de benguela a contra costa volume i nova edicao revisado

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Como eu Atravessei a África do Atlântico ao Mar Índico – Viagem de Benguela à Contra- Costa Através de Regiões Desconhecidas Determinações Geográficas e Estudos Etnográficos Por Serpa Pinto Dois Volumes Contendo 15 mapas e fac-símiles - e 133 gravuras feitas dos desenhos do autor. Volume Primeiro

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Este é um excelentíssimo livro (pura aventura e história), que eu tive o prazer e o longo trabalho de reeditar completamente, corrigindo o texto que estava repleto de problemas de escaneamento, apondo notas explicativas e vocabulário essencial, além da atualização ortográfica completa. Você poderá continuar lendo o seu livro sobre vampetas virgens e vegetarianas - ou até continuar naquele bruxinho que voa por aí com o rabo espetado no cabo da vassoura... O problema é seu.

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Como eu Atravessei a África do Atlântico ao Mar Índico – Viagem de Benguela à Contra-

Costa Através de Regiões Desconhecidas

Determinações Geográficas e Estudos Etnográficos

Por Serpa Pinto Dois Volumes

Contendo 15 mapas e fac-símiles - e 133 gravuras feitas dos desenhos do autor.

Volume Primeiro

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Nota desta edição Por Fernando de Almeida Soares Tenho o prazer de apresentar, pela primeiravez editado em português atualizado, o relatoda expedição de Alexandre Alberto da Rochade Serpa Pinto, oficial lusitano que cruzou decosta a costa a África (1877-1879), no sentidoAtântico-Índico, a pé, enfrentando perigosseveros e à custa de esforços admiráveis. Esta edição eletrônica do relato maravilhoso dajornada de quase dois anos, foi corrigida deinúmeras falhas de escaneamento e de “semirevisões” anteriores - que deixaram muito adesejar, inclusive naquilo que é mais simples:os erros de digitação. Editei o livro de forma pessoal e não comercial,usando para isto apenas dois elementos: oamor de bibliófilo e a experiência de 50 anoscompletados de leituras incessantes. Se a algum leitor escandalizar nas minhasnotas o traço crítico, justifico-me lembrandoque o próprio autor não se poupou a elas - quese referem a aspectos graves da sociedadeportuguesa de seu tempo.

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De minha parte, apenas procurei elaborarmelhor tais pontos críticos, assentado navaranda panorâmica da História - que mepermite enxergar desdobramentos queocorreram durante as muitas décadas que sepassaram desde o fim da existência do viajanteportuguês. Também desejo avisar ao leitor que a presenteedição não se enquadra nos moldestradicionais das editoras comerciais, queconsidero tacanhos, rígidos (no pior dossentidos) e, enfim, pouco inteligentes. Serpa Pinto foi grande explorador e exímioatirador. Foi tudo isto e muito mais. Mas,aquilo que Serpa Pinto jamais chegou a ser foium escriba razoável. A sua pontuação écrudelíssima, emaranhada – o que faz o textoficar pouco compreensível e pesado naquelesperíodos intermináveis que ele constrói aorelatar a sua história. Procurei sanar o que foi possível, dando umanova pontuação, reconstruindo algumas

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sentenças – e mesmo períodos inteiros – queme pareceram terem sido escritos inabilmente. Fiz isto, é claro, usando as próprias palavras doautor – e “remontando períodos” através deuma simplificação sintática, com o rearranjo desentenças e do reposicionamento de uma jámencionada pontuação disparatada. O relato do grande sertanista foi feito a partirde notas do seu diário - notas essas que foramtomadas em circunstâncias terríveis de doençastropicais e demais percalços de viagem. Essesmementos foram depois compiladas pelopróprio viajante, em Londres, e logo a seguir olivro foi impresso na Inglaterra. Ele não pareceter tido o apoio necessário de um bom editorportuguês - chegando até nós uma obra quetem o conteúdo de uma saga, mas que éapresentada com a proficiência linguística deum cavalariano. Erros ainda terão escapado ao meu exame, eseria uma boa contribuição daqueles que osencontrarem, corrigirem-nos – voltando a

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“upar” o texto, até que tenhamos uma versãocorreta, livre de falhas berrantes. Verti a linguagem original para o portuguêsatual, tentando não macular demais a elegânciaque existiu no passado recente do nossoidioma. No entanto, tive que despojar estalinguagem de algumas palavras que, hoje,pareceriam arcaísmos indecifráveis a muitos.Esses termos foram simplesmente substituídospelos seus correspondentes de sentido maispróximo possível e que estejam em usocorrente. As pequenas notas que enxertei no livro foramprimordialmente voltadas ao significado depalavras pouco conhecidas - e àqueles verbetesmarcantemente africanos, cujas fontes depequisa de significação não estão disponíveisao leitor comum. Tais notas foram postas(sempre) o mais próximas possível daspalavras a que se referem, como deveriam sertodos os elucidários: facilitadores – e nãoquebra-cabeças. Notas curtas e essenciais. As

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exceções foram raras e absolutamenteindispensáveis. E aqui vai uma observação sobre o autor, SerpaPinto; sobre esta obra e sua época - a segundametade do século XIX. Serpa Pinto, oficial superior do ExércitoPortuguês, foi um monarquista ardoroso eobviamente conservador (ele, que esteve entreos últimos fidalgos portugueses). Dele receberemos um retrato do homemafricano que parecerá, nos dias de hoje, umverdadeiro sacrilégio. O mesmo se dará com a própria África, inteira- e o que fazer com ela para levar-lhe o máximobenefício da civilização (leia-se a posse dasterras e a extração de tudo o que não fossemuito demorado, em benefício da“civilização”). Civilização portuguesa, é claro. Não importa. Vale a viagem, a aventuraarriscadíssima – e o fato mais surpreendente:apesar de todas as probabilidades apontarem ocontrário, Serpa Pinto conseguiu cruzar o

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continente africano com os poucos recursos deque dispôs. À aventura arriscada, mais ainda do queaquelas que podem ser encontradas nos livrosde ficção juvenil, nós, leitores modernosbrasileiros, poderemos também acrescentar aaventura de olhar - tão de perto - algunsaspectos do nosso passado nativo, atravésdaqueles que foram os nossos “civilizadores”.Isto sem correr o risco de ter de embarcarnuma perigosa “máquina do tempo” - piorainda, de fabricação brasileira. Embarquemos numa mais segura, que são oslivros do tipo deste, verdadeiros emuladoresda máquina do tempo. É impressionante. Impressiona, neste e em tantos dos livros quefazem a crônica de um Portugal colonizador,ver a inépcia, o descuro com o bem comum; odesleixo com tudo aquilo que, em tese, deveriabeneficiar as gentes a que se pretende governar– e tributar. É o hospital em ruínas, o porto que não podereceber mais do que canoas, o próprio “palácio

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governamental” - prestes a cair sobre ascabeças de seus moradores, dos convidados edo séquito, que nunca foi pequeno. Seria fatigante enumerar aqui os problemas dotipo “ruas imundas”, “policiamento feito porbandidos degredados”, “soldados matrapilhose famintos”, “corrupção endêmica” e etc. Isto jáestá relatado no livro, pelo autor. Veremos, aqui, o comerciante-aventureiroportuguês, ávido por lucros rápidos eextremamente empreendedor, lado a lado como governador que roubou, enriqueceu – e foiembora lindamente com o produto de suarapina: sem perseguidores e sem transtornospenitenciários. Ele apenas dará lugar a umoutro, “ao próximo”, ao seguinte na fila. A um outro governador que foi escolhido porcritérios de “simpatia” e de “amizade”;indicação batismal, de padrinho. E lá vai oindicado, governar em África. Vai afilhado - evai pagão -, desconhecedor emérito dequalquer rudimento dos problemas e afazeresque o estão esperando no pequeno feudo

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recebido como presente. Aliás, ele não foi atrabalho. Pela janela desta “máquina do tempo”,podemos ver a forja, as fôrmas, tudo - até ocarvão que entrou na nossa fabricaçãobrasileira. E se, em um momento qualquer, acriatura ultrapassou o criador, isto só nosmostra que a evolução funciona em todas asdireções, para o bem e para o mal – porqueadaptações que são boas para aautoperpetuação parecem estar incluídas na“deriva genética”, não importando para anatureza que o bacilo passe a matar mais emelhor. Enfim, “quem sai aos seus não degenera” - e oBrasil superou em muito àquele Portugal desempre, em falta de seriedade e de escrúpulos. Este livro ajuda a explicar o Brasil. O de ontem– desde 1500 -, o de hoje, e sem a menordúvida, o Brasil de amanhã (e de enquanto eleexistir). Apreende-se isto na leitura desta obra- e em dezenas de outros livros escritos pelos

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nossos civilizadores, além da leitura cotidianados jornais brasileiros por inúmeras décadas. Porém, muito antes de provocar o desprezo ouressentimento contra os varões peninsularesque nos trouxeram ao mundo e o mundo,aquilo que de melhor poderia causar um livrodeste tipo seria fazer-nos apreciar e entenderos nossos mecanismos nacionais – mentais,sentimentais, espirituais e “educacionaisancestrais”. Porque o entendimento consola. Trata-se de um livro que nada tem demonótono, de planejado demais: puraaventura, no interior de uma África do séculoXIX que nos é descrita como belíssima,surpreendente e semidesconhecida. Sobre a KindleGarten Edições: A KindleGarten a rigor não existe; trata-seapenas de uma brincadeira. A chegada dos leitores eletrônicos agora nospermite ler obras que não são maisencontradas - algumas delas sequer nas pobresbibliotecas brasileiras. Foi a salvação.

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Mas nem tanto, infelizmente, porque há umaimensa pilha de livros-lixo disponíveis nossites de downloads de ebooks. Este tipo deliteratura atende, é claro, à “mentalidadepredominante” e abunda numa proporção de200 para 1. Duzentos livros-lixo para cada umlivro que possa de fato receber este nome:livro. Mas, e aqueles que gostam de obrassubstancias (com conteúdo e qualidade) e quenão se contentam com o que foi feito domercado editorial? É justamente aí que entra a KindleGartenEdições, como uma fonte de consolação para osleitores que desejam livros que não estãodisponíveis nas luxuosas vitrines – agorareservadas aos vampiros, zumbis, auto-ajudaimbecilizante, religiosidade mercenária e boçal,esoterismo grosseiro e etc. “Bem, pelo menos... na Internet é gratuito”... E isto adianta alguma coisa? “De graça, atéônibus errado”? Pense bem... Não! .

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O meu propósito é colocar bons livros naInternet. Quer também fazer isto? Entãoescreva para [email protected] paratrocarmos ideias de como semear o máximopossível de livros valiosos – e que não sejamaqueles clássicos mofados do porte de um“Noite na Taberna” ou, pior ainda, “Como e PorQue Sou Romancista” (e ufanista, e helenista, eprolixo, e datado). Basta! Isto já temos demais – e também nãodeixa de ser lixo, com pompas ridículas. Coloquemos livros “de graça” [gratuidade] e“com graça” [espírito, valor], para aqueles quenão se dão bem com o monturo que sai daseditoras no presente.

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À Sua Majestade El-Rei D. Luiz I Com Prévia Licença Oferece Este Livro O Autor Senhor, Não foi um sentimento de adulação servil queme levou a pedir licença a Vossa Majestadepara lhe dedicar este livro, foi oreconhecimento de uma dupla dívida dejustiça e de gratidão: de justiça ao Monarcainteligente e ilustrado que firmou o decretocriando recursos para a primeira ExpediçãoCientífica Portuguesa deste século à ÁfricaCentral; de gratidão, ao príncipe cujos dotes decoração e de espírito disputam primazias àssuas nômades qualidades de um dos primeirosreis constitucionais da Europa contemporânea. Deu-me Vossa Majestade ensejo de prenderindissoluvelmente o meu obscuro nome desoldado português, a uma das mais felizes eauspiciosas tentativas modernamente feitaspor Portugal; por isso esse livro pertence a

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Vossa Majestade como legítimo título daminha imensa gratidão. Ouso rogarrespeitosamente a Vossa Majestade queiraaceitar a minha humilde oferta com a mesmabenevolência com que se dignou dar-meincitamentos para uma empresa, da qual,depois de realizada, foram ainda os favores deVossa Majestade a mais sincera e nãoregateada recompensa. O vosso Ajudante deCampo e o mais dedicado dos vossos súditos,Alexandre de Serpa Pinto.Londres, 61 GowerStreet, 5 de Dezembro de 1880.

À Sua Excelência O Conselheiro João de Andrade Corvo. Ilmo e Exmo Sr. Com propor o meu nome, em 1877, naComissão Central Permanente de Geografia,para fazer parte da Expedição Portuguesa aointerior da África, assumiu Vossa Excelência aresponsabilidade da minha nomeação. Foi para mim pensamento constante, dar aVossa Excelência satisfação plena do encargo

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que tomou indigitando-me para tão árduatarefa. Este livro contém, de envolta com a narrativadas minhas aventuras, os resultados dos meustrabalhos e estudos. Não sei se corresponderáao que Vossa Excelência esperava de mim;como não sei se cumpri os deveres que VossaExcelência, em nome do país, me impôs. Tenho a consciência de que trabalhei quantopude, e que segui, tanto quanto em forçashumanas cabia, o pensamento e as instruçõesde Vossa Excelência. A leitura da minhanarrativa mostrará a Vossa Excelência, comquantas dificuldades lutei, e de quãominguados recursos dispus. Se, porém, os meus trabalhos corresponderemà confiança com que Vossa Excelência me quishonrar, será isso o maior prêmio a que podeaspirar, o mais respeitoso admirador dotalento, vasto saber e nômades qualidades deVossa Excelência, Alexandre de Serpa Pinto - Londres, 61 GowerStreet - 28 de Novembro de 1880.

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Tributo de Gratidão. Vou citar nomes. É difícil e perigosa tarefa. Hásempre o receio de ferir modéstias, ou levantarsuscetibilidades. Não importa; sigo avante. Será grande a lista, por serem multiplicados osfavores; e posso bem pecar por omissão, filhade memória preguiçosa. Que me perdoem os que desejariam esconderesses favores na mais velada modéstia, comoaqueles a quem um lapso de reminiscênciadeixasse no olvido. Seguindo a ordem cronológica dos fatos,procurarei no profundo sentimento de gratidãoa lembrança dos serviços e favores recebidos. Cabe à Comissão Central de Geografia oprimeiro lugar no meu reconhecimento; por terme distinguido com a sua escolha parainstrumento da exploração que decidiu fazerem África. Proposto pelo Sr. Conselheiro Andrade Corvo,fui unanimemente aceito, e atendido naspropostas que apresentei para a organizaçãoda empresa.

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Falando da Comissão Central de Geografia,não posso omitir de citar nomes; porque,recebendo obséquios de todos, fuiparticularmente auxiliado por muitos. O Dr. Bernardino Antonio Gomes, Marquês deSouza Hollstein, Antonio Augusto Teixeira deVasconcellos, são nomes que as lousastumulares dos seus jazigos, não podem ocultarà minha gratidão. O Dr. Julio Rodriguez, Luciano Cordeiro, o Dr.Bocage, Conde de Ficalho, Carlos Testa, Pereirada Silva, Jorge Figaniere, e Francisco da Costa eSilva, foram os cavalheiros que, no seio daComissão, mais se esforçaram por me encherde favores. Outro, que só anos depois conhecipessoalmente (ausente enquanto se organizoua expedição), não deixou de concorrer com oseu conselho abalizado para a parte científicadela. Refiro-me ao Sr. Brito Limpo. Fora da Comissão, prestaram-me valiosoauxílio, os meus particulares amigos MarrecasFerreira e João Botto. Vem depois da Comissão

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Central, a Sociedade de Geografia de Lisboa; ecom ela mais em evidência, os seusPresidentes, Dr. Bocage e Visconde de S.Januário, e os seus Secretários LucianoCordeiro e Rodrigo Pequito. Segue-se o Jornalismo Português, a quemcordialmente agradeço todos os favores queme dispensou, e a maneira por que acolheu aminha nomeação. Fora do país prestaram-me valioso auxílio, oSr. Mendes Leal, Antonio d’Abbadie, eFerdinand de Lesseps, em Paris; o Visconde deDuprat e o Tenente Pinto da Fonseca Vaz, emLondres; sendo que à cooperação destescavalheiros, e só a ela, pudemos eu e Capelloter dado conta do encargo que tomamos deorganizar em um mês o material da expedição. Antes de ter deixado Portugal, há que citarainda dois cavalheiros, que concorrerampoderosamente para a realização da nossaempresa. São o Conselheiro José de Mello eGouvea, que então governava nos Negócios do

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Ultramar, e Francisco Costa, o Diretor Geral doMinistério das Colônias. Pedro de Almeida Tito, e Avelino Fernandes,dispensaram-me tais favores em viagem, quenão posso deixar de escrever aqui os seusnomes. Vem, em seguida, o do Governador de CaboVerde, Vasco Guedes, e o do Governador deAngola, Caetano de Albuquerque; que ambosme dispensaram inúmeras finezas. Em Luanda, José Maria do Prado, Urbano deCastro, o Cônsul Newton, a AssociaçãoComercial, e sobretudo os oficiais eComandante da Canhoneira Tâmega, sãocredores do meu mais profundoreconhecimento. Aparece agora um nome que nesse tempoecoava por todas as partes do mundo, eassombrava com as suas façanhas o orbeinteiro: Henry Moreland Stanley. O grande explorador, o ousado viajante, queacabava de fazer a mais prodigiosa viagem dos

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tempos modernos, foi meu amigo, e meuconselheiro, e dele recebi proveitosas lições.Melhor mestre não poderia ter. Que ele recebanestas curtas linhas o mais sincero tributo dagrande admiração que nutro por ele, e a maisfranca expressão da minha estima, e dagratidão que lhe consagro. Em Benguela, Pereira de Mello e Silva Portoocupam o primeiro lugar; e nem me detenho afalar deles, que mais alto falam por mim osseus atos narrados neste livro. Antonio FerreiraMarquez, o Tenente Seraphim, o FarmacêuticoMonteiro, e Vieira da Silva, são outros tantoscavalheiros que não posso esquecer. SantosReis, o meu hospedeiro do Dombe Grande, e oTenente Roza de Quillengues, são mais doiscredores à minha gratidão. Vou dar um salto enorme, e sem me deter afalar do Dr. Bradshaw e da família Coillard,transporto-me ao Bamanguato, a Shoshong(Xoxon), onde os favores do Rei Kama, esobretudo os de Mr. e Madame Taylor, meobrigam a não olvidar os seus nomes.

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Vai começar para mim um embaraço enorme.Estou em Pretória; estou na primeira terra domundo civilizado que encontro depois deBenguela; e ali são tantos os favores que se meprodigalizam, que não sei como sair doembaraço que eles me causam para osagradecer. Mr. Swart, o Tesoureiro do Governo, foi oprimeiro a obsequiar-me, e será o primeirocitado. Vêm em seguida os nomes de Fred. Jeppe,Secretário Osborne, Dr. Bissik, Mr. Kisch,Major Tylor e Capitão Saunders, e todos osoficiais do Regimento 80. A Baronesa Van-Levetzow, Madame Imink e Madame Kisch, eenfim o Coronel Lanyan. Sir Bartle-Frere veiologo em meu auxílio, e não se demorou o nossoCônsul Português no Cabo, o Sr. Carvalho. Se devo muita gratidão ao Governador Inglês,não devo menos ao Cônsul Português, que, portelegramas imediatos, veio prestar-me a maiorassistência. Monseigneur Jolivet, o sábio Bispo

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de Natal, então residindo em Pretória, não foidos últimos a encher-me de favores. Em caminho para Durban, recebi um obséquiogrande de Mr. Goodliffe, e em Maritzburgomultiplicaram-se os obséquios do CoronelBaker, Capitão Whalley e Madame Saunders, eMr. Furs. Em Durban, Mr. Snell, o Cônsul Português, eMr. e Madame B. H. de Waal, chefe da HandelsCompany em África Oriental, muito sedistinguiram em favores prestados. Agora é que se torna verdadeiramenteembaraçosa a minha missão. Vou regressar àEuropa, tendo terminado a minha viagem, eacumulam-se os obséquios que recebo a cadamomento. Em Lourenço Marques, sãoCastilho, Machado, Maia e Fonseca. EmMoçambique, o Governador Cunha, Torrezão etodos. Em Zanzibar, o Dr. e Madame Kirk,Widmar, e sobre todos o Capitão Draper do“Danubio” da Union Steamship Company, quede Durban me transportou ali. No Cairo, aindaWidmar me presta grandes favores. Em

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Alexandria, sobressai a todos o Conde e aCondessa de Caprara. Ainda antes de chegar a Lisboa, recebo umserviço importante do Barão de Mendonça, emBordéus. Em Lisboa, o Governo, primeiro, eamigos velhos e conhecidos novos, porfiam emobsequiar-me. Estou ali apenas dez dias, em que mal tivetempo para receber favores, e em que me nãosobejou um minuto para os agradecer.Quiseram que eu fizesse uma conferência, malrepousado ainda das fadigas da viagem; e semo poderoso concurso que me prestaramPequito, Sarrea Prado, Batalha Reis e Dr.Bocage, impossível me seria fazê-la. Não querendo, não podendo mesmo, citarnomes, tantos seriam eles, não deixo deagradecer, com o mais sincero reconhecimento,à Sociedade de Geografia de Lisboa tudo o quepor mim fez. À Associação Comercial e ao seu dignoPresidente, o Sr. Chamisso, que sempre tomou

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o maior interesse pela exploração de que eu fizparte. Soube em Lisboa um fato que não posso deixarde consignar aqui com um nome: agradeço aoSr. Thomas Ribeiro as ordens que deu comoMinistro da Marinha, para que me fossemenviados socorros de Moçambique para ointerior da África. Ao Corpo Diplomático residente em Lisboaexpresso os meus sentimentos de gratidão, esobre todos aos Srs. Morier, Barão de P.Hegeurt, Laboulay, Marquês d’Oldoini eRuata. À Associação Comercial do Porto, aosBombeiros Voluntários daquela cidade, àSociedade Euterpe e à Sociedade de Instrução,aos municípios e mais instituições do país queme obsequiaram, consigno aqui umtestemunho de agradecimento. Às AssociaçõesPortuguesas no Brasil, aos meus conterrâneosque longe da pátria me saudaram, a eles quenada pouparam para mim em honras edistinções, envio um fraternal protesto deimensa gratidão.

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Sobre todos àqueles que formaram umasociedade com o meu nome, e que dePernambuco me ofereceram um mimosopresente, de tal distinção, que nunca os podereiesquecer. Cabe agora, pela ordem dos fatos, agradeceraos Soberanos estrangeiros as altas honras comque me distinguiram, sobre todos ao MonarcaBelga, ao Ilustrado e sábio Rei Leopoldo, aogrande impulsor do movimento geográficoafricano moderno, que, a par da mais altahonra com que me podia enobrecer, medispensou a mais cordial estima, e me mostrouo mais afetuoso interesse. Às Sociedades de Geografia da França,principalmente às de Paris, onde o AlmiranteLa Roncière le Noury, Ferdinand de Lesseps,M. Daubré, Maunoir, d’Abbadie, deQuatrefages e Duveyrier, me encheram defavores; de Marselha, que me conferiu umasubida distinção, e cujo Presidente, M. Babaut,muito me obsequiou; e à Comercial de Paris,

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onde distingo o seu digno Secretário Geral, M.Gauthiot. Ainda em Paris, tenho a nomear a ColôniaPortuguesa, e nela os Srs. Mendes Leal, Condede S. Miguel, Camillo de Moraes, Pereira Leite,Garrido, e Dr. Aguiar, de quem nunca podereiolvidar os favores recebidos. Às Sociedades de Geografia Belga, e à deAnvers, nomeadamente aos seus Presidentes, oGeneral Liagne e Coronel Wauvermans; e alémdestes cavalheiros, não posso deixar de falar,em um país onde todos me obsequiaram, nosnomes dos Srs. du Fief, Bamps, e CoronelStrauch, e ainda mais alto no Conde deThomar, cujos favores repetidos e cordialidadede trato converteram em verdadeira amizade asincera estima das primeiras relações. Cabe, pela ordem dos fatos, o último lugar àInglaterra, que seria talvez a primeira pelonúmero de favores dispensados. Principiou nasColônias Inglesas da África do Sul a ter jus àminha gratidão este país, onde depois se metinham de multiplicar os obséquios.

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À Sociedade de Geografia de Londres, ao seuPresidente o Conde de Northbrook, aos seusSecretários Clements Markham e Bates, aosseus Membros Sir Rutherford Alcock, LordArthur Russell, Visconde de Duprat, e muitosoutros que impossível seria nomear, deixo aquiescritos os meus sentimentos dereconhecimento. Ao Sr. Frederico Youle, ao Dr. Peacock, aos Srs.M. d’Antas, Sampaio, Fonseca Vaz, Quillinan,Duprat, e Ribeiro Saraiva, a estes que além desubidos favores me dispensaram grandesserviços durante a minha grave doença, nãoposso deixar de lavrar um bem públicotestemunho de gratidão. Ainda me falta citar o nome de Mr. DavidWard, o Mayor de Sheffield, e do meuparticular amigo, o grande e eminenteexplorador Verney Lovett Cameron, parafechar a lista, que seria interminável a nãotomar a resolução de a fechar aqui. Às Sociedades Científicas dos outros países, e atodos aqueles que não posso citar, e que me

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cobriram de favores, agradeço tudo quanto pormim fizeram, e agradeço tanto maissinceramente, quanto me custa não os poderpersonalizar. Major Alexandre de Serpa Pinto. Londres, 5 de Dezembro de 1880.

O Livro Não tem pretensões a obra de literatura estelivro. Escrito sem preocupação da forma, é afiel reprodução do meu diário de viagem. Cortei nele muitos episódios de caçadas, eoutros, que um dia no descanso, produziramum volume de caráter especial. Busqueisobretudo fazer realçar o que mais interessantese tornava para os estudos geográficos eetnográficos, e se não me pude eximir a narrarum ou outro dos muitos episódios dramáticosque abundaram na minha fadigosa empresa,foi quando a esses episódios se ligavam fatosconsequentes, de importância, já para alterar oitinerário projetado, já determinando demoras,ou marchas precipitadas, que seriam

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incompreensíveis sem a exposição das causasdeterminantes. À Europa, e em geral ao homem que nuncaviajou nos sertões do interior da África, não édado compreender o que se sofre ali, quais asdificuldades a vencer a cada instante, qual otrabalho de ferro não interrompido para oexplorador. As narrações de Livingstone,Cameron, Stanley, Burton, Grant, Savorgnande Brazza, d’Abbadie, Ed Mohr e muitosoutros, estão longe de pintar os sofrimentos doviajante africano. Difícil é compreendê-lo aquem o não o experimentou; àquele que oexperimentou difícil é descrevê-lo. Não tento mesmo pintar o que sofri, nãoprocuro mostrar o quanto trabalhei, que mefaçam ou não a justiça de que me julgomerecedor aqueles que examinarem os meustrabalhos, hoje é isso para mim indiferente;porque me convenci, de que só posso ser bemcompreendido pelos que como eu pisaram oslongínquos sertões do Continente Negro, epassaram os maus tratos que eu por lá passei.

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Assim como só o homem que, sendo pai, podecompreender a dor pungente da perda de umfilho, assim também só o homem que foiexplorador pode compreender as atribulaçõesde um explorador. Há sentimentos que se nãopodem avaliar sem se haverem experimentado.Os fatos narrados neste livro são a expressãoda verdade. Verdade triste muitas vezes, masque seria um crime ocultar. Procureiapresentar nele os resultados de um trabalhoaturado de muitos meses, e garanto o que digosobre geografia africana, porque só eu souautoridade para falar nela na parte respectiva àminha viagem, enquanto outro não houverseguido os meus passos através da África, enão me convencer do contrário. As minhas opiniões genéricas sobre um ououtro problema podem ser errôneas, sãosujeitas à crítica, podem cair por terra com umademonstração prática das futuras viagens,como tem acontecido a asserções de muitosdos meus antecessores os mais ilustres; mas oque não tem nem pode ter contestação, são os

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fatos que eu vi, são aqueles que se referem aospaíses que percorri, e que descrevo neste livrocom a consciência que deve sempre ditar asações do explorador. Não fui à África ganhar dinheiro. Tive amesquinha paga de oficial do exército e nãoquis outra. Abandonei uma famíliaextremosamente querida; deixei a pátria e tudopara trabalhar, e só para trabalhar, emcooperação com os outros países, na grandeobra do estudo do continente desconhecido, etenho a consciência de que fiz tanto quantopodia fazer. Deixo aos homens de ciência eàqueles que são autoridades em tal matéria oavaliá-lo. Ponho ponto neste assunto que parecerá filhode um orgulho que não tenho, mas fatosinsólitos aparecidos no decurso dos primeirosmeses da minha residência na Europa, depoisde ter completado a fadigosa jornada daÁfrica, ditaram as palavras que escrevi. Há um ano que principiei a coordenar em livroos resultados dos meus trabalhos africanos,

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mas uma pertinaz doença por vezesinterrompeu a vontade que nutria de dar àestampa esses trabalhos. Principiado em Londres em Setembro de 1879,o meu livro foi quase todo escrito nos meses desetembro e outubro, de 1880, na Figueira daFoz, em Portugal. A pressa com que foiterminado contribuirá decerto muito para aincorreção da forma. A publicação dele é feita em Londres, ondeencontrei na grande casa editora Simpson Low,Marston, Searle and Rivington, todas asfacilidades que não pude obter fora dela. Estescavalheiros não recuaram ante a enormedespesa a fazer com uma tão difícil e custosapublicação, e levaram a sua condescendência afazer imprimir em Inglaterra a ediçãoportuguesa; trabalho dificílimo, porque adiferença das línguas dos dois países obrigouaté à fundição de tipos, por causa dos sinais eacentos privativos do nossa idioma. Devo-lhes a maior gratidão pelo interesse quetêm dedicado a esta publicação, para o mérito

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da qual, se é que ela tiver algum mérito, elesdecerto concorreram muito. O Sr. AntonioRibeiro Saraiva, que, a pesar dos seus trabalhose da sua avançada idade, me quis fazer o favorespecial de rever as provas do livro; o Sr. E.Weler, o cartógrafo, que se encarregou dagravura das minhas cartas geográficas; o Sr.Cooper, que interpretou magnificamente osmeus esboços de viagem nas gravuras queilustram a obra, concorreram também decertomuito para o valor dela. Aí vai, pois, o livro, e só desejo que elecorresponda e sirva à curiosidade de uns e aoestudo de outros; e venha dar novosincitamentos à grande e sublime cruzada doséculo XIX., a cruzada da civilização doContinente Negro. Londres, 61 Gower Street, 5 de Dezembro de1880. . . . .

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O Título do Livro Hoje, depois de jantar, saí a dar um passeio, ede volta a casa, encontrei sobre a minha mesade trabalho, pregado com um alfinete, umpedacinho de papel, recortado não sei de quejornal, que dizia assim: “O Athenaeum diz, que o Major Serpa Pinto,restabelecido da sua prolongada doença,chegou a Londres, para terminar a publicaçãodo livro descritivo da sua jornada através daÁfrica. Dá-nos grande satisfação o saber, que otítulo dele foi alterado, de “Carabina d’El-Rei,”para o de “Como eu Atravessei África.” “ACarabina d’El-Rei” pode ser um magníficotítulo para um livro de aventuras de rapazes,por Mayne Reid ou Gustave Aimard; masparece um pouco deslocado na página título deum livro sério de explorador Africano.” É meia noite, e eu sinto necessidade de medeitar; mas antes disso não posso deixar deescrever duas palavras sobre o assunto. A consideração tinha e não tinha razão de ser.As viagens na África produzem sempre um

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romance, e algumas vezes também um livro deciência. A minha, se, como todas, é umverdadeiro romance, não deixa por isso deconter trabalhos geográficos de algumaimportância. Formei logo o projeto, que hoje executo, demisturar em a narrativa esses trabalhos com asminhas aventuras, como eles tinham sidomisturados nos sertões africanos. A respeito do título para o livro, nada mepreocupei disso. Sendo salva a expedição, epor isso todos os trabalhos que a ela seligavam, pela Carabina d’El-Rei, pensei em daraquele título à obra toda. Não me davamcuidado juízos dos críticos severos. A minhajustificação estaria no correr da narrativa. Veio porém uma consideração modificar omeu projeto. Um homem, um único homem nomundo, incapaz de me increpar em públicopelo exclusivismo do título, decerto pensariaum momento em que eu tinha sido injusto paracom ele em fazer sobressair no meu livro o fatode ter sido salva a expedição pela Carabina

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d’El-Rei, quando ele teria igual jus à minhagratidão, tendo-me salvo por seu turno. Pesou-me aquele primeiro título escolhido,como uma injustiça que fazia a FranciscoCoillard, quando esse título me tinha sidoditado somente por um sentimento de justiça,porque sou pouco propenso a expressões deadulação. Resolvi imediatamente conservar o título deCarabina d’El-Rei à primeira parte da minhanarrativa, e dar à segunda o nome de FranciscoCoillard, o homem que, salvando-me, salvouos trabalhos da expedição que eu dirigia.Cumpria um dever. Mas desde esse momento, era preciso dar umtítulo geral à obra, e esse não é nunca difícil dese encontrar quando se tem atravessado umcontinente de mar a mar. Eis porque o meulivro se chama hoje: ”Como eu atravesseiÁfrica.” Sei que pouco deve importar ao público otítulo, qualquer, de uma obra destas. É precisochamar-se-lhe alguma coisa, e eu chamei-lhe

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assim. Pesar-me-á se ele desagradar a alguns,mas ainda assim não me preocupo com isso aponto de não me ir deitar já, esperando ter umsono profundo durante a noite. Londres, 61 Gower Street, 2 de Dezembro de1880, à meia noite. . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Como Eu Atravessei a África Primeira Parte — A Carabina D’El-Rei

Prólogo Como Eu Fui Explorador No correr do ano de 1869, fiz parte da colunade operações que no baixo Zambeze sustentoucruenta guerra contra os indígenas deMassangano. O Sr. José Maria Latino Coelho,então Ministro da Marinha e Ultramar, deraordem ao Governador de Moçambique, paraque, finda a guerra, me proporcionasse osmeios de subir o Zambeze, a fazer umdetalhado reconhecimento do país, tão longequanto me fosse possível. A ordem foi dada, mas não foi cumprida; edepois de vãs instâncias, e de um ligeiropasseio pelas terras portuguesas da ÁfricaOriental, voltei à Europa, com mais desejo queantes, de estudar o interior daquele continente,que mal tinha entrevisto. Razões particulares de família fizeram adiar, senão aniquilaram, os meus projetos.

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Oficial do exército, sempre de guarnição empequenas terras de província, fazia das minhashoras de ócio horas de trabalho; e ainda quemal antevia a possibilidade de ir à África, era oestudo das questões Africanas o meu único eexclusivo passatempo. As sublimes questões de astronomia não erampor mim desprezadas, e o muito tempo que medeixava a vida da caserna era repartido entre oestudo da África e do céu. Servia em Caçadores 12 no correr de 1875, e alitive por camarada um dos mais inteligenteshomens que tenho conhecido, o Capitão DanielSimões Soares. Pouco depois de havermos feitoconhecimento, éramos ligados por estreitaamizade. O quarto mesquinho do ilustrado oficial, nacaserna da Ilha da Madeira, reunia-nos duranteas horas em que o regulamento nos obrigava aviver ali; e quantas vezes, estando um de nósde serviço, teve a companhia do outro! África,e sempre África, era o nosso assunto deconversação. Apraz-me recordar esse tempo,

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essas horas que fazíamos correr velozes,debatendo questões, que eu mal pensava seriachamado a resolver um dia. Em fins de 1875, redigi uma memória, quesubmeti à crítica de Simões Soares, e de outromeu camarada, o Capitão Camacho; memóriafilha das nossas intermináveis palestrasAfricanas. Propunha eu um meio de estudar parcialmenteo interior das nossas colônias de ÁfricaOriental, e isso com a maior economia para oEstado. Depois de muito debatida a questão por nóstrês, foi a memória enviada ao Governo de SuaMajestade; mas soube depois que nuncachegara às mãos do Ministro da Marinha. Aesse tempo, eu pensava outra vez em voltar àÁfrica, apesar de ser chefe de família, e de meprenderem a Portugal interesses de subidaimportância. Por fins de 1876 voltei a Lisboa, e conheci queas questões africanas tinham ali tomadogrande interesse com a criação da Comissão

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Central Permanente de Geografia, e com afundação da Sociedade de Geografia de Lisboa.Falava-se muito numa grande expediçãogeográfica ao interior da África Austral. Fui procurar imediatamente o Ministro dasColônias. Era o Sr. João de Andrade Corvo. Senão é fácil explorar a África, não é menosdifícil falar ao Ministro, e sobretudo se esseMinistro é o Sr. João d’Andrade Corvo. SuaExcelência tinha a seu cargo duas pastas,Marinha e Estrangeiros, e o tempo não lhesobejava para falar aos importunos. Persegui-o uns oito dias, e na véspera daminha partida de Lisboa, obtive uma audiênciado Ministro dos Negócios Estrangeiros. SuaExcelência recebeu-me com secura, dizendo-me, que podia dispor de pouco tempo, eperguntando-me “o que eu queria?” Travou-se entre nós o seguinte diálogo: “Ouvi dizer, que V. Exa. pensa em enviar àÁfrica uma expedição geográfica; e sobre istovenho falar.” .

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O Ministro mudou logo de tom para comigo, emandou-me sentar com toda afabilidade. “Já esteve em África?” me perguntou ele. “Jáestive em África, conheço um pouco o modode viajar ali, e tenho me ocupado muito emestudar questões africanas.” “Quer ir fazeruma longa viagem na África Austral?” Declaroque hesitei um momento em responder. “Estoupronto a ir,” disse por fim. “Bem;” me disseele, “penso em enviar uma grande expedição àÁfrica, bem provida de recursos; e quandotratar de organizar o pessoal, não esquecerei oseu nome.” “É verdade”; me disse, quando eujá ia a sair, “que condições e que vantagenspede por esse serviço?” ”Nenhumas,” lherespondi eu, e saí. Fui do Ministério dos Negócios Estrangeiros àCalçada da Glória, no 3, e procurei o Dr.Bernardino Antonio Gomes, vice-presidente daComissão Central Permanente de Geografia.Tivemos larga conferência, e o distinto sábio,então todo entregue a questões geográficas,disse-me, que já tinha pensado em um distinto

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oficial da nossa Marinha de Guerra,Hermenigildo Capello, para fazer parte daexpedição. No dia seguinte parti para o Norte. A viagem eos ares do campo fizeram arrefecer um pouco ofebril entusiasmo que se apossara de mim emLisboa, e pensando maduramente, resolvi nãoir explorar em África. Minha mulher e minhafilha eram laços difíceis de romper, e cada vezque a ideia de me privar das carícias da meigacriança me passava pela mente, arrefeciacompletamente em mim o ardor dasexplorações. De um lado, a família, e do outro a África,eram dois poderosos atrativos que me tinhamperplexo. Encontrei um meio de resolver aquestão. Se eu fosse nomeado governador deum distrito, podia ir estudar uma parte daÁfrica, sem me separar da família. Fuicolocado no 4 de Caçadores, e na minhaviagem para o Algarve, passei alguns dias emLisboa. Não se falava mais em expediçãoexploratória, e apenas um entusiasta, Luciano

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Cordeiro, não tinha descrido de que ela sefaria; e na sociedade de geografia, de que erasecretário, tinha levantado um alto brado afavor dela. O Dr. Bernardino Antonio Gomes,já de idade provecta, tinha cedido ao peso doseu incessante labutar, e sentia já os primeirossintomas do mal que, pouco depois,arrancando-lhe a vida, devia arrancar aPortugal e ao mundo uma das maioresilustrações portuguesas do século XIX. Eu não conhecia a esse tempo o homemardente e ilustrado a quem hoje me prendeverdadeira amizade — Luciano Cordeiro. Todos aqueles a quem falava de exploração,me diziam ser coisa adiada. Ao passo que oestado em que encontrei as coisas em Lisboame compungia, pois que via perder-se a luzque um momento brilhara, para dar umimpulso harmônico às exploraçõesportuguesas em África; por outro lado, sentiaum certo prazer em ver-me, por esse meio,libertado do meu compromisso; compromissoque me separaria dos entes que me são caros.

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Nutri então a ideia de ir governar, e de meestabelecer em África, nessa África em que euqueria trabalhar, sem por isso me separar dosmeus. Fui falar ao Ministro. Dessa vez fui logo cordialmente recebido.Estranhei o caso, não se falando já deexplorações. “O que o traz por aqui?” ”Venho pedir a V.Exa. o governo de Quillimane, que está vago.”O Sr. Corvo riu-se. “Tenho missão de maiormonta a confiar-lhe;” me disse; “preciso de sipara coisa diferente de governar um distritoem África; e por isso não lhe dou o governo deQuillimane.” “Então V. Exa. ainda pensa emfazer explorar a África? Eu com franquezadigo, que hoje não creio que a ideia se realize.”“Dou-lhe a minha palavra de honra,” me disseo Ministro, “que ou hei de deixar de ser Joãode Andrade Corvo, ou na próxima primavera,uma expedição organizada como ainda se nãoorganizou expedição alguma na Europa, há departir de Lisboa para a África Austral.” “E

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conta comigo?” “Conto consigo,” me disse, “eem breve terá notícias minhas.” Saí aterrado do Gabinete do Ministro. Cheguei ao Hotel Central, e escrevi o seguinte:“Não tenho a honra de o conhecer, mas precisofalar-lhe, e peço-lhe uma entrevista.”Sobrescritei, a “Hermenigildo Carlos de BritoCapello—Oficial de guarnição a bordo docouraçado Vasco de Gama.” No dia imediato, recebi a seguinte resposta:”Estou hoje no Café Martinho, às 3 horas.Capello.” Às três horas entrava no CaféMartinho, e vi que as mesas estavamcompletamente desertas. Só a uma delas estavasentado um primeiro tenente de marinha, queeu não conhecia mesmo de vista. Devia ser omeu homem. Bebia pausadamente um grog, etinha a cabeça descoberta. Era de mediana estatura, tanto quanto eu pudeavaliar estando ele sentado. Moreno, de olharplácido; o cabelo raro, e grisalho, o pequenobigode já esbranquiçado, davam-lhe um ar develhice, que era desmentido pela tez

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desenrugada, e apresentando o lustre dajuventude. “É o Sr. Capello?” “Sou; é o Sr. Serpa Pinto? Jáo esperava, e sei que, provavelmente, vemfalar-me da África.” “É verdade. Então estádecidido a fazer parte da expedição?” “Estou; ejá nisso falei ao Dr. Bernardino AntonioGomes.” “Foi ele que me falou no Sr.; quecompromissos tem?” “Nenhuns. Não sei bem oque o Governo quer; falei duas vezes com o Dr.Gomes; ainda não vi o Ministro, e apenas lheposso dizer, que, se for à África, escolhereipara companheiro um meu amigo, e camaradana armada, Roberto Ivens. Conhece-o?” “Não oconheço. Falei ao Ministro e ele disse-me, quecontava comigo para a expedição.” “Nessecaso, uma vez que já tem compromissos com oMinistro, eu desisto de ir.” “Ora essa!… entãodesisto eu.” “Mesmo, eu não creio que a coisavá a efeito.” “Nem eu creio muito; mas enfim,se for a efeito, porque não havemos de irambos? Não nos conhecemos, é verdade; masem breve travaremos íntimas relações, e creio

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bem chegaremos a ser amigos.” “E porquenão? Então, se a expedição for avante, iremosjuntos, e escolheremos para nossocompanheiro ao meu amigo Roberto Ivens.”“Está dito. Pensa seriamente que o Governovotará uma tão grande verba como a que éprecisa para uma empresa destas?” “Não sei,duvido; e agora ultimamente fala-se menos naexpedição.” Conversamos largamente, e separamo-nos;tendo a íntima convicção de que a expediçãonunca se realizaria. Ainda me encontrei comCapello nos dias seguintes, e depois separamo-nos. Ele seguiu viagem no couraçado Vasco daGama para Inglaterra; e eu fui tomar ocomando da minha companhia em Caçadores4, no Algarve. Com o descanso da vida de guarnição, volteiao estudo, e tive a felicidade de encontrar umamigo no Algarve, Marrecas Ferreira, distintooficial de Engenheiros, que, meu companheironas mesas do trabalho, tinha sempre um bomconselho a dar-me, nas questões matemáticas,

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que ele maneja com inteligência superior. Foipor seu intermédio que travei relaçõesepistolares com Luciano Cordeiro, a quemdepois me devia ligar estreita amizade. Por esse tempo, redigi duas pequenasmemórias, que por intermédio de LucianoCordeiro chegaram às mãos do Ministro daMarinha, em que tratava do modo deorganizar uma expedição de exploração naÁfrica Austral. Passaram-se meses, e não maisme falaram de expedição. Recebi duas cartas do Capello, em que memostrava a sua completa descrença em que acoisa fosse a efeito. Eu mesmo nutria igualdescrença. Na Comissão Permanente deGeografia discutiam-se vários projetos deexpedições; mas tudo ficava em discussões. Um dia, vi nos jornais, que o Ministro, o Sr.João de Andrade Corvo, apresentara noparlamento um projeto, pedindo um crédito de30 contos para uma expedição em África; mas,pouco depois, caiu o Ministério, e foi o Sr. Joséde Mello Gouvea encarregado da Pasta das

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Colônias; quando o projeto ainda não tinhasido votado no parlamento. Tornava-se a falar da projetada exploração;mas os jornais davam por escolhidosexploradores que eu não conhecia, e às vezesapenas falavam em Capello. Eu então estava em Faro, e se me nãodescurava dos meus estudos astronômicos eAfricanos, ouvindo os conselhos de João Botto,distinto professor da escola de Pilotos de Faro,não nutria já ideias de viajar. O meu tempo erapassado entre as carícias da família e os meuslivros de estudo, e sentia-me muito feliz, nosaconchegos do lar doméstico, para pensar emtrocar a minha vida plácida pelo bulício eazares das viagens. Seguia com interesse nos jornais as notícias deLisboa, e vi que o novo ministro, José de MelloGouvea, havia no parlamento apoiado aproposta de João de Andrade Corvo, e que foravotada a soma de 30 contos para umaexploração. A morte de Bernardino AntonioGomes, vítima, talvez, do muito interesse que

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dedicou ao estudo das questões africanas,numa idade em que as fadigas passadas lheaconselhavam completo repouso de espírito, amorte desse eminente sábio, veio produzir umgrande vácuo na Comissão Central deGeografia. Outros, é verdade, tomando grandeinteresse nas questões palpitantes, levantavama voz no seio da comissão; mas discussõesrepetidas iam adiando a prática urgente. Eu, apesar de se ter votado a verba noparlamento, já não via possibilidade de se levara efeito a expedição em 1877; e em vista do quesabia pela imprensa, não pensava que selembrassem de mim, se aquela fosse a efeito; edevo dizê-lo, dava-me isso um certo prazer. O Algarve é um país delicioso; reina ali umaatmosfera oriental, e as copas elegantes daspalmeiras que se inclinam sobre as casas emterraços, faz-nos, às vezes, esquecer de quevivemos no prosaísmo da Europa. Eu era ali ocomandante militar, quer dizer, tinha poucosafazeres. .

