisdoente, mais abatido de corpo, mas não maisfraco de espírito. Segui viagem, e meia horadepois encontrava os grandes rápidos deBombue. O rio forma um grande rápido central, onde odesnivelamento é de 2 metros. Do lado de Este,três canaletes obstruídos por inúmeras rochas -e de Oeste um canal mais largo, onde odesnivelamento é mais rápido. À montante dos primeiros desnivelamentos,uma ilha coberta de vegetação divide o rio emdois braços iguais. Bombue tem mais doisdesnivelamentos, sendo o segundo trezentosmetros à jusante do primeiro e o terceiroduzentos metros à jusante deste. Todos estesrápidos são cheios de pontas de rochas

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desencontradas, tornando impossível anavegação. Os barcos descarregados foramarrastados por terra, operação fadigosa e quelevou muito tempo. Pusemos os barcos a caminho, encontrando umrápido que sem querer passamos embarcadoscom inaudita felicidade - e depois de 4 horasde viagem, paramos junto à confluência do rioJoco. Viajei nesse dia por entre ilhas de umabeleza admirável, que apresentavam ospanoramas mais pitorescos à minha vistafatigada da monotonia do planalto africano. Nessa tarde, estando a repousar, fui acordadoem sobressalto pelos negros - que tinham vistoperto alguns elefantes. Apesar do meu mauestado de saúde, tomei a carabina e segui-os. Na margem do Joco avistei eu os enormespaquidermes, que se enlodavam num paul.Tomei-lhe o vento e aproximei-me cauteloso.Eram sete soberbos animais. A floresta espessa que descia até junto ao paul,permitio-me aproximar-me sem ser visto. .

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Por um momento contemplei aqueles gigantesda fauna africana, e não posso ocultar quetinha remorsos prematuros de lhes fazer mal.A necessidade venceu o escrúpulo, e atirei aomais próximo, dirigindo-lhe a bala ao frontal.O colosso oscilou um momento, sem mover aspatas, e dobrando os joelhos foi caindodevagar sobre eles - posição que conservou ummomento, tombando depois para o lado efazendo tremer a terra com o baque enorme. Os outros seis atravessaram o rio Joco emapressado trotar e desapareceram na floresta.Acerquei-me do inofensivo quadrúpede e, aocontemplar a minha obra de destruição, nãopude deixar de olhar para mim, depois deolhar para ele, e de me achar bem pequeno. Omeu estado era tão melindroso que ja não pudevoltar a pôr-me de, e tive de ser amparadopelos negros para chegar ao acampamento. No dia imediato estava pior, e sobreveio-meuma grande inflamação do fígado. Deiteicáusticos, que pulverizei de quinino depois decortados.

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A doença não me permitia partir naquele dia, eresolvi ficar ali até experimentar melhoras.Nesse dia aconteceu ao meu Augusto a maisextraordinária aventura de que tenho tidoconhecimento. Atirou a um búfalo que feriu, eque correu rápido sobre ele. Augusto tirou omachado e, no momento em que a fera baixavaa cabeça para lhe marrar, atirou-lhe um golpe àfronte, com a sua força hercúlea. Homem e búfalo rolaram por terra. A genteque estava perto do meu valente negro, julgaraeste morto - quando vira o feroz ruminantelevantar-se e fugir. Augusto levantou-se, ealém do abalo do choque, não tinha sofridonada. Os negros acercaram-se dele, quando o meumoleque se abaixou - e depois de apanhar omachado, apanhou, tão admirado como os queo viam, um chifre do animal, cortado rentepelo golpe vigoroso. Nas matas da região das cataratas há oCuchibi, o Mapole, o Opumbulume e a Lorcha,frutos que mais ou menos se encontram no

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planalto - e Além desses, dois frutos privativosdali, a Mocha-mocha e o Muchenche. Esteúltimo é muito sacarino, e dele fiz eu umrefresco bem agradável. Os cáusticos pulverizados de quinino, e trêsgramas dele que introduzi no organismo emtrês injeções hipodérmicas a curtos intervalos,acalmaram o meu estado febril, e no dia 10levantei-me com sensíveis melhoras. Aprimeira notícia que me deram foi que o meuAugusto desaparecera desde a véspera, e nãotinha sido encontrado por alguns homens queo foram procurar ao mato. Esta notícia deu-me grande cuidado, porque oAugusto é de um atrevimento louco - e fez-merecear uma desgraça. Mandei gente em todasas direções a buscá-lo, e eu mesmo fui comalguns homens, apesar do meu estado e domuito que me faziam sofrer os cáusticos.Foram infrutuosas as nossas pesquisas, e daexcursão apenas trouxemos dois seb-seb(rubalis lunatus) que eu matei - e muitas varasde madeira que os Luinas colheram, próprias

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para astes de azagaias e que são do mesmo paude que fazem os remos. Chamam-lhe Minana. De volta ao campo, secamos ao fogo muitacarne dos antílopes. Esta região, a que chamam o país de Mutema, éabundantíssima de caça da floresta, e desde oelefante até á codorniz, há milhares de animaisde todas as famílias, gêneros e espécies doplanalto Africano. No Zambeze, ao contrário,escasseia a caça de água, abundantíssima naregião das planícies. Pela tarde apareceu o meu Augusto, dizendoque se tinha perdido na floresta - e queencontrara uma povoação de Calacas, onde lhetinham furtado tudo o que ele trazia, exceto aespingarda. Os Luinas, ouvindo isto, declararam que iamdesforrar o Augusto, e por mais esforços queempreguei não consegui contê-los. Alta noite voltaram os marinheiros, carregadoscom os despojos do saque - e entre eles vinha ocasaco do meu moleque. .

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É costume deles, logo que encontrampovoações de Calacas na região das cataratas,saqueá-las e destruí-las. Nessa noite o meuestado de saúde agravou-se bastante, masapesar de me sentir gravemente doente, deiordem de partir no dia imediato. Uma hora depois de ter deixado a foz do rioJoco, encontrei os grandes rápidos de Lusso.Desembarquei e segui por terra, fazendo trêsquilômetros em três horas. O rio em Lusso toma uma grande largura edivide-se em muitos ramos, formando ilhascobertas de vegetação explêndida. Depois dobelo panorama de Gonha, nada vi mais belo doque os rápidos de Lusso. Embarquei de novo por baixo dos rápidos, etendo navegado por duas horas parei àmontante da catarata de Nambue. As ilhas, com a sua vegetação pomposa,continuavam a apresentar os mais atraentesaspectos. Decidi passar a catarata nesse dia, ehouve grande trabalho, com a pouca gente deque dispunha, para arrastar os barcos por

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terra. Levou quatro horas aquele fadigosolidar, mas consegui dormir à jusante da queda. A catarata de Nambue tem quatrodesnivelamentos: o primeiro é de meio metro.O segundo, 150 metros à jusante, é de doismetros e perfeitamente vertical. O terceiro, 60metros abaixo, é de um metro - e o último,também de um metro, fica a 100 metros deste. Ocupam por isso as quedas uma extensão de310 metros. O Zambeze corre ali N.S., mas logoabaixo vira a S.O. para tornar a tomar o seucurso regular a S.S.E. Durante a noite estive à morte. A febre intensadevorava-me, e nunca pensei chegar a vernascer o dia 12 de outubro, dia sempre festivopara mim - por ser o aniversário de minhamulher. As repetidas injeções hipodérmicas desulfato de quinino em alta dose, conseguiramdominar a febre. Eu chamei o Veríssimo eAugusto, e entreguei-lhes os meus trabalhos,recomendando-lhes, que, se eu morresse,proseguissem na viagem até encontrar omissionário e lhos entregassem.

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Fiz-lhes ver que o Mueneputo osrecompensaria bem se eles salvassem aquelespapéis - e os entregassem em mão segura, queos fizesse chegar a Portugal. Às 6 horas da manhã do dia 12, senti umgrande alívio e decidi seguir viagem. Parti às 6e meia, e às 7 e 15 minutos passei unspequenos rápidos - e logo abaixo outros, maisdesnivelados, extensos e perigosos. Entestamosao único canal praticável e, logo que o barco seachou envolvido na corrente, um hipopótamoveio resfolegar à jusante. Estávamos entre Cilae Caribidis*, ou a fera ou o abismo. Tornamos aentestar com a corrente e, subindo o rio poruma hábil manobra, pusemo-nos a coberto doperigo junto a um rochedo quase em seco. * Seres da Mitologia Grega. . . . . . .

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O barco da carga, receando o cavalo marinho,desviou-se do canal e foi impelido comvelocidade enorme de encontro às rochas deum canalete obstruído. Nunca pensamos quese salvasse, mas ele derivou por entre aspedras e passou o perigo, tendo recebidoapenas um golpe de água que quase o encheu. Às 7.50, outros rápidos - e às 8, uns muitodesnivelados e extensos. Quisemos sair emterra, porque sentíamos à jusante um ruídoenorme, semelhante ao ribombar dos trovõespelos altos das serras - que nos fez receargrandes rápidos, ou uma catarata impossível

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de transpor. Foi baldado esforço. A margemmais próxima, a esquerda, ficava-nos a 600metros - e a corrente rápida, quebrando-seentre os pedregulhos basálticos e ressaltandoem ondas de espuma, tornava impossível oabeirar à margem. São momentos indescritíveisestes. Levado por uma corrente vertiginosa, tendodiante de si o desconhecido, pressentindo operigo iminente a cada desnivelamento do rioque se lhe mostra, arrastado de voragem emvoragem pelos turbilhões da água revolta, ohomem experimenta a cada momentosensações novas - e cem vezes sofre a agoniada morte, para sentir outras tantas o prazer davida. Das 8 horas e 5 minutos às 8 e 40passamos seis rápidos de pequenodesnivelamento, mas a essa hora, uma quedadesnivelada de um metro se nos apresentou nafrente. Semelhante ao homem que, em corrida,estaca por um movimento instintivo ao ver oabismo aberto sob o seu caminho, o meu barco,como se fosse animado, parou por um impulso

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dos remos - maquinal e inconsciente nostripulantes. Esse momento de hesitaçãoproduziu o desgoverno - e a comprida pirogaatravessou na corrente e saltou ao abismo, nacoroa de espuma de uma onda enorme. Foi umsegundo, mas foi o pior momento da minhavida. Era a Providência que nos salvava. Se obarco tivesse apontado de proa contra avoragem, seria submergido e estaríamosperdidos. O desgoverno dele foi-nos asalvação. Logo abaixo destes, outros rápidosmenores - e então fizemos força de remos parauns rochedos que, a meio rio, estavamcolocados em ponto onde a corrente era maisfraca. Abeiramos a eles, e estivemos a tirarágua e a arrumar as cargas, desarranjadas peloabalo dos rápidos. Segui às 8 e 55 minutos, elogo, às 9 e 15, encontramos novas cachoeiras.Às 9 e 25, os grandes rápidos da Manhicanga.Às 9 e 30, outros - e daí aos grandes rápidos daLucanda, que passamos às 11 e 8 minutos;saltamos em sete cachoeiras mais. Depois depassarmos um pequeno rápido, encontramos a

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catarata de Catima-moriro (apaga o fogo) aomeio-dia. É Catima-moriro o último desnivelamento daregião superior das cataratas do alto Zambeze.Dali até a nova região de rápidos, que precedea grande catarata de Mozi-oa-tunia, o rio éperfeitamente navegável. O espírito também se fatiga como o corpo, e foiverdadeiramente fatigado de espírito que eucheguei ao termo dessa perigosa jornada dodia 12, jornada que não posso relembrar semterror. As comoções daquele dia tinham saradoo corpo, e achava-me sem febre - mas muitofraco. Apareceu muita caça, mas a minhafraqueza e as dores que me produziam oscáusticos ainda abertos, não me permitiramcaçar. O curso do rio foi sempre a S.S.E. Daí em diante, o rio torna a ter o mesmoaspecto do Baroze, planícies enormes, fundo deareia - e nem mais um rochedo. As margenssão formadas por camadas sobrepostas deargila esverdeada. O vento leste era de novofortíssimo, e encrespava a superfície das águas

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- levantando ondas bastante grandes. Apesardisso, segui a 13, e fui acampar junto dapovoação de Catongo. De novo tinha piorado,e era prostrado pela febre que me metia nobarco para seguir. Ali em Catongo encontrei a minha gente - quetinha deixado na foz do Joco e que chegounessa noite. Soube que na véspera tinham corrido umiminente perigo, sendo atacados por um bandode leões. Subindo para cima de árvorespuderam escapar-lhe, mas estiveram muitotempo cercados por eles. A minha cabrinhaCora foi içada por um pano que lhe ataram aoschifres, e esteve amarrada a um tronco junto deAugusto. O Augusto matou um dos leões,atirando-lhe de cima da árvore, e trocou emCatongo a pele dele por uma grande porção detabaco. No dia 14, naveguei a leste, direção que toma oZambeze, e fui acampar, pela tarde, já perto dapovoação do Quisseque. .

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O rio continua a dividir-se, formando grandesilhas, mas não como as da região das cataratas.São canaviais monótonos, que cansam a vista. Tivemos nesse dia pescadores que nosforneceram abundante peixe. Foram os Uanhis,como lhes chamam os Luinas, e que não sãomais do que pygargos gigantescos que povoamas margens do rio. Foram perseguidos alguns,que abandonaram o peixe que levavam. Uma dessas águias aquáticas tinha nas garraspoderosas um peixe mais corpulento do queuma pescada - e levou-o fugindo dos meusremadores, sem que mostrasse esforço ao voar. Todavia, a maior parte abandonavam a presa,para fugir mais rapidamente. Estes pygargos do Zambeze, que não vi acimada região das cataratas, têm a cabeça, o peito ea cauda completamente brancos - e as asas ecostas de um negro de ébano. São exatamente como a espécie americanadescrita com o nome de pygargo de cabeçabranca, mas menos corpulenta do que a ave

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que serve de emblema ao pavilhão dos EstadosUnidos. No dia 15 de outubro cheguei de manhã aoQuisseque, tendo navegado por uma hora aleste. Não quis ir para a povoação, jádesconfiado do gentio, e fui acampar no meiodo caniçal de uma ilha fronteira. Mandeiprevenir o chefe de que estava ali e deitei-meabrasado em febre, que de novo reapareceraintensa. Pouco depois da minha chegada, apareceu nailha um homem trajando à europeia, que, pelacor de café com leite da pele, eu reconheci serum filho das margens do Orange. Disse-me, por intermédio do Veríssimo,usando da língua Sesuto, que era criado domissionário - e estava ali esperando a respostado rei Lobossi a respeito de seu amo. Por elesoube que o missionário era francês, o quesobremodo me fez admirar. Este homem, quese chamava Eliazar, vendo-me muito doentemostrou por mim carinhos que nunca vi emnegro.

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Dizendo-lhe eu, que vinha de propósitoprocurar seu amo, ele manifestou-me o seucontentamento e assegurou-me que omissionário era o melhor homem do mundo. Eu não sei explicar porque tive um prazerenorme sabendo que o meu homem erafrancês, mas é fato que o tive. Estava euconversando com Eliazar, quando chegou ochefe, cujo nome é Carimuque, mas quetambém é conhecido pelo de Moranziani,nome de guerra dos chefes do Quisseque. Disse-lhe que queria seguir viagem no diaimediato, porque estava muito doente eprecisava encontrar o missionário - para ele medar remédios. Preveni-o de que não tinhavíveres, nem com que os comprar, e eleprometeu-me mandar nesse dia mesmocomida para mim e para os meus. Nessa tarde os meus remadores começaram agritar que não deixariam o Quisseque semserem pagos. Eu chamei-os e fiz-lhe ver quenão tinha nada que lhes dar. Que o marfim sópoderia ser convertido em fazendas logo que

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eu chegasse ao missionário que as deveria ter -e por isso, para serem pagos era preciso seguiravante. Eles pareceram convencer-se com o meuargumento. Passei uma noite horrível nocaniçal da ilha. Eram cobras que perseguiamratos e ratos a fugir de cobras os companheirosque tive em torno de mim. A febre aumentou.Carimuque veio ver-me na manhã de 16, etrouxe-me um presente de massambala e umapequena porção de farinha de mandioca.Declarou-me ele que os marinheiros serecusavam a seguir sem serem pagos, e quepor isso mandasse eu recado ao missionáriopara ele me mandar as fazendas e esperasse alios enviados. Recusei terminantemente fazê-lo, e declarei-lheque lhes não pagava se eles não seguissem nodia imediato. Depois de grandes debates, emque fiz prova de enorme paciência - e em queEliazar pleiteava por mim, repetindo cemvezes que seu amo, logo que me visse, pagariatudo o que eles quisessem, ficou resolvido que

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no dia 17 nos poríamos de novo em viagem.Nesse dia chegaram ali os enviados queCarimuque mandara ao Lui com a mensagemdo missionário. Como se sabe, e eu ja narrei no começo destecapítulo, Matagja opusera-se formalmente aoingresso do missionário no país do Lui. Aresposta do rei Lobossi, dada por Gambela,vinha cheia de hipocrisia e não era umanegativa formal. Mandavam dizer-lhe que muito estimariamque ele fosse para ali - mas que, naquelemomento, as guerras e a falta de comodidadeque poderiam oferecer-lhe em Lialui, cidaderecentemente construída, fazia com que eleslhe pedissem que se fosse embora, e voltasseno ano seguinte. Para Carimuque vinha umaordem positiva para não lhe dar meios de eleseguir para o Norte. Eliazar, que ficou muitotriste com a mensagem do rei Lobossi,continuou fazendo-me companhia, e falando-me sempre de seu amo a quem teciaverdadeiros panegíricos.

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Nesse dia, às 4 horas da tarde, desencadeousobre nós uma horrível trovoada - quedespejou copiosa chuva até às 6 horas.Carimuque veio ver-me de novo, e trouxe-meduas galinhas. Parti às 9 horas do dia 17, e depois de navegarpor duas horas e meia encontrei a foz do rioMachila. Naveguei a E.S.E. O rio Machila tem ali quarenta metros de largopor seis de fundo, mas decerto influi nestaaltura a água do Zambeze que o represa. Corre em uma planície enorme, onde pastammilhares de búfalos, zebras e grande variedadede antílopes. Vi ali muitos coroanes, e presencieium efeito de miragem surprendente,apresentando-me toda aquela manadaheterogênea de patas para o ar. Nunca vi tanta caça junta como ali. É ela muitoesquiva, e não deixa aproximar a menos deduzentos metros. Pude matar uma zebra, que nos forneceu ótimacarne, muito melhor do que a de qualquerantílope. Depois de duas horas de demora ali,

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segui viagem e naveguei por duas horas e meiamais - parando, às 5 da tarde, por vermos namargem uma árvore velha trazida pelacorrente, onde fomos fazer provisão de lenhapara a noite. Foi um verdadeiro benefícioaquela árvore, sem a qual não teríamos lenhapara cozinhar em campinas despidas dearvoredo. Quando íamos seguir, apareceu um pretogritando que os outros barcos tinhamamarrado muito acima e acampado ali a gente.Tivemos que voltar atrás, por não termosprovisões no meu barco - e ir a carne na barcoda carga. Só às 6 e 30 minutos, já noite, juntei aminha gente e acampei com eles. Nessa ocasião já iam todos embarcados,porque Carimuque tinha posto dois barcosgrandes à minha disposição, e neles eu haviaaccomodado Augusto, as mulheres, ospequenos e a minha cabrinha. Calungo, opapagaio, esse viajou sempre comigo. Carimuque tinha-me feito um presente valioso,numa porção de farinha de mandioca, o

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melhor alimento que ali podia ter, para mimtão doente e tão débilitado. Nessa noite quiscomer uma pouca de farinha - e fui encontrar osaquinho que a continha completamente vazio.Entrando em averiguações do caso, soube quefora o meu moleque Catraio que a furtara ecomera. Nessa noite, um drama terrível passou-se juntodo meu campo, no meio das trevas. Foi ocombate cruento entre um búfalo e um leão,que terminou pela morte daquele em arrancosde agonia, ao passo que o seu vencedor davaprolongados rugidos, acompanhados por umcoro de hienas. De manhã, a 100 metros doacampamento, fomos encontrar os despojos dobúfalo, cuja cabeça estava intacta, e do restanteexistiam apenas ossos e farrapos de carnedeixados pelas hienas. Segui viagem, e depois de cinco horas denavegação entre ilhas divididas por canaletes,formando um sistema complicado, aporteisobre um rápido desnivelado de um metro -primeiro elo da cadeia de cachoeiras que vai

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terminar pela grande catarata de Mozi-oa-tunia. Com o basalto reaparece a floresta lindíssima,onde, entre outras árvores, sobressaem já osbaobás, esses gigantes da flora africana - queeu não via desde Quillengues. Desembarquei, e fui deitar-me à sombra de umdesses colossos vegetais. Tinha terminado aminha navegação no alto Zambeze - e dali atéencontrar o missionário o meu caminhar era denovo a pé. A povoação de Embarira distava seis milhas doponto onde eu estava, e para lá partiram osmarinheiros com as cargas. Eu adormeci, e sóacordei por noite escura. Só o Veríssimo,Camutombo e Pepéca estavam junto de mim.Perguntei-lhes porque estávamos ainda ali,respondendo-me o Veríssimo que não tinhaquerido interromper o meu sono. Apesar doescuro da noite, ia pôr-me a caminho - quandoreparei que não tínhamos uma só arma. OVeríssimo, que de vez em quando faziaasneira, deixara levar as minhas armas para

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Embarira. Não fiquei sossegado, vendo-mesem armas no meio de uma floresta infestadade feras. Mandei-os logo juntar lenha parafazer uma fogueira, mas às escuras elesnenhuma encontravam nada que servisse. Pepéca lembrou-se então de ter visto perto denós um barco velho, que efetivamenteencontramos, mas a dura madeira do Mucusseresistia ao corte da minha faca de mato. Lembrei-me de jogá-lo como aríete contra otronco do baobá - e logo nós três, dando-lhe omovimento de vai-e-vem, o lançamos com amáxima força. A canoa fez-se em achas naparte que sofreu o choque. Esta operação,repetida algumas vezes, forneceu lenha - e comela uma boa fogueira. Estávamos dispondo-nos a dormir ali, quandosentimos gente, e logo apareceu o Augustocom alguns homens, que vinham procurar-me.Parti com eles, e cheguei a Embarira pela meia-noite. O chefe da povoação tinha-mepreparado uma casa, onde me recolhi cheio defebre e fadiga.

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Estava em Embarira, na margem esquerda dorio Cuando, cujas nascentes havia descoberto edeterminado três meses antes. Estava próximo de alcançar o missionário, dequem esperava auxílio para poder continuar aminha viagem - e estava em véspera de novasaventuras, que não calculava ainda. O estado da minha saúde muito melindroso, adúvida no futuro, as apreensões do presente, emilhares de percevejos, que tinha a casa ondeme recolhi, fizeram-me passar uma noiteatribolada. Depois, uma outra ideia não me saía da mente.Ao chegar ali, soube, que um branco (Macua),que não era nem missionário nem comerciante,estava acampado em frente de mim, na outramargem do Cuando. Quem seria o meucompanheiro naquelas remotas paragens? Ardia em curiosidade, e contava os instantespara o alvorecer do dia seguinte. . . .

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Capítulo Suplementar Na página 184, em capítulo análogo a este,tratei por modo sucinto, dos paísescompreendidos no meu caminho entre a costade Oeste e o Bihé. Neste capítulo buscarei resumir o que nosmeus trabalhos escolhi de mais interessante,relativo ao vasto território que medeia do Bihéao curso superior do rio Zambeze, até ondetermina a narrativa da minha viagem napágina antecedente. Apresentando um resumo das minhasdeterminações astronômicas, dos meus estudosmeteorológicos, etc., sem pedantismo o faço, ecreio apenas, nisso cumprir um dever,tornando públicos um certo número deestudos e trabalhos de que fui encarregado, eque, se não interessam a alguns leitores,podem merecer atenção de outros. Sem querer alcunhar-me de sábio, declarar-meignaro seria afetação. Além da carta geral daÁfrica tropical do sul, quis eu apresentaralgumas cartas parciais dos países que mais

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mereceram a minha atenção no caminho quesegui - por poder dar a estas cartas umdesenvolvimento de detalhes que a pequenaescala não comportaria. Vou tratar desse enorme trato de território,debaixo do ponto de vista geográfico, comtanto mais interesse quanto ele é desconhecidoaos geógrafos - que nas suas cartas o tempreenchido até hoje com linhas mal seguras,traçadas pela mão trêmula da dúvida ecolhidas nas informações pouco idôneas econtraditórias de gente ignara. Um europeu, Silva Porto, atravessou aquelaparte da planura africana antes de mim - e emgrande parte muito mais ao sul do caminhoque segui. Mas Silva Porto nunca publicou assuas interessantíssimas notas, que agora andapondo em ordem. É preciso dizer, que, se essasnotas dão um valioso subsídio ao estudo daetnografia africana, pelo muito que a sua vistaobservadora perscrutou dos costumes e doviver dos negros, dão elas um fraco auxílio às

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ciências geográficas, em que ele, por falta deelementos, não pôde fazer um trabalho sério. São países completamente novos à geografiaaqueles que apresentei nos antecedentescapítulos, e de que vou tratar neste. As coordenadas geográficas dos principaispontos do meu itinerário foram calculadas doselementos que adiante publico. Começarei por descrever o sistema fluvialdesta parte da planura africana. As últimas águas que correm à costa de Oestenascem em torno do Bihé, dentro de um Venorme formado por dois rios, o Cubango e oCuito, que, depois de se unirem em Darico, vãocorrer a S.E. no Deserto do Calaari. O sistema fluvial da Costa Oeste, entre a foz doCuanza e a do Cunene, termina quase ali,recebendo ainda o Cuanza alguns afluentes deLeste, que vão buscar as suas águas aomeridiano 18 E. Greenwich, tais são: o rioOnda, que ainda nasce dentro do ânguloformado pelo Cubango e Cuito, e o Cuiba e oCuime, que entrelaçam as suas nascentes com

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as do Cuito e as de outro rio, o Lungo-e-ungo,que pelo Zambeze vai lançar no Mar Índicoáguas bebidas nos charcos de Cangala, por 18graus de longitude - e que percorrem a enormedistância de mil quatrocentas e quarentamilhas, para atingirem a meta que a naturezalhes marcou. A latitude destas nascentes, que,em amigável convívio, partilham as suas águaspara pontos da terra tão distantes, éaproximadamente de 12° e 30’, isto é, estánessa faixa, compreendida entre os paralelos 11e 13, onde nascem os dois rios gigantes daÁfrica Austral, o Zaire e o Zambeze, e seusprincipais afluentes. Entre o Equador e o paralelo 20 austral, essesdois rios formam dois sistemas de águasperfeitamente definidos, mas que têm um traçocomum de união no paralelo 12 e na faixa queborda esse paralelo, 60 milhas ao Sul e aoNorte, entrelaçando ali as suas origens muitosdos grandes afluentes dos dois colossos, eformando de per-si cada um deles um sistema

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de águas que vai engrossar as duas artériasprincipais. Assim pois, entre os meridianos 18 e 35 a lestede Greenwich, e os paralelos 8 e 15 austrais,toda a água que corre ao Norte vai entrar noAtlântico por 6° 8’, com o nome de Zaire; todaa que corre ao sul entra no Oceano Índico por18° 50’, com o nome de Zambeze. Caminhando a E.S.E. afastava-me da bempronunciada linha divisória das águas dos doisgrandes rios, e ao passo que os meus ex-companheiros se entregavam ao estudo de umdesses sistemas de águas filial do Zaire, euseguia passo a passo outro filial do Zambeze; eá medida que avançava no interior docontinente, esse sistema ia-se apresentandofirmemente definido e claro. Os países de que falei nos anteriores capítulos,os mesmos de que estou tratando aqui, são asede de um sistema fluvial, que forma um dosprincipais, se não o principal afluente doZambeze. .

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O rio Cuando, artéria principal deste sistema,nasce por 18° 57’ de longitude e 12° 59’latitude, num pequeno charco apaulado,superior ao nível do mar em 1362 metros. A sua foz, na confluência com o Zambeze, estácolocada em 17° 49’ de latitude e 25° 23’ delongitude, na altura de 940 metros do nível domar. A extensão do seu curso é de 540 milhasgeográficas, ou aproximadamente milquilômetros. O seu desnivelamento danascente à foz é de 422 metros, ou de um metroem cada 2369 metros de curso. Os afluentes do rio Cuando, pela maior partenavegáveis, representam uma extensão de viasfluviais não inferior a mil milhas geográficas,ou aproximadamente mil e oitocentosquilômetros, que com o curso daquele rioperfaz um total superior a 1600 milhas, ouperto de três mil quilômetros. Estes algarismosenormes representam a importância daquelaparte do planalto africano. Forçando a minha marcha, entre mildificuldades, pude seguir a linha das nascentes

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do grande rio e seus principais afluentes, queficaram perfeitamente determinados nos seuscursos superiores. Aos traçados hipotéticos, a que a maior partedos geógrafos preferiam deixar na cartadaquela parte da África um branco enorme,pude substituir por um traçado firme e segurodo país ignoto. O rio Queimbo, o Cubanguí, o Cuchibi e oChicului, são todos rios navegáveis, banhandoférteis países e prometendo um futuro àquelaparte do continente negro, livre do tsé-tsé, amosca terrível, que corta rente o porvir demuitos outros terrenos africanos. Agora, que em breves traços apresentei ogrande e principal sistema de águas das terrascompreendidas entre o Bihé e o Zambeze, vousucintamente falar da sua orografia. Para isso preciso antes dizer duas palavras daconstituição geológica do solo, que facilmenteexplica os pequenos acidentes dele. O solo africano austral é rocha das épocasprimitivas. Se, junto às costas, nos terrenos

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baixos, observamos os depósitos sedimentarese o trabalho da água, eles acabam ali, para nãodeixar perceber mais do que a ação do fogo. Os calcáreos terminam nas escarpas oeste dasmontanhas que formam os primeiros degrausdo planalto. Sucede-lhes imediatamente oterreno plutônico, e encontramos até ao Bihé ogranito primitivo, profusamente distriboído.Do Bihé para leste o granito vaidesaparecendo, e Além Cuanza é substituídopelos xistos argilosos e micaxistos. É sempre o terreno eruptivo, mas debaixo daação do metamorfismo. Efetivamente, doCuanza ao Zambeze o solo é metamórfico. São xistos e micaxistos, tornados de tal modoplásticos, pela ação das grandes águas, que doBihé ao Zambeze, se algum viajante tencionarum dia ali atirar alguma pedrada, eurecomendo-lhe, que leve pedras do Bihé e deonde termina a região granítica, porque emtodo o caminho que segui não se encontra umasó. .

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A natureza do terreno explica por si mesma oseu pouco acidentado, e a falta de cataratas erápidos nos rios desta região africana. Em todoo caminho que segui há uma depressãoconstante no terreno até ao leito do Zambeze,formando uma inclinação suave. Estadepressão é de 292 metros, em 720quilômetros, que medeiam da margem do rioCuanza à planície do Nhengo. A orografia daquela região é produzida pelaação da água, e perfeitamente marcada pelasdepressões dos leitos dos rios. 30 a 40 metros acima do nível das águascorrentes, se elevam sistemas de montes decumeadas arredondadas e uniformes,acompanhando sempre sem exceção o cursodas águas. A flora que se nos apresenta no Bihé, e onde aplanura atinge a sua maior elevação, é maispobre em árvores, mas riquíssima em arbustose plantas herbáceas; na parte leste do país doBihé, e sobretudo Além-Cuanza, já recupera,

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com a menor elevação do solo, toda a suariqueza tropical. A caça, que escasseia desde o país do Huamboaté próximo da nascente do Cuando, reapareceabundante dali até ao Alto Zambeze. Seis raçasperfeitamente distintas, e que os sertanejos dacosta confundem debaixo do nome genérico deGanguelas, assentam as suas povoações doCuanza ao Nhengo. O país a leste do Cuanza, na parte que écortado pelos rios Cuime, Onda e Varea, e seuspequenos afluentes, é habitado pelosQuimbandes. Do Cuito à nascente do Cuando, assentam assuas povoações os Luchazes. Os afluentes de E.do Cuando, este mesmo rio, são povoados degentes de raça Ambuela. Como disse na minha narrativa, o país dosLuchazes está sendo invadido por umaemigração enorme de Quiocos ou Quibocos,que tendem a estabelecer-se nas margens dorio Cuito. Entre este rio e o Cuando - e muitopara o sul -, o país, sem povoações fixas, é

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contudo ocupado por uma grande populaçãonômade, os Mucassequeres. A margem sul do rio Lungo-e-ungo e seuspequenos afluentes, são habitados pelosLobares. Três destas raças, os Quimbandes,Luchazes e Ambuelas, falam a mesma língua, oGanguela, com pequenas modificações. Os Quiocos e Lobares falam dialetos diferentes,e os Mucassequeres uma língua original, tãodiversa das outras que é impossível seremcompreendidos de povos estranhos. Os Quimbandes são indolentes e poucoguerreiros, pouco agricultores e pobres emgados, ocupando um país fértilíssimo, emtodas as condições de dar a riqueza aos seuspossuídores. Formando federação, não deixamde andar em questões continuadas com osvizinhos da mesma raça. Não são bravos, mas são ladrões, e atacamsempre as comitivas do Bihé que vão negociarcera mais ao interior, sempre que essascomitivas são fracas e eles conhecem quepodem vencer.

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É certo, logo que desfila uma comitiva no país,estarem eles emboscados a contar asespingardas que traz, e o número de caixas depólvora, que se distinguem pelo seu invólucrode pele de leopardo, costume adotado pelossertanejos Bihenos. Se alguém entrar no país dos Quimbandes com50 espingardas e seis ou oito caixas decartuchos, pode dormir descansado, que sóterá deles amizade e respeito. Os Luchazes, um pouco mais agricultores doque os Quimbandes, não possuem já rebanhosbovinos, e apenas há aqui e além algum gadocaprino de inferior espécie. Já cuidam de colhercera, e são um pouco mais industriosos do queos seus vizinhos de oeste. Quanto a valor e honestidade, orçam pelomesmo. Constituídos em federação comoaqueles, cada povoação tem um chefeindependente, um pequeno senhor, que não sedá ares de tirano com o seu povo. . .

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Os Ambuelas, de muito melhor índole, não sãonada guerreiros. São talvez a melhor genteindígena da África Austral. Grandes cultivadores, não trabalham menos nacolheita da cera. São pobres, podendo serriquíssimos se tivessem gados. Formam federação como os outros, mas oschefes conservam um pouco mais deindependência. Em geral, vi na África que mais felizes e livressão os povos governados por pequenossenhores. Não se praticam ali as cenas dehorror tão vulgares nos grandes impériosregidos por autocratas. Se o roubo é vulgar, é desconhecido ali oassassínio, ao passo que entre os grandespotentados o roubo vem depois do homicídio. Sem pretensões a profeta, quero crer, que, umdia, será entre aqueles povos que seestabelecerão os mais seguros elementos decivilização europeia na África. É minha opinião, que nos países ocupadospelas confederações africanas, regidos por

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pequenos régulos, de índole menos guerreirapor se reconhecerem mais fracos, é que deveentrar a civilização com mão forte, debaixo daforma do comércio, do missionário e doexplorador. Divirjo, portanto, da opinião do mais ousadodos exploradores, do mais enérgicotrabalhador africano, do mais dedicadoapóstolo da civilização do continente negro, domeu amigo H. M. Stanley. Diz ele, que devem os missionários atacar aÁfrica pelos grandes potentados. Não pensoassim, e o estudo dos fatos demonstra-me ocontrário. O Matebele há 25 anos que possui missionáriosingleses, e não há ali um só cristão! Se o chefe écatequisado, o seu povo obedece e finge seguira lei de Cristo. É como a estátua deNabucodonosor, tem pés de barro aquelacivilização. Morra o chefe, venha outro que não queiratrocar o harém onde ceva a brutal lascívia, pelotálamo nupcial onde uma só esposa lhe

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acompanhe os passos na carreira da vida, ecaiu o monumento, a civilização desfez-se, enão há amanhã um só cristão na igreja que hojeregorgitava de povo. O comércio é bem recebido pelo grandepotentado, porque representa interessesimediatos matériais de que ele colhe o fruto. No Matebele, onde os missionários inglesesnão têm podido fazer escutar a doutrina deCristo, os negociantes ingleses têm introduzidocom o vestuário e com outras necessidades quetêm sabido criar, uma civilização relativa. Podem apontar-me o exemplo do Bamanguato,mas eu respondo com o que já disse. Morra orei Khama, e vá ao poder um soba que nãoqueira ser Cristão, e todos os catequisados seesvairão como fumaça. Os negociantescontinuarão o seu tráfico, mas o missionárioterá de repetir com ele as orações do domingo,às pessoas de família que o rodeiam. Digo-o sem receio de errar. No Transvaal, entre pequenos régulos, vemosmuitos indígenas que seguem a lei do

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Evangelho. No Basuto ha cristãos convictos,independente da influência de alguns chefesque o não são. Se os exemplos são estes, aqueles que veem nomissionário o primeiro mensageiro dacivilização africana, que ataquem os pontosfracos do reduto, e não vão pereceringloriamente onde o cruzamento dos fogos émais ativo. Eu sou apologista do missionário, merecem-mea maior consideração não só as missões, em simesmo, mas os seus membros espalhados nomeio dos povos bárbaros do continente negro.Tenho visto em quase todos os que conheço atendência para seguirem um caminho diferentedaquele que aponto. Todos querem um grande número de adeptospara a catequese, sem olharem ao terreno emque semeiam. Uma vez que incidentalmente falei dosmissionários africanos, vou rapidamente dizerduas palavras mais sobre o assunto, que me

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proponho a reatar um dia largamente em obraadequada. Eu francamente não creio o cérebro do preto àaltura de compreender um certo número dequestões, comezinhas entre povos de raçasevidentemente superiores. As questõesabstratas são sublimes e incompreensíveis a tãoinferiores organizações. Explicar teologia a um preto equivale a exporas sublimidades do cálculo diferencial a umaassembleia de campônios. Mas, se o preto não está á altura de poderjamais compreender as verdades da religião deCristo, têm sem dúvida o sentimento do bem edo mal, e está em condições de compreender osprincípios de moral comum. Marchem para entre os povos ignaros daÁfrica Central os missionários, sigam semtrepidar o caminho que lhes impõe a suamissão evangélica, mas desvendem os olhos. Tomem para si o que há de abstrato na ciênciade Deus, e não queiram ensinar aos negros oque há de sublime nela para cérebros mais bem

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organizados. Ensinem moral e só moral, com oexemplo e com a palavra; criem necessidadesaos que a ignorância faz prescindir de tudo;criem-lhes necessidades, que elas farão nascero trabalho, e só por ele se regenera um povo. Quero missionários, mas quero missionáriosdo cristianismo e da civilização, homens quecompenetrados dos seus deveres para comDeus e para com a sociedade, saibam firmar oedifício social em sólidas bases; ensinando obem e o trabalho, e tudo o que o preto possacompreender; esperando a ocasião que otempo, a civilização, não deixará de trazer, seele bem trabalhar, para ir pouco a poucoincutindo nos ânimos as verdades da teologia eda moral. Busque primeiro fazer do preto um homem,que tempo terá de fazer do homem um cristão.Seguir o caminho contrário é edificar na areia. No correr desta obra terei ainda de falar nasmissões africanas, e falareidesassombradamente com a consciência de quepresto um verdadeiro serviço à causa das

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missões e à causa da humanidade, apontandoerros de que elas estão eivadas. O homem que mais poderia coadjuvar omissionário em África seria o negociante.Infelizmente o comércio sertanejo está emmãos de bem tristes apóstolos da civilização. Já falei dos portugueses, e com bem pesar meutenho de meter estrangeiros em linha igual. Porum lado, a invasão do comércio pelos árabesde Zanzibar não dá em civilização e cultura oque devia dar, porque a dissolução decostumes de tais gentes destrói tudo quanto ocomércio adianta. Por outro lado, os traders (traficantes) ingleses,creio que deixam muito a desejar emmoralidade, segundo ouvi dizer a missionáriosseus conterrâneos. Esta questão, do comérciosertanejo como meio civilizador, é questão queme proponho a tratar um dia, e que não écabida aqui, onde só por incidente falei demissões e comércio. Volvendo a entrar em assunto, dizia eu, que ospaíses compreendidos entre o Cuanza e o

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Zambeze estão em condições de receberemcom mais facilidade do que os outros povosque conheço em África, o impulso civilizadorque a Europa hoje se empenha em imprimiraos esquecidos povos do grande continente. Deixando estes países, dos quais já faleidetidamente nos anteriores capítulos, vouentrar no Alto Zambeze. Até ali era eu o primeiro explorador a pisaraquelas paragens, o primeiro a descrevê-las, oprimeiro a apresentar uma carta geográfica queas representasse; ali havia sido já precedidopor outro, e por outro que se tornou tãodistinto na obra da civilização africana, queganhou um túmulo em Westminster Abbey, erepousa hoje junto dos reis, dos grandeshomens de Inglaterra. Vinte anos antes demim, David Livingstone percorreu aquele país. Nesse tempo era ele governado por outra raça,e eu fui encontrá-lo em condições bemdiferentes. As condições de geografia física eram asmesmas; mas os geógrafos que seguirem

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outros, terão sempre retificações a fazer, terãosempre alguma coisa a acrescentar. Entre a carta de Livingstone e a minha hádiferenças que já deram nas vistas a algunsgeógrafos europeus. Que o vulto respeitável do célebre exploradorme perdoe se eu o contradisser em algunspontos da sua geografia do Alto Zambeze. Eraa sua primeira viagem, e o Missionário ousadoestava longe ainda de ser o exploradorgeógrafo do futuro. Ele mesmo não se vexa deconfessar que, nesse tempo, debalde tentoumedir a largura do rio por um processotrigonométrico comêsinho. Da confluência do Liba á do Cuando, oZambeze apenas recebe na margem direitadois afluentes, o Lungo-e-ungo e o Nhengo. Quem viaja da Costa de Oeste vê logo, queentre o Nhengo e o Cuando nenhum rio podeexistir. Assim pois o rio Longo, o Banienko,etc., são traços filhos de informações errôneas. Na longitude do Zambeze, no paralelo 15,encontrei também diferença grande para oeste

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- notando-se que essa diferença envolve umerro manifesto, porque eu observava osreaparecimentos do primeiro satélite deJúpiter, e havendo erro da minha parte era esseerro prejudicial a mim, porque envolviaaproximação da determinação de Livingstone. Cada quatro segundos que eu visse mais tardeo reaparecimento, era uma milha mais a favordele. O que poderia produzir um erro que meafastasse da posição determinada era eu ver osatélite antes do reaparecimento, o que ématerialmente impossível. O curso do Alto Zambeze, na parte em que ovisitei, isto é, do paralelo 15 à catarata de Mozi-oa-tunia, é dividido em quatro trechosperfeitamente distintos. Do paralelo 15 (emesmo muito mais do Norte) até próximo doparalelo 17, é perfeitamente navegável emtodas as épocas do ano. Aí começa a aparecer o terreno vulcânico, ecom ele o basalto. É a primeira região dosrápidos e cataratas, onde fora um sério

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obstáculo, a grande catarata de Gonha; tudomais com pequeno trabalho se tornavafacilmente navegável, abrindo um canal juntode uma das margens. Mesmo em Gonha, erade pequena dificuldade aprofundar umcanalete que existe na margem esquerda juntodo caminho que segui por terra, e que vemdesignado na carta, por onde se escoam águasna época das cheias. Da última catarata, Catima-Moriro, até àconfluência do Cuando, torna o rio a ter umanavegabilidade fácil. Daí para jusante novos rápidos vão terminarna enorme catarata de Mozi-oa-tunia, e essaregião não poderá nunca ser aproveitada comovia importante, porque uma série de abismoslhe corta um futuro melhoramento qualquerquanto a navegação. No vale do Alto Zambeze há terrenosprodutivos e férteis. Vastas pastagensalimentam milhares de rezes nos vales, acima eabaixo da região das cataratas. Na região

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montanhosa há a mosca tsé-tsé, e torna-sedifícil passar os gados de Lialui ao Quisseque. Contudo, a mosca está concentrada nasflorestas da região das cataratas, e para leste doBaroze não existe, porque os povosChuculumbes são grandes pastores. O vale do Alto Zambeze, cheio de beleza, fértile rico, exala do seu seio envolto nos aromasdas suas flores o miasma pestilento. OsMacololos foram dizimados pelas febres, equando as azagaias do rei Chipopa libertaramo país dos últimos conquistadores, já o climatinha feito a sua obra de destruição. Os Bihenos, que resistem às febres de quasetodos os países africanos que visitam, sãofulminados pelos miasmas do Zambeze. No país entre o Bihé e o Zambeze, onde ascaravanas se demoram muito tempo apermutar cera, é raríssimo haver um caso defebre no gentio Biheno. Além da planície doNhengo, multiplicam-se as sepulturas deles. Veríssimo, indígena e possuindo umaorganização refratária ao miasma, Veríssimo,

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que nunca em sua vida estivera doente, nãopôde escapar ao clima do Baroze, e vimos nocapítulo antecedente ser ele prostrado pelafebre. Eu mesmo, que resisto bastante àsendemias africanas, sentia respirar a mortecom o ar que respirava ali. Esta verdade, se tivera sido apregoada há maistempo, teria poupado a vida à família Elmore,que só de abeirar-se ao país sucumbiu - porqueo clima na região do Quisseque e daconfluência do Cuando até Linianti, não temmelhores condições de salubridade do que oBaroze. Cumpro um dever falando bem alto alínguagem da verdade a respeito de um paísque está merecendo a atenção da Europa. Aí fica ela, e salva está a minharesponsabilidade de informador consciencioso,para todas as desgraças que aquela voragemainda há de causar aos que não crerem. Será por isso o Lui um país de que se devafugir e ao qual ninguém se deverá abeirar?Não é, e eu vou procurar demonstrar que ele

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deve merecer uma séria atenção, não só àEuropa em geral, como muito particularmentea Portugal. A África Austral, entre os paralelos 12 e 18,tem uma largura média de dois mil eseiscentos quilômetros, e a partilha das águaspara as duas costas faz-se a um quinto destaextensão, junto à Costa de Oeste - porque sefaz próximo do meridiano 18 E. Greenwich,isto é, a 600 quilômetros apenas da CostaOeste. Daí já se lançam dois rios, cujas águas sejuntam ao Zambeze, o Lungo-e-ungo e oCuando. Antes de vermos a importância destes doiscursos d’água, estudemos o próprio riogigante, aquele que bebe as águas de todo oplanalto africano ao sul do paralelo 12 até aoparalelo 20, e a leste do meridiano 18. O Zambeze divide-se naturalmente em trêsgrandes partes perfeitamente distintas: O alto curso, o curso médio, e o curso inferior. .