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O convívio de uma sociedade escolhida; oscarinhos da família; os meus livros de estudo, eos meus instrumentos de observações, faziam-me passar horas bem felizes, dessa plácidafelicidade que a muitos não é dado conhecer. Olar, o chambre e as pantufas chegaram a serpara mim o ideal do bem estar. Findara o mês de abril, e com o de maio viera ocalor, que se faz fortemente sentir em Faro; eeu fazia projetos para o Verão; quando, umdia, recebo um telegrama em que meordenavam de me apresentar imediatamenteao General Comandante da Divisão; e ali acheiuma ordem para me apresentar sem perda detempo ao Ministro das Colônias. Adeus casa,Adeus chambre, adeus pantufas, adeus vidatranquila e plácida junto dos meus; aí volvo acorrer mundo. Quatro dias depois, em torno de uma grandemesa, numa grande sala do Ministério daMarinha, uma dúzia de graves personagens,uns de óculos, outros sem óculos, uns velhosoutros novos, todos conhecidos, ou pelas

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ciências, ou pelas letras, ou pelos seus serviçospúblicos, tratavam de questões africanas.Presidia a esta solene sessão o Ministro José deMello Gouvêa. Eram secretários Dr. José Julio Rodrigues eLuciano Cordeiro. O Conde de Ficalho, oMarquês de Souza, Dr. Bocage, Carlos Testa,Jorge Figaniere, Francisco Costa, o ConselheiroSilva, e Antonio Teixeira de Vasconcellos,lembra-me que estavam ali. Lá no fundo da mesa a um canto, encaixado napoltrona, estava um homem de basto cabelo ebasto bigode grisalho, a olhar para mim porentre os vidros da luneta de tartaruga. Era Joãode Andrade Corvo, que me dizia com o olhar:“Eu bem lhe afiancei que a coisa se havia defazer.” Junto de mim estava Capello, e ao cabo deduas horas saímos dali, com as instruçõesprecisas para a nossa viagem. Tínhamosescolhido um terceiro sócio, e esse era otenente Roberto Ivens, o amigo de Capello, queeu não conhecia, e que a esse tempo estava em

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Luanda a bordo do seu navio de guerra.Estávamos a 25 de maio, e tomamos ocompromisso de partir a 5 de julho. Era muito,porque tínhamos que vir preparar a expediçãoà França e Inglaterra, e só dispúnhamos de ummês para isso. Então Francisco Costa, Diretor Geral doMinistério, tomou a peito desfazer todos osobstáculos que os indispensáveis caminhosburocráticos nos podiam trazer; e andou demodo que a 28 de maio eu e Capello partíamospara Paris e Londres, a comprar o que se nostornava necessário. Levávamos um crédito deoito contos de réis. Como foi Preparada a Expedição. Em Paris fomos logo procurar a M. d’Abbadie,o grande explorador da Abissínia, e M.Ferdinand de Lesseps. Deles ouvimosconselhos e recebemos os maiores obséquios. Infelizmente, não encontramos no mercado,nem instrumentos, nem armas, nem artigos deviagem, tais como os desejávamos. Foi precisoencomendar tudo. Com uma recomendação

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especial de M. d’Abbadie, fomos procurar osconstrutores de instrumentos, e durante 10 ou12 dias, Lorieux, Baudin e Radiguettrabalharam para nós. Walker tinha-se encarregado dos artigos deviagem, Lepage (Fauré) das armas, Tissier docalçado, e Ducet Jeune da roupa. Feitas asencomendas em Paris, seguimos para Londres,e ali compramos os cronômetros, em casa deDent, e alguns instrumentos em casa de Casela;uma boa provisão de sulfato de quinino, emuitos objetos de borracha na casa Macintosh,entre eles dois barcos e algumas banheiras. Procuramos debalde em Londres, comotínhamos debalde procurado em Paris, umteodolito que tivesse as condições necessáriaspara uma viagem de tal ordem qual íamosempreender. Uns, ótimos para observaçõesterrestres, não tinham as condições precisaspara as observações astronômicas; outros, quereuniam as condições requeridas, eramintransportáveis, já pelo peso, já pelo volume.Não havia tempo para fazer construir um de

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propósito, e de volta a Paris, tivemos de aceitaraquele que já antes nos tinha sido oferecido porM. d’Abbadie. Recolhemos, em Paris, tudo o que tínhamosencomendado, e que tinha sido fabricado emnossa curta ausência; e no dia 1o de julho,desembarcávamos eu e Capello em Lisboa,completamente preparados para a nossaviagem; podendo assim cumprir o nossocompromisso, de partir para Luanda no naviode 5. Tínhamos feito os preparativos em 19dias. Quando eu estudava o modo de me prepararpara uma longa viagem em África, tinhaprocurado sem resultado em livros de viagens,o modo porque se haviam preparado outrosviajantes. Em todas as narrativas haviaescassez de informações a esse respeito, elembra-me ainda o quanto isso me enfadou. Resolvi logo, se um dia chegasse a fazer umaviagem em África, e se dela escrevesse anarrativa, não ser omisso nessa parte, edizendo quais os objetos de que me provi,

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dizer quais os que me prestaram serviços reais,e quais os que me foram carga inútil. A história das explorações da África está noseu começo. Muitos exploradores mesucederão em África, como eu sucedi a muitos,e creio fazer um bom serviço àqueles quedepois de mim se aventurarem no inóspitocontinente, apresentando-lhes agora umarelação dos objetos de que me provi; e logo, nocorrer da minha narrativa, as vantagens ou osinconvenientes que neles encontrei. Segundo as instruções que do Governo tinharecebido, podia demorar-me três anos emviagem, e para isso me preparei. A experiênciatinha me mostrado, o grave inconveniente deme sobrecarregar de bagagens; e francamentedeclaro, que fiquei aterrado quando, emLisboa, vi a enorme bagagem comprada emParis e Londres. Só em malas tínhamos 17!todas das mesmas dimensões, 1,3 x 1,3 x 1,6m.Uma era toucador perfeito, contendo umgrande espelho, uma bacia, caixas para escovase mais objetos competentes; outra continha um

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serviço de mesa e chá para três pessoas; e umaterceira o material de cozinha. Três outras malas de forte sola deviam contercada uma o seguinte: quatro frascos dequinino, uma pequena farmácia, um sextante,um horizonte artificial, um cronômetro, umastábuas lugarítmicas, umas efemérides, umaneróide, um hipsômetro, um termômetro,uma bússola prismática, uma bússola simples,um livro em branco, lápis, papel e tinta;cinquenta cartuchos para cada arma; umvestuário completo, e três mudas de roupabranca; isca, fuzil, pederneiras, e algunspequenos objetos de uso pessoal. Cada uma destas malas tinha na parte superiorum estojo de costura, escrivaninha e lugar parapapel. Eram pessoais, e pertencia cada uma aum de nós. As outras dez malas continhamindistintamente roupas, calçado, instrumentos,e outros objetos de reserva. Todas tinhamfechaduras iguais e abriam com a mesmachave.

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A nossa barraca era uma Tente Marquise de 3metros de lado por 2,3 metros de alto. Ascamas eram de ferro, fortes e cômodas. Asmesas do tipo pés em tesoura, os bancos ecadeiras de lona. Todos estes artigos foram dafabricação de Walker. Cada um de nós tinhauma carabina magnífica de calibre 16, cujoscanos, forjados por Leopoldo Bernard, tinhamsido cuidadosamente montados por FauréLepage. Uma espingarda do mesmo calibre defabricação Devisme, uma Winchester de 8 tiros,um revólver e uma faca de mato completavamo nosso armamento. Em Lisboa tinha eu encomendado naConfeitaria Ultramarina 24 caixas, das mesmasdimensões das malas, contendo, em latascuidadosamente soldadas, chá, café, açúcar,hortaliças secas, e farinhas substanciais. Hojedevo aqui lavrar um alto agradecimento ao Sr.Oliveira, proprietário da mesma fábrica, peloescrúpulo que teve na escolha dos gêneros quenos forneceu, e que muito nos serviram nocomeço da viagem.

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Os instrumentos que levamos foram osseguintes: três sextantes, sendo um de Casela,de Londres; um de Secretan, e um de Lorieux,verdadeiro primor. Dois Círculos de Pistor,fabricados por Lorieux, com dois horizontes deespelho, e os competentes níveis. Um horizontede mercúrio de Secretan. Três lunetasastronômicas de grande alcance, duas deBardou e uma de Casela. Três pequenosaneróides, dois de Secretan e um de Casela;quatro podômetros, dois de Secretan e dois deCasela. Seis bússolas de bolso; uma bússolaBournier de Secretan; três outras azimutais,duas de Berlin e uma de Casela; duas AgulhasCirculares Duchemin; seis HipsômetrosBaudin, um de Casela, três de Celsius deBerlin, dois mais, muito sensíveis, de Baudin;doze Termômetros de Baudin, Celsius eCasela; um Barômetro Marioti-Casela; umAnemômetro Casela; dois Binóculos Bardou;uma Bússola de Inclinação, e um Aparelho deForça Magnética, que nos foramobsequiosamente emprestados pelo Capitão

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Evans, por entermédio de M. d’Abbadie. E,finalmente, o Teodolito Universal d’Abbadie,que tem o nome de Aba, e que tãocavalheirosamente nos foi cedido pelo seuinventor. Armas, instrumentos, bagagens, todos osartigos, enfim, tinham gravado o seguinteletreiro: “Expedição Portuguesa ao interior daÁfrica Austral, em 1877”. Duas caixas,contendo o necessário para conservarexemplares zoológicos e botânicos nos foramenviadas pelos Srs. Dr. Bocage e Conde deFicalho. Ferramentas dos diversos ofíciosaumentavam esta enorme bagaem, com queíamos deixar Lisboa, para nos internarmos nossertões desconhecidos da África Austral. . . . . . . .

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Capítulo I Em Busca de Carregadores Chegada a Luanda—O Governador Albuquerque—Não há carregadores—Vou ao Zaire—O Ambriz—Chego ao Porto da Lenha—Os resgatados—Sei dachegada de Stanley—Vou a Cabinda—TomoStanley a bordo da Tâmega—Os oficiais dacanhoneira—Stanley meu hóspede—O nossoitinerário—Chegada do Ivens. No dia 6 de agosto de 1877, chegávamos aLuanda, no vapor Zaire, sob o comando dePedro de Almeida Tito, a quem aqui lavro umtestemunho afetuoso de muita gratidão, pelosfavores que me dispensou durante a viagem. Desde a minha saída de Lisboa, umapreocupação constante me perseguia. A nossabagagem era enorme, e tinha de ser aindamuito aumentada, com fazendas, miçangas eoutros gêneros, que seriam a nossa moeda nosertão. Em todos os livros de viagens, nesta parte docontinente africano, li eu as dificuldades emque se encontraram muitos exploradores, por

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não poderem obter o número suficiente decarregadores para as cargas indispensáveis.Como os obteria eu? Em Cabo Verde soube,que uma carta que eu e Capello tínhamosdirigido ao Ivens não fora por ele recebida;pois que soube ali, por um telegrama, queIvens estava em Lisboa, e por isso não podiater satisfeito ao pedido que naquela carta lhefazíamos, de estudar a questão, e ver se nosobtinha em Luanda os auxiliares precisos. Umatentativa feita em Cabo de Palmas ficou semresultado, e apesar do apoio que nos prestou oCapitão Tito, nem um só keruboy podémosajustar ali. Chegamos finalmente a Luanda, e fomoshospedar-nos em casa do Sr. José Maria doPrado, um dos primeiros proprietários ecapitalistas da Província de Angola, queimediatamente pôs à nossa disposição, umadas muitas casas que possui na cidade; casacom acomodações bastantes para receber oenorme volume da expedição. .

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Do Sr. Prado recebemos inúmeros favores. Nanoite do dia 6, fomos procurados por um dosajudantes-de-campo de Sua Excelência oGovernador-Geral, que vinha, em nome do Sr.Albuquerque, fazer-nos os mais cordiaisoferecimentos. No dia 7, procuramos o Ex.mo Governador,que nos recebeu afetuosamente, mostrando amaior benevolência em desculpar os meustrajos, que, ótimos para a vida do mato, eram, anão poder ser mais, ridículos para uma visitacerimoniosa. O Sr. Albuquerque, depois de nos assegurar,que nos daria a maior assistência nas terras doseu governo, concluiu por nos mostrar aimpossibilidade de obtermos carregadores. Creio que nada mais desagradável pode haverpara quem quer viajar em África, e tem 400cargas, do que dizer-se-lhe: “não hácarregadores”. Decidi imediatamente ir ao Norte da provínciaver se por ali os poderia contratar; e nesse

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sentido pedi ao Sr. Albuquerque, me mandassetransportar ao Zaire. O único navio de guerra que podia ser posto àminha disposição andava cruzando na foz doZaire; resolvi ir procurá-lo, e no dia 8, partinum escaler que me foi fornecido pelaCapitania do Porto, tripulado por oito pretosCabindas. Levava ordens do Governo para ocomandante da canhoneira. Não há nada mais desagradável do que fazeruma viagem de 120 milhas em um escaler. DeLuanda ao Ambriz comi apenas umassardinhas e bolachas. Tendo resolvido fazer aviagem no escaler no mesmo dia da partida,não tive tempo de fazer preparativos. No dia 9, ao anoitecer, chegava ao Ambriz,bonita vila assente no planalto de um cômoro,cujas escarpas, de 25 metros, são cortadas aprumo sobre o mar. Fazia às vezes de chefe,um empregado da Fazenda, o Sr. Tavares, quecaprichou em obsequiar-me, assim como todosos habitantes da vila, mormente o Sr. Cordeiro,em casa de quem estive hospedado.

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Esperava-me no Ambriz Avelino Fernandes.Tive a felicidade de conhecer AvelinoFernandes a bordo do vapor Zaire, e relaçõesíntimas se estabeleceram entre nós. É filho dasmargens do Zaire, e tem grande paixão poresse rico solo, onde as árvores gigantescas dafloresta virgem lhe assombraram o berço. Tem24 anos. A cor morena e o cabelo crespoindicam que nas suas veias, de envolta com osangue europeu, gira o sangue africano. Rico,dotado de uma esmerada educação, adquiridanos principais centros da Europa, e que umainteligência superior soube desenvolver, é overdadeiro tipo do cavalheiro palaciano, quenão se pode conhecer sem que a ele nos prendalogo verdadeira simpatia. As muitas relaçõesque ele tinha no Zaire podiam facilitar-me osmeios de arranjar ali carregadores. Soube no Ambriz que a canhoneira Tâmegadevia chegar àquele ponto dentro de dois dias;e por isso resolvi esperá-la. A viagem deLuanda no escaler não me tinha deixadorecordações tão fagueiras, para que eu

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persistisse em continuar para o norte damesma forma. No dia 10, fui visitar a vila eseus subúrbios, e em dois traços vou narrar oque vi. Do planalto em que assenta a povoaçãoeuropeia, desce-se para a praia por umcaminho em ziguezague, que estava sendoreconstruído por alguns grilhetas. Na praia,entre dois soberbos edifícios, que são armazénsdas casas comerciais francesa e holandesa,ostenta-se um albergue, meio derrocado pelavelhice, meio em construção recente nãocontinuada, que é a Alfândega; Alfândega semdepósitos, onde as fazendas, arrumadas àporta sobre o areal, pagam um irrisório tributode armazenagem. A N.N.E. da vila, muitoshectares de terreno são ocupados por umpântano, inferior de 3 metros e 12 centímetrosà maior preamar; e na encosta da escarpa quedo planalto da vila desce ao pântano, assentamas cubatas da povoação indígena, nas piorescondições de salubridade. Ao sul da vila, entreumas moitas de mato virgem, é o cemitério —

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onde os cadáveres enterrados de dia, são pastodas hienas à noite. A ponte de desembarque, construída de ferro emadeira, está prestes a ser inutilizada; porquea oxidação do ferro em contato com o ar e aágua, produz-se cedo; e a ponte não foipintada. Não há verba para sua conservação,nem alguém que por ela vigie. A casa do chefe é um pardieiro derrocado,onde há verdadeiro perigo em habitar. O paiolameaçava ruína; e isso fez-me impressão,porque ele contém a pólvora do comércio, quenão rende menos de duzentos mil réis mensaispara o Estado. É bem de esperar, que nos doisanos decorridos depois da minha visita aoAmbriz, se tenham dado mais cuidados àquelabonita vila, cuja importância é patente, sendoum grande centro de comércio. Um quilômetro ao N. da ponte dedesembarque, lança no Atlântico as suas águaso rio Loge, cuja foz é obstruída por um bancode areia, que lhe dá difícil acesso, mas quedepois é navegável por uns trinta quilômetros.

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No dia 11, fui visitar a importante propriedadeagrícola, fundada pelo célebre Jacintho doAmbriz, e hoje pertencente ao seu filhoNicolau. Esta propriedade representa um dosmaiores esforços feitos na província de Angola,para o desenvolvimento da agricultura.Jacintho do Ambriz foi levado à África poruma desgraça íntima. Filho do povo, sem amenor instrução, não sabendo mesmo ler ouescrever (mas dotado de uma razão clara, deum espírito fino, e de muita felicidade), chegoua fazer uma grande fortuna. Jacintho casou noAmbriz com uma mulher da sua igualha. Era atia Leonarda, mais conhecida por tia Lina,natural da Beira Alta; e em 1877, a conheci euvestida sempre à moda das camponesas daBeira, falando a linguagem vulgar que fala opovo daquela província, como se de lá tivessechegado. Na sua casa comi um jantar beirense,e por um momento julguei-me transportado auma das hospitaleiras casas dos nossoslavradores do Norte. A tia Lina entrou muitona felicidade que levou Jacintho à riqueza.

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Jacintho fazia o comércio, e esse comércio, naÁfrica, obriga a dois distintos ramos: adquirirdos brancos fazendas, e vender-lhes osprodutos do país; e adquirir dos pretos essesprodutos, vendendo-lhes as fazendas. EraJacintho que fazia o comércio com os brancos, ea tia Lina com os pretos. Jacintho, dotado de uma alma generosa, eramuitas vezes vítima da sua boa fé, e dasextorsões de alguns chefes; o que provocavauma frase à tia Lina, que eu muitas vezes ouvirepetir: “Ah! Jacintho, os brancos esmagam-te;mas eu esmago os pretos!” O verbo empregadopela tia Lina não era precisamente o verboesmagar, mas, por muito enérgico, substituo-lhe por outro um pouco semelhante. Um dia, Jacintho deu em ser lavrador. Era ocostume de infância que puxava por ele.Comprou terreno, e lançou os fundamentosdessa vastíssima propriedade que é digna deser visitada; e à qual dedicou o seu trabalho e asua bolsa, até ao último momento de vida queteve.

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Era Jacintho conhecido por estropiar aspalavras, e citam-se dele tolicesengraçadíssimas, pelo mau emprego de um oude outro vocábulo que decorara, mas cujasignificação não conhecia bem; contudo, tinhamuito espírito, e há dele anedotas engraçadas.Esta por exemplo: Já ele se achava estabelecido na suapropriedade do Loge; mas, logo que ao portochegava navio de guerra português, ia a bordofazer oferecimentos aos oficiais; que de gênioera franco. Um dia que ele fora a bordo, ocomandante pediu-lhe um macaco. “Quantosquiser!” lhe respondeu Jacintho; “mandeamanhã um escaler, pelo Loge até minha casa,buscá-los.” No dia seguinte, um escaler, tripulado por seishomens, encostava ao muro do jardim deJacintho. Fez ele subir o escaler até doisquilômetros mais, e chegando à vertente de ummonte coberto de gigantes baobás, em cujosramos horizontais pulavam centenas demacacos, disse aos marinheiros: “Todos estes

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macacos são meus, vivem cá dentro da minhapropriedade; tendes licença de apanharquantos quiserdes e levá-los ao comandante.” Os marinheiros encararam com os cimoselevadíssimos das enormes árvores, cujostroncos, de espantoso diâmetro, não lhespermitiam a subida; e depois de alguns vãosesforços, retiraram desanimados, perseguidospela grita e pelas caretas da macacaria. “Eu dei-lhos; se os não levam, não é culpaminha,” dizia o Jacintho, rindo às gargalhadas. Visitei a propriedade, e uma coisa que meimpressionou foi ver, que, máquinas,aparelhos, instrumentos, etc., tudo era defabricação portuguesa. Nada Jacintho admitiaque não fosse português, e, custassem-lhe odobro, fazia ele fabricar em Lisboa todos osseus artigos, já para a agricultura, já para aindústria. A memória desse homem obscuro — maisconhecido pelos disparates que dizia, do quepelas muitas coisas acertadas que fez — deveser respeitada por todos os que se interessam

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pelo desenvolvimento africano; porque ele foio homem que, nos modernos tempos, maiorserviço fez para desenvolver a agricultura emcolônia portuguesa, empregando nisso a suaimensa fortuna e trabalhando até o seu últimodia. Na margem esquerda do Loge, assenta outrapropriedade agrícola, também importante,pertencente ao Sr. Augusto Garrido. Não tivetempo de a visitar, porque, no dia que alipassei, não pude esquivar-me aos muitosfavores de Nicolau e tia Lina, e todo o tempofoi pouco para admirar o que ali, no brejoagreste, a vontade do homem tinha feito. No dia seguinte, chegou a Canhoneira Tâmega,e soube, indo a bordo, que se achava semmantimentos, e com grande número de praçasdoentes, motivo por que combinei com ocomandante, o Sr. Marques da Silva, esperá-lono Ambriz, enquanto ia a Luanda refrescar.Três dias depois chegou a Tâmega de volta deLuanda; indo eu logo para bordo, com AvelinoFernandes, seguimos viagem no mesmo dia

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para o Zaire. Eu tinha adoecido com umabronquite aguda, de que felizmente melhoreilogo que começou a viagem. Subimos o Zaire até ao Porto da Lenha, ondedesembarquei com Avelino Fernandes, que meapresentou aos seus amigos dali. Falei logo emcarregadores. Disseram-me, que seria, talvez,possível obtê-los, se os chefes indígenas mequisessem auxiliar; mas que o melhor meiopara mim era resgatar escravos e em seguidacontratá-los para o serviço que eu exigia. Repugnou-me a ideia de comprar homens,embora fosse para os libertar em seguida. Edepois, quem sabe se eles me quereriamacompanhar sendo livres? Resolvi imediatamente não proceder destemodo, embora não obtivesse um só carregadorali. Na casa em que estava soube que tinhachegado a Boma, no dia 9, o grande exploradorStanley, que descera tudo o curso do Zaire.Stanley tinha seguido para Cabinda. Voltei abordo e combinei com o comandante irmos a

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Cabinda oferecer os nossos serviços aoarrojado viajante. Partimos, e logo queancoramos no porto, fui à terra, com AvelinoFernandes e alguns oficiais da canhoneira. Foi comovido que apertei a mão de Stanley,homem de pequena estatura, que a meus olhosassumia proporções de vulto colossal. Ofereci-lhe os meus serviços, em nome do GovernoPortuguês, e disse-lhe, que se quisesse ir aLuanda, de onde mais facilmente poderia obtertransporte para a Europa, o comandanteMarques lhe oferecia transporte a ele e aos seusa bordo da canhoneira. Em nome do GovernoPortuguês pus à sua disposição o dinheiro deque carecesse. Stanley respondeu-me com umvigoroso aperto de mão. Os oficiais da Tâmega confirmaram os meusoferecimentos em nome do seu comandante.Stanley aceitou, e desde esse momento, ficou acanhoneira à sua disposição. Como bem sepode calcular, eu e Avelino Fernandes nãodeixávamos Stanley, e ávidos de ouvir anarração da sua viagem, o tempo que ele

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estava recolhido, era por nós passado aquestionar os seus homens. No dia 19, os oficiais da Tâmega deram umsoberbo banquete ao intrépido explorador,para o qual convidaram o comandanteMarques, Fernandes e a mim. No dia 20,partimos para Luanda, levando a bordo toda acomitiva de Stanley, que se compunha de 114pessoas, entre elas 12 mulheres e algumascrianças. Stanley, em Luanda, foi hospedar-se em minhacasa; distinção a que eu fui muito sensível,porque recusou, para isso, os muitos convitesque teve, e com eles comodidades que eu nãopodia oferecer-lhe, numa casa onde tinha pormobília os meus utensílios de viagem. O Governador mandou logo cumprimentar oilustre Americano, e ofereceu-lhe um banquete,a que assisti. De volta a casa, perguntei aStanley, qual a impressão que trazia do Sr.Albuquerque. E ele disse-me apenas: “He is avery cold gentleman.” (“É um cavalheiro muifrio.”)

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O Cônsul Americano, o Sr. Newton, deu-nosum almoço, e muitos favores nos dispensou.Haviam festas e banquetes; mas, a 23 deagosto, ainda não tínhamos um só carregador;e na noite do jantar oferecido a Stanley peloGovernador, me repetira sua Excelência, quenão me seria possível obtê-los, sobretudo emLuanda; mostrando-me a dificuldade em quese encontrara o Major Gorjão, que apenas tinhapodido obter metade do número de homens deque precisava, para estudar a linha ferroviáriado Cuanza. É tempo de falar dos nossos projetos, segundoa lei, e as instruções do Governo. O Parlamentovotara uma soma de 30 contos de réis para seestudarem as relações hidrográficas entre asbacias do Congo e Zambeze, e os paísescompreendidos entre as colônias portuguesasde uma e outra costa da África Austral. Umas instruções subsequentes indicavam maisparticularmente o estudar-se o rio Cuango, nassuas relações com o Zaire; o estudo dos paísescompreendidos entre as nascentes do Cuanza,

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Cunene, Cubango, até ao Zambeze superior;indicando, que, se possível fosse, deveriaestudar-se o curso do Cunene. O que fora designado na lei do Parlamento,elaborada pelo Sr. Corvo, parece a princípioproblema vasto demais para uma só expedição,e uma verba de trinta contos de réis; mas a leifoi bem redigida. O Sr. Corvo sabia, que oviajante em África, não só nem sempre ésenhor dos seus passos, mas também, que noseu caminho pode encontrar um não previstoproblema, que julgue de importância superiorà do que lhe foi designado; e por isso deixou amaior amplitude aos exploradores. Quanto às instruções, foram elas mais restritas,mas ainda assim, deixavam bastante largos osmovimentos da expedição. O ponto de entrada,como dependia essêncialmente do lugar ondeobtivéssemos carregadores, ficouindeterminado. Tínhamos eu e Capello pensado em entrar porLuanda, seguir a leste, até encontrar o Cuango;descer este rio por dois graus; passarmos ao

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Cassibi, que intentávamos descer até ao Zaire;e finalmente, reconhecer o Zaire até à sua foz. Com a chegada de Stanley, tendo ele feito umaparte do trabalho que nós propúnhamos fazer,e sobretudo a impossibilidade de obtercarregadores em Luanda, tivemos de modificarcompletamente o nosso plano. Decidimos, quefosse eu ao Sul procurar carregadores emBenguela; e que, se ali os obtivesse,entrássemos pela foz do rio Cunene, subindo-oaté às suas nascentes; e depois seguíssemoscom os nossos estudos para S.E., até aoZambeze. Como não podíamos ter grande confiança nagente que ajustássemos, lembramo-nos depedir ao Governador um certo número desoldados, que fossem, por assim dizer, aescolta de vigia. Sua Excelência acedeu emandou saber aos regimentos, se algunssoldados nos quereriam acompanhar; porque,não sendo aquele serviço regular, não podiacompelir os soldados a irem. .

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Ficou, pois, decidido, que eu partisse paraBenguela no vapor que no princípio desetembro devia chegar de Lisboa. Nesse vaporveio o Ivens, que pela primeira vez eu via.Simpático, ardente, dotado de grandeverbosidade, e muito entusiasmado pelasviagens difíceis, depressa me ligou a ele aamizade. Narramos-lhe tudo o queresolvêramos fazer, e as dificuldades quetínhamos encontrado até então. Ivensconcordou conosco, e ficou definitivamenteresolvida a minha partida para Benguela, nodia 6. Preparei-me logo para partir, e fui dar partedisto ao Governador. Durante a minhaausência os meus companheiros deviampreparar as bagagens, que estavam em grandedesarranjo, com a nossa precipitada partida daEuropa. Cabe aqui contar um episódio que meaborreceu bastante; porque poderia ter feito,que Stanley julgasse do caráter meu e dos

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meus companheiros, diferentemente do que odevia fazer. No dia 5, ao almoço, conversávamos eu,Capello, Ivens, Stanley e Avelino Fernandes, arespeito da escravatura, e mostrávamos aStanley o espírito das leis portuguesas sobre oinfame tráfico; notando-lhe a falsidade deasserções de estrangeiros a nosso respeito; e aimpossibilidade de fazer então escravos onde oGoverno tinha força. Discorríamos acerca doassunto, quando Capello teve de ir a paláciofalar ao Governador. Voltou uma hora depois, e logo em seguidarecebia Stanley uma carta oficial do Sr.Albuquerque, a pedir que lhe certificasse, “senas terras do seu governo se fazia escravatura”Stanley veio surprendido mostrar-me a carta, enão menos surprendidos ficamos eu, os meuscompanheiros, e Avelino Fernandes.Efetivamente, a nossa conversação ao almoço,e aquela carta depois de um de nós ir a palácio,pareceria ao ilustre viajante uma comédiahábilmente preparada.

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Stanley podia certificar a sua Excelência, que abordo da Tâmega, em minha casa, em casa desua Excelência, e na do Cônsul Newton, nãotinha visto fazer escravatura. Fora disto,Stanley, como sua Excelência muito bem sabia,só por informações nossas poderia falar,convivendo quase exclusivamente conosco, enão tendo visitado ponto algum do paísgovernado pelo Sr. Albuquerque. Era querer oSr. Governador viesse Stanley a pagar caro umjantar e os seus favores, pedir-lhe umcertificado que ele Stanley nunca deveria terpassado. Stanley, creio eu, fez-nos a justiça depensar que éramos estranhos àquela carta. No dia 6, parti para Benguela, levando cartasdo Sr. José Maria do Prado para algunsparticulares, e nem uma recomendação para oGovernador do Distrito, que eu não conhecia.Ia outra vez à busca de carregadores, que eu,português, não tinha podido obter em Luanda,e que, quatro meses depois, tinha ali obtido umestrangeiro, o explorador Schutt, que nãoencontrou as menores dificuldades, para seguir

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o primeiro caminho que nós tínhamostencionado seguir. Em viagem conheci um passageiro que medisse ser possível obter alguns carregadoresem Novo Redondo, e que se comprometteu acontratar ali uns 20 ou 30. Foi já um poucoanimado com esta promessa, que cheguei aBenguela, no dia 7 à noite; e ainda que levavacartas de recomendação para algunsnegociantes, fui procurar o Governador, epedir-lhe hospedagem. . . . . . . . . . . . .

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Capítulo II Ainda Em Busca de Carregadores O Governador, Alfredo Pereira de Mello—A casado Governador—Coisas de que não tem culpa oGoverno da Metrópole—O que é Benguela—Ocomércio—Sou roubado—Outro roubo—ACatumbela—Obtenho carregadores—Chegada deCapello e Ivens—Nova alteração de itinerário—Outra dificuldade—Silva Porto, o velho sertanejo—Aparecem novos obstáculos—O Capello vai aoDombe—Partida—O que é o Dombe—Novasdificuldades—Partimos enfim. Alfredo Pereira de Mello, Governador deBenguela, ao ouvir o meu pedido dehospedagem, mostrou um embaraço quepercebi, e disse-me, que não tinha meio de mereceber em sua casa. Surprendeu-me o caso,sabendo eu que o Governador era bizarro degênio e de natureza franco. Tive convites, logoà minha chegada, já de Antonio FerreiraMarques, já de Cauchoix; mas persisti nointento de hospedar-me em casa doGovernador.

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Ele disse-me, que não tinha cama a oferecer-me, e eu mostrei-lhe a minha cama de viagem;porque fui logo pondo em casa dele a minhabagagem. Disse-me, que não tinha quarto;apontei-lhe para um canto da sala em queestávamos, onde ficaria otimamente. Não havia mais que dizer, e fiquei. Aguçava-me a curiosidade a resistência do Governadorem negar-me a hospitalidade que pedia; mascedo desvendei o mistério. Alfredo Pereira de Mello era homem novo,ainda que tinha já uma patente superior naarmada. Simpático e inteligente, é estimadopor todos aqueles que o conhecem de perto;porque a uma finíssima educação, reúnegrande retidão de caráter, e a energia peculiara tudo bom marinheiro. Serviu na marinhainglesa, e tem de viagens larga prática. Viu as Américas, e antes de ir para África comoAjudante-de-Campo do Governador Andrade,tinha visitado a Índia, a China e o Japão. O Governador, que já me conhecia de nome, aoouvir o meu pedido, esqueceu que tinha diante

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de si o explorador, para só se lembrar dohomem habituado a viver no meio do luxo edas comodidades. Pereira de Mello tevevergonha de hospedar-me. Um Governador de Benguela, se é reto eprobo, vive mesquinhamente com a paga querecebe. A casa do governo é alugada. Amobília, um pouco menos que modesta,guarnece a sala e um quarto. Na sala, destoa da mobília, ricamenteamoldurado, um retrato d’El-Rei, o melhor quetenho visto. Contudo a este porto, vêmrepetidas vezes navios de guerra estrangeiros,cujos oficiais visitam o Governador, regalam-no a bordo; e ele nem um copo dágua lhespode oferecer em sua casa, porque a preta ou omoleque tem de trazer o copo num pratovelho. O serviço de mesa era, creio eu, aespada de Dâmocles suspensa sobre a cabeçade Pereira de Mello, ao ouvir a minha teimosiaem ficar. Não tinha razão. O asseio quepresidia a tudo, supria o vidrado da louçagasto com o tempo, e os manjares simples, mas

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bem cozinhados, avivavam o apetite jáderrancado pelos ares africanos; e não seofenda o cozinheiro do Hotel Central emLisboa, se eu lhe disser, que comi melhor emcasa do Governador de Benguela do que comiados seus opíparos manjares, ainda que a pretaConceição, cozinheira do Governador, nuncaouviu falar do “herói das caçarolas”, o célebreBrillat-Savarin. Pereira de Mello, logo ao primeiro dia deconvivência, abriu-me o seu coração,mostrando-me a menos que singeleza da suavida interior. Três ofícios dirigidos ao Governoda Província, em que pedia autorização parafazer algumas reformas caseiras, tinham ficadosem resposta. Isto não é de estranhar, porquefoi sempre assim. Em um copiador de correspondência, queexiste nos arquivos do Governo de Benguela, lieu uns ofícios datados de 1790, em que oGovernador de então já se queixava a El-Reidas mesmas faltas; por a elas lhe não darremédio o Governador Geral da Província, e

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entre outras coisas que pede com urgência,figuram os reparos para dois canhões debronze que designa, e que ainda hoje oscarecem. São as mesmas de que fala Cameron;o que ele vai saber agora é, que os reparos jáforam encomendados e não podem tardar emchegar; porque, sendo a encomenda deles feitaem 1790, deve estar quase concluída a suaconstrução. Benguela é uma bonita cidade, que se estendedesde a praia do Atlântico até ao sopé dasmontanhas que formam o primeiro degrau doplanalto da África tropical. É cercada de umaespessa floresta, a Mata do Cavaco, ainda hojepovoada de feras; e isso não admira, que osportugueses, em geral, de caçadores não têmmanhas. As habitações dos europeus ocupamuma grande área, porque todas as casas têmgrandes quintais e dependências. Os quintais são cuidados; produzem todas ashortaliças da Europa, e muitos frutos tropicais.Vastos pátios cercados de alpendres servempara dar guarida às grandes caravanas que do

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sertão descem à costa em viagem de tráfico, eque repousam três dias na casa onde efetuamas permutações. Um rio, que na estação seca apenas é larga fitade areia branca, que se desenrola dasmontanhas ao mar, através da floresta doCavaco, é ainda assim a grande fonte deBenguela, que os poços ali cavados dão águaboa filtrada pelas areias calcáreas. Nas ruas da cidade, largas e direitas, crecemdois renques de árvores, pela maior partefigueiras e sicômoros, de pouco arraigadas, epor isso ainda pequenas. As praças são vastas,e, em uma ajardinada, crescem bonitas plantasde vistoso aspecto. As casas, todas térreas, sãoconstruídas de adobes, e os pavimentos são,em umas de tijolos, e de madeira em outras. A Alfândega é bom edificio, recentementeconstruído, e tem vastos armazéns para asmercadorias do tráfico. Esta Alfândega, e olargo ajardinado, como outros melhoramentosde Benguela, foram de um Governador, LeiteMendes, que de si deixou rasto. Uma ponte

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magnífica de arquitraves de ferro, creio queencomendada pelo mesmo Leite Mendes, masmuito posteriormente montada peloGovernador Teixeira da Silva, é guarnecida pordois guindastes e carrís, por onde, emvagonetes, se transportam as mercadorias daslanchas à Alfândega. Eu aqui cometi um errode gramática, escrevendo o verbo transportarno presente do indicativo, quando nocondicional é que era. Transportariam, sehouvesse pessoal para isso; mas nãotransportam, porque o não há. Tem a cidade um templo decente, e umcemitério bem colocado e murado. A povoaçãoeuropeia é cercada, por todos os lados, desenzalas, ou povoações de pretos, e mesmoentre a povoação branca há pequenas senzalas,em quintais abandonados. O seu aspecto geralé agradável e asseado. Tem Benguela má fama entre as terrasportuguesas de África; e supõem muitos, seraquilo um país infecto, que exala demiasmáticos pântanos a peste, e com a peste a

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morte. Não é assim. Eu não conheci Benguelacomo ela fora em tempos passados; mas hoje,não é nem melhor nem pior do que outrosmuitos pontos da África. O asseio e asplantações de arvoredo, decerto têmmodificado muito as suas anteriores condiçõeshigiênicas, e, com uma pouca de boa vontade,não seria difícil o seu saneamento - o que estoucerto se fará, porque não pode deixar demerecer verdadeira atenção um ponto de tãosubida importância comercial e em fácilcontato com tão ricas terras nos sertões. Os principais produtos que alimentam ocomércio de Benguela são cera, marfim,borracha e urzela*, que chegam à cidadetrazidos pelas caravanas dos sertões. Estascaravanas são de duas espécies: umas,dirigidas por agentes das casas comerciais,trazem às mesmas casas que os despacham osprodutos do seu tráfico no interior; outras,exclusivamente compostas de gentio, descem anegociar por conta própria, onde melhor ganhoencontram.

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* Corante têxtil de origem vegetal O tráfico com o gentio faz-se por permutaçãodireta do gênero por fazenda de algodão,branco, riscado ou pintado. Os outros produtoseuropeus são objeto de uma segundapermutação pela fazenda recebida; e assim,depois da primeira troca do marfim ou cerapelo algodão, é este trocado por armas,pólvora, aguardente, miçanga, etc., à vontadedo comprador; porque a fazenda de algodão é,por assim dizer, a moeda corrente neste tráfico. O comércio está nas mãos de europeus ecrioulos, e felizmente já ali encontramosmuitos desses rapazes que, aventurosos,deixam pátria e família, para ir em terraslongínquas buscar fortuna. Alguns deportados de menor importânciatambém negociam, já por conta própria, jácomo empregados de casa alheia. Os maiorescriminosos do Reino, os condenados por toda avida, são deportados para Benguela, do queresulta, encontrar-se ali quantidade de patifes,de que é bom resguardar-se; não os

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confundindo com a gente digna e capaz, que ahá. A polícia é confiada à força militar, que umdos regimentos destaca para Benguela; sendoque de Benguela ainda são espalhadasdiferentes forças nos concelhos do interior;desfalcando a guarnição da cidade, já de sipequena. Nós temos dois exércitos, um na Metrópole,outro nas colônias, que nenhuma relação têmentre si. O nosso exército da Metrópole é bom,porque o português é bom soldado; o nossoexército das colônias é mau, porque o preto émau soldado; e os brancos que ali servem demistura com pretos, são piores ainda do queestes. Deportados por crimes que os excluíramda sociedade, fazendo-lhes perder na Europa oforo de cidadãos, vão desempenhar em Áfricao posto nobre do soldado; sendo a nossaautonomia africana, e a segurança pública eparticular, confiada à defesa de homens, quedão por garantia um detestável passado. Daí as contínuas cenas de caráter vergonhosoque se presenciam ali. Durante a minha

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permanência em Benguela, houve um granderoubo com arrombamento, no cofre militar. OGovernador houve-se com a maior energia namaneira porque procedeu para descobrimentodos culpados, sendo muito coadjuvado peloseu Secretário, o Capitão Barata, que conseguiudescobrir os ladrões, e haver o dinheiroroubado. Fora o roubo planejado pelo própriosargento do destacamento, e levado a efeitopor ele e alguns soldados!!! Se o nosso exército metropolitano não se prestaà censura do homem mais caprichoso, asnossas forças coloniais são vítimas dasmerecidas troças de todos os estrangeiros, queas observam. Por mais que tenha cogitado,nunca pôde atingir ao préstimo de tal exércitoem nossas colônias, que para polícia não serve;servindo menos para a guerra, que da minhalembrança tenho visto ser feita por corposvoluntários, levantados no Reino, e que ali vãoservir por certo prazo. Hoje mesmo, em Lisboa,três batalhões estão sempre prontos a marcharpara as colônias, e já lá têm ido - o que prova

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sabermos nós que o ter exército no ultramar,tal como ele é, não passa de velha usança. Na noite da minha chegada a Benguela, fiz oconhecimento do Juiz de Direito Caldeira, quese associou ao Governador para me certificar,que, como ele, empregaria toda a suainfluência para que eu não tivesse vindodebalde a Benguela, e assim o fez. OGovernador convocou os moradoresimportantes a uma reunião em sua casa, eexpondo-lhes os motivos da minha viagem, e omeu projetado itinerário, pediu-lhes que ocoadjuvassem na empresa de arranjarcarregadores; para que eu pudesse levar a caboa expedição. Todos assim o prometeram. O Governador Pereira de Mello, e o JuizCaldeira, foram incansáveis, e no dia 17, diaem que este último se retirou para Lisboa,tinha eu o número de carregadores que pedira,cinquenta, que, com trinta esperados de NovoRedondo, perfaziam um total de oitenta; tantosquantos eu havia julgado precisos para subirda foz do Cunene ao Bihé.