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O Alto Zambeze compreende o rio desde assuas nascentes, ainda ignotas, até à sua grandeCatarata Mozi-oa-tunia. O curso médio estende-se desde Mozi-oa-tuniaaos rápidos de Cabrabassa; e o Baixo Zambezedaí ao Mar Índico. Vejamos agora quais são as condições denavegabilidade de cada uma destas partes dorio, e qual a sua importância relativa, e a dosseus afluentes. Já neste mesmo capítulo descrevi as condiçõesdo Alto Zambeze e por isso começarei portratar do seu curso médio. Conta ele de Mozi-oa-tunia a Cabrabassa umaextensão de 460 milhas geográficas, ou de 828quilômetros, e divide-se em duas regiõesperfeitamente distintas, a superior e a inferior,cada uma das quais é extensa de 230 milhas, ou414 quilômetros. A região superior, que principia na grandecatarata e termina nos rápidos de Cariba, nãotem importância como via navegável, nem

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pelos afluentes que recebe, todos pequenos einaproveitáveis à navegação. Tem esta região alguns trechos navegáveis,mas em pequenas extensões, e logointerrompidos com rápidos. A segunda partedo curso médio, de Cariba a Cabrabassa, estáem condições bem diferentes, tanto poroferecer uma fácil navegabilidade como por osimportantes afluentes que recebe do Norte. Deum destes afluentes me ocuparei em breve. O Baixo Zambeze, de Cabrabassa ao mar, contauma extensão de 310 milhas geográficas, ou560 quilômetros, onde apenas poucas milhassão ocupadas pelas cachoeiras de Cabrabassa -sendo o resto do curso navegável, ainda queem más condições, por falta de água na estaçãoseca. Esta parte do rio, mesmo nas más condiçõesem que está da confluência do Chire a Tete, éainda uma grande via por onde se faz todo ocomércio do interior com Quelimane. Recebeele um afluente importante, o Chire, magníficorio, que da sua foz a Chibisa não tem cataratas,

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sendo perfeitamente navegável. O Chire quevem do Norte, no seu terço médio corre a S.E.quase paralelamente ao Zambeze - e por issode Chibisa a Tete apenas medeia uma distânciade 65 milhas geográficas, ou 117 quilômetros,em terreno pouco acidentado, e que hoje, semcaminhos, se vence facilmente a pé em cincodias. Esta circunstância é muito para merecer aatenção, porque sendo o rio Zambeze pobre emprofundidade da foz do Chire a Tete, não o édo Mazaro ao mar - e assim, navegando-se porele e pelo Chire até Chibisa, chegamos a 5 diasde jornada a pé, de Tete, com toda a rapidezque nos podem proporcionar aquelasmagníficas vias. Os 117 quilômetros queseparam Chibisa de Tete, podem ser vencidosem um dia com uma simples estrada derodagem, e em três horas com uma ferrovia. Estão pouco ou nada estudados os rápidos deCabrabassa, e não faço ideia até que ponto elesconstituim um sério obstáculo à navegação, e

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se com pequeno ou grande trabalho se poderiaremover esse obstáculo. Sei porém, que a região que eles ocupam épouco extensa, o que já constitui umavantagem indiscutível. Voltemos ao curso médio do Zambeze. Recebe ele pelo norte dois importantes rios, oAruangua do norte, e o Cafucué. O primeiro,em cuja foz assentou outrora a importante ecomercial vila do Zumbo - cujas ruínas atestamaté que ponto a ousadia portuguesa ia fundaros seus mercados, introduzindo a civilização eo comércio nas mais remotas terras africanas -,é um rio volumoso em águas, mas, dizem ossertanejos portugueses, muito cortado decataratas. Seria contudo importantíssimo o seu estudo,ainda que não lhe vejo a mesma importânciaque tem o outro rio, o Cafucué, de que voufalar. Os pombeiros Bihenos passam ao norte do Lui,atravessam o país dos Machachas, e encontramum rio enorme a que eles chamam o Loengue.

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Esse rio é percorrido por eles nas suas viagensde tráfico, que o sobem até às origens, edescem até à foz, onde toma o nome deCafucué. Alguns dos que estavam comigo fizerammuitas vezes essa viagem, e raro é o Bihenoque não tenha estado em Caiuco. Miguel, o meu caçador de elefantes, de quemmais de uma vez falei no correr da minhanarrativa, passou dois anos naquele paíscaçando elefantes, e muitas vezes percorreu orio embarcado de Caiuco a Semalembue - isto éuma distância que eu calculo grosseiramenteem 220 milhas geográficas, ou 400 quilômetros. De Lialui a Caiuco deve a distância ser de 220quilômetros, porque é facilmente vencida pelosLuinas em dez dias, havendo exemplos de termuitas vezes sido ganha em 8 e 7. Em virtudedestes dados, lancemos um rápido golpe devista ao estudo que temos feito do Zambeze, ereconheceremos que, numa extensão de 900milhas geográficas, ou 1620 quilômetros,seguindo pelo Zambeze, Chiri-Tete, Cafucué

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ou Loengoe, a Caiuco e Lialui, temos apenas 18dias de caminho por terra, 5 de Chibisa a Tete,3 de Cabrabassa, e 10 de Caiuco a Lialui;representando uma extensão de 400quilômetros, e por isso sendo aproveitados1220 quilômetros de vias fluviais perfeitamentenavegáveis. Voltemos agora ao Alto Zambeze, e vejamosquais as suas circunstâncias com relação aosseus afluentes. De um sabemos nós já que énavegável, o Cuando, mas sabemos tambémque ele deságua entre duas regiões de cataratas- o que o isola das partes importantes do cursodo Zambeze. Mas da região que está entre a sua foz e o Lui,já disse que não vejo impossibilidade de serfacilmente tornada em via aproveitável - e logoque assim seja, e mesmo agora, poderíamosdescer do Lui, e subir pelo Cuando até pertodo meridiano 18. Contudo, outro rio poderia fornecer-nos omeio de atingir aquele ponto mais direta efacilmente, se fosse navegável.

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Era ele o Lungo-e-ungo. O Lungo-e-ungo é a grande estrada dosBihenos para o Alto Zambeze, e por isso muitoconhecido deles. Afirmam-me que não temcataratas, e não deve tê-las, correndo emterreno igual ao do Cuando e do Ninda. O seudesnivelamento é de 400 metros em 540quilômetros de curso. Dizem os Bihenos, e afirmaram-me os naturais,sempre que andei próximo desse rio, que elenão tem cataratas, como já disse, mas que porvezes a sua corrente é muito violenta, sendopreciso puxar as canoas à sirga. Sendo istoverdade, como suponho, chegaríamos do MarÍndico quase à Costa de Oeste da África,apenas com 18 dias de caminho por terra, a pé!Isto é, em uma extensão superior a dois milquilômetros, apenas teríamos de caminhar emterra 400! A exploração do Loengue ou Cafucué e a dorio Lungo-e-ungo são hoje das maisimportantes a empreender na África Austral, esão relativamente fáceis e pouco custosas.

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Não pude deixar de chamar a atenção para esteponto, que resolve o problema da fácilcomunicação entre as duas costas. Já vão longas estas divagações, em um capítuloonde eu apenas tencionava apresentar os meustrabalhos geográficos e meteorológicos. Nas seguintes páginas, vai publicado dessestrabalhos o que eu julguei mais interessantepara alguns leitores. Às observações iniciais de astronomia que mederam a determinação dos pontos do meucaminho, seguem-se aquelas que mepremitiram fazer o relevo do continente. Vêm depois as notas meteorológicas, cominterrupções inevitáveis quando se é só a fazerum trabalho tal. Constam elas de dois boletins, que registram asobservações feitas às 0h43 m de Greenwich, eàs 6 horas da manhã do lugar em que meachava, hora a que dava corda aoscronômetros. O estudo desses boletins mostra sempre agrande uniformidade das oscilações

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barométricas, e as enormes desigualdades detemperatura e de umidade do ar nos países aque se referem. Vê-se também, que os ventos reinantes são doquadrante Este em todo o país do Bihé aoZambeze. Como já tive ocasião de dizer, e bem secompreende ao ler a minha narrativa, nãopude fazer coleções naturalistas, e apenas,aproveitando o muito pouco papel de quepodia dispor, levei das nascentes do rio Nindaalgumas plantas - que estão em poder do Sr.Conde de Ficalho, para serem estudadas, eonde parece já terem aparecido algumasespécies novas. É opinião do Sr. Conde de Ficalho, que o cerealmuito cultivado entre os Quimbandes eLuchazes, a que eu chamo Massango, eerradamente chamei Alpiste, é uma espécie dePenicillaria, a que chamavam outrora osbotânicos Penicetum tifoideum. Aquele que eudesigno com o nome de Massambala é o Sorgo. .

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Quadro das Observações Astronômicas pelo Major Serpa Pinto do Rio Cuanza ao Zambeze.

Nota do editor: Foram retiradas desta edição eletrônica as tabelas deobservações astronômicas, pelo mesmo motivo queobrigou-me a não incluir as tabelas meteorológicas ecartográficas no primeiro volume da obra: asimagens não podem ser bem visualizadas numdispositivo do tipo Kindle. .

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Como Eu Atravessei a África Segunda Parte — A Família Coillard

Capítulo I Em Lexuma Preso em Embarira—O Doutor Benjamin FrederickBradshaw—O campo do Doutor—O Pão—Gravesquestões—Os cronômetros não param—FranciscoCoillard—Lexuma—As damas Coillard—Doençagrave—Receios e irresoluções—Chegada domissionário—Tomo uma decisão—Partida deLexuma (em inglês, Leshuma). Foi tormentosa a noite que passei em Embarira.Assaltado por milhares de percevejos e pornuvens de mosquitos, tive de abandonar a casaque me oferecera o chefe, e ir procurar ao arlivre um refúgio a tão cruel tormento. Aoincômodo produzido pelo ataque dos insetosvinha juntar-se a ansiedade da ideia deencontrar no dia seguinte um europeu, umhomem desconhecido - mas com o qual eucontava já para sair dos embaraços em queestava. Amanheceu finalmente o dia 19 de

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outubro depois de uma longa noite não-dormida. As primeiras notícias que pude colher foramde que o missionário estava a 12 ou 14 milhasdali, mas que do outro lado do rio Cuandovivia um inglês. Pedir uma canoa ao chefe para passar o rio foio meu primeiro impulso, mas obtive a maisformal negativa - a pretexto de que não haviacanoa. Depois de grande controvérsia, eledeclara-me que não me deixaria sair da suapovoação sem eu ter pago aos marinheirosuma certa porção de fazendas. Chamei o Jasse e mostrei-lhe a impossibilidadede fazer pagamentos sem ter comunicado como inglês - e ter dele obtido fazendas para osfazer, porque eu nenhumas tinha. Jasse reuniu os marinheiros e o chefe e falou-lhes nesse sentido, mas nada obteve, e a recusade me deixarem ir à outra margem do Cuandoera formal. Vendo que nada fazia, pedi-lhes que fizessemchegar um recado meu ao inglês, e escrevi

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algumas palavras num cartão de visita. Foi oVeríssimo o mensageiro. A má noite velada e afebre constante prostraram-me. Deitei-me ao arlivre, esperando a resposta à minha mensagem.Seria passada uma hora, quando apareceudiante de mim um homem branco. A sensaçãoque experimentei ao ver um europeu foiindefinível. O homem que eu tinha diante demim poderia ter de 28 a 30 anos, e possuía umtipo perfeitamente inglês. Barba pouca e muitoloura, olhos azuis, grandes e vivos, cabelocortado rente e tão louro como a barba. Vestia uma camisa de grossa tela, cujocolarinho desabotoado deixava ver um peitoamplo e forte - como as mangas arregaçadasexpunham à vista uns braços musculosos,queimados pelo sol africano. As calças de estofo ordinário estavam seguraspor um forte cinto de couro, de onde pendiauma faca americana. Nos pés, sobre umas meias azuis de algodãogrosso, uns sapatos que pelas costuras, todas

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feitas por fora, logo se via serem obra delemesmo. Disse-lhe quem era; expus-lhe as minhascircunstâncias, e pedi-lhe para me ceder afazenda de que eu precisava, a troco de marfimque eu lhe podia dar. Mostrei-lhe anecessidade que tinha de me libertar daqueleencargo para escapar àquela gente e irencontrar o missionário. Respondeu-me eleque não tinha fazendas. Que estava tambémsem recursos - e que só mandando eu aLexuma as poderia obter. O seu modo de falar e a delicadeza das suasfrases mostravam-me logo que aquele homemnão era um ente vulgar. Ele dirigiu-se ao chefee convenceu-o a deixar-me ir à outra margemdo rio, com a condição de que voltaria à noitepara Embarira. Partimos, e depois de atravessar um granderio, aquele Cuando cujas nascentes eu haviadescoberto e determinado meses antes,chegamos a um pequeno campo onde nosapareceu outro branco.

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Era homem de elevada estatura, de longabarba e cabelos brancos, que mostravam nãouma idade provecta, desmentida pelaagilidade do corpo e expressão da fisionomia,mas sim a velhice prematura, produto delongos sofrimentos e trabalhos. Vestia como o primeiro, e só estava um poucomelhor calçado. Conversamos sobre a minhaposição - e vimos que eles nada podiam fazerpor mim, porque estavam também semrecursos. Fui bastante radical empregando a palavranada - porque se não tinham outra coisa a dar-me, tinham um sofrível jantar, e eu tinha fome. Depois de saciar o meu voraz apetite, combineicom eles escrever ao missionário, a pedir-lhefazendas para o pagamento aos remadores.Expedi um portador para Lexuma e voltei aEmbarira, onde me deitei ao ar livre, com alembrança da noite terrível da véspera. Dormi a noite de um sono único e profundo.Ao amanhecer do dia 20, estavam junto demim, vindas de Lexuma, as fazendas

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necessárias para o pagamento das tripulações.Paguei tudo, e obtive do chefe carregadoressuficientes para levarem as minhas cargas e omarfim a Lexuma - escrevendo por eles aomissionário, a quem pedi hospedagem, e aquem pedia para pagar ali aos carregadores. Ao meio-dia, uma ligeira piroga, impelida peloremar de dois pretos, corria por sobre as águasdo Cuando, levando a bordo três homensbrancos. A piroga velha e rachada fazia muita água, epor isso o homem que ia na frente descalçaraos sapatos que levava na mão - enquanto o daré, acocorado, esgotava incessantemente amuita água que colhia o frágil bote. O do meio, magnificamente calçado à provad’água, contemplava distraído o deslizar dosenormes crocodilos que flutuavam à mercê dacorrente, e pouco caso fazia da umidade dacanoa. Estes três brancos, reunidos ali no centro daÁfrica pelos azares das explorações, eram eu, oDr. Benjamin Frederick Bradshaw, explorador

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zoológico, e Alexandre Walsh, zoologistatambém - preparador de exemplares ecompanheiro do doutor. Chegados à margem direita, foi logo posta àminha disposição uma das três cubatas queeles tinham. O Dr. Bradshaw, ótimocozinheiro, como é hábil médico, sábio distintoe caçador famoso, foi logo preparar um almoçode perdizes que ele tinha morto nessa manhã.O cozinheiro do doutor, um ativo Macalaca,deitado de peito no chão contemplava a seuamo a trabalhar na cozinha - e contentava-seem o ver trabalhar. O apetite, guardado desde a véspera, faziadilatar as fossas nasais ao sentirem o cheirodelicioso que saía em condensado vapor dascaçarolas do Dr. Bradshaw. . . . . . .

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Os condimentos de que eu estava privadohavia tantos meses, exalavam aromasdeliciosos ao olfato de um faminto. A cozinhaestava feita, íamos para a mesa, onde haviauma grande panela de milho cozido em grão eum alentado prato de caril de perdizes.Tínhamos dado a primeira garfada nos pratos,quando na barraca entrou um preto com umobjeto envolvido em alva toalha de linho. . . . .

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Vinha da parte do missionário francês.Desdobrei a toalha, que continha um corpobastante pesado - e fiquei comovido diante deum enorme pão de trigo, que tinha nas mãos. Pão! Pão, que eu já não via há um ano; pão,que era para mim sempre a cada comida emque o não tinha, uma recordação saudosa; queera um sonho constante das noites de fome; doqual cheguei muitas vezes a ter um desejoimoderado, e pelo qual compreendi que sepossa cometer um crime para o haver, quandoprivado dele por muito tempo. .

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As lágrimas vieram umidecer as minhaspálpebras resequidas, e creio que foi aquelauma das mais violentas comoções que senti naminha viagem. Esqueci um pouco as perdizes do doutor, paracomer, com voracidade, daquele pão - quesaboreava com delícias nunca experimentadasem gastronomia. Foi Benjamin Bradshaw quem suspendeu omeu furor voraz, que me poderia ser fatal, eque me fez tomar uma ótima chávena dechocolate, em seguida à qual um sonoprofundo, dormido numa barraca, livre dosereno da noite, veio restaurar-me as forças. Toda a minha gente e as cargas haviam partidopara Lexuma, ficando comigo apenas Augustoe Catraio - e a mala dos instrumentos. Amanheceu alegre o dia seguinte, que deveriaser um dos mais atribolados da minha vida.Depois de um ótimo almoço de perdizes echocolate, e quando nos deliciávamos a fumaro aromático tabaco do Chuculumbe, chegaramos carregadores que na véspera tinham partido

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para Lexuma, fazendo grande grita e dizendoque não tinham sido pagos ali. Admirou-me o fato, sobretudo por o Veríssimonão me ter escrito, e por ter ido com as cargas omarfim que seria garantia a todo o pagamentoque ali se fizesse. Nós não tínhamos fazendas, e não sabíamosque fazer diante das exigências dos selvagens -que teimavam em que tinham sido roubados,porque tinham levado as cargas dali a Lexumae não tinham recebido o menor pagamento.Pouco depois, chegaram o chefe de Embarira,Mocumba e Jasse, que começaram umaquestão fortíssima comigo e com os ingleses,ameaçando-nos e dizendo-nos as maioresinsolências. Eu estava envergonhado e aflito por ver osingleses, que tanto me tinham obsequiado,metidos em uma questão que me eraparticular, e serem insultados por minha causa- mas tinha sido impossível para mim preverum tal acontecimento. .

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Depois de mil exigências - a que era impossívelsatisfazer -, eles, com Jasse à frente declararamque iam a Lexuma reaver as bagagens e omarfim, e que tomariam conta de tudo atéserem pagos, partindo em seguida - masdeixando ali o chefe Mucumba com um grandegrupo de gente a vigiar-nos. Por conselho do Dr. Bradshaw, nós entramosem uma das barracas e pusemos as armas àmão, prontos a uma enérgica defesa, em casode um provável ataque. Ao cair da tarde, Mucumba começou a fazeruma grita enorme, e chamando a sua genteinvadiu as duas barracas, levando de umadelas a minha mala dos instrumentos - que fezlogo transportar ao barco e passar à outramargem. Voltaram a cercar a terceira barraca, em quenós estávamos, exigindo que eu fosse com elespara Embarira. Receioso de que os meushospedeiros se expusessem por minha causa aum perigo eminente, queria me entregar aogentio e libertá-loss de um conflito inevitável,

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quando o Dr. Bradshaw me pediu que o nãofizesse, e declarou-me que não me deixariapartir - e que deveríamos resistir-lhes a todo ocusto. Na barraca, estávamos quatro homens - trêsbrancos e o meu Augusto -, dispostos a vendercaras as vidas, e era tal a nossa atitude que osgentios recuaram ante a ideia de um ataqueque seria fatal a muitos. Depois de umconselho prolongado entre as cabeças,decidiram eles abandonar o campo e passar àoutra margem. Dava-me cuidado não ver o meu molequeCatraio, que comecei a supor teria sido feitoprisioneiro, quando ele me apareceu nabarraca, com o seu riso inteligente e velhaco,trazendo na mão os meus cronômetros, quetinha ido à outra margem buscar na minhamala, enquanto os Macalacas nos cercavam eameaçavam. Mais uma vez Catraio impediaque os cronômetros parassem por falta decorda. .

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Estávamos sós, mas muito apreensivos -porque o doutor, que conhecia bem osindígenas dali, dizia, que eles não passariamsem voltar à carga. Pelas 9 horas da noite, chega ao campo omissionário francês, François Coillard, esabendo tudo o que se tinha passado, afirmou-nos que os carregadores haviam sido pagosgenerosamente em Lexuma - e que ele seencarregava de fazer ouvir razão ao chefeMucumba. No dia imediato, logo de manhã, o chefeMucumba, Jasse e inúmeras gentes, passaram orio e vieram ao nosso campo. M. Coillard, que fala a língua do país como falafrancês ou inglês, fez um discurso ao chefe deEmbarira, mostrando-lhe a pouca-vergonhados carregadores - que tendo sidogenerosamente pagos em Lexuma, vieramdizer que nada haviam recebido e que tinhamsido roubados. Mucumba entregou logo tudo o que tinharoubado na véspera, e deu muitas satisfações -

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fazendo recair a culpa sobre os seus homensque o tinham enganado. Quando parecia quetudo corria bem e se havia harmonizado,apareceu Jasse levantando uma nova questão. Queria ele que eu pagasse aos seus molequesparticulares, que tinham vindo em seu serviço,e com quem eu nada tinha. Eu argumentei-lhe com o caso da tripulação deum pequeno barco que do Quisseque viera emserviço dos outros remadores, e a quem eunada tinha dado. Depois de um curto debate,habilmente dirigido por M. Coillard, elerecebeu duas jardas de fazenda para cadahomem, e ficou terminada a questão. Fomos almoçar satisfeitos, julgando queestariam terminados os incidentesdesagradáveis daquele dia, mas não estavaescrito no livro do destino que assim fosse. . . . . .

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Jasse voltou de novo à carga, com novaexigência. Queria ele que eu lhe pagasse e aoChefe Mutiquetera, a quem eu já havia pagocom largueza. Começou nova questão, em que de novo meprestou grande auxílio M. Coillard - sendopreciso, para a terminar, prometer-se umcobertor a cada um deles.

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Mandou logo M. Coillard a Lexuma umportador buscar os dois cobertores, e a fazendaque ele havia tirado da sua reserva para pagarà gente de Jasse. Assim terminou finalmente aquela série nãointerrompida de questões, para o quêconcorreu poderosamente a intervenção quenelas tomou Monsieur Coillard. Disse-me ele que ia partir para o Quisseque, areceber a resposta do rei Lobossi a seu respeito,mas que em 10 ou 12 dias estaria de volta - epor isso me pedia, que fosse esperar o seuregresso para Lexuma, onde me esperava suaesposa Madame Christine Coillard - e só entãopoderíamos discutir maduramente o queconvinha fazer de futuro. Resolvi seguir para Lexuma no dia imediato -porque queria determinar a posição daqueleponto e fazer um certo número de observações. Durante a noite tive um violento acesso defebre, e de manhã sentia-me muito mal. O Dr.Bradshaw não me quis deixar partir sem tomaralgum alimento, e por isso só às 10 horas pude

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deixar a margem do Cuando. O doutor e seucompanheiro deviam abandonar aquele pontono mesmo dia, e irem para Lexuma, porque ascenas dos dias antecedentes aconselhavam-nosa evitar o contato com aquele gentio malévolo. Eu parti por um calor de 40 graus centígrados,num terreno arenoso onde o caminhar eradifícil. A febre tirava-me as forças, e eu maisme arrastava do que caminhava. O terreno eracoberto de arvoredo, e elevava-se logo a partirda margem do rio. Depois de cinco horas demarcha lenta e penosa, encontrei um pequenocórrego, onde pude saciar uma sede ardente.Só duas horas depois cheguei a Lexuma. Eram6 da tarde. Num estreito vale de oitenta metros de largo,enquadrado em montes pouco elevados e devertentes suaves, cresce uma erva grosseira eraquítica. Uma bela vegetação arbóreaguarnece as montanhas que enquadram opequeno vale, que se estende na direção N.S.Na encosta de E. algumas barracasaglomeradas formam o estabelecimento de um

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sertanejo inglês, Mr. Phillips. Em frente, aOeste, duas aldeias abandonadas são a feitoriade George Westbeech. Ao N. das aldeias de Mr. Westbeech, uma fortepaliçada cerca um terreno circular de 30 metrosde diâmetro, onde havia uma casinha decolmo, dois wagons - ou carretas de viagem -, euma barraca de campanha. Era oacampamento da família Coillard, era Lexumaenfim. Entrei ali no recinto velado pela alta estacariade madeira, com o corpo extenuado pelocansaço e o espírito abalado pela comoçãoviolenta que sentia. Diante de mim, à porta da casinha de colmo,estavam sentadas duas damas - bordando acores em grossa talagarça. Ao ver aquelas damas, ali no centro da África,a minha comoção foi indescritível. . . . .

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A recepção que me fez Madame Coillard foiaquela que faria a um filho, se esse filho foraeu. Com uma delicadeza extrema, pôs-me logoperfeitamente à vontade - e disse-me que aindanão tinham jantado, porque esperavam pormim para pôr-se à mesa. Convidou-me a entrarna barraca de campanha, onde uma mesacoberta de fina e alva toalha sustentava umserviço modesto, contendo um jantarsuculento. Defronte de mim sentava-seMadame Coillard; ao meu lado MademoiseleElise Coillard, sobrinha dela, de olhos baixos efisionomia rubra de pudor, por ver umestrangeiro desconhecido entrar tão de golpe

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na sua vida íntima e velada. Espalhava emtorno de si esse perfume de candura que cercae envolve a mulher formosa aos dezoito anos.

Madame Coillard multiplicava-se em cuidadosextremosos, e pelo fim do jantar eu comecei aprovar uma sensação estranha. Aquelas damas,o jantar, o serviço, o chá, o açúcar, o pão, tudoenfim se me baralhava na mente com traçosmal definidos. Cheguei a não poder formularuma só ideia, e a recear, que a cabeçaenfraquecida não pudesse suportar asimpressões daquele momento. Não tenho a consciência de ter terminadoaquele jantar, sei apenas que me achei só nabarraca. Então um abalo violento sacudiu todo

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o meu corpo; um soluço tolheu-me o ar nagarganta - e as lágrimas saltaram ardentes dosmeus olhos desvairados, banhando-me as facesque queimavam de febre. Chorei e choreimuito, não me envergonho de o dizer, e creioque aquelas lágrimas foram a minha salvação. Se eu não tivesse chorado, teria talvezenlouquecido. Que se riam aqueles que acharem ridículas aslágrimas num homem; pouco me importa o seumotejar tolo. Infeliz de quem não encontra nossentimentos do coração o pranto que vemmarejar nos olhos - e o soluço que estrangula afala -, mais verdadeiras provas da gratidãosentida do que as frases mais eloquentes emprotestos fervorosos. Eu, por mim, não me envergonho de terchorado, e feliz serei se puder ainda chorar emiguais transes. Quanto tempo estive naquele estado deexcitação não o sei eu; mas, muito tempodepois, entravam as damas na barraca e

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preparavam-me uma cama com cuidadosextremos. A aparição das duas carinhosas senhoras veiotrazer nova perturbação ao meu espírito. Eunão sabia que dizer-lhes, e creio que só lhesdizia disparates. Foi mesmo sem consciência do que fazia queeu lhes narrei um boato ouvido de manhã emEmbarira, que apregoava ter havido umgrande incêndio no Quisseque, nas casas dochefe Carimuque, e terem sido ali presa daschamas as bagagens do missionário. Deitei-mee creio que dormi. Ao alvorecer da manhã seguinte, as cenas davéspera desenhavam-se confusamente naminha imaginação enfraquecida. Parecia-mesonho tudo o que se passava naquele sertãolongínquo. Levantei-me e, ao ver que era realidade o queme cercava, o meu espírito volveu de novo aum deplorável estado de perturbação. Maquinalmente, sem a menor consciência dosmeus atos, por um poder filho do hábito, dei

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corda e comparei os cronômetros. Fiz asobservações meteorológicas e registrei tudo nomeu diário. Pouco depois, Mademoisele Elisa, com a suatouca e avental branco, entrava risonha nabarraca e vinha cuidar dos aprestos da mesapara o almoço. Madame Coillard continuouenvolvendo-me nos maiores desvelos. Não posso, ainda hoje, explicar porqueproduziam em mim, espírito forte, uma talimpressão aquelas damas - mas é certo que asua aparição produzia-me logo uma espécie dedelírio. Passaram dois dias que eu não sei como forampassados - no fim deles sucumbi. A febreapossou-se de mim com violência assustadora,e com ela veio o delírio. O meu estado eragrave - mas dois anjos velavam à minhacabeceira. A 30 de outubro, o delírio deixou-me ummomento de lucidez. Conheci que a vidaestava apenas presa por um fio a um corpo

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despedaçado pelas fadigas e fomes da jornada,e pensei que não me levantaria mais. Nesse dia, entreguei a Madame Coillard osmeus papéis - pedindo-lhe que os fizessechegar com segurança às mãos do Governo dePortugal. O Dr. Bradshaw fizera-me repetidas visitasdurante os dias antecedentes, e empregaratoda a sua ciência médica para me salvar.Contudo, a febre não cedia - e o estômago nãosuportava medicamento algum. Decidi eumesmo tentar um último esforço, e comecei adar-me repetidas injeções hipodérmicas comfortes doses de quinino. A 31 fiquei espantado de ainda estar vivo, eredobrei a dose do quinino pela absorçãohipodérmica. O Dr. Bradshaw aconselhou-me efez-me tomar uma forte dose de láudano*. A 1o

de novembro, começaram a manifestar-se asprimeiras melhoras. * Opiáceo que tem propriedades sedativas eanalgésicas. Nunca estive cercado de tão extremososcuidados como ali. As melhoras continuaram

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rápidas no dia seguinte, em que já me pudelevantar um pouco. Pareceu-me perceber quenão sobejavam muito os víveres, e isso tirou-me um pouco o sono durante a noite. Namadrugada seguinte, quando ainda tudodormia no campo, levantei-me cauto e fuichamar os meus pretos. Saí com eles, cambaleando ainda nas pernasdébilitadas, e internei-me na floresta - sem quealguém desse fé da minha escapulida. Pelatarde voltei com os meus homens curvados aopeso da caça que tinha morto. MadameCoillard estava aflita, pensando que eu haviaabandonado o campo para sempre, e fuirecebido com a maternal censura de quemralha em família. Como em todas as minhas doenças graves, nãotive convalescença - e a minha forteorganização fez-me passar do estado doentioao perfeito estado de saúde, em transiçãorápida. Com a robustez do corpo veio o sossego doespírito, e só então pude encarar

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refletidamente a posição em que o destino mecolocara. Pela conversação repetida comMadame Coillard, pude perceber que nãosobejavam recursos ao missionário. O meumarfim, bem pago, mas pago em fazendas aque os agentes da casa Westbeech and Phillipsderam subido e exageradíssimo valor, poucoproduziu. Madame Coillard só via um meio desairmos do apuro em que estávamos, e esse erao de não nos separarmos, por não ser possíveldividirem comigo os poucos recursos quetinham. Contudo, esperávamos a volta do missionáriodo Quisseque para tomar uma resoluçãodefinitiva. A ideia de ficar com eles aterrava-me. Havia ali uma formosa criança, queimpressionava a cada momento a minhaimaginação ardente de português. Ser-me-hia possível, num viver tão íntimo,num isolamento tão grande, impedir que umafala escapada num momento de loucura, umolhar vibrado num lampejo de delírio, fossem

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ofender a casta menina, descuidosa na suainocência cândida? Temia por mim e por ela. Decidi, pois, fazer um estudo de mim mesmoaté à volta do missionário, e calcular bem atéque ponto eu seria capaz de ser honrado. Passei três dias atribolados no estudo que faziado meu espírito. Poderia eu namorar-medaquela meiga criança? Decerto não - e alembrança sempre viva de uma esposaidolatrada era segura garantia aos meussentimentos. Mas, se o coração estava defendido, não oestava a imaginação férvida, e podia, nummomento de desvario, com uma fraseimprudente, cometer uma infâmia - porqueinfâmia seria fazer subir o pudor ao rostodaquela em cuja casa eu tinha sido recebidocom a intimidade de um filho. Além disso, o meu dever era ainda maior. Erapreciso evitar, a todo o custo, que a fama dasproesas que os meus de mim apregoavam; quea posição, um pouco romântica, em que eu meachava entre aquela família não fossem

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impressionar a imatura imaginação dosdezoito anos de uma mulher. Poderia eu sustentar durante meses o papel deuma reserva absoluta, na grande intimidade davida que ia levar? Um dia pensei que era capaz de o fazer, edesde esse dia tracei a minha conduta futura,de que não arredei um só passo. Muitos meses depois eu tinha sidocompreendido por uma mulher, que soube lerno meu íntimo com essa fina perspicácia quesó elas possuem para ler nos arcanos da almaos mais recônditos sentimentos; e não hesitoem dizer que fui compreendido por MadameCoillard, porque, na véspera da nossaseparação, ela escreveu no meu diário umversículo do Salmo 37, que me revelou o seupensamento. Estava resolvido a ficar com eles, quando másnovas chegaram do Quisseque. M. Coillardconfirmava, em uma longa carta escrita a suaesposa, o boato do incêndio a que já me referi. .

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Tudo quanto ele tinha em casa do chefeCarimuque fora presa das chamas, e isso vinhaainda complicar a situação, diminuindo o seuhaver. Além desta, outra notícia veio consternar maisa bondosa esposa do missionário. Dizia ele queEliazar, o homem que estava em Quisseque ede quem já falei, fora atacado de um acesso defebre de mau caráter*, e estava em perigo. * Muito provavelmente a febre amarela, que ébastantemente mais grave do que a malária.. Madame Coillard muito afeiçoada àqueleCatequista, que fora outrora seu servidor, ficoudesde esse momento em cuidados extremos. Dois dias depois, a 6 de novembro, uma novacarta do missionário veio aumentar a tristezaque reinava no acampamento de Leshuma.Eliazar estava pior e receava-se que nãopudesse salvar-se. No dia 7, eu tinha ficado levantado até tardeda noite, por ter a fazer observaçõesastronômicas - ficando comigo as duassenhoras, em conversa cujo assunto era omissionário e a doença de Eliazar.

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Madame Coillard disse-me que tinha um fortepressentimento de que seu marido chegarianaquela noite. Propus-lhe irmos ao seuencontro, e tendo sido aceito o alvitre pelasduas corajosas damas, pusemos-nos a caminhode Embarira. A um quilômetro do acampamento, eu, quecaminhava adiante delas, preveni-as de quesentia rumor de gente na floresta - masjulgaram ser engano, porque ainda umquilômetro além ninguém encontramos.Contudo, eu sabia não me enganar, porquemais de uma vez um rumor mal definido e sóperceptível a ouvidos de sertanejo, tinhachegado até mim. Sem isso não teria animadoaquelas damas a esperar numa florestapovoada de feras - e onde me sentia pouco àvontade pela responsabilidade que tomava. Pelas onze e meia, o rumor que por vezespercebi tornou-se distinto para os meusouvidos, e não duvidei afirmar que gentecalçada caminhava na trilha que seguíamos.Pouco depois alguns vultos apareceram na

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sombra, e o missionário, acompanhado de doisou três pretos, estava diante de nós. Madame Coillard procurava em vão alguémjunto de seu marido. Esse alguém faltava. Maisuma sepultura tinha sido cavada no altoZambeze, mais uma lição estava dada aosimprudentes que se arriscam naquele país damorte. Voltamos tristes e silênciosos ao campode Lexuma. No dia imediato tive uma larga conversa comM. Coillard. O que eu previa já era realidade. Omissionário, falto de recursos, não me podiadar o suficiente para eu fazer a viagem até aoZumbo. Discutimos largamente todos os alvitres, e aúnica possibilidade de êxito era não nossepararmos e seguirmos juntos até aoBamanguato, onde eu poderia obter meios deseguir avante. Ele tinha pressa de partir,porque além de não serem fartos os meios parauma espera qualquer, Lexuma era-lhes fatal.Duas sepulturas de dois dos seus mais fiéisservidores tinham sido abertas ali.

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Contudo, eu queria ir visitar a grande cataratado Zambeze, e ficou combinado que ele meesperaria até ao regresso, o que importava umademora de 12 a 15 dias. Ficou decidido que eu partisse paraMozioatunia no dia 11, e Madame Coillard,com maternal solicitude, começou logo a tratardos meus aprestos de viagem. No dia 10, uma forte tempestade caiu sobrenós, e sobreveio-me um acesso de febre.Veríssimo também adoeceu com febre. Esteestado de tempo e de doença continuou no dia11, impedindo-me de realizar o projeto deseguir nesse dia para as cataratas. No dia 12 eu estava melhor, mas o Veríssimotinha piorado, sendo necessário renunciar àpartida ainda nesse dia. Então o missionário propôs-me seguirmostodos a 13 para o kraal* de Guejuma, e daliseguir eu ao destino projetado. * Pequeno povoado em África. Efetivamente, às 10h20m da noite de 13,deixamos o campo de Leshuma. Era difícil o

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jornadear por entre a floresta com os pesadoswagons. A cada passo um tronco de árvore ouum penedo travava as rodas, e era precisocortar o tronco ou remover a pedra. O meuAugusto, usando da sua força atlética, faziaverdadeiros prodígios. Só às 6 horas da tarde do dia 15 pudemosalcançar o kraal de Guejuma, tendo jornadeadonoite e dia apenas com pequenos descansos,para os bois pastarem e nós repousarmos. Nãohá água entre estes dois pontos, e ainda quetínhamos uma escassa provisão para nós, ospobres bois passaram três dias sem beber. Porisso, logo que chegamos a Guejuma, elesfaziam esforços inauditos para se libertaremdos jugos e correrem às lagoas de péssimaágua, que abastecem aquele kraal, estabelecidopelos sertanejos ingleses para repousar e teremos gados - que não podem guardar emLeshuma por haver ali a terrível mosca tsé-tsé. O nosso caminho foi por uma planície arenosae úmida, onde os wagons se enterravam dandogrande canseira aos bois.

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Apesar do mau estado da minha saúde,determinei seguir no dia imediato para ascataratas, e Madame Coillard não deixou ummomento de se ocupar das minhas provisõesde viagem. Não me foi possível encontrar um guia, masapesar disso, não vacilei um instante em partir. . . . . . . . . . . . . . . . .

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Capítulo II Mozioatunia Viagem às cataratas—Tempestades—A grandecatarata do Zambeze—Abusos dos Macalacas—Regresso—Patamatenga—Mr. Gabriel Mayer—Túmulos de europeus—Chego a Deica—A famíliaCoillard. Logo na manhã do dia 16 fiz os meuspreparativos de viagem, e bem pouco trabalhotive, porque Madame Coillard já tinhapreparado a parte mais importante deles, adispensa, tendo eu mesmo de intervir, paramostrar a impossibilidade de levar tudo o queela queria que eu levasse - pois que não tinhacomo carregadores mais do que dois homens,Augusto e Camutombo. Comigo deveria partir toda a minha gente -que eu não quis deixar em Guejuma, receiosode que algum fizesse disparte na minhaausência. Ficaram apenas as minhas bagagens,a minha cabrinha Cora e o meu papagaioCalungo.

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Para a África não serve muito o rifão europeuque diz, “quem tem boca vai a Roma” - massim outro se pode inventar para ali, e é ele, que“quem tem bússola vai a toda a parte.” Monsieur e Madame Coillard estavamverdadeiramente aflitos por me verem partirsem guia e a pé. Mal sabiam eles quanto me erasócia a floresta africana - e como eu sabia andarnela. Outro motivo de aflição para eles era a dúvidaem que estavam de que não me viesse a faltarágua no caminho, por eu não ter meio deconduzir nenhuma - e ser o país em extremoseco. Tranquilizei-os como pude, assegurando-lhes que não contava morrer de sede. Como eu devesse demorar-me de 12 a 15 diasnaquela excursão, ficou combinado que elespartiriam para o kraal de Deica, onde eudeveria ir encontrá-los. Finalmente, depois de mil demonstrações damais afetuosa amizade, parti às 10 horas, sendoacompanhado durante um quilômetro por M. e

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Madame Coillard, que então se despediram demim e voltaram ao kraal. Segui sempre ao Norte na planície, e uma horadepois encontrei uma emaranhada floresta, emque me embrenhei, para não alterar o meurumo. Depois de caminhar por quarentaminutos na mata, deparei com uma pequenalagoa de água cristalina e parei junto dela paradeixar passar as horas de maior calor. A essetempo uma trovoada longínqua fuzilava aonorte, deixando mal ouvir o ribombar dostrovões. Deixei aquele ponto às 2 horas, a tempo que seformavam em todas as direções trovoadasameaçadoras. Às 4 horas, encontrei uma trilhade caça muito seguida de fresco, e indo por eleà descoberta, fui dar a um grande charcolodoso, habitual bebedouro de feras. Acampeiali - e tratámos de construir abrigos contra achuva que ameaçava cair em abundância. Os pedômetros anunciavam a marcha de novemilhas geográficas. .

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Na manhã seguinte, parti às 6 horas e sustenteimarcha de 4 horas, interrompida apenas poruma pequena demora, proveniente de um forteaguaceiro que caiu pelas sete horas e meia.Parei para comer junto de uma lagoa que dánascença a um riacho correndo a E.S.E. Ao meio-dia, segui a N.N.E., mas tive quesustar a marcha às 3 horas, porque os meus jánão podiam dar um passo, tendo os pésdespedaçados pela pedra miúda e solta queencontrávamos desde a 1 hora no terreno jábastante acidentado. Eu mesmo, doente e fraco, já não podiasuportar as grandes marchas que antes fazia.Durante a última parte da marcha atravesseitrês pequenos riachos, que correm a S.E. emleitos basálticos. As montanhas pedregosas, mas cobertas devegetação arbórea, correm também a S.E. e nãoapresentam elevações acima dos vales maioresdo que 50 metros. Acampei junto a umpequeno depósito de águas pluviais. .

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Na manhã seguinte continuei a jornada,sempre em terreno pedregoso e acidentado.Atravessei florestas muito espessas, mas ondenão se encontram os gigantes vegetaispeculiares à flora intertropical. Ainda nessamanhã, passei dois córregos correndo a S.E. Desde a véspera caminhava eu em terreno deformação vulcânica. Passou por ali umarevolução enorme, que deixou profundamenteassinalada a sua passagem com traçosindeléveis, em gigantescas obras de basalto. No leito dos ribeiros e na escarpa dasmontanhas, o sol dardejando os seus raiossobre a pedra cor de fogo, faz parecer queainda ali correm ondas de lava. Eu achava-me em boa saúde, mas os meusdificilmente podiam caminhar descalços, porsobre a pedra cortante. Fiz apenas marcha dequatro horas e fui acampar junto de um ribeiro,tratando logo de construir abrigos para nosacolhermos de uma tempestade iminente. O lugar do meu acampamento era lindíssimo.Um ribeiro de água cristalina correndo ao N.,

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ficava-me por oeste. Um cômoro coberto defrondoso arvoredo embelezava a leste apaisagem. No limitado vale, árvores enormes de muitodiferentes proporções das que até aliencontrara, cobriam o meu campo formado dequatro pequenas barracas. Do norte, muito ao longe, o vento trazia umruído semelhante ao ribombo de millongínquos trovões. Era Mozioatunia no seubramir eterno. Saí a caçar e encontrei profusão de francolins,de que fiz boa provisão. Matei também umalebre, muito diferente das da Europa nas coresdo pêlo, menor em tamanho, mas igual emformas. Tornava-se muito distinta, por ter odorso e as orelhas quase pretas, e o ventre ecabeça de um amarelo de ocre muito carregadoe pintado de manchas negras. De volta da caça, observei no meu campo umcaso muito singular. Vi milhares de termites trabalhando ao ar livre,e sem o menor cuidado de cobrirem o seu

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caminho, já nas árvores já na terra. Passei umaótima noite, depois de um bom jantar deperdizes. No dia imediato, logo à saída, passei umpequeno ribeiro que corre a N.O., e depois dese juntar àquele em cuja margem acampei,corre como ele ao N. Segui sempre o cursodesse ribeiro num vale pedregoso e árido, edepois de três horas de marcha parei paradescansar e comer o resto das perdizes mortasna véspera. Segui ao meio-dia, mas, uma horadepois, tive de parar. Muitas trovoadas, que desde manhã fuzilavamperto do horizonte em todas as direções,subiram aos ares e vieram estacionar sobremim. Uma chuva torrencial caía, ou antesbatia, sobre nós, tocada por um vento rijo deN.N.E. Os nimbus espessos e negros, pairavamperto da terra e despediam das suas entranhascarregadas de eletricidade, torrentes de água etorrentes de fogo. Como eu disse, o lugar em que caminhava eraum vale profundo despovoado de árvores.

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Montículos de rocha terminados por vérticespontiagudos, atraíam o raio que os abrasavacom o seu fogo potente. Uma faísca veioesmigalhar um penedo a pouca distância demim. Era um espetáculo tremendo e horroroso. Viali, pela primeira, vez o raio dividir-se. Umafaísca separou-se próxima da terra em cinco,que partiram quase horizontalmente a ferircinco pontos diferentes; algumas vi separarem-se em quatro, em duas - e três, quase todas. Ziguezagues de fogo cruzavam os ares emtodas as direções e abrasavam a atmosfera. Épreciso ter-se assistido a uma trovoada nossertões da África Austral, para bem se fazerideia do que seja uma tempestade medonha. A minha gente prostrada por terra,horrorizada e escorrendo em água, estavatranzida de frio e medo. Eu gracejava com elese procurava animá-los, mostrando umatranquilidade que estava mui longe de serverdadeira. .

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Uma hora depois a tormenta, como quefatigada do seu pelejar insano, foi diminuindode intensidade - e eu pude pôr-me a caminhoàs 2 horas e meia. Às três horas tive de parar, obrigado por umaforte chuva que não se demorou muito empassar. Pelas 5 horas passava em frente dagrande catarata e acampava à montante dela,aproveitando umas barracas que ali encontrei ereconstruí. Durante a noite uma nova tormenta caiu sobreo meu campo, e muitas árvores foramderrubadas pelo raio. A chuva torrencialinundou as barracas, apagou os fogos emolhou tudo e a todos. Durou esta tempestadeaté às 4 horas da manhã, hora a que cessouquase de repente. Foi aquela uma noite cruel. Ali já ao estampidodos trovões se juntava o bramir da catarata - ecada qual produziria sons mais roucos emedonhos. O dia amanheceu chuvoso, e até às 9 horas foiimpossível sair das barracas. A essa hora

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rasgou-se o céu nublado, e o sol veio iluminara explêndida paisagem. Contudo era difícilcaminhar num terreno encharcadíssimo elodoso. Uma forte apreensão me perturbava o espírito.A chuva da noite estragava o pão e maisprovisões dadas por Madame Coillard. Osmantimentos chegariam ainda para dois dias,mas não podiam ir mais além. Eu tinhacontado com dois recursos, a caça e osMacalacas da outra margem, que mevenderiam massango. Era porém impossível caçar por tal tempo, e osMacalacas que passaram o rio pediam taisexorbitâncias por pequenos pratos demassango, que me não era dado adquirí-los. Ao meio-dia cheguei à extremidade oeste dagrande catarata. O Zambeze duas milhas àmontante da queda corre a E.N.E., e vaiencurvando a E., direção que leva no momentode encontrar o abismo em que se precipita. Mozi-oa-tunia, ou Mêsi-oa-tuna? Não sei, eninguém o sabe. No país uns dizem um nome,

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outros o outro. Antes que os Macololostivessem invadido o país ao norte do Zambeze,os Macalacas chamavam Chongue à grandecatarata. Vieram os Macololos e puseram-lhe um nomeda língua Sesuto que eles falavam. OsMacololos desapareceram e o nome ficou,como ficou aos povos conquistados a línguados invasores. Um pouco corrompida, é verdade, mas sempresubsistindo. O Sesuto é a língua oficial do AltoZambeze. Mêsi-oa-tuna quer dizer em Sesuto“a água enorme,” e ainda que a frase pareçaum pouco disparatada, esta composição évulgar entre as línguas bárbaras da ÁfricaAustral para exprimir uma ideia - porque apobreza das línguas só poderia exprimir poruma longa frase. Assim pois, pode bem ser queseja Mêsi-oa-tuna, o nome posto pelosMacololos à grande catarata. . . .