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O velho sertanejo, Silva Porto, encarregara-sede fazer transportar ao Bihé o grosso dasbagagens, que nós encontraríamos naqueleponto; onde deveríamos contratar maiscarregadores para seguir avante. Nesse diamudei eu para a casa que antes ocupava o Juiz,continuando a ir jantar com o Governador, oucom Antonio Ferreira Marques, da CasaFerreira e Gonçalves, que porfiavam emobsequiar-me. No dia seguinte, um preto meu serviçal furtou-me uns 75 mil réis, e desapareceu, sem quedele mais se soubesse. A 19 chegaram os meuscompanheiros na canhoneira Tâmega, e nessemesmo dia resolveu-se, que não iríamos à fozdo Cunene, mas sim entraríamos diretamenteao Bihé. Esta nova resolução que tomamos, alterava oque havia contratado com os carregadores, ealém disto, a gente de Benguela, que,transportada a país distante, não pensaria emdesertar, não me inspirava garantia, viajando

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logo no começo em país de que conhecia alíngua e os costumes. Começou nova campanha. Eu tinha presentesas narrações de Cameron e Stanley a respeitodos embaraços causados por deserções, e até asdo próprio Livingstone, que foi abandonadopor trinta homens na viagem de Tete com o Dr.Kirk. Logo depois da chegada dos meuscompanheiros, combinamos em ser o Ivensencarregado dos trabalhos geográficos, oCapello de meteorologia e ciências naturais, eeu do pessoal auxiliar da expedição,coadjuvando-nos mutuamente. Assim, pois,tive de me pôr logo em campo, e o primeiropasso que dei, foi ir tomar conselho de SilvaPorto. Narrei-lhe a nova decisão que havíamostomado, de seguir diretamente ao Bihé, eexpus-lhe o meu embaraço. Silva Porto veio aBenguela comigo, pois que a sua casa daBemposta dista 6 quilômetros da cidade, eprecorremos as casas onde haviam caravanas

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de Bailundos, sem que eles quisessem anuir alevar as cargas ao Bihé. À Casa Cauchoix tinhachegado uma grande caravana, e estecavalheiro chegou a oferecer uma avultadagratificação ao chefe, e paga dupla aoscarregadores, se quisessem conduzir as nossasbagagens, mas nada conseguiu. Cabe aqui narrar um fato muito curioso. OsBihenos são os primeiros viajantes da África, enenhum outro povo estende mais longe as suascorrerias, nem se lhe iguala em arrojo erobustez de caminheiros; mas os Bihenosviajam só do Bihé para o interior comoassalariados; e se de maravilha vêm à costa, épor conta própria. Os Bailundos alugam osseus serviços entre a costa e o Bihé, e não vãoao interior para leste; mas ao norte estendemsuas viagens até ao Dondo e Luanda. Assim, pois, os negociantes sertanejos fazemtransportar as mercadorias de Benguela aoBihé por Bailundos, e dali aos pontos remotosdo interior por Bihenos, que voltam, com os

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produtos permutados, ao Bihé. Deste ponto àcosta tornam a servir-se dos bailundos. Depois de informado disto, só me restavamandar assalariar Bailundos, para me virembuscar as cargas; e disto se encarregou SilvaPorto, despachando logo cinco pretos aoBailundo, a ir buscar a gente. O velho sertanejodisse-me logo, que eles teriam muita demora,porque os enviados levavam 15 dias a chegarao país, e outro tanto tempo, pelo menos,gastariam a reunir os carregadores, e estes, 15dias para vir; fazendo uma soma de 45 dias;afiançando-me ele, que antes não os teria. Nósestávamos em fins de setembro, e por isso sópoderíamos partir por meado de novembro. Vim participar isto aos meus companheiros, edepois de conferenciar com eles, resolvemosnão perder tanto tempo em Benguela; eentregando as cargas a Silva Porto, para quenô-las enviasse pelos Bailundos, partirmosimediatamente com as cargas indispensáveis,indo esperar no Bihé; tempo que

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aproveitaríamos no arranjar de carregadoresali para seguir avante. Dos carregadores contratados em Benguelaapenas uns 30 mereciam alguma confiançapara seguir tal caminho; e estes, com 36 deNovo Redondo, faziam um total de 66 homens.Tínhamos, além disto, 14 soldados; os meusmoleques pequenos de serviço; uns Cabindasde serviço de Capello, e Ivens; e 2 chefespretos, um contratado por mim na Catumbela,o preto Barros, e outro por Capello, em NovoRedondo, o Catão. Em toda esta gente nãotínhamos um só homem de confiança. Tratamos de separar as cargas julgadasindispensáveis, e conhecemos que eram 87; istoé, tínhamos 21 cargas mais do quecarregadores. Foi debalde que trabalhei para oshaver, não me foi possível obter um só. Os pretos, não compreendendo o que íamosfazer, ao sertão, estavam receosos, e com a suadesconfiança natural, imaginavam loucuras erecusavam-se. Chegou o fim de outubro semnada termos adiantado.

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Resolvi, por conselho de Silva Porto, ir aoDombe, experimentar se os Mundombescriariam menos dificuldades, do que a gente deBenguela; mas, sentindo-me incomodado, pediao Capello ali fosse por mim. No dia 29, partiu o Capello, e voltou no dia 3de novembro. Nada fez. Os Mundombesprestam-se com facilidade a ir a Quilenguespor caminho conhecido deles; mas, fora disto,não fazem outras viagens; e recusaram aspagas avultadas que lhes oferecíamos parairem ao Bihé. Tornava-se necessário tomar umaresolução, e essa foi logo tomada; seguiríamossempre para o Bihé, mas tomaríamos porQuillenges e Caconda. O Governador Pereira de Mello deu logoordem ao chefe do Dombe, que tivesse prontos50 carregadores, para seguirem conosco paraQuillengues. Silva Porto encarregou-se dascargas que deviam ser mandadas ao Bihé, eeram umas 400. Pôs o Governador à nossa disposição umalancha, para transportar por mar ao Cuio

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(Dombe Grande) as cargas que dali deviam sercarregadas até Quillenges, e algunscarregadores de Benguela que estavamdoentes. No dia 11 de novembro, estávamos prontos adeixar a costa, e fixamos a partida para o dia12. Nesse dia fugiram 4 carregadores de NovoRedondo, e no seguinte 5 de Benguela. Enfim,no dia 12 deixávamos a cidade, depois dasmais cordiais despedidas dos amigos, que sereuniram para nos dizer adeus. Pouco antes tinha eu ido à praia, e por muitotempo tive os olhos fixos na vastidão doAtlântico, desse mar enorme que ia perder devista; e mal cogitava então, que só o volveria aver dois anos depois, na França, em Bordéus. Não sei se a outros tem acontecido o mesmo;eu, no momento da partida, senti umapungente mágoa, uma indefinível saudade,uma dor profunda, que me produziram comoque uma embriaguez, e confesso que não tenhomuito a consciência de ter deixado Benguela. Abandeira das Quinas estava desenrolada, e

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afastava-se da cidade ao passo cadenciado dacaravana; seguí-a. No dia 13, chegávamos ao Dombe, tendo feitouma jornada de 64 quilômetros. Tínhamosconosco 69 pessoas, e seis jumentos, que foram,homens e burros, alojados na fortaleza. Nóstrês, com os nossos moleques de serviço, fomosobsequiosamente hospedados em casa deManuel Antonio de Santos Reis, distintocavalheiro que porfiou em obsequiar-nos. Dois dias depois, chegaram as cargas quetinham vindo por mar, e inventariando tudo,conheci, que para seu transporte precisava de100 homens, além dos efetivos que comigotinha. Isto proveio de termos abusado dafacilidade que nos ofereceu a lancha, metendoa bordo mais cargas do que tínhamos julgadoabsolutamente necessárias. Decidimos partir a 18, depois de recebermoscartas da Europa, porque o navio, de costume,está em Benguela a 14; mas a 18 nem o vaportinha ainda chegado, nem o chefe tinhatambém assalariado um só homem.

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A 21 chegou a mala, mas de gente só tínhamosa trazida de Benguela. O chefe declarou-nos,que no dia 26 poderíamos partir; mas,precisando nós de 100 homens, apenas nosmandou nesse dia 19. No seguinte diaapareceram mais 27; e eu, receoso que elesviessem a debandar se os fizesse esperar,despachei-os logo para Quillengues,acompanhados por dois soldados dos quecomigo tinha. O chefe declara-me que lhe é impossívelconseguir mais gente. Faço reunir na fortalezaos três sobas* do Dombe, no dia 28, e fui eumesmo tratar com eles. São três tiposmagníficos. * Soba é o equivalente a um “chefe local” ou “rei”. Um chama-se Brito, nome que tomou de umdos governadores de Benguela, que orestaurou no poder; outro, Baíta; o terceiro éBatara. Os meus companheiros perdem oassistir a esta cena jocosa, porque desde o dia24 estão com febre. .

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O soba Brito apresenta-se com três saias dechita, pintada de ramageus, muitoenxovalhadas; veste uma farda de capitão deinfantaria, desabotoada, deixando ver o peitonu, porque camisa não usa; e na cabeça, sobreum barrete de lã vermelha, põe nobrementeum chapéu armado de estado-maior. O Baíta traja saias de lã de vistosas cores, umarica farda de Par do Reino, quase nova, e nacabeça, sobre o indispensável barrete, umabarretina de Caçadores 5. O Batara está literalmente coberto de andrajos,e traz à cinta um espadão enorme. Estesilustres e graves personagens estão rodeadosdos seculos* e altos dignitários das suas negrascortes, que tomam assento no chão em tornoda cadeira do soberano. O Baíta eraacompanhado de um menestrel, que tirava deuma marimba, monótona toada. * Seculo: chefe de povoação ou conselheiro do soba. Esta marimba é formada de dois paus de 1metro de comprido, ligeiramente curvos, emque assentam em cordas de tripa tabuinhas

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pequenas de madeira, cada uma das quais éuma nota da escala. O som é reforçado poruma fila de cabaças colocadas inferiormente,sendo a que corresponde à nota mais baixa dacapacidade de 3 a 4 litros, e à mais alta 3 a 4decilitros. Os sobas portaram-se com grande sériedade, eeu fingi também que os tamava a sério. Depoisde me prometerem carregadores, vieramacompanhar-me a casa, que distava uns doisquilômetros da fortaleza; e como eu desse umagarrafa de aguardente a cada um, mandarameles dançar a sua fidalgaria, e o Baíta mandouentrar na dança umas raparigas que haviamficado de parte. Eu pedi-lhes que dançassem eles; masresponderam-me, que a sua dignidade lho nãopermitia; sendo isso contra as pragmáticasestabelecidas. Eu ardia em desejo de ver oBaíta dançando, de saias e farda de Par; econhecedor do império da aguardente nospretos, mandei dar outra garrafa aos sobas.

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Foi o bastante. Atropelaram as suas leis, e ei-los saltando em brutesca dança no meio do seupovo, que entusiasmado por tal honra, redobrade contorções e momices, que chegam a atingiro delírio. O Baíta é magnífico, e com certeza otipo do rei Bobeche* foi criado sobre estemolde. Fala continuamente em mandar cortarcabeças, sentenças estas que os seus escutamcom a maior submissão, mas de queinteriormente se riem, porque bem sabem ogoverno português lho não consente. * Personagem de ópera bufa. O Dombe Grande é um fertilíssimo vale, que seestende primeiro do Sul ao N., e depois aOeste, quase em ângulo reto, até ao mar. Éenquadrado por dois sistemas de montanhas,um por oeste, que borda a costa, e outro porleste, em cujo sopé corre o rio Dombe,Coporolo, ou Quiporolo, e até rio de S.Francisco — que todos estes nomes tem. . . .

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É rio que de inverno traz muita água, mas deverão é seco; sendo que, mesmo nas maioresestiagens, água se encontra cavando poços; oque acontece em todo o vale do Dombe, ondenão é preciso aprofundar mais de 3 metrospara a obter. Junto das montanhas de Oeste naparte em que o vale se estende N. S., há umalagoa, de 50 metros de largo por 1 quilômetrode extensão, e da forma de S. Esta lagoa é curiosa, porque não é formada pordepósitos pluviais, mas sim alimentada por

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uma forte nascente subterrânea, por nuncaalterar o seu nível, e produzir infiltrações, que,um quilômetro abaixo, vão formar nascentes,que são aproveitadas na rega de umapropriedade. Dizem que tem peixe bagre,taínha e muitos crocodilos. Tenho-a visitado muitas vezes, e nunca vi alicrocodilos ou peixe; mas é certo que os há,porque mo afiançou o meu hospedeiro,dizendo-me mesmo, que são muito vorazes; eque, tendo sido, em 1876, a sua propriedadeatacada por um bando de salteadores deQuilengues, estes, rechaçados pelos seuspretos, tentaram na fuga atravessar a nado alagoa, não logrando um só atingir à outramargem, porque todos foram presa dosvorazes anfíbios. Nas montanhas de oeste junto à lagoa,montanhas formadas de carbonato calcáreo ealgum sulfato de cal, existem algumas grutas,uma das quais nos afiançou o nossohospedeiro nunca ter sido visitada, ser enormee parecer, tanto quanto por fora se podia

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observar, que contém extensas galerias. Fomosvisitá-la, eu, Capello e o nosso hospedeiro Reis,e verificamos não ter ela merecimento. É um salão aproximadamente circular, de 14metros de diâmetro, arquitetado pela naturezana imensa massa de calcáreo, que forma amontanha. Parece ser guarida habitual deferas, que o dá a entender o ar saturado dofedor almiscarado de certos animais, bemcomo os traços de leão impressas no póimpalpável que cobre o chão, ondeencontramos alguns espinhos do hystrixafricano.* * Porco-espinho. No vale do Dombe há algumas feitoriasagrícolas importantes, sendo as principais a doLoache, a de Paula Barboza, e a do nossohospedeiro Santos Reis. Esta última contaapenas três anos de existência, e produz canade açúcar de que extrai para cima de 40 millitros de aguardente; e note-se, que o terrenoera antes mato, e foi desbravado há só trêsanos. É uma feitoria que começa, tudo ali está

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ainda em construção; mas pelo resultado jáobtido se pode aquilatar a riqueza do solo ali. Todo o vale é cultivado de mandioca, pelosindígenas, e tão fértil é, que depois de três anosde falta de chuva, não tem deixado de terprodução regular, exportando cerca de 70 mildecalitros de farinha por ano. É o celeiro deBenguela. Os indígenas ali não permutam asfazendas, mas sim vendem a dinheiro, cujovalor já conhecem.

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A demora que ali tivemos foi prejudicialíssimaà ordem, e disciplina da minha gente. Todos osdias apresentavam novas exigências, todos osdias levantavam querelas entre si; e eu nãopodia ser demasiado severo, com receio queme desertassem todos. Venderam os panospara comprar aguardente, e chegaram a venderas rações de comida para se embriagarem. Os soldados eram os piores. Os sobas nãomandaram gente, e eu principiei a ver arepetição das cenas de Benguela. Nãopodíamos seguir.

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No dia 1o de dezembro, chegaram ao Dombe30 homens mandados de Quillengues pelochefe militar, a buscar bagagem sua - mas euabri mão deles e decidi com os meuscompanheiros partirmos no dia 4. Tinhahavido mais três deserções, dois homens deNovo Redondo e um de Benguela. Os nossosburros eram muito manhosos, e não haviacomo ensiná-los; todavia resolvemos conservá-los. . . . . . . . . . . . . .

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Capítulo III História De Um Carneiro Nove dias no deserto—Falta de água—O ex-chefede Quillengues—Eu perco-me nas brenhas—Doistiros a tempo—Perde-se um moleque e uma preta—Perde-se um burro—Quillengues enfim—Morte docarneiro. A 4 de dezembro deixei o Dombe, pelas 8horas da manhã, e segui para Quillengues. OCapello e o Ivens ficaram ainda, para enviaralgumas cargas; deviam ir encontrar-me ànoite. Foi conselho dos guias, que nãotomássemos o caminho das caravanas, mas simum atalho conhecido deles, para evitarmos aspassagens do Rio Coporolo, que já entãolevava muita água; dando difíceis vaus, e queàquele caminho corta em diversos pontos. Depois de duas horas de jornada na planície,chegamos ao sopé da serra da Cangemba, queborda por leste o vale do Dombe. Descansamosum pouco, e às 11 horas, empreendemos osubir da serra pelo leito de uma torrente, entãoseco. Foi difícil trabalho. Os homens iam muito

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carregados; porque, além das cargas daexpedição, do peso de 30 quilogramas,levavam para si rações para nove dias, emfarinha de mandioca e peixe seco. A diferençade nível era de 500 metros apenas; mas o leitoda torrente, formado de rochas calcáreas,oferecia obstáculos enormes ao caminhar porele. Em muitos pontos, era preciso com asmãos ajudar o corpo na subida, e o passar alios seis jumentos, deu grande canseira.Tínhamos comprado no Dombe dois carneiros,para matar em caminho; um dos quaisfacilmente seguiu a comitiva, mas o outro deutrabalho, porque se recusava a andar, e a suateimosia em volver ao Dombe era constante.Foram três horas de fadigosa marcha; quetanto gastamos para transpor um espaço quenão passava de mil metros, e isto por um solabrasador, deixou-nos extenuados de fadiga.Acampamos logo junto a um poço cavado noleito arenoso de um ribeiro que ia seco; ribeiroa que os Mundombes chamam Cabindondo. Olugar era árido, e apenas vegetavam aqui e

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além alguns espinheiros brancos, raquíticos eressequidos pelo sol, que nesta época do anoqueima. O nosso horizonte era formado pelascumeadas das montanhas que correm norte-sul. Pela tarde chegaram Capello e Ivens, e fomoslogo comer; que eu estava ainda em jejum. Nodia 5 de manhã, seguimos a S.E., e depois de 4horas de marcha, em que vencemos um espaçode 20 quilômetros, assentamos campo em umlugar que os guias chamaram Taramanjamba;vale extenso, cercado de cerros pouco altos. Aaltitude é de 600 metros; mostrando queapenas estávamos elevados 100 metros acimado nosso campo de ontem. A vegetaçãocontinua pobre, e a falta de água é grande. Para beber e cozinhar, apenas obtivemospouca, de depósitos fluviais nas cavidades dasrochas; depósitos que foram logo esgotadospela nossa sedenta caravana, sendo que à noitejá se fazia sentir a sede. Durante a marcha, seos jumentos continuaram a ser incômodos, nãoo foi menos o carneiro, que era bravíssimo, e

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mais teimoso que os burros. Decidi matá-lo, etendo combinado isso com os meuscompanheiros, dei as ordens nesse sentido aosmoleques, e fui dar um passeio aos arredores. De volta ao campo, vi que os moleques nãotinham compreendido a minha ordem, e emlugar de matarem o carneiro bravo, haviammorto o manso. No dia seguinte partimos de madrugada, edepois de cinco horas de marcha, acampamosno lugar chamado Tine, onde nos afiançaramos guias haver água. Contra o que eu esperava, o carneiro, não sódeixou de ser teimoso, mas pôs-se a seguir-me,fazendo-me constante companhia, já emmarcha, já no campo. A marcha nesse dia foi difícil, porque não só asede abrasava a gente, mas ainda por uma horaandamos no leito seco do rio Canga, pedregosoe desnivelado, o que nos fatigou muito. Oterreno é já granítico, e a vegetaçãoarborescente luxuriante. .

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Água, como na véspera, foi da chuva,recolhida nas cavidades das rochas; mas eramelhor ao paladar e mais límpida à vista.Tínhamos alguns homens com feridas nos pés,que só chegavam tarde ao campo, porque selhes dificultava o andar; e ainda outros que,por fracos, se atrasavam, e por preguiçamuitos. Nesse dia, entre os retardatários figuravam oscarregadores do rancho; fazendo isso que sótarde comêssemos. O Capello, de si poucocomunicativo, não se queixava dos incômodosque sofria; mas Ivens, loquaz e de gênio alegre,não se calava e nos fazia rir a cada passo, comos seus ditos engraçados. O apetite era jágrande, quando chegaram os carregadores, eele não desfitava os olhos de uma perna decarneiro que um moleque volteava junto dafogueira em espeto de pau, e de repente disse:“Se meu pai pudesse ver como eu olho paraaquela carne até chorava.” Desde o Dombe apenas tínhamos comido umavez no dia, e assim, a nossa gente; com a

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diferença, porém, que eles comiam seminterrupção desde o acampar até dormir: o queme fazia recear, que as rações distribuídas paranove dias, depressa fossem gastas, e emseguida viesse a fome, em país onde eraimpossível obter víveres. Avançamos 25quilômetros no dia seguinte, a E.S.E., e fomosacampar em uma floresta chamada aChalussinga; sendo o piso desse diarelativamente melhor, sempre por terrenosgraníticos, e por entre vegetação mais vigorosaque até ali. Nessa floresta encontramos os primeirosbaobás que desde a costa temos visto. Águacontinuava a ser escassa, e sempre dedepósitos pluviais. Pelas três horas desse dia,fomos avisados de que uma caravana se dirigiaao nosso campo, vindo do interior; e saindologo ao seu encontro, soubemos ser o ex-chefede Quillengues, Capitão Roza, que ia doentepara Benguela. Convida-mo-lo à nossa barraca, onde jantou;partindo em seguida, depois de se prover de

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medicamentos, que prazenteiramente lheoferecemos. Logo que ele partiu, fui avisadopelos moleques, de que em torno do campo seviam traços frescos de caça; e saí a ver se aencontrava. Segui um rasto de grandesantílopes, e tão longe me levou ele, que veio anoite, e com ela as trevas, sem que pudesseatinar com caminho para o campo. Umamontanha fugidia projetava o seu vultosombrio contra um céu nebuloso, ondenenhuma estrela brilhava. Tive ideia de subir aela, para do cume, a ver se avistava o clarãodos fogos do meu campo e dirigir ali meuspassos, ideia que executei com bom resultadoporque efetivamente enxerguei ao longe umclarão que tratei de alcançar, tendo marcadopela bússola a sua direção. Não se imagina oque seja caminhar em noite escura por entre assarças de uma floresta virgem, e quanto tempose leva a transpor um curto espaço; deixandoaqui e além farrapos da roupa, senão tiras dapele. .

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Cheguei por fim, já guiado pelo vozear dogentio; mas qual não foi a minha decepção,vendo que pelo meu tinha tomado o campo doCapitão Roza, que devia estar a 6 quilômetroslonge dele! Porém, como um caminho ligava osdois campos, porque uma caravana que passadeixa trilho, endireitei nele, e depois de umahora de jornada já ouvia o som das buzinasque os meus tocavam, e dos tiros quedisparavam para guiar meus passos. Foi extenuado de fadiga e molestado dosespinhos, que cheguei à minha tenda, ondeCapello e Ivens não estavam livres decuidados. Ali tive uma notícia inquietadora, mas que nãofoi surpresa. Já se sentia falta de víveres, esobretudo os soldados já tinham, em 5 dias,comido a ração de 9. No seguinte dia forçamos a marcha um poucomais, e percorremos em 6 horas 30 quilômetrosa E.S.E. O caminho era bom, marchando no trilho dacaravana do Capitão Roza. Nas florestas que

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atravessamos continuaram aparecendo baobásgigantescos. Depois de passarmos o rioCalucula, acampamos na sua margem direita.O rio leva pouca água, mas esta é límpida eboa. Continuávamos a comer só uma vez ao dia, e ahora da refeição variava entre a 1 e 3, conformeas marchas. Era preciso poupar os víveres.Ressentido da fadiga da véspera não saí a caçarnesse dia, e fiquei na barraca. O Ivens foidesenhar, como costumava; e o Capelloapanhar insectos e répteis. Os soldados terminaram as rações, ecomeçaram a queixar-se de fome, falando emmatar o carneiro. Eu tinha-me afeiçoado aoanimal, que de bravo que era se tinha tornadomanso e meigo, acompanhando-me nasmarchas e não me abandonando um momento.Opus-me a que fosse morto, e o Ivens deu aossoldados um pouco de arroz do nosso. A 9, levantamos campo, às 5 horas, esustentamos a marcha até à uma; hora a queacampamos nas faldas da Serra da Tama. Das 8

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às 9 horas seguimos ao sul, na margemesquerda do rio Chicúli Diengui, que vai ao N.,provavelmente ao Coporolo. A vegetação écada vez mais luxuriante, e nesse dia o nossocaminhar foi por entre floresta espessa. Logo que se estabeleceu o campo, renovaram-se as representações dos soldados famintos, ecom elas a ideia de matar o carneiro. O Ivensdeu nova ração de arroz aos soldados, e isto,ainda que contemporizava, não era umapositiva salvação para o pobre animal. Aindaque extremamente fatigado, resolvi ir caçar,para salvar a vida do meu carneiro. Durante uma hora percorri a floresta semresultado, e já voltava ao campo, quandoavistei, numa pequena clareira, duas gazelasque pastavam. Aproximei-me, mas a mais de cem metros fuipresentido. O macho saltou para sobre umarocha, e dali começou a espiar a floresta com asua vista experimentada; enquanto a fêmea, deorelha à escuta, investigava os arredores. .

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Era grande a distância, mas não hesitei, e atireiao macho, que vi cair fulminado para além dorochedo. A fêmea, ouvindo o estampido dotiro, saltou ligeira sobre o penhasco e eudisparei-lhe o meu segundo tiro, vendo-a emseguida pular, em salto elegante, e desaparecerno mato. O meu moleque correu logo a buscar o antílopemorto, mas eu vi que, em lugar de parar juntodo rochedo, seguiu sempre; eu dirigi-me paraali com o coração palpitante, porque supus queme tinha enganado julgando ver cair oprimeiro antílope. Torneei a rocha, e tive umgrande alvoroço. O lindo animal (cervicaprabohor) estava estendido sem vida. Mal tinha tido tempo de o contemplar, quandodo mato saiu o moleque curvado ao peso degrande carga. Era o segundo antílope, que eletinha levantado morto, a poucos passos nafloresta. Ambos tinham sido feridos no peito,mas ao passo que o macho caiu sem vida, afêmea pode efetuar uma pequena carreira. .

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Estava salvo o carneiro, e como em dois diasdevíamos chegar a Quillengues, e ali teríamosrecursos, estava salvo para sempre. No seguinte dia, depois de marcha de 35quilômetros, e de termos passado a vau os riosUmpuro, Cumbambi e Comooluena, fomosacampar na margem direita do Vambo — quetodos correm ao N., a unir as suas águas(quando as têm), ao Coporolo, que aqui já sechama Calunga, nome que conserva até à suanascente. Na jornada desse dia começamos a encontrargramíneas enormes, nas clareiras do mato. Tãograndes, que era impossível ver nada com elas,e difícil o caminhar. Durante a marchadesapareceu um meu moleque pequeno, e umapreta, mulher do moleque Catraio do Capello;e ainda que despachei gente a buscá-los, nãoforam encontrados. A escassez dos mantimentos era grande, e nãoeram já só os soldados a queixarem-se de fome,todos faziam representações, e não atendiamrazão. Tivemos de seguir. No dia 11, depois de

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passarmos dois riachos que as chuvas tornamcaudalosos, o Quitaqui e o Massonge, fomosacampar na margem direita do rio Tui, muitopróximo de Quillengues. Dos molequesperdidos não havia notícia, e faltava desde avéspera um jumento, que não apareceu.Enquanto se estabelecia o campo, eu segui paraa fortaleza de Quillengues à busca de víveres,com que voltei às 8 da noite. Estavadecididamente salvo o meu carneiro. Nessa noite apareceram o moleque e a pretaperdidos, e isso deu-me um verdadeiro prazer- porque forçados a marchar, pela fome, nãotínhamos podido demorar-nos a procurá-los. Olugar onde acampamos era baixo e pantanoso,fora de recursos, e isolado; e por issoresolvemos ir acampar na libata* do chefe deQuillengues, onde entramos no dia 12, pelas 11horas. * Aldeamento, povoado. Paguei e despedi os carregadores do Dombe eQuillengues contratados até ali; e pedi aochefe, o Tenente Roza, para me obter outros até

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Caconda; o que ele me certificou não ser fácil,dizendo-me logo, que sabia como os rios entreaquele ponto e Caconda iam cheios, e por issonão davam passagem; o que nos impedia departir imediatamente. Nesse dia já comemosbem, e tivemos duas comidas, almoço e jantar. Alguns dias depois, apareceu o jumento que setinha perdido no mato, trazido por umindígena, que o tinha encontrado. Gratifiqueibem o preto, para o encorajar a ser honesto;pois que nunca julguei ver mais o pobreanimal, que, se escapasse das feras, nãoescaparia à ladroagem dos naturais, pensavaeu. Quillengues é um vale regado pelo Calunga(rio que eu suponho ser o curso superior doCoporolo), vale fertilíssimo, e coberto depovoações indígenas. O estabelecimento português ocupa uma áreade 45.500 metros quadrados, por ser umretângulo de 250 metros por 182. Esteretângulo, cercado de paliçada, tem quatrobaluartes de alvenaria, um ao meio de cada

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face - e dentro uns abarracamentos que sãomorada do chefe militar e quartéis dossoldados. Algums baobás, figueiras e sicômoros crescemali, assombrando com seus ramos gigantescosum terreno coberto de gramíneas indígenas,onde pastam os rebanhos do chefe. Se a importância de Quillengues é grandecomo ponto produtivo, e facilmentecolonizável, não o é menos como posiçãoestratégica; pois que pode ser considerado umadas chaves do sertão interior, com respeito aBenguela. Os sobetas* do país reconhecem a autoridadeportuguesa; mas, de natureza salteadores,atacam sem cessar outros povos indígenas,para lhes furtarem o gado. * Pequeno soba, de escassos domínios. São mais pastores do que lavradores, mas,ainda assim, cultivam a terra, que de ubérrimasupre o pouco trato - produzindo milho,Massambala*, e mandioca, em quantidadegrande. * Sorgo.

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As suas habitações são cubatas* circulares, de 3a 4 metros de diâmetro, construídas de grossostroncos de madeira, revestidas de barro. Aporta é bastante alta para dar entrada a umhomem sem curvar-se. * Cabana, choça. Os Quillengues são de estatura média, erobustos, atrevidos e guerreiros. São poucoindustriosos e apenas fabricam o ferro -fazendo azagaias, ferros de flechas, emachados, já de guerra, já de cortar madeira.As enxadas não as forjam, e são por elescompradas no Dombe ou em Benguela. Os seus currais são, como as povoações,cercados de forte paliçada; sendo esta revestidaexteriormente de abatises espinhosos, paraevitar o assalto noturno de feras. Os campos demandioca são igualmente cercados deespinheiros; porque ali abundam corçaspequenas (cephalophus mergens), que das folhassão ávidas, e causam dano grande àsplantações. .

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A aguardente é gênero muito estimado pelosQuillengues, e são eles tão dados àembriaguez, que, durante três meses no ano,tanto quanto dura o fruto do Gongo*, fazemdele uma bebida fermentada, com que estãocontinuamente embriagados; não sendopossível obter deles o menor serviço. * Fruto silvestre. Quando um homem quer casar-se, envia ao paida escolhida um presente, que deve ser pelomenos de 4 metros de pano da costa, e duasgarrafas de aguardente; e logo com o portadorvem a noiva e seus parentes comer, em grandebródio, um boi, que deve oferecer-lhes o noivo.O adultério é coisa de grande estimação paraos maridos; sendo que, por lei, fazem pagar aoamante multa - que se traduz em gado eaguardente. A mulher que não tem cometidoalgum adultério é malvista do marido, que nãoaumenta o seu haver por esse meio. Logo que alguma comete a falta, vai ao maridoqueixar-se de que foi seduzida, e entre eles fazprova a acusação da mulher.

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Entre o povo, os cadáveres são enterrados emlugar escolhido, e conduzidos à cova numapele de boi, cobertos de pano de algodãobranco. Os dias de nojo são dias de grandefesta em casa do finado. Os sobetas têmsepultura reservada, e são ali conduzidosdentro de uma pele de boi preparada em odre,depois de lhe vestirem as melhores roupas. Nas festas de óbito há mortandade enorme degado, porque o herdeiro tem obrigação dematar todo o rebanho, para regalar o seu povo,e contentar a alma do finado. No dia 22, houve um desastroso acontecimentono nosso campo. Um dos meus molequesfurtou-me uma bala explosiva do sistemaPertuisset*; e de companhia com dois outros,decidiram reparti-la de modo que a cada umtocasse seu pedaço de chumbo. Armaram-se deuma faca, e posta a bala sobre uma pedra, deu-lhe ele um golpe, estando os outros doisacocorados para melhor ver a partilha; quandosúbito a bala explodiu, ficando os três feridos,e sobretudo o moleque de Silva Porto Calomo,

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que recebeu treze estilhaços, produzindoalguns feridas profundas. * Projetil com núcleo de nitroglicerina utilizado nacaça ao elefante. Mandamos uns pretos reconhecer, se já dariamvau os rios; e por eles soubemos, que seconservavam altos, o que bem supúnhamos,porque, durante a nossa estada ali, não cessoude chover. Resolvemos então seguir outrocaminho, o qual, ainda que mais longo, eramais euxuto de águas; e por isso, pedimos aochefe nos tivesse prontos os carregadores; oque ele fez, distribuindo eu as cargas no dia 23;mas nesse dia senti-me muito mal, e ainda quefiz seguir as cargas, fiquei eu, e os meuscompanheiros por meu respeito. Lutei comviolenta febre por três dias, e não tenhoconsciência de ter passado o dia 25; diaduplamente festivo para mim, porque, sendo ode Natal, é o aniversário de minha filha. Tiveram cuidado de mim Capello e Ivens, ochefe Roza e sua esposa; e no dia 28, pudelevantar-me e sair, decidindo logo partir no 1o

de janeiro de 1878, isto é, três dias depois.

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A esposa do Tenente Roza fez-me doispresentes, que eu mal sabia então estavamdestinados a representar um papel, ao diante,na minha viagem. Foram eles um serviço de chá de porcelana deSèvres, e uma cabrinha muito meiga, de raçapequena, a que pus o nome de Cora. A esse tempo sucedeu um desastre, quedeveras me contristou. O meu carneiro, porcausa de quem eu tive de sustentar tantas lutascom os carregadores famintos, foi morto poruma cadela perdigueira, que eu levara dePortugal, e dera ao Capello. Perseguido pelacadela, na fuga quebrou uma perna ao passarpor entre a paliçada do campo, e em breve sefinou. Foi o meu primeiro grande desgostonesta viagem, tão abundante deles. . . . . . .

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Capítulo IV Por Terras Avassaladas Jornada a Ngola.—O Soba Chimbarandongo.—Beleza do caminho.—Chegada a Caconda—José deAnchieta.—Nada de correspondência.—Chegada dochefe.—Vamos aos carregadores.—Ivens vai aoCunene e eu vou ao Cunene.—Volta de casa doBandeira.—Falham os carregadores.—O meu juízo. No dia 1o de janeiro de 1878, deixamosQuillengues, tendo ali feito provisão devíveres, e comprado bastante gado para matar,bois e carneiros. O chefe, Tenente Roza,acompanhou-nos uns 7 quilômetros, e voltou àsua residência, seguindo nós sempre a S.E., atéàs faldas da serra de Quillengues, ondeacampamos junto à povoação do seculoUnguri. Tínhamos um companheiro deviagem, que em Quillengues nos tinha pedido,o deixássemos ir até ao Bihé em nossacompanhia. Era ele Veríssimo Gonçalves, filhode um conhecido sertanejo do Bihé, mortohavia pouco, que em Quillengues eraempregado de um ex-criado de seu pai. Este

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rapaz, mulato e de mesquinha educação, comoera de corpo acanhado, cheio de vícios, dospróprios a tal gente, tinha alguma coisa debom, e era inteligente. Tem de figurar no correr desta narrativa, e porisso o menciono mais particularmente. Eraacanhado e tímido, mas não covarde, e debaixode uma aparência fraca, possuía uma forteorganização e músculos de ferro. Sabia apenasler e escrever, mas era um sofrível atirador desegunda ordem, e manhoso caçador. Durante a demora em Quillengues, conseguidomesticar dois dos jumentos, que nesta novajornada já me serviram de cavalgaduras. No seguinte dia, logo à saída, começamos aascensão da serra de Quillengues, que nesseponto se chama Serra Quissécua. A subida foidificílima, e durante três horas lutamos com asagruras da montanha, elevando-nos a 1740metros do nível do mar, ou 836 acima doplanalto que termina em Quillengues. Em um desfiladeiro da serra passamos umpequeno ribeiro, que os indígenas chamam

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Obaba-tenda, o que quer dizer água fria, fomosacampar na margem de outro chamadoCuverai, afluente do Cue. Estes dois ribeirossão permanentes, e são águas que correm aoCunene. O terreno continua granítico, mas a vegetaçãomuda completamente de aspecto — decertodevido isto à altitude. O baobá desapareceu, ejá se encontram fetos* à sombra das inúmeras evariadas acácias que povoam as matas. A floraapresenta riqueza maior em plantas herbáceas,e nas gramíneas sobretudo nota-se uma forçade vegetação vigorosíssima. * Vegetação que se assemelha à samambaia. Notei que atravessamos regiões onde se nãoencontra uma só ave, e de repente entra-se emzonas onde milhares de passarinhos fazemuma chiada enorme. Caça vi ali pouca, mas osrastos anunciam havê-la. Na noite do seguinte dia aconteceu-nos umaaventura curiosa. Estávamos acampados juntodo ribeiro QuiCue, que corre a S.E., em leitogranítico, e vai, provavelmente, engrossar o

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Cue; quando sentimos a cadela do Capelloladrando e arremetendo furiosa, contra algumacoisa que se aproximava da barraca. Aomesmo tempo sentíamos um forte ruminarperto de nós; o que nos fez supor, que osjumentos se tinham soltado e pastavam dentrodo campo, que era cercado de abatisesespinhosas. Falamos à cadela e adormecemos.Ao alvorescer ouvimos grande rumor nocampo, e saindo logo, soubemos, que os pretos,que ao princípio tinham julgado, como nós,que os burros andavam à solta, perceberamdepois que se enganavam, e que um animalestranho se tinha introduzido no campo. Foraefectivamente um búfalo enorme que nos deraa honra da sua companhia durante a noite. Ocaso era notável e de explicação difícil, a nãoserem os repetidos rugidos dos leões que setinham ouvido; fazendo com que o búfaloviesse buscar guarida entre nós. No seguinte dia fomos acampar próximo dapovoação de Ngóla, e eu fiz logo anunciar aminha visita ao soba. Depois do almoço, fui à

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cubata procurá-lo. Fiz-me acompanhar dosmeus moleques, levando uma cadeira paramim, e dois guarda-sóis. O soba apareceu-me logo, armado de doiscacetes e uma azagaia. Trajava tanga compridade pano da costa, e sobre ela uma pele deleopardo. Tinha o peito nu pendendo-lhe dopescoço um sem número de amuletos.Recebeu-me fora da sua barraca, por um solabrasador; e eu ofereci-lhe um guarda-sol, quelevava para isso, de paninho encarnado; favora que ele se mostrou muito grato. Disse-lhe o que andava por ali a fazer, coisaque ele não percebeu muito bem;compreendendo contudo perfeitamente, quelhe oferecia um pequeno barril de pólvora, 50pederneiras e uma dúzia de guizos de latão,sem nada lhe pedir em troca — o quesobremodo o espantou. Convidei-o a vir ao nosso campo ver os meuscompanheiros; e ele acedeu a issoacompanhando-me; coisa muito de notar, queos chefes indígenas são desconfiados.

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Dizendo-lhe, que mandasse uma vasilha emque eu lhe pudesse dar aguardente, foi elebuscar uma botija de litro. Mostrei-meadmirado de que um chefe quisesse tão pouco,e convidei-o a procurar vasilha maior. Mandouentão buscar uma cabaça que levaria o duploda botija, e eu pedi-lhe que juntasse outraigual. O régulo não podia dissimular a suaadmiração pela minha generosidade. Partimos a pé, acompanhados por três dasmulheres, as filhas, e muito povo, todos semarmas, para me mostrarem a confiança que eulhes havia inspirado. Chegamos ao campo quando Capello faziaobservações meteorológicas, e o soba ficouadmirado diante dos termômetros e dosbarômetros. O Ivens veio logo para junto de nós, e depoisde grandes comprimentos, mostramos aorégulo as armas de Snider e de Winchester, quelhe causaram verdadeiro assombro. Este Chimbarandongo, que tal é o nome dosoba de Ngóla, é inteligente, e sabe viver com o

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seu povo. Ofereceu-nos um boi, e tendo eupedido licença para o matar, por havernecessidade de provisões, consentiu nisso,pedindo-me para lhe atirar eu. O boi estava estranho, e fugiu para o mato, auns oitenta metros de nós. Indiquei ao soba olugar em que o ia ferir, e disparei. O boi caiu. Chimbarandongo foi ver o animal, e atentandona ferida, da qual corria o sangue, aberta entreos olhos, no lugar que eu indicava, ficou tãomaravilhado, que me deu repetidos abraços nomeio do seu entusiasmo. Pelas 4 horas, formou-se sobre nós tempestadeviolenta, que se desfez em raios e copiosachuva, durando até às 6 horas. O soba e asmulheres recolheram-se à nossa barraca, assimcomo alguns dos macotas.* * Dignitários. Chimbarandongo fez um discurso aos seusmacotas, tendente a provar-lhes, que nóstínhamos trazido a chuva, e com ela um grandebenefício ao país, ressequido pelos calores doestio.

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Tentamos explicar-lhe, que não tínhamos tãograndes poderes, e que só Deus governava nosgrandes fenômenos da natureza; levando oIvens a questão a ponto de lhe explicar como eporque chovia. Ouvindo isto, fez o soba sair osseus macotas e mais povo que escutava a liçãometeorológica. Depois disto, tendo-se de novo reunido opovo, ele disse, que se deixasse de chover,indagaria qual dos seus súditos tirara a chuva,e o castigaria de morte. Novo discurso danossa parte contra a pena capital; e novaordem de despejo da parte dele, que, apesar domeio embriagado, tinha tino bastante para nãocompreender que as nossas teorias nãoquadravam ao seu sistema governativo. Ao anoitecer retirou-se do modo o maiscômico, indo a cavalo em um dos seusconselheiros, que levava as mãos nos ombrosde outro; e como estivessem todosembriagados, a cada passo perdiam oequilíbrio, ameaçando com a queda partir acabeça ao seu soberano.

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Este régulo é sensato e homem de bom juízo.Não acredita em feitiços; nem acreditava quenós lhe tivéssemos trazido a chuva; masconvem-lhe aparentar que o crê, para nãoperder o prestígio entre os seus, que só assimquerem ser governados. No seguinte dia, vindo ele despedir-se de nós,me disse, que a sua política era ser amigo dosbrancos; pois que das boas relações com elesprovinha a roupa com que se cobria, e as armase a pólvora com que continha em respeito osseus inimigos. “Sem os brancos,” me disse ele, “nós somosmais pobres que os animais; porque a elestemos de tirar as peles para nos cobrirmos; esão bem loucos os pretos que não cultivam aamizade dos filhos do Puto.*” * Uma das designações locais do Rei de Portugal. A libata ou povoação de Ngóla é fortementedefendida por uma dupla paliçada feita comarte, que tem até uma das faces dentada paracruzamento de fogos. É tão vasta que podeconter toda a povoação do país, que ali se

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recolhe, em caso de guerra, com seus rebanhos.O ribeiro Cutóta corre dentro dela, fazendoque possa resistir a longo assédio sem recear asede. Deixando Ngóla, caminhamos por duas horasa N.E., e encontramos o Cue, o maior dos rios,que corre entre Quillengues e Caconda. Nolugar em que tentamos a passagem tinha ele 15metros de largo por 3 a 4 de fundo, não dandopor isso vau. A chuva torrencial da véspera,aumentando-lhe o volume da água, tinhatornado impetuosa a corrente. Uma ponte de finos troncos de arbustos,oferecia uma perigosa difícil passagem aoshomens carregados; mas os bois e os jumentossó a nado podiam passar. Depois de grandetrabalho, os bois nadaram para a outramargem; os burros porém recusaram seguí-los.Só a grande custo conseguiu o preto Barros,ajudado de mais dois, fazê-loss nadar,nadando ao seu lado, e obrigando-os a tomarpé na outra margem; o que era perigoso, queali abundam crocodilos.