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Eu contudo inclino-me à opinião de MadameCoillard, que conhece a fundo a língua Sesuto,de que seja Mozi-oa-tunia, o nome dadooutrora pelos guerreiros de Chebitano àmaravilha do Zambeze. Efetivamente, Mêsi-oa-tuna era uma frasenova, uma composição de palavras feitaexpressamente, ao passo que Mozi-oa-tunia éuma frase já feita, quotidiana, vulgar na línguados Basutos. Quando o marido volta a casa epergunta à mulher se a comida está ao fogo, elaresponde-lhe “mozi-oa-tunia,” “o fumo selevanta.” Assim pois é mais de supor que fosse

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este último o nome dado pelos estrangeiros àcatarata, por ser frase vulgar entre eles, e serbem apropriada à ideia. Mozi-oa-tunia não é mais do que uma longacova, um sulco gigantesco, aquilo para que seinventou a palavra abismo, mas abismoprofundo e imenso, onde Zambeze se precipitanuma extensão de mil e oitocentos metros. O corte das rochas basálticas que formam oparedão norte do abismo é perfeitamentetraçado na direção E.O., e tem uma extensão demil e oitocentos metros. Paralelo a ele, outro enorme paredão basálticodistanciado na parte superior, ao mesmo nível,de cem metros, forma o outro muro do abismo.Os pés destas moles enormes de basalto negro,formam um canal por onde o rio corre depoisde se despenhar - canal que é decerto muitomais estreito do que a abertura superior, mascuja largura é impossível medir. No paredão do sul, aproximadamente a trêsquintas-partes dele, a África foi rasgada poroutra fenda gigantesca perpendicular à

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primeira - fenda que primeiro se encurva aoeste, e vergando depois pelo sul a leste, vaiconduzindo em caprichoso ziguezague o rio,que ela lá no fundo aperta em estreito abraçode rochedos.

Na catarata o grande paredão do norte onde orio se despenha é em partes perfeitamentevertical, apresentando apenas as saliências eescabrosidades das rochas. .

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Uma enorme convulsão vulcânica fendeu ali aterra, e produziu aquele abismo enorme, emque se veio precipitar um dos maiores rios domundo. Decerto o trabalho potente da água jámodificou muito a superfície das rochas, masnão é difícil ao olho observador, o perceberbem, que aquelas escarpas profundas,distanciadas hoje, foram despegadas umas dasoutras. O Zambeze, encontrando no seu caminhoaquela voragem, abisma-se nela em trêscataratas grandiosas, porque duas ilhas, queocupam dois grandes espaços no paredão donorte, o dividem em três ramos. A primeira catarata é formada por um braçoque passa ao sul da primeira ilha, ilha queocupa no retângulo que desenha a formasuperior da fenda, o extremo oeste. Este braçoprecipita-se por isso no pequeno lado oeste doretângulo. Tem sessenta metros de largo e oitenta dequeda vertical, caindo em uma bacia de onde aágua vai procurar o fundo do abismo e unir-se

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às outras em rápidos e cascatas quaseinvisíveis pela espessa nuvem de vapor queenvolve tudo lá embaixo. A ilha que separa aquele braço do rio é cobertade vegetação frondosa, vegetação que seestende até ao ponto onde a água se despenha,produzindo uma paisagem surpreendente. É esta a menor das quedas, mas é a mais bela,ou antes a única que é bela, porque tudo maisem Mozi-oa-tunia é horrível. Aquela voragemenorme, negra como é negro o basalto que aforma, escura como é escura a nuvem que aenvolve, teria sido escolhida se fosse conhecidanos tempos bíblicos, para imagem do inferno,inferno de água e trevas, mais terrível talvezque o inferno de fogo e luz. Para aumentar o sentimento de horror que seexperimenta diante daquele prodígio, até épreciso arriscar a vida para a poder ver. Vê-la!Impossível; Mozi-oa-tunia nem se deixa ver. Às vezes, lá no fundo, por entre a brumaeterna, percebem-se formas confusas,semelhando ruínas medonhas. São pontas de

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rochedos de enorme altura, onde a água, queos açoita, partindo-se em glóbulos se tornanuvem, nuvem eterna, que constantementealimentada tem de pairar sobre o rochedo emque se formou, enquanto a água cair e orochedo se erguer ali. Em frente da ilha do Jardim, no meio de umarco-íris, concêntrico a outro maisdesvanecido, vi eu por vezes, ao ondular dabruma, desenharem-se confusamente, umasérie de picos, semelhantes aos minaretes deuma catedral fantástica, que a um lado lançavaaos ares uma flecha a enorme altura. Continuando a examinar a catarata, vemos ocomeço do paredão N., logo em seguida àqueda de oeste, ser ocupado em uma extençãode duzentos metros por uma ilha, aquela deque já falei, que separa o braço do rio que vaiformar a primeira queda. Ali é o único pontoem que se vê todo o paredão, porque naquelaextensão de duzentos metros o vapor nãochega completamente a encobrir o fundo. .

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Foi nesse ponto onde eu fiz as primeirasmedições, e por meio de dois triângulos, acheipara largura superior do corte 100 metros, e120 para altura vertical do paredão. Esta altura vertical é superior mais a leste,porque o fundo do sulco desce até ao corte queencana o rio ao sul. Nesse ponto tambémobtive elementos para medir a altura. Nas primeiras medições eu tinha por base olado de 100 metros, achado para largurasuperior do sulco, mas era preciso ver o pé doparedão, e tive de arriscar a vida para isso. Tirei os panos ao meu Augusto e ao meumoleque Catraio e amarrei-os. Estes panos dezuarte pintado e já muito usados, não meofereciam uma grande segurança, mas nãotinha outro meio de me suspender no abismo.Passei o frágil amparo em volta do peito, parame ficarem as mãos livres, e tomando osextante debrucei-me na voragem. Seguravamas extremidades o meu Augusto e umMacalaca da povoação das quedas. Elestremiam com medo e faziam-me tremer,

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levando eu por isso muito tempo a medir oângulo. Quando lhes disse que me puxassem, epude me equilibrar sobre as rochas, foi como setivesse acordado de um pesadelo horrível. Li no nônio 50° 10’, e logo que registrei amedida, comecei a horrorizar-me do que tinhafeito. Um excesso de vaidade mal-cabida, oquerer apresentar com a maior aproximação aaltura da catarata, acabava de me fazercometer a maior imprudência que cometi emtoda a viagem. Medir e triangular ali é dificílimo, e começapor faltar terreno onde se possa medir umabase com algum rigor. Eu apenas pude medir75 metros, e isso com trabalho enorme. Só posso supor que os triângulos feitos peloDr. Livingstone da ilha do Jardim, foramresolvidos só com os ângulos - porque ladosnão podia daquele ponto medir nenhum. Penaé que não ficasse a fórmula. A medição daaltura com um cordel e uma pedra atada naponta, acho-a também extraordinária - porqueas escabrosidades da rocha deveriam suster o

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prumo. Além disso, da ilha do Jardim apenasse vê, na voragem profunda, uma espessanuvem que tudo encobre, sendo impossíveldivisar nada lá embaixo - ainda que o Doutoratasse à pedra toda uma peça de algodãobranco, em lugar de um farrapo de 60centímetros, como ele diz que fez. Fosse comofosse, ele foi mais feliz e mais esperto do queeu, que pouco fiz, dispondo para isso demelhores instrumentos e mais recursos. . . . . . . . . . . . . .

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Figura 124.—Mozioatunia. Maneira pouco cômoda

de medir ângulos. Em seguida à primeira ilha onde fiz asmedições, vem a parte principal da catarata, e éela compreendida entre essa ilha e a do Jardim.Ali é que a maior porção de água se despenhanuma compacta massa de quatrocentos metrosde extensão, e ali é que o abismo atinge toda a

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sua profundidade. Vem, em seguida, a ilha doJardim, de quarenta metros de face sobre afenda - e depois a terceira queda, formada pordezenas de quedas, que ocupam todo o espaçoentre a ilha do Jardim e a extremidade leste doparedão. Esta terceira queda deve ser a maisimportante no tempo das cheias, logo que aspedras que na estiagem lhe dividem as águasforem cobertas, e não existir mais do que umaúnica e enorme catarata. A água que cai das duas primeiras quedas eparte da terceira junto da ilha do Jardim,correm a leste; o resto da terceira a oeste, eencontrando-se, unem-se em choque imenso, evoltam ao sul num referver medonho,correndo rápidas no fundo do abismo, emcanal pedregoso, que as entala nos seuscaprichosos ziguezagues. No ponto onde as águas, já em um canal único,se dirigem ao sul, fiz uma experiência quenarrarei em capítulo separado deste, e que mepermitu obter uma altura muito aproximadada maior profundidade do abismo. Não me foi

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possível fazer mais, e duvido mesmo que maisse possa fazer, a menos de se ir expressamentepreparado para estudar a catarata - e creio quepara isso será possível inventar algums meiosapropriados para trabalhar ali, debaixo de umachuva eterna, e no meio de um vapor densoque nada deixa ver.

Ilhas, bordas da catarata, rochedos mesmos,tudo é coberto de uma vegetação explêndida,mas de um verde-negro triste e monótono,embora um ou outro grupo de palmeiras tentequebrar a melancolia do quadro, fazendo

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sobressair as suas palmas elegantes às copasdos arvoredos que as cercam. Uma chuva eterna molha sem cessar asproximidades do abismo, onde rola como queuma trovoada sem fim. Mozia-oa-tunia não sepode desenhar e, exceto a sua extremidadeoeste, tudo ali é nuvem de vapor, que encobreuma paisagem medonha. Não é dado visitar esta soberba maravilha semque um sentimento de terror e de tristeza seaposse de nós. Que diferença entre a cataratade Gonha e Mozi-oa-tunia! Em Gonha tudo é risonho e belo; ali tudo ésoturno e triste! Ambas são atraentes, ambassão verdadeiramente grandiosas; mas Gonha éatraente e bela como a virgem formosa coroadadas flores da inocência, arrastando o alvovestido nas ruas do jardim, embalsamadaspelas auras perfumadas da manhã de estio;Mozi-oa-tunia é grandiosa e imponente como osalteador requeimado pelo sol de verão e pelogelo do inverno, o trabuco na mão, o crime na

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ideia, entre os fraguedos da serra, por noiteescura e triste. Gonha é bela como a manhã bonançosa daprimavera; Mozi-oa-tunia é imponente como anoite tempestuosa do inverno. Gonha é belacomo o primeiro sorrir da criança nos braçosda mãe; Mozi-oa-tunia é imponente como oúltimo arquejar do ancião nos braços da morte. Gonha é o belo na sua mais sublime expressãoda formosura; Mozia-oa-tunia é o belo na suamais expressiva revelação da grandeza etelégrafo. Depois da contemplação da mais prodigiosamaravilha natural do continente Africano,voltei ao meu campo fortementeimpressionado pelo que acabava de ver. Otempo melhorara, mas conservava-seencoberto. Nessa noite fui assaltado pornuvem de mosquitos, que não me deixaramum momento de repouso. Logo de manhã, parti para a catarata, quevisitei de novo, concluindo os trabalhoscomeçados na véspera - e que me entretiveram

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o dia todo. De volta ao campo, apareceram aliuns Macalacas com massango, pedindo-mequatro jardas de fazenda por um prato dele,que não continha meio litro de grão. Ainda que muito necessitado de adquirirvíveres, não quis abrir um tal exemplo, erecusei comprar. Então o Macalaca disse-me que a fazenda e amiçanga não se comia, que eu teria fome, eentão lhe daria tudo o que ele quisesse por umprato de comida. Fui-lhe dando logo dois pontapés. Chegou odia 22 de novembro, dia que eu tinha fixadopara o regresso, mas a minha posição eracrítica. Tínhamos apenas comida para doisdias, e não lograríamos alcançar Deica antes deseis. Era impossível partir sem ter feito provisões demantimentos. Não esperando já obter nada dosMacalacas, fui caçar apesar do mau tempo. Pouco distante do acampamento, pude atirar auma malanca, e voltava às barracas para amandar esquartejar e trazer ali, quando chegou

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o chefe das povoações das quedas, que pelaprimeira vez eu via, e me vinha visitar. Com ele vinham muitos pretos, que foramajudar a conduzir a malanca que eu haviamorto. Uma tão importante peça de caça fezlogo diminuir no mercado o preço dos víveres.O chefe foi à sua povoação, de onde trouxequantidade de mantimentos e duas galinhas,pedindo-me por tudo a pele da malanca e omeu cobertor. Necessitado de partir, e nãoquerendo fazer questões, aceitei o contrato eele retirou-se satisfeito. Lá foi o meu cobertor! Sócio de tantas noitesmal dormidas naqueles sertões africanos. Pudeenfim deixar Mozi-oa-tunia, e fui pernoitar nasmesmas barracas que tinha construído na tardedo dia 18. No dia imediato deixei o caminho que seguiraaté ali quando demandava a catarata, eendireitei ao sul. Não me tinha sido difícilencontrar a grande catarata do Zambeze, quede longe se anuncia; mas encontrar um pontoque não existe nas cartas e cuja posição eu

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tinha calculado por informações vagas, não meera fácil. Num país como aquele, despovoado e virgem,eu poderia bem passar perto do kraal dePatamatenga sem o ver, nem dar conta dele.Contudo, pelos meus cálculos, Patamatengadevia-me ficar ao Sul verdadeiro, e euendireitei para lá, disposto a não alterar aquelerumo por nenhum motivo que fosse. Depois de marcha de quatro horas, fuiacampar junto de um córrego em lugarmedonho. Nenhuma uma árvore, nenhumaerva. Só penedias negras formavam apaisagem, escurecida ainda por um céucarregado de pesados nimbus. Um silêncio profundo reinava naquelepequeno vale da tristeza. No caminho dessedia encontrei alguns leões, que evitei comcautela. Vem a propósito falar aqui de certa manialouca que ataca quase sempre o exploradornoviço. É tal o seu entusiasmo por afrontar os

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perigos, que chega a criá-los onde eles nãoexistem. A África oferece cada dia, a cada passo, taisestorvos ao viajante, tais perigos aocaminheiro, que são eles de sobra para fazerabortar a maior parte das expedições quetentam devassar os seus segredos. A prudência deve ser o guia de todas as açõesdo explorador; o que não quer dizer que elamesma não aconselhe, em outra dadacircunstância, um excesso de temeridade -quando essa temeridade for precisa à salvaçãocomum. Uma das maiores loucuras em África é caçarferas. A pólvora vale no sertão tanto como oouro, e o tiro dado em uma fera é um tirodesperdiçado, é o resultado de uma expediçãoarriscado. É, às vezes, a salvação de toda umacaravana, que será perdida sem chefe, posta nabalança do acaso, unicamente por satisfação deuma vaidade pessoal. Em quase toda a minha viagem, obrigado acaçar para viver, tive muitas vezes de afrontar

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as feras - o que não me teria acontecido se,dispondo de recursos suficientes, me pudesseter dispensado da caça. Uma fera morta emdefensa própria e em encontro fortuito, é umobstáculo destruído; um leão procurado emorto pelo explorador geógrafo é umobstáculo criado, é uma imprudênciacometida, é e deve ser um remorso na suaexistência. Eu cometi algumas faltas dessas, e sempredepois tive o arrependimento sincero. Hoje, sevoltasse à África em viagem de exploração ouencarregado de outra qualquer missãoimportante, não arriscaria o fim principal -para me dar um prazer que é fumaça, porqueapenas vem um momento lisonjear o amor-próprio. Já pensava assim, quando de volta da catarataevitava os leões, que fugiam de mim como eufugia deles. Não havia lenha perto do lugaronde decidi ficar, e o meu Augusto foi procurá-la longe. Trouxe alguns troncos de árvoressecos, que, ao partir, deixavam aparecer nas

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rachas escorpiões enormes. No caminhomesmo, e ainda ali, haviam inúmeros dosrepugnantes articulados. Nesse dia, uma violenta tempestade vinda doS.S.E. passou sobre nós, e durante duas horasdespejou copiosa chuva. Durante a noite, soprou rijo o vento S.E., quemuito nos incomodou, tendo por abrigos,como tínhamos, apenas um céu nebuloso. A 24de novembro, segui sempre ao Sul porcaminho difícil. As montanhas corriam a S.E. e por isso nóssubíamos e decíamos continuamente, emterreno pedregoso e árido. Depois de cincohoras de fatigante caminhar, encontrei umpequeno charco, junto ao qual acampei. Subindo a um outeiro que me ficava próximo,avistei ao sul uma planície enorme, onde nãopude divisar os menores sinais de água, pormais que a perscrutei com o meu óculopotente. Receei muito que me faltasse a água dali emdiante. É verdade que naquele país abunda o

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Mucuri, e onde ele existe não se morre á sede.O Mucuri é um grande auxílio do viajante nasflorestas ressequidas da África Austral. É eleum arbusto de 60 a 80 centímetros de altura,que produz na extremidade das suas radículas,uns tubérculos esponjosos, ensopados de umlíquido insípido que sacia a sede. Não é fácil porém encontrar os tubérculos logoque se encontra a planta. Crescem eles naspontas de pequenas radículas que, irradiandodas raízes principais, vão muito longe do caulealimentar e desenvolver aquelas excrescênciasextraordinárias. O melhor meio de os encontraré o empregado pelo gentio africano, de secolocarem junto à planta e ir descrevendocírculos concêntricos a passos lentos, batendo oterreno com um pau. Onde a terra dá um somoco e surdo aí estão os tubérculos, que têm de10 a 20 centímetros de diâmetro e afetam aforma aproximadamente esférica. Fiz boaprovisão deles no dia imediato antes de deixaro lugar em que passei uma péssima noite. .

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Sustentei marcha de sete horas, ja em planíciecoberta de arvoredo e altas gramíneas. De águanem sinais. Pela tarde paramos extenuados de fadiga, eresolvia acampar, quando sobre a minhacabeça, na árvore a que estava encostado, ouvio arrulhar das rolas africanas. A água devia estar perto, porque aquela era ahora das avezinhas beberem, e sembebedouros próximos as rolas não estariam ali.A rola em África é indício de haver água pertodo lugar onde se mostra de manhã e á tarde,porque aquela ave não passa sem beber duasvezes ao dia. Mandei logo Veríssimo e Augusto explorar osarredores, e uma hora depois voltavaVeríssimo tendo encontrado uma pequenanascente um quilômetro ao N.O. Fui acamparali já por noite escura. Pelos meus cálculos nodia imediato deveríamos chegar aPatamatenga. Amanheceu o dia 26 de novembro, e pus-meem marcha. Logo à saída do ponto em que

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acampei, encontrei uma espessa mata que melevou 20 minutos a transpor. Ao sair dela, umribeiro bastante volumoso corria em leito depedra, e além dele um kraal magnificamenteconstruído, mostrou-me, por sobre a sua fortepaliçada, o teto pontiagudo de muitas casas. Eu tinha dormido junto a Patamatenga sem osaber - e tinha passado uma péssima noite aorelento, quando poderia ter dormido em ótimacama e no aconchego de uma bem construídacasa. Um inglês, cujo nome ignorava, veio buscar-me ao rio e levou-me ao kraal, principiandologo, antes de mais conversa, a dar-me decomer. Às onze horas já eu tinha comido nãosei quantas vezes, e ele veio anunciar-me quese estava fazendo um petisco. Tinha ali umótimo cozinheiro europeu. Não consentiu queeu seguisse para Deica, sendo o seu argumentoque deveria passar o dia com ele, porque odevia passar. . .

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Escrevi um bilhete a M. Coillard, a participar-lhe que estava de boa saúde, e que chegaria aDeica no dia imediato. O inglês, logo que viu a minha resolução emficar, mandou matar o seu melhor carneiro - econvidou-me a ir ver o seu quintal. Fomos, eele começou a fazer barbaridades. Destriu umbatatal novo, só para tirar umas seis batatas.Apanhou quantos tomates, cebolas epimentões ali haviam. Não pude impedir aquele furor de destruiçãopara me dar a comer de tudo quanto tinha, eaté creio que tudo quanto tinha - se eu medemorasse em sua casa. O quintal eramagnífico e muito bem tratado, mas naquelaépoca do ano pouco podia oferecer. Aindaassim o meu inglês voltou triunfante com seisbatatas, dezesseis tomates, alguns pimentões emuitas cebolinhas - que foi entregar aocozinheiro para o jantar. Jantar!… Eu não seique nome deverei dar àquela comida! Pelonúmero devia ser muito mais do que ceia; pelahora menos do que lanche!

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Pude suster o furor do meu hospedeiro emdar-me de comer, e consegui ir com ele dar umpasseio nos arredores do kraal. Encontramos no caminho cinco montículos depedras que marcam as sepulturas de cincoeuropeus, adormecidos ali para sempre, edeitados ao lado uns dos outros à sombra doarvoredo, nessa mesma terra que lhes infiltrouno organismo, pelo ar que deu a respirar, oveneno que lhes deveria cortar as existências,com prematuro passamento. Quantos túmulos como aqueles não têm umlugar incerto, no meio desse continenteenorme, e não escondem o segredo dasepultura de homens que deixaram longeafeições e ternuras - que nem podem ter oamargo prazer de derramar uma lágrima sobrea terra que oculta um ente estremecido! Os cinco túmulos de Patamatenga encerram osdespojos de cinco homens cujos nomes voucitar, e se algum amigo ainda se lembrar deles,terá ao menos o conhecimento do canto daterra onde repousam para sempre.

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O primeiro túmulo encerra Jolly, morto em1875; o segundo Frank Cowley, o terceiroRobert Bairn, ambos mortos em 1875; o quartoBaldwin, e o quinto Walter Carre Lowe, mortosem 1876. Em abril do ano de 1878, morreutambém ali perto o Sueco Oswald Bagger, queestá enterrado em Lexuma.

Depois de visitar aquele cemitério improvisadono meio do sertão longínquo, voltei ao kraal dePatamatenga, onde fui obrigado a comer váriasceias. .

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Na conversação com Gabriel Mayer, o meuhospedeiro, eu fugia de narrar qualquerepisódio passado da minha viagem em quefigurasse a falta de víveres, porque ao ouvirtais narrativas, o bom inglês entrava em furor emandava logo pôr a mesa, mesa que já memetia tanto medo como por vezes me tinhametido a fome. No dia seguinte, depois de ter almoçado duasvezes, antes das 7 horas da manhã, parti a essahora, tendo de levar vários petiscos para ocaminho, porque Gabriel Mayer não consentiuque eu partisse sem essa condição. Depois de cinco horas de marcha a leste,alcancei o acampamento de Deica, onde afamília Coillard me esperava, e onde fuirecebido com as maiores demonstrações desimpatia. Daquele lado não tinha chovido como emMozi-oa-tunia. Ficamos em grande embaraçopara partir, porque encontraríamos o desertoseco e seria impossível atravessá-lo antes de

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cairem as chuvas necessárias para encher oscharcos onde deveríamos encontrar água. Nos dias 28 e 29 de novembro, percebemos quehavia trovoadas muito ao longe ao Sul e S.S.E.,e isso animou-nos a partir - esperando que elastivessem despejado alguma chuva no deserto. No dia 28 improvisei, com anzóis que trazia,uns pequenos aparelhos de pesca e fui com asdamas Coillard pescar a uma lagoa que nosficava uns duzentos metros a oeste do campo.Conseguimos pescar muitos peixes miúdos, eeu tive um verdadeiro prazer por ver o gostoque gozavam aquelas senhoras - numdivertimento novo para elas quando sentiam aligeira cana vergar ao peso de um peixe que seestorcia na ponta da linha, preso ao anzol que asua imprudente voracidade lhe fizera morder. No dia 30 resolvemos partir a 2 de dezembro,ainda que corríamos o risco de não encontrarágua logo nos primeiros dias de viagem. Umauma importante consideração nos levava a nãoadiar a partida: éramos quinze pessoas, e aprovisão de mantimentos pequena. Dali ao

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Bamanguato não poderíamos obter víveres, eem Deica mesmo nenhuns podíamos haver.Era pois preciso caminhar sobre Xoxom(Shoshong) o mais depressa possível, paraalcançar a cidade do rei Khama antes queviesse a fome. Ficou por isso resolvido que partíssemoss nodia dois, resolução que foi apoiada pela chuvaque caiu nos dias 30 do mês e a 1o dedezembro. Antes de empreender a narrativa dessaaventurosa viagem através do deserto, precisodizer duas palavras acerca dos meuscompanheiros. Que eles me perdoem pelo que vou escrever,se a sua modéstia for ferida pelas minhaspalavras; mas é preciso que se saiba o nome eos feitos de alguns desses obscurostrabalhadores africanos, que deixam a Europae a vida civilizada para irem, longe da pátria,trabalhar tenazmente na grande obra dacivilização do Continente Negro. .

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No país do Basuto, país que confina ao sul eleste com as colônias do Cabo e Natal, e aonorte e oeste com o estado livre de Orange,foram, há cinquenta anos, estabelecer-se algunsmissionários protestantes franceses. Esteshomens, cujo número aumentava de ano paraano, conseguiram domar um povo bárbaro decanibais e elevá-lo a um estado de civilização ede instrução a que ainda não chegou povoalgum da África Austral. Hoje as escolas cristãs do Basuto contam osdiscípulos por milhares, e uma grande parte dapopulação sendo cristã, abandonou apoligamia e os costumes bárbaros dos seusantepassados. Os missionários acharam o campo já pequenopara o seu número; sentiram a necessidade deexpansão e foram estabelecer os seuscatequistas para o norte do Transvaal junto aoLimpôpo. Quiseram ir mais longe, e uma expedição foiorganizada - tendo por chefe um jovemmissionário, com destino ao país do Baniais ou

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Machonas, situado entre o Matabele e as terrasNatuas. Esta expedição foi infeliz. Entrando noTransvaal, sofreu insultos dos Boers - que aimpossibilitaram de seguir avante, chegandoaté a serem presos em Pretória o missionário eseus homens de catequese. Foi então que M. François Coillard, diretor daMissão de Leribé, foi encarregado de dirigir aexpedição que falhara. Partiu de Leribé, pontosituado perto do rio Caledon, afluente doOrange e a oeste do Mont-aux-sources, e comsua esposa, sua sobrinha e seus catequistas,caminhou ao Norte - e por entre inúmerasdificuldades, que só uma vontade tenaz pôdevencer, conseguiu alcançar o país a que sedestinava. Muito bem recebido pelos Machonas, deucomeço aos seus trabalhos, quando foi atacadopor uma força de Matebeles, que o fizeramprisioneiro e o conduziram com toda aexpedição perante o seu chefe, Lo-Bengula. O que o missionário e aquelas pobres damassofreram durante o tempo que estiveram em

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poder do terrível chefe dos Matebeles é umahistória triste e compungente. O chefe, que pretende ter direitos sobre o paísdos Machonas, exprobou-lhes o terem ido alisem a sua prévia licença, e não lhes permitiuvoltar lá. Retrogradou pois até Xoxon, capital doManguato, e não querendo deixar semresultado tão dispendiosa e fadigosa jornada,deliberou fazer uma tentativa sobre o Baroze.Tinha a vantagem de falar a língua do país,bem como os seus catequistas que, Basutos deorigem, podiam trabalhar facilmente em umpaís onde se falava a sua própria língua. Não foi feliz no Baroze, e ainda que bemrecebido e cheio de promessas do astutoGambela, não lhe consentiram o acesso alémde Quisseque. Foram estes, que exponho muitoresumidamente, os motivos que levaram afamília Coillard ao Alto Zambeze, e queocasionaram o nosso encontro naquelasremotas paragens.

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M. Coillard e sua esposa, à época do nossoencontro, estavam em África havia já vinteanos! M. Coillard é homem de quarenta anos, suaesposa tem a idade que tem todas as damascasadas logo que passam dos vinte e cinco: nãotem idade. O missionário nutre uma grande paixão pelosindígenas, à civilização dos quais votou a suavida. Sempre tranquilo em gesto e palavra, nãose altera nunca, e só tem na boca o perdão paratodas as faltas que vê cometer. FrançoisCoillard é o melhor e o mais bondoso doshomens que eu tenho conhecido. A uma inteligência superior reúne umavontade inquebrantável, e a teimosia precisapara levar a cabo qualquer empreendimentodifícil. Muito instruído, o missionário francês temuma alma moldada para compreender os maissublimes sentimentos, e é mesmo poeta. Procurando e glorificando-se de encontrarqualidades boas nos indígenas africanos, não

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vê ou não quer ver as más. É um grandedefeito esse, mas tem ele ampla escusa nasublimidade dos sentimentos que o ditam. Madame Coillard, como seu marido, é de umabondade extrema. Não se chega a ela onecessitado sem ir satisfeito, o triste sem irconsolado. Para eles todos são irmãos, e tanto estendem amão ao indígena como ao europeu; ao pobrecomo ao rico, logo que indígena ou europeu,pobre ou rico, precisam deles. Eu, por mim, não lhes poderei nunca agradeceros serviços que me fizeram, serviços que meobrigaram tanto mais quanto maior foi adelicadeza com que foram feitos. O correr da narrativa mostrará quem são estasgentes de quem falo agora muitolaconicamente, e que deviam ser meus sóciosna longa viagem que íamos empreenderatravés de um deserto desconhecido - porque,deixando o caminho das caravanas, íamostraçar uma nova estrada. .

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Capítulo III. Tinta Dias no Deserto Deserto—Florestas—Planícies—Os Macaricaris—Os Massaruas—O grande Macaricari—Os rios nodeserto—Morte de Cora—Falta de água—O últimochá de Madame Coillard—Xoxom (Shoshong). A 2 de dezembro, começaram logo de manhãos preparativos de partida. Um wagon deviagem em África do Sul é uma pesadaconstrução de madeira e ferro, de 6 a 7 metrosde comprido por 1,8 a 2 metros de largo,assente sobre 4 fortes rodas de madeira etirado por 24 a 30 bois, junguidos a fortescangas presas a uma corrente longa e grossa,fixa à ponta do cabeçalho no carro. Esta espécie de casa ambulante é carregadacom as bagagens e fazendas do viajante - edisposta de modo a oferecer-lhe todas ascomodidades caseiras. O wagon de M. Coillardera uma verdadeira maravilha. Construído expressamente para aquelaviagem, sob as suas vistas e com a sua

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experiência de viajeiro, tinha comodidades quenunca vi em outro. A minha bagagem foi arrumada com a dafamília Coillard no fundo do wagon, ficando àmão apenas aquilo de que eu poderia precisaramiúde. Eles faziam prodígios para dar lugar a todos osmeus volumes de carga - como, durante aviagem, se encolhiam para dar lugar a mimmesmo. Uma partida depois de 15 dias de descanso ésempre muito demorada. Há muita coisa quearrumar, e no momento de partir descobre-sesempre que há uma canga quebrada, quefaltam as pitas aos chicotes, que os cubos dasrodas precisam ser untados. Mil coisas, enfim,que fazem retardar de algumas horas omomento prefixado. Depois das precauções tomadas por M.Coillard - ditadas por uma longa experiênciade tal modo de viajar -, conseguimos deixarDeica pelas 2 horas da tarde, e endireitamos aosul.

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O nosso comboio compunha-se de quatrowagons, dois pertencentes a M. Coillard, e doisoutros de Mr. Frederick Phillips, de quemfalarei mais tarde. Depois de uma jornada de três horas e meia,encontramos água em uma pequena lagoa,recentemente cheia pela chuva dos diasanteriores - e pernoitamos junto dela. No dia imediato seguimos a S.S.E., e depois deduas horas de viagem paramos hora e meia,para dar descanso aos bois. Foi de três horas asegunda parte da jornada, e ainda fizemos umaterceira tirada das 7 às 9 da noite. Sendo explorados os arredores do lugar emque acampamos, encontrou-se água umquilômetro a E.N.E. No dia 4 só pudemos partir às 4 e meia horasda tarde, para darmos tempo aos bois debeberem durante toda a manhã. Nesse dia anossa jornada foi apenas de duas horas e meia,porque encontrando uma lagoa de ótima água,acampamos junto dela - ainda que os pretos de

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Mr. Phillips diziam haver ali a terrível moscatsé-tsé, o que me parece necessário confirmar. Contudo, por prudência, no seguinte diapartimos logo de madrugada, e viajamos porsete horas e meia, em três andadas - a últimadas quais findou às 9 da noite. Junto do pontoonde pernoitamos não apareceu água. Aviagem desse dia foi difícil, por entreemaranhada floresta onde os wagons correramgrande perigo de partir as rodas de encontroaos troncos de árvores colossais. Às 6 da manhã, jornadeamos por duas horas aS.E., encontrando no fim delas uma lagoa deágua permanente - a única água que no temposeco se encontra de Deica até ali. Chama-seTamazêze. Descansamos por sete horas e seguimos às 3 datarde, indo acampar às 6 junto de outra belalagoa também permanente, a que os Massaruaschamam Tamafupa. A jornada daquele dia foi por entre florestaslindíssimas, onde abundam espinheirosbrancos. O solo é coberto por uma espessa

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camada de areia. Junto à lagoa um formosotapete de relva cobre o terreno, levementeacidentado. Mas, no meio daquela relva viçosa, cresce umaplanta herbácea de que os bois são ávidos, e daqual é preciso desviá-los com cuidado, porqueé veneno mortal para eles. Estive nessa noite, até tarde levantado, parafazer observações astronômicas - e talvez aítivesse origem o violento acesso de febre queme atacou no dia imediato. Por algumas horas o delírio tirou-me aconsciência, e só ao recuperar a razão pude dartino dos cuidadosos desvelos que me eramdispensados pela família Coillard. O dia seguinte foi ainda passado no maisangustioso sofrimento, e só ao terceiro dia nospusemos em viagem, indo eu em deplorávelestado. Foi-me arranjada uma cama no wagonde M. Coillard, e redeado da família, queredobrava em afetuosos cuidados, cercando-me de todas as comodidades que a si tiravam,fiz uma jornada que pouca consciência tenho

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de ter feito. Sei que a 10 de dezembroestávamos acampados em um lugar que unschamam Muacha e outros Nguja. Ali, com o caminho seguido pelos negociantesingleses, devíamos deixar um deles, que, comojá disse, era nosso companheiro de viagemdesde Deica. Mr. Frederick Phillips, o companheiro deviagem que íamos deixar, é um inglês deInglaterra*. Homem de fina educação, afetauns modos grosseiros e semi-selvagens, quenão podem encobrir as suas boas maneirasoriginais. É este um dos seus fracos. * Na época, havia muitos ingleses nascidos na Índiae em outras colônias da Inglaterra. O outro ele mesmo o define em algumaspalavras que lhe ouvi. “Quisera, me disse ele,que tudo o que existe no mundo, que tudo oque cobre a terra, fosse marfim, e só eu senhordele.” Se eu não tivesse a certeza de que Mr. Phillipsera inglês, pela fórmula do desejo julgara-onascido em Tarbes.* * Departamento francês, nos Altos Pirineus.

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Mr. Phillips, de elevada estatura e robusto emproporção, tem um rosto enérgico e simpático,que dizem ter feito uma profunda impressãona irmã do terrível Lo-Bengula, o rei doMatabele - que tem feito as mais altasdiligências para o desposar. É no Matabele queele tem a sua principal residência africana, e seeu o encontrei no Zambeze, foi porque aausência ali de Mr. Westbeech, seu sócio, oobrigou àquela viagem por interessescomerciais. Mr. Phillips, que encontrei em Lexuma, fez-meoferecimentos, pondo à minha disposição umdos seus wagons, para eu continuar a minhaviagem para o sul - e se os não devi aceitar, nãodeixo por isso de lhe tribotar muita gratidão. Depois de nos despedirmos de Mr. Phillips emNguja, partimos ao Sul e jornadeamos por trêshoras e meia, indo acampar, às 7 e meia, emlugar onde não havia água. No dia seguinte, depois de duas horas e meiade caminho, paramos em um lugar chamadoem língua Massarua Motlamagjanane, palavra

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que quer dizer “muitas coisas que se sucedemumas às outras”, e isto por se dar esse caso comuma série de pequenas lagoas queencontramos secas. A floresta toma ali um novo aspecto, e àsárvores meãs sucedem já verdadeiros colossosvegetais, assombrando com as elevadas copasum mato denso de emaranhados arbustos,dificílimo de transpor. Seguimos às 4 horas, e duas horas depoisatravessávamos a mais soberba e bela florestavirgem que encontrei em África. Logo ao anoitecer, tivemos de parar - porqueera impossível prosseguir em tão densafloresta sem arriscar os wagons a um acidentesério. Nessa noite eu começava a achar-mecompletamente restabelecido, e a febre tinhacedido a doses diárias de quatro gramas dequinino. Meia hora depois de partir, no dia imediato,atingíamos a orla da floresta e encontrávamoságua num pequeno charco lodoso. Diante de

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nós estava a planície descoberta, árida e seca.Essa planície, que foi pela primeira vezatravessada dois graus a Oeste porLivingstone, ainda um a oeste do meu pontopor Baines, e um grau e pouco a leste porBaldwin, Chapman, Ed. Mohr e outros. Essaplanície arenosa e inóspita, o Saara do sul, oCalaari enfim. Ainda jornadeamos por espaço de duas horas,indo dar descanso aos bois às 11 e meia, junto auns raquíticos e pequenos espinheiros, quecom a sua vegetação mesquinha faziam sentirmais a nudez do deserto. Algumas trovoadas formavam-se pelo Norte, eàs duas horas aproximavam-se de nós,deixando cair de negros nimbos grossas gotasde chuva tépida. Desde o Zambeze até ali o terreno é arenoso,sendo o subsolo formado por uma camadaargilosa muito plástica de cor castanho-escura.A espessura da camada de areia branca e finaque forma o solo varia entre 10 e 50centímetros.

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Água apenas aparece aqui e além na estaçãodas chuvas, nas depressões de terreno.Algumas vezes, como naquele dia ao sair dafloresta, era ela uma lama espessa e fétida.Todo o país, até ao ponto em que o deixamosnaquela manhã, é coberto por uma floresta,que vai progressivamente aumentando emespessura e no pomposo da vegetação, aopasso que se afasta do Norte. O que mais se vê são ainda leguminosas, e umaimensa variedade de acácias cobre o solo.Flores do mais variado e brilhante colorido,das formas mais mimosas e delicadas, ao passoque encantam a vista, embalsamam o ar com osseus suaves perfumes. Viajar ali é dificílimo. Abrir caminho para o carro, de machado empunho; às vezes, durante 10 e maisquilômetros, haver um solo de cinquentacentímetros de areia, onde as rodas doswagons se enterram profundamente; fazeruma milha em quarenta minutos, tal é o viajarnaquelas brenhas, quando se viaja bem. .

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A esse enorme terreno, compreendido entre oZambeze e o Calaari, chamei eu nas minhascartas o Deserto de Baines. Foi umahomenagem ao trabalhador infatigável, oprimeiro que devassou aquelas paragensinóspitas, e cuja vida foi tão deserta de gozos ede glórias como aquele país é deserto degentes. Do ponto em que paramos de manhã,seguimos às 4 horas da tarde, logo que atormenta passou, e jornadeamos até às 8 danoite, parando num matagal de espinheirosbaixos, onde foi difícil acampar no meio daservas e entre os rochedos. Durante a noite, chacais e hienas deram-nosum concerto infernal, vindo vocalizar um coroorfeônico, em torno do lugar onde chegava aclaridade dos fogos do campo. De manhã choveu, e nós seguimos às 5 horas emeia, saindo logo dos espinheiros - quepoderíamos ter evitado sem umas trevasprofundas que na véspera nos tinhamimpossibilitado de escolher outro caminho.

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Sustentamos uma caminhada de cinco horas,apenas com um pequeno descanso,encontrando uns charcos produzidos pelachuva da manhã, que de nenhum proveito nosforam a nós, por serem de água salgada, masque, ainda assim, serviram aos bois sedentos,que os esgotaram em pouco tempo. Era preciso encontrar água, e seguimos aindapor quatro horas, parando no fim delas semtermos logrado o nosso intento. Pude fazernessa noite uma boa observação doreaparecimento do primeiro satélite de Júpiter. Logo ao alvorecer, caminhamos por hora emeia no deserto arenoso e árido, onde as rodasdos wagons se enterravam profundamente. No fim deste tempo de jornada, encontramos oleito seco de um rio cuja margem direitaseguimos por uma hora, passando-o nomomento em que ele encurvava a S.O., e porisso nos desviava do rumo a seguir. Asescarpas do sulco arenoso eram de três metrose muito inclinadas. Foi medonho o precipitardos wagons naquele fosso, e compungente o

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trabalho dos bois para desenterrarem aquelasenormes máquinas de transporte, e fazerem-nas subir nas contra-escarpas. Acampamoslogo. No leito arenoso do rio, algumas lagoasdeixavam ver pequenas massas de águalímpida e cristalina, que alegrava os olhoscansados da aridez e secura do deserto.Corremos pressurosos a elas, mas aosprimeiros tragos bebidos a alegria converteu-seem angústia cruciante. Aquela água era tãosalgada como a do mar. Contudo, alguns poços cavados muito fundo,longe das lagoas, deram uma água quasepotável. Era preciso tirá-la a baldes para a daraos pobres bois já sedentos e cansados. Aquelerio, ou antes aquele leito seco, era o do Nata,que no seu curso inferior, quando corre, toma onome de Xua (Shua). Foi decidido que ficássemos ali dois dias, porser o imediato ao da nossa chegada umdomingo, e a família Coillard não gostar defazer viagem em tal dia. Preparou-se para isso

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um melhor acampamento, podendo obter-seramos de árvores nas margens do rio, jápovoadas da vegetação que o país carece aoNorte. Pelo meio-dia estava pronto umquiosque e estabelecido o campo. As damas Coillard andavam numa labutaçãoativa. Faziam o pão e preparavam tudo o queos poucos elementos de que dispunham lhespermitiam, para a festa do domingo. Depois da minha última febre, e dos milcuidados e carinhos de que eu tinha sido alvo,o contato íntimo com aquelas damas a que adoença me tinha obrigado, modificouprofundamente o meu espírito, e senti em mimuma alteração profunda. Até ao momento de as encontrar, eu haviaesquecido, no meio dos selvagens com quemsó vivia, o que fossem carinhos e afagos. O viver entre aquelas damas veio trazer-me àmemória que no mundo há anjos, rosasperfumadas que embalsamam o caminhoespinhoso da vida, frescos oásis em que o

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caminheiro repousa das fadigas do desertoárido. A lembrança de uma esposa estremecida, e deuma filha adorada, veio estar sempre presenteao meu pensamento, avivada pela vistaconstante daquelas duas senhoras,instrumentos inocentes e inconscientes de umsofrimento atroz que me causavam. Quantas vezes, fatigado e doente, eu mesentava ao pé delas, e por um momento erafeliz, não pensando que eram para mim doisentes estranhos, lançados no meu caminhopelo mais extraordinário dos acasos! Quantas vezes inconsciente não ia curvando acabeça aturdida, em busca de um regaço demulher adorada - e caía em mim, e levantava-me e fugia! Ah! como eu as odiava então!! Este sofrimento constante, sempre alimentadopela vista delas, e exacerbado pelos seuscarinhos, traduzio-se num mau humor que menão deixava um momento. . .

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Perdi todas as formas sociais de delicadeza, etransformei-me na imagem da mais brutalgrosseria. Bastava Madame Coillard dizer uma palavra,para ser logo grosseiramente contrariada. Umdia em que eu tinha subido para o wagonbastante fatigado, elas privaram-se de quantasalmofadas tinham para se encostarem eamortecer os choques violentos de um carrosem molas, para me fazerem um leitocomodíssimo. Achei-me tão bem que adormeci em caminho,velando elas pelo meu sono, e não cessando dearranjarem uma ou outra almofadadesaconchegada pelos solavancos do carro. Madame Coillard estava contente com a suaobra. Tinha decerto tido uma viagemtormentosa, mas eu tinha estado bem, tinhadormido. Era tal a sua satisfação que não pôde deixar deme perguntar se eu havia estadocomodamente, certa de que eu só lhe poderiaresponder com um agradecimento expressivo.

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Pois não foi assim. Disse-lhe, que o seu wagonera um wagon infernal, que eu nem mesmohavia podido dormir um momento, e que tinhapassado o dia incomodadíssimo. Depois desta brutalidade insólita, encarei comela, e vi lágrimas a querer marejar-lhe nosolhos. Fiquei tão furioso que fugi para longe. Casos idênticos repetiam-se amiúde, e nocorrer da narrativa aparecerão ainda. Hojecusta-me a compreender como no meu espíritose pôde fazer uma tal alteração, e como eucheguei a cometer tais barbaridades. Os dois dias passados na margem do Nata nãoforam dos piores para mim. Tinha observaçõesa fazer, trabalhos atrasados a completar, e umpaís curioso a estudar - e isso era agradáveldiversão ao meu viver monótono do deserto. Creio que nesses dois dias não fui tão grosseirocomo de costume. O Deserto do Calaari, nas partes em que temágua, é frequentado por uma populaçãonômade. São os Massaruas, a que os inglesesdão o nome genérico de Bushmen. Os

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Massaruas são selvagens, mas muito menos doque os Mucassequeres, que encontrei junto aosconfluentes do Cuando, por 15 de latitude Sule 19 de longitude E. Greenwich. Os Massaruassão muito pretos, têm os ossos molares muitosalientes, olhos pequenos e vivos, e poucocabelo. Vieram alguns ver-nos, e eu dei-lhes tabaco epólvora. O seu contentamento foi grande.Voltaram de tarde, a oferecer-me um cabaz depeixe fresco, que tinham ido pescar nas lagoaspara mim. No dia seguinte, em uma excursão que fiz,visitei o seu acampamento. Vi que tinhampanelas em que cozinhavam, e outros, aindaque poucos, indícios de uma civilizaçãorudimentar. Vi uma vasta provisão de tartarugas terrestres,que eles muito apreciam como manjar. Asmulheres cobriam a sua nudez com algumaspeles, e enfeitavam-se de miçangas, bem comoas crianças. .

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Têm por armas azagaias e pequenos escudosogivais. Usam ao pescoço um sem-número deamuletos, e trazem nos braços e pernasmanilhas de couro. Raspam o cabelo junto das orelhas, deixandono alto um círculo que vem tangente à testa.Falam uma língua bárbara muito notável pelomodo porque nos fere o ouvido, dividindo aspalavras com um estalo dado com a língua, aque chamam cliques. A 16 de dezembro partimos, seguindo amargem esquerda do rio, e paramos junto dela,depois de cinco horas de jornada. Os Massaruas, que chamavam Nata ao rio noponto em que passamos o domingo, já lhechamam Xua (Shua) ali onde acampamos, acinco horas de caminho. Andamos sempre na margem dele com osrumos de S.O., S.E., S.S.E., S.S.O. e S., o quedeu um rumo médio de sul, e não resta amenor dúvida de que o Nata e o Xua são omesmo rio, que, como quase todos os rios de

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África, tem diversos nomes em diversos pontosdo seu curso. Esta parte do deserto é coberta de uma ervacurta e raquítica, e só aqui e além se vê uma ououtra árvore solitária. Contudo, nas bordas do rio há algumavegetação, e de espaço a espaço não deixa deser amena esta ou aquela paisagem que se nosapresenta à vista. A água dos poços cavados no leito do rio nemsempre é potável, e a das lagoas écompletamente saturada de sais. O terreno do deserto apresenta pequenasclareiras onde nada vegeta, e onde o solo écoberto por uma espessa camada de sais,depósitos de águas evaporadas. As informações dos Massaruas a respeito defalta de água eram assustadoras, e nósresolvemos não avançar mais naquele dia, paraaproveitarmos o mais tempo possível algumaboa que ali se encontrou em poços cavadosprofundamente. .

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Desde que percorríamos aquele bordo doCalaari, notava eu que um fortíssimo vento deleste soprava rijo nas primeiras horas damanhã - sendo que do meio-dia para a tardeuma brisa suave de oeste durava algumashoras. Eu atriboo aquele fenômeno constante, àinfluência na atmosfera do enorme desertoarenoso que nos ficava a oeste. A areia refletindo o calor solar, deveriaproduzir uma dilatação atmosférica quedeterminaria durante o calor a corrente brandapara leste, ao passo que esse ar lentamentedilatado de dia, seria rapidamente retraídopelo frio intenso da noite - e produziria umdesequilíbrio, que originara a fortíssimacorrente nas primeiras horas do dia. M. Coillard achou prudente partir só na tardedo dia imediato, para saciar bem os bois, antesde ir procurar águas muito problemáticas -mas eu decidi seguir só com o meu Pepéca, ecombinamos encontrar-nos nas margens doSimoane.

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O meu fim era sobretudo visitar os lagos a queos Massaruas chamam “os Macaricáris”.Depois de atravessar sete milhas deMacaricáris, entrei numa floresta, que percorrinuma extensão de três milhas até encontrar umleito de rio, com alguma água encharcada, queeu supus devia ser o Simoane. Desci por ele até ao Grande Macaricari. Depoisde um longo passeio nas cercanias, fuiprocurar um lugar onde calculei que oswagons deveriam passar e esperei. Só às nove da noite, e noite de trevasprofundas, o meu ouvido exercitado pôdeperceber ao longe a bulha dos wagons, ecaminhando para ali fui sair-lhes ao encontro.Madame Coillard estava em cuidados, por mever ausente todo o dia só com uma criança, e aprimeira coisa que fez ao parar dos wagons, foipreparar-me chá, bebida de que ela sabia eu serávido, e nessa noite diz o meu diário que tomeia seguir seis grandes chávenas dele.Efetivamente, o gasto que eu fazia na provisãode chá de Madame Coillard era enorme.

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O ribeiro Simoane, que então era apenas umasérie de pequenas lagoas de três metros delargo, corre a Oeste no tempo das grandeschuvas - e vai entrar diretamente no GrandeMacaricari. Todo aquele país, e sobretudo a floresta entre aqual corre o Simoane, apresentava indícios deter chovido muito ali, e por isso as lagoas doSimoane tinham água, e esta era quase boa. No tempo seco elas secam, e em alguma lagoaque conserva pouca água, é esta tão saturadade sais que não se pode aproveitar. Desde que chegamos às margens do Nata, emtodos os pontos onde parávamos, apareciam osMassaruas sempre a pedir alguma coisa. O quevalia era fugirem se nos zangávamos com eles. Aqueles Massaruas que são valorosos ecombatem o elefante e o leão, sam covardesdiante do homem, e sobretudo do branco. Só às 4 horas da tarde deixamos aquele ponto,onde os bois encontravam um viçoso pasto eabundante água - e caminhando a S.O. fomosacampar, às 8 horas e meia, em lugar seco.

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No dia 19, depois de quatro horas de jornada aS.S.E., costeando sempre o terreno que se elevapara o Este, deparamos com o leito seco de umrio cujas margens alimentam uma vegetaçãoluxuriante. Os Massaruas que apareceramlogo, disseram chamarem-lhe Lilutela, e ser omesmo que outros chamam Xuani (Shuani) oupequeno Xua. Este nome de Xuani deve tersido dado aquele rio por gentes do sul, quefalassem a língua Sesuto ou algum dos seusdialetos - porque naquela língua ossubstantivos formam o diminuitivo com aterminação ani. O Lilutela, nome que eu lhe conservo por ser oempregado pelos povos nômades do deserto,tem o seu leito cavado entre uma florestaformada de árvores gigantes - mas limpa dearbustos. Esta floresta, que começou umasnove milhas ao N. do Simoane, parece ser aorla de uma densa mata que em terreno maiselevado corre Norte-Sul poucas milhas a lestedo nosso caminho. .

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O terreno, desde a margem esquerda do rioNata é consistente e não arenoso como até ali.O solo é formado por uma funda camada deargila muito plástica, e no tempo das grandeschuvas deve ser um atoleiro enorme. Um dos Massaruas que apareceu ali foimostrar uma lagoa, um quilômetro a oeste,onde os bois puderam matar a sede e nós fazerprovisão de água. As margens do Lilutela são cobertas por umaespessa camada de guano, e na estação em queo rio leva água devem ser habitadas pormilhões de aves. Seguimos no mesmo dia às 5 da tarde, debaixoda má impressão de que não encontraríamoságua no dia imediato, fato que nos foiafirmado pelos Massaruas. Jornadeamos até às11 e meia da noite, sempre por entre a florestapomposa. Partimos no dia 20 às 8 da manhã, e meia horadepois, passávamos o leito seco do rio Cualiba,que vai ao Grande Macaricari, correndo aOeste.

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A floresta ali é cheia de pedras roliçastrabalhados pela água, e povoada de caracóisenormes e búzios de grandes dimensões. Fomos acampar além do leito do Cualiba, paraprocurarmos água. Apareceram algunsMassaruas, mas não nos quiseram indicar ondefaziam provisão dela, coisa que eles usam comos forasteiros. Depois de várias tentativas feitasno leito do rio, pudemos obter água num poçoque cavamos um quilômetro à jusante donosso campo. Partimos às 4.25 minutos, parando logo às 5 e10, para dar de beber aos bois em um charcoque encontramos, formado pela chuva - quecaía torrencial desde as duas horas. Ainda nesse dia jornadeamos por duas horas,indo acampar às 8, depois de termosatravessado uma parte do Grande Macaricari. . . . . .

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O Grande Macaricari Naquele deserto do Calaari, país tão notável,onde a natureza se comprazeu em juntar osmais disparatados elementos, onde a florestapomposa toca a planície árida e seca, onde aareia solta é continuação do terreno argiloso aomesmo nível, onde a secura está, muitas vezes,perto da água; naquele deserto, que por vezesquer imitar o Saara, outras os pampas daAmérica, outras os estepes da Rússia; naqueledeserto elevado três mil pés ao nível mar, umadas coisas mais notáveis é o GrandeMacaricari. O Grande Macaricari é uma bacia enorme,bacia onde o terreno se deprime de 3 a 5metros, e que deve ter no seu maior eixo de 120a 150 milhas, e no menor de 80 a 100. Como todos os macaricaris, afeta a formaaproximadamente elíptica, e tem como todos oseu maior eixo no sentido leste-oeste. Macaricaris são, em língua Massarua, baciascobertas de sais, onde a água das chuvas seconserva por algum tempo, desaparecendo na

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estação seca, pela evaporação, e deixando alioutra vez depositados os sais que dissolvera.São abundantíssimos os macaricaris naquelaparte do deserto, e eu visitei muitos, cujoseixos maiores, sempre no sentido leste-oeste,tinham três milhas ou mais. As bacias são de areia grossa, coberta por umacamada cristalina de sais - que atinge aespessura de um a dois centímetros. Creio que não é so cloreto de sódio o sal queforma aquela camada, ainda que é aquele quepredomina. Os depósitos calcáreos que aquelaságuas deixam pela evaporação, evidenciamque os sais de cal também se contém nacamada cristalina dissolvida nelas, emproporção notável. Fiz coleção de muitos pedaços daquela camadaque reveste o interior das bacias dosmacaricaris, mas, infelizmente, numa caixa quecaiu ao mar ao embarcar no vapor Danúbio,em Durban, se perderam eles, com outrosexemplares preciosos que trazia para a Europa. .

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O grande lago recebe na estação chuvosa umvolume enorme de águas pelos rios Nata,Simoane, Cualiba e outros - sendo que todas aságuas que naquelas latitudes caem desde afronteira do país dos Matebeles, vêm a ele,porque o terreno eleva-se progressivamente aleste até ao meridiano 28° ou 28° e 30’ deGreenwich. Estas águas, que formam torrentesenormes, devem encher o Grande Macaricariem pouco tempo. Este enorme charco comunica com o LagoNgami pela Botletle, e o seu nível é o mesmodaquele lago; dando esta circunstância lugar aum fenômeno muito notável. Estando os doislagos distanciados em alguns graus, muitasvezes as grandes chuvas caem a leste, e oMacaricari transborda, sem que as fontes quealimentam o Ngami tenham aumentado devolume. Então a Botletle corre a oeste doMacaricari para o Ngami. Outras vezes dá-se ocaso inverso, e o Ngami envia as suas águas aoMacaricari. Este é o seu curso natural, sendo o

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Ngami alimentado por um rio permanente evolumoso. Mas o que sucede a toda essa água que detodos os lados corre ao grande charco?Desaparecerá só pela evaporação?Não haverátambém ali uma grande infiltração que, porcondutos mistériosos e subterrâneos vá darnascença a esses inúmeros riachos, que emplano inferior correm ao mar de uma e outracosta? O que é feito das águas do Cubango, riovolumoso e permanente, que desaparece nestedeserto insondável? As águas do Cubango, naminha opinião, chegam ao Grande Macaricari edesaparecem ali. A Botletle não é mais do que o Cubango, quetem um alargamento a que chamaram oNgami. Sem o Grande Macaricari, a parte daÁfrica Austral compreendida entre o paralelo18 e o rio Orange, seria um país fertilíssimo, enas condições climatológicas e meteorológicasque a protegem, seria um país de grandefuturo.

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Bastava o Cubango para a fertilizar. Mas oCubango, bem como todos os rios quequiseram entrar no Calaari, encontrou no seucaminho um país arenoso e perfeitamentehorizontal, que lhe dispersou as águas, comoque dizendo: “Não passareis daqui;” e a poucaque encontrou um escoamento, e pensousalvar-se, foi cair no Grande Macaricari, que abebeu ávido, sem que ainda assim pudessematar a sua sede insaciável. Os rios que têm as suas nascentes ao sul doparalelo 18 - e a oeste do meridiano 27, aonorte do Orange -, e a oeste do Limpôpo, nãosão permanentes e, caudalosas torrentes naestação das chuvas, não são mais do que sulcosarenosos na estação seca. As águas de quase todos vão a essa linha queune o Ngami ao Grande Macaricari onde seperdem, talvez para volverem de novo numanova estação das chuvas. Algumas vezes, como naquele ano, até aBotletle mostrou aos habitantes dos juncais dassuas margens o seu fundo arenoso e branco.

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É bem digna de estudo esta parte da África,ainda hoje envolvida em mistérioso véu - mastão inóspita é ela, que por muito tempo saberáocultar os seus segredos aos olhos dosinvestigadores científicos. No dia 21 seguimos ao Sul, deixando oMacaricari às 5 horas da manhã, e fomos parar,quatro horas depois, junto de uma pequenalagoa de boa água, produzida pela chuva quecaiu copiosa na véspera. O país que atravessamos era coberto devegetação arborescente, sendo o mato formadode espinheiros que dificultavam o viajar. Partimos ao meio-dia, alcançando pelas duashoras o ribeiro Tlapam, que, ao contrário doque esperávamos, não nos ofereceu uma gotad’água potável - e por isso continuamosjornada até às 9 horas da noite, hora em queencontramos uma pequena lagoa permanente,a que os Massaruas chamam Linocanim (opequeno ribeiro), porque esta lagoa dánascença a um pequeno ribeiro que corre aleste, provavelmente ao rio Tati.

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Das 6 às 8 horas caiu sobre nós uma horrorosatempestade, com copiosa chuva, queencharcou o terreno, tornando dificílimo orodar dos carros. Algumas cabras de M.Coillard e a minha Cora, querendo refugiar-seda tormenta, procuraram abrigar-se debaixodos wagons, que rodavam, e uma foi logoesmagada pelas rodas. A minha Cora foi a segunda vítima. A rodapassou-lhe sobre o ilíacos, e eu, ainda que elachegou viva a Linocanim, supus logo que nãopodia viver muitas horas. Naquela noite foi morta no nosso campo umacobra venenosíssima. Desde o rio Nata até ali, vi mais cobrasvenenosas do que em todo o resto da viagem.Na véspera um asqueroso e enorme sapo veiometer-se nas peles da minha cama, e aoacordar achei-me cara a cara com tão amávelcompanheiro. Escorpiões, centopeias e os maisrepugnantes insetos, eram meus sócios decama, vindo procurar junto ao meu corpo o

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calor que tão apreciado é pelos animais desangue frio. É preciso um hábito constante do deserto parase poder dormir sobre umas peles na terradura em companhia de tais animalejos. Deve compreender-se que estas insignificantesbagatelas, reunidas a todas as outras causas,mantivessem o meu mau humor a uma alturaconstante. O tempo chuvoso continuavapersistente, e o céu sempre encoberto não mepermitia fazer observações astronômicas, o quecontriboía para acirrar o meu espírito já muitoiracundo. Naquele dia todos os meus cuidados, todos osmeus momentos, foram dedicados a tratar daminha pobre Cora, que morreu pela tarde. Pobre animal! Perdi em ti a única grandeafeição que encontrei nas terras africanas, antesde conhecer a família europeia que me recebeuno seu seio. Perdi em ti a companheiraconstante dos meus dias de tristeza, a amigadileta dos meus poucos momentos de alegria! .

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Pobre Cora! A sepultura que te cavei junto aLinocanim será sempre um pensamento tristena minha lembrança, e as poucas linhas queaqui te consagro, ditadas por a saudade queme deixaste, são a expressão sincera do muitoque eu te queria, pelo muito que me erasdedicada. Agora, leitor endurecido e crítico severo, trata-me de frívolo pelo pouco que acabo deescrever de assunto que taxarás de fútil, trata-me como quiseres de mal, que só me darás odireito a lastimar-te. Há bagatelas na vida quesão verdadeiros acontecimentos para o homemque sente e meras puerilidades para aquele aquem as paixões já mirraram o coração. Se és dos últimos, ri-te de mim e deixa-me quete lastime. Não contesto que me leves grandesuperioridade, mas eu sou de outro feitio - eestou bem assim. Cora morrendo, deixou-me uma recordaçãoviva num filho que tinha, a que os Basutos deM. Coillard deram o nome Coranhana. .

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A tarde do dia 22 foi tormentosa, e das 3 horasàs 6 e meia a chuva caía torrencial. No diaimediato partimos às 6 horas, indo parar às 9em um lugar onde os Massaruas cavaram umgrande poço, lugar a que eles chamam TlalaMabelli (fome de mabelli). No fundo do poçoapenas encontramos uma lama fétidainaproveitável. Ainda nesse dia fizemos uma jornada de cincohoras e meia, sempre debaixo de chuvacopiosa. A 24 seguimos viagem, e depois dequatro horas e meia de caminho, encontramosum posto de Massaruas, sujeitos ao rei Camado Manguato. Chamam àquele posto “aMorralana”, do nome de uma árvore queabunda ali. Disseram-nos os Massaruas que podíamosseguir em linha reta, porque a muita chuvacaída nos dias anteriores nos faria encontrarágua no caminho, sem o que teríamos de fazerum grande desvio por leste para nãomorrermos de sede. .

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Às 11 horas começou uma chuva forte que sómoderou às 2; seguimos então, mas logo às 4paramos, por termos encontrado uma lagoacheia de água magnífica - e sabermos pelosMassaruas, que só três dias depois poderíamosencontrar de novo água aproveitável. Triste véspera de Natal! Eu estava nesse dia deum mau humor atroz. Sentado dentro dowagon para me abrigar da chuva, estavamjunto a mim M. Coillard e as damas. Eles conversavam, eu estava calado, furioso.Não sei a que propósito, Madame Coillardfalou de George Eliot. Foi como o fogo chegadoà pólvora aquele nome que ouvi. Voltando-me para Madame Coillard, disse-lhe,que George Eliot não escrevia senão disparates,porque era uma mulher o seu George Eliot - eque uma mulher só podia escrever disparates. Madame Coillard, ferida por esta minha brutalagressão, quis discutir, mas eu só lherespondia, que as mulheres não nasceram paraescritoras, que logo que se metiam a isso não

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podiam deixar de escrever tolices; que o seumister era governar casas, e não fazer livros. Chegou a discussão ao ponto de eu ver a boadama comovida, e de fugir dali. Momentos depois caía em mim, e avaliavatoda a extensão do meu arrebatamento, sempoder explicar como se produziam no meuespírito tais alterações, logo que eu me dirigiaa ela. Eu, o maior admirador de George Eliot; eu, quereli Romola e Adam Bede, ficando ainda comdesejo de ler aquelas obras primas da célebreromancista inglesa; eu que presto umverdadeiro triboto ao mérito de Staël e Sand;eu que me ufano de ter entre os primeirosliteratos do meu país Maria Amalia Vaz deCarvalho, a mulher que escreveu um dosmelhores livros que modernamente se temescrito ali; eu fazendo violência ao que pensavae ao que sentia, sustentava, contra a minhaconvicção, uma ideia estúpida, só e só paracontrariar aquela boa dama, que me pagava as

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agressões insólitas com mais cuidados e commais desvelos! Amanheceu 25 de dezembro, dia de Natal, que,sendo dia festivo e de descanso em todo omundo cristão, para nós foi dia de trabalhorude, porque jornadeamos por treze horas, emtrês caminhadas, e só à uma hora da noiteacampamos. Era a secura do país que nos forçava a alargaras jornadas, e mesmo assim, só contávamos terágua três dias depois. Neste dia encontramosum bando de Bamanguatos, que o rei Camamandava a M. Coillard com bois frescos paraos wagons. Por eles soubemos a nova dasmortes do Capitão Paterson, Mr. Sergeant eMr. Thomas, e alguns serviçais, que tinham idoao Matebelli em serviço do governo inglês, eque se dizia terem sido assassinados por LoBengula. . . . .

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Figura extra: Lo-Bengula, chefe dos Zulus.

A chuva tinha cessado, mas o céu continuavasempre completamente coberto. Eu fui nessedia atacado de um ligeiro acesso de febre, queme quebrou as forças. Havia um ano que, emQuillengues, eu lutava com a morte naquelemesmo dia. Estavam então, junto a mim,Capelo e Ivens. Quanto me lembrei deles! Onde estariam? Qual teria sido o seu destinono meio daqueles paises inóspitos? Neste tristedia de Natal, fatigado da jornada, abatido dafebre, quanto me lembrei também dos meus!

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De minha filha, que fazia anos, e da festa defamília, que se fazia sem mim! Quantas famílias no mundo, nesse dia,sentadas às mesas que vergavam ao peso dasiguarias, desperdiçando vinhos e desprezandoa água, estavam longe de pensar que, no secodeserto, quatro europeus fatigados seriamfelizes com alguma dessa água, que por toda aparte era desprezada! A não ser alguns desses entes que de perto nostocam e que não podem nos esquecer, quem selembraria de nós em tal dia? Há momentos bem tristes, entre todos osmomentos sempre tristes da vida doexplorador! No dia 26, logo de madrugada, fizemos umaprimeira marcha de quatro horas, andando emuma planície que se eleva um pouco para o sul,coberta de erva e apresentando aqui e alémalgumas pequenas matas. O terreno de areiaamarelo-avermelhada deixava enterrar asrodas dos wagons quase até aos eixos, etornava difcílima a tração deles.

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Ainda nesse dia fizemos duas jornadas, umade cinco outra de quatro horas, sempercebermos o menor sinal de água.Acampamos às onze e meia da noite, à entradade um vale onde o terreno nos pareceu difícil eperigoso de transpor no meio das trevas. Ao despertar, uma formosa paisagem -formosa para olhos cansados da monotonia earidez do deserto -, nos veio alegrar a vista. O pequeno vale à entrada do qual passamos anoite era verdejante e belo. As colinas que oformavam não tinham mais elevação que 20metros, mas eram pitorescas. Até meia altura deixavam ver a nu umaglomerado de pedras basálticas cheias defuros, e cujas arestas puídas mostram quehouve ali um persistente trabalho da água. Apesar da viçosa erva que cobria o fundo dovale, água nenhuma encontramos - ainda queela deve correr ali em profusão no tempo dasgrandes chuvas. Disseram-nos as gentesBamanguatas que se chamava aquele lugarSetlequane.

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Os bois dos wagons fugiram durante a noite, esequiosos foram ao longe procurar água, quenão encontraram, sendo reconduzidos aocampo só às 11 do dia, por gente quedespachamos em sua busca. Partimos a essa hora, e três horas depoisencontrávamos o leito seco do rio Luale. Esterio, como quase todos os daquele país, só temágua corrente na estação das grandes chuvas,mas em todo o tempo pode encontrar-sealguma estagnada em alguns poços maisprofundos. Todavia, ali há água permanente, esendo a primeira permanente que lhe fica ao N.em Linocanim, há entre estes dois pontos umadistância de 128 quilômetros, distânciaimpossível de transpor na estação seca. Homens e bois mataram ali a sede, e nósdecidimos seguir logo avante. Quando íamospartir percebemos que faltavam cinco cabrasde M. Coillard. Fizemos seguir os wagons e as damas, ficandoeu e M. Coillard com alguns pretos paraprocurar as cabras.

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Eu pude por muito tempo seguir o rasto, masperdi-o depois; e às 6 e meia da tarde, já noite,decidimos ir encontrar os wagons, deixando alialguns pretos para continuar as buscas no diaimediato. Partimos sozinhos por noite detrevas profundas. M. Coillard, sempredescuidoso, e crente na proteção de Deus, iadesarmado, levando na mão uma ligeirabadine*. Eu, que creio em Deus - mas quetambém creio em feras no continente africano,levava a minha melhor carabina. * Bengala leve e flexível. Uma hora depois de deixarmos o Luale,ouvimos próximo de nós à nossa esquerda, umdesagradável coro de hienas e chacais - quenão pudemos enxergar. Este M. Coillard produzia às vezes em mimuma impressão estranha. Há coisas naquelehomem que me não é dado compreender. Um dia, narrando-me com todo o calor que oseu espírito de poeta lhe dava, um dos maiscomoventes episódios da sua viagem, me disseele: “Estivemos quase perdidos!” “Mas,”

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retroqui eu, “o senhor tinha armas, tinha dezhomens dedicados e armados consigo, podia,nas circunstâncias que me pinta, sair dadificuldade facilmente.” “Não podia,” me disse ele; “não podia semmatar um homem; e eu não mato um homem,nem mesmo para me salvar e aos meus.” Fiquei pasmado a olhar para aquele homem,tipo novo para mim, sem poder compreenderque naquela organização meridional e ardentepudesse existir uma coragem de gelo, umacoragem que não acha explicação no meuespírito. Era a coragem filha daquelas flores da almaque um dos maiores poetas portugueses soubedefinir e descrever em frase espressiva e bela.Era a coragem dos mártires - que a poucos édado entender e sentir. Eu, por mim, declaroque a não entendo, e posso quando muitoadmirá-la. Por vezes, na minha viagem, me encontrei nomeio da floresta desarmado, ou melhorfalando, sem carabina, que alguma outra arma

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sempre trazia - e todas as vezes que issoaconteceu, uma inquietação vaga, umaperturbação ligeira me atribolava o espírito. Não posso, por isso, compreender o homemque passeia nos sertões africanos de badine namão, vergastando as ervas do caminho. Deveser sublime aquela coragem, e pena tenho de anão possuir. O caminho que eu e M. Coillard seguíamos épovoado de feras, e o valoroso francêsdispunha-se a passá-lo sozinho e desarmado,se eu não teimasse em o acompanhar. MadameCoillard, em cuidados por nos ter deixadoatrás, fez parar os wagons e esperou por nós,que a encontramos depois de três horas demarcha. Seguimos logo, indo acampar, à uma hora damadrugada, junto do ribeiro Cane. Logo demanhã, apareceu o meu Augusto com ascabras perdidas, que ele encontrara de noite.Seguimos às 7 horas, através de um paísmontanhoso e coberto de luxuriante vegetação,oferecendo a cada passo panoramas lindos.

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As montanhas correm a S.O., e todas as águas,se as houvesse, deviam correr a leste. Depois de duas grandes jornadas, fomosacampar junto do leito seco de um ribeirochamado Letlotze, onde pudemos encontrarágua num pequeno poço. Foi decidido quepassaríamos ali o dia imediato, que eradomingo, dia em que a família Coillard nãoviajava. Logo na madrugada seguinte, fomossobresaltados por uma desagradável notícia.Os bois tinham ido de noite ao charcoencontrado na véspera, e tinham esgotadocompletamente a provisão de água com quecontávamos. . . . . . . . .

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Mandou-se à descoberta, e foi o meu Catraioquem, depois de longas e demoradaspesquisas, encontrou alguma água - muitolonge do acampamento. O lugar em que estávamos era lindíssimo, epassamos ali um agradável dia. A 30 dedezembro, pusemo-nos a caminho aoalvorecer. Eu, que acordei neste dia de péssimo humor,estava possuído de uma verdadeira raiva, enunca cheguei a sentir tanto ódio a alguémcomo então senti por aquelas damas, pelomissionário, por todos que me rodeavam.

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Aquele estado do meu espírito atriboladoexacerbou-se ao ouvir, que M. Coillarddesejava fazer uma grande jornada naqueledia. Efetivamente, entestamos com os desfiladeirosde Letlotze, e caminhamos 25 quilômetros semparar. Paramos enfim, e procurei logo afastar-me do acampamento, para não fazer algumaloucura. Depois de um passeio nos arredores,voltei, e ao aproximar-me do campo por entreos arbustos, vi Madame Coillard, que falavacom Mademoisele Elise de modo contristado. Não podia ouvir o que diziam, mas o que vi foibastante para perceber do que se tratava. Mademoisele Elise tinha na mão a lata do chá,Madame Coillard um pires. Foi despejado nopires todo o conteúdo da lata, e divido emduas partes, uma das quais volveu para a lata- e a outra entrou no bule. Era o último chá de Madame Coillard.Compungiu-me tanto o ver o sentimento quese lia no rosto de uma dama escocesa ao serviro seu ultimo chá, que o meu mau humor caiu

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por terra, e caiu para sempre, porque não maisvolveu. Ainda neste dia jornadeamos por três horas,indo acampar às 7 e meia em lugar seco. A nossa viagem foi sempre pelos desfiladeirosde Letlotze, onde um sulco profundo serpeiaem apertadas curvas, mostrando o leito seco deum rio do mesmo nome. Sete vezesatravessamos aquele sulco, com grande riscodos wagons que se precipitavam das suasescarpas profundas e inclinadas. As montanhas que coroam aquele desfiladeirosão belas, e a serra apresenta um dentadooriginal. A 31 de dezembro, depois de uma jornada deduas horas, entrávamos em Xoxom(Shoshong), a grande capital do Manguato. Às 8 horas eu comprava um saco de batatas eoutro de cebolas; encontrava um Stanley (quenão é H. M. Stanley, mas de quem terei quefalar muito) - e às 11 horas comia um ótimoalmoço de batatas com presunto, um magnífico

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beef-steak, e apertava a mão do régulo Cama, oindígena mais notável da África Austral. Madame Coillard já tinha nova provisão dechá. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Capítulo IV. No Manguato Doença grave—Um Stanley que não é o Stanley—O Rei Cama—Os ingleses em África—A libraesterlina—Mr. Taylor—Os Bamanguatos acavalo—Cavalos e cavaleiros—Despedidas—Partopara Pretória—Acontecimentos noturnos—Volto aXoxom—Pararam os cronômetros? Com o alvorecer do dia primeiro de janeiro vieu começar em África um novo ano. Haviadoze meses que, neste mesmo dia, eu tinhadeixado Quilengues e feito uma grandemarcha para o interior, ainda convalescente daprimeira grave doença que tive em África. EmXoxom, um ano depois, o Dia de Ano-Bomdevia ser para mim um dia de descanso, e avéspera da última perigosa enfermidade queme ameaçou a vida naquela longa e fadigosajornada. Passei entre a família Coillard aquele diafestivo, na casa meia arruinada que pertenceraao missionário Mackenzie - e que nós fomosocupar.

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No dia 2, fui à cidade, ao bairro europeu, e emuma das casas inglesas deram-me ummagnífico charuto, um puro Londres. Háquanto tempo eu não via um charuto, e comque prazer aspirei o cheiro delicioso do tabacoHavano!! Neste dia apareceram-me os sintomas de umafebre perigosa. A doença tomou um caráterassustador, e até ao dia 7 estive entre a vida e amorte. Os carinhos e desvelos que medispensou Madame Coillard não se podemdescrever - e decerto a ela devi outra vez o nãoter morrido naquelas inóspitas paragens. A 7 melhorei bastante, e pude receber a visitade Stanley. Stanley é um fazendeiro doTransvaal. É inglês, mas casou em Marico comuma Böer. Viera a Xoxom vender batatas e cebolas, eucomprei-lhe um saco de cada coisa - e aluguei-lhe o wagon para continuar a minha viagem. Naquele dia pude falar largamente com ele econcluímos o contrato. Por esse contrato owagon ficava ao meu serviço, bem como ele -

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que seria apenas o driver (condutor), devendoobedecer-me em tudo e por tudo. O homem também impôs uma condição queaceitei, e foi a de passarmos por sua casa - paraque a mulher não o julgasse comido pelosleões. Stanley disse-me logo que não iria além dePretória, porque tinha um filho pequenino,longe do qual não podia viver. Tive detransigir no contrato com os afetos paternaisdo fazendeiro transvaaliano. Stanley é homem de trinta anos, alto, barba ecabelo muito louro, fisionomia vulgar e nadaenérgica, um tipo completamente oposto aoseu homônimo - o grande Stanley. Não era semum certo acanhamento que eu o tratava poraquele nome. Depois de longa conferência, ficou decididoque ele estivesse pronto a partir no dia 13,retirando-se em seguida tão satisfeito comigocomo eu ficara com ele. . .

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O Manguato, ou país dos Bamanguatos, ocupana África Austral uma área que não se podeprecisar bem, tão vasta é ela. Ao Sul do Zambeze e ao Norte do paralelo 24,a África é dividida, de mar a mar, em trêsgrandes raças superiores e distintas. A leste, os Vatuas ou Landins, cujo chefe éMuzila. Em seguida, os Matebeles ou Zulus,cujo chefe é Lo-Bengula. A oeste, osBamanguatos, cujo chefe é Cama. Muitos, grandes e pequenos grupos, de raçasinferiores, estão sujeitos a estas três raçasdominantes - e incontestavelmente superioresàs outras. Tais são entre os Matebeles os Macalacas, entreos Bamanguatos os Massaruas. Além destas,outras castas formam aqui e além pequenosgrupos, e as povoações dos juncais da Botletlee do Ngami - sujeitas ao rei Cama - e osBaniaes e outros povos de leste - sujeitos a Lo-Bengula, são de diferente origem. Estes três grandes potentados são inimigos, eusam bem diferente política.

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Cumpre-me aqui só falar de Cama, e por issodeixarei em silêncio o que poderia dizer dosoutros dois poderosos régulos, cujos países nãovisitei. O Manguato era, há poucos anos, governadopor um velho imbecil e bárbaro. Era o pai deCama. Cama, cristão convicto, educado pelos ingleses,homem civilizado, de elevada inteligência esuperior bom-senso, não podia ter as boasgraças de seu pai. Ainda que primogênito, epor isso herdeiro legal do poder, sofria umaguerra sem trégua do velho imbecil - quetrabalhava para fazer seu sucessor a seu filhosegundo Camanhane. Cama, querendo evitar as intrigas que emShoshong (Xoxom) lhe moviam os inimigos,retirou-se prudentemente para a Botletle, masem caminho todo o seu gado foi disperso pelasede - e reunido pelos Massaruas foi levado aseu pai. Cama reclamou o que era seu e lhe foi negado,tendo por única resposta, que o fosse ele

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mesmo buscar a Shoshong, que ali lhecortariam a cabeça. Ele replicou que iria, e marcou o começo daprimavera seguinte para isso, avisando queestivessem preparados para o receber.Efetivamente, apresentou-se no Manguato àfrente de uma respeitável força reunida naBotletle e no Ngami, e tendo batido emdiferentes combates a gente de seu pai, tomoua cidade de Xoxom pouco depois. Foi aclamado régulo, e seu pai deposto.Entregou a seu pai todo o gado e riquezas quelhe pertenciam; deu boa esmola a seu irmãoCamanhane, mandando-os viver para o suljunto de Corumane. Um ano depois, Cama chamava seu pai e seuirmão para junto de si, e fazia-lhes os maioresbenefícios. Todavia o pai e o irmão, logo que se acharamvivendo na capital, conspiraram contra ogeneroso régulo, que, desgostoso por se verenvolvido em novas intrigas, entregou ogoverno a seu pai e retirou-se para o Norte.

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Os Bamanguatos porém tinham apreciado ogoverno sábio de Cama, e não podiam aturaroutro régulo - o que deu lugar a que fossem emmassa buscar o filho e de novo depusessem opai. Este quis retirar-se para Corumane e levouCamanhane consigo, mas Cama, sabendo dapobreza em que estavam, ainda os encheu debenefícios. Esta última cena da história do Manguatopassou-se sete anos antes da minha estada ali,e desde então o poder de Cama consolidou-secompletamente. Cama, nas guerras que sustentou com os seus ecom estranhos, adquiriu reputação de grandecapitão. No tempo em que estive em Shoshong,Camanhane já vivia ali, ainda que não tem amenor ingerência nos negócios públicos. Camaperdoou-lhe, chamou-o para junto de si eenriqueceu-o. Ao contrário de todos os governos indígenasda África, o de Cama não é egoísta. Antes depensar em si mesmo pensa ele primeiro no seu

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povo. Uma grande parte desse povo é cristã, etodos andam vestidos à europeia. Nem um só Bamanguato deixa de terespingarda, mas não se vê nunca um homemarmado naquele país, fora das florestas. Cama nunca traz armas. Vai repetidas vezes aobairro missionário, que fica a dois quilômetrosda cidade, e volta por noite fora, só edesarmado. Não há outro chefe em África queo faça. Tem este régulo 40 anos, ainda que parecemuito mais novo. É alto e robusto, mas a suafisionomia inculca pouco. Tem modos distintos, e o seu trajar à europeiaé apurado e de um asseio esquisito. Comotodos os Bamanguatos, é destro cavaleiro, bomatirador e afamado caçador. Quase todos os dias Cama almoçava comigo,em casa de Madame Coillard, e sentava-se àmesa com os modos e distincção de umcavalheiro europeu. Cama é muito rico, mas a sua riqueza épartilhada pelo seu povo. Há anos, veio um

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flagelo aos campos Bamanguatos, e sobreveio afome, mas o povo de Shoshong não a sentiu. Cama comprou cereais em toda a parte. Só emuma semana gastou cinco mil libras esterlinas,mas a sua gente teve de comer. É belo ver a respeitosa amizade com que todoso saúdam quando passa nas ruas. Não é ocortejar a um rei, é o saudar a um pai. Ele visita as casas dos pobres e as dos ricos, e atodos anima ao trabalho. E os Bamanguatos trabalham muito. Nos campos ajudam as mulheres no amanhodas terras, e já empregam a charrua importadade Inglaterra. Além de grandes cultivadores, são pastores etêm muitos gados. Em casa trabalham a curtirpeles e a cosê-las com nervos de antílopes,fazendo ricas coberturas que usam no inverno. No tempo da caça são caçadores, e asavestruzes e os elefantes são perseguidos poreles. . .

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Em todos estes misteres são animados pelo seuchefe, que os visita, já nos campos, já nolabutar doméstico. São muito amigos dos europeus, e aquele quechega ao Manguato está tão seguro como naEuropa. Cama anda sempre só, e quando, muito éseguido por dois criados a cavalo. Ele andasempre a cavalo. Como no meio de tantos povos bárbaros seacha um tão diferente deles? Deve-se isso aos missionários ingleses, e nãoposso deixar no escuro os seus nomes. Trêshomens trabalharam naquela grande obra. Com a mesma imparcialidade com que atéaqui tenho falado dos pretos, vou agora falardos brancos, e se não deixo de convir quemuitos missionários - e muitas missõesAfricanas - são estéreis, ou, antes,contraproducentes, preciso admitir, por fatosque vi, que outras dão verdadeiros resultados,pelo menos aparentes. .

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O homem é falível, e tirado do meio social emque foi criado, privado dos confortos que lheaconchegaram a infância, perdido, por assimdizer, no meio dos povos ignaros da África,habitando um clima inóspito, compreende-seque sofra uma profunda modificação no seuespírito. Esta deve ser a regra geral que tem exceções.As exceções são os homens verdadeiramentefortes, aqueles que apoiam a sua moralnaquelas flores da alma que tão bem descritasforam pelo grande poeta da Beira, aquelasflores da alma que dão o esquecimento aomesquinho pelo amor traído, que dão confortoao náufrago quando a esperança de alcançar aterra se perde, às quais se encomenda o mongeao sofrer o martírio dado pelos bárbaros ondefoi levar a civilização. Os homens que as possuem, podem, entreguesa si mesmos, caminhar avante e atingir um fimsublime; mas estes homens são verdadeirasexceções. A matéria é fraca, e mais fraco aindaé o espírito humano.

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Se assim não fora, dispensavam-se as leis e osgovernos - e a sociedade estaria constituída emoutras bases. Bastavam as flores da alma paragovernarem o mundo. As paixões a que está sujeito o homem levammuitas vezes o missionário, que é homem efraco por ser homem, a seguir um caminhoerrado. A luta entre católicos e protestantes nasmissões africanas são um exemplo disso; são ademonstração incontestável de que as paixõesmás podem atuar no missionário como emqualquer outro mortal. Os missionários protestantes (os maus já seentende), dizem ao preto que “o missionáriocatólico é tão pobre que nem tem com quecomprar uma mulher!” - aviltando assim ohomem, que tão aviltado é o pobre entre ospovos africanos como entre os europeus. Por outro lado, os católicos empregam toda asorte de ardís para desvirtuar os protestantes.Dessa luta nasce a revolta, e produz-se aesterilidade de muitas missões - onde

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concorrem missionários de crenças diversas.Falei nisto incidentalmente - para mostrar queos missionários tem paixões e erram. Essa é atéa regra geral. Ao sul do trópico o país está coberto demissionários, e ao sul do trópico a Inglaterrasustenta uma guerra constante com aspopulações indígenas. É porque o mau trabalho de muitos desfaz oque alguns construem de bom. Deixemosporém em paz os maus, e falemos dos bons. Dizia eu que três homens trabalharam na obrada civilização relativa (e para mim aparente)do Manguato. Digo aparente, porque estou convencido deque o régulo que substituir Cama, se nãoquiser admitir o missionário, levará consigo apopulação inteira - que não hesitará entre adoutrina de Cristo, que não entende, e oserralho que lhe delicia a lascívia. Que nãohesitará entre o padre e o régulo. Mas essa civilização do Manguato é hojenotável a todos os respeitos, e o primeiro

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homem que trabalhou nela foi o ReverendoPrice, creio que o mesmo que ultimamente foiencarregado da missão de Udjidji noTanganika, e que tão infeliz foi na primeiraviagem. O segundo foi o ReverendoMackenzie, o atual missionário de Corumane;e o terceiro aquele que ainda hoje prega oEvangelho aos Bamanguatos, o ReverendoEburn - que eu não tive a honra de conhecer,por estar ausente em viagem de missão, mascujas qualidades pude apreciar pelas suasobras que vi, como pelo respeito que lhetribotam indígenas e europeus. É com o maior prazer que cito estes nomesdignos e merecedores de serem apontadoscomo exemplos aos trabalhadores dacivilização africana É tanto maior a minhasatisfação, fazendo-o, que não conheçopessoalmente nenhum destes distintoscavalheiros. Shoshong (Xoxom) é a capital do Manguato. Ovale de Letlotze alarga para o sul, tomandouma largura de três milhas e continuando a ser

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enquadrado por altas montanhas. É no vale,encostada às montanhas do Norte, que assentaa cidade dos Bamanguatos, cidade populosa de15 mil almas, e que em tempos do pai de Camachegou a contar trinta mil. As montanhas rasgam-se ali para deixar passaruma torrente que se forma nos temposchuvosos - e que divide um bairro da cidade. Éno fundo dessa garganta, mesmo por baixo dasaltas montanhas de rochas áridas, cortadas apique, que os missionários estabeleceram assuas vivendas. O lugar foi pessimamente escolhido, porque éúmido e insalubre. Provavelmente, a falta d’água (falta d’água,que se faz cruelmente sentir em Shoshong)determinou aquela escolha, fazendo aproximaros missionários ao leito do ribeiro, onde naestação seca alguns poços fornecem água àpopulação sedenta da cidade de Cama. As casas em Shoshong são construídas decaniço e colmo, são cilíndricas com tetoscônicos. Estão divididas por bairros, e um

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labirinto de ruas estreitas e tortuosas lhes dáacesso. No bairro missionário existem as ruínas dacasa do Reverendo Price, a casa do ReverendoMackenzie, muito deteriorada, onde eu habitei,e a igreja abandonada - por ser pequena paraconter a multidão que concorre aos ofíciosdivinos. Isto a oeste, ou na margem direita do córrego.A leste, ou na margem esquerda, umaedificação nova, melhor situada do que asoutras, é a residência do atual missionário.Todas estas edificações são de tijolos com tetode ferro estanhado.

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Do lado oposto da cidade, em planície livre,está situado o bairro europeu, e as casas detijolos mostram as moradas dos negociantesingleses. Numa dessas casas, a de Mr. Francis,há um poço que fornece água à colôniabritânica. Os ingleses em África não são como os povosdos outros países, e por isso vão mais longe doque eles, ainda que o seu temperamento e a suaíndole estão muito longe de igualar a dospovos da raça latina - em boas condições pararesistir ao clima e associar-se ao gentio. Um inglês decide ir negociar para o sertão.Mete em um wagon toda a família e todos oshaveres, e parte. Chega, edifica logo uma casa, rodeia-se detodas as comodidades que pode ter, e dizconsigo: “Eu vim aqui para fazer fortuna, e se anão fizer em toda a minha vida, tenho depassar aqui essa vida. Procuremos pois passá-la bem.” . .

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Não pensa mais na Inglaterra, esquece opassado e olha só para o presente e para ofuturo. Nostalgia nenhuma tem. Outros há, e muitos, de classe inferior, que nãoquerem mesmo voltar à pátria - e que seestabelecem logo para sempre. Nisto consiste a sua força colonizadora. Outracoisa que os ingleses fazem logo é introduzir alibra esterlina em toda a parte. Chega um indígena com marfim, peles, penas,ou outro gênero do comércio, e quer pólvora,armas, etc. Os ingleses não entendempermutações diretas. Dão-lhe o valor em libras,e vão vender-lhe - ao outro lado do armazém -o que o gentio carece. Ao princípio custa, mas o indígena vai-sehabituando, vai conhecendo a vantagem dodinheiro - e depois já não quer outra coisa. Onegociante, assim, sabe bem o negócio que faz.Há no Manguato um negociante inglês, de queterei que falar muito adiante, Mr. Taylor, que jáchegou a introduzir em Shoshong o papel de

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crédito. Letra passada por ele é recebida pelochefe Cama e por muitos gentios ricos. Depois deste rápido esboço que acabo de fazerdo Manguato, não posso deixar de falar naminha posição em Shoshong, que eraverdadeiramente crítica. Tinha a fazer uma grande viagem paraalcançar Pretória, o ponto mais próximo ondepoderia alcançar meios de uma autoridadeeuropeia; tinha de pagar dívidas já feitas com asustentação da minha gente. Estava sem roupa,os meus pretos, cobertos de andrajos, pediam-me algumas jardas de pano para se vestirem - eeu não tinha dinheiro algum. M. Coillard oferecia-me a sua bolsa, mas bemprecisa lhe era ela para que eu ousasse aceitá-la. Queria mesmo saldar algumas dívidas quecom ele contraíra, por saber que ele tinha afazer ainda uma longa viagem, e não lhesobejarem os meios. O meu embaraço era grande, e tristíssima aminha posição. .

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Eram estas as minhas circunstâncias, quando,no dia 8, acompanhei Madame Coillard a fazeruma visita à família Taylor. Mr. Taylor tem sido um grande viajante, jáesteve no Zambeze, conhece todo o Transvaal,a Colônia do Cabo - e todos os países do sul daÁfrica. Estabelecido definitivamente no Manguato, asua casa é uma das primeiras casas comerciaisde Shoshong. Só em marfim a sua exportaçãoorça por trinta mil libras por ano. Mr. Taylor éhomem sério e de grande crédito. Mr. Taylor era casado, havia três anos, comuma joven e formosa inglesa, de cabelos eolhos pretos. Dotada de uma educaçãoesmeradíssima, Madame Taylor embalsama oambiente que a cerca com esse perfume queenvolve toda a mulher de sociedade. Junto dela, nesse dia, cheguei a esquecer-me deque estava no remoto sertão africano, para mejulgar transportado a um salão do West-End,em Londres. .

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A conversação estabeleceu-se entre mim,Madame Taylor, Madame e MademoiseleCoillard, e veio-a pelo falar-se da minhapróxima viagem. Disse-se que me era impossível viajar naquelepaís sem um cavalo, e a propósito disso, Mr.Taylor convidou-me a ir ver os seus. Chegadosà cavalariça, ele apontou-me para ummagnífico corredor do deserto, castanho clarocom crinas pretas, e disse-me: “Eis o cavaloque lhe convêm para viajar e caçar.” Eu conheci logo o grande valor do animal, quepelas cicatrizes miúdas e redondas assinaladassobre os curvilhões, me mostrava ter tido ahorse-sickness, e estar por isso imunizado,sendo o que ali se chama um cavalo salé. Asoutras qualidades eram reveladas pelas pernasfinas e nervosas, apresentando umamusculatura desproporcional, pescoço longo epouco guarnecido de crinas, olhar vivo einteligente, cabeça seca e elegante - eabundantíssima cauda. Ficaram-me os olhosnaquele belo animal, e triste disse a Mr. Taylor

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que não tinha dinheiro para lhe pagar. “Yes,me disse ele, it is a valuable horse”(Efetivamente, é um cavalo de grande valor). Voltamos à sala, e eu não pude deixar de falaràs damas do formoso animal que acabava deexaminar. Pouco depois voltávamos a casa, e pelocaminho Madame Coillard mostrava a maioraflição pela minha falta de recursos, enquantoMr. Coillard redobrava de oferecimentossinceros da sua já magra bolsa. As noites que passávamos na casa doReverendo Mackenzie eram horríveis. Aquelacasa desabitada há muito, estava cheia deinsetos asquerosos - que nos sugavam osangue, roubavam o sono, deformavam asfeições e atormentavam a paciência. Erammilhões de carrapatos e milhões de percevejos. Uns carrapatos semelhantes aos dos cães no sulda Europa, castanhos e chatos, mas que depoisde saciados tomavam a forma esférica e umacor esbranquiçada, produziam inflamaçõeshorríveis no lugar onde mordiam. Era um

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suplício indescritível aquele. Depois de umadestas péssimas noites, Madame Coillardtinha-me mandado chamar para o almoço, e jáíamos para a mesa, quando se fez anunciar Mr.Taylor. Dirigiu-se a mim, e com esse ar frio e seriedadede todo o legítimo inglês, disse-me que mevinha trazer o cavalo castanho que eu tinhaadmirado na véspera, duzentas libras queeram todo o ouro que naquele momento tinhaem caixa - e me oferecia ainda o seu crédito,tanto junto dos outros negociantes doManguato, como em Pretória, se eu carecessedele. Declaro que caí das nuvens com taloferecimento, nem de leve solicitado, e queapenas pude balbuciar algumas palavrasbanais de agradecimento - de tal modo fiqueicomovido. Mr. Taylor almoçou conosco, e em seguida euacompanhei-o a sua casa. Montava já o soberbocavalo, e sentia essa sensação de prazer quetodo o cavaleiro sente ao montar um formoso

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animal, sobretudo quando está privado desseprazer há muito tempo. Falamos largamente dos meus negócios, e eunão aceitei o dinheiro, contentando-me com ocavalo que me era muito preciso, e admitindoque ele pagasse as minhas dívidas já contraídasem despesas de viagem, que montavam a centoe oito libras - e sacasse sobre mim em Pretória,onde contava haver dinheiro do governoinglês. Mr. Taylor, por um requinte de delicadeza,sacou a dois meses de vista sobre o meu aceite,que devia ter lugar em Pretória. A 10 de janeiro, acabava eu de pôr em dia osmeus trabalhos e preparava-me para a partida. Não posso deixar de citar aqui os nomes deMr. Benniens, Mr. Clark e Mr. Musson, que medispensaram os maiores favores e coadjuvarama minha partida - estando eu certo de que, semo anticipado cavalheirismo de Mr. Taylor, teriaencontrado neles o apoio monetário de quecarecia. .