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Depois de uma hora de trabalho, avançamospara E.N.E., encontrando o ribeiro Usserem,dali marquei, a N.N.O., o monte Uba, ondeassentam as povoações de Caluqueime.Passamos depois o rio Cacurocae, que corre aS.S.E. ao Cue; e meia hora depois o rioQuissengo, que corre a S.E., e vai afluir ao Cue;acampando na margem deste último, pelas 4horas da tarde, junto da povoação de Catonga,onde tem a sua cubata um tal Roque Teixeira.A marcha foi de 30 quilômetros, o que muitonos fatigou. O caminho foi sempre por planície, onde aaltitude varia apenas entre 1450 e 1500 metrose a vegetação arbórea apresenta um certoraquitismo; mas a herbácea continua a servariada e rica. No dia 6, seguimos sempre a N.E., passandologo o Cue, em ponte feita pelo gentio. Esteribeiro tem 5 metros de largo, por 1 de fundo, ecorre a S.E. ao Catapi. Alcançamos o Coungiou Catapi, às 11 e meia, e acampamos na suamargem esquerda. O Coungi, que a montante

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toma o nome de Catapi, tinha ali 10 metros delargo por um de fundo, com violenta corrente,e dirigindo-se a S.E. vai lançar-se no Cunenepróximo do Luceque. Nesse dia matei uma grande gazela (cervicaprabohor), a maior do gênero que vi em toda aminha viagem, tão grande que foram precisos4 homens para a transportar ao campo. Aofechar da noite, a cadela ladrou muito,arremetendo para o mato; verificando nós sercontra as hienas que nos rondavam asbarracas, e por noite fora tivemos música, emum dueto de baixo e contrabaixo, pela vozclara de um leão, na mata, e pela ronquenha deum hipopótamo, no rio. O aspecto do país continua o mesmo. Naslombadas matas raquíticas, de uma vegetaçãoque mais se pode chamar arborescente do quearbórea, pela maior parte. Leguminosas, nasdepressões; vastas clareiras, verdadeirosprados de gramíneas diversas, por entre asquais serpeia um ribeiro ou um rio. O terrenocontinua granítico, apresentando as rochas

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aspectos variados; mas sendo poucoabundantes em mica. Continuamos caminho ao N.E., passando juntoda libata de Cuassequera, fortificada entreenormes rochedos graníticos, e rodeada degigantescos sicômoros, produzindo um aspectomuito pitoresco. Depois de passar o ribeiroLossola, que corre ao S. para o Catapi, fomosacampar na margem do Nondumba, riachoque, como o antecedente, aflui ao Catapi, mascorrendo ao N. O planalto já é mais elevado, ecaminhávamos então numa altitude de 1600metros. Desse ponto seguimos a Caconda, tendoatravessado três ribeiros, que correm a N.N.O.ao Catapi, e são, por sua ordem, o Chitequi, oJamba, e o Upanga; encontrando em seguida oCatapi, que corre a O.S.O., e que já no dia 6tínhamos atravessado com o nome de Counge.No ponto em que o passamos tem 10 metros delargo por 1 de fundo, e pequena corrente. Algumas das clareiras que nesse diaatravessamos eram cobertas de junco,

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pantanosas e de difícil acesso. A passagem dorio levou tempo, e os meus companheirosprecederam-me na chegada a Caconda.Alcancei depois deles a fortaleza, e fui recebidoà porta pelo chefe interino, mulato e ricoproprietário do conselho, sargento da GuerraPreta*; o qual me disse, que o chefe tinha idopara Benguela, deixando-lhe a espiga de nosreceber (textuais palavras). * Milícias locais. Depois de me ter dito esta amabilidade, o Sr.Matheus convidou-me a entrar na fortaleza.Logo que passei o recinto das fortificações, vientre os meus companheiros um homem deestatura mais que mediana, aspecto macilento,testa ampla e fugidia, olhar pouco fixo,trajando casaca e gravata branca, que o Capellome apresentou, dizendo-me, “Aqui tem Joséde Anchieta.” Estava diante de mim o primeiroexplorador zoologista da África, esse homemque tinha passado 11 anos nos sertões deAngola, Benguela, e Mossamedes, enchendo asvitrinas do museu de Lisboa com valiosíssimos

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exemplares. Tive depois ocasião de presenciaro seu viver, que é digno de ser descrito. Anchieta estava estabelecido nas ruínas deuma igreja, a 200 metros da fortaleza. A casano interior era em forma de T, e toda cercadade estantes, onde haviam, de mistura, livros,instrumentos matemáticos, máquinasfotográficas, telescópios, microscópios,retortas, pássaros de mil cores, vidros variados,louça, pão, frascos cheios de líquidosmulticolores, estojos de cirurgia, montes deplantas, medicamentos, cartucheiras, roupa,etc. A um canto, um feixe de espingardas ecarabinas de diferentes sistemas. Junto à casa,um cercado, aprisionando umas vacas e unsporcos. À porta algumas pretas e pretosesfolando pássaros e preparando mamíferos; edentro, a uma grande mesa, Anchieta, sentadoem velha poltrona, que atesta longos serviços. Sobre a mesa é impossível dizer o que há.Pinças, escalpelos e microscópios há muitos.De um lado, um monte de bocados de pássarosmostra que ele acabou de se entregar ao estudo

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da anatomia comparada. Em frente dele, umaflor cuidadosamente dissecada, atesta que eleacaba de ler na disposição das suas pétalas, nonúmero de seus estames, na forma do seureceptáculo, no arranjo das sementes, nopistilo, os nomes da família, do gênero e daespécie em que a deve colocar. De escalpelo na mão e microscópio no olho,passa ele as horas que pode tirar ao trabalho decolecionador, e é já a planta, já a ave, o pontode mira do seu estudo. A momentos, é interrompido por um doenteque chega, a quem ele dispensa os cuidados demédico, e ao mesmo tempo os remédios dacura, quando lhe não dá também a galinha dadieta. Anchieta professa um respeito sem limites aoDoutor Bocage, diretor do Museu Zoológico deLisboa, e fala dele com essa respeitosa amizadeque é difícil encontrar onde não existemestreitos laços do mesmo sangue. Issocompreende-se. Anchieta, que tem aconsciência dos serviços que tem prestado às

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ciências zoológicas, conhece que tem no Dr.Bocage o homem que lhe faz justiça, e sabeaquilatar esses serviços; o homem quecompleta na Europa o trabalho que ele começaem África; o homem, enfim, que sabe quantasfadigas, quantas febres, quantos incômodoscustaram cada um desses exemplares, quedescreve, descrevendo com eles novasespécies. José de Anchieta é um desses nomes quemerecem o respeito dos homens de ciência, e orespeito dos portugueses seus compatriotas;porque, trabalhador infatigável, tem sabidohonrar o seu país, conservando-se ele mesmohonrado e pobre, no meio do vício e dadesmoralização que lavra nas terras em quevive, e de que poderia tirar proveito se fossemenos escrupuloso. Basta de falar dele, que não há elogios que lhenão caibam; falando mais alto do que eu assuas obras, e o seu nome, ligado para sempreaos seus trabalhos, que não morrem. .

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Soubemos que o chefe Castro tinha sidoexonerado do comando, e fora nomeado outrooficial do exército de África para o substituir.Dois dias depois da nossa chegada, chegaramtambém a Caconda o novo chefe e o AlferesCastro, e por eles a nossa correspondência daEuropa, que lemos com avidez. Falei logo em carregadores, e o Alferes Castroprontificou-se a acompanhar-me a casa de JoséDuarte Bandeira, o primeiro potentado deCaconda, onde me disse que se arranjariam,pela grande influência de que dispunha o talBandeira. Partimos para Vicete no dia 13 de manhã, enesse mesmo dia o Ivens seguiu para casa deMatheus, a fazer um reconhecimento aoCunene, no lugar da sua confluência com oQuando. Eu também devia ir fazer uma visitaao mesmo rio para o sul. O Capello ficou em Caconda atacado por umaligeira febre, e entregue aos cuidados deAnchieta. Segui a S.S.E., passando logo os riosSecula-Binza, Catapi, e Ussongue, que aflui a

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leste, correndo a O.N.O., com 3 metros de largopor 1 de fundo, dando-lhe por isso grandecontribuição de água. Depois de caminhar aS.E. umas 26 milhas, cheguei pela noite aVicete, libata fortificada entre rochas, no cumede um outeiro que domina vasta planície. Fui recebido por José Duarte Bandeira, que,depois de boa ceia, me proporcionou ótimacama, de que bem precisava. Logo na manhã seguinte, o Alferes Castrofalou nos carregadores, e Bandeiraprontamente se ofereceu para obter 120, quetantos nos eram precisos para seguirmos aoBihé. Mostrei o desejo de ir ao Cunene, e ficoudecidido que partíssemos no seguinte dia. Caminhamos nove milhas a Leste, eencontramos o rio no porto do Fende. Logo àchegada, matei um grande hipopótamo, queteve a imprudência de vir resfolegar a meio rioao alcance da minha carabina. Passei ali doisdias. O rio tem aí 100 metros de largo por 6 a 7de fundo, com uma corrente de 1 milha porhora. O seu eixo no Fende é N.O. a S.E. por

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espaço de 2 milhas, sendo à montante de N.E. aS.O., e ainda acima E.O. À jusante inclina-separa S.S.O. por 26 milhas, até ao Luceque. Porvezes toma uma largura de 200 metros e mais.Abundam nele hipopótamos e crocodilos. 1 milha à jusante do porto do Fende, há unsrápidos a que chamam da Libata Grande; meiamilha abaixo, outros, as Mupas de Canhacuto;e 10 milhas mais à jusante, as cataratas deQuiverequete, últimas que tem no seu cursosuperior; sendo depois navegável até aoHumbe. A margem direita é, nos pontos emque a visitei, montanhosa e coberta de matovirgem; à esquerda, vasta planície, de 4 a 5quilômetros de largo, que encosta ao sopé dosmontes, que formam um pouco elevadosistema, correndo N.S.; em cujas vertentesoeste assentam as povoações do Fende. Pelas 11 horas da noite do dia 15, formou-sesobre nós uma tormenta, que despediuinúmeras faíscas e copiosa chuva, deixando-nos completamente molhados. .

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A 17 voltamos para Caconda, com a promessade termos os carregadores dentro de 8 dias;tendo de mandar, logo no dia seguinte, umbarril de aguardente para a convocação. Nestaparte de África, a aguardente desempenhapara com os homens o mesmo papel que naEuropa o azeite representa para as máquinas.Sem ela não se movem. O nosso hospedeiro, que bem nos regalou emsua casa, esqueceu-se de que tínhamos a gastaro dia em jornada; e saindo nós ao alvorecer, sóà noite alcançaríamos Caconda. Partimos como alforje vazio, e pelo meio-dia já o apetitedegenerava em fome. Paramos numa clareira, eeu disse ao Alferes Castro, que ia ver sematava caça para comer; mas apenas avisteiuma codorniz, que nos serviu a ambos dealmoço e jantar, cozinhada numa marmita desoldado. Confesso que já tenho almoçado ejantado melhor do que nesse dia. Os meus pretos, vendo a minha avidez em roeros ossos da codorniz, que a cadela debaldedevorou com os olhos, fazendo-me mil negaças

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com a cauda, deram-me uma raiz de mandioca,que partilhei com o Alferes. Cheguei, à noite, a Caconda, e depois de umaboa ceia, dei fé que Ivens ainda não tinhachegado, e que Capello já estava bom. O Ivens chegou a 19, e nesse dia mandamos otal barril de aguardente ao Bandeira, pedindo-lhe a maior urgência na convocação doscarregadores. No dia 23, chegaram de Benguela uns artigosque tinham sido requisitados; e para mim umpresente de 6 latas de biscoito, que me ofereciaAntonio Ferreira Marques. Nesse diadespachei outro portador a Vicete, pedindo aoBandeira os carregadores, que já sedemoravam. Não apareciam os homens prometidos, e eupedi ao chefe para que fosse a Vicete, e usandoda sua influência como autoridade, visse sedava pressa ao Bandeira em nos mandar agente precisa. O chefe partiu, e escreveu-melogo, dizendo já estarem prontos 61 homens, eque em breve haveria os demais. Levara ele

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logo fazenda para os pagamentos, que ali sóquerem algodão branco, mas disse seremprecisas mais 50 peças, que nós não tínhamos,mas que o Bandeira ficou de emprestar. No dia seguinte, nova carta do chefe, dizendo,que os carregadores iam ser pagos e viriamlogo; dois dias depois, terceira carta, dizendo,já lá ter 94 homens; e finalmente, no dia 5 defevereiro, outra carta, dizendo, que não havianenhum carregador, e que nenhum searranjaria. Imagine-se o nossodesapontamento. Eu a esse tempo ainda não tinha formulado earraigado no meu espírito um princípio, quemais tarde me sugeriu a experiência, e queentrou depois, de parelhas com a carabinad’El-Rei, no feliz resultado da minha viagem.O princípio formulado e depoisprofundamente arraigado no meu espírito,traduzio-se nesta sentença: “Desconfiar, no sertão da África, de tudo e detodos, até que provas repetidas e irrefutáveis

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nos permitam confiar um pouco em algumacoisa ou alguém.” Ora, para mim, essas provas são tão difíceis dese apreciarem, como o são as de um amoreterno, ou as da sólida fortuna do comerciante,embrulhado em transações de vulto. Creio que, ao tomarmos conhecimento da cartado chefe, cada um de nós propôs alvitre qualdeles mais disparatado. O desapontamento eragrande. Sossegados os espíritos, decidimos ireu procurar os carregadores fosse onde fosse, ese longe ou perto os não pudesse encontrar,seguirmos para o Bihé, e mandarmos dalibuscar as cargas. Julgávamos isso possível. O chefe voltou de Vicete, e não me deuexplicação plausível do fato. Acordamos em ireu ao Huambo, a ver se do soba dali obtinhacarregadores; porque, não só o Alferes Castro,como o chefe, e Anchieta mesmo, nosmostravam a impossibilidade de os ajustarmais perto. Pouco antes, Anchieta tinha encontradograndes embaraços para fazer uma remessa de

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produtos zoológicos para Benguela, o que erarelativamente mais fácil. O que nos estavaacontecendo é digno de notar-se. Não só Bandeira, mas um tal Mathias, osargento Matheus e outros, enviam grandescaravanas a sertões longínquos; e todos elesnão poderam obter um só carregador para nós!Eu começava de antever um propósito firme denos embaraçarem o passo, e mal cuidava entãoque esse propósito fosse tão longe comoinfelizmente tive ocasião de experimentardepois. O correr desta narrativa mostrará, quãohabilmente me foram levantados obstáculos,que só uma decidida proteção de Deus me fezvencer. Deixemos este assunto por enquanto, e antesque continue com a narração das minhasaventuras, que começam aqui a tomar umcaráter mais extraordinário, cabe-me dizerduas palavras a respeito de Caconda. A fortaleza de Caconda, o ponto mais interioronde hoje no distrito de Benguela tremula a

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bandeira portuguesa, é um quadrado de 100metros, cercado de um profundo fosso e de umparapeito, onde aqui e além se podem ver aslinhas distintas de uma fortificação passageira,construída outrora com arte. Uma paliçadaforma segunda fortificação no interior,resguardando umas casas arruinadas, queforam habitação do chefe, quartéis e paiol. Algumas boas peças de bronze, montadas abarbete*, deixam ver por sobre o plano de tiro,deformado pelo tempo, as suas bocas verde-negras e oxidadas. * Com as bocas apoiadas na amurada. A 200 metros ao Sul da fortaleza, as ruínas deuma igreja. Ao norte, uma reunião depequenas cubatas, morada dos soldados. O país é agradável, e sem ser, como sepertende, isento de febres, é certo que elas alisão mais benignas do que em outros pontos. Apovoação é pouquíssima, e tem-se retiradomuito da fortaleza. O solo é ubérrimo, e muitasplantas europeias facilmente se aclimam ali,

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produzindo espantosamente. No trigo, feijão ebatata vi eu isso, em pequeníssimas plantações. O ribeiro Secula-Binza é uma fonte de águacristalina correndo em leito de granito. Juntoda fortaleza há poucas árvores; que asnecessidades dos habitantes têm despovoadoas matas que devem ter existido outrora, comoainda hoje existem mais longe. O comércio épouco, e esse mesmo é feito muito longe nointerior. A mesma pegada de decadência que se nosrevela em Quillengues, é ainda mais patenteaqui. A importância de Caconda é igual, senãosuperior, à de Quillengues; mas tem menossegurança ainda para o comércio; que ocaminho de Benguela é infestado desalteadores. . . . . . .

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Capítulo V Vinte Dias de Agonia Parto de Caconda—O soba Quipembe—Quingolo eo soba Caembo—40 carregadores—Febre—OHuambo, o soba Bilombo e seu filho Capôco—80carregadores—Cartas e notícias—Quase perdido!—Sigo avante—Grave questão no ChacaQuimbamba—Os rios Calae, Canhungamua eCunene—Nova e séria questão no Sambo—OCubango—Chuvas e temporais—Grave doença—Uma aventura horrível—O Bihé finalmente! Parti de Caconda a 8 de fevereiro de 1878,levando em minha companhia 10 homens deBenguela, o meu moleque Pepéca, VeríssimoGonçalves, de quem já falei, e o chefe deCaconda, o Tenente Aguiar, que quis por forçaacompanhar-me nesta expedição, que tinha porúnico fim o arranjar carregadores; querendomostrar assim a sua boa vontade em nosauxiliar, e que era estranho aos acontecimentosde Caconda. Cumpre-me dizer, que eu nunca duvidei dasinceridade do Tenente Aguiar; porque a esse

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tempo não tinha ainda arraigado no meuespírito o princípio que formulei no capítuloanterior, e hoje mesmo creio que ele foienganado como eu, apesar da sua muitaexperiência dos sertões avassalados. Depois de uma jornada de 17 quilômetros aN.E., alcançei a libata de Quipembe, onde fuirecebido pelo soba Quimbundo, que me deuhospitalidade. Passei um pequeno ribeiro oCarungolo, junto a Caconda; e depois o Catapi,que ali corre a S.O. O soba mandou-me logo um porco pequeno, enão tendo eu podido comprar galinhas,mandou-me uma. À tarde veio à minhabarraca, e depois de larga conversa, disse-me,que, ainda que os seus antepassados foramsempre avassalados a El-Rei de Portugal, elenão o era, porque as muitas arbitrariedadescometidas pelos chefes contra ele e os seus,tinham quebrado os compromissos antigos;que o Mueneputo* já lhe não fazia justiça, enarrou-me muitos dos acontecimentos em que

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baseava as suas acusações aos chefes, falandocom modo muito atilado. * Outra designação do Rei de Portugal. O chefe estava presente à entrevista, e nãopodia responder às acusações dirigidas aosseus antecessores, tão claramente eram elasformuladas. Este velho era homem de tino, e falou-me napolítica dos portugueses em Caconda com umjuízo difícil de encontrar em preto boçal. Procurei desfazer a má impressão que o sobatinha dos chefes de Caconda, mas creio quenada alcancei nesse sentido. Mais uma vez tiveocasião de apreciar o mau resultado dosminguados estipêndios que se conferem aoschefes dos conselhos do interior; causaprimordial da decadência do nosso poderio einfluência ali. O soba de Quipembe é muitoidoso, e sofre de gota, que lhe embaraça ocaminhar. A sua libata é vasta, bem fortificada e muitobem situada. Desde a minha chegada muitasdezenas de pretos e pretas pequenos olhavam

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pasmados para mim, fugindo em debandadaao menor movimento que eu fazia. Tenteifazer-lhes perder o medo que manifestavam,dando-lhes alguns guizos e bagos de coral; massó mui receosos se chegavam a mim, fugindologo que recebiam o presente. Foram objeto degrande admiração, os meus óculos e o meucobertor, em que se desenhava um enorme leãoem fundo vermelho. No dia 9 deixei a libata, seguindo a N.E.; passeilogo o ribeiro Utapaira, e uma hora depoisalcançava o Cuce, afluente do Quando. Este riotem ali 3 metros de largo por 2 de fundo,dando difícil passagem, por serem as suasmargens escarpadas e lodoso o fundo. A margem direita é montanha suave e poucodefinida, e a esquerda campina tem 1quilômetro de largo. Passei ao sul da libata deBanja, magnificamente situada no topo de umouteiro, e depois de atravessar três ribeiros, oCanata e Chitando, que vão ao Cuce, e o Atucoao Quando, alcancei este último rio, um dosgrandes afluentes do Cunene. O Quando corre

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ao Sul, com uma largura de 20 metros por doisa três de fundo. No lugar de Pessange, em que acampei,desaparece o rio por baixo de massas enormesde granito, para reaparecer um quilômetro àjusante. Este ponto oferece uma das mais belaspaisagens que tenho visto. As margens do rio,um pouco difusas, são cobertas de luxuriantevegetação, onde as palmeiras elegantes sedestacam do verde-negro dos gigantescosespinheiros. Os rochedos denegridossobressaem aqui e além por entre os tufos demato, mostrando os cabeços puídos do baterdas tempestades. Nuvens de passarinhoschilream nas árvores e inúmeras rolasesvoaçam sobre os espinheiros. De quando emquando ouve-se o resfolegar dos hipopótamosnos pegos do rio. É a beleza selvagem em todaa sua força, mas a par dela há ali alguma coisade horrível, que são venenosíssimas serpentesque a cada passo se arrastam junto de nós.Matei algumas, que me certificaram os pretosserem de mortal peçonha.

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Apareceram alguns hyrax*, e eu, internando-me no mato virgem da margem esquerda, emsua busca, deparei com as ruínas de umamuralha de pedra, que pela extensão parecemter sido muro de povoação antiga. Foi este oprimeiro dia na minha viagem em que de noitetive por teto o céu estrelado, mas por isso nãofoi menos profundo o meu sono. Ao alvorecermatamos, entre a minha cama e a do tenenteAguiar, uma cobra venenosa. * Mamífero de médio porte que lembra a paca. Seguimos a N.E., e para além da povoação dePessange, encontramos a de Canjongo,governada por um seculo, que nos ofereceucapata* e vendeu algumas galinhas a troco depano de algodão ordinário, e depois depassarmos o rio Droma, afluente do Calae, quecorre a S.E., descansamos algumas horas namargem esquerda, e caminhando depois aN.N.E., chegamos, às 5 horas da tarde, à libatagrande de Quingolo. * Espécie de cerveja rudimentar. O soba deu-me hospitalidade, e mandou logocomida para a minha gente. Sabendo o motivo

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da minha viagem, disse-me, que se a eletivéssemos recorrido a tempo, nos teriaarranjado os carregadores, mas que os chefesde Caconda não faziam caso dele, e faziam malnisso; que ainda assim, me ia dar 40carregadores que enviaria a Caconda, e fosseeu ver se obtinha os outros ao Huambo. Fui atacado de uma ligeira febre. No dia 11,logo de manhã, o soba veio visitar-me econfirmou o seu oferecimento de 40 homens,que me disse partiriam no seguinte dia paraCaconda. Quis fazer algumas compras devíveres, mas nada me quiseram vender;sabendo isto o soba Caembo, enviou-me umgrande porco. Eu fiz-lhe um presente de 3peças de riscado e duas garrafas deaguardente. O chefe Aguiar decidiu voltar aCaconda, no que me deu um verdadeiroprazer. Ao meio-dia apareceram os chefes doscarregadores que partiam, para receberem ospagamentos. Esta libata grande de Quingolo ésituada sobre um outeiro granítico que domina

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uma enorme planície. Por entre as rochascresceram sicômoros enormes, que lhe dãouma frescura constante. Estas rochascombinadas com as paliçadas formam umatemível fortificação, rodeada de um fosso meioobstruído. No topo do outeiro dois rochedosenormes de proporções formam uma espéciede mirante, de onde se goza um dos maissurpreendentes panoramas que tenho visto.Semelhante ao golpe de vista da Cruz Alta doBussaco, se a mata, em vez de limitada naestreita cinta de muralhas se estendesse doscabos Carvoeiro ao Mondego até à beira-mar eapenas interrompida aqui e além porverdejantes clareiras. O país que se avista doalto de Quingolo é, talvez, mais vasto egrandioso, sendo limitado em torno por umperfil azulado de longínquas montanhas quede tão distantes mal se avistam. No dia 12, ainda que me recresceu a febre,decidi partir, e tendo feito as mais cordiaisdespedidas ao soba e ao chefe Aguiar, segui às8h 30m, acompanhado de 3 guias que me deu o

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soba Caembo, com quem fiquei nos melhorestermos de amizade. Logo à saída passei oribeiro Luvubo, que corre ao Calae, e pelas 10horas alcancei a libata do seculo Palanca, ondepedi agasalho, por me ser impossível caminharcom febre que recrescia a cada momento. Apesar do meu estado de saúde, fizobservações astronômicas, para determinar aminha posição; e falo nisso, por ser este oprimeiro dessa série de pontos que eu deviadeterminar através da África. Foi a povoaçãode Palanca o primeiro ponto determinado pormim, nessa linha que marca o meu caminho domar Atlântico ao Índico. Três gramas de quinino que tomei durante apirexia produziram-me rápidas melhoras queme permitiram seguir no dia imediato. Euviajava montado em um possante boi, e tinhaum outro de reserva, bois muito bemdomesticados e que ofereciam boa comodidadeao andar, podendo obter deles um aturadotrote e mesmo um galope curto. .

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Segui perto das 8 horas e passei logo o rioDoro, a que chamam das mulheres, onde foimuito difícil a passagem dos bois, por ser defundo lodoso. O calor era intenso, e eu comecei a sentir-memais doente, pelo que resolvi deitar-me adescansar um pouco. Não haviam árvores nolugar, e ao sol ardente sobre uma terra ardenteadormeci. Foi curto o meu sono, e ao despertar,senti que estava fresco e tinha sombra. Eram osmeus pretos que, de motu próprio estavam emtorno de mim segurando um pano para desviardo meu corpo as ardências de um sol a prumo.Tocou-me tal prova de cuidado. Segui avante epassei um riacho, o Doro, a que chamam doshomens, que se une ao primeiro e corre depoisao Calae, não sei se com o mesmo nome. Duashoras depois encontrava o rio Guandoassiva,que tem 5 metros de largo por 1 metro defundo, em cuja margem descansei. É afluentedo Calae e abunda em peixe miúdo, que muitoali pescamos. Eu sentia-me bastante doente. Àfebre que tinha reaparecido unia-se uma

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extrema fraqueza, pois que, havia dois dias,apenas tinha tomado alguns caldos de galinha. Aproveitei o descanso para mandar fazer umcaldo de frango, que não levou sal, por se meter acabado a pequena provisão trazida deCaconda. Depois de duas horas de repouso,seguimos sempre a N.E., e meia hora depoispassávamos o rio Cuena, que tem ali 6 metrosde largo por 1,5 de fundo, e corre ao Calae. Este rio corre entre as vertentes suaves demontanhas mui pouco recortadas, mas cavouum leito fundo, cujas escarpas verticais de 2metros, tornaram difícil a passagem dos bois.Trabalhamos ali duas horas. Duas horasdepois, já ao cair da noite, alcancei a libata doCapôco, o poderoso filho do soba do Huambo. O Capôco recebeu-me muito bem, deu-me asua própria casa para habitar, ofereceu-melogo um grande porco, e sabendo-me doentemandou-me duas galinhas. Falei-lhe emcarregadores, que ele me prometeu arranjar. Fiz-lhe um presente de duas peças de riscado eduas garrafas de aguardente. Pouco depois,

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um grande rancho de virgens, que seconhecem pelas muitas manilhas de verga depau, que lhe sobem dos artelhos, trouxeram emcestas abundante comida aos meus pretos.Depois de tomar alturas da lua, deitei-me, feliz,apesar de doente, por ver coroada de êxito aminha excursão. No dia seguinte deveriam chegar ali os meuscompanheiros, e com eles, não só a amizade e acompanhia dos meus conterrâneos, mas aindaos recursos que já me faltavam completamente.Adormeci sorrindo. Quão longe estava eu depensar que adormecia na véspera de umaagonia, imensa agonia que devia durar por 20dias! No dia 14 fui a casa do pai do Capôco, o sobadas terras do Huambo. A libata deste soba, quese chama Bilombo, dista 3 quilômetros da dofilho, e está assente na margem esquerda do rioCalae. Bilombo esperava-me. Rodeado do seupovo, trajava soberbamente uma casacaescarlate, cobrindo-lhe a cabeça uma barretinade Caçadores. Entreguei-lhe o meu presente,

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que consistia em 3 peças de riscado ordinário eduas garrafas de aguardente, a que se mostroumuito grato. Ficou muito surprendido vendo aminha carabina Winchester, e pediu-me paraeu atirar com ela, ficando admiradíssimo deme ver meter algumas balas num pequeno alvoa 200 metros, e muito mais quando lhe quebreium ovo a 50 metros. Este soba governava em tudo o país doHuambo: mas está hoje reduzido a dominarapenas em parte dele. A sua história é curta,mas vulgar. Ele era casado com a filha do sobado Bihé, que entretinha relações amorosas comum dos seus seculos. Temiam os criminosos da cólera do rei seviesse a saber a sua falta. Houve rompimentoentre Bilombo e um régulo vizinho, e a guerrafoi declarada. Bilombo tomou o comando doseu exército e partiu, ficando a governar na suaausência o amante da sua mulher.Conspiraram ambos e Capussocusso fez-seaclamar soba. Retirou-se Bilombo para estaparte do país banhada pelo Calae, onde o povo

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se lhe conservou fiel, e à época da minhapassagem, me disse, estar preparando umaterrível vingança à adúltera e ao seu amante otraidor Capussocusso. De volta a casa do Capôco, despedi os trêsguias, que me acompanharam desde Quingôlo,e por eles escrevi a Capello e Ivens, dizendo-lhes, que os esperava, e que não abandonassemas cargas, por ser o país pouco seguro. Fui detarde dar um passeio às margens do Calae, esurprendeu-me a quantidade de caça queencontrei, que nunca tanta tinha visto, masnada matei por não ir prevenido para isso. O soba Bilombo mandou-me um presente defarinha de milho e um grande boi, presentemui valioso, por ser escasso o gado bovinonaquele país. Os carregadores estavam preparando osmantimentos para seguirem no dia imediatopara Caconda, e eu escrevia aos meuscompanheiros, quando chegaram trêsportadores do soba de Quingôlo, com cartas

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deles, e uma cesta contendo sal e um pequenosaco de arroz. Abri pressuroso as cartas; eram elas duasoficiais e uma particular, assinadas por Capelloe Ivens. Diziam-me, que tinham resolvidoseguir sós, e que pelos 40 carregadoresenviados por mim de Quingôlo, memandavam 40 cargas, acompanhadas pelo guiaBarros, para eu as conduzir ao Bihé. Só o pouco ou nenhum conhecimento do sertãoAfricano, que então tinham os meuscompanheiros, podia desculpar um talproceder. Eu achava-me num país hostil, e seaté ali tinha sido respeitado, fora só porque ogentio me julgava a vanguarda de uma grandecomitiva capitaneada por eles, e o receio dasrepresálias tinha até então sustido a rapacidadedos indígenas. Eu estava no país onde SilvaPorto, o velho sertanejo que percorreraimpunemente os mais longínquos sertõesafricanos, tivera de sustentar cruento combatecom um gentio ávido de rapina. .

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Que seria de mim logo que se soubesse quetoda a minha força consistia em 10 homens?Encarei a minha posição e achei-a um poucoséria. Capello e Ivens tinham sido enganadospor alguém, que a sua lealdade não lhesconsentiria decerto o deixarem-me em talposição, se eles conhecessem bem essa posição. Que fazer? Em três dias podia alcançarCaconda, e voltar dali a Benguela. Tinha, poroutro lado, diante de mim uma jornada devinte dias ao Bihé, jornada em que teria dearriscar cada dia e a cada hora a vida e asbagagens. Que fazer? A noite de 17 de fevereiro foi passada em umaagitação febril indescritível. Devia seguiravante? Tinha o direito de arriscar as vidas dosdez homens que me cercavam, e que dormiamtranquilos junto de mim? Teria o direito dearriscar a minha própria vida em imprudentepasso? Deveria voltar a Benguela? Quemcompreenderia na Europa o obstáculo quaseinsuperável que me fazia recuar? Ninguém, anão ser um ou outro explorador infeliz como

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eu. Que noite horrível! e a febre a desvairar-mea mente, e o cuidado a aumentar-me a febre. Aaurora do dia 18 encontrou-me de pé, e haviamomentos que uma frase estava gravada nomeu pensamento e eu repetia maquinalmenteaquela frase: Audaces fortuna juvat.* Era avelha sentença dos fortes romanos, era a leique dita as ações dos aventureiros. * "A sorte protege os audazes." Decidi seguir avante, eu que não tinha ido aÁfrica para só visitar o país do Nano*, que,digamos a verdade, não deixa de ser muitointeressante, sobretudo para nós osportugueses. * Parte da África do Sul atual. Descrevi aos meus 10 homens a nossa posiçãoprecária e a resolução tomada de caminharpara o Bihé; eles protestaram-me a suadedicação e a intenção de sempre meacompanharem. Desses dez homens 3,Veríssimo Gonçalves, Augusto e Camutomboestiveram em Lisboa depois de terematravessado comigo a África; 4 seguiram doBihé Capello e Ivens, por minha ordem; 1, o

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preto Cossusso, enlouqueceu, junto ao Quanza,e foi por mim entregue ao enviado Silva Porto,Domingos Chacahanga, para dele ter cuidado;e os dois restantes, Manuel e Catraio Grande,caíram aos meus pés varados pelas azagaiasdos Luinas, e cumprindo a sua promessaformulada rudemente neste dia, morreramdefendendo-me, quando eu mesmo defendia abandeira das Quinas. Ao tempo em que vai a minha narrativa, eumal os conhecia, e não tivera até então lugar deexperimentar o seu valor. Eu estava em casa doCapôco, que até então me tinha dispensado osmaiores favores; mas Capôco era o célebresalteador do Nano, que chegara a ir atacarQuillengues, um ano antes. O que faria ele,logo que conhecesse a minha fraqueza? Dele dependia o êxito da minha empresa.Capôco é homem de vinte e quatro anos,simpático e de maneiras agradáveis. Muitasvezes me dizia Veríssimo Gonçalves, que lheparecia impossível ser ele o homem cujo nomeera tão temido, e que tão longe dirigia as suas

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correrias de devastação e morte. Entre as suasescravas conheceu Veríssimo algumasraparigas roubadas em Quillengues, no ataquedo ano anterior. Uma mesmo, com quem falei,era filha de um dos sobas de Quillengues, eCapôco pedia por ela grande resgate. Capôco é inteligente, parco no comer e beber, eainda que possua grande número de escravas,as que formam o seu harém são mui poucas.Há no seu fundo alguma coisa de justo porentre a barbaria do seu viver e dos seusprincípios. Por exemplo: eu vi que a escrava, aque acima me referi, filha do soba deQuillengues, trazia nos artelhos as manilhas depau, sinal infalível de virgindade, apesar de sermuito bonita e elegante. Admirou-me isso, eperguntei ao Capôco porque não havia feitodela sua amante. “Porque não devo,” merespondeu ele, “é minha escrava pelo direitoda guerra, mas enquanto seu pai manifestar ointento de a resgatar, devo respeitá-la e serárespeitada, porque a devo entregar como atomei.”

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Um dia Capôco disse-me, que, estandoBenguela daquele lado (apontava para o oeste),o sol passava primeiro pelo Huambo antes deir a Benguela. Disse-lhe eu ser isso verdade, eele quis saber quanto tempo depois de nascerali, nascia ele em Lisboa. Procurei fazer-lhecompreender que era hora e meia; dizendo-lheo tempo que um homem leva a percorrer talcaminho, ele mostrou-se admirado; porquejulgava, me disse, ser o nosso país muito maislonge. Os costumes entre os povos do Nano e doHuambo* são os mesmos que entre osQuillengues, assim como falam a mesmalíngua. Trabalham o ferro, de que fazem setas,azagaias e machadinhas; mas não enxadas, quevêm do norte. * O Huambo é parte integrante da atual Angola. Como já incidentalmente notei, as raparigas,enquanto virgens, usam nos artelhos de ambasas pernas ou só na esquerda, umas manilhas deverga de pau, e é grande crime para a família,

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conservar as manilhas àquelas que já não têmdireito de as usar. Uma coisa curiosa nos costumes destes povos,é haver em todas as povoações uma espécie dequiosques para conversação.

São como uma cubata, mas os prumos quesustentam o teto de colmo, são bastanteseparados. No meio arde a fogueira, sóciaconstante do gentio africano, e em tornotomam assento os habitantes da povoação emtoros de pau. É o lugar da palestra, sobretudoquando chove; ali narram-se episódios deguerra ou de caça, fala-se também de amor, e

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muito menos de vidas alheias do que naEuropa. No país do Huambo começa na costa de oesteo grande luxo nos penteados, tanto em homenscomo em mulheres, e tenho visto alguns quedificilmente seriam executados pelos melhorescabeleireiros da Europa. Há penteados quelevam dois e três dias a fazer, e que seconservam por muitos meses. Os penteados das mulheres são profusãoenteenfeitados com umas contas de vidro que nocomércio em Benguela tem o nome de coralbranco ou encarnado, e é este gênero muitoprocurado no país. Eu infelizmente não levavanenhum. A pólvora, armas e o sal de cozinha são aligêneros de grande valia. Nada disto eu tinha,em quantidade de que pudesse dispensar, oque tornava mais embaraçosa a minha posição. Fui falar ao Capôco e expus-lhe que os meuscompanheiros tinham seguido por Callangue, eque só viriam 50 cargas, não precisando eu por

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isso mais de 40 homens e esses só para iremdali ao Bihé. Despedimos por isso os 80 carregadores que aessa hora já estavam reunidos, e que seretiraram muito descontentes. Capôcoprometeu-me que teria os 40 de que precisavaaté ao Bihé. Nesse dia chegou o preto Barroscom as 40 cargas, e trouxe-me nova carta dosmeus companheiros, confirmando o quediziam as primeiras. Por ele soube que eles tinham saído deCaconda para o Bihé, acompanhados pelo ex-chefe, Alferes Castro, e pelo degredadoDomingos, que me tinham mostrado aimpossibilidade de obter gente em Caconda, eque a obtiveram no dia em que eu saí daqueleponto. A eles, talvez, devia eu a crítica posição em queme achava, porque os meus companheiros,pouco conhecedores da África, e nada daquelepaís, não podiam julgar das dificuldades queme criavam, ao passo que aqueles dois

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senhores, de sobra as conheciam. Não os acusode um crime, mas culpo-os de uma leviandade. Não lhes quero mal, porque a ninguém queromal, e um mês depois de se passarem ossucessos que estou narrando; espantado aindados perigos a que tinha conseguido escapar;prostrado no leito, onde me tinha prendidocom garras de ferro a doença, proveniente de20 dias de cruel agonia, a que eles deramcausa; vi-os entrar, famintos e sem recursos, nacasa de Silva Porto, que eu ocupava no Bihé; eesquecendo todo o mal que me haviam feito; enão me lembrando de que um estava privadodos direitos de cidadão por uma sentençainfamante, reparti com eles o pouco de víveresque eu tinha, dando-lhes os meios de voltaremcom relativa comodidade a Caconda. É que euvi neles, não só dois brancos, dois portugueses,perdidos no já longínquo sertão do Bihé, masvi mais os homens que me fizeram ter de mimuma opinião de que me sentia orgulhoso, oshomens que em 20 dias de agonia que mederam, em mil perigos a que me lançaram, com

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que me fizeram lutar e que eu venci, meretemperaram a alma para cometimentosmaiores. A eles devia a confiança que tinha emDeus e em mim mesmo; e repartindo com eleso pouco que tinha, julgava pagar uma dívidade gratidão, onde outros, sucumbindo aosofrimento, só veriam, talvez, um motivo devingança. Não antecipemos fatos. Capôco veio dizer-me, que no dia seguinteteria os 40 homens que queria, mas só até aoSambo, porque eles se recusavam a ir maisalém, por estarem despeitados pela despedidados 80 que se haviam reunido para ir aCaconda e ao Bihé, e que eu tinha dispensado.Além disto, eles exigiam um pagamento muitosuperior - porque eu os havia contratado por10 panos de Caconda ao Bihé, e estes exigiamsó do Huambo ao Sambo 8 panos. Acerteitudo, para poder partir. No dia seguinte de manhã, reuniram-se os 40homens; mas de repente surgiu uma novadificuldade.

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Quando em Caconda fomos enganados peloBandeira, o Ivens tinha tirado a todos os fardossortidos o algodão branco; porque os pretosque esperávamos do Bandeira não queriampagamento em outro gênero. Ele esqueceu estacircunstância, e eu, levando dois fardossortidos, não levava nenhuma só peça dealgodão branco. A gente do Capôco declarou-me logo, que não queriam receber senãoalgodão branco, e não pegariam nas cargas seeu lho não desse. Recusaram-se a receber oriscado, e já se iam, quando apareceu oCapôco, e não sem custo os decidiu areceberem metade em riscado, metade emzuarte. Havia grande descontentamento entre elesquando às 10 horas os fiz seguiracompanhados pelo guia Barros. Eu deviapartir dentro de uma hora; mas fui atacado detão violento acesso de febre, que tive de deitar-me. Desde a véspera chovia torrencialmente, esobretudo a noite foi tempestuosa. .

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A febre começou a declinar às 4 horas da tarde,e a chuva cessou. Pelas 5 horas, precisei sair dalibata e fui a um mato próximo, os meus passoseram vacilantes e apoiava-me pesadamente nomeu bordão. Precavido sempre, disse ao meupreto pequeno Pepéca, que me acompanhassee trouxesse uma das minhas carabinas. Ia aentrar no mato, quando a vinte passos de mimsurge um enorme búfalo a olhar desvairado,resfolegando estrondosamente. Tomei das mãos do pequeno a espingarda, equal não é o meu desespero, vendo que, emlugar de carabina, ele tinha trazido umasimples arma de caça, carregada de chumbo!Senti-me perdido e vi a morte inevitável,terrível caminhando para mim naquela fera,que mugia surdamente. Lembrei-me de Deus,de minha mulher e de minha filha. A feraavançava aos saltos, nesse irregular galope queeles tomam para o ataque. A 8 passos de mim,disparei-lhe o primeiro tiro de chumbo, eleparou meio segundo, para seguir logo. Aodispararar-lhe o outro tiro não havia mais

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distância entre a boca da espingarda e a cabeçado búfalo do que alguns decímetros. Atirei efiz um enorme salto para o lado. O búfaloseguiu sempre, passando a tomar uma carreiravertiginosa, e desapareceu no mato. O meuPepéca ria a bandeiras despregadas, einconsciente do perigo, batia as palmasgritando, “O boi fugiu, o boi fugiu, teve medode nós.” Voltei a casa do Capôco; e passei a noite maissossegado. Quis escrever, e para issoimprovisei uma luz de gordura de porco emuma velha caixa de sardinhas de Nantes. Era a 21 de fevereiro de manhã. Despedi-me doCapôco, e febril ainda, segui caminho doSambo. Antes de chegar ao Calae, recebi unbilhete. Era ele do guia Barros, dizendo-me,que na véspera à noite, os carregadores tinhamfugido todos, deixando as cargas na libata doseculo Quimbungo, irmão do soba Bilombo. Parei, e mandei chamar o Capôco. Contei-lhe oocorrido, e ele disse-me, que seguisse para alibata do tio, que tudo ia remediar. Segui

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avante, e pouco depois passei o Calae, quecorre N.S. para o Cunene, tendo ali 30 metrosde largo por l,5 de fundo, com violentacorrente. As margens são vastas planícies levementeacidentadas e cobertas de gramíneas, por entreas quais surge aqui e além um solitáriodragoeiro*. O solo é de formação animal, quetudo o terreno é coberto por um mundoinfinito de termites, ou antes o cobre. * Árvore de grande porte, que produz a resina“sangue de dragão”. Uma ponte, construída toscamente de troncosde árvore, une as duas margens do rio. Cemmetros à montante da ponte, recebe o Calaeum afluente importante, o Cuçuce, que trazvolume de água igual ao seu. Caminhei aE.N.E., e pelas 10 horas passei junto à libata doseculo Chacaquimbamba, em cuja frente haviagrande ajuntamento de gentio. Passei semnada me dizerem; mas tinha andado uns 50metros, quando senti um grande barulho dolado da libata. Nesse momento Veríssimo

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correu a mim e disse-me, que havia questãocom um carregador nosso. Voltei atrás e vi o preto Jamba, carregador daminha mala, a quem tinham tirado aespingarda, o que conseguiram facilmente,porque ele a largou com receio de deixar cair amala, que continha os cronômetros e outrosinstrumentos delicados. Além da arma, eles tinham metido para alibata uma cabra e um carneiro, que me tinhamsido dados pelo Capôco. Intimei-os a que meentregassem o roubo, mas apenas meresponderam com um murmúrio ameaçador.Calculei rapidamente as circunstâncias, e vi-mecom 10 homens, cercado por 200 que meameaçavam furiosos. Esqueci por um momento toda a prudência ebom senso, e quis experimentar o que valiamesses 10 homens, que no futuro teriam de sermeus sócios em perigos maiores, ecaminhando para a porta da libata, armei orevólver e ordenei-lhes que entrassem e metrouxessem o roubo. O meu preto de Benguela,

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Manuel, um moço de que eu nunca fizera caso,sofreu uma transformação súbita, e armando acarabina, de um salto entrou na libata. Foi logoseguido por Augusto, Veríssimo e CatraioGrande. Os outros seguiram, e eu, estudandoos meus homens, esqueci-me de mim, e podiater sido vítima do furor da populaça que mecercava; mas a nossa audácia espantou-os, erecuaram, vendo sair da libata Veríssimo coma cabra, o Augusto com o carneiro, e os outrosde carabina pronta cobrindo-lhes a retirada. Aarma, mais fácil de esconder do que osanimais, não foi encontrada, mesmo em umasegunda busca mais minuciosa do que aprimeira; que o sucesso desta tinha autorizado. Os meus pretos, animados pela indecisão dosgentios, só proferiam palavras de morte, ecustou-me a contê-los para que não fizessemfogo sobre os indígenas. Consegui acalmá-los,e prometi-lhes que em breve teríamossatisfação plena. Eu dizia isto fiado no Capôco,em quem já confiava um pouco. .