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Em vista dos favores que ali recebi deestranhas gentes, não pude deixar de lançarum golpe de vista ao passado, e recordar-mede Caconda e do Bihé. O paralelo que estabeleci entre o apoio queencontrei nos sertões concorridos porportugueses e ingleses veio, mais uma vez,confirmar a minha opinião sobre a qualidadedas gentes que de Portugal vão aos sertõesafricanos. Tenho viajado muito e conheço muitos povos.Nenhum vi ainda tão hospitaleiro e tãobondoso como o português. Quantas vezes, nas minhas caçadas, eu tenhoido bater às portas dos aldeões das nossasserras, e sempre as tenho visto abrir de par empar ao forasteiro que pede um abrigo. O pobrealdeão reparte com o hóspede o melhor da suaceia, e da enorme caixa enfumada sai o melhordo seu bragal para a cama do desconhecido.Subindo da cabana do povo rude às casarias dolavrador abastado - e daí às habitaçõessolarengas -, em todas vemos revelada a

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hospitalidade portuguesa numa simplesindicação: todas têm os quartos para hóspedes.Quando um português edifica uma casa, nãopensa só na família e nos seus, pensa tambémno forasteiro que lhe pode vir pedir abrigo, eedifica para ele. É que, para o português, oestranho que chega é recebido como família -na choupana do pobre e no palacio do rico.Este traço na vida material de um povo queedifica contando com o hóspede, define a suahospitalidade. É por isso que grito bem alto,que não são portugueses os homens que mereceberam mal em Caconda e no Bihé. É porisso que eu reprovo acerbamente o sistema demandar para as colônias o que há de maisbaixo, vil e ignóbil entre os criminosos daMetrópole. É ali que está uma das causas maisdeterminantes do atraso de muitas das nossasricas possessões. Ali está o escolho em queesbarra muitas vezes a ação do governo. Em Caconda só encontrei estorvos à minhaviagem. No Bihé esses estorvos recresceram, enão se limitaram a exercer uma ação local:

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acompanharam-me até ao Zambeze. Ali noManguato só encontrei boa vontade, sóencontrei auxílio - e era quem mais podia fazerpor mim. Isto não se comenta. Durante a minha estada em Shoshong, era ali aordem do dia a morte do Capitão Paterson edos seus companheiros no país do Matebeli. Corriam versões diferentes, mas todasconcordes em que eles foram assassinados porordem de Lo-Bengula. O Capitão Paterson saíra de Pretóriaencarregado de uma missão oficial junto avários régulos africanos - missão de queinvoluntariamente tive conhecimento por umdestes com quem ele tratou, e sobre a qualguardo a maior reserva, pelo respeito que memerecem todas as missões particulares dosgovernos. Acompanhava-o Mr. Sergeant ealguns serviçais, e no Matebeli reunira-se Mr.Thomas, joven inglês, filho de um missionáriohá muito residente no Matebeli - e ele mesmonascido ali. O Capitão Paterson, depois detratar o que tinha a tratar com Lo-Bengula,

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decidiu ir ver a maravilha africana, a cataratade Mozioatunia. O joven Thomas pediu licença ao régulo paraacompanhar aquela expedição, licença que lhefoi concedida. Na véspera da partida porém, um dosfavoritos do régulo foi procurar o moço inglês,e disse-lhe em nome do seu chefe, que nãoacompanhasse o Capitão Paterson. Mr. Thomas foi procurar Lo-Bengula, eperguntar-lhe porque lhe negava a permissãoantes concedida. Lo-Bengula respondeu-lhe, que ele tinha sidocriado pelos Matebelis, e por isso era queridocomo um filho da tribo. Que tinha um pressentimento de que algumadesgraça poderia acontecer àqueles ingleses - epor isso o aconselhava a ficar ali e a deixá-losseguir sós. Mr. Thomas disse-lhe, que não seimportava com os pressentimentos, e foi. Não devia voltar como os outros dois ingleses.O que se passou? Quem o saberá? Só o terrívelLo-Bengula.

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Uns diziam que foram envenenados, outrosmortos a tiro - mas eu, que conheço o sistemados grandes potentados africanos, duvido deque alguma coisa certa se possa saber jamais,porque eles matam logo os executores das suassinistras ordens, e fecham o segredo dos seuscrimes em novas sepulturas. Tudo quanto se dizia para provar uma ououtra opinião eram razões, talvez plausíveis,para quem não conhecesse a África; mas paramim não. Diziam, por ex., que os Macalacas que, porordem de Lo-Bengula, os tinhamacompanhado, apareceram depois com galõese outros objetos furtados aos ingleses, o queprovava que houvera assassínio e roubo. Isto não provava nada - porque, se elestivessem morrido de morte natural, as suasbagagens seriam logo saqueadas. Diziam, outros, que faltando a água, o chefe dacaravana Matebeli fora explorar terrenosozinho - e voltando muito tempo depois,indicara um pequeno charco pouco distante, e

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que o Capitão Paterson ao beber daquela águadissera, “estou envenenado.” Quem veiocontar isto, se ninguém da gente delesescapou? Notícias de origem Matebeli diziam, que elestinham bebido água de uma lagoanaturalmente envenenada, e por isso tinhammorrido todos. Isto é outro absurdo. Toda a água das lagoas africanas é veneno,mas não é veneno que mate num dia como oarsênico e os sais de mercúrio - ou comomuitos alcaloides vegetais. O veneno daquelas águas infiltra-se noorganismo, deteriora-o lentamente, pode matarcom o tempo - porque é o miasma palustre enão outra coisa. Mas não destrói a vidaalgumas horas depois de absorvido, e casoproduzisse esse efeito em uma organizaçãoespecial, não o produzia decerto em tantagente. Assim, pois, é também inverossímel aversão do envenenamento natural. . .

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Outros afirmavam que eles foramtraiçoeiramente fuzilados; alguns diziam, queforam mortos a azagaias. Quem trouxe a nova? Parece que houve crime, porque não é possívelque a febre matasse num dia tanta gente, eentre ela, gente aclimada no país, como o jovenThomas e os indígenas; parece que houvecrime, mas se o houve o segredo ficará entreDeus e Lo-Bengula. Um dos viajantes africanos que me merecemais crédito, M. François Coillard, que aindase demorou muito em Shoshong depois daminha partida dali, assegurou-me na Europa,muito tempo depois, que o rei Cama conheciao segredo da morte daqueles infelizes - edeixou-me perceber que um crime horrorosofora praticado por ordem do malvado Zulu. A 11 de janeiro, havia na casa derrocada quehabitávamos um labutar incessante. EramMadame e Mademoisele Coillard a preparar-me provisões para a viagem. Faziam biscoitoscom pródiga largueza. .

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Como poderei eu jamais agradecer tantosfavores? Naquele dia também recebi presentesde Madame Taylor. Um grande cesto de cakese um cestinho de ovos, coisa bastante rara emShoshong. No dia imediato estava pronto apartir, mas decidi seguir viagem no dia 14, nãoquerendo deixar Shoshong a 13. Eu não tenho preconceitos, nem antipatias comnúmeros - mas dessa vez o embirrar com o 13foi desculpa dada a mim mesmo, para medemorar mais um dia com essa boa família aquem tanto devia. Pude ali alcançar alguns cobertores de peles,daqueles que os Bamanguatos fazem para seuuso, e que são cosidos com nervos de antílopes. Pelas minhas observações, achei uma diferençaenorme na posição de Shoshong - marcada emuma carta de Marenski que M. Coillardpossuía. No dia 13 fiz as minhas despedidas aosnegociantes ingleses, excetuando Mr. Taylor -que estava ausente a seis milhas de Shoshong,no seu posto de gado.

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Apesar do meu caminho ser ao sul, e o postode gado de Mr. Taylor ao norte, decidi ir lá nodia 14 fazer as despedidas a quem tanto meobrigara. Efetivamente, neste dia de manhã, segui paralá. As damas Coillard e Madame Clarkpartiram adiante em uma carriola puxada pordois cavalos. Eu saí muito depois, emcompanhia do régulo Cama e de M. Coillard. Eu, nesse dia, tinha de fazer a primeira jornadano caminho de Pretória - e essa jornada era dedoze milhas - para poder alcançar águapotável, o que, com outras doze que eu iaandar de manhã, perfazia um total de 24, o queé um pouco forçado naquele clima. Seguimos pois, acompanhados de dozecavaleiros Bamanguatos. Logo que deixamos as ruas da cidade, o chefeCama deu de esporas ao cavalo e partiu, mãobaixa. Depois de uma corrida vertiginosa demeia hora, passou ele ao galope. Perguntei-lhepara que era aquela pressa - e ele respondeu-me que era assim que se andava no Manguato,

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e que os cavalos descançavam bem no galope,para darem outra corrida. Disse-lhe que tinha razão, mas que o meucavalo tendo de fazer uma grande marchanesse dia, talvez não entendesse isso como ele.Que não queria ir de encontro aos hábitos doscavaleiros Bamanguatos, mas que me desse eleum dos seus cavalos - e mandasse o meu paraShoshong, onde eu o encontraria fresco para ajornada desse dia. Mandou Cama logo apear um dos seus, quevoltou à cidade com o meu Fly, enquanto eumontava uma égua magnífica que ele deixava. Seguimos a toda a brida, e daí a poucoestávamos no posto de Mr. Taylor. Tínhamos gasto cinquenta e cinco minutos!Madame Taylor fez-nos servir um magníficolunch, e depois das mais cordiais despedidasvoltamos a Shoshong. O sistema da volta foi o mesmo da ida: brida edescansar no galope! Os Bamanguatos não usam freios nos cavalos,e apenas os dirigem com um bridão inglês.

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Dizem eles que os freios e as barbelas nãodeixam correr os cavalos. Chegamos em ummomento a Shoshong. Stanley estava pronto a partir, e só esperava omeu sinal. Dei-lhe esse sinal, e ele fez estalar olongo chicote por sobre as cabeças dos bois,que se puseram lentamente a caminho,arrastando o pesado wagon. Com ele foram os meus pretos, à exceção deAugusto e Pepéca, que ficaram comigo. Passeiainda algumas horas com as damas Coillard,mas era forçoso deixá-las, e fazendo soberanosesforços para ocultar a minha comoção, disse-lhes um último adeus, saltei sobre o cavalo eparti. Tive a coragem de não me voltarenquanto as podia ver! O sol desaparecia já no horizonte quandodeixei Shoshong. Segui o caminho que me foiindicado e, três horas depois, entendi queestava no ponto onde devia pernoitar - mas owagon não aparecia. Era tarde da noite, e noitede trevas profundas. .

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Chamei, gritei, e ninguém respondeu. Poucosmomentos depois, apareceram-me doisindígenas. Eram sentinelas de Cama, quereceoso de um ataque noturno dos Matebeles,guardam a sua cidade com uma linha contínuade guardas a muitas milhas de distância. Estão,estas atalaias, tão bem dispostas que podemsoccorrer-se e fazer um momento face aoinimigo, enquanto alguns homens correm àcidade nos ligeiros cavalos, a dar o alarme. Os dois homens que me apareceram acabavamde rondar os postos do sul, e afiançaram-meque, havia muitos dias, nem um só wagontinha tomado aquele caminho - asseverandoque eu devia ter passado pelo meu antes dechegar ali. Estava muito habituado à vida das florestaspara que passasse, mesmo nas trevas, pelowagon sem o ver - e se me escapasse a mim,não escaparia ao meu Pepéca, que tem olhos delince. Os dois Bamanguatos propuseram-me oacompanhar-me a buscar o wagon e partiram

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comigo. Depois de explorarmos uma grandeparte do vale sem encontrarmos vestígios dacarroça, caímos de novo em Shoshong,desesperados, acabrunhados de fadiga - e sempoder explicar o caso. Eram altas horas; quefazer? Resolvi ir bater à porta de M. Coillard eesperar o dia. M. e Madame Coillard levantaram-se logo, eenquanto eu narrava o acontecido aomissionário, Madame Coillard só pensava emme dar de comer e em me preparar boa cama. Eu até ali, como depois, dormia sobre a terraem umas peles, a despeito dos esforços deMadame Coillard em me querer dar umacama. Como as minhas peles tinham partidono wagon, ela nessa noite aproveitou o ensejode se vingar da minha relutância, e fez-me umacama europeia. Não pudemos decifrar o enigma, e reservamospara o dia seguinte o desvendar o mistério dodesaparecimento do meu Stanley. Eu, quebrado de fadiga, fui dar boa ração aocavalo - e caí extenuado no leito. Apesar do

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cansaço, não pude conciliar o sono, porqueuma ansiedade horrível me confrangia ocoração. Como já disse, encontrei uma grande diferençana posição de Shoshong em longitude, e todasas minhas observações eram cronométricas ereferidas à última observação que fiz do eclipsedo primeiro satélite de Júpiter. Essa posiçãonova só me podia ser confirmada, por um novocotejamento dos cronômetros em longitudedeterminada - e esses cronômetros, que eu nãosabia onde estavam por ignorar onde estava owagon, iam parar no dia seguinte por falta decorda. A poucos será dado compreender o queeu sofri com esta ideia. . . . . . . . .

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Capítulo V De Shoshong a Pretória Catraio—Aparece o wagon—Despedida de M.Coillard—Tempestades—O wagon tombado—Trabalhos de novo gênero—Chuvas—O Limpôpo—Fly—Caçadas—No Ntuani—Um Stanley que nãopresta—Augusto furioso—Adicul—Os leões—Stanley desanima—Os Böers nômades—Novowagon—Peripécias—Doenças graves—UmCristophe de mil diabos—Madame Gonin—Oúltimo túmulo—Magaliesberg—Pretória. Mal se adivinhava o alvorecer da manhã, e jáeu estava a pé e vestido. Os cronômetros nãose me tiravam da ideia, e a preocupação eragrande e motivada. M. Coillard participava domeu sobressalto, e não me quis deixar partirsozinho. Mandou pedir um cavalo ao reiCama, e seguiu comigo no rasto do wagon. Tive de fazer novas despedidas às damasCoillard, e novamente senti os desgostosdaquela separação. . .

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Em breve eu e M. Coillard deixávamosShoshong, e nos internávamos no esteval* quecobre os campos ao sul da cidade. * A esteva é um arbusto aromático. Seguíamos o rasto do pesado carro, quandomui próximo divisamos um negro sentadojunto ao caminho. Ao acercar-nos dele euconheci-o. Era o meu moleque Catraio.Caminhou para mim, trazendo nas mãos umobjeto volumoso, e ao abeirar-me, disse-me,“Sinhô, dê cá as chaves para tirar os relógiosda mala, que são horas de dar corda.” Exultei ao ver a mala dos instrumentos, ondeestavam os cronômetros, e sem pedir aomoleque explicações do desaparecimento dowagon, saltei do cavalo e entreguei-me àsminhas observações matinais quotidianas.Estava escrito que durante a minha longajornada os meus cronômetros não teriamnunca de parar! Catraio, sempre vigilante poraquela obrigação, velava por eles. O missionário ficou surpreendido com ocuidado do preto. Ali, como em Embarira,

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Catraio tinha impedido os cronômetros depararem, como durante as minhas mais gravesdoenças o tinha feito. Catraio fora educado por um português, quedesde pequeno lhe conheceu a bossa davelhacaria - e que teve o cuidado de lhadesenvolver à pancada. O moleque, perdida a vergonha - que talveznunca teve -, em breve perdeu o medo aocastigo e fez-se bêbado e ladrão. Seu amo, a quem ele chegou a fazer um rouboimportante com arrombamento de um cofre -isto aos doze anos -, decidiu desfazer-se delepara sempre, e mandou-o deitar à margem emNovo-Redondo. Quando em Benguela eu procurava ummoleque inteligente e ladino para o meuserviço particular, mais de uma pessoa mefalou em Catraio, que a fama das tratantadastornara conhecido. Dirigi-me ao que fora seu amo, e consegui queele o mandasse buscar a Novo-Redondo. Aover a fisionomia expressiva e inteligente do

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preto, fiquei satisfeito com o passo que derachamando-o a mim. Catraio até ali tinha sidolevado à pancada; eu resolvi tratá-lo por bonsmodos. Nunca lhe falei na sua vida passada,nunca lhe fiz uma recriminação. Sendo ele o preto mais inteligente de todosaqueles que me cercavam, eu incumbi-o de meajudar nos meus trabalhos científicos. Catraio,que não sabia ler ou escrever, conheceu empouco tempo todos os meus instrumentos etodos os meus livros. Quando, separado dosmeus companheiros, me vi sozinho em África,tive uma grande apreensão, lembrando-meque, durante uma doença, os meuscronômetros poderiam parar. Chamei oCatraio e fiz-lhe o seguinte discurso edificante: “Fica sabendo que de hoje em diante, todos osdias, logo de madrugada, tu tens de teapresentar diante de mim com os cronômetros,termômetros, barômetro e caderno diário - istoesteja eu são ou muito doente, longe ou perto,ficando tu na inteligência de que não tensdesculpa nas circunstâncias mais

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extraordinárias, se o não fizeres. Agora escuta-me bem. Nunca te bati como nunca te ralhei,mas, se os cronômetros pararem por falta decorda, eu espeto-te num enorme espeto de pau,e asso-te vivo nas brasas de uma enormefogueira.” Catraio, que não acreditava muito que umbranco fosse bom - e que desconfiava mais dabrandura do meu trato do que das pancadashabituaes -, julgou ter descoberto a minhamaneira de castigar uma falta. E o espeto depau e a fogueira aterraram-no. Começou a trazer todas as manhãs osinstrumentos. A coisa foi passando a hábito, eeis a razão porque, ainda nas minhas maisgraves doenças, os cronômetros tiveram cordae foram comparados. Eis a razão porque emEmbarira, Catraio, com risco de vida, os foiempalmar aos Macalacas; eis a razão porqueainda naquele dia foram salvos de parar,porque ele, vendo que eu não chegara navéspera, mesmo de noite se pôs a caminho eme veio encontrar à hora própria.

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Livre da apreensão que me torturava, tratei deinterrogar o moleque sobre o fato dodesaparecimento do wagon, e soube que oinglês se tinha enganado e tinha tomado umcaminho transversal pelo bom caminho, masque, logo ao alvorecer, partiria e iria esperar-me no lugar ajustado para o encontro navéspera. Eu e M. Coillard seguimos no bomcaminho, e às 9 horas encontramos o wagon. Mandei fazer o almoço, e ao meio-dia separei-me desse homem a quem devia tanta gratidão,e cujos favores são daqueles que não se podemretriboir nunca, porque tudo que por ele eufizesse pesaria, em uma balança justa, muitomenos do que tudo o que recebi dele. Parti imediatamente, e fui acampar às quatrohoras, em lugar sem água. Nessa noite, quandoia a deitar-me, senti o galope de um cavalo,que me chamou a atenção. O meu Flyrelinchava, e os cães ladravam e arremetiampara o lado de Shoshong. . .

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Pouco depois, chegava ao meu campo umcavaleiro Bamanguato e entregava-me umacarta e um embrulho. A carta dizia que fora encontrada em casa aminha espingarda Devisme - e M. Coillardapressava-se em mandar-me. Escrevi-lhealgumas palavras de agradecimento eremunerei o portador, que voltou logo a toda abrida. No dia imediato, 16 de janeiro, parti à umahora da madrugada, alcançando às três horasuma lagoa, única água permanente que existeentre o Limpôpo e Shoshong. Nesse dia ainda fiz duas jornadas, uma de trêsoutra de quatro horas, acampando pelas cincoda tarde. Das quatro às dez da noite a chuvacaiu torrencial, inundou-me o wagon - cujacobertura velha e esburacada nada abrigava -,e causou-me perdas sensíveis, sendo a maior,todo o pão e biscoitos preparados por MadameCoillard, que ensopados na água se tornaramem massa não aproveitável. .

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Na marcha última desse dia tive de alterar omeu rumo que era Sul, e meti a S.E., para evitaros acidentes do terreno, que tornavamdificílimo o rodar do wagon e ameaçavamdespedaçá-lo a cada momento. O wagon deStanley era uma velha carriola, meioapodrecida e desconjuntada - e que a cadapasso parecia querer desfazer-se.

Só às 8 horas do dia seguinte, depois de umajornada de três horas, entrei no meu rumo,voltando ao caminho abandonado na véspera.O terreno continuava acidentado, mas erapreciso seguir nele.

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Ao descer uma eminência, as rodas de um ladodo wagon entraram num sulco profundo, e owagon tombou, ficando encostado a duasárvores que lhe ampararam a queda. Eu jádesconfiava que o meu Stanley não prestavapara nada, mas tive a convicção disso noprimeiro embaraço que encontramos. Ohomem, ao ver o wagon tombado, sentou-se,fechou as mãos na cabeça e julgou-se perdido. Mandei desjungir os bois, e fui estudar amaneira de levantar o carro sem o despedaçar.Augusto, Veríssimo e Camutombo foramcortar três fortes e compridas estacas, queamarrei ao wagon e por meio de cordas.Dando voltas às árvores do outro lado,consegui sustentá-lo na sua posição natural,empregando para isso apenas uma junta debois. Em seguida, enchi o sulco com paus efolhagem, para que as rodas daquele ladopudessem descansar ao mesmo nível das dooutro lado. Este trabalho durou mais de quatrohoras, e quando consegui pôr o wagon em

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estado de rodar e mandei jungir os bois, aoprimeiro esforço que eles fizeram, a correntetirante partiu-se em bocados. Nova demora, novo trabalho a ligar os elos dacorrente partida com tiras de couro de girafa,isto debaixo de uma chuva torrencial - e o meuStanley sempre pasmado e sem saber o quehavia de fazer. Consegui partir às três horas e meia, mas tiveque parar logo depois, porque o temporalrecresceu, e o terreno argiloso encharcado nãopermitia o rodar do wagon, que, muito abaladopela queda, se desfazia em pedaços. Atempestade foi horrível até às 10 horas danoite, e, durante duas horas, os raios caíammuito próximos, lascando as árvores dafloresta. O terreno, sempre acidentado, écoberto de mata espessa, que vegeta num solode argila muito plástica. . . . .

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No dia 18, parti às seis da manhã, e meia horadepois entrava numa planície completamenteencharcada e onde as rodas do carro seenterravam na argila até os cubos. Fazia-se umquilômetro por hora naquele terreno difícil. Às 10 horas, pude alcançar uma pequenaeminência mais enxuta, onde parei. Estavajunto à margem esquerda do Limpôpo,conhecido ali pelo nome de “Rio dosCrocodilos”. .

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Fui logo ao rio, que tem ali 50 metros de largo,com uma corrente de 30 metros por minuto.Não tinha meio de lhe avaliar a profundidade. O tempo tinha melhorado, e eu, ao deixar o rio,segui paralelamente à margem, deixando Fly ira passo, as rédeas largas e pendentes. De repente, o meu fino cavalo fitou as orelhas,relinchou e precipitou-se de um salto no meiodo esteval - começando em uma carreiradesenfreada. Sem saber explicar o caso,sobresaltei-me e tentei sustê-lo, mas ele nãoqueria obedecer ao freio. Nada tranquilo - e pensando que o nobreanimal fugia por evitar um perigo -, estavaperplexo, quando percebi diante de mim umrumorejar nas estevas, e vi os cornos retrocidosde alguns ongiris. Percebi tudo: eu não fugia, perseguia. Desdeesse momento comecei a ajudar o cavalo, queganhava terreno sobre os ligeiros antílopes. Quanto tempo durou aquela corridavertiginosa não sei. Passei matas, onde ficaramos restos dos meus andrajos, com alguma pele

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do meu corpo, passei clareiras e planícies, ondeos antílopes e cavalo se atascavam em lodo. Ocavalo ganhava terreno, mas lentamente, sótarde me acerquei dos ongiris e pude atirar-lhes. Um caiu, e os outros seguiram maisligeiros ainda, instigados pelo medo que lhescausou o estampido do tiro. Fly parou, e foi cheirar o animal, que seestorcia nas vascas da morte - com o mesmoprazer com que o faria um cão de caça. Onde estava eu? Onde me ficava o wagon?Não o sabia, porque não sabia a que rumostinha andado. Isso preocupava-me um pouco,mas eu lembrei-me de caminhar a leste atéencontrar o Limpôpo. A esse tempo, um enorme temporal caiu sobremim. Era-me impossível carregar o antílopesobre o cavalo, porque não tinha força paraisso. Decidi abrí-lo, e tirar-lhe os intestinos, aver se então o poderia elevar do solo. Bastante prático no serviço de magarefe, embreve concluí aquele trabalho. .

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A minha esperança não foi perdida, e pude,ainda que a custo, guindar o animal sobre oarção, onde o amarrei.

Pus-me a caminho para leste, mas Flyembirrou em querer caminhar ao norte, ecomecei a pensar que talvez o cavalo tivessemais razão do que eu, e deixei-o tomar aquelerumo. Uma hora depois avistava o wagon,onde a minha gente não estava sem receios,pela demorada ausência que tive. Era já tarde, e estava extenuado de fadiga. Porisso decidi ficar naquele ponto. Ao anoitecer,

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apareceram ali uns pretos do régulo Seshelique iam a Shoshong, e por eles escrevi aomissionário Coillard, a prevení-lo do mauestado dos caminhos, e a dizer-lhe que nãoseguisse o meu rumo. Durante a noite caiu uma horrorosatempestade, e de novo ficamos encharcados.Apesar disso, a fadiga do dia trouxe o sono edormi profundamente, para acordar com umador horrível no sangradouro do braço direito.Levantei a manga da camisa, e fiquei trêmuloao ver um enorme escorpião negro que mepicara o braço naquele ponto mesmo, sobre aartéria braquial. Era impossível escarificar semferir a artéria, empregando para isso a mãoesquerda, com a qual sou pouco jeitoso, e oreceio de agravar a situação fazendo algumdisparate, levou-me a decidir não fazer nada.Em poucos minutos a inchação era enorme e asdores violentíssimas. No maior desespero,tomei três gramas de hidrato de cloral* e caíem modorra. * Sedativo e hipnótico potente.

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Era alto dia quando saí daquele sono,provocado pelo poderoso anestésico. As dorestinham abrandado, e só existia uma inflamaçãolocal, com um tumor do tamanho de umaervilha no lugar do ferimento - tumor que sódesapareceu meses depois. A inchação dos tecidos era grande, e tolhia-meos movimentos. Apesar disso, ainda fui caçarneste dia, e tanta caça encontrei que resolvificar ali. Matei dois leopardos. A noite foi de tempestade, e os insetostorturaram-me. Alguns leões rondaram ocampo, e fizeram-nos estremecer com os seusrugidos estridentes. Seguimos às 8 horas do dia 20, mas o terrenoargiloso, encharcado da chuva, pegava-se àsrodas do wagon e formava blocos que asimpediam de girar, sendo a cada momentopreciso removê-los a machado. Foi um fadigante labutar, e às 10 horas parei,porque estávamos todos extenuados de fadiga.A chuva caía forte, e só pudemos de novo pôr

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a caminho o wagon às 2 horas, parando às 4 emeia junto do rio Ntuani. Ao chegar ali, uma triste decepção nosesperava. O rio Ntuani, que é um riacho semimportância e quase sempre seco, tinha 60metros de largo, e deu-me, nas sondagens quefiz junto à terra, 7 metros de profundidade. Impossível era atravessá-lo com um wagon,antes de muito tempo. Tratei, pois, de acampar ali, e construí para issoum bom acampamento de barracas cobertas deerva. Havia muitos dias que eu andavacompletamente molhado, mas felizmente aminha saúde não se ressentia disso. A nossa posição era melindrosa, porquetínhamos falta de víveres, e havia já dois diasque estávamos reduzidos a uma alimentaçãopuramente animal, e so tínhamos para comer acarne da caça que eu matava. Não havia perigo da fome, e eu não receavadela em país de caça como aquele; mas comer

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só carne assada, sem sal nem outrocondimento, é duro e pouco higiênico. O tempo melhorou um pouco, e eu pudecontinuar caçando. Um inglês, em Shoshong,dera-me muitos cartuchos das armas Martini-Henry, que serviam perfeitamente na Carabinad’El-Rei, e eram os que eu então empregavacom grande resultado. Tínhamos carne emabundância, mas eu ja não a podia suportar. Fazia uma nova coleção de peles, e a facilidadeque me oferecia o wagon para o transportedelas, como a nenhuma necessidade que teriade as vender, deixáva-me a esperança de queestas chegariam à Europa. Na manhã de 21, vi com prazer que o riobaixara trinta centímetros durante a noite.Comi uma perna de puti (cephalophus mergens),saltei sobre o meu Fly, e parti para a caça. Naorla de uma mata marginal do Ntuani, o meunobre cavalo começou num correrdesenfreado. Eu já sabia que ia em perseguiçãode caça, mas não via nada. .

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Corri assim por meia hora, e só então avisteipor sobre os arbustos do matagal unspequenos pontos negros que se moviam comrapidez prodigiosa. Era novo para mim o animal que perseguia, esó numa clareira me pode ser a verdaderevelada. Quatro avestruzes fugiam diante domeu Fly, que nem um só momento lhe perdia apista, apesar das voltas furtivas que davam. Entramos em planície descoberta, e ali comeceia tomar um verdadeiro interesse naquelacaçada de novo gênero. Fly era o meu mestre. Abandonei-lhe o freio,tomei as rédeas do bridão, e deixei-o ir. Ovalente animal agradeceu-me o alívio que lhedava com um relinchar de alegria, e seguiumais rápido. As avestruzes, ainda que podendo produziruma carreira mais veloz do que o cavalo, não apodem sustentar como este, e param amiúde.Era isso que me fazia ganhar terreno sobre asligeiras aves. Algum tempo depois já não erapreciso mais do que o galope para as

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acompanhar, e chegaram a parar a sessentametros de mim. Estavam alcançadas, e naprimeira corrida poderia atirar-lhes. Assim foi, e pouco depois a Carabina d’El-Reifazia ecoar na planície o estampido da suadupla descarga. Junto das enormes aves estava eu perplexo, esem saber o que fizesse, deixava pastar o meunobre cavalo, quando me apareceram Augusto,Veríssimo e Camutombo - que andavamcaçando também e ouviram os meus tiros.Disseram-me eles estar perto o acampamento,e por isso mandei depenar cuidadosamente asavestruzes, e esperei o fim daquele trabalhopara voltar com eles ao wagon. Ao chegar ali, verifiquei que o rio tinhadescido setenta centímetros. Ainda nesse dia,até á noite o nível da água baixou de quarentacentímetros - o que perfazia desde a véspera 1metro e 40 centímetros. Eu punha as minhas marcas num ponto onde aescarpa vertical me permitia medir asdiferenças de nível, mas o meu Stanley não

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entendia assim, e espetava paus num lugar emque a barreira descia com inclinação suave, oque dava em resultado ele contar jardasquando eu contava centímetros. A cadamomento ele vinha muito contente dizer-meque o rio tinha baixado dois pés. O dia 23 amanheceu bonançoso e límpido,prometendo muito, porque o rio baixou doismetros e meio durante a noite. Senti logo demanhã uma grande gritaria, e indagando ocaso, soube que haviam desaparecido as botasdo meu inglês, que se achava descalço. Depoisde várias conjecturas sobre aquele importantefato, ele chegou à conclusão de que os jacaréslhe tinham furtado as botas e os haviamcomido. Eu nunca pude explicar o caso, masele explicava-o assim. O fato era que o pobre homem tinha decontinuar descalço e, eu nada lhe podia fazer,porque além de as minhas botas serempequenas para o seu enorme pé, só tinha umpar também. .

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Passei o dia caçando, e à noite pude fazerobservações astronômicas, e determinar aposição da confluência do Ntuani com oLimpôpo. Durante esse dia o nível da água baixou de 1metro e 60, mas durante a noite conservou-seestacionário, e tendo chovido na madrugadade 24, receei nova enchente. Muitas vezes ouvia M. Coillard narrativas de casos idênticos aomeu, em que um wagon tinha de estacionarjunto a um miserável ribeiro (tornado soberbocom as chuvas), por um mês e mais. Essa ideia aterrava-me, e resolvi estudar o rio,a ver se seria possível a passagem do wagon.Achei efetivamente um ponto onde a água medava pelo pescoço em toda a largura, edeterminei passar ali. Stanley, já habituado com o meu modo dedecidir questões, começava a não achar nadaextraordinário. Assou-se muita carne, e almoçamos. Quandoestávamos a terminar o almoço, ouvimosgrande alarido na margem oposta, e vimos que

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chegava um comboio de wagons e doishomens brancos. Pus-me a observar o que eles faziam, e vi quedepois de mandarem um moleque meter-se norio, moleque que voltou à margem logo que aágua lhe cobriu a cintura, contentaram-se deespetar pauzinhos para marcar o nível da água,desjungiram os bois, e acamparam. Olhei para as minhas marcas e vi-as cobertascom um centímetro de água. O Ntuani cresciade novo. Descarreguei imediatamente o meuwagon, e mandei Augusto e Camutombopassar as cargas, à cabeça, no lugar onde eureconhecera o vau. Os meus dois pretos pela sua força hercúlea, epela destreza adquirida no hábito de superardificuldades, faziam a admiração dos doisbrancos e dos negros que os acompanhavam. Uma hora depois, estavam todas as cargas namargem direita, e eu dava ordem a Stanley,espantado daquilo tudo, para jungir o gado. Logo que tudo esteve pronto, fiz que Augustose metesse através do rio, levando a soga dos

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bois da frente, que nadaram sem dificuldade,seguidos dos outros - sendo que três juntastomaram pé na outra margem antes de que owagon entrasse na água. Era o que eu queria. Então gritei a Augusto eCamutombo para tanger, e num momento owagon precipitou-se nas águas do rio. Stanley,agarrado ao carro, teve um momento deentusiasmo, e ajudou a manobra. Eu, logo quevi o wagon a salvo na outra margem, atirei-mevestido ao rio, e nadei para lá. Chegado que fui, disse ao Catraio que medesse roupa enxuta, isto é, as únicas camisa emeias que eu tinha fora do corpo, e fiz amudança. Os dois europeus, que ao ver-mechegar a terra caminharam para mim,suspenderam-se a dez passos, vendo quecomecei logo a despir-me. Depois de mudar deroupa, penteei os meus longos cabelos e barba,que estavam encharcados. Logo que terminei o meu toilet, os dois sujeitosacercaram-se e disseram-me os dois mais

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sonoros “Good morning, sir,” que tenhoouvido. Correspondi ao comprimento, e perguntei-lhesde onde vinham. Disseram-me serem doisnegociantes ingleses, Mr. Watley e Mr. Davis, eirem para Shoshong, tendo deixado Maricohavia um mês. Eu disse-lhes também quem era, e de ondevinha. Ao saberem que eu chegava deBenguela, os dois sertanejos não puderamconter a sua admiração, e disseram-me que jáse não espantavam com o que me viram fazerali naquela manhã. Foram estes os primeiros cumprimentos querecebi pela minha viagem, e é-me grato orecordá-los, porque foram aqueles que maisimpressão me fizeram, pela rudeza com queforam formulados - e por virem de homensendurecidos nas lides africanas. Dei-lhes caça, e eles deram-me uns biscoitos,chá, açúcar e sal. Passamos o dia no maisagradável convívio, e a 25 de manhã, depois de

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se terem encarregado de uma carta para M.Coillard, deixei-os, seguindo no meu caminho. O rio tinha de novo tomado água, e por issodeviam ter ali ainda muita demora, motivoporque Mr. Davis decidiu seguir só com algunspretos para Shoshong, deixando a Mr. Watleycom os wagons. Mr. Davis, no momento emque eu ia a partir, fez o que eu tinha feito navéspera e atravessou o Ntuani a nado. Parei junto ao Limpôpo ao meio-dia, depois detrês horas de marcha.

Muito fatigado, e precisando de pôr em ordemalguns trabalhos, não saí a caçar. Estavasentado junto à margem do rio desenhando a

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paisagem, quando senti perto um tiro, e umsteinbok passou correndo junto a mim, eprecipitando-se no rio começou a nadar para aoutra margem. A água, que em volta dele se tingia de sangue,e o esforço que empregava ao nadar,mostravam-me que ia mal ferido. Augustoapareceu correndo e chegou ainda a tempo dever o resultado do seu tiro. O antílope ia quaseatingir a outra margem, quando a água serevolveu em torno dele. Uma cauda verde-negra e dentada espadanou as ondas, esteinbok e crocodilo desapareceram nacorrenteza. Estava destinado que eu nãoprovasse da saborosa carne do pequenoherbívoro. Augusto, tão valente como bruto, queria porforça ir matar o crocodilo, “que roubou minhacaça,” dizia ele. O bom do preto estava furioso. Ainda nesse dia fiz uma jornada de uma hora,não indo mais além, por encontrar muita caça. . .

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Já caçava mais para obter peles do quealimentação, porque já abandonávamos acarne, tanta era ela.

O meu Stanley, depois que se viu sem botas,não saía de dentro do wagon, e passava otempo a comer e a dormir. A 26, fiz, logo de manhã, uma jornada de cincohoras, subindo sempre a margem esquerda doLimpôpo. Mal tínhamos parado, Augusto veio dizer-me,que andava pastando perto um enormechucurro (rinoceronte). .

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Passei rapidamente o freio ao cavalo, que aindanão tinha desaparelhado, montei e seguiAugusto. O enorme paquiderme já sentira orumor do campo, e pusera-se ao largo. Avistei-o a quinhentos metros, e ainda que Flyfez o seu dever, tive em breve de renunciar àperseguição da fera - que se internou em matotão emaranhado que impossível me era seguií-la. É notável que, tendo eu atravessado deBenguela até ali, visse o primeiro rinocerontejunto ao Limpôpo, onde hoje são raros, pelagrande caça que lhe fazem os böers. Outro animal que abunda no Calaari, de quepor vezes avistei bandos, e que nunca pudematar, foram as girafas. É tão ligeiro esustentado o seu correr, tão penetrante a suavista, tão fino o seu ouvido, que difícil é chegarao alcance de tiro, quando uma grande demorano país não permite ao caçador empregar aastúcia. Depois de ter desistido da perseguição dochucurro, voltei ao campo - quando encontreiAugusto que vinha no meu seguimento. Ele

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pôs-se ao lado do cavalo e veio conversandocomigo. De repente, junto a uns arbustos, vi-oapontar a arma e fazer fogo. Acavalo, e por isso tendo a cabeça muito maisalta do que ele, eu não vi a que tinha atirado omeu preto, quando deveria ser o primeiro aavistar a caça. Perguntei-lhe o que fora aquilo,e ele respondeu-me, entrando no mato earrastando um leopardo - que não estava amais de seis metros de nós. Voltei ao wagon, enquanto Augusto ficou aesfolar o bicho. De tarde ainda fiz uma jornadade três horas, por terreno muito acidentado ecoberto de floresta densa. Ao passar umcômoro, avistei o Zoutpansberg*, que marqueia leste. * Montanha cujo nome, em afrikander, significa“pão de sal”. O lugar onde acampei para passar a noite éconhecido dos böers, e tem o nome de Adicul.Não havia lua, mas o céu estava límpido, eresolvi fazer observações para determinaraquela posição. Esta circunstância foi causa deevitar uma grande desgraça.

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Eu tinha obtido no Manguato uma lanterna demagnésio, que ali fora deixada por Mohr, ououtro, e que não servia, por falta docombustível. A mim servia ela, porque eu tinha muito fio demagnésio. Empregava-a eu para ler de noite osnônios dos instrumentos. Nessa noite, tinha acabado de ler no nônio domeu sextante Casela, a altura de Canopus nomomento da sua passagem meridiana, e faziahorários pela Aldebaran, quando, a dez passosde mim, rebentou um trovão medonho. O meu Fly, preso a uma das rodas do wagon,deu tal puxão à corrente que fez mover opesado carro, e os bois entraram de golpe norecinto onde estávamos, tremendo emconvulsões de medo. Larguei o sextante e peguei na carabina,sempre pousada junto a mim. Augusto virou ofoco da luz para a brenha de onde saíra orugido feroz, e iluminou as cabeças soberbasde dois enormes leões. .

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As feras, fascinadas pela luz deslumbrante dacombustão do magnésio, num momento dehesitação que tiveram, deram-me o tempo deapontar firme. Os dois tiros sucederam-se como intervalo de poucos segundos - e ambascaíram fulminadas. Voltei-me para o wagon, onde senti umbarulho infernal, e vi que Camutombo faziaesforços inauditos para segurar o meu Fly, quese levantava e assustado forcejava por partir acorrente. O meu inglês estava metido nowagon, de espingarda na mão, e ameaçavamatar todas as feras do continente africano seelas se atrevessem a atacar os seus bois. . . . . . . . . .

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Deixei aos pretos o prazer de esfolarem osleões, e era belo ouvir o que cada um dizia desi mesmo naquela conjuntura. Não havia umsó que se tivesse assustado, e para o fim creiomesmo que cada um já contava aos outros queos leões haviam sido esganados por ele. Creio que só dois homens ali não tiverammedo, e esses foram Augusto e Veríssimo.Augusto, que me iluminou firme, e Veríssimo,que me disse muito descansado: “Eu nempeguei na espingarda, porque o Sr. ia atirar, eeu sabia que os leões estavam mortos.” .

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Larguei a carabina para pegar de novo nosextante, e tomar as minhas alturas daAldebaran, ocupação de que tinha sidodistraído por tão importunos hóspedes. Ia-me deitar, quando novos rugidos de leão sefizeram ouvir. Sem termos um campo fechado,eu receei pelo que pudesse suceder, e passei anoite velando com toda a gente junto àsfogueiras. Os rugidos duraram toda a noite, e aeles respondia com o ressonar sonoro o meuStanley - que estendido dentro do wagon,sonhava talvez com aquele filho pequenino deque se não podia separar, ou quiçá com asbotas que não tinha. Parti às 6 da manhã, para parar às 9, semprejunto à margem do rio. Ao acampar, todospensaram mais em dormir do que em comer, eStanley, que não tinha velado a noite, ofereceu-se obsequioso para vigiar pelos seus bois. Às 4 da tarde, depois de uma boa refeição decarne assada (a carne nesta parte da viagemocupa o lugar do massango de alguns meses

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antes), partimos de novo, indo acampar, às 8 emeia da noite, junto ao rio Marico. O alvorecer do dia 28 veio mostrar-me que euestava num lugar baixo e pantanoso, poucoarborizado e deserto. Mal tinha acabado de fazer o meu toilet,quando Stanley se acercou de mim e começoua dizer-me que as saudades do filho pequeninoe a falta de botas, o impediam de continuar aomeu serviço. “Que daquele ponto saía um caminhotransversal, que o levaria em oito dias a suacasa - e que, por isso, ele, os seus bois e o seuwagon deixariam de estar às minhas ordensdesde esse dia.” Declarei-lhe que se enganava, que ele tinhafeito um contrato comigo diante de M. Coillard- e que esse contrato era para me servir atéPretória. O homem recusou-seterminantemente a passar dali. Mostrei-lhe que a razão estava do meu lado,portanto não cedia, uma vez que eu tinha afelicidade de juntar à minha justiça a força.

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Este último argumento foi eficaz, e o homemviu que eu não recuaria ante o empregar aforça, e por isso acomodou-se, protestando afavor dos bois e do wagon, sua propriedade. O Augusto, que logo de madrugada tinha idocaçar, voltou pelo meio-dia - e disse-me que,perto, havia encontrado um acampamento deBöers. Disse-lhe que me guiasse para lá, monteia cavalo e segui o meu fiel preto. Um quarto de hora depois, entrava no campodos Böers. Muitos wagons colocados paralelamente, entreeles algumas cubatas de caniço e palha; montesde despojos de caça; um alpendre com umtorno de tornear madeira; um cercado com boise muitos cavalos - eis o aspecto doacampamento de Böers nômades queencontrei. Algumas mulheres, de vestido de chita etoucas brancas, tiravam água de um poço. Auma porta, duas, que não tinham nada defeias, descascavam enormes cebolas. Uma

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porção de pequenos, sujos e esfarrapados,brincavam sobre um chão enlodado. A minha entrada fez sensação, e uma mulhervelha, e ainda mais feia do que velha, veioarengar-me. Não entendi uma só palavra dasque me disse aquele estafermo, e só percebi, aoabeirar-me dela, que era ainda mais porca doque feia e velha. Para responder à fala da mulherzinha, quetinha empregado o holandês corrompido dosböers, escolhi o Hambundo, e respondi emlíngua do Bihé. Estávamos pagos e entendidos. Ela nãopercebeu uma só das minhas palavras, comoeu não entendi uma só das suas. Eu, sempre perseguido pela velha, fui-meaproximando das raparigas das cebolas, queeram ao menos novas e bonitas, e falei-lhes eminglês, francês, português e Hambundo, sempoder fazer-me compreender. Chamei o meu Augusto, que já arranhavaalgumas palavras de Sesuto, aprendidas noBaroze e no convívio das gentes de M.

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Coillard, e disse-lhe que perguntasse àquelasmeninas, se não haviam homens ali. Eledirigiu-se a elas, mas foi logo interpelado pelavelha. A custo, por meio daquele intérprete,soube, que os homens andavam à caça. A velha, sabendo pelo Augusto que eu não erainglês, mudou de modos para comigo, e creioque começou a tratar-me melhor. As raparigas metiam as cebolas em umpanelão enorme, e punham-nas ao fogo -nadando em água. Pouco depois, chegavam uns sete homens acavalo. Havia um velho de longa barba branca,cinco entre trinta e quarenta anos, e umrapazola de dezoito ou dezanove. Apearam-see vieram cercar-me. O velho falava bem inglês, e um dos outrosfalava um pouco. Pudemos entender-nos.Expliquei-lhe quem era e de onde vinha, duascoisas que eles não entenderam muito bem - edisse-lhes, que era português, e não inglês,porque já tinha percebido que eles nãogostavam dos ingleses. Contei-lhes o caso do

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meu Stanley me querer deixar, e o velho disse-me logo que mandasse descarregar o wagon edespedisse o homem, porque eles me dariammeios de continuar a viagem. Não quis ouvir aquilo duas vezes, e mandeilogo o Augusto buscar o wagon para ali. No entanto, os böers recebiam-me com francahospitalidade, e até a velha já sorria para mim.Que hediondo sorriso! Pouco depois, comiacebolas cozidas e carne assada. Aqueles böers,quanto a provisões, só tinham mais do que eucebolas. Chegou o wagon, que mandei descarregar -despedindo logo o seu dono, que se retirousatisfeito, como eu fiquei satisfeito por me verlivre dele. Falei aos böers, mostrando-lhes a necessidadeque tinha de seguir o mais depressa possível -e eles prometeram-me que no dia imediatoteria um wagon e bois. À noite, eles contaram-me que tinham feitoparte dessa imensa leva de emigrantes que,logo depois da anexação do Transvaal, tinham

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fugido ao jugo estrangeiro e caminhado aonorte, inconscientes do que faziam, eignorantes dos perigos do Calaari. Seiscentasfamílias que se internaram no inóspito desertoviram os seus gados mortos ou dispersos pelasede, e foram vítimas do passo precipitado einconsciente que deram. A vanguarda, emnúmero de vinte e três pessoas, puderamalcançar o Ngami, mas os seus gados iamesgotando os pequenos charcos - e aqueles queos seguiam encontravam a morte junto àslagoas secas. Ao número dos poucos que aindaconseguiram voltar, pertenciam aqueles queme davam a hospitalidade franca dos böers.Encontraram ali, junto ao Limpôpo, tanta caçaque decidiram ficar naquele lugar - e viviamuma vida nômade, acampando nos lugaresmais próprios às suas explorações venatórias. No dia seguinte, enquanto as raparigas meserviam um almoço de carne e cebolas, regadocom ótimo leite, os homens preparavam umwagon ao qual jungiam apenas quatro juntasde bois.

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O velho disse-me que iria para tomar conta dowagon seu neto, um rapaz de 16 anos chamadoLow, levando consigo um seu irmão pequeno,de 12 anos, de nome Cristophe. Os bois dos böers foram-me passar o wagonpara além do Marico - o que foi difícil, porqueo ria ia bastante cheio. Depois das melhoresdespedidas, fiz a primeira jornada em caminhode Pretória. Os böers sabiam que havia Pretória, mas nuncalá tinham ido, e por isso o meu Low ignorava ocaminho. Eu incumbi-me de lhe ensinar. Paraisso, deixei o único caminho seguido, aquele deMarico e Rustemberg, e dando um traço comuma régua na carta de Marenski, tirei um rumoem perfeita linha reta - e segui nele a través daplanície. Desde que passamos o rio Ntuani andávamoscobertos de carrapatos, e bastava passarmosum pouco entre a erva para ficarmos cheiosdos repugnantes insetos. . .

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Quatro pessoas na minha gente apareceramcom uma febre que se apresentou logo de maucaráter. As duas mulheres, Moero e Pepéca. Tive de lhes preparar o wagon, a modo de aspoder deitar nele, porque era impossívelcaminharem. Todos nós estávamos extenuados pelas fadigasde uma tão longa jornada qual a de Benguelaaté ali. Sempre mal alimentados, sentíamos afadiga a degenerar em doença, e exaustos deforças prevíamos a doença a terminar namorte. A insalubridade das margens do Limpôpo, esobretudo a do rio Marico, veio afetarprofundamente as nossas saúdes, já vacilantesem corpos derrancados - e todos em geral nossentimos doentes. Ainda assim, eu, dotado de uma organizaçãoespecial, era quem mais resistia àextraordinária canseira que nos acabrunhava.Felizmente para todos, eu resistia mais do queeles! .

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A noite do último dia de janeiro foitormentosa, de chuva e trovoada. Eu não meentendia com as duas crianças böers que meacompanhavam, e que só falavam o holandês -mas ainda assim fazia-lhes dirigir o wagon àminha vontade. No primeiro de fevereiro, toda a gente estavapior, e sobretudo o estado das duas mulheres edos dois pequenos assustava-me. Eu mesmoardia em febre. Resolvi forçar as marchas oquanto possível, para no mais curto espaçoalcançar país habitado e alguns recursos. Apesar do meu estado, logo que pus o wagon acaminho, afastei-me dele e fui caçar -conseguindo matar um sebseb. Fui encontrar owagon e fiz com que Augusto, Veríssimo eCamutombo fossem buscar o antílope morto. Em seguida forcei a marcha até ás cinco e meiada tarde. Parei até às 9 da noite para descansaros bois, fazer observações e determinar o meuponto - e sobretudo para tratar dos doentes.Ainda nessa noite jornadeei das 9 às 10 horas. .

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O estado do Pepéca e de Mariana era muitograve. Estavam em delírio, e tinha-se-lhesdeclarado o tifo. Os cáusticos, que eu lhes tinha aberto comágua a ferver (por não ter outra coisa), eramcontinuamente pulverizados de sulfato dequinino. Durante a noite dei-lhes três injeçõeshipodérmicas com um grama de sulfato cadauma. Moero e Marcolina, a mulher de Augusto, nãoapresentavam sintomas de tanta gravidadecomo os outros dois, mas ainda assim estavamsujeitos ao mesmo tratamento. Na manhã seguinte o estado dos doentes era omesmo. Depois de lhes curar os cáusticos,resolvi partir, e não me apareciam os doispequenos böers. Fui em sua busca e, não longe,junto a um extenso paul a que eles chamavam“a Cornocópia”, me pareceu que eles estavampastando - porque os vi apanharem erva ecomê-la com sofreguidão. Aproximei-me paraver o que faziam, e conheci não me enganar.Os rapazes comiam erva. Ao abeirá-los, eles

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estenderam para mim as mãos cheias de umagramínea, espécie de caniço fino e de um verdemuito claro. Por curiosidade peguei numdaqueles caniços e provei. A minha admiraçãofoi extraordinária ao encontrar naquelagramínea o mesmo gosto da cana de açúcar. Percebi então porque pastavam os rapazes. Erapura guloseima. Fiz com que viessem aowagon e pus-me a caminho. Naquela planície apareciam muitas aranhasparecidas com a tarântula, cuja mordedura (mefizeram compreender os rapazes) é mortal. Istocreio que deve carecer de demonstração,porque em África se diz o mesmo dosescorpiões, e eu affirmo não ser verdade. Depois de cinco horas de boa jornada, parei.Logo que tratei dos meus doentes, quecontinuavam mal, fui caçar - afim de arranjarde comer para eles e para mim. Só voltei ao wagon às 6 horas, trazendoatravessado no arção um soberbo antílope.Pelo caminho notei que o meu cavalo, sempre

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fiel, vinha inquieto e fazendo curvetas que nãoeram de uso. Ao chegar ao campo pude explicar a razão docaso. O antílope (cervicapra bohor) com opescoço pendido, veio com um dos agudoscornos fazendo uma larga ferida ao meu pobreFly. Depois de medicar os enfermos e a mim, e decomer alguma coisa, ainda jornadeei nessanoite por duas horas. A 3 de fevereiro, parti às 4 da manhã e parei às9. Logo que acampei, avistei dois wagons deböers que caminhavam para mim. Tiveesperanças de obter deles alguns víveres,porque só tinha para comer os restos doantílope da véspera. Baldada foi a minha esperança. Eram duasfamílias de emigrantes que caminhavam, sóescudados na caça, e com quem tive de repartira pouca carne que ainda tinha. Disse-me um, que falava inglês, que eu iaentrar em país sem caça, mas que, se forçasseas marchas, poderia, seguindo o trilho dos

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wagons deles, alcançar nessa noite a missão doPiland’s Berg. O país continua sendo uma planície enorme,da qual se erguem aqui e além, ex-abrupto,algumas serras. Assim era o Piland’s Berg, queeu marcava ao sul. Resolvi pois forçar as marchas, para alcançar amissão de que me falaram os böers - masquando dei ordem à partida, apareceu-me Lowconsternado, dizendo muita coisa que eu nãoentendia, mas fazendo compreender que seuirmão Cristophe faltava. A mim é que me nãofaltava mais nada, senão aturar o endiabradorapaz. Montei a cavalo e larguei-me por matos echarnecas a procurar meninos perdidos.Chamei, dei tiros, corri em todas as direçõesdescrevendo círculos em torno do wagon - masnenhum resultado tirei disso. Depois de seishoras de buscas inúteis, voltei ao carro,extenuado de fadiga, e tendo debalde cansadoo meu pobre cavalo. .

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Nesse dia já se não jantou, por não haver quecomer. Low chorava e arrepelava os cabelos,dizendo muita coisa em holandês. Se, às vezes,imaginava que eu queria partir dali, vinhadeitar-se de joelhos aos meus pés,pronunciando o nome do irmão. Eu estava verdadeiramente perplexo, e ora meenfurecia contra os böers, ora tinha pelo estadode Low a maior compaixão. Os meus doentesnão melhoravam, mas medicamentos e dietanão lhes faltava. Resolvi passar ali a noite, e confesso que nãodeixava de entrar em furor ao lembrar-me dotempo precioso que perdia em circunstânciastão graves como aquelas em que estávamos. Às 9 da noite senti grande alarido e percebique o Cristophe tinha chegado. Não me entendendo com eles, só dias depois,por um intérprete, pude ter a explicação dofato. Cristophe, logo que o wagon parou naquelamanhã, foi para o mato apanhar pássaros comvisco. Entreteve-se por lá até que eu o fui

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procurar. Vendo-me gritar por ele e dar tiros,teve medo de que eu lhe batesse ou o matasse -e escondeu-se no matagal o melhor que pôde,lá se deixando ficar por todo o dia. Veio a noite, e o medo dos bichos foi superiorao medo de mim - e o pequeno voltou aowagon. Não me faltava, na minha viagem,senão aturar uma criança. Às quatro horas da manhã, segui viagem eparei às 8 - porque o nosso estado não nospermitia grandes esforços. A leste de mim,corria N.N.O. um sistema de montanhas quemargeiam o Limpôpo. Descancei até às 11 horas. Seguindo a essahora, alcancei Soul’s Port - a missão do Piland’sBerg -, às 4 da tarde e estabeleci-me em umasruínas a duzentos metros da casa domissionário, a quem mandei um cartão devisita. Pouco tempo depois, entrava nas ruínas umadama acompanhada de um criado que traziauma grande bandeja de pêssegos e figos. EraMadame Gonin, a esposa do missionário. Seu

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marido estava ausente, e só chegaria no diaimediato. Ao passo que escutava Madame Gonin, comiapêssegos e figos com fome de trinta e duashoras! Dei-lhe escusa do que fazia, dizendo-lheque tinha fome. A dama retirou-se e, algumtempo depois, enviáva-me uma ótima ceia. Dois pretos vinham carregados de comida paraa minha gente. Fui agradecer e voltei àsminhas ruínas. No dia seguinte, julguei livres de perigo osmeus dois doentes mais graves, Mariana ePepéca. Logo de manhã, fui a uma fazenda deböers, a ver se obtinha víveres. O país em torno de Piland’s Berg é muitocultivado - e aqui e além alvejam no sopé daserra algumas casas de böers. Dirigi-me a umadelas. Fizeram-me entrar numa sala que, em todas ascasas dos habitantes do Transvaal,desempenha o duplo fim de sala de jantar e devisitas. .

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Aquela tinha suficiente pé direito, era espaçosae alegre. As paredes, pintadas a fresco,representavam cupidos vendados, despedindotraiçoeiras flechas contra corações enormesengrinaldados de rosas - isto sobre um fundoazul celeste, dado em tons suaves. O pintor não fora nenhum Rubens ou VanDyck, mas preciso declarar que, ainda assim,me surpreendeu o trabalho artístico daquelasala. Era superior ao de umas certas salas dejantar de muitas casas de Lisboa - em quefiguram no primeiro plano um bonecopequenino, pescando de linha num rio, e onde,ao longe, navegam dois namorados enormestocando bandolim, ao passo que em umaárvore vermelha e azul, muito distante, pousauma arara rubra, maior ainda do que a árvore,do que os namorados e do que o pescador.* * Viva Portugal, caralhos! (desculpem, leitores) Ao menos, nas pinturas mitológicas da salaböer, havia uma significação - e aquelas rosasengrinaldando os corações feridos vinham

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lembrar que as chagas de amor, como as rosas,têm perfumes e têm espinhos. Eu, se algum dia, depois de longa existênciaem Lisboa, por esse poder de imitação que mefaz admitir as teorias de Darwin, chegar aorequinte de mandar pintar a minha sala dejantar por artista indígena*, dar-lhe-hei asindicações da Escola Transvaaliana. * Aqui “indígena” tem o sentido de “local”,“nativo”, portanto, lusitano. A sala da casa böer, além das pinturas dasparedes, pouco mais tinha de notável. Umagrande mesa, algumas cadeiras, uns vasos complantas floridas nos vãos das janelas. Cortinaspendentes de guarnições de pau despolido,feitas de cassa branca com um recorteencarnado e cujas extremidades inferiores,muito longe do chão, davam às janelas esse ardesastrado de uma menina de quatorze anosque, trajando vestido nem curto nemcomprido, nos deixa perplexos e sem saber sedevemos cortejar uma dama ou beijar umacriança.

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A um canto, sobre uma pequena mesa, o livrodos böers, uma Bíblia enorme com fechos deprata sobre uma encadernação outroravermelha - e hoje de cor indefinida pelo usodas mãos sebentas de três gerações de böers. Faziam-me as honras da casa duas damastransvaalianas, vestidas, como todas as do país,de chita - e trazendo na cabeça toucas brancas.Algumas crianças, quase todas pequenas,quase todos do mesmo tamanho, agarravam-seaos vestidos delas e trepavam-lhes aos joelhos.O modo porque eram recebidos pareciamostrar-me que eram todos filhos de ambas asdamas - o que me causava o maior espanto eme fazia entrever uma coisa nova para mim. Veríssimo servia-me de intérprete,empregando a língua Sezuto. Antes de lhedizer o que queria, perguntei-lhes de quemeram filhos aqueles meninos. Ambas, aomesmo tempo, com esse orgulho de todas asmães (enquanto os filhos são pequeninos e nãovêm, pelo seu tamanho, revelar segredos de

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idades que se devem ocultar), responderam:“São nossos.” O caso complicava-se com aquela resposta, eeu cada vez entendia menos. Entrei emexplicações e soube, afinal, que os pequenoseram uns de uma, outros de outra - mas, comoelas seguiam o costume böer de viverem doiscasais a mesma vida doméstica, todos eleseram reputados filhos de cada uma. O paradoxo fisiológico tinha desaparecido,mas erguia-se a meus olhos outro, psicológicoe não menos extraordinário. No Transvaal, dois casais podem viver sob omesmo teto e comerem da mesma panela. Doisamigos combinam casar no mesmo dia e iremviver juntos com suas mulheres – e, depois,com filhos e netos, para sempre. E vivem, e sãofelizes, e não há ali intrigas e desgostos entreeles! Ainda, entre eles, compreende-se... Masentre elas! É admirável. A vida patriarcal dos böers revela-se nestetraço. .

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Depois de me explicarem estas coisas, eu disseao que ia. Precisava de provisões. As boasraparigas ofereceram-me logo dois enormespães e disseram-me que não podiam vender-me galinhas ou patos sem estarem presentes osseus maridos - que tinham ido para a labutaçãodos campos, mas pediram-me para esperar umpouco, porque eles não tardariam a voltar parao almoço. Uma desapareceu, e provavelmente foi para acozinha - enquanto a outra trouxe para a salauma máquina de costura, e pôs-se a trabalhar. Eu fui dar uma volta no quintal, onde meficaram os olhos na hortaliça, que ali cresciacuidadosamente tratada. Que fome eu tinha de alimento vegetal! Algum tempo depois, chegaram os böers, queme encontraram em flagrante delito de colherfeijões, que comia crus. Voltei com eles a casa. Logo que entramos na sala dos cupidos,reuniu-se a família toda, e todos se sentaramnas cadeiras junto às paredes. .

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Veio, em seguida, uma preta com umapequena banheira, e o mais velho dos homensdesçalçou as botas e lavou os pés. Seguiu-se ooutro, as damas e os pequenos - e a pretacorreu à roda da casa com a banheira. Emseguida, fomos para a mesa. Veio então a Bíblia, e o mais velho leu, comprofundo recolhimento, alguns versículos doLivro dos Números, o quarto Livro de Moisés.Começou o almoço. Eu, com o estômago cheiode couves cruas e feijões colhidos do pé, nãopodia comer nada, o que contrariava os meushospedeiros - mas tomei uma chávena depéssimo café com ótimo leite. Depois doalmoço, os bons dos fazendeiros ofereceram-me seis galinhas e dois patos, e nada quiseramreceber por isso. Levei de hortaliças quantopude carregar no meu cavalo. Logo que cheguei a Soul’s Port soube doregresso do missionário, por um convite parajantar escrito por ele - que encontrei nas mãosde Augusto. .

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Fui ver logo os meus doentes, que acheimelhores, sobretudo o pequeno Moero, que jáse tinha levantado. Dali segui para a casa domissionário, onde fui cordialmente recebido. M. Gonin, francês e amigo de M. Coillard,exultou com as boas notícias que lhe dei dosamigos que tinha deixado em Shoshong. Tive um jantar magnífico, e tanto maisagradável que a ele assistiam três damas,Madame Gonin e duas jovens e formosasinglesas do Cabo, hóspedas da casa. Depois de jantar, voltei às ruínas onde tinhaacampado para fazer observações e determinara minha partida para o dia seguinte. Ao chegarao wagon, uma má nova me esperava. Low veio dizer-me que haviam desaparecidodois bois - e não tinha sido possível encontrá-los. Os seis bois que restavam não poderiamarrastar o wagon dali a Pretória. Decidi ficar ali a procurar os bois, e dei asprecisas ordens para que toda a gentesemiválida, logo de madrugada, se pusesse emcampo.

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Foram baldados todos os esforços, e os boisnão apareceram. Comuniquei ao missionárioGonin o meu grande embaraço, e fui logotranquillizado por ele - que pôs à minhadisposição uma das suas juntas de bois. Além disso, ordenou a um dos seus criados,um Btjuana chamado Farelan, para meacompanhar até Pretória - servindo-me aomesmo tempo de guia e de intérprete, já paracom o gentio, já para com os böers, porquefalava bem o holandês. Dispostas assim as coisas, determinei seguir nodia 7, e depois de agradecer a M. e MadameGonin tantos favores, parti às 6 horas damanhã, indo parar às 10 junto a uma casa deböers que me receberam muito bem, dando-meabundantes provisões. Ainda nesse dia fiz duas grandes jornadas. Dosmeus doentes, a Mariana e o Pepécaapresentavam sensíveis melhoras, ainda queprometiam uma demorada convalescença.Moero estava em via de restabelecimento, masMarcolina, a mulher de Augusto, dava-me

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cuidados - porque se achava em um estadoprostração, com febre constante que não cediaao tratamento. No dia 8, o estado de Marcolinaera muito grave. Parti às 4 da manhã, e às 5 encontrava o rioQuetei, próximo da sua confluência com oMachucubiani. A dificuldade da passagem foigrande, por serem muito íngremes as margense levarem os rios muita água. Depois de três horas de trabalho violento,conseguimos transpô-lo e acampamos namargem oposta. Marcava meia milha a O.N.O.o Pico Bote, onde foi pelejada a última batalhaentre böers e Matebeles, sendo estescompletamente batidos e forçados a recuarpara além do Limpôpo. Depois de um descanso de três horas, seguiavante e jornadei por oito horas, em duasmarchas. O lugar onde acampei, junto a umriacho que corre ao Limpôpo, era coberto derochas, massas enormes de granito, o primeiroque encontrava depois do Bihé. .

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A disposição geológica do terreno mostrava-se-me, tal qual a parte do planalto da costa deoeste entre Quillengues e Bihé. A flora é que ali é muito diferente. No planaltoda costa de oeste, aparece uma vegetaçãoarbórea opulenta - ao passo que, nesta parte doTransvaal, apenas se vê um ou outro arbustoraquítico. Mas a vegetação herbácea é rica, esobretudo as gramíneas têm desenvolvimentogrande. No dia 9 de fevereiro o estado de Marcolina eratão grave que decidi não continuar viagem atéver se ela obtinha melhoras. Baldados foram osesforços empregados para a salvar, e ao meio-dia expirou. Pobre mulher! Depois de tão aturadas fadigas,depois de tão árduos trabalhos, veio perder avida quando estava próxima a encontrar odescanso e o conforto! Marcolina era a legítima mulher de Augusto.Viera com ele de Benguela até ali - e mesmo notempo das aventuras galantes do marido,nunca o abandonou, apesar dos maus tratos

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que dele recebia. Augusto chorava como umacriança junto ao cadáver da sua companheirafiel. Na madrugada seguinte, Camutombo e oBetjuana Farelan abriam uma profunda cova,onde se enterrava a pobre coitada. Eu, decabeça descoberta e comovido, vi cair a terrasobre o cadáver frio. Ali, na margem do ribeiro junto à Betania,deixava eu a última vítima da ExpediçãoPortuguesa Através da África. Dali levava umasaudade pungente. Ainda bem que aqueledevia ser o último túmulo!

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Voltando ao wagon, perguntava a mim mesmose a ciência tem direito a tais sacrifícios; se ohomem, no orgulho de juntar mais um átomode saber ao pouco que sabe, pode dispor paraisso da vida do seu semelhante, e imolá-locruamente a um ídolo tão vão como os outros. No meu espírito não podia formular umaresposta à pergunta que fazia, e hoje digo queisto é uma questão a debater entre o homem ea sua consciência. Logo que cheguei ao wagon, dei ordem departida e segui adiante, para ir visitar a missãode Betania. Betania é uma aldeia de quatro mil habitantesde raça Betjuana, formada de casas bemconstruídas - e muitas de janelas envidraçadas. O missionário que ali encontrei, holandês oualemão, chamava-se Mr. Behrens. Apareceu-me fumando em um enormecachimbo de louça, e uma das primeiras coisasque me perguntou foi se eu lhe tinha trazidoumas pás que me emprestara para abrir a covade Marcolina.

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Um quarto de hora depois, eu deixava a casado missionário e seguia caminho, indo parar,às 11 horas, junto de uma aldeia de böers. Vieram eles logo buscar-me para suas casas, etive de entrar em casa de todos. Em todas fuiobrigado a tomar alguma coisa, e em todasrecebi presentes de batatas, frutas, hortaliças egalinhas. A custo me pude desembaraçardaquela boa gente e partir às 3 da tarde. Encontrei outra vez a margem esquerda doLimpôpo, que subi por três horas, para chegara um vau conhecido do meu guia Farelan. Junto ao vau estava grande porção de wagonsböers. O rio trasbordava e não dava passagem,diziam eles. Como Farelan conhecia o vau, disse-lhe que semetesse na água e fosse até onde pudesse. OBetjuana passou o rio com água pelo pescoço.Mandei logo tanger os bois, e fiz entrar ocavalo na água, passando o rio em ummomento. Eu e os meus já sabíamos lidar comum wagon e com os rios da África. .

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Os böers ficaram pasmados - mas pasmadosficaram na outra margem, debaixo de umachuva torrencial que caía. Acampei ali. No dia imediato, os alvores damanhã vieram mostrar-nos o rio - que tinhasaído do seu leito e que deveria levar mais trêsa quatro metros de água. Os böers que recearam na véspera arriscar oswagons, tinham que esperar muitos dias para opassarem. Eu segui viagem, e às onze horas emeia passava a enorme serra que divide oTransvaal no sentido este-oeste, o Magalies-Berg. Foi dificílima a passagem da alta serra, esobretudo a descida na perigosa vertente dosul. O wagon, sem freio, precipitava-se sobreos bois e ameaçava despedaçar-se. Tive de pôros doentes a pé, com receio de um acidente. Low caiu, e uma roda do wagon esmigalhou-lhe as falanges da mão esquerda. Fiz-lhe um primeiro curativo, e tratei de forçaras marchas para alcançar Pretória - onde elepodia ser cuidadosamente tratado. O Betjuana

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Farelan previniu-me de que fizéssemosprovisão de lenha em uma mata no sopé daserra, porque dali a Pretória só encontraríamosplanícies desarborizadas. Assim fizemos,continuando a jornadear dia e noite, apenascom o descanso necessário para os bois. Finalmente, no dia 12 de fevereiro, às 8 damanhã, acampava uma milha a N.N.O. dePretória, e deixando ali o wagon e os meus,entrava sozinho na capital do Transvaal.

. . .

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Capítulo VI No Transvaal Rápido esboço da história dos böers—O que são osböers—Suas emigrações e trabalhos—AdrianoPretorius—Pretorius—As minas de diamantes—Brand—Burgers—Juízo errado acerca dos böers—O que eu vi e o que penso. Estou em Pretória, a Capital do Transvaal, eantes de continuar a narrativa das minhasaventuras vou dizer algumas palavras dahistória deste país e dos seus habitantes. Nãose arreceiem os meus leitores do caso. Aindaque um moderno historiador francês, num belolivro, escreveu a conceituosa frase, “L’histoirene commence et ne finit nulle part,” euprometto-lhes que o rápido golpe-de-vista quevou lançar sobre a história deste povo será tãocurto, como curta é ela. Não sei quando acabará, se é que não findou jáou está a findar, mas o começo da vida böer,desde que essa vida tomou a forma denacionalidade autônoma, é dos nossos tempos,é deste século.

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Bartholomeu Dias primeiro, e Vasco da Gamadepois, os ousados portugueses queafrontaram antes de ninguém as tempestadesdo Cabo, pensando só na Índia, como na terrada promissão, pouco ou nenhum caso fizeramda extrema África do Sul. Foi só em 1650 que a Holanda - não o governoholandês, mas a companhia das Índias - alifundou uma feitoria para refrescar os seusgaleões em viagem do mar Ìndico, feitoriaestabelecida pelo Doutor Van Riebeck. Esta feitoria ergueu-se onde hoje assenta aformosa cidade do Cabo. A companhia das Índias, que pouco seimportava com a África, não pensou em fundarali uma colônia, e antes pôs todos os estorvos àiniciativa particular, que tendia a cultivar aterra e a comerciar com o indígena. Pelejavam-se então na Europa as guerras dereligião, e com a revogação do Edito de Nantese a perseguição dos protestantes em França,muitos emigraram, e entre eles alguns forampara a Holanda. A companhia das Índias deu-

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lhes transporte para a África, e eles aceitando-opressurosos, foram deixados no Cabo. Nãochegava a duzentos o seu número, e seatentarmos a que, segundo diz a história, vanRiebeck não levou consigo mais de cempessoas - e dando-se mesmo o caso de que essapopulação tivesse duplicado no tempodecorrido de 1650 á chegada dos emigrantesfranceses - estes equilibravam em número coma população holandesa. Faço notar esta circunstância, porque, sendoestes dois elementos que deram princípio aessa raça hoje chamada os böers, queroconcluir que, nesse povo a respeito do qual setem escrito tão pouco e tão errado, o sanguefrancês, se não domina, ao menos equilibracom o holandês. O governo holandês, desde o estabelecimentodos emigrados franceses no Cabo, trabalhoupara lhes cortar todas as relações com a mãepátria, e o primeiro golpe que nelas deu foi aproibição do uso da língua natal, já na

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celebração do culto divino, já nas relaçõesespeciais com o governo e nos atos oficiais. Custa a compreender como o obteve, mas éfato que lhe quebrou aquele laço que nasfuturas gerações os podia prender à França. Efoi de tal modo que, quando o General Clarke,em 1795, chegou ao Cabo com o AlmiranteElphinstone e se apossou da colônia em nomeda Inglaterra, nem um só böer falava oucompreendia o francês. Muito antes da ocupação inglesa, que não setornou efetiva senão em 1806, época em que aInglaterra se apossou definitivamente do Cabopela força, desprezando as convenções da pazde Amiens - que restituía aquela colônia aosholandeses -, já muito antes os colonos fugiamaos vexames do governo da Holanda, einternando-se no continente iam longeestabelecer-se onde encontravam bons terrenospara cultura e bons pastos para os gados,preferindo brigar com o gentio e prover à suaprópria defesa, a estar em relações e sob a

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proteção de um governo que os tornavaverdadeiros escravos. Daí data o nome e a vida errante dos böers,nome bem pouco em harmonia com tal vida,porque böer quer dizer “fazendeiro” ou“lavrador”, o que dá uma ideia de estabilidadeque eles não tinham nem ainda hoje têm, sendomais pastores e nômades do que lavradoressão. O primeiro que nos fala dos böers na sua vidaquase primitiva, reduzidos como foram aprover eles mesmos às necessidades da vidaabsoluta, é Levaillant, que visitou o interior daÁfrica do Sul antes da Revolução Francesa, istoé, 14 ou 15 anos antes da primeira ocupação doCabo por Clarke e Elphinstone. Levaillant dizmuito mal deles, nas suas relações com astribos indígenas. Trata-os de déspotas e de abuso constante daforça. Devemos dar crédito ao que dizLevaillant, mas devemos também examinarsem paixão as circunstâncias em que viviamaqueles homens, duas vezes emigrantes, e

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errando sem pátria num país hostil. Acusam-nos nesse tempo de abusar da força, quando afraqueza estava do lado deles, como sempreesteve. Tinham armas é verdade, mas os Cafrestinham o número, e eu sei o quanto vale onúmero sobre as armas, e sabe-o hoje a Europa,e sobretudo a Inglaterra. Os Zulus, os Cafres, eos Basutos têm lhe ensinado. Não devemos lançar à conta do espírito decrueldade, represálias filhas da necessidade deimpor o respeito pelo terror a tribosindomáveis e ferozes. O que lançam em rostoaos böers de roubarem e dividirem entre si osgados e as riquezas dos povos vencidos, é hojeadmitido como direito de guerra, e a naçãovencedora impõe à vencida um triboto que nãoé mais do que o que faziam os emigrantesfranco-holandeses aos Cafres vencidos e quenão era diferente proceder do que tiveram osingleses naquelas mesmas paragens no fim dasguerras de 1834 e 1846. .

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Apesar de se terem internado no continente, osböers só em 1825 passaram o rio Orange,inclinando-se a N.E. para fugirem daesterilidade do deserto que se estende ao Nortee N.O. da confluência do Vaal. Foram obrigados a isso pela falta de chuvasque então houve no país que eles ocupavam. A abolição da escravatura, depois da guerra de1834, trazia os böers descontentes - porqueperdiam com ela os braços que os ajudavam. Sem pátria, sem história - e por isso sem amora nenhuma terra -, eles começaram uma novaemigração em massa, e o número dos fugitivosque passaram o Orange foi avaliado em oitomil. Elegeram então um chefe, e recaiu a escolhaem Pieter Retief, cujo primeiro passo foiexpedir uma nota ao governo do Cabo, na quallhe dizia que eram livres e livres iam escolherum país para habitar. Nessa nota estava formalizada a intenção emque estavam de viver em paz com o gentio, denão admitirem a escravatura e de

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estabelecerem nitidamente quais as relaçõesque deviam existir entre amos e criados. Receando os Cafres, os böers, passado oOrange, caminharam ao norte - mas foram nosZulus que ocupavam a margem direita do Vaalencontrar inimigos mais terríveis do queaqueles que evitavam. O célebre Muzilicatezi, que depois se tornouconhecido como rei do Matebeli, tentou sustara marcha dos emigrantes, e por isso elestiveram de pelejar uma sangrenta batalha - emque venceram o valente chefe Zulu. Então Pieter Retief dirigiu a caravana a leste, etendo notícias de um país magnífico que seestendia para além da cordilheira doDrakensberg até ao mar, guiou para ali a suahorda de aventureiros. Ao chegar ao país desejado, um novo obstáculolhe veio tolher o passo. Uma tribo poderosa eguerreira procurou destruir aquele punhadode valentes. Foram mortíferos os combatestravados entre Retief e o chefe Cafre Dingam, e

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num deles a vitória dos böers custou a vida doseu chefe Retief, e a Gert Maritz, seu imediato. Senhores das terras de Natal, os böersescolheram uma posição magnífica parafundar uma cidade, e elegeram um novo chefe.A cidade teve o nome de Pietermaritzburg,nome que foi um monumento imorredourolevantado à memoria dos dois primeiros chefesböers. O homem escolhido para novo chefe foiAdriano Pretorius, que tempo depois devia sero primeiro presidente da RepúblicaTransvaaliana, e cujo nome devia serperpetuado como os de Retief e Maritz nafutura capital dos böers. De 1840 a 1842, os emigrantes viveramtranquilos, cultivando a terra e apascentandoos gados na sua nova pátria. Pensavam mesmo já em firmarem a suaautonomia, constituindo-se em república sob oprotetorado de uma nação europeia - quandoSir George Napier, por ordem do governo dametrópole, mandou ocupar a Natalia por

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forças inglesas, fazendo saber aos böers que aInglaterra não consentia que os seus súditosformassem estados independentes sobre ascostas marítimas. Pretorius recebeu muito mal o enviado de SirGeorge Napier, e foi junto a Pietermaritzburgque se trocaram as primeiras balas entre böerse ingleses. Prevenido da resistência dos böers, ogovernador do Cabo reforçou as tropas deNatal e esmagou a insurreição. A poucasimpatia que os böers votavam aos ingleses,desde esse dia converteu-se em aversãoprofunda. Começou para os emigrantes uma nova épocade árdua peregrinação, e abandonando a terraescolhida, foram novamente procurar um paísalém do Drakensberg, um país onde pudessemser livres e senhores. Ao passar a elevada cordilheira espalharam-seao norte e ao sul do Vaal; estabelecendo as suasresidências no terreno compreendido entre oVaal e o Orange - e mesmo ao norte, sobre a

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margem direita do Vaal, onde fundaram acidade de Potchefstroom, em 1843. Sabendo que o governo inglês consideravaaquele país como seu, e como seus súditos oshabitantes, Pretorius persuadiu a muitos dosböers o emigrar de novo, e com eles caminhouao norte. Teve de bater-se com os Zulus, que,vencidos numa última batalha no Pico Botes,foram rechaçados para além do Limpôpo -onde o seu chefe Muzilicatezi estabeleceu oreino do Matebeli. Foi então que foram fundadas mais duaspovoações, Lydenburg e Zoutpansberg. É preciso notar que a cada nova emigração,muitos dos böers se recusavam a seguir oentusiasmo pela liberdade que inflamavaoutros, e conservavam-se nos paísesabandonados, tendo, por isso, de se sujeitar aogoverno inglês. Foi assim que muitos não deixaram as suasresidências entre o Orange e o Vaal, ecortaram, por assim dizer, relações comaqueles que emigravam sempre. Esse núcleo

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que ficou, deu origem aos que hoje formam oEstado Livre do Orange, e ali fundaram acidade de Bloemfontein, sua capital. Lord Grey, sendo Ministro das Colônias emInglaterra, em 1852, entendeu que erambastante grandes e ruinosos os domíniosingleses na África, e resolveu de limitá-los. Querendo, ainda assim, fazer as coisas emgrande e talhar por largo, deu ordem aogovernador do Cabo para declarar o Vaal comofronteira norte dos domínios britânicos, e paraconceder os direitos de autonomia aos súditosingleses que se estabelecessem além daquelelimite. É desta data o tratado feito com os böers, peloqual a Grã-Bretanha os reconheceu livres e lhesconcedeu os direitos de autonomia. É destadata que teve um nome o país compreendidoentre o Vaal e o Limpôpo; é desta data que ogoverno do Transvaal se constituiudefinitivamente; é nesta data que AdrianoPretorius foi eleito presidente da novarepública.

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Os böers insurgentes, os teimosos em fugir aojugo estranho, acabavam de constituir umanação, de criar um país e de estabelecer a sualiberdade - ao passo que os böers fiéis aosingleses só em 1854, mais de um ano depois,foram livres e puderam constituir-se em nação,formando o Estado Livre do Orange. É verdadeiramente admirável ver estes grupos,onde não abundavam os recursos de instrução- porque o böer só lê e só conhece a Bíblia. Verestas gentes ignorantes dos regimensgovernativos a que fugiam havia um século, derepente constituírem-se em nações, formaremum sistema governativo, elegerem assembleiasnacionais - e legislarem sensatamente! Adriano Pretorius foi um homem a todos osrespeitos notável, e que teria feito um nomemesmo entre povos menos rudes do que osböers. Inflamado pelo ardor da liberdade, sabiaincutir o seu entusiasmo no ânimo dos que orodeavam, e pertinaz numa ideia grandiosa,viu coroados de êxito os seus esforços, dando

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uma pátria aos seus, e fixando num paísriquíssimo, todo um povo disperso. Este grande homem apenas entreviu a suaobra, porque morreu ao concluí-la. O sufrágiogeral levou ao poder seu filho, do mesmonome, criado nos mesmos entusiasmos de seupai. O novo Pretorius procurou dar melhororganização aos serviços da nação, mas omesmo desejo de liberdade que animava osböers a fugirem ao dominio inglês, fazia quemuitos procurassem escapar ao domínio dogoverno central da república. Contudo,encontravam-se sempre que era preciso ligar-se contra um inimigo estrangeiro, e as muitasguerras que sustentaram para acalmar osindígenas, sempre hostis, são prova disso. Em 1859, os böers do Estado Livre do Orangeaclamaram seu presidente a Pretorius, que,diretor supremo dos negócios das duasrepúblicas, pensou logo em levar a efeito umaunião vantajosa para os interesses comuns. .

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O governo inglês andou de tal modo nessaquestão, que Pretorius nada pôde alcançar - eabandonando Bloemfontein, voltou aoTransvaal, onde tomou de novo a direção dosnegócios públicos. Daí até 1867 aqueles dois povos, que apenascontavam um 15 e outro 13 anos de existênciaautônoma, não foram perturbados no seu viverrude e pacífico, a não ser por pequenasquestões com o gentio, logo acalmadas. Mas,em 1867, os böers dos dois estados, Transvaal eOrange, foram surpreendidos por uma notíciaque veio perturbar por um momento a suavida tranquila. Nas fronteiras oeste dos dois estados, tinhamsido descobertas as suas ricas e prodigiosasminas de diamantes, e aquele pedaço deterreno prometia uma riqueza inesgotável aoseu possuidor. Naturalmente, böers doTransvaal e böers do Orange lançaram para eleas vistas cobiçosas. A terra, que de um momento a outro tomoutão grande importância - e que, como o Brasil,

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a Califórnia e a Austrália, chamou logo a siaventureiros de todas as nações -, pertencia auma tribo, os Gricuas, mestiços de origemböer, que a esse tempo eram governados porum tal Waterboer, que não perdeu tempo emfazer valer os seus direitos ao terreno cobiçado. Entre os aventureiros que o fulgor dosdiamantes atraía àquela nova Golgonda,abundavam ingleses, que excediam todos osoutros em número. A vontade de se apossar do terrenodiamantífero só foi manifestada claramentepelos böers do Orange em 1870, ano em que opresidente Brand convidou Waterboer a umaconferência, e procurou convencê-lo de que erasenhor, por direitos adquiridos, do cobiçadotesouro. Waterboer não se deixou convencer, e retiroupara o seu país, teimoso em querer continuar aser senhor dele. O presidente Brand, pela suaparte, não cedeu também - e publicou umaproclamação em que dizia ser dos estados doOrange a terra dos Gricuas, enviando logo ali

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um delegado da república para se estabelecercomo governador. Os Böers do Transvaal a esse tempoprocuravam traçar nitidamente as fronteiras doseu país, e acabavam de referendar comPortugal o tratado da demarcação da suafronteira de Este, negociado em julho de 1869entre o próprio Pretorius e o Visconde deDuprat, commissionado para isso peloGoverno Português. O tratado de 1852 definiasuficientemente as suas fronteiras sul e sueste,mas as outras fronteiras eram demarcadas, aNorte pela mosca tsé-tsé junto ao Limpôpo, e aoeste por coisa nenhuma. Entendeu pois Pretorius, que tanto direitotinha o presidente Brand como ele à posse daterra Gricua, e mandou para ali um delegadooficial da república, como o Orange mandara oseu. Havia três anos que a primeira pedra dessecarvão puro e cintilante, a que a vaidadehumana deu um tão extraordinário valor,aparecera nos perdidos sertões da África do

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Sul, e já nos terrenos saibrosos onde as mãosávidas de centenas de aventureiros escavavamos pequenos seixos, se levantava uma cidadeopulenta onde formigava a vida e a civilizaçãoda Europa. Era Kimberley. Era uma maravilha edificadacom diamantes, como S. Francisco daCalifórnia foi edificada com ouro. Era umdesses prodígios que brotam da terra, junto àmina que se explora; que crescem rápidos emgrandeza e em civilização, que têm umcomércio novo e forte, que arroteia terrenovirgem, que têm um cérebro novo e inventivo,e que nascido hoje, amanhã desenvolvido pelasforças novas que o impulsionam, efetua agoraem meses e semanas o que antes demandavaséculos e anos. A mina é o mais poderoso princípio dodesenvolvimento de uma terra virgem. A minaé o mais poderoso incentivo da colonização deuma terra agreste. Cintile o diamante, fulgure a pepita do ouro,negreje o bloco de hulha, lance a mina do seu

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seio cavernoso o cobre, o ferro e o chumbo, eali no deserto julgado árido, em torno dochumbo, ferro, cobre, hulha, ouro e diamante,nasce a vida, cria-se a civilização - e oprogresso caminha rápido como os seusmodernos elementos, o vapor e a eletricidade. Ontem as enxadas rudimentares dos indígenasesgaravatavam uma polegada de terra, e hojeas locomotivas poderosas, lançando aos ares ogrito da civilização no sibilar do apito, vãomovendo arados que revolvem fundo a terra,virgem desde a sua formação geológica, e vemtrazer à superfície em glebas recurvadas opedaço de solo que nunca cuidou ter outromovimento além do que as leis do Criador lhemarcaram no espaço infinito. Ali, onde ontem um rio caudaloso apresentavabarreira insuperável aos passos do rarocaminhante, hoje uma ponte construída debocados de ferro ligados em harmônicaarquitetura pelas leis sublimes da ciência, dáfácil passagem a uma população condensada,

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que nem sequer pensa nas águas revoltas quelhe correm aos pés. O pântano que ontem exalava o miasmapestilento está hoje convertido em parqueameno, cujas árvores modificam a atmosfera eo clima. O ferro que ontem, elementarmente tirado daterra, apenas servia para a imperfeita ponta daazagaia bárbara, corre hoje nas formasgigantescas - e resfriado em forma de trilhos,vai estender-se nessas artérias enormes ondepulsa o sangue das nações modernas. Do trabalho e da criação material nascemnovas ideias, o cérebro reforça-se, asfaculdades creidoras do engenho humanodesprendem-se mais e mais, e voam longe,trazendo cada dia novos e poderososelementos ao progresso e riqueza das nações. Foi assim que a América, em um século,passou além da Europa; é assim que a Áfricaum dia irá além da América. Na terra Gricua, onde, em 1867, apenascabanas abrigavam uma população bárbara,

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em 1870 eleva-se uma cidade europeia, aindaenvolta no caos das populações nascentes, massentindo em si todos os elementos deprogresso rápido. Nestas condições, não podiaadmitir sequer a dominação de povos tãoatrasados como böers e gricuas. Muito ocupada de si mesmo para se poderocupar de vizinhos importunos, apelou para aInglaterra. O diamante e o ouro tem o poder sobrenaturalde fascinar o rei como fascina o proletário, e seböers e gricuas estavam ofuscados pelo brilhodos diamantes africanos, a Inglaterra nãodeixou de se comover ás cintilações dos seixospreciosos, e decidiu logo no seu cérebrointeligente e cúpido, que a terra Gricua era suae não podia ser de outrem. À proclamação do presidente Brand seguiu-seuma proclamação do Governador do Cabo, emque se dizia, pouco mais ou menos, que a terrapertencia aos gricuas, e que os gricuaspertenciam à Inglaterra. .

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Esta proclamação precedia o própriogovernador, que entendeu dever ir ao lugar dolitígio. A recepção que lhe foi feita pelosmineiros, foi entusiástica e explêndida. Os gricuas, que se sentiam fracos em presençados böers, uniram-se naturalmente àInglaterra. Então o governador, forte com o apoio demineiros e gricuas, entrou abertamente emnegociações com os böers dos dois estados, efacilmente chegou a convencer Pretorius àdesistência dos seus direitos mais do queproblemáticos. Não aconteceu porém o mesmo com opresidente Brand, que não só recusou aproposta de ser a questão decidida por umaarbitragem do governador da Natalia, pedindoque essa arbitragem fosse de um dos soberanosda Europa, e ainda mais, fazendo reunir umaforça considerável de böers para empregar asarmas como argumento supremo. O Governador procurou e conseguiuprudentemente suster esta manifestação

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guerreira do estado livre, que teria sériasconsequências naqueles países. Ao mesmo tempo, o governo inglês anexava aoCabo o país diamantífero, sem se importarmuito com o que ali se passava. Brand todavia não desistia dos seus direitos,como Pretorius. Este böer (Pretorius), tendoapenas a educação rudimentar dos böers -aprendida nas páginas da Bíblia -, vivia esustentava-se mais pelo nome herdado de seupai do que pelas suas qualidades pessoais.Fora mais fácil à Inglaterra tratar com ele doque com o presidente Brand, filho da colônia -mas possuindo uma bela inteligência, umavasta erudição, e todas as tricas e chicanas deadvogado que é. Brand foi educado na Europa, é doutor pelaUniversidade de Leyde, tem carta dejurisconsulto nos tribunais de Inglaterra, e foiprofessor na escola do Cabo. Um homemnestas condições, e dotado de um caráterenérgico e forte, não se calava em presença dasanexações da Inglaterra - e continuou a gritar e

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a provar que a terra Gricua era suapropriedade. Em seis anos fez seiscentos protestos, até queum dia Lord Carnarvon, o estadista Inglês quemelhor tem sabido compreender os interessescoloniais da Grã-Bretanha, o convidou a ir aLondres tratar diretamente com ele ainterminável demanda. Brand em Londres continuou a lutar pelosinteresses do seu país, e cedeu os direitos àterra Gricua mediante uma indenizaçãopecuniária de 105 mil libras. Foi assim que Lord Carnarvon cortou de umavez para sempre as complicações entre osböers do Estado Livre e as Colônias Inglesas doSul da África. Brand, aproveitando a soma recebida em favordo seu país, tratou de lhe dar todo odesenvolvimento que uma pequena naçãopode ter com uma pequena quantia comoaquela. . .

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Mas deixemos os böers do Orange, dos quaisfalei apenas por se ligar a sua curta históriacom a do Transvaal, e voltemos a este país. Como disse, Pretorius transigiu logo com ogovernador do Cabo na questão da posse daterra Gricua, e isso foi motivo para sedesacreditar entre o seu povo. A assembleia nacional (Volksraad) apresentouum voto de censura ao seu presidente, e foipreciso depô-lo e escolher quem o substituisse. Foi então eleito um holandês, FranciscoBurgers, o terceiro presidente da RepúblicaTransvaaliana. Francisco Burgers, homem inteligente eilustrado, ministro protestante da IgrejaReformada, pensou logo que assumiu o poderem levantar o Transvaal ao nível das naçõesadiantadas da Europa. Todas as ideias doúltimo presidente eram nobres e elevadas, masnão podemos deixar de admitir que elecometeu erros manifestos de administração.Burgers não era homem prático, e não conheciasuficientemente o elemento que governava

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para saber como lhe dar o feitio que lhe queriadar. É sempre melindroso falar de um altopersonagem que vive, quando a crítica tem deanalisar os seus atos, e se eu não me possoeximir a falar do Dr. Burgers é porque à suaadministração se ligam fatos da maiorimportância. Não quero de modo algum impora minha opinião a respeito do governo doúltimo presidente do Transvaal. Direi abertamente o que penso, e que formemos outros os juízos que quiserem. Durante a minha estada no Transvaal, nãodeixei de indagar, por todos os modos ao meualcance, os fatos da última administração böer,e sobre eles edifiquei a opinião que vou expor. O presidente Burgers, tomando conta dogoverno, quis caminhar mais depressa do quedevia num terreno tão pouco nivelado. Asquestões financeiras foram as que primeirochamaram a sua atenção, e bem preciso eraisso, porque no Transvaal não haviam finanças..

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As despesas de administração eram pequenas,é verdade, mas as receitas gerais erampequeníssimas e mui irregularmente cobradas.Havia algum papel moeda e pouco dinheiroinglês. Burgers cunhou moeda de ouroextraído das minas de Lydenburg e conseguiuem pouco tempo restabelecer o crédito, muitoabalado, do seu país adotivo. Para isso tevelutas ingentes e ignoradas com um povo poucosubordinado e disseminado num territórioenorme, onde as comunicações eram e sãoainda hoje difíceis - e onde ainda não foipossível fazer um censo aproximado. Outroassunto importante que preocupava opresidente era a questão da força pública. Elepercebia bem que o sistema de defesaempregado até então pelos böers, a quechamavam “o comando”, isto é, umaconvocação geral para a guerra, era muitodeficiente e não podia continuar, num estadoque ele queria elevar à altura dos paíseseuropeus. .