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Seguimos, uma hora depois, e à 1:30h passavao rio Poe, afluente do Calae, que tem 5 metrosde largo por 1 de fundo, cujo leito lodoso emole dá difícil passagem. Às 3 horas chegava àlibata do seculo Quimbungo, irmão do soba doHuambo, onde estavam as cargas abandonadase o preto Barros. O Quimbungo recebeu-memuito bem, e disse-me que me dariacarregadores até ao Sambo, e sabendo doocorrido de manhã, pediu-me que não fizessemal ao seculo Chacaquimbamba, que ele mefaria entregar a arma roubada, e dar plenasatisfação do insulto. Pelas 6 horas, chegou alio Capôco, trazendo alguns carregadores dosque tinham fugido, e as fazendas apreendidasaos outros, fazendas dos pagamentos que euhavia feito adiantados. Disse-me, que noseguinte dia me faria entregar a arma roubada,e poria à minha disposição o chefe dapovoação para eu o castigar. Que não receasse eu mais fuga decarregadores, porque ele mesmo, ou o tio, me

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acompanhariam até ao Sambo. Fui deitar-meardendo em febre, e passei uma noite horrível. No dia seguinte reuniram-se maiscarregadores; mas não ainda os suficientes.Capôco tinha partido logo de madrugada paracasa do Chacaquimbamba, e ao meio-diaapareceu-me com a arma roubada e aqueleseculo, a quem perdoei a ofensa da véspera. Odelinquente deu-me mil satisfações, e melhordo que as satisfações, dois magníficoscarneiros. Capôco, esse homem selvagem e feroz, que é oterror do Nano, esse homem que eu conseguidominar completamente e que tantos serviçosme prestou, despede-se de mim e volta à sualibata, recomendando-me instantemente ao tio. De tarde desencadeou-se sobre nós umahorrível tempestade, e à chuva torrencialmisturava-se o raio e o trovão da tormentaperpendicular. Recresceu-me a febre. Durantea noite nova tormenta; mas com chuvamoderada. O seculo Quimbungo, logo demanhã cedo, me veio dizer estarem prontos os

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carregadores; mas exigirem o pagamentoadiantado. Recusei positivamente, porque, além daexperiência adquirida com o mau resultadodos pagamentos adiantados, foi conselho doCapôco, nunca fazer tais pagamentos. Os homens recusaram-se a seguir e foram-se.Quimbungo reúne a gente da sua povoação, eordena-lhe que sigam comigo; eles obedecem,mas são mui poucos e reunidos aos que metrouxe o Capôco, deixam ainda 27 cargas, queeu entrego ao Barros, e que o Quimbungopromete mandar-me amanhã para o Sambo,para onde eu decidi seguir imediatamente. Parti às 10 horas a Leste, e uma hora depois,passei o rio Canhungamua, de 30 metros delargo por 4 a 5 de fundo, que correndo ao Sulvai unir as suas águas às do Cunene. Umaponte de troncos de árvore, de construçãonova, deu-me fácil passagem e à comitiva, quena margem esquerda do rio se recusou a irmais longe naquele dia, sendo-me precisoempregar a maior energia para os fazer seguir

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até as 3 horas, hora a que acampei numaespessa floresta de acácias. O mau tempo continuava sempre, e a febreresistia ao muito irregular tratamento que eulhe podia fazer. Durante a noite uma trovoadahorrível, correndo de S.O. a N.E., passou juntode mim, despedindo raios e chuva torrencial. Levanto campo no dia seguinte às 6 horas, eduas horas depois, passava o Cunene, emponte construída, como todas nesta parte daÁfrica, de troncos grosseiros. O rio tem ali 20metros de largo por 2 de fundo, e corre ao Sul.As margens são levemente acidentadas,cobertas de gramíneas, e pouco arborizadas.Duas fileiras de árvores, mui semelhantes aossalgueiros da Europa, desenham duas linhastortuosas, por entre as quais o rio desliza comveloz corrente em leito de areia branca e fina. Descansei um pouco, depois de ter feito asobservações precisas para determinar aaltitude, e segui ao meio-dia, alcançando, pelas2 horas, a libata do soba Dumbo, no país doSambo.

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Este soveta é vassalo do soba do Sambo, éhomem rico e tem muita gente nas povoaçõesque governa. Recebeu-me muito bem, e quisque me hospedasse na libata, o que aceitei.Prometeu-me carregadores para o dia seguinte,ainda que me disse ter eu chegado em máocasião, por ter muita gente fora em guerra.Paguei e despedi os carregadores doQuimbungo, e fiquei certo de seguir no diaimediato. Pouco antes de mim tinha chegado ao Dumboum seculo rico, que mora na margem doCubango, chamado Cassoma, e vinha visitar osoveta de quem era amigo. Este Cassoma, comquem não simpatizei, veio fazer-me milprotestos de amizade, oferecendo-se para meacompanhar ao Bihé. De tarde mandei aosoveta 3 garafas de aguardente, e fiz lembrar-lhe que me não faltassem os carregadores namanhã seguinte. Ao contrário dos usos dahospitalidade do gentio nestas paragens, osoveta nada me mandou para comer, e eu e os

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meus tivemos fome, porque ninguém nosvendeu farinha. Seriam 8 horas da noite, quando eu, de muitomau humor e estômago vazio, me ia deitar,senti bater à porta e logo entrarem o sovetaDumbo, o tal Cassoma e um seculo chamadoPalanca, amigo e principal conselheiro dosoveta, e cinco das mulheres deste último. Conversamos um pouco sobre a minhaviagem; mas de repente o Cassoma,interrompendo a conversa, disse ao soveta,“Nós não viemos aqui para conversar,queremos aguardente, e diga a esse branco quenô-la dê já.” O soveta animado pela arrogância doCassoma, disse-me, que lhe desse aguardente aeles e às mulheres. Eu respondi-lhe que já lhetinha dado três garrafas, que ele nada me tinhaoferecido, que era esta a primeira hospedagemque eu recebia de um chefe em que me deitavacom fome, e por isso não lhe daria nem maisuma gota de aguardente. O Cassoma meteu-selogo na questão, animando o soveta contra

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mim, e entre nós começou uma controvérsiaque durou mais de uma hora, em que eu fizprova de uma prudência e paciência semlimites. Por fim eles concluiram dizendo-me,que pois eu lha não queria dar por bem, maiam tirar à força. Eu então, perdendo a paciência, empurrei como pé o barril, e armando o revólver, perguntei-lhes qual era o primeiro que bebia. Elesvacilaram um momento, mas o Cassoma disseao soveta: “Tu és rei, vai, bebe primeiro.”Dumbo, tirando o cobertor que o envolvia,entregou-o ao Palanca, dizendo-lhe: “Guarda-o, para que o branco mo não furte,” ecaminhou ao barril. Eu levantei o revólver à altura da cabeça dosoveta e fiz fogo; mas Veríssimo Gonçalves,que estava junto a mim, empurrou-me o braçoe a bala, desviando-se da pontaria, foi cravar-sena parede. Os três negros, transidos de medo, recuaramaté à parede, e as 5 mulheres fizeram umberreiro horrível. Eu ouvi então junto à porta

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uma estrepitosa gargalhada que me chamou aatenção, e divisei na sombra dois homensencostados às carabinas, que riam como riempretos. Eram os meus Augusto e Manuel, quese tinham aproximado, ao ouvirem adiscussão, e que, acompanhados dos outros 8homens, guardavam a porta. O Veríssimo disse então ao soveta e aos seuscompanheiros, que se fossem deitar, e não medissessem mais nada, porque, se eu mezangasse outra vez, ele não lhes poderia salvara vida como há pouco. Eles tomaram o prudente conselho, eretiraram-se, ficando tudo em silêncio. Sem oempurrão que me deu o Veríssimo, eu teriamorto um homem, e na situação em que nosachávamos, estaríamos completamenteperdidos. Foi ele que salvou tudo. Com a excitação que me produziu a cólera,recresceu a febre, e caí sem forças nas peles queestendidas no chão me serviam de leito. Osmeus pretos deitaram-se através da porta, e

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disseram-me, que dormisse descansado, queeles velariam por mim. Havia quatro dias que, por um momento,estive quase perdido em três ocasiõesdiferentes: 1o com o búfalo no Huambo, 2o nalibata do Chacaquimbamba, e 3o ali naquelanoite. Depois de um sono agitado, acordei aosom da tempestade que bramia lá fora. Pensei nos acontecimentos da noite e nãofiquei tranquilo. O que sucederia de manhã?Eu estava só com 10 homens, dentro de umapovoação fortificada, de onde não era fácil sair- e ainda que se me abrissem as portas. Ondeiria eu obter carregadores, agora que me tinhaindisposto com o régulo? Pode bem julgar-seda ansiedade com que esperei o raiar daaurora. Ao alvorecer a febre tinha abrandado umpouco. Apromtei-me para partir, e mandeichamar o soveta, que apareceu logo. Disse-lheque ia seguir, e ali deixava as cargas sob suaresponsabilidade, e que depois as mandariabuscar; mas ele pediu-me que o não fizesse,

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que me ia dar os carregadores; e dando-me milsatisfações do ocorrido na véspera, disse-me,que o culpado fora o Cassoma, que ele já tinhaposto fora de casa, o que era falso, porque euali o vi depois.

Às 10 horas, apresentou-me os carregadoresprecisos. Verdadeiramente não eram sócarregadores, que no grupo divisei 6 raparigas,ainda de manilhas nos artelhos; tal cuidadopôs ele em servir-me, que, para não me

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demorar, mandando ir homens das povoaçõesdistantes, me deu os que na sua tinhadisponíveis, e ainda seis das suas escravas,para completar o número pedido. Agradecimuito e mostrei-me sensível a tal prova decuidado, declarando-lhe logo, que não tinhacomigo presente digno, de oferecer-lhe, e quequerendo dar-lhe uma espingarda lhe pediamandasse um homem da sua confiança recebê-la no Bihé, mostrando-lhe desejos de que essehomem fosse o seculo Palanca seu conselheiroíntimo. Exultei de alegria (que me abstive dedeixar transparecer) ao ver o meu pedidosatisfeito e o Palanca nomeado para meacompanhar. O soveta Dumbo entregava nasminhas mãos um precioso refém, que meresponderia já pela minha segurança, já peladas cargas que deixei dois dias antes entreguesao Barros, a quem preveni e acautelei em cartadeixada ao Dumbo. Deixei a povoação às 11 horas, à frente daestranha comitiva, formada dos meus dezbravos de Benguela, dez salteadores do Sambo,

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e seis virgens escravas do soveta Dumbo. Achuva era torrencial; mas eu, apesar disto,segui sempre, tanto me tardava de ver longe apovoação onde passei tão horrível noite. Quatro horas depois, tendo andado a N.E., fuiacampar junto da povoação de Burundoa,completamente molhado e tiritando de frio efebre. Não aceitei a hospitalidade oferecida pelochefe da povoação, porque, depois do que sepassou na véspera, recordei-me de um bomconselho que me deu Stanley, e protestei nãomais em África pernoitar em casa de gentio.

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Vieram ao meu campo muitas raparigasvender capata, milho, fuba e batatasmagníficas, em nada inferiores às da Europa. Achuva continuava mais moderada, maspersistente, e eu sentia-me muito doente. Juntodo meu campo corria um pequeno riacho, cujaságuas iam a um ribeiro afluente do Cubango,são as águas que este último rio recebe mais deOeste. Durante a noite houve chuva moderada, maisforte das 4 às 5 da manhã, hora em que parou.Há grande abundância de ótimo tabaco nestepaís, onde me venderam muito e baratíssimo.Ali poucos pretos fumam, mas todos cheiramtabaco em pó, que preparam torrando a fogobrando o tabaco de fumo, e reduzindo-o a póno mesmo tubo que lhe serve de caixa, com umpau, espécie de mão-de-almofariz, que a eleanda preso com uma correia fina. Parti as 7h40m a N.E., atravessando umaregião muito cultivada e muito povoada. Às8h30m passei junto da grande povoação deVaneno, e às 10 parei para descansar junto da

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aldeia de Moenacuchimba. Segui às 10 e meiasempre a N.E., às 11 passei junto da povoaçãode Chacapombo, muito populosa, e meia horadepois parei perto de Quiaia, a maisimportante de todas. O chefe desta aldeia veioao caminho cumprimentar-me e oferecer-meum grande porco. Dei-lhe em algodão riscadoo valor do porco, e ele retirou-se satisfeito,mandando em seguida muitas cabaças decapata para a minha gente. Segui no mesmorumo, e duas horas depois fui acampar nomato próximo da povoação do Gongo. Estaúltima parte da marcha daquele dia foitrabalhosa, porque choveu muito, e o ventoS.O. era rijo e frio. Pela tarde chegou um enviado do soba grandedo Sambo, cuja povoação me ficava uns 15quilômetros a N.O., mandando-me pediralguma coisa, e dizendo-me o portador dorecado, que se eu houvera passado à porta dosoba, ele me daria um boi. Agradeci a boaintenção, e resolvi dar-lhe no dia seguintealguma coisa, receando que o enviado, se eu o

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despedisse sem dar nada, influísse noscarregadores a abandonarem-me, o que seriafácil porque já o tinham querido fazer, e foipreciso toda eloquência do Veríssimo para osconvencer a seguirem avante. O seculo Capuço, chefe da povoação próxima,mandou-me cumprimentar por três das suasmulheres (todas feias), e por elas um presentede uma galinha e três cabaças de capata.Mandei-lhe seis côvados de riscado e deialgumas miçangas às mulheres. Junto à noitevieram algumas mulheres vender farinha,milho e mandioca. Usam elas ali os mais extravagantes penteados,e a carapinha é enfeitada com coral branco ereluz da grande profusão de óleo de rícino, queelas prodigalizam na sua toilette. Os homensdo soveta Dumbo eram verdadeiramenteinsobordinados, querelavam-se com a gente deBenguela, e durante a noite só houvetranquilidade na barraca onde dormiam as seisvirgens negras, as minhas gentis carregadoras.

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A noite foi tormentosa de chuva e vento. Aoalvorecer o seculo Capuço, veio agradecer os 6côvados de riscado que lhe dei, e em lugar dastrês mulheres feias que me enviou na véspera,trouxe-me um lindo porco e uma gordagalinha. O enviado do soba veio receber o presente quelhe tinha prometido; e que foi muitoinsignificante, sendo como era em troco daintenção de me dar um boi, se eu passassejunto da libata dele. Segui pelas 8 horas, e às 9passei junto das povoações de Chacahonha,primeiras da raça Ganguela na África de Oeste. Passei o riacho Bomba, cuja margem esquerdasegui por dois quilômetros, quando oscarregadores pousaram as cargas, recusandoseguir avante, e pedindo os seus pagamentospara voltarem. Eu estava a dois quilômetros doCubango, e querendo passar o rio, instei comeles a que andassem mais aquele curto espaço,e que logo que estivesse na outra margem lhesdaria os seus pagamentos e os despediria. .

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Recusaram-se formalmente, dizendo, que eutinha sido muito ofendido na sua libata, pelosoveta Dumbo, e por isso não iam para diante,sendo certo que, logo que eu os tivesse naoutra margem do rio, fora do seu país, mevingaria neles das ofensas recebidas. Forambaldados os meus esforços e tudo foieloquência perdida. Recusei-me a pagar-lhes seeles não passassem o Cubango; responderam-me que se retiravam sem pagamento, e logochamaram as seis raparigas e ordenaram-lhesque os seguissem. Eu estava no desespero; ali perto era apovoação do Cassoma, e vi ser aquilo planocombinado de antemão para me entregarem aele, que me havia precedido no caminho. Ascargas abandonadas naquele ponto eramcargas perdidas. Calcule-se com que olhos euvi partirem os carregadores, abandonando-me. Olhei para as cargas e estremeci de prazer.Sentado em uma delas estava um homem altoe magro, de figura impassível, com a longacarabina atravessada sobre os joelhos. Era o

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seculo Palanca, que eu havia esquecido. Saltarsobre ele e derrubá-lo foi obra de ummomento. Mandei-o amarrar de pés e mãos, edei ordem a Augusto e Manuel que oenforcassem no ramo de uma acácia que seestendia sobre as nossas cabeças. Ao ver que aordem ia ser cumprida, ele, transido de medo,gritou-me, “Não me mates, os carregadoresvão passar o Cubango,” e logo soltou um gritoagudo que fez reunir os carregadores jádispersos. Ordenou-lhes que pegassem nascargas e seguissem, e eles obedeceram. Mandei que lhe desamarrassem os pés, eprometi-lhe um tiro na cabeça à menorexcitação dos carregadores. Meia hora depoispassava o Cubango numa bem construídaponte, e acampava na margem esquerda juntodas povoações de Chindonga. . . . . .

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Entre o rio e o meu campo ficavam umasminas de ferro, de onde o gentio extraiabundante minério. Estava finalmente em terras de Moma, e livredos países do Nano, Huambo e Sambo, de queguardarei eterna memória. O Cubango corre ali a S.S.E., e tem 35 metrosde largo por 2 a 4 de fundo. Fiz observaçõespara determinar a posição e altitude, e logocorri à barraca, que uma trovoada vinda deN.N.E. descarregou sobre nós copiosa chuva. Paguei e despedi os carregadores do Sambo,dando-lhes dois côvados de riscado a cada um,que tal tinha sido o ajuste. Chamei as 6

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raparigas, e disse-lhes, que a elas nada daria,porque as mulheres tinham obrigação detrabalhar e não mereciam paga. Elas retiraram-se tristes; mas achando natural omeu modo de proceder, tão aviltada é amulher naqueles países. Quando já se metiam a caminho para voltaremao Sambo, mandei-as chamar e dei 4 côvadosdo mais brilhante zuarte pintado que possuía acada uma, e algums fios de miçangasdiferentes. É impossível descrever ocontentamento daquelas desgraçadas aoreceberem tão valiosa paga. Os homens roíam-se de inveja, e eu convenci-os de que, se nãotivessem querido voltar para casa na outramargem do Cubango lhes pagaria do mesmomodo. Foi a minha vingança, e ao mesmotempo proveitosa lição. . . . . .

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Nessa noite veio procurar-me um seculo dapovoação de Chindonga, que me trouxe depresente um porco. Este seculo prometeu-mecarregadores para o dia seguinte, a um côvadode riscado por dia, dizendo-me, que eles sóiriam até ao país de Caquingue, onde eufacilmente obteria gente para o Bihé. A minha febre tinha cedido a fortíssimas dosesde quinino; mas completamente molhadohavia três dias, eu sentia já os primeiros

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sintomas do terrível ataque de reumatismo quedepois ia comprometendo a minha viagem. Anoite foi tempestuosa e o dia seguintecontinuou chuvoso. O seculo veio logo de manhã com oscarregadores; mas eu tinha resolvido descansarali um dia, e por isso convoquei-os para o diaseguinte. Disse-me ele, que os meuscompanheiros tinham passado na véspera,vindos do Sul. O seculo Palanca, do Sambo, continuava bemvigiado, mas livre. Eu na véspera tinhamandado dizer ao soveta Dumbo, que a cabeçado seu amigo me respondia pelas cargas quevinham escoltadas pelo preto Barros, resoluçãoque Palanca achou muito justa e natural, porser lei do país. Talvez o meu procedimento,que eu confesso francamente, me sejacensurado, mas eu rogo aos censores, quepensem um pouco na posição de alguém,acompanhado só de dez homens, num país emque tudo lhe é hostil, desde o clima até aohomem. Se eu não professo o princípio de que

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os fins justificam os meios, não sou tambémbastante virtuoso para apresentar uma face àmão que me esbofeteou a outra. Longe dasvistas do mundo civilizado, fora desses doiscírculos de ferro que apertam a humanidadeculta, a que chamam o código penal e asconveniências sociais, círculos que apesar deestreitos deixam ainda bastante amplitude aocrime e à infâmia; o explorador da África,perdido no meio de povos ignaros cujoscódigos diferem essencialmente dos nossos,tendo por única testemunha dos seus atos aDeus, por único censor das suas obras a suaconsciência, precisa ter uma força sublime parase conservar honrado e digno, quando muitasvezes as paixões travam no seu íntimo umaluta infrene. Por mim o digo, que todas asovações que me tem dispensado o mundocivilizado pela felicidade que tive de vencer osobstáculos materiais no meu caminho, seriamtalvez mais justamente aplicadas se sesoubesse quantas lutas, e que terríveis lutas,sustentei para me vencer a mim mesmo.

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Vencer as suas paixões indômitas, vencer osseus hábitos materiais e morais da vidacivilizada, são os dois grandes trabalhos doexplorador. Aquele que o conseguiu, atingirá oseu fim, cumprirá a sua missão. Eu, noprincípio da minha viagem, receei muito demim mesmo. Tive lutas ingentes, lutas terríveis, por seremsurdas e ignoradas, de que saí semprevencedor. O meu gênio indômito teve de cederà vontade inquebrantável, e na falta de tempopara escrever um código, tomei um queacomodei ao meu uso. Os meus princípiosforam os do direito natural; a minha lei curta -mas ótima - resumiu-se nos dez preceitos doDecálogo. Não se julgue que quero fazer jus àcanonização, nem mesmo que pretendo terseguido à risca os preceitos gravados novigésimo capítulo do livro sublime do Êxodo,decerto o mais belo do Pentateuco; mas fiz oque pude para não me afastar muito deles, e fizbem. Esta divagação fica aqui, não como

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narrativa de águas passadas, mas comoconselho a exploradores futuros, que não sejammissionários, que a esses Deus me defenda defalar em matéria da sua competência. (Éverdade que eu encontrei alguns missionáriosem África que me fizeram lembrar o velhorifão, “em casa de ferreiro, espeto de pau”).Passemos adiante. Durante o dia, vieram muitas pretas venderalimentos, e entre outras coisas vulgares,trouxeram uma mui extraordinária. Era umagrande cesta cheia de lagartas, muisemelhantes às do acherontia atropos, e damesma grandeza. Este gigantesco lepidópterono seu primeiro estado vive nas gramíneas, e éfácil ali colher grande provisão. Os ganguelassão ávidos de tal manjar, que os meus pretosrecusaram. . . . . .

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No dia seguinte logo de manhã, vieramoferecer-se muitos mais carregadores, querecusei, por me serem inúteis. Parti depois das10 horas, hora a que a chuva abrandou. Nomomento da saída quebrei os meus óculos, queusava desde Lisboa. Andei a N.E., e cincohoras depois, acampava na margem esquerdado rio Cutato das Ganguelas, rio que passei emumas alpondras* sobre uma pequena catarata. * Pedras que atravessam um rio No caminho passei um pequeno ribeiro,chamado Chimbuicoque, afluente do Cutato. Orio corre naquele ponto a Leste, voltando em

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seguida ao N., e depois pelo Leste para o Sul.Este S gigantesco é uma série de rápidos, emque o rio se precipita com fragor enorme, porsobre as rochas de granito que formam o seuleito.

No lugar das alpondras naturais, o rio mede 80metros de largo, e à montante e jusante 27metros com 4 a 5 de fundo. Vai afluir aoCubango, dizem os naturais, que 15 dias decaminho ao sul deste ponto. . . . .

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A margem direita é ocupada pelas plantaçõesda povoação de Moma, que ocupam umespaço que avaliei em mais de mil hectares deterreno. São as maiores que tenho visto emÁfrica. A cultura entre estes povos consisteprincipalmente em milho, feijão e batata, mas oque mais se vê são campos de milho. Antes dechegar às plantações, atravessei uma florestade acácias enormes, de surpreendente beleza.O aspecto das margens do Cutato é muitooriginal. Onde termina o granito do leito do riocomeça um solo de formação termítica, e oterreno coberto de milhares de montículos, unscultivados, outros cobertos de vegetaçãosilvestre, todos ligados, formando como que

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sistemas de montanhas, ferem a vista,admirada ao contemplar um tão estranhosistema orográfico artificial. Marquei a grandepovoação de Moma, três quilômetros a O.S.O.,e depois de ter determinado a altitude do rioali, retirei-me, molhado da incessante chuva, eatacado de novo acesso de febre. As ameaças de reumatismo continuavam.Durante a noite a chuva foi torrencial, e comosempre, dormi molhado, porque, nesta épocado ano, as gramíneas de que cobria a minhabarraca improvisada, não tinham maiscomprimento que 50 centímetros, e com ervatão curta é difícil, senão impossível, vedar aágua em uma barraca. A chuva só abrandou nodia seguinte ao meio-dia, e eu, apesar deabrasado em febre, segui às 2 horas; tinha 144pulsações. Caminhei a pé, por me ser impossível segurar-me montado no boi; mas, depois de uma horade marcha, as pernas recusavam-se acontinuar. Acampei. Os meus pretos e os

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próprios carregadores Ganguelasdispensavam-me os maiores cuidados. O lugar em que acampei foi junto de umaspovoações a que chamam Lamupas, porestarem perto das cachoeiras do rio, que emlíngua do país têm o nome de Mupas. É lugarmuito povoado e muito cultivado, sendo estespovos grandes cultivadores. Encontrei no caminho algumas sepulturas deseculos, que são cobertas de barro, com umaforma semelhando algumas da Europa. Estassepulturas são cobertas por um alpendre decolmo, e são sempre debaixo de uma árvoregrande. Sobre elas vi cacos de pratos e panelas,que ali são depostos pelos parentes do defunto,como nós depomos nos túmulos das pessoasqueridas, as saudades e as perpétuas. De noite a chuva moderou, e o dia seguinteamanheceu nublado mas sem chuva. A febreabrandou muito, mas as dores reumáticascomeçavam a fazer-se sentir atrozmente. Seguiavante, e meia hora depois de ter deixado o

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meu campo, passei junto da grande povoaçãode Cassequera. Logo que passei um pequeno riacho que ficapara além da povoação, deparei com umasclareiras enormes cobertas de gramíneas, queme prenderam a atenção pelo seu enorme ecompleto desenvolvimento, em uma época doano em que as plantas desta família estão emprincípio desse desenvolvimento.

O meu moleque Pepéca foi atacado de tãoviolento e repentino acesso de febre, que caiuinerte. Tive de parar e mandar contratar um

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homem, na povoação de Cassequera, para olevar às costas. Ao meio-dia, passei junto dalibata do Capitão do Quingue, primeirapovoação do país de Caquingue. Fui hospedar-me em casa de João Albino, mestiço deBenguela, filho do antigo sertanejo portuguêsLuiz Albino, morto por um búfalo nos sertõesdo Zambeze. João Albino mora na libata deCamenha, filho do Capitão do Quingue. Camenha estava ausente, por ter ido tomar ocomando das forças do soba de Caquingue,que ia fazer a guerra a uns sovetas doCubango. O tempo melhorou, e a minha febre cessou detodo, mas o reumatismo continuava a ameaçar-me. A noite foi sem chuva, e o dia seguinteamanheceu claro e sem nuvens. Fui visitar o velho capitão do Quingue, a quemlevei de presente uma peça de lenços. Ele deu-me um boi, que mandei logo matar, porque hámuito que tínhamos só carne de porco paracomer. O capitão era muito velho e doente.Conversou muito comigo a respeito do motivo

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da minha viagem, e não comprehendeu o queeu andava fazendo. Quando eu ia a retirar-me, disse-me ele, “Eusei o que tu fazes; tu és seculo de Moeneputo, eele mandou-te ver estas terras e estudar oscaminhos. Por aqui fazem-se muitas coisas quenão são boas, e o Moeneputo há de querer pôrtermo a isso; peço-te, que quando issoaconteça, te lembres de que eu te dei um boi, ete tratei como meu irmão; eu pouco viverei,mas então lembra-te de meus filhos, e não lhesfaças mal.” Comoveram-me estas palavras doancião. Os seus seculos vieram acompanhar-me respeitosamente até à libata do filho ondeestava hospedado, e poucos deixaram, nocorrer do dia, de me trazer pequenos presentes,já galinhas, já ovos e já cana de açúcar. Nalibata do capitão vi uma pequena plantação decana de açúcar, tão viçosa como não vi nolitoral, e em que esta enorme gramínea tinhaum desenvolvimento descomunal. Notei estacircunstância, por ter julgado até então, que a

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uma tão grande altitude, cerca de 1700 metros,não vegetaria tal planta. De volta à libata, encontrei ali FranciscoGonçalves (o Carique), irmão do Veríssimo,que, sabendo da minha chegada, vinha visitar-me. Este Carique, filho do sertanejo Guilherme,como o Veríssimo, é contudo filho de outramãe, e a ele pertence por herança materna otrono de Caquingue. Vive junto do soba, seu tio, e é casado comuma filha do futuro soba do Bihé. Foi educadoem Benguela, e possui alguma instrução ebastante inteligência. Ele trazia consigo algunspretos que foram escravos de seu pai, e quelogo se ofereceram para me acompanharem naviagem do Bihé para Leste. Assim, pois, jáantes de chegar ao Bihé, arranjei algunscarregadores. Carique, Albino, o filho do Capitão, e outrosque fazem comércio sertanejo, saem daqueleponto para o Mucusso e Sulatebele, descendo oCubango até ao Ngami, sempre pela margemdireita, e vão também negociar ao Cuanhama,

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país a leste do Humbe, na margem esquerdado Cunene. O artigo principal do tráfico é o escravo, queem caminho trocam por bois, e estes efazendas, por cera e marfim. Resolvi demorar-me ali um dia, não só para descansar eenxugar, mas também para me informar sobreeste país, cujos usos já diferem muito dos dospovos que tinha encontrado até ali. De tarde, oCarique e João Albino deram-me largasinformações sobre o país, das quais transcrevodo meu diário as mais curiosas. O país de Caquingue limita ao N. com o Bihé, aoeste com o país de Moma, a leste e ao sul compovos confederados de raça Ganguela. A raçaGanguela ocupa nesta parte da África umvasto território, e está dividida em 4 grandesgrupos, os quais sofrem ainda subdivisões. Alíngua e usos são os mesmos; mas a suaorganização política diferente. No país deCaquingue tomam os Ganguelas o nome deGonzellos, estão constituídos em reino, tendoum único chefe. Nas suas outras divisões

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formam confederações, muito vulgares emÁfrica, sendo cada povoação governada porum chefe independente. Os que demoram aS.E. de Caquingue chamam-se Nhembas, os dosul Massacas, e aqueles que vivem a leste doBihé, Bundas. Destes últimos terei de falardetidamente no correr desta narrativa. OsGonzellos, Ganguelas de Caquingue, sãocultivadores e negociantes, e são, de todos ospovos da África Austral, aqueles que mais seaproximam dos Bihenos, em cometimentos deexploração comercial. No país trabalham muito em ferro, e estaindústria estabelece entre eles e outros povosativas relações de comércio. Não têm a menorideia de uma religião qualquer, e vivem com osseus feitiços, não pensando na existência deum Ente Supremo que tudo dirija. . . . . .

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Nos meses mais frios, junho e julho, osferreiros Gonzellos deixam as suas libatas, evão estabelecer grandes acampamentos juntodas minas de ferro, que são abundantes nopaís. Para extração do minério cavam poçoscirculares de três a quatro metros de diâmetro,que não aprofundam mais de dois metros,decerto por lhe escassearem os meios deelevarem com facilidade o minério a maioraltura. . .

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Figura. 14.

Foles - 2. Bocal de barro - 3. Bigorna - 4.Martelo. .

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Visitei muitos desses poços junto ao Cubango.Extraído que é o minério que eles julgamsuficiente para o trabalho daquele ano, começaa separação do ferro, que eles fazem em covaspouco profundas, misturando o minério comcarvão vegetal, e elevando a temperatura pormeio dos seus instrumentos de insuflação, queconsistem em dois cilindros de pau, cavados de10 centímetros, com 30 de diâmetro, erecobertos por duas peles de cabra curtidas, àsquais estão ligados dois paus, de 50centímetros de comprido por 1 de diâmetro. Épor meio destes paus que um rápidomovimento dado às peles produz a corrente dear, que é dirigida sobre o carvão por dois tubosde pau ligados aos cilindros, e terminados porum bocal de barro. Depois começa um incessante trabalhar, noite edia, até que tudo o metal é transformado emenxadas, machados, machadinhas de guerra,ferros de flecha, azagaias, pregos, facas e balaspara as armas, e até mesmo fuzis para elas, deferro temperado com unha de boi e sal. Vi

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muitos desses fuzis darem fogo também comoos do melhor aço fundido. Durante tudo o tempo que duram os trabalhosé expressamente proibido a qualquer mulheraproximar-se do campo dos ferreiros, porquedizem eles que se estraga logo o ferro. Eu creioque isto foi estabelecido para que os homens senão distraiam do trabalho, em que empregam,como já disse, noite e dia.

Figura. 15.—Objetos fabricados pelo gentio entre a

Costa e o Bihé.

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1. Machado de trabalho. 2. Ferro de flecha para a guerra. 3. Flechas. 4. Ferro de flecha para caçar. 5. Pé das flechas. 6. Machado de guerra. 7. Enxada. 8. Azagaias. Findo que é o metal e transformado em obra,voltam os ferreiros a suas casas carregadoscom a sua manufatura, que vendem emseguida depois de terem reservado onecessário para seu uso. Todos estes povos não admitem causasnaturais de doença ou de morte. Sempre queadoece ou morre alguém, ou foram as almas dooutro mundo (uma certa é designada) queproduziu o mal, ou então foi algum vivo quefez feitiço ao doente ou ao morto. Logo quemorre alguém, se os parentes não estão nalocalidade, mandam-nos prevenir, e no entantopenduram o cadáver em um grande pau a 200ou 300 metros da porta da povoação, e

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esperam que eles venham para fazer o enterro.Logo que eles chegam ou se estão nalocalidade, procede-se imediatamente àadivinhação para saber a causa da morte. Para isso amarram o cadáver a uma varacomprida, e pegando dois homens nasextremidades, levam o corpo ao lugardestinado às adivinhações, onde o espera oadivinho e o povo formado em duas alas. O adivinho tomando na mão direita um coralbranco, começa a adivinhação. Depois de fazermil momices e grande grita e de ter feito mexero morto, que o povo acredita que mexeu semintervenção estranha, o adivinho declara quefoi a alma de fulano ou de fulana que o matou,ou então que foi feitiço dado por alguém queele designa. No primeiro caso, o enterro faz-se em paz,abrindo uma cova no mato, em qualquer lugarindistintamente, e lançando nela o cadáver quecobrem de pedras, paus e terra; mas nosegundo caso, a pessoa designada peloadivinho como feiticeiro é agarrada, e, ou paga

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ao mais próximo parente a vida do morto, oulhe cortam ali a cabeça, indo dar parte doocorrido ao soba, a quem tem de levar depresente uma cabra para ele escutar o caso. Contudo pode dar-se o caso de um acusadonegar firmemente a sua culpabilidade namorte, e então tem direito de defesa. Para isso,vai ele buscar um cirurgião que vem, napresença do povo proceder às provas dainocência ou culpabilidade do acusado. O cirurgião chega à presença dos parentes e dopovo, e compõe uma bebida venenosa de quetomam quantidades iguais o acusado e o maispróximo parente do morto. A beberagem produz uma espécie de loucuratemporária, e é naquele dos dois em que ela semanifesta com mais intensidade que recai aculpa da morte. Se é no acusado, ou paga avida do defunto, ou morre; se é no parente,tem este de indenizar o acusado pela acusaçãofeita, dando-lhe logo um porco para lhe pagaro trabalho de ir buscar um cirurgião, e depoistem de lhe dar o que o acusado exigir, sejam

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dois bois, dois escravos, um fardo de fazenda,etc. etc. Antes de continuar, devo fazer sentir umagrande diferença que existe de três entidadesimportantes, nos povos da África Austral, eque muitas vezes são confundidas. São elas o cirurgião, o adivinho e o feiticeiro.Efetivamente, estas três entidades que parecemà primeira vista ter pontos de contato, nenhumtem na realidade. O cirurgião fica definido pela palavra. É umcurandeiro, tem conhecimento de um certonúmero de plantas e raízes, que empegasempre empiricamente, bem como as ventosassarjadas*, de que faz grande uso, sendo bemcerto que a ciência de curar está muito ematraso naqueles países. O cirurgião, que nuncafaz diagnóstico da moléstia, faz sempre oprognóstico. * Provocam o sangramento, através de escarificação. A dosagem das plantas medicamentosas ésempre empírica, e nas suas polifarmáciasentram os mais absurdos e inúteis

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componentes. É verdade que entre nós aindanão vai longe o uso da triaga*. * Remédio caseiro de composição duvidosa. O cirurgião, que é ao mesmo tempofarmacêutico, emprega durante a preparaçãodas suas drogas, um certo número decerimônias e de palavras sem as quais elasperderiam a virtude. Fazem grande segredodas plantas que empregam, e dão-se ares desábios pedantes quando a esse respeito sãointerrogados. O cirurgião é pessoa muitoimportante, e muitos atos solenes requerem asua presença. Ele decide altas questões, porquea sua opinião prevalece à do adivinho(ditangja), sendo que o cirurgião nunca a emitesem fazer antes um certo número de remédiose cerimônias, já com plantas, já com sangue dohomem ou dos irracionais, a que chamam“fazer os curativos”. O adivinho só adivinha, e mais nada. No casode doença, o adivinho é sempre chamado paraadivinhar se são almas do outro mundo ou

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feitiços, e só depois dele, vem o cirurgião. Estesdois sujeitos entendem-se sempre. O adivinho não é só consultado em caso dedoença ou morte, é ouvido em tudo e por tudo,e nada se faz sem que ele adivinhe primeiro.Para a consulta, coloca-se ele no centro de umcírculo formado pelo povo, que deve estarsentado. Arma-se de uma cabaça e um cesto. Acabaça contém miçanga grossa e milho seco, ocesto é cheio das coisas mais disparatadas,ossos humanos, legumes secos, pedras, paus,caroços de frutas, ossos de aves, espinhas depeixes, etc. Começa por sacudir freneticamente a cabaça, edurante a chocalhada que faz invoca osespíritos malignos, ao mesmo tempo sacode ocesto, e nos objetos que vão aparecendo naparte superior, vai lendo o que se quer saberdo passado, do presente, ou do futuro. Este usoencontrei eu desde a costa, mas não tãoseguido como aqui. Falei em espíritos malignos - e é preciso dizerque ali os espíritos malignos emparelham em

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malignidade com as almas do outro mundo(cassumbi) e com os feiticeiros. Às vezesentram no corpo de alguém, e custa muitofazê-los sair. Outras vezes, fazem tropeliasmaiores, tomando conta de uma povoação,onde durante a noite não deixam sossegarninguém, sendo preciso que o cirurgião façagrandes curativos para os expulsar. Estava ali um adivinho, e eu calculei o partidoque podia tirar dele. Chamei-o em particular, efiz-lhe alguns presentes, mostrando por elegrande respeito, e fingindo acreditar na suaciência. Pedi-lhe para adivinhar o meu futuro, e elelogo convocou o povo da libata, e muito dapovoação do capitão, para assistirem àadivinhação. A cerimônia fez-se com grandeaparato, e ele começou a ler nas trapalhadas docesto as coisas mais lisongeiras a meu respeito.Eu era o melhor dos brancos, passados,presentes e futuros; a minha viagem seria feitacom grande felicidade, e felizes seriam aquelesque fossem comigo. Este vaticínio produziu o

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melhor efeito, e teve grande influência noresultado da minha partida do Bihé. Já falei do cirurgião e do adivinho, e vou dizero que é feiticeiro. Esta palavra tem umasignificação que, tendo alguns pontos decontato com a que lhe damos na Europa, não écontudo a mesma coisa. Ali qualquer um é, ou pode ser feiticeiro, efeiticeiro é mais o envenenador do que homemque governa os espíritos. Efetivamente, ofeitiço ali é veneno, e dar feitiço a alguém, édar veneno, que determine, ou doença, oumorte, ou loucura. Esta é a rigorosa acepção da palavra, masainda assim o feiticeiro pode causar grandesprejuízos, e como tudo se atribui a feitiço, aperda de um combate, a epidemia nos gados,as tempestades, etc., tudo provém da suamalevolência. Não se julgue porém que sepode designar o feiticeiro; não pode. Ofeiticeiro aparece como causa do efeito, e comoessa causa é logo destruída; o feiticeiro é comoum meteoro que se desvanece logo depois de

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aparecer. Esta prática dá lugar a terríveisvinganças, como bem se pode supor. Além destas três entidades, duas das quais sãodefinidas e uma indefinida, há ainda umsujeito que tem certa importância entre estespovos bárbaros. É ele o homem que dá e tira achuva. Há um certo número de indivíduos quese atribuem o poder de governar nos meteorosaquosos. Possuindo um espírito observador,atentaram em que com tais ventos em certaépoca do ano chove, e que com outros estia. Eservindo-se desses sinais, que são tãovulgarmente observados na Europa, e mesmorecomendados por homens de ciência, comoFitz-Roy e outros, que se observam na vida dosanimais, sobretudo das aves, eles que podemcom certa probabilidade fazer um prognósticodo tempo, atribuem a si o poder, de dar e tirarchuva, tendo previamente anunciado que a vãodar ou tirar. Estes sujeitos são embusteiros,mas acreditam neles muito, porque raras vezesse enganam. .

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Estas práticas que nos causam estranheza,eram há dois séculos vulgares na Europa, eainda hoje existem entre nós no baixo povo doscampos. Não é preciso ir à Idade Média para seencontrarem os reis consultando os seusastrólogos, e mesmo em Portugal existe umlivro, impresso, com todas as licençasnecessárias, em 1712, que o seu autor GasparCardozo de Sequeira, matemático da vila deMurça, intitulou “Thesouro de Prudentes”,livro acrescentado pelo engenheiro GonçaloGomes Caldeira, que ensina as coisas maisestupendas e maravilhosas, aos homens cultosdessas eras, porque o povo de então não sabialer. Desculpemos pois os ignaros pretos daÁfrica Austral. Uma lei engraçada daquele país, é a respeitodas mulheres que morrem de parto. Logo queuma mulher morre de parto, o marido temobrigação de a enterrar ele só, levando ocadáver às costas até a sepultura, e fazendosozinho o trabalho da inumação. Em seguida,

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tem de pagar a vida dela aos parentes, e se nãotem com que, constitue-se escravo deles. As sepulturas dos comuns não têm sinal algumque as indique, e são feitas em qualquer lugarindistintamente entre o mato. Quando eu falardo Bihé, serei mais minucioso em certoscostumes que são comuns a estes países, e quetive depois ocasião de estudar detidamente,sobretudo aqueles que se referem aos sobas eaos grandes. Um costume que é privativo de Caquingue é oque eles chamam tratar as mulheres. Logo queuma mulher está grávida, um sujeito pede aomarido em casamento a filha que ela vai ter, edesde logo é obrigado a tratá-la, isto é, dar-lhevestuário e satisfazer as suas exigências detoilette. Este costume vigora só entre gente rica. Logoque nasce a criança, o noivo redobra depresentes à mãe, e tem o dever de vestir a filhaaté à pubredade, isto é, à época do casamento.Se acontece nascer um varão, a obrigação devestir mãe e filho subsiste, e este, logo que

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chega a ser homem, fica para o quissongo doque o tratou. Mais adiante direi o que é umquissongo. Este costume não é tão extraordinário comoparece à primeira vista, e se em África só oencontrei no país de Caquingue, cá na Europaé ele vulgar, não na forma, mas na essência, ena frase polida dos salões chama-se a isso,creio eu, casamentos de conveniência. Amanheceu o dia 5 de março, depois de umanoite tormentosa em que a chuva foi diluvial.Eu estava melhor da febre; mas as doresreumáticas eram mais persistentes eestendiam-se dos joelhos aos artelhos. O meuPepéca estava melhor, e por isso resolvi partir.Receando porém do meu reumatismo, fuipedindo uma maca e carregadores para ela,que me foram obsequiosamente cedidos porFrancisco Gonçalves (o Carique). Depois decordiais despedidas, parti às 10 e meia ao N., euma hora depois, passei o ribeiro Cassongue,que corre a S.E. para o Cuchi. Tem 6 metros delargo por 2 de fundo. Ao passar o rio, o meu

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boi cavalo (Bonito) embaraçou-se em umassarças, perdeu o ânimo, e foi ao fundo; custoumuito salvá-lo, e só pude seguir ao meio-dia. À1h15m passei o riacho Govera, de 3 metros delargo por 50 centímetros de fundo, e à 1 e 45acampava a S.S.O. da povoação de Chindua.Passei no caminho junto de duas grandespovoações, a de Cacurura, e a de Cachota. Jáestava em terras que prestam obediência aosoba do Bihé. O país continua ali a ser muitopovoado e cultivado. Durante a noite, chuva torrencial e fortetrovoada de leste. A minha febre tinhadesaparecido completamente, mas as doresreumáticas recresciam numa progressãoassustadora e já ameaçavam estender-se a tudoo corpo. Logo de madrugada, o dono da pontesobre o Cuchi mandou-me avisar para passar aponte sem demora, porque estas pontes, dandopassagem só a um homem de cada vez, levaela muito tempo, e é lei que, quando umacomitiva toma conta da ponte, ninguém alipode passar sem terminar a passagem da gente

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que primeiro chegou E constava que umagrande comitiva de gentio se dirigia para aliem sentido inverso ao meu. Agradeci o aviso, e parti imediatamente,tomando conta da ponte meia hora depois. Orio Cuchi tem ali 25 metros de largo por 5 defundo, e corre ao sul ao Cubango. Da ponteavista-se, 2 quilômetros ao N., a grandecatarata do Cuchi, de surpreendente beleza,cujo ruído chega até nós. Demorei-me um pouco para determinar aaltitude, e segui depois a E.N.E., passei opequeno ribeiro Liapera, que corre ao Cuchi, emudando de rumo para N.N.E., passei oribeiro Caruci, que corre a N.E. para oCuqueima; indo acampar, pelo meio-dia, nasmatas do Charo, a S.O. da povoação deUngundo. Estes dois pequenos riachos, o Liapera e oCaruci, marcam a separação das águas para oCubango e Cuanza. O seculo Chaquimbaia, chefe da povoação deUngundo, veio cumprimentar-me, e trouxe-me

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um porco e umas galinhas; retribuí o presente,e ele deu-me guias para me acompanharem nodia seguinte. Durante o dia, não só emcaminho encontrei muitos grupos de gentearmada que vão reunir-se às forças do soba deCaquingue, mas ainda depois que acampei,passaram inúmeros pretos armados quelevavam o mesmo destino. Das 7 às 9 da noite houve moderada chuva, eouvia-se a N.E. uma trovada longínqua; mas,às 9 horas, formaram-se trovoadas em muitospontos do horizonte, e pareciam todasconvergir sobre o meu campo, que era situadoem um alto. Às 10 horas, 5 trovoadasencontravam-se em choque imenso sobre ocampo, e a mais horrível tormenta que atéentão tinha presenciado se desencadeou sobremim. Os raios sucediam-se com intervalos detrês a cinco segundos, e o estalar seco dostrovões era incessante. Havia perfeita calma eapenas algumas grossas gotas de chuva caíamaqui e além. .

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O barômetro apenas desceu dois milímetros, eo termômetro conservava uma temperatura de16 graus centígrados. As agulhas magnéticasdesnorteavam, e conservavam um oscillarconstante. Uma bússola circular Duchemim, chegou avoltear rapidamente. Durou este estado de coisas até às 11 horas,hora a que sofreu modificação mais terrívelainda. Um vento fortíssimo, um verdadeirotufão, começou a soprar de leste, e nummomento correu os quadrantes pelo norte atéS.O., onde se fixou com a mesma intensidade.Copiosa chuva começou a cair então. O vento,no seu passar furioso, soprou aos ares asbarracas do meu campo, e nós ficamosexpostos à chuva torrencial que caiu até às 4horas, quando a tempestade começou aabrandar. Quem o não presenciou não avalia o que sejauma tempestade, de noite, no meio dasflorestas da África Austral, quando aorebombar dos trovões se une o grito

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multíssono das feras, que nos vem ferir osouvidos com acordes terríveis. A chuva apagou os fogos do campo, o ventosoprou longe os frágeis abrigos, e o raiodescendo em luminoso ziguezague, torna maisescuras as trevas, depois do seu rápido fulgor.Muitas vezes, ao estalido do raio sucede outroestalar medonho. Foi a árvore, que levouséculos a crescer, e que num momento, feridapor ele, voou em rachas e baqueou no solo. Oespetáculo é horrível, mas grandioso esublime! Amanheceu finalmente, e de todo aquelepelejar dos elementos, só restavam para olembrar, inúmeras árvores derrubadas e umterreno encharcadíssimo. A mim restava mais alguma coisa! O ataque dereumatismo tinha-se declarado com grandeintensidade, e estendendo-se a todas asarticulações, tolhia-me os movimentos. Sofriamuito. Parti ao meio-dia na maca, e faziaesforços enormes para calar na garganta os

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gritos arrancados pelo sofrimento que infligia omovimento da maca. Uma hora depois, envolvi-me em um pântanoextenso, onde a água dava pela cintura aoshomens que me carregavam. O terreno,encharcado pela chuva da noite, estavatransformado em pântano enorme.Alcançamos um outeiro, quando, às 2 horas,nova tempestade, vinda de leste, caiu sobrenós. Da maca, onde gemia dores atrozes,animei a minha gente a seguir sempre, comintenção de alcançar as povoações de Bilanga,onde queria pernoitar. Sei que, no dia seguinte, me achei numa cubatae me disse o Veríssimo estar eu naquelaspovoações, na libata do Vicente; mas não tenhoa menor ideia, nem do caminho andado, nemda noite velada, que me disseram os pretos tersido horrível. Ao reumatismo viera juntar-se afebre e o delírio. A cabeça estava livre, mas o ataque e as doresrecresceram, se era possível isso. Não podiafazer o menor movimento nem mesmo com as

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falanges das mãos. Veríssimo e os meus pretosdispensavam-me os maiores cuidados. Soube que o rio Cuqueima levava uma cheiaenorme e não dava passagem no vau; mas,sabendo que existia uma pequena canoa àjusante da catarata, resolvi seguir e passar o rioali. Chegados ao rio, tratou-se de calafetar commusgo a canoa já muito velha, e que apenaspodia suportar o peso de dois homens. O rio,que trazia uma enorme cheia, iacaudalosíssimo. Ressaltando por sobre asrochas da catarata, divide-se, formando umapequena ilha, e logo depois, une as suas águasem um só canal, largo de 100 metros. Era alique íamos passar. Eu fui colocado dentro dacanoa com mil cuidados, porque o menormovimento que me davam, me arrancava umgrito doloroso. Um hábil barqueiro tomou o remo e a canoadeixou a margem. Tínhamos de atravessar 100metros de água, mas de água animada deviolenta corrente, e encrespada por ondasfuriosas produzidas pelos baldões da catarata.

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O barqueiro dirigiu a canoa para a ilha, e atéchegar à junção das águas tudo foi bem; masali o frágil barco preso nos enormesrodemoinhos não quis seguir avante, apesar daperícia do hábil negro. Eu via a água, em ondasespumantes saída do salto de há pouco,referver em volta de mim, e comecei acompreender o grande perigo em que estava. Tentei mover um braço e apenas conseguisoltar um grito de dor! Julguei-me perdido,porque, se a canoa afundasse, eu não poderianadar. Sempre presa no rodopiar das águas,não seguia avante - e de repente começou arodopiar ela mesma. O preto receou que nósafundásse-mos, e decidiu saltar ao rio paraalijar o barco. Preveniu-me, e saltou. Aliviada daquele peso, a canoa flutuou melhor,mas não deixou o lugar em que estava presapelas forças desencontradas da água. Derepente um baldão entrou na barca e molhou-me. Tive um momento de verdadeiraimbecilidade, e não sei o que se passou; só melembro que de repente me achei nadando com

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tudo o vigor, só com um braço, sustentandofora da água com o outro um dos cronômetrosque trazia comigo, para que não lhe chegasse aágua. Sentia um verdadeiro prazer em nadar, ecortava rápido os remoinhos das caudalosaságuas, o que me era fácil a mim, que desdecriança aprendi a lutar com os rápidos do meupátrio Douro. Os pretos, sempre tendentes a admirar adestreza física, prodigalizavam-me da margemfervorosos aplausos. Tinham desaparecido asdores, a febre cessou de repente, e eu sentia-mebem disposto e forte. Ao submergir-se a canoa,do meio de 100 homens que assistiam à cena, eque ficaram boquiabertos e indecisos, umarrojou-se valorosamente à água para mesalvar. Menos perito nadador do que eu, não alcançoua margem senão depois de mim, e de nenhumauxílio me foi, mas a sua dedicação ficougravada no meu coração para sempre. Era omeu preto Garanganja, que enlouqueceu

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depois, não tendo uma alma assaz forte parasuportar as misérias que experimentamos. Quando me firmei em terra andei, sem dores,sem febre. Despi-me imediatamente, mas nãotinha roupa para mudar porque as bagagensestavam ainda na outra margem e tive de estarexposto a um sol abrasador enquanto a eleenxuguei a roupa que trazia. Voltaram as dorese a febre, e só sei que no outro dia estavaestendido em um leito na libata daAnnunciada, morada que tinha sido dosertanejo Guilherme Gonçalves, pai doVeríssimo. Cheio de dores e ardendo em febre, mas umpouco melhor, decidi partir e ir encontrar osmeus companheiros. Parti às 11 horas, edurante uma grande parte do caminhoatravessei uma planície coberta de fetosherbáceos enormes, e vi muitas árvores feridasdo raio. Vi também uma planta que ali abunda- e que é, ou a nossa urze das altas montanhasdo norte de Portugal, ou a ela mui semelhante. .

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Os meus olhos, pouco afeitos às sutilezas dasobservações que demanda o estudo do reinovegetal, não são bastante penetrantes paradiferenciar espécies, gêneros e famílias -quando elas não se diferenciam por si mesmas. Cheguei ao lugar do Silva Porto (Belmonte)pela uma hora, e fazendo um supremo esforço,fui a casa dos meus companheiros. Eles,confirmando o que me tinham escrito,disseram-me que iam continuar sós, e que medeixariam uma terça parte de fazendas ematerial, salvo as coisas indivisíveis queguardariam. O Ivens ofereceu-se para meacompanhar a Benguela, visto o meu precárioestado de saúde, se eu quisesse voltar àEuropa. Manifesto-lhe aqui a minha gratidão,por tão generosa oferta. . . . . . .

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Capítulo VI Pereira de Mello e Silva Porto No Bihé—Doença—Melhoras—A casa deBelmonte—Decido ir ao alto Zambeze—Cartas aoGoverno—Como se organiza uma expedição noBihé—Dificuldades, e como se vencem—Notíciasobre o Bihé—Os meus trabalhos—Novasdificuldades—Deixo Belmonte—Até ao Cuanza—Escravatura. Depois de 20 dias de cruel agonia e grandessofrimentos, estava enfim no Bihé, muitodoente é verdade, mas cheio de fé e contentede mim mesmo. Logo que falei aos meuscompanheiros, deixei a casa de Belmonte, e fuiem maca para a libata próxima do Magalhães,onde caí sem forças sobre as peles do meuleito. Os primeiros sintomas de uma meningitedeclararam-se, ao passo que redrobravam asdores reumáticas. No dia seguinte, foram ver-me o Capello e Ivens, que me levarammedicamentos. Piorei, e veio o delírio. Quando despertei, julguei sonhar. Achava-medeitado em magnífico leito, despido e entre

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lençóis de fina bertanha. O leito era coberto deelegante cortinado de repes cor-de-rosa efranjado de branco. Disseram-me que Capello viera durante o meudelírio e me mandara aquela cama - que ashavia assim no Bihé, em Belmonte, em casa deSilva Porto. Tinham-me coberto de sanguessugas, e omuito sangue que me tiraram os pretos,deixara-me em um estado de fraquezaindescritível. As dores tinham cedido umpouco, mas continuava a febre. De tarde,vieram os pretos de Novo Redondo procurar-me e eu recebi-os diante de Magalhães,Veríssimo e Joaquim Guilherme JoséGonçalves, irmão mais velho do Veríssimo.Vinham eles dizer-me, que não queriam seguircom os meus companheiros, e que ou iamcomigo, ou voltavam. Depois de um grande trabalho, convenci-os avoltarem para eles, e a acompanhá-los. Soubeentão que Capello e Ivens estavam construindoum abarracamento a 5 quilômetros dali, e já lá

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tinham as bagagens, devendo em brevemudarem-se de Belmonte. Dois dias depois,veio procurar-me o Ivens, com quem tive largaconversa. Dei-lhe todas as cartas de recomendação queSilva Porto me havia dado em Benguela paraobter carregadores e comprometi-me a nãopedir gente ao soba Quilemo, ficando-lhe ocampo completamente livre a eles. Ivens disse-me que iam mudar para o abarracamento quetinham e que em casa de Silva Porto medeixavam o que me pertencia na partilha. Eumandara-lhes entregar todas as cargas quetrouxera comigo e as que acompanhou o pretoBarros, que já tinham chegado. O preto Barrosdeclarou-me que não queria continuar aviagem e por isso despediu-se, bem como aalguns pretos de Benguela que manifestaramigual intenção. Escrevi poucas linhas a Pereirade Mello, que o meu estado de saúde não mepermitia ser extenso. Quando, fatigado dedeterminar tanta coisa, eu ia embrulhar-me noslençóis e procurar no sono um pouco de

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descanso, surgiu diante de mim, como umespectro, um homem alto e magro, defisionomia enérgica e distinta. Era o meuprisioneiro que eu havia olvidado, era o seculoPalanca, o conselheiro íntimo do soba Dumbodo Sambo. “Já despachaste toda a tua gente, me disse ele;uns despediste-os, outros ficaste com eles. Oque determinas de mim, e qual é a minhasorte?” “Tu vais voltar a tua casa, lhe respondi, levarásao Dumbo a espingarda que lhe prometi, ealguma pólvora, e para ti terei alguma coisatambém. Devo-te uma indenização por aquelacorda que tiveste ao pescoço próximo doCubango e pelos sulcos que te fizeram nospulsos as cordas com que te amarrei.” Chameio Veríssimo, e dei-lhe as minhas ordens nessesentido. Palanca, sempre impassível diante daliberdade e dos presentes, como o tinha sidodiante da prisão e da morte, retirou-se, edeixou logo o Bihé. .

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Dois homens seguiram-se no meu quarto àsaída do seculo do Sambo. Estava escrito queeu não descançasse no primeiro dia das minhasmelhoras. Estes dois pretos eram Caínga eJamba, os dois homens de confiança de SilvaPorto, que ele me mandava de Benguela. Depois de lhes ouvir mil protestos dededicação, muitas vezes repetidos, conseguificar só. Só, não! Junto de mim estava a única, agrande dedicação que tive na minha viagematravés da África. Cora, a minha cabrinha, empé, com as patas pousadas sobre o leito,berrando e lambendo-me as mãos, pedia-meuma carícia, que eu não lhe fazia há muito. No dia seguinte, os meus companheirosavisaram-me de que deixavam a casa de SilvaPorto, e eu em uma maca mudei para ali.Encontrei 7 cargas de fazenda, 6 caixas derancho, uma mala com instrumentos e trêscarabinas Snider que eles me haviam deixado. A libata de Silva Porto, ou povoação deBelmonte, está situada sobre a parte mais altade um outeiro, cuja vertente norte desce

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suavemente até ao leito do rio Cuito, que correa leste para o Cuqueima. A posição da libata émuito bonita e forte como ponto estratégico.

Tem dentro um laranjal, onde as laranjeirasestão sempre em fruto e flor, o que nãoacontece a outras algumas no Bihé. O laranjal écercado de uma sebe de roseiras, que atingemuma altura de três metros, e estão semprefloridas. . . . .

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Sicômoros enormes assombram as ruas erodeiam a povoação, defendida por uma fortepaliçada de madeira. Debaixo dessaslaranjeiras, cuja sombra perfumada meabrigava do sol ardente, quantos dias equantas horas passei cismando na minhaposição, e elaborando projetos mais ou menossensatos! Foi ali, que, arrastando ainda os membrostolhidos de dores, que, queimado da febre,concebi, e organizei na minha mente o planoque havia realizar depois. Se de alguma coisame orgulho na minha viagem, é desse tempo.

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Mais tarde joguei muitas vezes a vida, fuidecerto mais de uma vez temerário, mas eraobrigado a isso para me salvar. Ali não! Estavadoente, quase anêmico, e sem recursos. Umafacilidade relativa me abria o caminho deBenguela e da Europa. Mil dificuldades, queprovinham da minha separação dos meuscompanheiros, apresentavam-me uma barreiraquase impossível de transpor, paraempreender uma exploração qualquer. Odesânimo reinava na minha pouca gente.

Figura. 18.—Planta da povoação de Belmonte, no

Bihé.

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Sycomoros. Forte paliçada de pau. Paliçada dahorta coberta de roseiras sempre floridas.Romeiras. Laranjeiras. Hortas. Cemitério.Casas dos pretos. 1. Entrada da povoação. 2. Entrada da casa de Silva Porto 3. Casa. 4. Pátio interior. 5. Cozinha e dispensa. 6. Casas de criados. 7. Armazém. Entrevado e sem forças, não pensar um sómomento em voltar face ao desconhecido quese erguia ante mim como um abismo atraente;desfazer uma a uma as dificuldades quesurgiriam; reconstruir muitas vezes o trabalhofeito, que se esvaía como cai um castelo decartas; criar recursos onde os não havia;conseguir organizar uma expedição sobre asruínas de outras que se haviam desmembrado;é, aos meus olhos, a parte mais difícil da minhaviagem, e de que mais me orgulho, se é que meorgulho de alguma coisa.

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Comecei por contratar Veríssimo Gonçalvespara me acompanhar, e consegui fazer-meobedecer por ele cegamente. Depois de muitoestudar o caminho a seguir, resolvi ir direito aoalto Zambeze, seguindo a cumeada do paísonde nascem os rios daquela parte da África.Chegado ao Zambeze, queria seguir a leste,estudar os afluentes da margem esquerda, edescendo ao Zumbo, ir dali a Quilimane porTete e Senna. Os mais práticos sertanejos, sabedores do meuprojeto, diziam-me, que eu não chegava a meiocaminho do Zambeze, e creio que me tinhampor tolo. Eu deixava-os falar e prosseguisempre na organização do pessoal e confecçãodo material necessário aos meus planos. No dia 27 de março, primeiro em que pudeescrever livremente, escrevi ao Governo daMetrópole, e ao Pereira de Mello, e Silva Porto.Dava-lhes parte do ocorrido até então, e pedia-lhes auxílio e conselho, submetendo à suacrítica os meus projetos. Despachei portadores

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para Benguela com as cartas, e fui trabalhando,mais confiado em mim do que em outrem. A esse tempo, uma grande parte das cargasdeixadas em Benguela, em novembro, havia 5meses, ainda não tinham chegado!Apareceram-me na libata o ex-chefe deCaconda, Alferes Castro, e o degredadoDomingos, que iam para Caconda. Contaram-me que, chegados ao Bihé, tinham sidoencarregados por Capello e Ivens de irconstruir o abarracamento e de fazertransportar para ali as cargas que estavam emBelmonte. O Alferes Castro voltava sem nenhumconforto, e eu, das 6 caixas de rancho que metinha deixado o Ivens, dei-lhe o açúcar, chá,café, etc., necessário para a viagem. Creio que aquele senhor, depois de ter sido acausa de tanto sofrimento que tive, de tantosriscos que corri, não terá motivo de queixar-sedo modo por que o recebi no Bihé; se quiser serjusto e verdadeiro. Quanto ao degredadoDomingos, se bem me recordo, dei-lhe uma

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carta de recomendação para o Governador deBenguela, de quem ia solicitar um favor. Foi assim que tratei os dois homens que maisme fizeram sofrer em África, porque quandoderam causa a isso, eu ainda não estavahabituado ao sofrimento. No princípio de abril, eu já bastante melhor,tinha prontos 60 carregadores, e esperavaapenas a chegada das cargas de Benguela, parareceber mais alguma fazenda e partir. A minha vida era um trabalhar incessante, e aomesmo tempo compilava um livro delembranças, para ter à mão as fórmulas que meeram necessárias para os meus cálculos; faziaumas tábuas de raízes quadradas e raízescúbicas, que calculei para os números de 1 a1000. Deduzia com trabalho imenso algumasfórmulas trigonométricas, porque na Europa,para tornar mais portáteis as minhas tábuaslugarítmicas, as tinha feito encadernar -suprimindo a parte explicativa e, por umengano deplorável, numa remessa de objetosque de Luanda fiz para Portugal, foram

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incluídos os meus livros matemáticos. Não seriam os sábios da singeleza com que lhes narroas dificuldades com que lutei no Bihé parapoder ter escritas num livreto algumasfórmulas vulgares. Quem não é explicador dematemática vê-se muitas vezes embaraçadopara resolver uma questão mui simples,quando lhe falte um livro que lhe avive amemória priguiçosa. No Bihé faltavam-metodos os livros, e por isso eu fazia um, parameu uso, e, se riam ou não, declaro-lhes quenão me foi fácil. Toda a minha bibliotecaconsistia em três almanaques para 1878, 1879, e1880, as tábuas de logarítmos, como já disse,sem texto, tábuas somente. O Eurico deHerculano, as poesias de Casimiro de Abreu eum livrinho de Flamarion, “As MaravilhasCelestes”. Em tudo isto não tinha muito onderefazer a memória para as questões de x e y. Depois havia ainda outra dificuldade. Eu tinhade fazer e de pensar em muitas coisas aomesmo tempo, e coisas um poucoincompatíveis entre si. Às vezes tinha

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conseguido quase reconstruir uma dasfórmulas de Neper para resolver triângulosesféricos, quando entrava o moleque e meexigia que dizesse se a galinha para o jantardevia ser cozida ou assada (durante a minhaestada no Bihé, comi cento e sessenta e novegalinhas). Logo, entrava outro pedindo sabãopara lavar a roupa; depois, eram carregadoresque me vinham falar; em seguida, enviados dosoba, que me queriam extorquir mais algumasjardas de fazenda. Um inferno, um verdadeiroinferno. Eu tinha feito e fazia um grande número deobservações meteorológicas. Os meuscronômetros estavam perfeitamente reguladose a minha posição determinada. Algumasexcursões que fiz no país com a bússola namão permitiram-me fazer uma carta, decertogrosseira, mas tão aproximada quanto se podeexigir de um trabalho destes em viagem deexploração. Apesar dos meus trabalhos, outalvez por causa deles, eu estava satisfeito, e

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mal pensava nas tribulações porque tinha depassar ainda nas terras do Bihé. Antes porém de continuar a narrativa dasminhas aventuras, abro um parêntese parafalar um pouco deste país, tão importante erico quanto pouco conhecido entre nós, a queminteressa mais o seu conhecimento do que aninguém. O Bihé limita ao Norte com o sertão doAndulo, a N.O. com o Bailundo, a Oeste com opaís de Moma, a S.O. com os Gonzellos deCaquingue, ao S. e L. com os povos Ganguelaslivres. O rio Cuqueima é quase um limitenatural do Bihé por Oeste, Sul e Leste, mas, narealidade, a autoridade do soba do Bihé aindase exerce para além daquele rio em algunspontos. O país é pequeno, mas muito povoado. Eu avalio grosseiramente a sua área em 2500milhas quadradas, e um cálculo ainda maisgrosseiro fez-me estimar a sua população em95 mil habitantes - o que nos dá apenas 38habitantes por milha quadrada - e ainda queeste número nos pareça mui pequeno, por ser

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menos de um terço do que se dá entre nós, éconsideravel para a África Austral, onde apopulação está muito pouco acumulada. Em tempo, como se verá, pouco distante, estasterras do Bihé eram povoadas de matas densas,onde abundavam elefantes e onde assentavamraras povoações de raça Ganguela. O rio Cuanza, depois da sua confluência com oCuqueima, divide o país do Andulo do país deGamba, que lhe fica a leste. Era soba de Gambaum tal Bomba, que possuía uma filha degrande formosura, chamada Cahanda. Estesoba Bomba vivia na margem esquerda do rioLoando, afluente do Cuanza. A formosa enegra princesa Cahanda, pediu ao pai para irvisitar umas parentas que eram senhoras dapovoação de Ungundo, única de algumaimportância no Bihé de outrora. Estando a filha do soba Bomba nesta povoaçãode Ungundo a visitar as parentas, aconteceuchegar ao país um ousado caçador de elefanteschamado Bihé, filho do soba do Humbe, quecom grande comitiva tinha passado o Cunene e

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estendido as suas excursões venatórias atéàquelas remotas terras. Um dia o selvagemdiscípulo de Santo Huberto teve fome, eestando perto da povoação de Ungundo,dirigiu-se ali a pedir de comer. Foi então queviu a formosa Cahanda, e é preciso dizê-lo, quevê-la e amá-la foi obra de um momento. Estasquestões de amor em África são muitosemelhantes às questões de amor na Europa, epouco depois do encontro dos dois jovens,Cahanda era raptada, e Bihé plantava aestacada da grande povoação que ainda hoje éa capital do país, país a que deu o seu nome,fazendo-se aclamar soba. As dispersas tribosGanguelas foram por ele submetidas, e o paida primeira soberana do Bihé reconciliando-secom a filha, permitiu uma grande imigração doseu povo para ali. Ao casamento do sobasucederam-se muitos outros entre as mulheresdo norte e os caçadores do seu séquito, e esta éa origem do povo Biheno. Assim os Bihenos são Mohumbes, nome quena África Austral de oeste dão aos

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descendentes da raça do Humbe, os quais nãose encontram só no Bihé, mas estão tambémespalhados em outros pontos, sobretudo frenteà costa, entre Mossamedes e Benguela,misturados com os Mundombes, que são averdadeira raça daquele país. Hoje averdadeira raça Mohumbe no Bihé érepresentada pela nobreza e gente rica do país,os descendentes dos caçadores do primeirosoba, e ainda assim, fora da família reinante,está ela misturada com sangue de raças muitodiferentes - porque, sendo o Bihé desde o seucomeço um grande empório de escravatura etendo sido colonizado em grande parte porescravos de raças diversas, o baixo povoprovêm de uma mistura inexplicável, e anobreza mesmo, nas suas bastardiasnumerosas, tem trazido às suas descendênciassangue dos países mais remotos da ÁfricaAustral. Da união de Bihé e da formosa Cahandanasceu um único filho varão, que teve o nomede Jambi, e sucedeu no governo a seu pai. Este

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Jambi teve dois filhos, dos quais o primogênitose chamou Giraul, e o segundo Cangombi.Giraul herdou o poder por morte de seu pai, ereceando de seu irmão, que tinha grandeinfluência no povo, o fez prender secretamentede noite e o vendeu como escravo a um pretoque ia levar uma leva de escravos a Luanda. Cangombi, por acaso, em Luanda foicomprado pelo Governador Geral, de quem foiescravo. Tempos depois, os despotismos e asarbitrariedades de Giraul fizeram-no detestadodo seu povo; houve conspiração e algunsnobres partiram secretamente para Luanda,com muito marfim, para resgatar seu irmão eaclamá-lo, depois de deporem aquele. Ogovernador de Angola de então, vendo opartido que podia tirar desta questão para aCoroa Portuguesa, não só entregou Cangombisem resgate, mas ainda o encheu de presentes elhe deu auxílio contra seu irmão. E por issoCangombi se apresentou no Bihé com grandecomitiva, que veio por Pungo-andongo e subiuo Cuanza, entre a qual se contavam muitos

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portugueses. Declarada a guerra, Giraul foivencido, sendo traído pelos seus e entregou asrédeas do governo a seu irmão mais novo, quelhe deu uma povoação e um pequeno domíniopara viver. Quatro anos depois, Giraul revoltava-se evinha pôr cerco à capital. Novamente vencidoe prisioneiro, foi entregue por seu irmão aosGanguelas de além Cuanza para o comerem.Não que estes Ganguelas sejam positivamentecanibais, mas, de vez em quando, nãodesgostam de comer um bocado de homemassado. Eu não pude saber o nome do governador queprestou mão-forte ao filho segundo do Jambipara lhe dar o poder, mas estou certo que aesse respeito alguma coisa deve existir noMinistério da Marinha e Ultramar, porque umpasso daqueles não podia deixar de sercomunicado ao governo da Metrópole. Cangombi foi grande soba e teve oito filhos,dos quais seis foram sobas do Bihé - o que nãoé para admirar, porque ali herda o poder o

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mais próximo da ascendência. Assim,enquanto existem filhos de um soba os netosnão vão ao poder, e o neto primogênito dofilho primogênito só toma as rédeas dogoverno quando não existe nenhum dos seustios, irmãos mais novos de seu pai. Por esta lei herdou o poder Cahueue, filhomais velho de Cangombi, e por mortessucessivas, seus irmãos Moma, Bandua,Ungulo, Leamula e Caiangula. Os dois filhosde Cangombi que não foram sobas, foramCalali e Ochi, por terem morrido cedo. EsteOchi era imediato ao mais velho Cahueue, edeixou um filho que foi soba por morte de seutio Caiangula, por não ter deixado filhos oirmão mais velho de seu pai. Este soba chamava-se Muquinda, e por suamorte foi o governo a seu primo Gubengui,filho mais velho do soba Moma imediato a seupai. A este Muquinda seguia-se outro irmãochamado Quitungo, que morreu quando ia seraclamado, já dentro da capital. .

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De todos os oito filhos de Cangombi, só existiaum descendente legítimo, filho do sobaBandua, que foi aclamado. É ele Quillemo, oatual soba do Bihé. Há contudo um filho bastardo de Moma,chamado Canhamangole, que está indigitadopara suceder a Quillemo e em seguida passar opoder aos filhos deste último, que são muitos. Por este breve resumo da história do Bihé se vêque aquele país é de fundação recente, e quedesde o seu começo quase, existiram relaçõesíntimas entre os portugueses e Bihenos, pelaintervenção tomada pelo Governador Geral deAngola na aclamação do soba Cangombi, avôdo atual soba Quillemo e neto do fundador damonarquia Bihena. Assim, pois, o Bihé, desde a sua fundação temsido governado por treze sobas em cincogerações, que vão representadas no seguintequadro: . . .

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Na carta de Angola, de Pinheiro Furtado, jávem, indicado o Bihé, mas a sua origem nãodeve ir muito além da coordenação daquelacarta.

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Os Bihenos são pouco agricultores e poucoindustriosos, e ali tudo o trabalho é feito pelasmulheres, que só elas cultivam a terra. Oshomens são dados a viajar, talvez de origem,que o seu primeiro régulo de longe veio, eatrevem-se a ir comerciar nos remotos sertõesonde vão traficar em marfim e escravos.Aproveitando estas disposições, algunshomens ousados, tais como Silva Porto,Guilherme (o Candimba), Pernambucano,Ladislau Magiar, e outros negociantessertanejos, começaram a dirigir os Bihenos nassuas excursões, e fizeram nisso um grandeserviço ao mundo; porque, abrindo novosmercados ao comércio, abriram novoshorizontes à civilização. Não foi só o seutráfico que veio aumentar o movimentocomercial da praça de Benguela, mas, aindaanimado por eles, e perdido o receio dosbrancos, o gentio dos mais remotos países,desceu a vir permutar diretamente os seusgêneros nas casas comerciais de Benguela. .

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Nas viagens sertanejas, aos brancos seguiram-se os pretos, e obtendo, primeiro alguns,depois muitos, um certo crédito na praça deBenguela, foram ao Bihé organizar expedições,de onde partem a procurar a cera e o marfimnos sertões mais distantes. Muitos pretos conheço eu que negociam comum crédito de 4 e 5 contos de réis, e algunscom mais, como o preto Chaquingunde, quefoi escravo de Silva Porto, que, durante aminha permanência no Bihé, chegou do sertão,

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onde tinha negociado por sua conta uma faturade 14 contos de réis! Não é difícil no Bihéencontrar um branco português, escapado dospresídios da costa, secretário de um pretocomerciante rico. Para o Biheno, em questões de viagens detráfico, nada é impossível, e tudo lhe parecenatural. Se eles soubessem dizer onde têmestado e descrever o que têm visto, osgeógrafos da Europa não teriam em brancogrande parte da carta de África Austral. O Biheno deixa com o maior desapego o lar, ecarregado com trinta quilogramas de fazendas,vai para o sertão, onde se demora 2, 3, e 4 anos,voltando em seguida a casa, onde é recebidocom a naturalidade de quem volta de umaviagem de três dias. Silva Porto, ao passo que se dirigia aoZambeze, enviava pretos seus em outrasdireções, e negociava ao mesmo tempo noMucusso, na Lunda e no Luapula. A fama dosBihenos tinha chegado longe, e Graça quando

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intentou a viagem ao Matianvo, foi ali procurarcarregadores. É mui raro que um Biheno deserte da comitiva,e roube algum fardo; o que acontecefrequentemente com os Zanzibares. Alémdisto, os Bihenos têm outra grande vantagemsobre os Zanzibares. Ainda que muito dadosao comércio de escravos, não promovem elesmesmos no interior guerras para os haverem;comprando-os a quem os vende, mas nuncatratando de os obter por força. Isto quando emviagem de tráfico sertanejo, que, nas guerrascom países circunvizinhos fazem o que podeme são dotados de inaudita crueldade. Os Bihenos, apesar das suas grandesqualidades, coragem e hábito de viajar,possuem grandes defeitos - e não conheço emÁfrica povo mais profundamente viciado, maisabertamente depravado, mais duramente cruel,e mais sagazmente hipócrita. Tem esta gente uma certa emulação entre sicomo viajantes, e muitos conheço eu que seufanam de ter ido onde outros não foram, a

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que eles chamam descobrir terras novas. Elessão educados na vida de caminheiros, e todasas comitivas levam inúmeras crianças, que,com cargas proporcionais às suas forças,acompanham os pais ou parentes nas maislongínquas correrias; e é por isso que não causaestranheza encontrarmos ali um homem de 25anos que tenha estado no Matianvo, noNiangué, no Luapula, no Zambeze, e noMucusso, se ele viajou desde os 9 anos. Ao homem que chega ao Bihé para seguir emviagem sertaneja, oferecem-se dois meios deobter carregadores. Um é por meio depresentes ao soba e aos potentados obtê-los,pedindo-os; o outro é anunciar a viagem, eesperar que eles se venham oferecer. O primero é mau, porque, além do grandedispêndio feito com os presentes que é precisodar às pessoas a quem se pedem oscarregadores, estes são obrigados a ir, e o queos pediu é responsável pela vida deles paracom as famílias ou senhores. Além disto, aspessoas a quem se pedem, com o intuito de

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extorquir mais presentes, vão demorandoquanto podem a partida, e quando se está nasua dependência as exigências crescem. O segundo meio é bom, porque os que se vêmoferecer são pretos livres, vêm por suavontade, e se algum morre, segundo a lei dopaís, como foi ele que se ofereceu, não tem oque o aceitou a menor responsabilidade dofato. É ocasião de falar em Quissongos e Pombeiros.Os carregadores, não só os Bihenos mas simtodos em geral, formam grupos pequenosdebaixo do comando de um deles que é chefedo grupo. Este chefe, desde a costa até aCaquingue chama-se Quissongo, e no Bihé eBailundo Pombeiro. São estes Pombeiros que se vêm oferecer,trazendo uns 10, outros mais, outros menoscarregadores. Estes grupos são de diferentesnaturezas. Uns são constituídos por parentesque escolheram um para Pombeiro, e nestessão todos livres. Outros são formados porgente livre, que combinam ir debaixo das

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ordens de um certo Pombeiro em que têmconfiança. Outros ainda, são grupos deescravos dos Pombeiros que os comandam. A obrigação do Pombeiro é vigiar pela suagente, e responder por ela ante o chefe dacomitiva. Come e dorme com eles, é enfim ocabo de esquadra da caravana. O Pombeironão leva carga, mas, em caso de doença oumorte de algum dos seus, substitui-o comocarregador temporariamente. Durante amarcha o seu lugar é no final da comitiva, elogo que um seu carregador se atrasa, ele ficapara o acompanhar. O pagamento dos carregadores nunca é feitoadiantado, e nas viagens de tráfico regulares édiminutíssimo. Assim, um carregador, para irdo Bihé à Garanganja (Luapula), recebe 12panos ou valor de 2400 réis, e na volta umaponta de marfim escravelho*, talvez de 4000réis, ao todo 6400 réis, comida à parte, porqueo chefe da comitiva tem obrigação de sustentartoda a sua gente durante a viagem, exceto nos

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primeiros três dias de saída do Bihé, para osquais cada um leva de comer. * Presa de marfim pequena ou danificada. Esta regra tem ainda uma exceção. Muitossertanejos, ao sairem do Bihé, destinam umcerto número de pombeiros para destacaremem caminho, ou no termo da sua viagem, paradiferentes pontos. A estes pombeiros dão um certo número defazendas, pelas quais eles lhes devem trazerum certo produto. Estas fazendas dospombeiros que vão traficar livremente,chamam-se banzos, e delas comem o Pombeiroe carregadores desde o começo da jornada.Afora este caso, em todos os mais o chefesustenta pombeiros e carregadores. Ospombeiros não saem nunca por tempodeterminado, e tanto ganham demorando-sepouco como muito. É sabido que os negros emÁfrica não dão valor ao tempo. Os costumes Bihenos são aproximadamente osmesmos de Caquingue, e o contato combrancos não tem trazido o menor

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adiantamento a essa gente. Não têm a menorideia de uma religião qualquer, não adoramnem sol, nem lua, nem ídolo, e vivem com osseus feitiços e advinhações. Todavia, parecemacreditar na imortalidade da alma, ou antes nodesassossego dela enquanto não cumpremcertos preceitos ou vinganças em favor domorto. A forma do governo é monárquica absoluta, etem muito do feudalismo. Cada um é, muitasvezes, juiz em causa própria, e quando eu falardos Mucanos direi como ali se faz justiça. Os maiores acontecimentos entre os Bihenossão aqueles que se ligam aos sobas, esobretudo à sua morte e à aclamação do novorégulo. Antes porém de descrever estes doisgrandes acontecimentos, é preciso falar da suacorte. O soba é rodeado de um certo número desujeitos, a que chamam macotas, que muitosjulgam corresponderem aos ministros entrenós, mas que assim não é. Os macotas formamapenas uma espécie de conselho a que o soba

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submete sempre as suas deliberações, mas decuja opinião poucas vezes faz caso. São seculose favoritos do soba, e nada mais. Seculo é ofidalgo, filho de nobre, ou enobrecido pelosoba. Muitos seculos que possuem libatas,dentro delas têm o tratamento de sobas, e osseus povos, quando lhe dirigem a palavra,dizem “na côco”, o que quer dizer VossaMajestade. Além dos macotas, há três pretos que rodeiamo soba, e que, quando ele dá audiência, sesentam no chão junto dele, e apanham da terraos escarros do régulo para os irem deitar fora.Há ainda o que leva a cadeira, e o bobo, figuraindispensável em todas as cortes de soba, emesmo dos seculos ricos e poderosos. O bobotem obrigação de limpar a porta da casa dosoba e a rua em torno dela. As libatas são defendidas por uma fortepaliçada de madeira, quase sempre coberta desicômoros enormes, e dentro delas umasegunda paliçada defende e fecha a morada dosoba. Este segundo recinto chama-se o lombe.

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Dados estes esclarecimentos, vamos ver o quese passa pela morte ou aclamação dos régulos. Logo que morre o soba, o acontecimento ésabido dos macotas, que guardam o maiorsegredo. Dão parte ao povo de que o soba estádoente e por isso não aparece. O cadáver édeitado na cama, na cubata, e coberto com umpano; isto em Caquingue, porque no Bihé, édependurado pelo pescoço ao teto da cubata. Ocorpo ali jaz até que a putrefação e os insectosdeixam a ossada nua, no país de Caquingue;no Bihé, até que a cabeça se separa do corpo. É então que anunciam a morte do régulo, e quese procede ao enterro. Os ossos são metidos emuma pele de boi e enterrados em uma cubataque existe no Lombe, sarcófago de todos ossobas. A cubata em que apodreceu o cadáver édemolida, e todo o material é transportado forada libata, e abandonado no mato. Serádesnecessário dizer, que a morte de um soba ésempre produzida por feitiço, e que umdesgraçado paga com a vida, não o feitiço, quenão fez, mas a vingança particular de um dos

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macotas. Logo que se anuncia a morte do soba,o povo sai furioso, e, durante alguns dias, sãoroubados todos os que passam próximo dacapital, sendo que se apossam das pessoasmesmas, que escravizam para venderemdepois. Os macotas vão buscar o herdeiro, eacompanham-no até à Libata Grande (capital);mas ali ele não entra no Lombe*, e fica vivendona povoação como qualquer do seu povo. Emseguida à entrada do herdeiro na libata, saemdois bandos de caçadores, um em busca deuma malanca (catoblepas taurina), e outro emprocura de uma criatura humana. * Casa do chefe da povoação. Do grupo que vê o antílope, se adianta umcaçador que lhe atira, fugindo logo, e são osoutros que lhe vão cortar a cabeça, porque sefor o que lhe atirou é logo assassinado e nuncapode dizer que foi ele que o matou. O bando que procura a criatura humana,apossa-se da primeira que encontra (homemou mulher), e arrastando-a para o mato,

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cortam-lhe a cabeça, que trazem com todo ocuidado, abandonando o corpo. Chegados àlibata, esperam pelo bando que foi caçar oantílope - porque mais fácil sempre é encontrare matar um homem do que encontrar e mataruma malanca. Reunidas em uma cesta as duas cabeças, a dohomem e do antílope, vem o cirurgião ecomeça a fazer os curativos precisos para que onovo soba possa tomar as rédeas do governo, equando acaba a sua magia declara que elepode entrar no Lombe. Acompanhado dosmacotas, o soba entra no Lombe, no meio degrande grita e muita fuzilaria. O primeiro passo que dá o soba no seugoverno, é escolher entre as suas amantes umaque apresenta como sua mulher, a qual ficamorando com ele, e toma o nome de Inaculo, eo governo caseiro; as outras ficam vivendo noLombe, mas fora do recinto do régulo. No Bihé, como em toda a África Austral, estáestabelecida a poligamia. Os crimes no Bihésão sempre julgados em primeira instância

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pelo lesado, e só se o culpado se não sujeita aopagamento da multa, é que, algumas vezes,sobe a causa ao conhecimento do soba, porqueem outras a justiça é feita pelo lesado. Apalavra terrível no Bihé, o vocábulo “mucano”,não exprime simplesmente o crime, masdesigna uma ideia que envolve ao mesmotempo o crime e o pagamento da multa. Ali todos os crimes são remíveis a dinheiro,isto é, ao pagamento de multas - e não hápenalidades intermediárias entre a multa e apena de morte. Se alguém rico sobre quempesa um mucano se recusa a pagar, e o lesado époderoso, faz presa ao culpado em valor muitosuperior à multa, ficando a presa em depósitopara ser vendida ou ficar pertencendo ao que afez. Aquele que faz uma presa injusta é obrigadopelo soba à restituição e a dar um porco aoprejudicado. Este sistema é azado a roubos, e todos os diasaparecem mucanos os mais estupendos. .