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A questão de regularizar um exército entre osböers apresentava grandes dificuldades, eencontrou uma séria oposição. Um terceiro ponto de não menos importância atratar, e do qual se ocupou logo o presidente,foi o da viação pública. Burgers instituiu os primeiros juízes, e abriu asprimeiras escolas públicas no Transvaal. Istoera muito para um povo na infância, e foi feitode repente. Nisso, e só nisso, cometeu um erro opresidente da república. Uma espécie de febrede progresso se apossou do Dr. Burgers, quefez uma viagem à Europa, em 1875, com oduplo fim de arranjar dinheiro e um porto demar ao seu país. Para o dinheiro foi bater à porta dosbanqueiros de Amsterdam; para obter umporto foi pedí-lo ao governo de Lisboa. Em Amsterdam como em Lisboa foi escutado,e ao passo que obtinha um crédito na Holanda,fazia um tratado em Portugal para umaferrovia que ligasse Pretória ao soberbo porto

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de Lourenço Marques. Burgers voltavatriunfante ao Transvaal, onde o esperavam asmaiores decepções. Durante a sua ausência, havia-se renovadouma antiga pendência com um réguloindígena, Secucúni, ao qual era preciso fazer aguerra. Burgers não hesitou, e fez convocar umcomando ao qual aderiram uns dois mil böerse outros tantos indígenas. Ele mesmo se pôs àfrente do pequeno exército e foi atacar o régulosublevado. Ou fosse que Burgers não nascera para general,ou fosse por uma dessas outras causas difíceisde apreciar, que tantos desastres têm causadoàs tropas regulares inglesas em África, opequeno exército, depois de uma curta guerraem que poucas vantagens alcançou, teve deretirar. A esse tempo chegava a Natal Sir TheophilusShepstone, que ia de Londres, onde LordCarnarvon sempre na ideia de fazer umaconfederação dos estados da África do Sul,

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tinha feito reunir delegados das diversasprovíncias para discutir tal projeto. Parece que Sir Theophilus Shepstone levavainstruções do governo inglês a respeito doTransvaal, porque, logo que chegou a Durban,seguiu para Pretória. Não quero de modo algum entrar, numa obrado caráter desta, em apreciações sobre o fatoda anexação - e por isso limitar-me-ei a narraros fatos com a verdade que até hoje não temsido dita. Para bem se compreenderem essesfatos, é preciso mostrar o que era o Transvaal àépoca da chegada de Sir Theophilus a Pretória. A população böer, difícil de avaliar, mas queos cálculos mais aproximados faziam montar avinte e uma mil almas, estava espalhada numterritório imenso, igual em superfície áInglaterra e Escócia reunidas. Nesse grande país, três cidades apenas eramnúcleos de uma população mais condensada, ealgumas aldeias separadas por distânciasenormes, aumentadas ainda pela dificuldade

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das comunicações, reuniam pequenos gruposde habitantes. As três cidades, Potchefstroom, Pretória eLydenburg continham populações que eramtudo menos böers. As minas do ouro haviamatraído a Lydenburg aventureiros de todas asnacionalidades, predominando o elementoinglês importado da Austrália. Pretória era uma cidade nascente em quepredominava o elemento holandês, mas nãoböer. Potchefstroom era de todas aquela que erahabitada por maior número de böers, mas,ainda assim, eles estavam em minoria empresença dos holandeses e ingleses. As aldeias, das quais as mais importantes eramRustenburg, Marico e Heidelberg, já tinham apopulação böer misturada com ingleses eholandeses. A grande população böer estavadisseminada em casais, e fugia naturalmentedas cidades onde não podia fazer pastar osseus gados. .

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Se era difícil fazer um recenseamento dapopulação branca do Transvaal, mais difícil eraainda avaliar a população indígena. Tenhovisto cálculos que a estimam de duzentas anovecentas mil almas. O país estava coberto de missões de três ouquatro diferentes sociedades da inglaterra, dealgumas alemãs, e outras holandesas. Estesmissionários exerciam a sua ação sobre oindígena, porque holandeses tinham os seuspastores nas paróquias, e böers - que sabemtanto de Bíblia como os párocos -, até delesprescindiam. A sede do governo estava em Pretória, a maispequena das três cidades do Transvaal, masaquela que melhor se acha colocada. Oshomens que tinham a direção principal dosnegócios públicos eram holandeses. Esta era a posição da população heterogêneado Transvaal em princípios de abril de 1876. Vejamos agora rapidamente qual era a posiçãomoral, verdadeira ou aparente, dos böers. .

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Primeiro examinemos qual o juízo que fora daÁfrica se fazia dos franco-holandeses darepública africana. Era ele decerto péssimo. O böer era um selvagem branco, possuindotodos os maus instintos do selvagem, ávido derapina, devastando e incendiando as aldeias doindígena, pobre mártir da brutalidade erapacidade de tão extraordinário malvado. Foi assim que ele nos foi apresentado poralguns missionários, os únicos que na Europanos davam notícias dos antigos emigrantes doCabo. Forte contra o fraco, o böer era covarde e fracoem presença do forte. O que havia de verdadeneste juízo eu o direi adiante. Então estavam eles moralmentedesconceituados para com aqueles que apenasos conheciam por informações - e tinhamperdido um pouco o prestígio entre o gentiopelo revés sofrido com Secucúni. Falavammesmo, e entre eles discutia-se a questão, dedepor o presidente Burgers, elegendo para seu

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chefe um böer, P. Kruger, que estava dispostoa tirar a desforra do indígena Secucúni. Nestas circunstâncias a anexação era fácil, e SirT. Shepstone soube aproveitá-la. As cidadesque não tinham nada de böers eram por ele - enelas se obtiveram facilmente petições, que,digamos a verdade, eram dirigidas poringleses. Também se disse, que os pretos queriam seringleses - e então Sir T. Shepstone, por umaproclamação de 12 de abril de 1876 declarouque o Transvaal era uma província inglesa. Sir Theophilus Shepstone, quando fez aproclamação, estava escoltado por 25 homensapenas - que estavam acampados em barracasno jardim da casa que ele habitava. Assim, pois, a anexação do Transvaal foipacífica e não interveio nela a força armada,que ele mesmo não tinha, porque o regimento80 de Infanteria, que, debaixo do comando doMajor Tyler depois entrou no Transvaal, estavaa esse tempo acampado na fronteira de Natal,além do Drakensberg. A anexação foi pacífica,

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mas os böers so souberam dela depois deanexados. Sir Theophilus Shepstone, o homem quemelhor conhece e melhor sabe viver com oindígena daquelas paragens, soube o que fez. Os Böers, espantados de se acharem inglesesde um dia para outro, tiveram o seumovimento instintivo e hereditário deemigrarem de novo. Uma parte deles tomaram a vanguarda nessemovimento que se devia efetuar em massa, e jánarrei no capítulo anterior como foram, pelamaior parte, destruídos pela secura do deserto. Aquela imensa catástrofe susteve os que lhedeviam seguir os passos, e perfeitamenteapertados no círculo da mosca tsé-tsé, que lhesera barreira insuperável, tiveram que curvar acabeça de novo ao jugo da Inglaterra. Acabará aqui a história do Transvaal comopaís autônomo? Quem o sabe? É preciso ter vivido entre os böers para seavaliar quão forte é neles o desejo da liberdade,

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quão profundo o ódio que votam aos quechamam seus opressores. Deixemos por aqui este rápido golpe-de-vistalançado sobre a curta história do Transvaal,mas antes de reatar o fio da minha narrativa deviagem, quero ainda dizer duas palavras sobreos böers. Vivi entre eles, perscrutei a sua vida íntima,desci a exacerbar-lhes as paixões. Vi-os aotrabalho, cavalguei junto deles por brenhas eflorestas, e apreciei a sua destreza comocaçadores, a sua coragem em face do perigo. Não me preocupa a paixão; se recebi deles asmais afetuosas provas de amizade, já por maisde uma vez neste livro tenho patenteado aminha gratidão a favores maiores recebidos deingleses. Falo, pois, com a consciência de que as minhaspalavras são a mais rigorosa expressão daverdade, sem que no meu espírito haja ao ditá-las a menor influência apaixonada. Digo isto porque mais uma vez tenho de falardos missionários - falando dos böers -, e não

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desejo que nem de leve se pense, que atua nomeu ânimo um acinte formado contra tão úteisinstituições, que eu sou o primeiro a proteger ea aprovar - mas cujas chagas ulcerosasprecisam do corte fundo do bisturi da crítica,do cautério ardente da censura verdadeira,para cicatrizarem de uma vez para sempre. O Transvaal não é uma nação que se possaavaliar pelas nações da Europa. Ali há uma sóclasse social - o povo. Não há distinções etodos são iguais em absoluto. Sem escolas, todos são ignorantes;trabalhadores, todos são abastados; religiosos,e bebendo na Bíblia, único livro que conhecem,as leis da moral, todos são honestos. O princípio que estabeleceu, na idade média,as distinções na Europa, a coragem pessoal,não tem cabimento entre os böers, porquetodos são valorosos. Como entre todos ospovos que vivem uma vida elementar, só tomaascendente sobre os outros aquele que tem odom da palavra. .

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A vida do böer é regulada pelos preceitosBíblicos, e é verdadeiramente patriarcal. Entreeles não há a mentira; o adultério édesconhecido. O böer casa cedo, ou fica vivendo na casa deseus pais, ou dos pais de sua mulher – ou,unido a outro, vai perto arrotear novosterrenos e começar uma vida nova. A únicadistinção entre os böers é a da idade - e o maisnovo escuta sempre o mais velho. A mulhertrabalha e ajuda o casal num labutarincessante. O böer tem necessidades muitolimitadas, e pode satisfazê-las. Os emigrantes franceses da revogação do Editode Nantes eram, muitos deles, artífices - etransmitiram até à geração atual a arte detrabalhar a madeira e o ferro. Nas casas doTransvaal é fácil ver a um canto um torno, eum böer torneando os pés das suas mobíliassingelas. Fora, num alpendre, em cortume rudimentar,curtem-se os couros de que eles mesmos fazemo seu calçado.

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As outras necessidades da vida são facilmentesatisfeitas por gentes que não têm outraambição além da liberdade, e que há um séculoa buscam quase em vão. Como, pois, sendo os böers tais como eu osdescrevo, se diz deles tanto mal? A explicação do fato está em pouco para quemviveu no Transvaal, entre eles, e isento dapaixão de raça que pode perturbar o espíritomais justo e sisudo. Quem tem desacreditadoos böers são os missionários. Digo-o e sustento-o. Depois que os böers, ocupando o Transvaale pacificando pela força as aguerridas tribosque lhes disputaram a posse, deram uma certasegurança ao país, dezenas de missionárioscorreram a estabelecer-se ali. Destes uns eram bons, muitos maus. Precisodizer aqui o que é o bom e o que o maumissionário. Bons são aqueles que, inteligentes e ilustrados,possuindo as qualidades que se requerem nosministros de Deus, caminham para o seu fimdesassombradamente, edificando com

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paciência. Com paciência sofrendo o revés dehoje na esperança do trinfo de amanhã;ensinando a moral com o exemplo e com apalavra; indo devagar sem a agitação dapaixão que cega, possuídos daresponsabilidade da sua missão augusta. Bons são aqueles que à inteligência e ilustraçãoreunem aquelas flores da alma de que falei.Estes existem, mas infelizmente são empequeno número. Maus são os missionários que, poucointeligentes e quase ignaros, pensando que aciência da vida consiste em saber mal einterpretar pior algumas passagens dos LivrosSantos, empregam todos os meios, mais oumenos dignos, para alcançar um fim fictício; ecorroídos do veneno da vaidade, ou movidospelo interesse pessoal, querem apresentar àssociedades que os enviam, resultadosextraordinários, alcançados por meios que nãose avaliam na Europa - e que são a causaprincipal do prolongamento da luta travadaem África entre a civilização e a barbárie.

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Para estes, o fim principal é insinuar-se noânimo do indígena, e na falta de qualidadesque lhe ensinem o caminho a seguir, usam ummeio fácil para obter o seu fim, meio que lhesdá sempre bom resultado. É ele o de pregar arevolta. Para os ouvidos do indígena é sempre músicaharmoniosa a frase que o ensina a revoltar-secontra o branco. Os missionários que têm pouco saber e poucainteligência começam por gritar-lhe, a cadahora, a cada momento, no púlpito sagrado, quesó devem ouvir a linguagem da verdade; queeles são iguais ao branco, são iguais ao homemcivilizado - quando só lhes deveriam dizer ocontrário, quando só lhes deveriam dizer:”Entre ti e o europeu há uma diferençaenorme, e eu venho ensinar-te a vencê-la.” “Regenera-te, deixa os teus hábitos deindolência e trabalha; deixa o crime e pratica avirtude que eu te ensinar; aprende e deixa aignorância; e então, e só então, poderás

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alcançar um lugar junto ao branco; poderás serseu igual.” Esta é a verdade que lhes ensinam osmissionários bons, esta é a verdade que lhe nãosabem dizer os maus. Dizer ao selvagem ignaro que ele é igual aohomem civilizado é mentir, é cometer umcrime, é faltar a todos os deveres que lhe impôsaquele que o mandou à África, é atraiçoar a suamissão sagrada. Dizer ao selvagem ignaro que ele é igual aohomem civilizado é abrir a jaula à fera diantedo povo descuidoso que tranquilo estáconfiado em que a chave está em mão segura. Não! O indígena, tal como o missionário oencontra na África, não é igual ao homemcivilizado, está muito longe disso. Nele estãoadormecidos os instintos bons, para só serevelarem os maus. Nele há a indolência e o horror ao trabalho;nele há a ignorância absoluta - e bastam estasqualidades más, além de outras, para cavaremum abismo entre ele e o branco.

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O sistema seguido pelos missionários maus é oestabelecimento da desordem, é a maiorbarreira levantada ao progresso da ÁfricaAustral. Os böers, tendo conquistado um país de hápouco, em breve perceberam que, se algunsmissionários eram auxílio poderoso à suadominação, outros lhe criavam conflitos eobstáculos. Começaram, pois, a fazer guerra a estes, queprocuraram logo desconceituá-los aos olhos daEuropa. Daí nasce o exagero da má fama dosböers. Esta é uma verdade que eu tenho acoragem de dizer num livro destes, e queninguém ainda disse antes de mim. Vivi entre os böers, ouvi a muitos exaltar asqualidades de tal ou tal missionário, e deprimiros atos de outros e outros. Vivi em Pretória, eali, num meio muito superior, ouvi a mesmacoisa, de holandeses e ingleses. Vivi commissionários, e encontrei neles mesmos asverdades que afirmo. .

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Não têm disso culpa as bem-intencionadassociedades que os subsidiam. Não têm dissoculpa as autoridades que os apoiam, e que sãodeles muitas vezes as primeiras vítimas. O missionário deve ser um dos primeiroselementos da futura civilização, e delesdevemos esperar muito; mas, tais como muitossão, só dão resultados contraproducentes. O mau missionário pregou a revolta, e o böerfoi atacado. Houve guerra cruenta, e para aEuropa foram relatados os fatos horrosospraticados pelos böers, contra os bons,inocentes e pacíficos indígenas!! Não nos ceguemos, nos nossos bemintencionados sentimentos, a ponto deadmitirmos absurdos, de sonharmos quimeras! Eu ja li, em alguma parte, que o böer era muitoinferior ao negro!! Outra asserção que já ouviafirmar também, foi, que o böer era refratárioao progresso! Outro absurdo, outra aleivosia,saída da mesma fonte! Não é o missionário o homem que há de levaro adiantamento ao böer, e a razão disso é o

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meu principal argumento contra a obra demuitas missões, contra o caminho errado queseguem em África. Já tive ocasião de falar em missionários bemintencionados, mas que erravam na sua missãoquerendo ensinar as abstrações da teologia aospretos. Esta verdade revela-se no nada que elesobtêm junto aos böers. O böer sabe tanta teologia como o missionário,se não sabe mais do que muitos, bebida naBíblia, único livro que ele lê e estuda. O missionário que julga o seu trabalho serensinar a Bíblia, nada tem que ensinar ao böer,e deixa-o no estado em que o encontrou.Depois grita, que o böer é refratário aoprogresso! Sim! Ele não adiantou um passo,porque o não souberam fazer avançar. A culpanão está no discípulo, está no mestre. Outra aleivosia levantada contra osfazendeiros do Transvaal, é o ferrete decovardes que lhes querem imprimir na frontealtiva. Eu tive ocasião de avaliar a coragem dosböers; mas, se a não tivesse, bastava-me a

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história das guerras vencidas por eles contraZulus, Cafres e Basutos, para os supor bravos. Deus queira que eles não mostrem ainda o seuvalor, de modo a fazer calar os aleivosos. Hoje, que escrevo estas linhas, chegam àEuropa rumores de uma tentativa desublevação böer; será ela uma calamidade àÁfrica Austral, que toda a Europa develastimar. Será esmagada, como ninguém opode duvidar - mas virá trazer um desmentidoformal àqueles que chamam covardes aosböers.

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Capítulo VII No Transvaal (continuação) Mr. Swart—Dificuldades—Dr. Risseck—Eugastrônomo!—Sir Bartle Frere e o CônsulPortuguês Sr. Carvalho—O Secretário ColonialMr. Osborn—Jantares e saraus—O missionárioReverendo Gruneberger—Mr. Fred Jeppe—Ojantar do 80 de Infanteria—Major Tyler e CapitãoSaunders—Insubordinação—Mr. Selous—Monsenhor Jolivet—O que era Pretória—Umafotografia de pretas—Episódio burlesco da guerratrágica dos Zulus. Era em Pretória, já cidade inglesa e capital daprovíncia transvaaliana, que eu entrava namanhã de 12 de fevereiro de 1879. Encontrei logo o tesoureiro do governo, Mr.Swart, que me fez os mais cordiaisoferecimentos, mas que me disse não meconvidar para seu hóspede, porque não tinhana pequena casa que habitava um quarto aoferecer-me. Fomos aos hotéis. Nem um quarto, nem umacama! Voluntários, que de todas as partes

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corriam a alistar-se nos corpos que seorganizavam ali, atraídos por uma paga decinco xelins por dia, enchiam tudo e criavam-me um embaraço enorme. Eu, que até ali tinhatido cama, desde Benguela, comecei, naprimeira cidade civilizada que encontrava, anão ter onde me deitar! Enfim, depois de muitas buscas e de me teremprovado que as conveniências sociais (eu já metinha esquecido das conveniências sociais) nãome permitiam dormir na praça pública, ondeeu ficaria otimamente nas minhas peles deleopardo, pude obter um canto, no CaféEuropeu, onde me meti, com a promessa deum quarto em poucos dias. Estava arrumado,mas começaram novas dificuldades paraacomodar a minha gente. Mandei chamar o böer Low, que precisava detratar a mão esmagada pelo wagon, maspreveni Veríssimo que se deixasse ficaracampado fora da cidade até nova ordem. . .

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O portador voltou com Low e Veríssimo, queme veio dizer que a minha gente tinha fome eera preciso dinheiro para lhe dar de comer. Fiquei espantado ao ouvir aquilo. Eu já mehavia esquecido de que o dinheiro eraabsolutamente necessário em país civilizado, enão tinha nenhum. Contudo, compreendi que era preciso havê-lo efui pedi-lo ao meu hospedeiro, Mr. Turner, quelogo se prontificou. Mandei Low a um médico,e eu dirigi-me a casa de Mr. Swart, que meconvidara a jantar. Mr. Swart tinha feito convites e programa. Eu,que soube isso, fiz também grande toilet. Osmeus calções, que da fazenda primitiva jápouco tinham e onde os remendos deitadospor mim -que nunca tive grande jeito paraalfaiate - se sobrepunham, foramcuidadosamente escovados do pó e da lama devinte diferentes países. Achei um par de meias,que tinham sido repassadas com grandeperícia por Madame Coillard, e que faziamvista. As minhas botas ferradas, essa obra

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prima de Tissier de Paris, foram pela primeiravez engraxadas, e não tinham má aparência. Ocasaco dava-me mais cuidados, porque tinhauns bolsos de couro - que haviam sido outrorapretos -, mas que então haviam tomado umacor esquisita. Lembrei-me do tinteiro de Mr.Turner, e com uma pena de galinha procedi àpintura deles, que tomaram um preto baço,talvez ainda pior do que a cor que tinham. Depois de bem penteada a longa barba e osmais longos cabelos, fui para casa doTesoureiro do Transvaal. Ao passar os umbrais da porta do salão, fiqueideslumbrado. As damas em toilet, os homensde casaca, os leques, as vistosas e brilhantescores das sedas, os tapetes, os espelhos, tudoaquilo que eu já tinha esquecido em tantosmeses de vida rude e selvagem, produziram-me uma impressão que não pode ser avaliada. . . . .

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Deve sentir coisa semelhante o cego, a quem obisturi ligeiro do médico levantou a catarataque o tinha sepultado nas trevas, e que depoisde muitos meses de escuridão vê a luz. Eu estava perturbado, e sobretudo as mãosincomodavam-me muito. Não sabia que fazerdelas, e buscava debalde em que as ocupar.Faltava-me o peso da carabina, que euprocurava instintivamente, em vão. Fomos para a mesa. Eu conduzi pelo braço adona da casa, e ao chegar os meus andrajos às

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sedas que a cobriam, comecei a perceber queestava muito mal vestido. À mesa experimentei novas surpresas. Oscristais, as porcelanas, os vinhos rutilando nasjarras lapidadas, confundiam-me, e sobretudoo menu esquisito, escrito em elegantes cartões,intrigava-me. Cometi decerto desatinos, mas não posso bemavaliar toda a extensão dos meus disparates,tão inconsciente estava. Terminado o jantar, voltamos à sala, ondecontinuava a minha confusão, até que umadama se sentou ao piano. Os seus dedos correram ligeiros sobre as teclas,fazendo vibrar nas cordas em harmoniosoconcerto, um dos noturnos de Chopin. A impressão que me causou aquela música,aquele piano, cujos sons me penetravam naalma como uma sensação nova, acabaram deperturbar o meu espírito, fraco para poderresistir a tantos abalos. Foi quase em dilírio quevoltei ao Café Europeu, onde num canto de

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uma sala me haviam improvisado um leito,leito que tinha colchões, travesseiros e lençóis. Ia para me deitar como de costume, quandopercebi que me deveria despir para isso. Passeiuma noite de insônia, produzida pelasimpressões do dia e pelos lençóis da cama. Ao amanhecer eu estava a pé e vestido, porquena sala em que podia ter dormido começou umlabutar de criadagem. Comecei a pensar nomodo de accomodar a minha gente, o que nãome parecia fácil, e vi que sobretudo precisavade obter dinheiro. Estava fazendo os meus planos, quando mechamaram para o almoço. Fui para a mesa. Umcriado indiano, um desses coolies* que jáchegaram até Pretória, colocou diante de mimum prato de espigas de milho, cuidadosamenteassadas, e um pires de manteiga. Ao encararcom o milho assado, lancei ao pobre criado umolhar tão feroz, que ele recuou espavorido. * Trabalhadores braçais oriundos da Índia e daChina. Milho a mim! A mim, que só matava a fomecom milho havia um ano! Ah! Que vontade

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que tive de empalar aquele índio, o cozinheiroe o dono da casa! Fiz um gesto tão expressivo eenérgico, que as espigas desapareceram damesa, levadas pelo veloz criado. Pouco depois, chegava-se solícito a mim Mr.Turner, a perguntar-me o que eu queria paraalmoçar. O que eu queria para almoçar? Mas eu queriatudo, queria perdizes com trufas, queria foiegras, queria sorvete, queria vinhos dasmelhores colheitas de Burgonha, queria,queria… nem eu sei o que queria. O dono do Café Europeu julgou que lhe haviacaído em casa um desses gastrônomosfamosos, que pensam sempre em elevar umaestátua ao célebre Brillat-Savarin*, e que seainda a não erigiram foi por não acharemmatéria prima apropriada ao monumento –que, fosse à semelhança da Coluna Vendome,construída com os bronzes dos canhõesconquistados, seria uma recordaçãopermanente do homem que ensinou àhumanidade que no mundo não se come só

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para viver. Efetivamente, pela primeira vez naminha vida, eu era gastrônomo. * Diz a lenda, que portugueses da época insistiamem erigir um obelisco feito em chouriças, parahomenagear o chef de cuisine Brillant-Savarin,francês radicado em Lisboa por este tempo. Pela primeira vez na minha vida, comecei apensar que o paladar era um sentido como osoutros e que, se Mozart, Rossini, Meyerbeer,Verdi e Gounod, o chilrear das aves e sussurrardo arroio, foram criados para nos deliciar oouvido; se Raphael, Rubens, Van-Dyck,Velasquez e Murillo, as paisagens e as belezasnasceram para nos recrear a vista; se Atkinson,Rimmel, Lubin, Piesse, e as flores existem paranos deleitar o olfato; também Brillat-Savarin,Vatel, as trufas e os cogumelos não vieram aomundo sem uma missão especial. Comecei a compreender isto, tendo chegado aPretória depois de um ano de milho, massangoe carne assada sem sal. Creio que todos ospaíses do mundo compreenderão que eudevesse ser gastrônomo ao chegar a Pretória,exceto a Inglaterra, porque essa, infelizmente

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para ela, nunca compreendeu nemcompreenderá Brillat-Savarin. Felizmente para mim, eu estava numa terrainglesa, mas inglesa de fresco, onde o roastbeef e o plum pudding não haviam tomado umascendente notável sobre a cozinha dos paísesmeridionais. Mr. Turner não me deu um almoço como medaria o Matta, o Central, o Silva ou o Augustoem Lisboa, o Ledoyen ou o Café Riche em Paris- mas deu-me coisa muito sofrível. Não querodizer boa, porque eu começava a ser muitodifícil em gastronomia. Depois do almoço, em uma larga conversa quetive com Mr. Turner, fiquei desenganado deque não tinha onde acomodar a minha gentena cidade. Isto preocupava-me, porque nãopodia reter por muito tempo o wagon que eleshabitavam. Eu estava sendo uma espécie de urso quetodos queriam ver, e a curiosidade dosimportunos começava a desgostar-me.Sobretudo uma coisa que aborrecia era ver os

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espantos que se faziam da minha pequenaestatura e da minha aparência débil. Este fato repetiu-se na Europa - e em Lisboa,Paris e Londres, ouvi por vezes expressar aosque me viam a desilusão que experimentavam,por me julgarem um brutamontes, um Goliasde talhe hipopotâmico. Mas se, nas circunstâncias em que eu estavaem Pretória, muitos eram importunos e metorturavam, muitos outros procuravam portodos os modos servir-me e obsequiar-me. No número dos últimos, contei nesse diaquatro, que foram o Major Tyler, CapitãoSaunders do 80, Mr. Fred Jeppe e Dr. Risseck.Recebi dois convites, um para jantar, de Mr.Osborn, secretário colonial e governadorinterino do Transvaal, e outro do Dr. Risseckpara a um sarau - mas nada disto me adiantavasobre a maneira de arrumar os meus pretos. Pegando na minha carteira para procurar umresto de cartões de visita, encontrei nela umacarta de M. Coillard dirigida ao missionárioholandês Mr. Gruneberger. Aproveitei o ensejo

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que me oferecia aquela carta para fugir aosmaçadores, e fui entregá-la. Mandei aparelharFly e parti. A casa de Mr. Gruneberger é em Pretória, masum pouco afastada do centro da cidade.Chegado que fui, encontrei o missionário,homem muito novo, que me recebeu muitobem. Apresentei-lhe a carta de M. Coillard, elogo que ele a leu, ofereceu-me o seu préstimo. Falei-lhe no embaraço em que estava paraacomodar à minha gente, e ele prontificou-se aresolvê-lo, oferecendo-me o quintal da sua casae a sala da escola, para eles dormirem à noite. Aceitei pressuroso, e voltei ao Café Europeu,para mandar ordem ao Veríssimo de ir com owagon a casa do missionário. Aceitando o oferecimento do reverendo Mr.Gruneberger, fiz-lhe instantes recomendaçõessobre o modo de tratar os meus pretos,pedindo-lhe sobretudo que não os trata-se deigual para igual - porque lhe fiz ver que eleseram um pouco selvagens, e isso poderia trazerconsequências graves. Ele riu-se muito das

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minhas recomendações - e disse-memodestamente que o seu mister era tratar comtal gente, e por isso sabia do seu ofício. Nessa noite já os pretos dormiram na sala daescola, e o wagon descarregado ficou livre paravoltar ao Marico logo que a ferida de Low lhepermitisse pôr-se a caminho. Fui ao jantar do Secretário Colonial e ao saraudo Dr. Risseck. D casa de Mr. Osborn saípenhoradíssimo das suas atenções e muitocontente por ter resolvido um dos maioresembaraços da ocasião, a questão financeira,porque o governador interino do Transvaal,em nome do governo inglês, pôs à minhadisposição o dinheiro de que eu carecesse. Em casa do distinto médico holandês não meesperavam momentos menos apreciáveis,porque passei ali uma das melhores noites quetenho passado em sociedade. É verdade que o Dr., recebendo em sua casa,apresenta aos convivas uma maravilha que ostesouros dos nababos e o poder dos autocratasnão podem apresentar. É Mademoisele

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Risseck, é sua filha, deliciosa criança, queacabava de deixar os trajes da infância, e naqual o espírito e educação esmerada disputamprimazias a uma beleza sem igual. O Dr. holandês redobrou de instâncias comigopara que fosse ser seu hóspede, e eu decertoteria aceitado hospitalidade tão franca ecordialmente oferecida, se não tivera umapromessa de Mr. Turner de ter um quarto paramim no dia imediato. Nesse dia, 14 de fevereiro, terceiro de estadaem Pretória, acabavam de se resolver asminhas dificuldades. O telégrafo tinha levado longe a notícia daminha chegada àquela cidade, e o telégrafotinha trazido ordens, de Sir Bartle Frere, de SirTheophilus Shepstone e do Consul Portuguêsno Cabo, Sr. Carvalho, a meu respeito. Tinha amaior assistência do governo inglês - e oportuguês, representado pelo Consul do Cabo,ia além do estrangeiro. A minha gente disse-me estar otimamente emcasa do reverendo Gruneberger, e Mr. Turner

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dava-me um quarto. Verdadeiramente não eraum quarto, era uma casa toda e independente,próximo do Café Europeu. Comecei a respirar e a achar-me à vontade,mas tinha ainda um ponto negro, um pesadeloque me perseguia sempre - e era não saber oque fazer das mãos. Andava sempre a procurar a carabina, e tal eraa força do hábito, que mais de uma vez chegueia sair à rua com ela - com grande espanto dostranseuntes. Nesse dia remunerei Low e o endiabradoCristophe, que resolveram partir no diaimediato, apesar de a mão de Low nãoapresentar sensíveis melhoras. Mandei por Low uns pequenos presentes a suaavó, a velha megera do acampamento böer, e asuas irmãs, as duas bonitas raparigas quecozinhavam cebolas. Retribuí e despedi também o Betjuana Farelan,que tão bons serviços me prestou de Soul’sPort a Pretória, e por ele escrevi a M. Gonin, obom missionário francês do Piland’s Berg.

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Fui em seguida ao Cape Colonial Bank, ondedepositei a soma do meu débito a Mr. Taylor,de Shoshong - que, continuando as suasdelicadezas para comigo, ainda a esse temponão tinha feito apresentar a letra para o aceite. Em seguida a estes passos, fui para minha casa,de onde escrevi ao Governador deMoçambique, participando-lhe a minhachegada a Pretória e pedindo-lhe para mandarexpedir de Aden um telegrama que lhe enviei,dirigido ao Governo de Portugal. Continuavam os favores que não cessavam dedispensar-me as principais pessoas de Pretória,e eu quase não tinha ocasião para comer noCafé Europeu, tantos convites recebia. A 15 de fevereiro, tive uma larga conversaçãocom Mr. Fred Jeppe, o sábio geógrafotransvaaliano - e pelas informações que ele medeu, combinadas com o que me havia dito ogovernador interino e Mr. Swart, vi que aguerra dos Zulus era um embaraço àcontinuação da minha viagem. .

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Era-me quase impossível ir a LourençoMarques, como eu queria, e mesmo o caminhoda costa inglesa estava difícil, porque depoisda derrota de Isandhlwana, os Zulus estavamapenas contidos pelo bravo Coronel E. Wood,entrincheirado em Utrecht, e todas ascomunicações se faziam pelo Estado Livre doOrange, por Harrismith, triplicando o caminhoe as dificuldades. Logo que estudei a questão, decidi mandar aminha gente para Natal pelo caminho deHarrismith com as bagagens, incorporada naprimeira caravana que largasse Pretória, e eusozinho e escoteiro ir em linha reta pelo teatroda guerra. Dispus pois as coisas nesse sentido,e fiquei esperando o ensejo desejado. O dia 16 foi todo consagrado a Mr. Fred Jeppe,e em sua casa fiz as observações paradeterminar as coordenadas de Pretória. Mr.Turner tinha, a meu pedido, fabricado umgrande bloco de gelo - com o qual pudeverificar os zeros dos meus termômetros ehipsômetros.

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Dessas observações só existem ashipsométricas, porque as astronômicasperderam-se não sei como. Sei que as nãoencontrei registradas em Maritzburg quandoas quis calcular, e lembra-me que calculei alatitude mesmo em casa de Mr. Fred Jeppe, eque encontrei para ela o mesmo número quevem no almanaque do mesmo Sr., creio que doano de 1878, determinada por um oficial daMarinha Inglesa. Fui nesse dia procurado por um homem que sedevia unir àqueles que na cidade transvaalianase execederam nos favores que medispensaram. Foi ele Mr. Kish, membro da Sociedade Real deGeografia de Londres. Madame Kish, MadameImink e a Baronesa Van-Levetzow enchiam-mede favores, e nunca lhes poderei agradecertudo o que por mim fizeram. No dia 19 recebi um convite para jantar, dosoficiais do Regimento 80. Não posso deixar denarrar um episódio deste jantar, que mecomoveu em extremo.

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Eu continuava a usar os mesmos trajes, eapenas tinha feito uma absoluta reforma deroupa branca. Não possuía dinheiro meu, eaquele que saquei sobre o governo eradestinado às despesas necessárias daexpedição, e não às minhas necessidadesparticulares; por isso não comprava roupa pornão ter com que a comprar, e só o fiz emDurban, quando encontrei quem meemprestasse dinheiro a mim como particular.Por esta razão os meus andrajos continuavam acobrir-me, e naquele jantar destoavamcompletamente dos brilhantes e esplêndidosuniformes que vestiam os oficiais do 80 e osconvidados. O jantar correu alegre como entreoficiais que estão em campanha devia ser. Eu estava de excelente humor, e ria de uma ououtra anedota picante, quando umas dúzias deestalos vieram mostrar que os criados faziamsaltar as rolhas do espumante champanhe.Encheram-se os copos, esses pires de cristalsustentados por um problemático péperfurado, de onde sobe sem cessar uma

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fervura gelada, tão grata à vista como é gratoao paladar o líquido dourado em que ela seforma. O Major Tyler, que presidia à mesa, levantou-se, e tomando o copo, pronunciou essa palavra,que, nos mais ruidosos jantares ingleses impõeo mais profundo silêncio. Major Tyler disse,com a sua voz forte e sonora: “Gentlemen!” “Gentlemen, à Sua Majestade El-Rei dePortugal.” Nós todos, de pé, íamoscorresponder à saúde, quando a música doregimento rompeu o hino d’El-Rei D. Luiz, quefoi escutado de pé no meio do maior silêncio. Não é possível pintar as sensações queexperimentei ao ouvir aquela música, aquelehino patriótico tocado em terra estranha,aquela homenagem prestada ao meu país napessoa do seu soberano. Se devi muitos favores e muita amizade aoMajor Tyler, agradeço-lhe acima de tudo asurpresa que me deu naquele momento. .

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A afinidade de vida levava-me todos os dias aoacampamento das tropas inglesas, onde eu, senão jantava, almoçava - prendendo-meverdadeira amizade a muitos dos oficiais, umdos quais se tornou meu inseparável amigo. Era ele o bravo Capitão Allan Saunders. Damesma idade e encontrando um no outroidênticas inclinações e gostos, o tempo que eunão passava com Saunders passava-o elecomigo. Todas as tardes, às 4 horas, nosencontrávamos em casa da Baronesa Van-Levetzow, onde aparecia também às vezes oMajor Tyler, e onde se reunia uma distintasociedade de elegantes e formosas damas. A Baronesa dava-nos um ótimo e esquisitocafé, que era servido por sua filha, umaencantadora criança loura e agitada. Sabendo-se da minha ligação com Saunders, eujá não recebia convite sem que ele fosseconvidado também, e assim passamos muitashoras deliciosas em casa de Madame Kish e deMadame Imink e outras. .

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Aquilo era um céu aberto, e enquanto eu nãotinha mais que fazer do que esperar osacontecimentos, só pensava em passar o tempoo mais agradavelmente que podia. Se eu tinha trabalhado e sofrido tanto!! Fui avisado de que um comboio de wagonsdeveria partir para a cidade de Durban no dia22, e tratei de contratar com os condutores otransporte da minha gente e bagagens. Estecomboio devia gastar de 35 a 40 dias nocaminho, e por isso deixava-me largas para medemorar ainda em Pretória algumas semanas,porque eu calculava gastar apenas seis diaspara alcançar o mar. No dia 21, estava eu preparando umas caixasem que deviam ir uns pássaros que eu trouxerae que tinham sido cuidadosamente arranjadospor Mr. Turner, em que deviam também seracondicionadas as peles, despojos das minhascaçadas, e uns insetos que pude aproveitar -porque dos muitos que apanhei ao sul doZambeze, só chegaram a Pretória pernas,cabeças e corpos separados, sendo impossível

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ao mais versado entomólogico dizer a quecabeças pertenciam aqueles corpos, a quecorpos pertenciam aquelas pernas. Estava eu arranjando aquilo, estupefato com opreço que me custava cada bocadinho de tábua- que é o gênero mais caro que encontrei emPretória, onde tudo é caro -, quando me vieramchamar a toda a pressa, dizendo-me que tudoem casa do reverendo Gruneberger andavanuma poeira, com a minha gente. Que já haviamortos e feridos e não sei que horrores mais. Corri a casa do missionário. Houvera e havia um caso grave deinsubordinação contra o dono da casa, que eureprimi num momento. Mas, desgraças, creioque apenas os queixos de um criado - partidoscom um bofetão de Augusto. Eu tinha sempre tido um pressentimento quealguma coisa aconteceria se se desse aconfiança que se deu a pretos daqueles. Mr. Gruneberger mostrou-me que erainconveniente continuarem em sua casa, emuita razão tinha ele nisso, depois dos

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distúrbios que eles ali fizeram. Como deveriampartir no dia imediato, pouco cuidado me deueste incidente; mas desgostou-me em extremo,pelo que eles fizeram numa casa em quetinham sido tão bem acolhidos. No dia imediato, soube que os wagons sópartiam no dia 26, e por isso acomodei ospretos o melhor que pude na casa quehabitava. Mr. Swart, o Tesoureiro do Transvaal,continuava a obsequiar-me e eu ia repetidasvezes a sua casa, onde sentia um prazer imensoem brincar com as suas filhas, duas formosascrianças. Eu nunca gostei muito de pequenos. Sempre osachei importunos e pouco interessantes; masdepois da minha viagem, comecei a sentir umaverdadeira paixão por crianças louras ebonitas, e em Pretória eu passava horas com asfilhas de Mr. Swart, ou com as de Mr. Kish. Talvez a lembrança de uma filha de quem euestava separado produzisse em mim aquelegosto de brincar com as inocentes criaturas.

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Talvez a vida rude e severa que eu tive numatão fadigosa jornada precisasse de umaantítese, que eu encontrava nas carícias dapequenada. Ia assim passando a vida em Pretória, quandoum dia fui procurado por um homem quetrazia uma carta para mim. Recebi odesconhecido, que tinha ares de sertanejoinglês. Era um rapaz ainda novo, de estatura mediana,simpático e de fisionomia enérgica, vestido deuma camisa grosseira e umas calças presas comum forte cinto de couro. Dirigiu-me a palavra em francês, daquele quese fala no Boulevard dos Italianos, eapresentou-me a carta. Conheci pela letra dosobrescripto que era de M. Coillard. Abri-apressuroso, e vi que era carta de apresentaçãodo portador. Não era preciso a recomendação de M.Coillard para eu cortejar com respeito eestender a mão com simpatia àquele homem. Oseu nome, bem conhecido nos sertões da África

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do Sul, era recomendação bastante. Era Mr.Selous, o atrevido viajante e ousado caçadoringlês. Mr. Selous esteve três dias em Pretória, econversamos muito sobre a África. Ele haviaentrado ao Norte do Zambeze em uma direçãoparalela ao Cafuque, e a leste dele, e fez-medesse país as mais interessantes descrições. Ali encontrou muitos portugueses, entradospor Quilimane, e entre outros citou-me umJoaquim Mendonça, que tinha como seusempregados três antigos soldados do Batalhãoda Zambézia, chamados Manuel Diogo,Joaquim da Costa e Antonio Simões. Pelo queele me disse, e combinando as datas, penso queseriam estes os Muzungos de que tanto sefalava no Baroze durante a minha estada emLialui. Mr. Selous deu-me um esboço grosseiro da suaviagem ao norte do Zambeze, de que eu nãome servi na minha carta de África TropicalAustral, por não me julgar autorizado a isso

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sem a sua prévia licença, que me esqueci depedir. Eu dei-lhe as indicações que ele desejava parauma nova expedição venatória nos arredoresde Linianti, e fiquei de lhe mandar um esboçodo país, que depois lhe enviei para Shoshong. No dia 23 fui almoçar com MonseigneurJolivet, o ilustrado Bispo de Natal, que então seachava em Pretória, dirigindo as construcçõesdo importante estabelecimento católico que alise ergeu depois da dominação inglesa e que édecerto a mais importante escola de educaçãodo Transvaal, onde muitos protestantes, Mr.Swart por exemplo, e outros, enviam as suasfilhas. Monseigneur Jolivet, homem sábio e derespeitabilíssimo caráter, conversou muitocomigo, e percebi que não era muito afeto aosportugueses. Pensa ele, que nós não somos muito bonscatólicos. Procurei demonstrar-lhe o contrário,mas creio que o fiz debalde, porqueMonseigneur vinha sempre com a história deum padre, o reverendo Bompart, que tendo ido

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a Lourenço Marques, não lhe foi permitido alicelebrar, apesar de todas as instâncias que fez. Não o pude convencer de que, se o reverendoBompart se apresentou sem autorização legal,era natural não lhe deixarem exercer o seumister; assim como não o pude convencer, deque quem governava na Igreja do Oriente era oArcebispo Primaz das Índias. O honesto Bispo, tinha tão profundamentearraigadas no espírito opiniões e malquerençascontra nós, que ficou na sua, dizendo-mesempre que nós somos os piores dos pedreiroslivres do mundo. Uma tia velha que eu tive,também dizia o mesmo depois da extinção dascorporações religiosas. Ora, o fato verdadeiro é que Portugal é um dospaíses mais religiosos que eu conheço, que émuito bom Católico, mas entende que religiãoe alta política são duas coisas diferentes.Aprendeu esta heresia com o Marquês dePombal, e, desde então, se os padres misturamreligião com política, zanga-se com eles. .

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Monseigneur Jolivet que me perdoe, se aindacontinuo a insistir em que somos dos melhorescatólicos do mundo, e que ainda o seríamos senos levantássemos forte e energicamentecontra os ministros da nossa religião, quetraindo os deveres sacrossantos da sua missãonobre e sagrada, fossem fazer propagandapolítica em detrimento nosso e em favor deestrangeiros na terra da Pátria, que terra daPátria é toda a terra onde se hasteia a bandeirade Ourique, seja qual for o ponto do globo emque ela tremule. É tempo de dizer duas palavras de Pretória, talcomo eu a vi em fevereiro e março de 1879.Começarei por descrever a cidade pelo seulado material. Pretória era uma cidadenascente, à qual a dominação inglesa não tinhaimprimido ainda o seu cunho nacional. As ruas largas e espaçosas dão acesso às casas,pela maior parte térreas, mas bem construídase elegantes. Abundam ali os jardins, e emalgumas ruas as casas elevam-se no meio deles. .

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A cidade assenta sobre um plano inclinado -que na parte mais elevada tem abundantesnascentes de água que a banham. Esta água, aotempo que ali vivi, corria nas ruas em valetaslaterais profundas e descobertas - que aescuridão da noite convertia em verdadeirosprecipícios. Recordo-me de mais de uma vezter caído nelas, chegando em casacompletamente molhado. Em alguns quintais e jardins ha árvores muitograndes e frondosas. As ruas estavam porcalçar, e com as chuvas eram incômodosatoleiros. Tem alguns templos decentes, uma modestacasa de tribunal, e muitos estabelecimentoscomerciais onde é fácil encontrar todo onecessário, e mesmo o supérfluo, que já ali háluxo. Na parte elevada estavam-se construindo osvastos quartéis para as tropas, que entãoestavam em grande parte acampadas embarracas, em torno de três casernas ainda malacabadas.

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O caminho da cidade para os quartéis eramedonho, e perigoso de noite, porque aschuvas cavavam regos profundos e produziamatoleiros enormes, onde nos enterrávamos, eonde por vezes arrisquei quebrar as pernas. Há na cidade alguns pontos muito bonitos,como é o chamado “as fontes”, e uma dassaídas coberta por chorões enormes - ondeuma azenha dá um cunho pitoresco àpaisagem. Os arredores são despidos de arvoredo, e umpouco monótonos, havendo apenas aqui ealém uma ou outra fazenda de böers a quebrara monotonia natural. Pretória deve ser um dia uma das mais belascidades da África do Sul, e tal como eu a vi jáapresentava um aspecto geral agradável emovimentado. Como em todas as terras ocupadas há poucotempo pela Inglaterra, Pretória estava cheia degente nova, que vinha procurar fortuna, e quenão a encontrando fácil, se alistava nosregimentos de voluntários, onde como

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soldados tinham uma paga de cinco xelinsdiários. O meu amigo Allan Saunders era o chefe dasecretaria dos corpos voluntários, e não lhesobrava o tempo para fazer alistamentos. Os negociantes são holandeses ou ingleses, ecomo a cidade em si mesma já temnecessidades, não é só o tráfico com o interior ecom o indígena que ali representa uma parteimportante no movimento comercial. Disse-me o Dr. Risseck, que o clima é bom,ainda que em certas épocas do ano não é isentode febres de caráter benigno. Sendo osarredores de Pretória abundantes emforragens, é fácil ter ali cavalos - e quase todosos moradores têm um dog-cart ou uma vitória,em que passeiam ou vão tratar os seusnegócios. . . . . .

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Tal era Pretória quando lá passei algumassemanas em 1879. Um fato que me produziu uma certa impressãofoi ver que muitas mulheres gentias dosarredores vinham à cidade vender os seusgêneros, cobertas com os trajes gentílicos, isto équase nuas, assim como as representa agravura junta a esta página; gravura cujahistória vou contar, porque ela representa uma

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lição àqueles que na Europa se afiguram serfácil realizar em África coisas facílimas novelho mundo. Há em Pretória um magnífico fotógrafo suíço,Mr. Gross. Eu travei conhecimento e tinha embreve relações de amizade com ele. Um dia, vendo um grupo de mulheres quevinham vender capata, chamei-as e propus-lhes comprar toda a capata que elas traziam, sese deixassem fotografar. As mulhereshesitaram, e eu comecei a fazer-lhes as maisbelas ofertas. Tentadas pelas minhas promessas, seguiram-me a casa de Mr. Gross. Deixei-as à porta eentrei. Logo que expus ao fotógrafo o meu intento, elefechou as mãos na cabeça e disse-me que, nãofazíamos nada, porque muitas vezes tentaraem vão a mesma coisa. Insisti, e Mr. Gross paracondescender comigo, pôs mãos à obra. Introduzi as mulheres no atelier, não semgastar nisso boa meia hora, porque, chegado o

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momento de entrarem em casa do fotógrafo,aumentou a sua hesitação. Aí estão elas no atelier, mas recrescem asdificuldades ao colocá-las em posição defronteda máquina. Estão em foco, e quando ofotógrafo vai introduzir na corrediça a chapasensibilizada, duas ou três fogem espavoridase outras deitam-se de cara no chão. Novo trabalho de paciência e outra meia horaperdida e uma chapa inutilizada. A mesmacena ainda se repete, até que enfim se podeobter um negativo, em que todas mexeramtanto, que nos deixa em dúvida se são macacosou cães as imagens reveladas. Outrastentativas têm o mesmo resultado, e perdido odia e gasta a paciência, elas vão-se. Eu, apesar disso, sempre teimoso em querer afotografia das pretas, cumpri o contrato indoalém das promessas feitas. Elas também meprometeram voltarem, e daí a dois diasestavam à minha porta. Lá vamos para casa de Mr. Gross, que já tremiade me ver com as pretas. Eu lembrei-me de me

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pôr ao lado da máquina e de lhes dizer queolhasem para mim, elas assim fizeram, e euencarei-as tão fito, com um olhar tão pertinaz,que elas perturbaram-se, tiveram essemomento de fascinação que produz aimobilidade, Mr. Gross descubriu a objetiva, eo grupo estava apanhado. Quisemos ainda tirar outro, mas o encantotinha-se quebrado - e não foi possível obtermais nada delas. Assim essa fotografia custou-nos dois dias detrabalho, uma avultada quantia, e umaincalculável paciência. No grupo, as mulheres que têm uma franja portanga são solteiras; aquelas que têm uma pele,casadas. No dia 25 de fevereiro, véspera do dia em quedeviam partir os meus pretos e as minhasbagagens para Durban, seriam 4 horas datarde, quando eu me dirigi a casa da BaronesaVan-Levetzow, a pedir-lhe uma chávena desseótimo café que ela tão delicadamente ofereciaaos seus amigos, quando em caminho me

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surpreendeu um movimento desusado nacidade. Perguntei a um transeunte o que haviade novo - e ele respondeu-me que os Zulusestavam às portas de Pretória, e que dentro empouco a cidade seria saqueada. Corri àsinformações, e para ir a boa fonte: fui à casa dogoverno. Ali soube que, de fato, os Zulus não estavamainda em Pretória, mas muito perto, e a cidadeseria atacada dentro de poucas horas. Asinformações eram oficiais e certas. Indaguei emque ponto eles estavam e voltei a casa. Mandeilogo Veríssimo, Augusto e Camutombo àdescoberta. Fiquei a pensar no caso, e, com o meuconhecimento de África e de pretos, concluíque tudo aquilo era um absurdo disparate. Saí a visitar várias pessoas, e se algumasencontrei possuídas do pânico geral, outrasestavam descansadas e não acreditavam, comoeu, no ataque dos Zulus. Algumas damastinham ido se refugiar no acampamento dastropas.