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Um dos mais vulgares é o do adultério dasmulheres, a quem os maridos mandam que sefaçam seduzir por este ou aquele homem quepossui alguma coisa, para lhe fazerem depoispagar o mucano. O chefe de uma comitiva éobrigado a pagar os mucanos dos seus pretos,e responsável pelo comportamento deles. Quando um branco responsável pelosmucanos dos seus pretos tem por seu ladoforça bastante e se recusa a pagar, elesesperam, às vezes anos, até poderem atacaroutro branco mais fraco, e fazerem-lhe presas,dizendo-lhe que é por causa do outro e que seentenda com ele. Se o que teve um mucano é falecido, odesgraçado que vem habitar a sua povoaçãopaga por ele. O modo por que se faz justiça noBihé é a causa do grande transtorno que sofre ocomércio e das grandes perdas das casas deBenguela. Durante a minha estada em casa do SilvaPorto, vieram ali uns pretos que traziam umagalinha para fazer uns curativos - e o hortelão

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vendo-a disse, que tinha uma muito parecidacom ela. Foram estas palavras objeto de ummucano em que o hortelão teve de pagar 16côvados de algodão ao dono da galinha. Logo que chega alguém ao Bihé e trazfazendas, procuram arranjar-lhe inúmerosmucanos, e roubam-lhe assim uma grandeparte delas. Os sertanejos, quando chegam aoBihé, são tão defraudados pelos mucanos quemuitas vezes não lhes fica para ir negociar nointerior mais do que a terça-parte das faturastrazidas. Guilherme (o Candimba), pai doVeríssimo, a última vez que ali foi em viagemde tráfico, foi obrigado a dar fazendas no valorde 600 mil réis por um mucano que lhearranjaram - de um seu preto ter comprado umbocado de carne de carneiro por três cartuchosde pólvora e não os ter dado no dia aprazado,mas sim no seguinte, em que já não foramaceitos. Durante a minha estada no Bihé, SilvaPorto teve de pagar um mucano de 700 mil réispor uma bagatela ainda maior. .

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É o mucano, esse roubo infame, porque é legale autorizado, a causa principal do estorvo aocomércio - e da decadência do Bihé. Foi omucano que expulsou do Bihé a Silva Porto eaos sertanejos honrados. Suprima-se o mucano,segure-se o caminho de Benguela, organize-see legisle-se para as comitivas sertanejas, edentro em pouco triplicará o comércio deBenguela, e novas fontes de riqueza, atrofiadashoje pela pouca segurança virão alimentar asindústrias europeias. O povo do Bihé é azado a grandescometimentos. Esmague-se no seu seio a víborada ignorância que o corrói, levantem-se essesbrutos ignaros à altura de homens, dê-se-lhesuma direção, e eles caminharão na via doprogresso e chegarão onde dificilmentechegará outro povo Africano. Os pretos daÁfrica são como os cavalos de fina raça, quantomais fogosos e bravos, mais prontamente setornam dóceis e obedientes. Aqueles em quepredomina a inércia e a covardia, dificilmente

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se poderão civilizar; aos outros não será difíciltarefa trazê-los ao caminho do bem. Os Bihenos, como todos os povos desta partede África, são muito dados à embriaguez. Aliainda chega a aguardente, e na falta delafabrica-se muita capata. A Capata,Quimbombo ou Chimbombo, que lhe chamamde qualquer destes modos, é uma espécie decerveja feita de milho. Nas terras onde cultivam o lúpulo (humuluslupulus), servem-se das cônicas sementes destatrepadeira para confecionarem a bebida. Paraisso, reduzem as sementes a pó, e misturadoeste pó com fubá de milho, em uma enormepanela, ferve por espaço de oito ou dez horasem muita água, e logo, retirada do fogo e fria, éa capata - que se bebe imediatamente. Neste preparado a fermentação acéticapredomina, e é tão pequena a fermentaçãoalcoólica, que não embriaga, senão em grandequantidade. Como a bebida não é filtrada, ficacheia de farinha em suspensão e é mais massamuito fluída do que puramente um líquido. É

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muito substancial - e há pretos que passam ume mais dias sem comer, bebendo só capata. Nas terras onde não ha lúpulo é estesubstituído por uma farinha feita de milho emestado de germinação, que eles fazemproduzir, já enterrando o milho, já deitando-oem água por alguns dias. No tempo do mel, fazem produzir na capatauma grande fermentação alcoólica,adicionando-lhe mel, que no fim de algunsdias está em parte transformado em álcool.Esta bebida assim preparada embriaga muito -e tem o nome de Quiassa. Preparam ali ainda outra bebida que apenaspode considerar-se refresco, mas que éagradável e muito nutriente. É ela feita com araiz de uma planta herbácea, que os meuspoucos conhecimentos botânicos não mepermitiram classificar, a que os pretos chamamimbundi. Uma forte decocção da raiz doimbundi, depois de fria e de uma ligeirafermentação em uma grande cabaça - eadicionada, a frio, à fubá é fervida como para a

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capata. A raiz do imbundi contém grandequantidade de sacarose. Esta bebida chama-seQuissangua. A alimentação do povo do Bihé é quase todavegetal, e tendo eles poucos gados, que nuncamatam para comer, apenas uma ou outra vezcomem carne de porco, animais estes queabundam ali no estado doméstico. Creio queforam introduzidos por Silva Porto. No país,muito povoado, escasseia a caça, e a pouca quehá são pequenos antílopes (cephalophusmergens), difíceis de matar por muito esquivos. Os Bihenos comem toda carne que encontram,e a preferem no estado de putrefacção. O leão,o chacal, a hiena, o crocodilo, e todos oscarnívoros, são para eles finos manjares, massobretudo o que mais amam são os cães, queengordam para comerem. Isto talvez provenhada falta de alimentação animal que têm no seupaís. Eles não são positivamente canibais - mascomem de tempos a tempos um bocado dehomem cozido. Preferem os velhos, e umancião de cabeleira branca é ótimo presente

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que recebe o soba, ou algum rico seculo, paraum banquete. Os sobas do Bihé fazem repetidas vezes umafesta, na sua libata, a que chamam a festa doQuissunge, em que são imoladas e devoradascinco pessoas, sendo um homem e quatromulheres, desta sorte: uma mulher que façapanelas, uma do primeiro parto, uma quetenha papeira (é vulgar ali), uma cesteira, e umcaçador de corças. Presas as vítimas, são degoladas, e as cabeçaslançadas no mato. Os corpos entram de noitepara o Lombe da libata grande, onde sãoesquartejados, e, morto um boi, a sua carne écozida com a carne humana, parte da qual étambém fervida na capata, sendo que tudo oque aparecer no banquete deve levar sanguehumano. Logo que está pronta a sinistra erepugnante ceia, o soba manda participar quevai começar o Quissunge, e todos os habitantesda povoação correm pressurosos ao festim. Os Bihenos gostam muito das termites, edestroem as suas habitações para as comerem

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cruas. O Biheno é altamente ladrão, e furtasempre que pode algum objeto, logo que estáno seu país; fora dele não só se abstém deroubar, mas, como carregador, respeita a cargaque lhe confiaram. Quando uma comitiva acampa no mato, noBihé, é preciso logo dar parte disto ao seculodono da terra, mandando-lhe um pequenopresente - sem o que, ficam autorizados ospretos da povoação vizinha a roubarem quantopossam. Logo que se dá o presente ao dono daterra, é ele o responsável por qualquer rouboque haja. É também necessário mandar umpresente, ou antes um tributo, ao soba - ao quese chama dar a Quibanda. Eles nunca ficamsatisfeitos, e exigem sempre mais do que selhes manda. As libatas ou povoações fortificadas (que todaso são, desde a costa ao Bihé) têm as mesmascondições, salvo pequenas modificações,devidas à disposição do terreno. São grupos decubatas feitas de madeira e cobertas de colmo,cercadas por uma paliçada, que varia entre 2 a

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3,5 metros de altura. Esta paliçada é formadapor estacas de pau-ferro de vinte centímetrosde diâmetro, umas apenas cravadas no terreno,outras amarradas com travessas e cascas deleguminosas, e outras amparadas por travessasencaixadas em forquilhas enormes.

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Outra paliçada igual à exterior, senão maisforte, rodeia o Lombe, ou morada do chefe dapovoação. Em muitas vi grupos de casasrodeadas de paliçada. As libatas, e sobretudo as antigas, são cobertasde frondosas árvores e estão junto de rio ouribeiro, sendo que em algumas lhes fazempassar a água por dentro. São quase todasretangulares, mas muitas há elípticas oucirculares, e outras formando polígonos

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irregularíssimos. Não há a menor ordem nasconstruções, e em geral é a disposição doterreno que as determina.

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As povoações são fortificadas com o receio dosataques do homem, que feras não abundammuito no país, e não é mesmo isso necessáriopara feras, porque no interior, onde as há embandos, as povoações são abertas. As guerrasdos pretos ali são, a maior parte das vezes, semcausa, e basta a riqueza de um povo para queele seja atacado. São verdadeiros ataques desalteadores. Logo que um régulo decide ir fazer a guerra aoutro, ou a um povo qualquer, mandaemissários seus aos sobas e seculoscircunvizinhos, convidando-os a tomar partena campanha, e estes, como na Europa notempo do Feudalismo, saem com os seusguerreiros a reunirem-se ao que os convoca.Alguns povos fazem periódica esistematicamente a guerra, e no Nano, porexemplo, vão, de três em três anos, roubar osgados ao Mulondo, Camba e Quillengues, edizem, que estes povos criam gados para eles,e são os seus pastores. .

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Uma circunstância muito notável das guerrasnesta parte de África, é a de ser semprevencedor o que ataca. Há exceções, mas muitoraras. Uma das exceções foi o ataque dirigidopor Quillemo, o atual soba do Bihé, contra opaís de Caquingue, em que os Bihenos foramderrotados pelos Gonzellos, e em que opróprio soba Quillemo foi prisioneiro do sobade Caquingue, onde seria degolado, se por elenão pagassem um grande resgate Silva Porto eGuilherme José Gonçalves (o Candimba). Nas guerras entre os povos destes países, podecontar-se, apenas um quinto dos combatentessão armados de espingardas, e os outrosquatro quintos de arcos e flechas, machadinhase azagaias. Dizem, que uma guerra vai muitopoderosa e forte, quando leva trinta tiros porespingarda. As armas de que usam são aschamadas no comércio Lazarinas. São muitocompridas, de pequeno calibre, e de silex. Estasarmas são fabricadas na Bélgica e tiram o seunome de um célebre armeiro português queviveu na cidade de Braga, no princípio deste

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século, cujos trabalhos chegaram a adquirirgrande fama, em Portugal e Colônias. Nasarmas fabricadas na Bélgica para os pretos, quesão uma imitação grosseira dos perfeitostrabalhos do armeiro português, lê-se noscanos o nome dele — Lázaro —Lazarino,natural de Braga. Os Bihenos não usam balas de chumbo, quesão, dizem eles, muito pesadas, e fabricam-nasde ferro forjado. Os cartuchos, que elesfabricam também, levam 15 gramas depólvora, e têm 22 centímetros de comprido. Asbalas de ferro são de diâmetro muito inferiorao calibre, pesando apenas 6 a 7 gramas. Comosão forjadas, são mais poliedros irregulares doque esferas. As armas assim carregadas, denenhuma precisão, como se pode bem julgar,têm um alcance de cem metros apenas. O alcance da flecha é de 50 a 60 metros, mas agrosseira precisão do tiro de flecha, entre ospretos, não vai além de 25 a 30 metros. Asazagaias são todas de ferro, curtas e ornadas depêlo de carneiro ou de cabra; não são de

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arremesso - e o Biheno em combate nunca asdeixa de mão. Talvez haja reparo em eu escrever pêlo decarneiro, mas cabe dizer, já que falei nisso, queos carneiros ali não têm lã. Existem no paísduas diferentes espécies, que os pretos emHambundo designam pelos nomes de Ongue eOmeme. O ongue tem um pêlo grosso e curto;e o omeme, que tem o pêlo mais longo, diferemuito da lã. Estes carneiros, de raças exóticas, degeneraramdecerto por efeito do clima e das pastagens.Têm os Bihenos cabras de uma raça muitoinferior, e o seu gado bovino é pouco, e de raçamuito pequena e fraca. As galinhas abundam,mas são, como todos os animais domésticos noBihé, de pequeno corpo. Deixo aqui o que nos meus apontamentosencontrei de mais curioso a respeito deste país,cujas posições e condições climáticas seencontraram em um capítulo especial; eretomo o meu diário no dia 14 de abril de 1878. .

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As últimas chuvas tinham caído das 6 às 9 danoite do dia primeiro de abril, produzindoapenas 17 milímetros de água, o que mostraterem sido já muito fracas. O tempo estavaesplêndido, e alguns cirrus alvíssimos que emseguida às chuvas tinham pairado nos ares aenorme altura, desapareceram, para deixarlugar a um firmamento límpido, clareado dedia por um sol brilhante, e à noite consteladode estrelas, que dardejavam sobre a terraescura da África essa luz melancólica ecintilante, que elas só têm nas regiões tropicais. Era o bom tempo de viajar, era já o dia 14 deabril e eu estava ainda no Bihé! Eram 14 deabril, e eu não partia, porque ainda não tinhamchegado as fazendas e as cargas que deixamosem Benguela, em novembro de 1877, isto é,uma grande parte delas, que outras tinhamchegado em princípio de março. Esta demoraestava sendo de grande prejuízo para mim.Dos sete fardos de fazendas que me deixaramCapello e Ivens, quatro tinham sido gastos,com o sustento da minha gente de Benguela e

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com a minha. Ainda não tinha dado presenteao soba, que teimava em me pedir, e comecei aver um sombrio futuro na minha empresa.Reduzi as minhas despesas pessoais, e por issotive de dispor de duas horas por dia paracaçar. Na falta de caça grossa, tinha, namargem esquerda do rio Cuito, nas terrascultivadas de Silva Porto, muitas perdizes. Chamei-lhe a minha capoeira, e todos os diasia ali matar uma ou duas, não excedendonunca esse número para não destruir aprovisão. Semelhante ao jogador que faz dabanca meio de vida, e que sopeando osimpulsos do vício se levanta com um pequenoganho que lhe assegura o sustento diário;assim eu, contendo os instintos de caçador,deixei muitas vezes a caça que podia matar;fazendo sobre mim supremo esforço para nãoproseguir num prazer que destruiria ao mesmotempo as munições pouco abundantes e a caçanecessária ao meu sustento futuro. Não eram só os bandos de perdizes doscampos de Silva Porto que forneciam um prato

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à minha modesta mesa. Centenas de rolasafricanas, esvoaçavam continuamente sobre asárvores das margens do Cuito e vinham beberao rio de manhã e de tarde. Os meus molequespequenos, por meio de armadilhas, caçavamalgumas que vinham figurar na minha mesa apar das perdizes e de um prato de massa -feita com farinha de milho cozida em água eque me servia de pão. Assim pude reduzir a minha despesa, que erapelo menos de quatro jardas de algodão brancopor dia, custo de duas galinhas. A demora ecom ela o decrescimento rápido dos meusrecursos, fez modificar o meu plano de viajar.O mucano aterrava-me, e se eu tivesse depagar algum, ficava impossibilitado de sair doBihé. A demora da minha gente, tinha, com aociosidade, feito despertar neles os víciosadormecidos pelas fadigas e pelos trabalhos dajornada. O perigo pairava sobre mim, e estavasuspenso por um fio, como a espada sobre acabeça de Dâmocles. Resolvi, depois de muitocogitar, colocar-me em circunstâncias de ter a

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força de meu lado - e de defender a todo otranse a minha propriedade. Para isso precisava armar-me, e depois de terarmas precisava ainda de munições de guerra.Eu tinha 10 carabinas Snider, que me tinhamdado Capello e Ivens; pude obter mais 11 dasdeixadas por Cameron no fim da sua viagem -e para estas armas tinha quatro mil cartuchos.Além destas, possuía umas 20 espingardas desilex, das últimas desse sistema usadas pelosexércitos na Europa. Para estas não tinhamunições. Fiz correr a notícia de que compravatodas as armas inutilizadas que metrouxessem. Principiaram a afluir elas, e eu ia comprandoas que poderia consertar, o que me não eradifícil, por ter aprendido o ofício de serralheiroe espingardeiro com meu pai, que é hábilartífice - e que ainda hoje emprega as horas deócio trabalhando na sua oficina, mais bemmontada que as daqueles que as têm porprofissão. Lembra-me aqui uma anedotaengraçada. Um dia, entra na nossa quinta do

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Douro um cavalheiro que ia procurar meu pai,e ouvindo um martelar estridente numa casapróxima à de habitação, dirigiu-se para ali. Erauma vasta forja, onde dois homens, detamancos nos pés, carapuças vermelhas nacabeça, largos aventais de couro pendentes dopescoço e justos à cintura, a cara e mãos negrasdo carvão e do ferro, estendiam em enormebigorna uma grossa barra que projetava emtodas as direções chispas ardentes ao batercadenciado de dois pesados martelos, puxadospor braços nus até ao cotovelo. O cavalheiro parou à porta e perguntou: “OSenhor Doutor está em casa?” Meu pai, que eraele um dos ferreiros, respondeu-lhe com umapergunta: “Que lhe quer o Senhor?” O cavalheiro, que não era de gênio brando, nãogostou da pergunta do ferreiro, que tomou porinsolência, e respondeu poucoconvenientemente - dizendo, que vinhaprocurar sua Excelência, e que não admitia queum ferreiro que trabalhava em sua casarespondesse com perguntas a ele.

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Meu pai quis explicar o caso, dizendo, que oferreiro e o Doutor eram a mesma pessoa, oque mais fez exasperar o seu interlocutor, quejulgou lhe juntavam a zombaria à insolência.Ambos de gênio irritável, iam ter umadesagradável contenda, quando o outroferreiro, que era eu, interveio e fez cessar aguerrilha - dando o visitante as suas desculpasque logo o convenceu da nossa identidade.Esta pequena circunstância de ter aprendidoum ofício serviu-me de grande auxílio e foi umdos pequenos ribeiros que veio engrossar o riodos felizes resultados da minha tentativa. Assim, pois, mais um trabalho se veio juntar aomeu incessante labutar de todos os dias, edentro em pouco pude aproveitar umas vinte ecinco espingardas que o gentio julgavainutilizadas. Faltavam as munições, e era preciso fazê-las.Em casa de Silva Porto encontrei uma coleçãocompleta da Gazeta de Portugal - e nela opapel necessário aos cartuchos. Nas cargas queesperava de Benguela devia vir muita pólvora,

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e por isso apenas me faltavam as balas. Obterchumbo era impossível, e decidi logo fazerbalas de ferro forjado. Faltava o ferro éverdade, mas esse era possível obter-se. Anunciei que comprava todo o ferro velho queme trouxessem, e não tardou a aparecer grandequantidade de enxadas inutilizadas - esobretudo de arcos de barris de aguardente. Sósuspendi a compra de ferro quando tinha unsduzentos quilogramas. Mandei chamar 4 ferreiros do país, estabeleciduas forjas indígenas no pátio interior - comgrande escândalo da preta Rosa,administradora da povoação de Belmonte - eenquanto, fora da libata, os meus pretos faziamcarvão queimando os restos de uma paliçadade pau ferro de uma libata abandonada,começou no pátio um forjar contínuo. O primeiro trabalho a fazer era reduzir todoaquele ferro a varão cilíndrico do diâmetro dasbalas. Os ferreiros haviam-se com grandedestreza. Dobravam os arcos em molhos de 20centímetros de comprido por 4 de espessura, e

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levando-os ao rubro, mergulhavam-nos emuma massa de caliça e água. Depois de friosvoltavam à forja, e chegados à temperatura dafusão eram facilmente caldeados, tornando-seem massa única e homogênea. Depois disto otrabalho era fácil. A compra das armas e do ferro tinhademinuído consideravelmente o meu haver.Eu não possuía miçangas, porque um saco queme mandaram os meus companheiros nãotinha curso nos sertões para onde me dirigia.Tratei de procurar alguma no Bihé, e pudecomprar aos pretos aqui e além uma pequenaporção que me fez a carga de um homem. Esta compra veio dar um novo golpe na minhafazenda de algodão, e, por 17 de abril, possuíaapenas um fardo. . . . . . .

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Figura 24.—Objetos fabricados por Bihenos.

1. Fole. 2. Fole preparado para servir. 3. Bocal de barro em contato com a chama. 4. Tenaz. 5. Martelo grande. .

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6. Um bocado de cano de espingarda encabadoem pau que serve ao ferreiro para levar aolume pequenas peças. 7. martelo pequeno. 8. Panelas de cozinha. 9. Panela para capata. 10. Tambores dos batuques. Sentia desde a minha chegada ao Bihé umagrande falta, e era ela a de um despertador. Foiesquecimento que me custou no correr daviagem muitos incômodos e algumas febres.Sempre que tinha de fazer observações depoisda meia-noite, tinha de estar acordado até àhora precisa; e asseguro que é triste passaruma noite a lutar com o sono, sem luz, e porisso sem nada poder fazer para matar o tempo. No dia 19, o Ivens veio ver-me, e causou-mefunda impressão o seu estado. Estava muitomagro, de uma palidez cadavérica, e acusavanas feições um sofrimento constante. Eu pedi-lhe para vir jantar comigo no dia imediato, queera o dia dos meus anos. Ele disse-me quetalvez não pudesse vir pelo seu estado de

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saúde. Dois dias depois, fui ao acampamentodos meus companheiros pagar a visita aoIvens. Capello estava ausente, pois tinha idodeterminar a posição da nascente do Cuanza. No dia 25, tinha eu dez mil balas, ou, antes,dez mil bocados de ferro toscamente forjados -com pretensões a terem uma forma esférica.Era o que me bastava, e despedi os ferreiros.Nesse dia chegaram os primeiros Bailundoscom as cargas de Benguela e nos seguintes diasforam aparecendo novas levas com cargas.Estes Bailundos eram insolentes e iam fazendouma grande desordem em Belmonte, que teriatomado sérias proporções se eu nãointerviesse. Tirei das cargas 10 fardos defazenda, três barris de aguardente e dois sacosde caurim. Faltava-me a pólvora e o sal, quetinham ficado atrás. Tratei logo de mandar o presente ao soba e deme preparar para partir, porque tendo oscartuchos prontos e embalados, em dois ou trêsdias os carregaria de pólvora. Mandei

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emissários a reunir os carregadores, que todosestavam justos e prontos. No dia 29 de abril, os pretos de Silva Portofizeram-me um pequeno furto e eu zanguei-memuito com eles - e ameacei-os de os mandarpara Benguela. Eles, para entrarem nas minhasboas graças, vieram denunciar-me, que sabiamonde estavam 4 espingardas que tinham sidoroubadas à expedição no caminho deBenguela. Uma delas fora furtada pelo Sr.Magalhães, dono da povoação onde primeiroestive no Bihé. Pude havê-las todas.

. .

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A esse tempo eu mal tinha ocasião de comer.Arranjava as cargas, e era preciso estarpresente a tudo, para não ser roubado, porquetodos os pretos, os de Silva Porto e os meus,eram uma quadrilha de ladrões. Havia umaexceção, uma única. Era o meu preto Augusto,que me deu sempre prova da maior fidelidade.Quando contratei os carregadores emBenguela, contratei entre eles o Augusto, dequem nunca fiz caso, porque ele se nãodistinguia dos outros, a não ser talvez por serum pouco mais dado a embriaguez. Na distribuição das armas, os pretos fizeramrepugnância em receber as de Snider, e só oAugusto me pediu logo uma. Foi a primeiravez que atentei nele. Um dia, no Dombe, fizum exercício ao alvo e vi que ele era um

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sofrível atirador. Depois, em Quillengues,soube que ele dissera entre os pretos que menão deixaria nunca - e como, pela sua forçahercúlea e pela sua coragem ele tinha tomadoum grande ascendente sobre os outros pretos,chamei-o a mim. Ao tempo em que vai a minhanarrativa ele tinha subido de posição, e, desimples carregador, estava chefe da comitiva.Alguns eram seus amigos, outros respeitavam-no, e muitos temiam-no. Augusto é o melhor preto que eu tenhoencontrado em África - mas ninguém é perfeitoneste mundo, e Augusto não quer ser exceção àregra. Entre os seus defeitos avulta um, que eusou propenso a desculpar - e que sendo umgrande defeito em viajante africano, fora dalipoderia passar por virtude. Augusto é loucopelo belo sexo. Forte como um búfalo, corajoso como um leão,entende que deve proteção e apoio às criaturasfrágeis que encontra no seu caminho. Já nãotinham conta as suas aventuras galantes desdeBenguela ao Bihé. Casado em Benguela, casou

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de novo no Dombe, em Quillengues, Caconda,no Huambo - e desde a sua chegada ao Bihé játinha feito ali três ou quatro casamentos. É umverdadeiro D. Juan de cor preta. Obediente emtudo o mais, desprezava completamente asminhas admoestações nesta parte. Um dia, como as queixas das mulheres fossemmuitas, chamei-o e repreendi-o severamente -ameaçando de o abandonar se ele continuasse.Chorou muito, lançou-se de joelhos aos meuspés, fez mil protestos de emenda - e pediu-mepara lhe dar uma peça de fazenda, que comisso iria contentar as mulheres e só ficaria comMarcolina, a sua mulher de Benguela. Dei-lhe apeça de pano, e fiquei satisfeito de tão sinceroarrependimento. . . . . . . .

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Na tarde desse dia, ouvi grande batuque paraum canto da povoação, e cantos e festas queanunciavam um acontecimento desusado. Tive curiosidade de saber o que era, e mandeialguém a ver. Qual não é o meu espanto,sabendo que o Augusto festejava o seu novocasamento com uma rapariga da libata deJamba!

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Vi que o furor de casar-se era superior às suasforças, e decidi não mais me importar com osseus negócios galantes, mesmo porque ele nãocomprometia ninguém, e casava semprelegalmente. Estávamos a dois de maio e ainda não tinhapodido reunir os carregadores - e ainda nãotinham chegado do Bailundo, nem a pólvoranem o sal vindos de Benguela. O Veríssimoandava por lá reunindo a gente - mas aindanem um só se tinha apresentado. Na manhã do dia três, estando eu em casa,ouvi fora da porta os acordes de uma rabeca,onde se tocavam árias muito melodiosas, coisamui diferente da música monótona dos pretos.Mandei chamar o menestrel e apareceu-me umpreto alto e magro, quase nu, de fisionomiatriste e expressiva. Tocava em uma rabeca fabricada por ele, quedava sons tão melodiosos e fortes como omelhor Stradivarius. Este instrumento, muisemelhante em forma às nossas rabecas, eracavado em uma só peça de pau - que formava

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a caixa e o braço - sendo o tampo de uma tábuafina da mesma madeira. Tinha três cordas detripa, fabricadas pelo músico, e o arco eraguarnecido de duas cordas iguais, em lugar decrina. Era decerto uma imitação das rabecas daEuropa, e não um instrumento primitivo. A madeira de que era feita chama-se no paísBóle e abunda nas matas da África de Oeste.Não seria talvez para desprezar o ensaio destamadeira na fabricação de instrumentos decorda. O bárbaro músico cantou uma ária em meulouvor, a mezzo petto, com voz muito agradável,acompanhando-se na tosca mas harmoniosarabeca. Foi muito aplaudido pelos pretos quetinha atraído em volta de si, e eu mesmo gosteidaquela música original. Chegaram à libata uns pretos do sertão doAndulo, que vinham vender tabaco muitobom, que naquele país cultivam emquantidade. É este tabaco do Andulo que osBihenos compram e mandam para Benguela,vendendo-o ali com o nome de tabaco do Bihé.

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Eu comprei grande provisão, e calculei que meficou por 500 réis o quilograma. Os preços dosdiferentes gêneros no Bihé não são aqueles queme têm forçado a pagar, e são os seguintes: Uma galinha, uma jarda de fazenda dealgodão; seis ovos, uma jarda; um cabrito dedois anos, oito jardas; um porco de 5 a 6arrobas (75 a 90 quilogramas), uma peça dealgodão branco e outra de zuarte; o alqueire defarinha de milho, duas jardas; o de farinha demandioca ou de feijão, três jardas. Isto sãojardas de fazendas das mais ordinárias, cujopreço no Bihé não se deve calcular superior a200 réis. Uma jarda de fazenda chama-se noBihé um Pano, 2 jardas uma Beca, 4 jardas umLençol, 8 jardas uma Quirana*. * “Cortina”? As fazendas de negócio próprias para o Bihé esertões explorados pelos Bihenos, são oalgodão branco, zuarte, zuarte pintado, lençosde zuarte pintado, lenços finos, lençoscangengos*, fazendas de lei e riscados, tudo damais inferior qualidade.

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* Lembra o “cangengo”, pendúculo seco de umapalmeira. As peças de algodão branco tem 28 jardasumas, e outras de melhor qualidade 30. Oszuartes e riscados 18 jardas, os lenços pintados8 jardas, os lenços cangengos 6, e a fazenda delei 12 jardas. As fazendas boas são muito inconvenientes aoviajante que percorre esta parte de África,porque, não tendo muito mais importânciapara o gentio, são consideravelmente maispesadas. Eu tinha dois fardos de fazenda que tinhapreparado ali, cada um dos quais continha 624jardas, e os outros, de algodão fino, têm apenas180 jardas, e são mais pesados. Já se deduzdaqui a inconveniência das fazendas de boaqualidade, que além de ser grande o seu custo,é grande também a dificuldade do seutransporte - pois que três homens carregamdelas tanto quanto um carrega de fazendaordinária. E sobretudo para o viajanteexplorador, como o seu dispender de fazenda éem troco de alimento, tantas jardas de fazenda

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boa tem de dar por um objeto como de jardasde má fazenda dará pelo mesmo objeto. Oalgodão branco de inferior qualidade e ozuarte são o melhor dinheiro que pode levar oviajante naquelas paragens. Nas miçangas já se não dá o mesmo caso, e aque é moda aqui não é recebida além - às vezesem pontos pouco distantes. Por exemplo: noBailundo querem muito a miçanga preta, quejá no Bihé não tem curso. Há contudo umamiçanga que é quase geralmente bem recebidaem toda a África Austral. É ela uma miçangamiúda encarnada, de olho branco, a que nocomércio em Benguela dão o nome de Maria 2a.O búzio miúdo (caurim) serve além Cuanza atéao Zambeze, mas o graúdo não é recebido. Oarame de latão ou de cobre vermelho éestimado para manilhas - mas, nestasparagens, não deve ter mais de 3 a 5milímetros de espessura. Os barretes vermelhos, sapatos de liga, fardasde soldados, etc., são bugigangas que, sendomuito estimados presentes para sobas e

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seculos, são péssima moeda. Os cobertores, esobretudo aqueles vistosos que na Europausam para embrulhar as pernas em viagem,são muito cobiçados do gentio; estando porémno caso das fardas e barretes, que, sendo ótimopresente, não são boa moeda. Os realejos,caixas de música e outros objetos deste gêneroestão no mesmo caso. Prestigitações, sortes de física e química,produzem certa impressão no gentio, mas nãotanta como se julga na Europa. Nãocompreendendo as causas que determinamcertos fenômenos, lançam a coisa à conta defeitiçaria, com que explicam tudo que nãosabem explicar de outro modo. Às vezes atépodem ser contraproducentes e prejudicaremaquele que as fizer. De tudo o que eu vi fazerimpressão em pretos, aquilo que mais osadmira é verem um bom atirador. Metaqualquer um, diante de um ajuntamento depretos, 6 balas em alvo pequeno e distante,corte o pequeno fruto de uma árvore, mate umpassarinho - e fique certo de que ganha logo a

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maior consideração e será objeto dasconversações por muito tempo. A este respeito vou narrar um fato que se deuna libata, comigo. Um dia, um cirurgião Bihenoapareceu ali trazendo um remédio que erapreservativo contra as balas, àquele que otomasse. Isto é crença geral entre Bihenos - e muitos háque gastam tudo o que têm para adquiriremaquele abençoado remédio que os torna maisinvulneráveis do que Aquiles, porque nemmesmo lhes deixa a possibilidade de receberema morte por um calcanhar. Um mestiço civilizado e educado em Benguelaencontrei eu que se ria de mim quando eu lhedizia que se lhe desse um tiro furava-o de ladoa lado - apesar do remédio contra as balas deque ele fazia uso. Mas vamos ao conto. O cirurgião Biheno trazia uma panelinha demeio litro cheia do precioso preservativo eapregoava que aquele que o tomasse seriadepois tão invulnerável como o era a panelaque continha o líquido, panela a que todo o

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mundo, no seu dizer, tinha atirado sem que asbalas lhe fizessem o menor dano. Quis ele darao público uma prova irrefutável, e desafiou-me de atirar à panela - tendo previamente ocuidado de me marcar a distância (uns 80passos) a que ele julgava ser impossível acertarem tão pequeno alvo. Tomei a carabina, atirei, e fiz a panela emcacos, derramando-se o precioso licor. Nuncavi aplaudir mais freneticamente alguém do queeu fui aplaudido então pelo gentioentusiasmado. O pobre cirurgião foicompletamente corrido no meio de geralassuada. Este pobre homem foi ali buscar o seudescrédito. Os melhores atiradores do sertão são grandesmediocridades - e são bem mais para temerpretos de flecha e azagaia, do que de armacarregada. O Veríssimo partiu a reunir os carregadores,voltando a 5 de maio com alguns e dizendoque outros chegariam no dia seguinte. Nessedia recebi cartas e cargas de Benguela,

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enviadas para mim por Pereira de Mello eSilva Porto. Fizeram-me uma tal impressãoaquelas cartas, que no meu diário escrevientão, na cabeça do capítulo em que falo doBihé, aqueles dois nomes - e hoje ainda osconservo, como preito e homenagem àquelesdois cavalheiros. Enviava-me Pereira de Mello 16 espingardas,30 quilogramas de sabão, um relógio e umacarga de sal, tudo objetos de subido valor paramim. Não é todavia esta valiosa remessa queme ditou a imensa gratidão para com oGovernador de Benguela; foi a sua carta eforam as expressões dos seus sentimentos ameu respeito. Dizia-me o Governador, que não hesitasse emseguir a minha viagem, que contasse com todoo apoio que ele me podia dar como autoridade,e se acaso ordens superiores coibissem oGovernador, que podia contar com o homem,com Pereira de Mello. Dizia-me ele que nãotinha recebido de superior autoridade ordemalguma para não me fornecer os meios de que

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eu carecesse; mas que, se tal ordem viesse areceber, ele e os negociantes de Benguelaestavam prontos a enviar-me tudo o que eupedisse. Vinha depois a carta de Silva Porto, que nãomenos valiosa era. Dizia-me o velho sertanejo,que não partisse sem recursos. Querequisitasse para Benguela o que eu julgassenecessário, e que ele se encarregaria de mefazer chegar ao Bihé aquilo que eu pedisse.Terminava o honrado ancião por estaspalavras: “Estou velho, mas rijo e forte; se omeu amigo se vir num desses transes, vulgaresno sertão, em que a esperança se perde,sustente-se no ponto em que estiver e dê tudoao gentio para me fazer chegar às mãos umacarta sua. Não exite em o fazer, e tenhaesperança - porque no mais curto espaçopossível eu serei consigo, e comigo irão todosos recursos, todos os socorros. Sabe que eu nãouso fazer oferecimentos vãos; quando precisarescreva, e eu irei logo.” .

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A estas palavras não preciso eu de fazercomentários, e nem mesmo aqui lhe juntareiuma palavra de agradecimento, que seriaridícula. Aquela remessa que recebi de Benguela foi-metrazida por um irmão do Veríssimo, JoaquimGuilherme, que me disse deverem chegar nodia seguinte o resto das cargas da expedição, ecom elas a pólvora por que eu almejava. Comosempre que chegava um portador de Benguela,Joaquim Gonçalves trazia-me uma lembrançade Antonio Ferreira Marques. Eram semprealguns regalos para a pobre mesa do sertanejo. Chegou finalmente o 6 de maio, e começoulogo grande tarefa de encher cartuchos, porquede manhã recebi a pólvora. Durante 4 diasempreguei entre 36 e 40 homens no encher doscartuchos, que estavam prontos e só era deitar-lhes pólvora e dobrá-los. Ficou tudo pronto a 10 de maio, e no dia 11tinha eu reunidos todos os carregadores prontoa seguir no dia imediato. Fiz a distribuição dascargas, e dei as ordens para a partida.

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Na manhã de 12, quando esperava pôr-me acaminho, vejo que só tinha uns trinta homens,tendo fugido todos os outros. Soube então, quena tarde da véspera, tinha andado o pretoMuene-hombo de Silva Porto, com uns pretosdesconhecidos, dizendo aos Bihenos que eu osqueria levar para o mar e que aqueles quefossem comigo não voltariam mais, porque euos venderia. O preto Muene-hombo fugira comos Bihenos e dele não havia mais notícia. Esta nova deu-me um profundo golpe dedesânimo. Os carregadores, que eu a tantocusto tinha reunido, que eu com trabalhoimenso tinha contratado, a quem fora precisodesfazer uma a uma todas as apreensões quetinham contra a minha empresa, fugiam-me -convictos de que eu os ia encaminhar àperdição. Era um golpe terrível. Breve se espalharia no Bihé a notícia do fato;breve se arraigaria entre os pretos aquelaconvicção, mal destuída pelos meus reiteradosargumentos, e então seria impossível obter umsó carregador mais. Quase desanimei.

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Pela primeira vez, depois que em Lisboa tinhapensado em ser explorador, entrou no meuânimo o desalento. Eu sabia que lutar com umaconvicção de pretos era baldado esforço. Quemseria aquele que levou o preto Muene-hombo atrair-me? Quem seriam os pretos que com eleestiveram na libata no dia anterior? Qual seriaa mão oculta que moveu aquela intriga? Faziaa mim mesmo estas perguntas, as quais, nementão nem depois, encontrei resposta que fossealém de suspeita muito vaga. Perdi a esperançae fiquei possuído de um verdadeiro desalento. Meditei todo o dia, e veio o pensamento devoltar a Benguela, mas de repente lembrei-meda carta de Silva Porto recebida dias antes - elembrei-me da carta de Pereira de Mello emque me dizia “Avante!” Porque não aceitariaeu o oferecimento de Silva Porto? Se ele viesseao Bihé ele me obteria carregadores. Decidi escrever-lhe no dia seguinte, e esta ideiatranquilizou um pouco o meu ânimoalquebrado. Com a noite veio a reflexão e eu,escudado no último recurso - o pedir o auxílio

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do velho sertanejo - resolvi já forte com aqueleapoio, trabalhar, lutar ainda, antes de recorrera ele. Na madrugada de 13, fiz marchar o Veríssimoe alguns pretos de confiança do Silva Porto aprocurarem contratar nova gente. Voltarameles dando-me algumas esperanças - e entãocomeçou de novo o trabalho de organizar novacomitiva, trabalho mais difícil então do queantes. Aconselharam-me sair de Belmonte e iracampar no mato a alguma distância - porqueme diziam que uma comitiva em marchadespertava nos Bihenos vontade de se alistarnela. A 22 de maio já eu tinha podido obter algunscarregadores, ainda que poucos, e resolvi comos meus Quimbares, aqueles carregadores egente de ganho, seguir no dia 23 para umacampamento, ideia que levei a efeito indoestabelecer o campo nas matas do Cabir. Nessedia ao escurecer, apareceram uns 11carregadores trazidos por um preto Antonio,homem já velho, natural de Pungo Andongo,

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que estivera ao serviço de dois sertanejos denomeada, Luiz Albino, e GuilhermeGonçalves. Durante a noite houve muito frio, forçando-nosa passar a maior parte dela despertos junto àsfogueiras. O soveta de Cabir veio visitar-me nodia imediato, trazendo-me um porco depresente, que eu retribuí, ficando nós nosmelhores termos. Emprestou-me ele algunspilões e mandou mulheres para fazeremfarinha de milho.

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Indo agradecer-lhe à sua povoação, passeipelas plantações, onde andavam algumasmulheres cavando, completamente curvadas,empunhando as enxadas pelos seus dois cabos.De volta ao acampamento, encontrei um pretodos de Novo Redondo, que não tinha podidoseguir com Capello e Ivens, pelo seu estado desaúde. Não se sustinha em pé, e uma ardentefebre o devorava. Vi que o seu estado era melindroso e quepouco poderia viver; mas ele pediu-me que onão abandonasse, e eu agasalhei-o no campo,entregando-o aos cuidados do doutorChacaiombe. Veio visitar-me Tiberio José Coimbra, filho doCoimbra, Major do Bihé, o qual me obtevealguns carregadores de gente da sua povoação.Nesse dia apareceram mais uns 12carregadores com que eu já não contava, eeram capitaneados pelo preto Chaquiçonde,irmão da mãe de Veríssimo. Ia renascendo a esperança, e de novo se iaorganizando a nova comitiva. Resolvi partir no

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dia 27 e ir acampar junto da casa de José Alves,com esperança de completar ali o número degente que carecia. Obtive do soveta de Cabiralguns homens para me transportarem ascargas que não tinham carregador, e também 4homens e uma maca para o doente de NovoRedondo. Pude seguir no dia marcado,parando meia hora depois de ter saído napovoação de Cuionja, de Tiberio José Coimbra,onde me esperava um ótimo almoço, comótimo chá. Até havia guardanapos! Depois deduas horas que ali me demorei, segui avante,chegando à povoação de Caquenha, com 4horas de caminho. Ali parei para ver o velho DomingosChacahanga, dono da povoação. EsteChacahanga, antigo escravo de Silva Porto,fora o chefe da célebre expedição que SilvaPorto mandou do Bihé a Moçambique - e queconseguiu alcançar Cabo Delgado, na costa domar Índico. É ele o único dos homens daquelaexpedição que hoje vive. .