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Eu fui prevenir Monseigneur Jolivet do caso,dizendo-lhe o que havia, que não acreditava,mas que às vezes as coisas mais absurdasaconteciam - e por isso era bom estarprevenido para pôr a salvo as irmãs decaridade. Voltei a casa, e ao cair da noite chegavam, compequenos intervalos, os meus três enviados -afiançando-me, que no lugar designado nãohavia um só Zulu, nem deles havia notícia noTransvaal. Eu, que me fiava mais nas informações deVeríssimo, Augusto e Camutombo do que emtodos os relatórios oficiais, deixei os pretos emcasa - e fui ver o que faziam os meus amigosMajor Tyler e Capitão Saunders. Ao chegar ao acampamento, um terrível edesusado “Quem vem la?”, de uma sentinela,provou-me que ali estavam em pé de guerra.Respondi, “amigo,” e pude entrar. No campohavia grande reboliço. Fortificavam-se eentrincheiravam-se com os wagons. .

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Não me foi difícil encontrar o comandantemilitar de Pretória, o Major Tyler. Vestido como esmero e luxo que sempre usa, as mãoscalçadas em apuradas luvas brancas sem amenor sombra, o pé metido em elegantebotina, tal enfim como entra nas salas em que étão querido, o bravo commandante doRegimento 80 estava, com toda a placidez esossego, dando acertadas ordens e pondo ocampo em estado de defesa formidável.Cheguei-me a ele e disse-lhe que o ataqueesperado era uma verdadeira comédia. Elerespondeu-me que sempre assim o haviapensado - mas que, tendo recebidocomunicações oficiais, não podia deixar defazer o que estava fazendo, e que além disso,não desgostava daquele rebate, para avaliar oque eram os seus homens e saber com o quepoderia contar num caso sério. Dei razão ao elegante oficial, e fui-me em buscado seu imediato, o meu amigo Saunders.Andava ele de outro lado, dirigindo asmanobras, rindo sempre, sempre contente.

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Saunders pareceu-me acreditar nos Zulus, oque não lhe tirava nada do seu bom humorhabitual. Foi logo me mostrar duasmetralhadoras, para as quais estava a olharpasmado um alferes qualquer a quem ashaviam entregado. Depois disto, disse-me eleque estavam muitas damas recolhidas nocampo - e convidou-me a ir vê-las. Fomos passar uma minuciosa revista e vimosque o Major Tyler, como melhor relacionadocom o belo sexo, tinha cedido o seu quarto pelomenos a dúzia e meia. O quarto de Saunderstambém não estava vazio, mas deve dizer-se,em abono da verdade, que aqueles eram osdois únicos quartos do quartel - vivendo oresto dos oficiais em barracas. Saunders lembrou que em tempo de guerra erabom beber qualquer coisa, e fomos à sala dosoficiais. Na sala estava só um homem. Fardado earmado, estava sentado numa poltrona comtoda a comodidade, tendo diante de si umcopo de brandy e soda.

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Era o tenente Cameron, do regimento, quedisse a Saunders: “Meu capitão, eu cá estou àespera dos Zulus, e enquanto eles não vêm,vou bebendo.” Era realmente admirável ver esses bravosoficiais ingleses, que morriam rindo edescuidosos numa guerra inglória, tãotranquilos e sossegados em frente de umperigo qualquer como se os esperasse um baileou uma festa. Nós dissemos ao tenente Cameron que nãohavia Zulus, e ele recebeu a notícia com certatristeza. Quem sabe se ele, com a confiança damocidade, não tinha sonhado nesse momentocom os galões de um posto superior? Pouco depois reuniu-se a nós o Majr Tyler, edisse-nos, que ia ver o que faziam osvoluntários na cidade. Eu e Saunders acompanha-mo-lo. Era meianoite e havia escuridão profunda, a chuva caíaem torrentes, e eu apenas pude apanhar

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metade do impermeável de Saunders, quelevou só o cabeção, dando-me o resto. Tropeçando aqui e caindo além, chegamos àpraça, onde na igreja paroquial deviam estar osvoluntários. Entramos no templo, que estava cheio desoldados, e logo que o Major Tyler deu as suasordens, fomos todos três para minha casa. Estávamos muito molhados, e o meu primeirocuidado foi abrir uma garrafa de vinho velho.Bebendo e conversando, passamos ali umaparte da noite, rindo eu e Saunders a bom rir,da seriedade do Major Tyler, que estavaindignado por ter o seu quarto cheio, não dedamas, que ele é muito galante para se queixardisso, mas de meninos! De meninos quechoravam! Pela madrugada, o Major Tyler e o CapitãoSaunders retiraram, e eu fui me meter na cama. Eis como acabou um dos episódios cômicos datrágica guerra dos Zulus, episódio que ficariano esquecimento - se eu o não trouxesse apúblico.

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No dia imediato teve lugar um acontecimentoimportante para mim. A minha gente e asminhas bagens seguiram para Durban, pelocaminho seguro de Harrismith. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Capítulo VIII O Fim da Viagem A chegada do Coronel Lanyon—Parto de Pretória—Heidelberg—Um dog-cart—O Tenente Barker—Dupuis—Peripécias de uma viagem noTransvaal—Newcastle—A diligência—Episódiosburlescos—Pietermaritzburg—Durban—Volto aMaritzburg—Didi Saunders—Episódios emDurban—O Cônsul Português Sr. Snell—ODanúbio—O Commandante Draper—Regresso àEuropa. Andava tudo em reboliço. Nunca em Pretóriase tinham feito tantos gastos de toilettes, nuncaos lojistas venderam tantas fitas e tantasrendas! Os homens escovavam e preparavamos uniformes, porque todos mais ou menostinham uniformes, e os que os não tinhaminventavam-nos. Se tudo estava em guerra! Cavalos e carruagens sofriam tratos delimpezas desusadas. Tudo luzia e brilhava. Oentusiasmo era geral e chegava mesmo aosholandeses.

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As damas trabalhavam com afã e davam tratosao miolo - contido nas cabecinhas louras eencantadoras - para melhor pregarem umlacinho, para melhor fazerem realçar a belezadelicada. Os homens, eles, diziam “É C.B* e tem aVitória Cross, é o herói da guerra dos Ashantis,é um homem de grande energia, é um dos maisnotáveis oficiais do Exército Inglês.” Elas, elasdiziam: “Tem 36 anos o coronel, e dizem que éalto, nobre e bonito!” * Cavalheiro do Banho. Que entusiasmo! Eu nunca vi coisa assim! Omeu cavalo já estava emprestado a uma dama,que queria mostrar toda a sua elegância deamazona. Outras, mais infelizes, procuravamdebalde um meio de transporte. Só eu, creio,estava frio no meio daquela efervescência dedelírio. Eu cá não ia esperar o novo governador, econtentar-me-ia de o ir visitar à sua chegada.Mas quem pode dispor dos seus sentimentos e

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contar com o seu espírito no meio daefervescência geral? No dia 2 de março, comecei a sentir que a febredo novo governador se apossava de mim - esaindo entusiasmado de casa, fui comprar umchapéu novo! Era uma reforma importante nomeu traje. Aquele homem por quem se faziam tantostrabalhos de recepção aguçava-me acuriosidade. Os homens pareciam temê-lo, asmulheres pareciam adorá-lo; e ser temido doshomens e adorado das mulheres é ter atingidoa meta da felicidade para qualquer criaturamáscula. No dia 3 devia ele chegar, e o ponto deencontro era a nove milhas da cidade.Levantei-me sem mesmo pensar em lá ir, atéporque, se quisesse ir, não tinha em quê, tendoemprestado o meu cavalo. Às nove horas saí de casa, mas não encontreininguém. Fui almoçar, e não encontreininguém. Fui a casa de alguns amigos, e nãoencontrei ninguém em casa. Comecei a dar ao

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diabo o novo governador. Eu já começava aperder o hábito de viver sozinho, e queriacompanhia. Voltei ao Café Europeu e deparei com Mr.Turner. Dirigi-me logo a ele, e sem maispreâmbulos pedi-lhe um cavalo. Mr. Turnerjulgou que eu não estava bom de cabeça. Pedirum cavalo naquele dia e àquela hora, só uminconsciente o faria. Eu insisti em querer um cavalo, e a dificuldadeque se levantava era apenas incentivo paraexacerbar o meu desejo. Depois de muitopensar, Mr. Turner teve uma lembrança. Ele tinha um potro, ainda não montado,bravio, diabólico. Se eu quisesse o potro, eleemprestava-me. Fomos logo àcavalariça. Para aparelhar foi uma campanha, para montaroutra. Depois de várias teimas, em que tiveramrazão umas esporas enormes que me tinhadado Mr. Clark em Shoshong, conseguiendireitar no caminho do acampamento. Poruma questão de hábito, eu queria ver o Major

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Tyler e o Capitão Saunders antes de ir esperaro governador. Foi uma infeliz lembrança. O Regimento 80 estava formado em revista, eacabada ela pude falar aos meus amigos, masde repente a música começou a tocar - e ocavalo, espantado com a zabumba, começou afazer tais e tais desconcertos que tive de largardali a toda a pressa, atropelando as barracas delona do campo e fazendo até fugir de umadelas alguém que lá estava. Pude ver-me afinal em campo livre, e o potropagou caro os seus atrevimentos de momentosantes. Às duas horas eu alcançava ascavalgadas e estava entre os meus amigos, masestava em lastimoso estado de fadiga ecansaço. Pouco depois, uma carruagem escoltada poralguns voluntários de cavalaria, chegava emsentido oposto e apeava-se dela o novogovernador do Transvaal. O Coronel SirWilliam Owen Lanyon, K.C.B*., correspondia àespectativa geral. * Knight/ Dame Commander

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Era novo e belo, e do peito da sobrecasacapendia-lhe a Vitória Cross. Todos estavamcontentes, e os frenéticos “hurrahs!” que lhelevantaram eram disso prova. Seguimos para acidade. O meu cavalo, no meio dos vivas e dosoutros cavalos, estava insuportável e custava-me a conter. De repente, espantou-se com uma carruagem,deu um enorme salto e partiu. O meu chapéunovo, o chapéu comprado na véspera, caiu porterra - enquanto eu era levado com umavelocidade enorme, num correr desenfreado. Passei e em breve perdi de vista carruagens ecavaleiros. O terreno era bom e eu deixavacorrer o endiabrado, que a final havia de pararem alguma parte. Apesar de muito distanciado da comitiva dogovernador, pareceu-me que sentia um outrocorrer de cavalo, perto de mim, e voltando-mena sela percebi que era seguido e ia seralcançado em poucos momentos. Uma gentil amazona, muito melhor montadado que eu, porque montava o meu Fly, ria a

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bandeiras despregadas das minhas tribulações,e em breve emparelhando comigo estendia-meo pobre chapéu que eu tinha perdido - e queela, com essa perícia de todas as damas dascolônias do sul da África, que são as primeirascavaleiras do mundo, tinha apanhado do chãoe me vinha trazer, mofando de um cavaleiroque perdia o chapéu e o deixava apanhar poruma dama. Eu estava envergonhado, e sem me lembrar deque era impossível fugir às pernas vigorosas eligeiras de Fly, tentei instigar o meu cavalo auma fuga - a que ele já se recusava,apresentando uma fadiga bem motivada. Entrei em Pretória sempre perseguido peloschascos da amazona agitada, e depois de irentregar o potro a seu dono, fui a pé para oPalácio, onde esperei a chegada da festivalcomitiva. Chegaram eles, sempre dando mostras do maisentusiástico contentamento. O Coronel Lanyonestava instalado, e depois de um bem servidolanche, retiramo-nos.

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O valente e simpático coronel tinha captadotodas as simpatias, e desde a sua chegada,esqueceu-se o episódio do ataque dos Zulus,narrado no anterior capítulo, para só se falardele Governador. Nos dias seguintes fizeram-se recepções,saraus e matinês dançantes, a que eu nãoassisti, preocupado já com a minha saída paraDurban. No dia 5, fui eu a uma légua de Pretória, veruma curiosidade em que ingleses e holandesesme falavam muito. Era o Wanderboom, aárvore sagrada. Efetivamente, é digno de ver-se esse gigante vegetal, que os böers mostramcom admiração e que, deitando dos altostroncos novas raízes - que vieram procurar aterra e se converteram elas mesmas em caules -forma por si só uma espessa mata. Finalmente, depois das mais cordiaisdespedidas aos muitos amigos que tanto meobsequiaram em Pretória, parti, no dia 8, paraHeidelberg, onde cheguei por noite fora. .

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Decidi demorar-me alguns dias naquela bonitavila, para fazer as minhas últimas observaçõese fechar os meus trabalhos. Num jantar em Pretória, em casa de MadameKish, fiz eu conhecimento com um sujeitochamado Goodliffe, que sabia não ser dePretória - mas que não pensava também irencontrar em Heidelberg. Mr. Goodliffeconvidou-me para sua casa e fez-me osmaiores favores. No dia imediato ao da minha chegada, depoisde fazer as observações da manhã, fui darsozinho um passeio nos arredores e comecei atrepar montanhas e montanhas, até que, de umpico muito elevado, consegui dominar apaisagem. Pareceu-me que devia estar a umagrande altitude, porque dominava todas ascumeadas do Zuikerbosch-Rang. Olhei para omeu barômetro aneróide de bolso e vi que elemarcava dois mil metros! Decidi logo voltar lá no dia imediato, a fazerobservações mais seguras, e efetivamenteassim o fiz. Era na verdade aquela a maior

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altura a que eu tinha estado na minha viagem,e não deixei de fazer especial menção dela. No dia 11 de março, depois de ter concluídotodas as observações e fechado os meustrabalhos, parti de Heidelberg, às 8 horas damanhã, em um dog-cart, que precisa de umabreve descrição pela sua originalidade. Era um desses carros de fabricação americana,ligeiros e fortes, montado sobre duas rodasaltíssimas, e que, em lugar de varais, têm umaforte lança onde se atrela uma parelha, lado alado, e de onde partem os tirantes para umassotas soltas. Tem dois assentos costas comcostas, que podem admitir quatro pessoas.Bagagens nenhumas pode conduzir, e apenasuns pequenos volumes na exígua caixa. O meu cocheiro era um mulato, creio queGricua, chamado Joaquim Eliazar. Os meuscompanheiros eram o Tenente Barker, do 5o

Regimento de West York, e o seu ordenançaDupuis. Logo à saída de Heidelberg, tivemos deatravessar o ribeiro que corre ali, cujas

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margens quase a pique dão difícil passagem aum carro. A primeira foi passada sem dificuldade, masna segunda o dog-cart tombou, e o TenenteBarker caiu sobre Dupuis e eu sobre Barker. Levantamo-nos sem a menor contusão e rindodo caso. Dupuis, que tinha um nome francês,mas cuja nacionalidade eu nunca pudeentender bem, porque ele falavaindiferentemente todas as línguas, e serviaindiferentemente todos os países, começoulogo a contar vários casos de quedas e carrostombados que lhe haviam sucedido em França,na Rússia, na América e na China. Dupuis era homem de 55 a 60 anos, baixo,espadaúdo e robusto. Tinha servido noExército Francês na Crimea e contava comentusiasmo a carga de Balaklava. Tinha servido no Exército Inglês na Guerra daChina; na América serviu os Confederados,bateu-se depois na França pela Alemanha, em1870. Conheceu na Índia o Major Cavagnari, evinha de lá bater-se contra os Zulus.

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O seu desejo era ser soldado enfermeiro nasambulâncias do Exército Inglês; mas, enquantoo não conseguia, ia sendo camarada doTenente Barker. Barker era um desses jovensingleses, loiro, olhos azuis, tal enfim como osvemos, encontramos e conhecemos em toda aparte do mundo. Ia cheio de entusiasmo encontrar a coluna deSir Evelyn Wood, e bater-se contra os negrosde Catjuaio. Trabalhamos todos quatro rudemente para pôro carro em estado de seguir, e uma hora depoisvoávamos por sobre a planície, puxados porquatro ligeiros e robustos cavalos do país. Choveu bastante durante o dia, e às 2 horasencontrávamos o rio Waterfalls a transbordar.Era um embaraço. Alguns wagons de böersestavam parados junto dele sem se atreverem atranspô-lo. A profundidade máxima era de dois metros.Um dos wagons de böers estava carregado delenha, e apresentava do topo da carga ao chãouma altura de mais de três metros.

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Ofereci ao böer seu dono cinco xelins se elequisesse transpor o rio, e me deixasse ir com osmeus papéis encarapitado no alto da carga. O homem aceitou, e eu, Barker, Dupuis e osnossos pequenos haveres, armas e cartuchos,acomodamo-nos sobre a lenha. Oito juntas de possantes bois foram jungidosao wagon, que, poucos momentos depois,estava na margem oposta. Joaquim Eliazar em pé sobre os assentos dodog-cart, com água pela cintura e segurando asguias com destreza de um cocheiroconsumado, também transpôs o rio semacidente. Pouco depois, tomávamos pela quarta vezcavalos frescos da posta, e continuávamos essacarreira vertiginosa em direção ao vau deStanderton, onde devíamos passar o Vaal. Às 8 da noite, já com uma fome desabrida,entrávamos em uma modesta estalagem deStanderton, onde tínhamos uma péssima ceia,e não melhor cama. .

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De Heidelberg a Standerton o país é planícieenorme, a perder de vista, onde não cresceuma so árvore, e onde uma erva não muito altaserve de pasto a milhares de antílopes, pelamaior parte bodes saltadores (springboks).Sobretudo nas margens do rio Waterfalls viinúmeros, mas muito esquivos. No dia imediato deixamos Standerton, às 7 damanhã, depois de um almoço que nos fezlembrar que poderíamos ter almoçado setivéssemos quê. Pela tarde desse dia, já começávamos aencontrar falta de cavalos nas casas de posta,saqueadas ou abandonadas por causa daguerra. Ao mesmo tempo recresciam asdificuldades do caminho, porque nosembrenhávanos nos desfiladeiros doDrakensberg. Não se pode fazer muito ideia do que sejaviajar por montes e vales, sem caminho nemcarreiro, em um dog-cart puxado a quatrosoltas. Ao entrarmos nos desvios da serra, uma

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temerosa tempestade caiu sobre nós e umachuva copiosa alagou a terra e o carro. Veio a noite, e uma noite medonha. Osrelâmpagos alumiavam as trevas para as tornarmais negras e densas. Sá a muita prática dococheiro podia guiar o carro por aquelesalcantis num correr desenfreado. De vez em quando, uma cova, uma rocha, umprecipício, era nas trevas mais adivinhado doque visto - e um sonoro all fast (todos firmes)pronunciado por Joaquim Eliazar punha-nosde prevenção. E a chuva a cair, o trovão e o relâmpago aespantar os cavalos, e aquele carro sempre acorrer nas vertentes este da alta cordilheira.Tinha alguma coisa de fantástico o quadro, e setivesse sido visto por outros que não nósdeveria causar-lhes impressão profunda. Dupuis tinha sempre uma história a contar acada solavanco do ligeiro veículo. Umas vezesera na China, outras na América, outras naRússia que o caso se tinha passado. .

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Depois Dupuis cantava, e era já uma cançãoamericana, francesa, chineza, ou húngara, quevinha perder-se no estrepitoso rodar do carroou no cem vezes repetido eco dos trovões. Seriam 8 da noite quando um clarão fixo edistante me chamou a atenção. Endireitamospara ele. O caso não era muito seguro, mascontinuar o caminho assim era pior do queencontrar os Zulus. Paramos a distância da fogueira, e eu dirige-me a ela. Ao aproximar-me, vi que entre unswagons, debaixo de um alpendre improvisadocom panos de lona, estavam sentados trêsoficiais ingleses. Entrei rapidamente na zonade luz, para ser logo reconhecido e não levaralgum tiro. Os três sujeitos olharam para mimsem o menor espanto, e disseram-mepolidamente: “Good evening, sir”. Estavamtomando chá, e eu sentei-me sem cerimônia aolado deles. “Toma uma chávena de chá?” me perguntouum deles. .

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“Aceito reconhecido, e até aceitava de comer,porque tenho fome.” “De comer! Mas nós também não temos nadaque comer, e só chá e um pouco de açúcarpossuimos.” Tomei uma grande tijela de chá, e todomolhado deitei-me junto à fogueira, ondedormi toda a noite. No dia imediato parti logo de madrugada e sóà noite pude matar a fome em casa de um böer,que me leu três páginas da Bíblia, mas que emseguida me deu boa ceia. Passou sem incidentes o resto da viagem atéperto de Newcastle. Ali encontramos o rioNewcastle a transbordar, e tivemos umverdadeiro trabalho para o transpor, sendopreciso nadar, e molhando-se tudo o quetrazíamos. Chegado à povoação de Newcastle, o meuprimeiro cuidado foi almoçar, com uma fomede 24 horas. Eu em Pretória já tinhadesaprendido a ter fome, e começava aimpacientar-me quando a sentia.

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Instalei-me em um hotel, onde não se estavabem nem mal, e tratei logo de enxugar os meuspapéis - e de tomar um lugar na diligência quefazia o serviço daquele ponto aPietermaritzburg. Separei-me ali do meu tenente inglês, que sedirigia com o seu camarada ao teatro daguerra, e eu, um dia depois, tomava lugar nadiligência, e partia para o meu destino. Éramos nove no carro, oito homens e umadama, e haviam ali só dois lugares suportáveis,ao lado do cocheiro. Um foi cedido à dama e eu quis o outro. Era-me ele disputado por um tenente devoluntários, que trazia umas esporas enormese um uniforme esplandecente. Cada um de nósapresentava os seus respectivos direitos aolugar, ante o cocheiro, árbitro supremo naquelelitígio. Uma meia-libra, sutilmente escorregada namão do mulato, prevaleceu sobre uns poucosxelins dados pelo tenente, dizendo o cocheirobem alto que ele não era homem que se

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vendesse, e por isso entregava ao tenente unstrês xelins que ele tinha feito a ofensa de lhequerer dar. Dizendo-me que tomasse o lugarcobiçado, enquanto o voluntário marcial subiapara o interior, furioso e iracundo, o honradococheiro pôs as rédeas em ordem e fêz estalar ochicote. Se o tenente estava furioso, não o estava menosa dama - que podendo ter a seu lado umelegante oficial, tinha por companheiro ummaltrapilho como eu. Achegou a si o vestido para não roçar pelosmeus esfarrapados calções, e apesar de irritadacontra o cocheiro, preferiu encostar-se a elepara evitar o menor contato comigo. Na primeira muda, eu quis ver se derretiaaquele gelo, se quebrava aquela malquerençaque me afligia, e tendo encontrado uns frascosde amêndoas cobertas, comprei pressurosoum, pensando, na minha inexperiência emassuntos feminis, que uma dama jovem eformosa devia gostar de doce - e ser vencidacom bolos.

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Ao dirigir-me ao carro, eu já via aquela rugaformada entre os sobrolhos desfazer-se, já viaaqueles lábios pregados em gesto iradoentreabrirem-se em sorriso benevolente, já viaum princípio de conversação - e foi com amaior confiança que lhe estendi o meu talismã,o frasco dos confeitos. A joven dama, sem mesmo me dar a confiançade olhar para mim, disse-me secamente: “Nãotenho a honra de o conhecer.” Num ataque repentino de despeito, atirei como frasco fora - e ele foi partir-se sobre umarocha, entornando as esferas coloridas querolaram em todas as direções. Estavam abertas as hostilidades entre nós. À hora de jantar paramos em Sunday’s River,onde me deram um magnífico serviço por doisxelins e meio. A dama e o tenente de cavalos ligeiros, à mesa,muito unidos lançavam-me olhares furiosos - edecerto me rogavam tantas pragas quantas asque caíam sobre o Egito com a sua obra dedestruição.

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Ao subir para o carro, ignorando quem eu erae avaliando-me so pelos meus andrajos e pelaminha barba desgrenhada, a joven inglesadisse ao filho de marte, “que a gente ordináriajá se dava uns tais ares que irritavam.” Isto encheu-me as medidas, e eu prometivingar-me logo que a ocasião se apresentasse. Não tardou ela em aparecer. Nessa noite chegamos, às 7 horas, a Ladysmith,onde devíamos pernoitar. A vila estava cheiade gente, e transportavam-se ali os feridos e osdoentes. Não havia uma cama, não havia umcanto onde nos metermos. Em uma hospedaria, encontramos quase vaziaa sala de visitas - e digo quase vazia, porque sólá estava estabelecido um cabo de esquadraque, deitado no sofá, não fez muito caso dotenente de voluntários. A dama sentou-se em uma cadeira e o tenentesau. Eu travei conversa com o cabo deesquadra, e ofereci-lhe de beber. A perspectivade uma boa garrafa de vinho fez mais efeito nomarcial guerreiro do que os confeitos tinham

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feito na loura inglesa, e o meu homem sentou-se e travou logo conhecimento comigo. Eu sentei-me ao lado dele no sofá, prometendoa mim mesmo já não sair dali. Depois propusao soldado ir ele buscar a garrafa de vinho,para o que lhe dei meia libra. O homem saiu, eeu deitei-me no apetecido movel. Pouco tempo depois voltava ele com a garrafa,dois copos e cinco xelins de troco. Estendeu-meo troco, que eu, com um gesto de soberanodesdém, não aceitei e que ele fez desaparecerna profunda algibeira. Eu bebi um copo, ele bebeu sete. Quando ia melevantar, fingindo que lhe queria oferecer a suaconquistada propriedade, ele recusou-seterminantemente a isso, e eu estendi-mecomodamente, envolvendo os meus pés numpeludo cobertor e preparando-me para dormir. O cabo, meio embriagado, sau da sala - e nãosei o que foi feito dele, porque não mais o vi. Pouco depois entrou o tenente, que disse àdama não ter podido encontrar melhor lugarque aquele para passarem a noite.

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Olhou para mim e eu olhei para ele. O seuolhar parecia dizer-me, “Tenha dó desta dama,ceda-lhe o sofá.” O meu respondia-lhe: “Sou homem muitoordinário para ter dessas delicadezas.” Resignados, chegaram as cadeiras uma parajunto da outra e puseram-se a conversar. Euque pouco me importava de ouvir arrulhos depombos, fechei os olhos e dormi como umjusto até às 3 horas, hora a que me vieramchamar para partir. Às 6 chegávamos a Colenso, onde passavamoso rio Tuguela em um magnífico flutuador, e às3 da tarde parávamos na bonita aldeia deHowick, onde uma demora de duas horas mepermitu ir ver a formosa catarata que a tornacélebre. Efetivamente, é uma das mais belaspaisagens que tenho contemplado, aquela. Partimos, e pouco depois eu fazia parar adiligência, para falar à minha gente - queencontrei nos wagons em que tinham saído dePretória e que rodavam pesadamente nocaminho de Durban.

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Informado de que estavam todos bons e quesobejavam os víveres, segui, dando-lhe umponto de reunião em Maritzburg. Eram dez da noite quando chegava à capital daNatalia e ia me estabelecer no Royal Hotel, omelhor da terra, em um sofrível quarto. No dia seguinte, passaram os wagons com asminhas bagagens e os meus pretos, com quemfalei e a quem prometi esperar em Durban. Depois disto, fui procurar Madame Saunders, aesposa do meu amigo Capitão Saunders, paraquem era portador de cartas de seu marido. Em casa dela fiquei encantado com umacriança, a filha de Saunders, em que ele muitasvezes me tinha falado e que era encantadora. Quando saí de casa dela já éramos amigos, e euprometia à pequena Didi de voltar aMaritzburg, se não encontrasse logo umtransporte para a Europa em Durban. No dia 19 de março, depois de ter feito umajornada de 23 milhas em um ligeiro dog-cart,tomava a ferrovia e corria sobre os trilhospolidos em direção a Durban.

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Que impressão profunda não me causou oouvir o sibilar da locomotiva! Os postestelegráficos, dotados de pára-raios, como o sãoali casas e construcções quaisquer, faziam-meoutra vez lembrar da civilização da Europa, doprogresso do nosso século, da grande evoluçãoda humanidade, e mil ideias confusas se mebaralhavam no cérebro, quando às 6 horaschegava a Durban. Corri sem parar até onde pudesse ver o mar, efoi com lágrimas a marejar nos olhos, quefiquei extático diante dessa massa imensa deáguas azuladas que se confundiam ao longe,para este, com o azul dos céus. Neste momento não pude deixar de dizer amim mesmo, com certo orgulho: “Atravessei aÁfrica, este é o Oceano Índico.” Voltei à realidade depois de alguns minutos deabstração, e percebi que devia ir procurar umhotel. Eu já sabia que em todas as cidades da ÁfricaInglesa há sempre um Royal Hotel, e pedi queme indicassem.

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Depois de várias consultas entre o estalejadeiroe sua esposa, foi decidido que me dariam umquarto no fundo de um pátio. Tomei possedele, e quando estava a fazer o meu toilettepara o jantar, vieram dizer-me, que meprocurava o General. Eu já por vezes tinha ouvido falar no General,quando o meu hospedeiro combinava com amulher sobre que quarto me daria, e percebientão, que o General ocupava uma grandeparte do Hotel, e que era preciso não oincomodar. Recebi o General, que era um homem aindanovo e simpático, e me disse, que tendo sabidoda minha chegada, me vinha convidar a jantar. Era ele o General Strickland, Comissário emChefe do Exército Inglês. Fui jantar à sua sala particular, onde conheci àmesa um exército de repórters, enviados pelosjornais ingleses, franceses e americanos, paradarem notícias da guerra. Foi ali que conhecialguns desses homens, que, simplescorrespondentes de jornais, têm sabido fazer

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conhecer o seu nome no mundo inteiro; foi alique conheci os Srs. Forbes, Francis-Francis eoutros, que se têm imortalizado como o seucolega Stanley, que, antes de ser o primeiro dosexploradores africanos, foi o primeiro dosrepórteres americanos. O general Strickland dispensou-me as maioresatenções e finezas, e fui seu conviva enquantoestive em Durban. No dia seguinte, fui procurar o CônsulPortuguês, Sr. Snell, que teve para comigomuitas atenções, arranjando-me logo local, emsua própria casa, onde eu pudesse acommodaros meus pretos e as minhas bagagens. Contudo, de casa do Cônsul Português saímuito triste, por uma notícia que ele me deu. O navio para a Europa tinha partido nesse dia! Era um mês! Era um mês que eu tinha deesperar naquela terra, onde nada me prendia;era um mês que eu tinha a esperar mais parapoder abraçar os meus, para poder ver o meuPortugal. .

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Resignei-me, e no dia imediato pude assistir àchegada dos meus pretos, das minhasbagagens, do meu papagaio e da minhacabrinha. Instalei-os em casa do CônsulPortuguês, Sr. Snell, que continuou adispensar-me os maiores favores. Depois distocomecei a esperar que passasse um mês! Os meus trabalhos, sempre em dia, não medeixavam ao menos o recurso de trabalhar.Nos primeiros dias encontrei em que passar asmanhãs sem sair de casa. A casa de banho do Royal Hotel era do outrolado da rua, e os hóspedes tinham de fazeruma caminhada para irem a ela. O Hotelestava cheio de oficiais, que chegavam todos osdias de Inglaterra. Logo de manhã começavauma procissão, entre a casa de banho e o hotel,de homens de todas as idades e feitios, emtrajes muito ligeiros, levando cada um umatoalha e uma esponja enorme. Divertiu-meaquela cena burlesca por dois dias, mas aquilodurava apenas uma hora, de manhã, e eu nãosabia que fazer no resto do dia.

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Comecei a aborrecer-me muito, e acirrado pelacontrariedade que me causava a demora,comecei a sofrer. Sentia em mim um vazio enorme. Habituado aum trabalho de ferro, a uma vida tão ativa, auma tensão de espírito constante, à ideia dealcançar um fim. Tinha chegado à meta, esentia uma falta que não podia superar. Adoeci, e pela primeira vez na minha vida tivemedo de morrer. A guerra preocupava todos os espíritos, e nomeio daquele mundo em que vivia não tinhauma so afeição. Um dia, no leito onde me tinha prostrado adoença - e onde nenhma amizade me vinhatrazer uma palavra de conforto, tinha só naideia a saudade de uma esposa adorada e deuma filha estremecida, quando me veio àlembrança essa criança que eu tinha visto emMaritzburg e que tanta impressão me tinhafeito—a filha do Capitão Allan Saunders. Em miserável estado de saúde, saí de casa,tomei o trem, e segui para a capital da Natalia.

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Logo que me estabeleci, no Royal Hotel, partipara casa de Madame Saunders. Fui recebido com a maior afabilidade poraquela dama, e com muitos beijos pelapequena Didi, que eu levei a jantar comigo aohotel. Eu já tinha dinheiro meu, que me tinha sidoemprestado sobre a minha assinaturaparticular, e já comprara um vestuário decente. Uma boneca e uma caixa de amêndoas fizeramde Didi minha amiga íntima, e sobretudo umatartaruga enorme que me deram no hotel e queeu lhe dei, tornara aquela amizade emverdadeira paixão. Outro motivo não era decerto estranho aoamor daquela criança. Madame Saunders, parame ser agradável, deixava-me a sua filha já emsua casa, já na minha, e Didi encontrava nestaliberdade o meio de nunca ir à mestra. Estaconsideração devia pesar tanto como atartaruga e a boneca, na sua afeição por mim. Ao mesmo tempo, Mr. e Madame Furze, oCoronel Mitchell, o Coronel Baker, o Capitão

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Whalley e outros, faziam-me encontrar nelesverdadeiros amigos, que me enchiam defavores; mas Didi, aquela linda criança de noveanos, preenchia um vácuo na minha existênciade então, com as suas meiguices, e às vezescom os seus amuos e pirraças. Sem esta criança, eu teria talvez sucumbido aotédio que me ganhou e que me prostou aocomeço em perigosa doença. Pietermaritzburg é uma bonita cidade, temmagníficas casas e soberbos templos, em umdos quais ouvi por vezes a palavra eloquente,arrebatada e cheia de fogo, do sábio BispoColenso. Há ali formosos jardins e mimosíssimas flores,sendo as damas de Natal muito dadas àfloricultura, e concorrendo muitas vezes acertames nas exposições locais. Tem ummagnífico parque, onde à tarde circulammuitas e brilhantes equipagens. No tempo que ali passei, apresentava a cidadeum aspecto desusado e um movimentoconsiderável, consequências da guerra dos

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Zulus. Os hotéis estavam cheios de militares,os quartéis regorgitavam de soldados, e muitosacampavam fora deles. No Royal Hotel, quediziam ser o melhor, o serviço era mau, istodevido talvez ao excesso de hóspedes que alihavia. Havia também, em geral, um grandeabuso nos preços de tudo, e isso eraconsequência de o governo pagar sem regatear.O estabelecimento católico de Maritzburg émuito importante, e tido com a maior ordem,goza de grande crédito na colônia. O Cônsul Português, Sr. Snell, escreveu-me,que tinha chegado o navio ‘Danúbio’, da UnionSteamship Company, que devia seguir paraMoçambique e Zanzibar no dia 19 de abril. Parti, por isso, de Pietermaritzburg a 14, depoisde ter feito saudosas despedidas aos amigosque ali deixava. Dirigi-me ao Royal Hotel, e não pude obter umquarto. Então o Sr. Snell tratou de me arranjaralojamento, e pôde obter um quarto de banhono Club de Durban, onde me fizeram umacama no chão.

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Os oficiais que chegavam, a cada dia, nãotendo onde se meter, armavam barracas decampanha nos pátios e nas ruas em volta doshotéis e do Club. Pelo mesmo navio em que eu devia partir parao Norte tinha chegado o infeliz príncipeNapoleão, que tão caro devia pagar a suaousadia e coragem. Conheci-o, e não pudedeixar de me afeiçoar, no curto convívio quetivemos, a esse joven simpático, inteligente eilustrado, a quem uma morte inglória eestúpida cortou tão prematuramente umaexistência brilhante. Quantas vezes eu lhe repeti o meu princípiofundamental da vida africana, “de desconfiarem África de todos e de tudo, até que provasirrefutáveis nos fizessem confiar em alguém ouem alguma coisa.” A sua natureza ardente, a inexperiência dosseus poucos anos, a sua coragem leonina, eesse descuido peculiar à juventude cheia deilusões e crenças, causaram a sua perda. Sóquem não o conheceu não o lastimará, que nele

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havia o gérmen de um grande homem, haviauma atração indefinível para captar todos oscorações. Estranho à política da França, nestas poucaslinhas lavro um testemunho de saudade aojovem desterrado que foi meu amigo, e não aopríncipe que representava um princípio, e faço-o tanto mais desassombradamente, porque vios seus próprios adversários lastimaremaquela grande catástrofe. Nas vésperas da partida, travei relações comM. e Madame Du Val, e recebi deles muitosfavores, e finalmente, a 19 de abril, embarcavacom os meus pretos e as minhas bagagens numpequeno vapor que me devia conduzir aoDanúbio, ancorado fora, porque em Durban háapenas uma pequena enseada, fundeando osgrandes vapores na costa limpa. O mar estava um pouco picado e custou aatracar ao Danúbio. M. e Madame Du Val iamcomigo, porque M. Du Val, chefe daCompanhia Holandesa em África Oriental, iapassar em revista as feitorias de Moçambique.

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A passagem das bagagens do pequeno vaporpara o Danúbio foi difícil, pelo mau estado domar, e uma das minhas caixas caiu, sendoesmagada e desfeita entre os dois vapores. Caixa e conteúdo foram ao mar, mas oComandante Draper fez arriar logo um escaler,e pôde conseguir salvar algumas das coisasque ela continha e que flutuavam. Outrasafundaram e estavam irremediavelmenteperdidas. Deixamos Durban, e não foi sem uma sensaçãode infinito prazer que eu senti o espadanar daságuas em torno do hélice poderoso, que a cadarotação me impelia no caminho da Pátria. Em Lourenço Marques foi pouco o tempo parareceber favores, e a maior parte dele foipassada com o meu velho amigo Augusto deCastilho, e com os meus amigos Machado,Maia e Fonseca. A bordo, o Commandante Draper não cessavade me obsequiar. Cheguei finalmente aMoçambique, onde fui encontrar todas asautoridades na cama. O Governador Cunha, o

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seu secretário e os seus ajudantes, estavamabrasados em febre. Fui logo visitar o Governador, ao seu quarto decama, e apesar do seu melindroso estado desaúde e do cuidado que lhe dava o estado desua esposa, prostrada pela febre também, SuaExcelência deu as mais terminantes ordenspara facilitar o meu regresso à Pátria com agente que me acompanhava, fazendo-me osmais subidos favores. Fui dali procurar um velho amigo da Guerrada Zambézia, o Coronel Torrezão, em cuja casame hospedei, com os meus amigos Du Val. Dois dias depois, partia para Zanzibar, ondeesperava encontrar Stanley, mas com o qualme desencontrei, tendo partido na véspera daminha chegada. O Dr. Kirk, Consul Inglês em Zanzibar, deu-me um jantar, e subidos foram os favores querecebi dele e de sua esposa. Todos os europeusporfiavam em me obsequiar, distinguindo-seos oficiais da guarnição do London. .

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O Comandante Draper, logo que soube que ovapor de Aden só partiria dentro de oito dias,não consentiu que eu fosse para terra, dizendo-me (com razão) que as hospedarias ali erampéssimas, e por isso fiquei vivendo a bordo,sempre com um escaler às minhas ordens. Travei ali relações com um joven suíço, T.Widmar, que devia ser meu companheiro deviagem para a Europa. Depois de uma semana de demora, em quecada dia foi assinalado por novos favores deM. Du Val e do Comandante Draper, deixeiZanzibar num pequeno vapor do British Índia,onde recebi muitos favores do seuComandante Allen. Em Aden, como a carreira do British Índiativesse uma demora de oito dias, eu e Widmartomamos passagem a bordo de um vapor daLloyd Austríaca que nos conduziu a Suez,seguindo dali no primeiro trem para o Cairo. Eu tinha adoecido gravemente, e foi Widmar omeu enfermeiro, tendo por mim cuidados deum velho amigo.

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Ainda convalescente, fui às pirâmides com ele.Eu tinha visto o Zaire e o Zambeze; não queriavoltar à Europa sem saudar a velho Nilo, e doalto do sarcófago do rei Quéops, dessemonstruoso monumento levantado há quatromil anos pelo orgulho dos faraós, eu vi-o correrplácido e sereno, banhando as ruínas daoutrora soberba Memphis. Pouco depois, deixava o Cairo, soberba eardente, cidade de ouro e de miséria, e ia emAlexandria fazer novos amigos e receber novosfavores. O Conde e a Condessa de Capraraacima de todos, fizeram-me tais obséquios quemais pareciam amigos de anos do queconhecidos de dias. O Cônsul Geral de Portugal, o Conde deZogueb, também me fez oferecimentos navéspera da minha partida, quando soube que oCrédit Lyonnais de Paris me tinha aberto umcrédito no Egito, com dinheiro meu, mandadode Lisboa pelo meu amigo Luciano Cordeiro. Esquecia-me dizer, que por um mal-entendidodas ordens do governo de Portugal, eu estive

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no Egito sem dinheiro, gastando da bolsa deWidmar e da do Conde de Caprara, e podendogastar de outras muitas estranhas que se meofereciam e que não pensavam que eu fosseum cavalheiro de indústria, porque nãoignoravam que Portugal tivesse enviado àÁfrica a expedição de 1877, e que dessaexpedição o Major Serpa Pinto voltava àEuropa pelo Oceano Índico. Segui de Alexandria para Nápoles, e dali porterra para Bordéus, onde fui altamenteobsequiado pelo nosso Cônsul, o Barão deMendonça. A 5 de junho, deixava Pauillac, e a 9, emLisboa, pisava a terra de Portugal, no meio dosamigos mais diletos que eu tantas vezes penseinão mais ver. Na véspera haviam chegado os meus pretos, eo meu papagaio. Estavam pois a salvo ostrabalhos, e os restos de um dos ramos daExpedição Portuguesa ao Interior da ÁfricaAustral, em 1877. .

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Conclusão Vou concluir o meu trabalho apresentando asminhas últimas observações astronômicas emeteorológicas, e ajuntando a elas umvocabulário de línguas africanas. Limitar-me-eia dizer poucas palavras mais. O resultado das observações astronômicas,calculadas por mim em África durante aviagem, foram recalculadas em Londres porMr. S. S. Sugden, e apresentando, comoapresento. As observações iniciais, podem serainda reverificadas. Em todos os pontos onde me demorei mais deum dia, tive o cuidado de estudar as marchasdos cronômetros, que, além disso, me eramreveladas pelas comparações diárias e pelasobservações dos eclipses e dosreaparecimentos do primeiro satélite deJúpiter. Nesta parte de minha viagem, tive umasurpresa que me tirou algumas noites de sono.Foi ela a da grande diferença que encontrei na

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posição de Shoshong (Xoxom) em longitude, emesmo em latitude. Homens distintos e sobre todos Ed Mohr,passaram ali e determinaram aquela posição.Fiquei pois surpreendido, vendo que a minhadeterminação importava uma diferença demais de 60 milhas! Durante a minha estada em Shoshong, estudeicuidadosamente as marchas dos cronômetros,e conheci que se conservavam sem a menoralteração. Continuando a viagem, o meu únicocuidado era chegar a ponto onde pudessereverificar os cronômetros por uma longitudeconhecida. Assim fiz, e as segundas observações queapresento no quadro foram calculadas dosestados dos cronômetros, encontrados emSoul’s Port e Heidelberg. O último reaparecimento que observei do 1o

satélite de Júpiter, na noite de 13 de dezembro,e a verificação feita em Heidelberg, não medeixam dúvida de que a minha posição deveser muito próxima da verdadeira, quanto à

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longitude; e quanto à latitude, não tenho amenor dúvida em a garantir a 30” deaproximação. Aqui, como já fiz antecedentemente, apresentoas observações iniciais hipsométricas, para adeterminação do relevo do meu caminho. Empreguei no cálculo delas a temperaturaconstante de 23 graus para o nível do mar, porser ela a média das temperaturas sob a pressãode 760 milímetros naquelas latitudes. É minha opinião que, ali, não havendo ocasiãode fazerem-se observações simultâneas, deveser aquela a temperatura empregada noscálculos. Quis juntar a este trabalho uma coleção determos das línguas Hambundo e Ganguela,faladas de Benguela ao Zambeze, e fui à obrade Gamito buscar os termos correspondentesem uma outra língua falada nas mesmaslatitudes na costa de este, para que se pudessefazer uma comparação entre elas, eefetivamente encontramos ali muitos termoscommuns.

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Esta parte da minha viagem do Zambeze aoTransvaal, não apresenta aos geógrafos omesmo interesse da parte de Benguela aoZambeze, porque além do caminho de Deica aShoshong, é ela mais ou menos conhecida.Assim, pois, não me deterei aqui a acrescentarao que já disse nada mais, além de duaspalavras a respeito desse traço de Deica aShoshong, e sobretudo da região dos lagossalgados - e isto porque já vi a asserção de umexplorador eminente, de que o GrandeMacaricari derivava águas para a costa de estepelo Xua (Shua) e Nata. Não posso, nem devo, admitir tal hipótese. A poucas milhas de distância, o Xua e Nataapresentam um desnivelamento de 24 metros,e bastava que a água subisse no Macaricarimetade desta altura para alagar o deserto todo. Além disso, verifiquei, que o terreno se elevamuito para leste do Macaricari, e que todos osrios que descem ao lago apresentamdesnivelamento grande. .

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A primeira água que encontrei correndo a estefoi a que nasce na altura de Linocanin, cujasvertentes oeste deitam água a oeste no Deserto. Assim, pois, instrumentos na mão, e cálculos àvista, rejeito a ideia de que do GrandeMacaricari transbordem águas para o OceanoÍndico, e que me perdoe o meu illustre colegase o contradigo, e se não posso deixar desustentar a minha opinião estribada emobservações e cálculos que não falham. Perdoe-me, e se há nisto a menor teimosia, é ela damatemática, que tem às vezes as suasbrutalidades. Lembrei-me de juntar ao livro três fac-símilesde páginas do meu diário, dos meus livros decálculos, e do meu álbum de cartas, paramostrar os originais dos meus trabalhosafricanos, e com isto concluo a relação dessestrabalhos, que eu devia ao meu país e aopúblico em geral. . . .

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