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O velho recebeu-me muito bem e deu-me umalentado cabrito. Conversei muito com ele, masapesar de todos os meus esforços foi-meimpossível colher dele dados com que pudessemarcar com alguma segurança o seu trajeto. Deque foi muito mais ao norte do que vemindicado nas cartas não me restou a menordúvida, porque há três pontos que ele precisaperfeitamente. Um é ter, no Zambeze, deixado ao sul o paísdos Machachas; outro ter atravessado oLuapula; e terceiro ter contornado pelo norte oLago Nyassa. Duas horas depois de ter deixado o velhoChacahanga, acampava nas matas docomandante, dois quilômetros a S.E. da libatade José Alves. Era já noite, e por isso guardei-me para ir no dia seguinte ver estepersonagem, que Cameron tornou conhecidode todo o mundo. Efetivamente, a 28 de maio estava eu empresença do tão falado sertanejo. José AntonioAlves é um preto (pur sang) de Pungo

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Andongo, que, como muitos dali e de Ambaca,sabe ler e escrever. No Bihé chamam-lhebranco, porque ali todo o preto que usa calças esapatos de liga e guarda-sol, é tratado assim.Em Benguela levam a condescendência achamarem-no mulato, um pouco escuro - masa verdade é que nas suas veias não há umagota de sangue Europeu, e que ele é preto nãosó na cor como na ascendência, e quiçá naalma. Veio para o Bihé em 1845, onde foi empregadode um sertanejo, e depois começou a negociarpor conta própria, abonado pela casaFerramenta de Benguela, que hoje faz avultadocomércio sob a firma J. Ferreira Gonçalves. José Alves é homem de 58 anos, já um poucogrisalho, de corpo franzino e sofrendo de umaafecção pulmonar. Vive como preto, tendotodos os costumes e crendices do gentioignaro. Quando cheguei a casa de José Alves,estava ele decidindo um mucano. Informado da questão, soube que umempregado mulato do José Alves seduzira uma

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das amantes deste - e como o rapaz nada tinhade seu, ele fez-lhe um mucano à família damãe, que possuía alguma coisa, exigindo, empaga do delito, um boi, ou uma cabecinha*,para ficar limpo o seu coração. Isto me disseele, passando a palma abranqueada da mãonegra por sobre a parte da caixa toráxica ondese alberga aquela vícera, nos que a tem paracoisa diferente de alimentar a vida física comos seus movimentos de sístole e diástole. Que aele servia para ser limpa de vez em quandocom um mucano, percebi eu. * Sacrifício humano. Depois de decidido o mucano, falei-lhe daminha viagem, que ele duvidou pudesse levara efeito com os pequenos recursos de quedispunha. Combinou ceder-me uma pouca demiçanga, e falando-lhe em carregadoresevadiu-se a responder-me, dizendo-me saberque Capello e Ivens estavam junto ao Cuanzalutando com falta de gente - mas que se eleslhe quisessem pagar bem não teria dificuldadeem os arranjar. Era o mesmo que dizer-me que

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lhe pagasse bem para os ter. Retirei-melastimando pela primeira vez a Cameron, porter sido forçado a tal companhia, por tantotempo. Nesta parte do Bihé a vegetação arbóreacomeça a ser mais vigorosa e junto ao rio Cuitoapresenta o terreno a mesma disposiçãotermítica que descrevi na margem do Cutatodos Ganguelas. Com uns carregadores que me chegaram nodia 29, enviados pelo irmão de Veríssimo,Joaquim Guilherme, tinha eu a gente suficientepara seguir viagem e dei as ordens nessesentido para o dia 30. Quem rege as coisasdeste mundo tinha decidido porém de outromodo. Na tarde desse dia, alguém espalhouentre os meus carregadores os mesmos boatosde Belmonte e vieram muitos deles declarar-me que voltavam a suas casas e não meseguiriam. Fiz esforços de eloquência para os convencer aseguirem-me, mas poucos me escutaram. Era asegunda vez que, em véspera de partida, no

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Bihé, ficava eu sem gente. Ali ficaram contudoalguns Bihenos, e decidido a prescindir detodas as comodidades, e a abandonar toda aalimentação que levava, com poucos maispoderia seguir. Era preciso arranjar esses poucos mais, e eunão desanimei na empresa. Um estranhoepisódio, acontecido no dia 30, veio coroar deresultado feliz a minha esperança. No Bihéandam a monte muitos degredados edesertores, escapados dos presídios da Costa.Um destes honrados cidadãos veio procurar-me e pronunciou uma estudada arenga que,pela profusa troca da primeira consoante peladécima sétima*, e repetido emprego de termossó usados na minha província, me denunciounele um conterrâneo. * A troca do “V” pelo “B”. Se a forma do discurso era picaresca, a suaessência mostrava que a alma do orador eralatrina de todas as podridões emdecomposição num clima tropical, trascalando

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fedores em cada frase evaporada daqueleespírito imundo. Depois de me aconselhar a dispor das armas emunições que tinha - numa empresa abjeta, aque ele me fazia a honra de se ligar - terminoupor me dizer positivamente que, ou eu oassociava a mim, fosse para o que fosse, ou ele,empregando manhas que tinha de jeito para ogentio, faria que todos me abandonassem, e meporia na impossibelidade de dar um passo. Terminada esta peroração, que o homemjulgou ser argumento triunfante nas minhasdecisões, exigiu imediata resposta. Eu dei-lhalogo. Chamei os meus Quimbares e mandeiamarrar o sujeito, a quem mandei aplicar logocinquenta açoites, para fazermos maiorconhecimento - porque, se eu o conheci àsprimeiras palavras, ele não me conhecia ainda. Depois de castigado, fiz-lhe um pequenodiscurso, em que lhe disse que o constituíameu prisioneiro, durante o tempo que estivesseem terras do Bihé, com ração de comida e dechicote todos os dias.

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Reuni toda a minha gente e mostrei-lhes que aalma daquele branco era mais negra do que apele deles ouvintes. A nova da minha justiçaespalhou-se nas povoações circunvizinhas edeu-me crédito entre os pretos, que tinham emmá conta o meu prisioneiro. No dia seguinte, alguns pombeiros do lugarvieram oferecer-me carregadores, e que mostraziam dentro de dois dias. Todos os diastinha promessas, mas os carregadores nãochegavam - e a 5 de junho, já no maiordesespero, decidi abandonar muitas cargas eseguir avante. Reuni os meus pombeiros e comuniquei-lhes aminha decisão. Tivemos um longo conselho,em que eu sustentei a minha resolução, dandoordem para que os carregadores meacompanhassem ao rio Cuito com as cargasque eu tinha decidido abandonar, para aslançar ao rio. Já se ia executar esta deliberação, quando odoutor Chacaiombe tomou a palavra e mepediu para adiar de alguns dias a execução

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dela, dizendo-me que obtivesse nas povoaçõesvizinhas gente de ganho que transportassetudo até ao Cuanza - que ele ia tentar umesforço junto de um soba seu amigo, e me iriaencontrar no Cuanza. Discutido este alvitre, decidi, partir no dia 6, edemorar-me no Cuanza até 14; por isso,concedi 8 dias a Chacaiombe, declarando-lhepositivamente, que não esperaria um só diamais. Os meus pombeiros mostravam-me a maiordedicação, e depois de uma proposta deMiguel (o caçador de elefantes), decidirampegar também eles em cargas, ainda que issoseja não só contra os usos, mas tambéminconveniente em marcha, onde eles têm o seuserviço especial a desempenhar. Obtida a gente de ganho, preparei tudo paraseguir no dia imediato. Nesse dia morreu ohomem de Novo Redondo que eu tinharecolhido no Cabir. Levantei campo às 9 horasdo dia 6, tendo muita gente de ganho à razãode 1 pano por dia. Segui a Leste, e duas horas

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depois acampei junto da povoação deCassamba. Fica esta povoação no meio degrande e espessa floresta, onde fui caçar,encontrando apenas algumas pintadas* quematei. * Galinha d’angola. Quando a 7 de junho levantei campo, saiu-meao encontro o soveta de Cassamba, que mevinha cumprimentar e trazer um boi depresente. Desculpei-me de não lhe dar imediatamenteum presente, por estarem os carregadores emmarcha e pedi-lhe, que mandasse gente sua aomeu novo acampamento, de onde lhe enviariauma lembrança. Depois de três horas de marcha e de ter nasduas últimas atravessado grandes planíciespantanosas, alcancei a margem esquerda do rioCuqueima, que ali corre ao norte, tendo 80metros de largo por três de fundo, com umavelocidade de 12 metros por minuto. Armei o meu bote Macintosh e nele se efetuoua passagem da gente e cargas com grande

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morosidade, porque a pequena embarcaçãonão tinha capacidade para mais de cincopessoas, ainda que o poder de flutuação da suacaixa de ar era muito superior. Terminada apassagem, e achando-me na margem direitaem terreno apaulado e nu de arvoredo, mandeipedir ao soba do Gando para me dar algumascubatas onde eu pudesse pernoitar com aminha gente. Ele veio ao meu encontro, dizendo-me quepunha à minha disposição o lombe da suapovoação, que aceitei e onde me fuiestabelecer. Chegaram uns pretos de mando dosoveta de Cassamba, a reclamar o presente queeu lhe havia prometido, e para se fazeremreconhecer como vindo da sua parte traziam aazagaia do soveta, que de manhã eu lhe vira namão. É costume entre estes povos, onde aignorância da leitura e escrita existe, omandarem um objeto conhecido pelo portadorde uma mensagem, para que não se duvideque eles vão da parte de quem os envia.Mandei o prometido presente.

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O soba Iumbi, do Gando, conversou muitocomigo - e era para ele motivo de espanto tudoquanto eu trazia. Deu-me um magnífico boi,ficando muito satisfeito com uma peça dealgodão riscado e algumas cargas de pólvoraque lhe dei. No dia imediato levantei campologo de manhã, e duas horas depois, fuiacampar 1 quilômetro a Oeste da povoação deMuzinda. Antes de partir mandei soltar e pôr na outramargem o meu prisioneiro branco, jáimpossibilitado de me fazer mal - porque,passando o Cuqueima, eu estava fora dasterras do Bihé.

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Vieram ao meu acampamento muitas mulheresda povoação de Muzinda, algumas das quaistraziam a cara pintada de verde, sendo doisriscos transversais sobre a testa, de orelha aorelha, e outros dois, descendo desses,cruzando-se entre os olhos, passando aos ladosdo nariz, ligados por um sobre o labiosuperior. Os penteados dessas Ganguelas sãooriginalíssimos, e alguns, a certa distância,arremedam um chapéu de dama europeia. Todos os homens cortam em triângulo os doisincisivos da frente na maxila superior,formando uma abertura triangular com ovértice apoiado na gengiva. Esta operação éfeita com uma faca em que vão batendopequenas pancadas. Deu-me um indígena uma cana sacarina de 2metros e 30 centímetros de comprido por 50milímetros de diâmetro, afirmando-me que aprodução daquela rica gramínea é abundanteali. Saiu de Muzinda uma pequena comitiva que iapara além do Cuanza comprar cera a troco de

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peixe seco do Cuqueima. Estes indígenasandam quase nus, tendo por único vestuárioduas pequenas peles, que pendem de umestreito cinto de couro. As mulheres, essasandam ainda um pouco menos cobertas! O soveta de Muzinda veio visitar-me, e trouxe-me um boi, que eu retribuí com presente igualao que dei ao soba Iumbi do Gando. A 9 de junho, fui acampar na margemesquerda do rio Cuanza, a E.N.E. da povoaçãode Liuíca. Naquele ponto o Cuanza é maismodesto do que o Cuqueima, porque tem 50metros de largo por 2 de fundo, com umacorrente de 15 metros por minuto. O seu leito é de areia branca e fina, e notável atransparência das suas águas. O rio serpeianuma vasta planície de dois a três quilômetrosde largo, que encontra de um e outro lado apequena elevação de vertentes doces, cobertasdo arvoredo. Na planície vegetam gramíneasaltíssimas, tão bastas que difícil é romper porentre elas. O terreno da planície é mais oumenos pantanoso.

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Como eu devia esperar ali 5 dias pelo cirurgiãoChacaiombe, tinha, logo que cheguei,mandado construir um acampamento maisvasto do que aqueles que construía só parauma noite. Veio ali visitar-me o soba de Quipembe, aquem obedecem os sovetas de entre Cuqueimae Cuanza, e que é ele mesmo tributário do sobado Bihé, a quem só obedece quando lhe fazconta; porque não teme os seus ataques, sendo-lhe fácil defender a linha do Cuqueima - esendo a maior parte, senão todos, os barcosque navegam ali, das povoações Ganguelas. Trouxe-me um carneiro de presente,desculpando-se de me não dar um boi, por sera sua povoação muito distante. Recebi tambéma visita do soveta de Liuíca, que me ofereceuum boi. Este soveta, homem de boa feição, frequentoumuito o meu campo durante a minhapermanência na sua vizinhança. Um dia queele me tinha visto atirar ao alvo, e queadmirava a justeza dos tiros, passou o seu

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grande rebanho bovino por ali. Eu propus-lhedar-me ele um boi, se o meu moleque Pepéca omatasse com um tiro. Ele olhou para a criançae aceitou. O Pepéca, sofrível atirador ensinado por mim,tomou a carabina e fez fôgo a um boi que iamais separado dos outros - e que caiufulminado. Ouve espanto geral da parte dosGanguelas e o soveta disse-me que mandassetomar conta do boi e lhe desse a pele - e umbocado de carne para ele comer, o que eu fizlogo. Entre Cuqueima e Cuanza os Ganguelas, quesão de diferente raça dos outros povosdesignados pelo mesmo nome, chamam-seLuimbas junto ao Cuqueima e Loenas junto aoCuanza. No dia 12, aconteceu-me uma aventuraextraordinária, que não posso deixar de narraraqui. Andava eu fora, quando alguns dos meuspretos vieram encontrar-me com um mulato,desconhecido para mim, que me disseram serchefe de uma comitiva que me vinha procurar

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para me pedir licença de ir comigo até àsmargens do rio Cuito - e deixá-los acampar nosmeus acampamentos, para segurança deles.Consenti no pedido, ainda que não de bomgrado. Nessa noite, demorei-me a conversar com osmeus pombeiros até tarde e, sentados à portada minha barraca, discursávamos sobre asprobabilidades que haveria de ser bemsucedido o meu cirurgião Chacaiombe na suaempresa, quando eu senti para uma parte docampo um tinido singular. Era como o bater demartelo em safra*. Tive curiosidade de saber oque era aquilo, e mandei lá o meu Augusto. * Bigorna. Voltou ele a dizer-me, que na parte do campoocupada pelas barracas do pombeiro Bihenoque me pedira agasalho, se acorrentava umaleva de escravos chegados nessa noite do Bihé.Nas barracas dos meus tudo dormia, excetotrês ou quatro pombeiros que estavam junto demim. Contive a cólera que me dominou porum momento, e mandei chamar o meu

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hóspede. Ele compareceu logo, e veio sentar-sejunto da fogueira defronte de mim. Perguntei-lhe o que era aquele bater de ferro.Respondendo-me ele, que era o acorrentarumas cabecinhas que levava para vender nosertão. No meu acampamento! Onde tremulava abandeira portuguesa, acorrentava-se uma levade escravos! Continuei a fazer um grandeesforço para me conter e disse ao pombeiroque fosse soltar todos aqueles desgraçados emos trouxesse livres. Ele negou-se a fazê-lo, e respondeu-me comuma gargalhada de riso alvar. Perdi então apaciência, e a raiva contida a custotransbordou violenta. Cego de furor, lancei-me por sobre a fogueiraàquele boçal mulato - e já a minha faca o iaferir de morte quando vi que algumasespingardas dos meus Quimbares lheameaçavam a cabeça, e por um dessesreviramentos tão vulgares como rápidos nomeu espírito só pensei em salvar-lhe a vida.

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Ao meu grito de raiva, e ao barulho da luta,tinha-se levantado toda a minha gente, eameaçavam exterminar a comitiva Bihenainteira. Eu, que conheço a ferocidade dosnegros logo que se sentem fortes, temi pelavida dos inocentes que podiam ser imolados. Era uma balbúrdia em que ninguém seentendia, e à exceção de cinco dos meuspombeiros que assistiram ao começo da cena,todos ignoravam o que era aquilo - e sóproferiam palavras de morte. Consegui dominar o tumulto e fazer-me ouvir.Mandei o meu Augusto soltar os escravos, etrazê-los à minha presença, assim como todasas correntes e prisões que encontrassem nasbarracas onde eles estavam. Mandei lançar aorio Cuanza as prisões de ferro, reservando sóaquelas com que prendi os pretos, guardas daleva. Declarei aos escravos, que podiam ir-se, sequisessem, porque teria os seus guardas presoso tempo suficiente para os não poderemalcançar. Desapareceram todos, exceto uma

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pequena, que quis ficar comigo por não saberonde ir - e só na ocasião de deixar o meuacampamento soltei e dei liberdade aos chefese guardas daquele rebanho de escravos. Passou-se o dia 13 sem haver notícias do meucirurgião e na noite desse dia distribuí eu ascargas que pude, umas 87, separando aindaumas 12 que me custava a abandonar, e pondoem pilha aquelas que estavamirremediavelmente condenadas. Declaro que édifícil tal escolha. Creio que um dos piores problemas a resolverpor um explorador é escolher entre as cargas,indispensáveis todas, aquela que há dedispensar. Se não é mais difícil, é pelo menostanto como achar o modo de determinar umaboa longitude. Ali abandonei tudo o que de comodidades eutinha, toda a alimentação que para mim levava,e parte da que levava para a minha gente, ealgumas cargas de miçanga que os meuscompanheiros me haviam cedido - e que,comprada em Luanda, era de valor

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problemático nos sertões em que me iainternar. Se, no dia 14 de manhã, não tivesse novas doChacaiombe, as cargas condenadas seriamdestuídas - queimando umas e lançando outrasao Cuanza. “Para quê?” - me perguntariam osmeus leitores. Eu lhes respondo. O chefe de uma comitiva emmarcha nos sertões da África, onde tiver deempregar carregadores, tem de inutilizar etornar inaproveitáveis todos os objetos que forforçado a abandonar, e isto por duas razões -uma que diz respeito à sua própria gente, eoutra ao gentio dos países que atravessa. Se consentiu que os seus próprios carregadoresaproveitassem alguma coisa da cargaabandonada, todos os dias terá carregadoresdoentes, que o obrigarão a abandonar cargas,para dali retirarem objetos em proveito próprio- organizando assim um industrioso roubopermanente. Por outro lado, sabendo o gentio da terra quelhe deixam cargas por falta de carregadores,

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não deixará de ministrar às comitivas futuras,na muita capata que lhe oferecem, um tóxicoqualquer, que, se não matar, os torne doentes -obrigando assim o chefe a abandonar cargasem seu favor, o que não fazem, sabendo quenada aproveitariam, porque tudo o que houverde ser abandonado é inutilizado. Foi isto liçãode Silva Porto, de que sempre fiz uso. No dia 14 de manhã, não tendo notícia doChacaiombe inutilizei 61 cargas!

Rápido Golpe de Vista Retrospectivo* *Obervação do editor: Tabelas de declinação magnética, de altitudesmedidas e de dados pluviométricos foramdescartadas desta edição, eminentemente voltadapara aparelhos leitores digitais que possuem telas deseis polegadas (ou pouco mais) e não proporcionamboa legibilidade (esses gráficos não foram feitospensando num ebook, evitentemente). Além disto, trata-se de material que édesinteressante para a grande maiorias dos leitores. . .

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O mapa junto mostra o meu caminho deBenguela ao Bihé. Procurei designar nele tudoo que em viagem de exploração se pôde colherde dados geográficos e topográficos. Muitos dos pontos marcados foramdeterminados astronomicamente, sendo osintermediários achados grosseiramente pelosrumos da agulha e projeção das distânciaspercorridas, distâncias avaliadas pelospodômetros e pelo tempo gasto a percorrê-las. .

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As posições do Benguela, Dombe, Quilengues,Ngola e Caconda, que empreguei na carta,foram determinadas por Capello e Ivens - ecomo eu apenas tinha os resultados doscálculos, aí os designo tais como mos deu oIvens, sem as observações iniciais. De Cacondaao rio Cuanza as posições astronomicamentedeterminadas por mim vão precedidas dasobservações iniciais. Tendo-me separado dos meus companheirosem Caconda, prossegui nos trabalhos quetínhamos começado - não podendo fazerobservações de inclinômetro e força magnéticaporque os únicos instrumentos que para issolevávamos ficaram em poder de Capello.Começarei a expor os meus trabalhos peladeterminação das coordenadas geográficas deCaconda à margem esquerda do Cuanza, ondepara a minha narrativa no precedente capítulo.No seguinte quadro procurei compendiar osnecessários dados para se poderem verificar osresultados que designo. .

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Todas estas observações calculadas em Áfricaforam recalculadas em Londres pelo 1o tenentecalculador da Marinha Inglesa, SelwynSugden. Quadro das observações astronômicas feitaspelo Major Serpa Pinto entre Caconda e o rioCuanza. É muito notável que a primeiralongitude que determinei em Belmonte, pelocronômetro, é muito próximo da verdadeiraobtida pelo trânsito de Mercúrio. Estalongitude muito pouco difere também daobtida pelo eclipse do 1o satélite de Júpiter a 23de abril. Não incluí neste quadro as inúmerasobservações feitas para estudar as marchas doscronômetros, que publicarei em separado umdia. Nos estados dos cronômetros a grandediferença que se nota entre alguns provêm dopertencerem a diferentes fabricantes. Como se vê, o instrumento empregado pormim foi o sextante com o horizonte artificial demercúrio, que outro não tinha, tendo ficado em

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poder dos meus companheiros o Abba, únicoteodolito universal que possuíamos. Os meus sextantes eram: um de Casela, deLondres, contando 5” e outro de Lorieux, deParis, contando 30”. As minhas bússolasazimutais eram fabricadas em Berlim e tinhampertencido ao infeliz Barão de Barth. Os meus cronômetros eram de Dent, deLondres, sendo dois de bolso, e um que, depoisde Benguela me enviaram ao Bihé, de marinhae também de Dent. Este último era mau, masos primeiros excelentes - sobretudo o que eudesigno com a letra S, nos cálculos. Dasaltitudes muitas são determinadas pelohipsômetro e outras pelo aneróide - cotejadocom o hipsômetro. Essas altitudes vãomarcadas na carta em metros. A carta do país do Bihé, muito grosseira eincompleta decerto, foi levantada à bússola nasminhas excursões venatórias - mas, aindaassim, possui a suficiente exatidão para sejulgar do país, e prouvera a Deus que as cartasde pontos muito mais próximos da costa em

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que dominamos estivessem tão próximas daverdade como ela. Ponho ponto aqui nos detalhes das minhascartas, para falar rapidamente do país que elasrepresentam. De Benguela ao Dombe, como sevê, costeei o mar em terreno calcáreo,abundante de minérios diversos. As águas faltam ali na estação seca, e apenas ovale do Dombe Grande tem a suficiente paraser enormemente produtivo. A vegetação, semser pobre, não tem, todavia, a opulênciapeculiar aos países intertropicais. EntreBenguela e o Dombe apenas se encontra águapotável num pequeno charco na Quipupa. O país é abundante de caça e encontra-se nelegrande variedade de antílopes, sendo os maisvulgares o strepsiceros kudu, o cephalophusmergens, o cervicapra bohor, e o oreas cana. Nasrochas de carbonato de cal que formam osistema orográfico do Dombe Grande,abundam os hyrax, e na planície, entre asgrandes e pomposas plantações de mandioca,vivem muitos hystrix, maiores um pouco do

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que os da Europa, e que causam ali grandeestrago nas terras cultivadas. O vale do DombeGrande é, decerto, a melhor porção de terrenoda província de Angola. As suas condições desalubridade não são más e o solo é de grandefertilidade. Um porto de mar, o Cuio, distaapenas alguns quilômetros do maior centro deprodução. As montanhas que enquadram ovale, são cheias de minério - e já tem estado emexploração, sempre em pequena escala, porfalta de capitais. Há ali enxofre e cobre. Apopulação indígena é de boa índole etrabalhadora, tanto quanto o pode ser umpreto abandonado a si mesmo. Entre o Dombe e Quilengues o país é deserto.Pelo caminho que segui há falta de água, e avegetação, pobre ao princípio, toma luxurianteesplendor ao passo que nos aproximamos deQuilengues. Seguindo o curso do rio Coporolo não há faltade água - e ouvi dizer, que se encontra sempreuma vegetação rica. Contudo, o país mesmopor ali não é habitado.

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Ao sair do Dombe o terreno eleva-sebruscamente a 550 metros e um sistema demontanhas que corre N.S. forma pequenosvales que se vão elevando gradualmente atéatingir 900 metros em Quilengues. No rioCanga começa o terreno granítico, e com eleuma vegetação mais pomposa. Todos os riosdesignados no mapa, até Quilengues, sãoapenas torrentes na estação chuvosa - mas emmuitos é possível encontrar água na estiagem,cavando poços nos seus leitos arenosos. Opróprio Coporolo está sujeito a esta condiçãode pobreza. Quilengues é um extenso e fértil vale, emcondições iguais ao do Dombe; tendo porenquanto muito menos valor, por falta decomunicações com a costa. A sua população é densa e nas suas campinaspastam milhares de cabeças de gado vacum deexcelente raça. Os Quilengues são fortes eaguerridos - e nos ataques que dirigem contraos Mundombes são sempre vencedores, o queos não impede de serem vencidos pelos povos

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do Nano que descem ali a roubar gados egente. Estes povos de Quilengues, como os doDombe, são avassalados a El-Rei de Portugal,mas não são tão submissos como osMundombes. Tem decerto um futuro o país deQuilengues - quando fáceis comunicações oligarem à costa, à Huila e a Caconda, e quandofor administrado como o deve ser. De Quilengues a Caconda o caminho é porCaluqueime, país muito povoado; mas eusegui outro, por motivos que cito na minhanarrativa. Ao sair de Quilengues para o S.E.encontra-se a alta serra de Quilengues, que seeleva rapidamente a 1750 metros, e que eupassei na parte chamada Monte Quissécua. Alicomeça o grande planalto da África Austral, edali ao Bihé a planície enorme conserva aquelaaltitude, tendo apenas ligeiras depressões nosleitos dos rios, e um ou outro pequeno sistemade montanhas isoladas. Deste planalto já correm rios permanentes,sendo o primeiro que encontrei nestas

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condições afluente do Cunene. A vegetaçãoarbórea no planalto não é já tão forte como emQuilengues, mas a herbácea é mais rica, se épossível sê-lo. O terreno continua granítico, ecomeça a aparecer nele maior abundância determites. As únicas povoações que seencontram no caminho que segui são Ngola eCatonga, de que já falei detidamente. Em Caconda o país é um pouco maisacidentado, devendo ser não menos rico eprodutivo do que o de Quilengues. É cortadode rios permanentes, que o regam em todas asdireções, afluindo ao Catapi, afluente doCunene. A febre miasmática é endêmica em Caconda,como em Quilengues e como na costa - masapresenta ali um caráter mais benigno e rarasvezes faz vítimas. Eu julgo Quilengues nasmesmas condições de salubridade de Caconda. As condições climatológicas do país deCaconda é que já diferem essencialmente dasda costa, e mesmo das de Quilengues. Apenas13° e 44’ distante do Equador, o clima, que

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deveria ser ardente, é temperado pela altitudeenorme a que se encontra - mas está por issomesmo sujeito às bruscas mudanças que se dãoentre o dia e a noite em todo o planalto. Há aliuma luta constante entre a altitude e a latitude,sendo que esta impera de dia quando um sol aprumo dardeja raios de fogo, e aquela de noitequando uma altura de 1700 metros nos fazviver numa atmosfera tão rarefeita. Lembra-me aqui que o Anchieta me dizia, quese viveria otimamente em Caconda, se umamáquina em contato com um termômetro nosfosse deitando cobertores na cama à medidaque o termômetro descesse durante o sono. Esta grande desigualdade de temperaturaentre o dia o a noite dá-se quando o sol temdeclinação Norte, porque durante o tempo emque ele anda ao sul do Equador é ela muitomenor. Sempre ouvi dizer que em Caconda produzemas frutas da Europa, mas infelizmente não o seide ciência própria - porque nenhumas aliencontrei. Todavia, creio que se poderão ali

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aclimatar. A batata é muito boa e produzmuito, não só ali como em todo o planalto -mas é tão difícil o seu transporte para Benguelaque a batata que se consome ali vem de Lisboa.Há muito boa hortaliça e legumes da Europa,que se dão bem em todo o planalto. Perto da fortaleza, a população é rara, mas auma certa distância está condensada, sendogovernada por chefes independentes. DeCaconda ao Bihé o país é muito populoso, e, semenos pastores do que os povos até Caconda,são um pouco mais agricultores. Nos países doNano, Huambo, Sambo e Moma, os povos sãomais bruscos, mais aguerridos eindependentes. Os terrenos, como se vê no mapa, são cortadosde rios que dividem as suas águas para trêsgrandes artérias, o Cunene, o Cubango e oCuanza. Ao N. das terras do Sambo, o planalto formaum enorme descampado a que chamam nopaís a Enhana de Ambamba, terreno alagadiçoonde nascem cinco rios importantes, dois dos

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quais vão ao Norte e três ao Sul. Dos que vãoao Norte, um é o Quebe, que vai entrar no marpor 10° 50’ de latitude S., junto às Três Pontas,entre Novo Redondo e Benguela Velha. Este rio na parte inferior do seu curso toma onome de Cuvo. O outro é o Cutato dasMongoias, que corre ao N. a afluir ao Cuanza.Os três que correm ao S. são o Cunene, oCubango e o Cutato dos Ganguelas, que se uneao Cubango. O maior sistema de montanhas que encontrei éuma serra que corre de N.E. a S.O. ao N. dopaís do Huambo, em cujas vertentes nascem oCalae e o Cuçuce, que se unem para afluir aoCunene. Uma grosseira observação doaneróide indicou-me o seu cume a mais de2500 metros acima do nível do mar. Fazendo exceção à minha regra de não batizarem África rios ou montes, dei a esta serra onome de Andrade Corvo, por ser designada nopaís apenas por serra do Huambo. Não encontrei entre os indígenas vestígios deter o país outro minério além do ferro, o que

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não quer dizer que o não haja. O terreno éainda granítico, e o solo pode dizer-se que emmuitos pontos é de formação animal, pois queé construído pelas termites. Além da disposição especial que encontrei noterreno termítico das margens do Cutato dosGanguelas, encontram-se 4 diferentesconstruções termíticas, que suponhopertencerem a 4 diferentes espécies.

Há abundância de caça, sobretudo nas faldasda serra de Andrade Corvo, entre o Calae e oCuçuce, que nunca vi tanta em África, a nãoser no Zambeze. .

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Além dos antílopes que já citei falando doDombe, abundam ali o hippotragus equinus, ocatoblepas taurina, e o bubalus caffer. As florestas são em grande parte formadas deleguminosas, sobressaindo um sem-número deespécies da Acácia. Há muito poucas plantastrepadeiras. Passamos a linha divisória daságuas entre o Cubango e o Cuanza e entramosno país do Bihé, decerto o mais importante doSudoeste da África. O país do Bihé, de cujos povos falodetidamente no capítulo anterior, é cortado pordois rios importantes, ainda que inavegáveis: oCuqueima e o Cuito. Inúmeros riachos sulcamem todas as direções o terreno e vão afluiràquelas artérias principais. O clima é igual aode Caconda e subsistem ali as mesmascondições atmosféricas. O terreno é granítico e de uma admirável forçaprodutiva. As pastagens são ótimas para todosos gados. É pobre de caça; mas, emcompensação, é desinfestado de feras. Nãocreio muito que seja rico em produtos

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mineralógicos, porque a sua densa populaçãonão tem encontrado vestígios de minérios ricos- e eu tenho visto em África que os primeiros aencontrarem o ouro, o cobre, o chumbo e oferro são os indígenas. No Bihé o que é verdadeiramente rico é oterreno - e não sei de país africano que maispudesse prosperar pela agricultura e comércio.A raça europeia vive ali muito bem, e oproduto do cruzamento dela com as raças dopaís é físicamente admirável. Durante a minha permanência em Belmonte,fiz um estudo detido das condiçõesclimatológicas, e, sobretudo no primeiro mês,em que o pertinaz reumatismo contraído emviagem, me impediu de sair, observeiregularmente o barômetro e o termômetro de 3em 3 horas durante o dia. Adiante apresento um quadro dessasobservações, durante trinta dias, fazendo notarque a igualdade de temperatura que se notadurante o dia é devida à estação do ano em

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que foram feitas as observações, estação quecorresponde ao nosso outono. As chuvas têm duas épocas, com umainterrupção de estiagem que se dá emdezembro e janeiro. As primeiras chuvas caemem meado de outubro e duram até princípio dedezembro, sendo mais moderadas do que assegundas - que caem do fim de janeiro aoprincípio de março. Os ventos reinantes são dos quadrantes deleste, sendo muitas vezes persistente o ventoleste bastante forte. Isto na estiagem, porque naestação chuvosa as maiores tormentas queobservei vinham do oes-sudoeste e dosquadrantes do sul. As chuvas vêm sempre,sobretudo as de fevereiro, envoltas comdescargas elétricas e caem no meio de terríveistrovoadas. O seguinte quadro apresenta as minhasobservações desde o dia 25 de março ao dia 23de abril de 1878. Por esta série de observações se vê quão amenoé o clima do Bihé nesta época do ano.

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É muito notável a marcha diurna dobarômetro, que ali é inalterável em presençadas mudanças bruscas da atmosfera. Um boletim meteorológico feito a 0h:40m deGreenwich, ou 1h:50m do lugar, completa oestudo atmosférico deste país naquela época.Este boletim de que agora dou conta em trintadias, foi continuado durante toda a viagem,tendo apenas as interrupções provenientes dedoenças ou de estorvos ocasionais. O terreno de Belmonte para Leste desce umpouco até ao Cuqueima, na parte em que esterio corre de S. ao N. Na margem direita doCuqueima eleva-se um pouco para descer aovale do Cuanza. Na parte leste do paísreaparece a vegetação arbórea mais rica, e hápequenas mas densas florestas. Em todo ovasto território compreendido entre o Bihé eBenguela não existe a tsé-tsé, esse flagelo demuitos pontos da África Austral, que, matandoo cavalo e o boi, priva o homem de dois dosseus maiores auxiliares na vida prática. .

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Uma espécie de epizootia*, que no paíschamam cahonha, ataca o gado bovino elanígero, não fazendo ainda assim os estragosque na Europa e outras partes da Áfricaproduz a epizootia. * Doença, contagiosa ou não, que ataca o gado emmassa. Não existe ali a moléstia que mata tantoscavalos no Transvaal e no Calaari, a que osingleses chamam horse-sickness. Em toda aparte o gado suíno prospera e desenvolve-secomo na Europa, sendo fácil a conservação dacarne, o que já não acontece perto da costa. O país até ao Cuanza, e ainda para além, temgrande carência de sal - sendo todo o que ali segasta proveniente da costa. Não há minas desal gema e as águas, mesmo as das lagoas, sãopotáveis. Neste sucinto resumo, procurei compendiar oresultado das minhas observações, dando umanotícia geral do país, e terminarei com umcurto juízo meu acerca dele. Colocado em uma posição geográfica muitodiferente da do Transvaal, o país

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compreendido entre a costa e o Bihé aproxima-se dele pelo clima e possui um solo mais fértil.A comparação entre a mesma plantavegetando nos dois países indica isso. Tem uma população indígena muito maiscondensada do que a do Transvaal e muitomais agricultora. Não é menos abundante emboas pastagens, e é mais rico em florestas. O Transvaal possui uma grande riquezamineralógica, que escasseia ali - mas eu creioque estará reservado a este país um futuromais próspero do que àquele, porque oTransvaal está isolado do resto da África pelosdesertos áridos e pela mosca tsé-tsé, enquantoestes terrenos estão em fácil comunicação comum interior quiçá mais rico. . . . . . . .

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Capítulo VII Entre os Ganguelas Passagem do Cuanza—Os Quimbandes—O sobaMavanda—Os rios Varea e Onda—Fetusarboreos—Atribulações—Escravos—O rio Cuito—Os Luchazes—Emigração de Quibocos—Cambuta—O Cuando—Leopardos—OsAmbuelas—O soba Moem-Cainda—Descida do RioCubangui—Os Quichobos—Peripécias—Partopara o Cuchibi. No dia 14 de junho, como eu tinha decidido,levantei campo, e às 10 horas comecei apassagem do Cuanza, que durou duas horas. . . . . . . . . . .

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Prestou-me valiosos serviços o meu barco deborracha da casa Macintosh de Londres; masainda assim, o soba de Liuíca emprestou-mequatro canoas, que muito me auxiliaram. Nãohouve o menor acidente durante a passagem, eao meio-dia seguia a leste internando-me nopaís dos Quimbandes. Tendo passado juntodas povoações de Muzeu e Caiaio, fui acamparpelas 2 horas a E.S.E. da povoação deMavanda, junto da nascente do riachoMutango, que corre a N.O. para o Cuanza. As

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povoações ali não são já tão solidamentefortificadas como as de além Cuanza. OsQuimbandes formam uma confederação,sendo o país dividido em pequenos estadosque se unem sempre para proteção mútua.Todas as numerosas povoações em torno domeu campo obedecem ao soba Mavanda, que étributário do soba do Cuio ou Mucuzo, namesma margem do Cuanza um pouco ao N. A coisa que primeiro me feriu a atenção entreos Quimbandes, foi o penteado das mulheres,que são os mais extraordinários que tenhovisto. Algumas delas entrançam o cabelo deforma que, depois de ornado com búzio(caurim), assemelha um chapéu de damaeuropeia. . . . . . . .

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Outras dão-lhe tal forma, que parecem trazerna cabeça um capacete romano. O búzio(caurim) é distribuído ou acumulado comprofusão nas cabeças feminis, e o coral brancoou encarnado aparece ainda - mas muito maisraramente do que entre os povos de Oeste-Cuanza. O cabelo, nestes penteados estupendos, é fixocom um cosmético nauseabundo, massaformada de tacula* em pó e óleo de rícino, quelhe dá uma cor avermelhada. O óleo de rícino épreparado em grande quantidade entre estes

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povos. Depois de extraírem as sementes doricinus communis, dão-lhe uma ligeiratorrefação e reduzem-nas a pó. Este póconservado por muitas horas em águaebuliente, fornece o óleo, que a frio é separadogrosseiramente da água, e guardado emcabaças pequenas. * árvore que tem o lenho acentuadamente vermelho.

Estes povos não empregam o rícino comopurgante. Notei logo, que o tipo feminino entreos Quimbandes se aproxima um pouco do tipocaucásio, e vi algumas mulheres que sepoderiam chamar bonitas se não fossem pretas. .

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Logo que cheguei, mandei um pequenopresente ao soba Mavanda, que me agradeceumuito, mandando contudo pedir-me umacamisa. Igual pedido me tem sido já feito poroutros, o que mostra a tendência que têm parase vestirem. Os homens Quimbandes cobrem a sua nudezcom duas peles de pequenos antílopes quecaem adiante e atrás de um largo cinto decouro de boi. Só os sobas usam peles deleopardo. As mulheres andam quase nuas - ealgum farrapo de pano, ou de liconte*,substitui a folha de vinha clássica. * Tecido grosseiro feito de fibra vegetal. No dia seguinte, logo de manhã, vieram unsportadores do soba dar-me parte de que agente que eu esperava chegara de noite à outramargem do Cuanza, onde estavam acampados. Não dei o menor crédito à notícia, porque, jáconhecedor das manhas do gentio, sabia queeles têm costume de indagar o que maisdesejamos, para nos virem burlar com umanotícia agradável e pedir prêmio. Contudo,

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disse ao indígena que me certificou tê-los vistoque fosse a eles e pedisse ao DoutorChacaiombe que me mandasse um sinal seu,para ficar certo de que vinha a caminho. Ainda de manhã, o soba Mavanda mandou-meuns enviados dizendo que saía naquele dia acombater uma povoação vizinha onde um seusúdito se revoltara contra o seu poder - e aomesmo tempo pedindo-me que o auxiliassenaquela campanha. Recusei dar-lhe auxílio,mas procurei fazê-lo de modo a não meindispor com o soba, o que consegui com boasrazões. Seria meio-dia, quando passou junto aomeu campo o exército de Mavanda. À frente ia, em pau muito alto, uma bandeiratricolor como a francesa - mas com as coresinvertidas. Depois seguiam-se dois homenslevando a pau e corda uma enorme caixa depólvora, provavelmente vazia. Seguia-se osoba rodeado dos seus grandes, e após esteestado maior o exército a um de fundo. Seriamuns 600 homens armados de arcos e flechas,levando ao todo 8 espingardas. Alguns passos

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à frente da bandeira, dois pretos tocavam ostambores de guerra, fazendo um barulhoinfernal. Ao anoitecer voltou o exército sem tercombatido; porque o inimigo rendeu-se àdiscrição. Logo que passaram o meu campo,principiaram a fazer exercício, simulando umataque à povoação do régulo. Estenderam-seem linha de atiradores, tomando a bandeira ocentro da linha e, sempre atrás dela, a caixa dapólvora e o soba. Esta grande linha singela, porque cada homemestava isolado, começou a envolver apovoação, já avançando, já recuando, sempreem acelerado. A uma voz do soba, precipitaram-se sobre apovoação dando saltos enormes e fazendo todaa espécie de momices que usam para aterrar osadversários, com uma grita infernal. Quando eu pensava que eles iam direitos asuas casas atacar o jantar, vejo que voltavam àposição que tinham antes do ataque - e quereunidos à voz do chefe entravam na povoação

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na mesma ordem de marcha em que tinhamsaído. À noite voltou o Quimbande a dizer-me queesteve com o meu doutor, mas que ele não lhequisera dar sinal algum para mim. Vi que severificavam as minhas previsões e que era tudofalso. O meu acampamento dava-me sérios receios,porque coberto de erva seca podia incendiar-sede um momento a outro - e os meus pretos,transidos de frio, não calculavam o perigo ealimentavam dentro das barracas fogueirasenormes. Desde o rio Cuqueima até Mavanda, e aindamais além, produz vigorosamente a cana deaçúcar e o algodoeiro. Os Quimbandescultivam o algodão, que fiam para fazer linhasonde enfiar o búzio e a miçanga. No dia seguinte, continuaram a asseverar-meque os carregadores estavam na margem doCuanza - e não podiam passar o rio por nãolhes emprestarem as canoas os indígenas dali.Decidi-me a mandar lá o Augusto,

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acompanhado de um guia Quimbande. Pelas11 horas, chegou um enviado do soba aparticipar-me que este viria visitar-me. Poucodepois chegava Mavanda, rodeado da suacorte, e, se ficou espantado a olhar para mim,eu não fiquei menos a olhar para ele - porqueera o maior homem que tenho visto em minhavida. A uma altura enorme reunia umagrossura e gordura verdadeiramentefenomenal. Cobria a cintura com um panousado, sobre o qual caíam três peles deleopardo. Muitos amuletos lhe pendiam de umcolar de miçangas. Se Mavanda é grande,possui coisas grandes também - porque metrazia de presente o maior boi que vi emÁfrica. Depois dos extensos cumprimentos docostume, ele disse-me ex-abrupto, que me vinhapedir um favor, e era o de lhe fazer umcurativo ao rebanho de gado bovino quecostumava ir pastar muito longe, prenoitandoàs vezes fora do curral e sendo nas florestas em

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que se acoitava atacado por feras que lhecausavam grande dano. Dei-lhe imediatamente o remédio com umconselho - e foi ele o de ter um pastor, porque,se o gado entregue a si mesmo ia longe, sefosse guiado às pastagens iria onde o pastor oconduzisse. Ele não achou mau o conselho edisse-me que, apesar de ser contra os usos dopaís o fazer vigiar o gado, daria um pastor aoseu, para evitar as contínuas perdas. Mostrei-lhe o realejo, as armas, etc., atireidiante dele e vi-o com prazer caminhar deespanto em espanto. Pela tarde retirou-semuito satisfeito e nos melhores termos deamizade. Logo que se retirou o soba, chegaramuns enviados do soba Capôco com uma cartapara mim. Dava-me notícia do Chacaiombe edizia-me que me mandava os carregadores,pedindo-me para eu consentir que fossecomigo uma comitiva sua, que desejava enviaraos sertões do Zambeze a fazer negócio. Em vista da carta, decidi demorar-me ali uns 6dias a esperar os carregadores, não contando

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muito, ainda assim, que eles viessem - e nessesentido respondi ao soba Capôco. Em vistadaquela deliberação, ordenei a reconstrução doacampamento para o dia seguinte, mandandocobrir todas as barracas de ramos verdes, comreceio de um incêndio.

No dia seguinte houve grande atividade nareconstrução do campo, que estava pronto aomeio-dia, apresentando um bonito aspecto. Ocampo era formado de barracas cônicas detroncos de árvore medindo três metros de

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diâmetro na base, por dois e meio de alto. Aminha barraca, feita pelos Bihenos com maisesmêro do que as outras, media cinco metrosde diâmetro na base, por três e meio de alto.

O acampamento era formado por uma linhacircular de barracas, ligadas por uma fileira deabatizes de árvores espinhosas. A minhabarraca ocupava o centro - e em frente dela ascargas estavam em pilha. A minha gente de

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serviço estabeleceu o seu campo em torno demim, ao alcance da voz. Tinha finalizado otrabalho do campo quando me vieram avisarde que uns enviados do soba do Gando meprocuravam. Mande-ios vir à minha presença econheci em um deles um dos grandes do sobaque tinha visto junto dele no Gando. Traziam-me uma carta e uma encomenda, que não seique soveta lhe tinha enviado para mim. Abri a carta e vi ser ela do meu amigo Galvãoda Catumbela que me enviava um presente -que tinha dirigido ao Bihé, julgando que euestivesse ainda ali. A boa harmonia que eutinha guardado com as povoações por ondepassei fez com que aquela carta e o presentechegassem até mim vindo de mão em mão.Abri a caixa e encontrei uma porção de passasde Málaga - que vieram a propósito adoçar umpouco a monotonia da minha já bem pobrealimentação. . . .

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Na carta dava-me ele algumas notícias daEuropa, as últimas que tive até chegar aPretória. Pensei nisso então - e quão profundanão foi a minha tristeza ao lembrar-me dequanto tempo teria de ficar sem notícias dosmeus, notícias que já me faltavam havia tanto! Deitei-me debaixo de uma triste impressão desaudade. Ao alvorecer vieram avisar-me deque uma pequena comitiva, capitaneada porum preto levando cera, se dirigia ao Bihé.

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Mandei chamar o chefe e pedi-lhe que melevasse uma carta, que entregaria a alguém noBihé, pedindo-lhe que a fizesse chegar aBenguela. Ele acedeu, dizendo-me logo quenão se podia demorar - porque queria irdormir junto ao Cuqueima. Tinha poucotempo; a quem escrever? Não podia perdereste portador do acaso para dizer aos meus:ainda sou vivo. Peguei na pena e escrevi algumas linhas aoDoutor Bocage. Na carta incluí dois pequenosbilhetes, um para minha mulher e outro paraLuciano Cordeiro. O chefe da pequena caravana, já impaciente,recebeu a carta e partiu. Hoje sei que aquelacarta chegou à Europa e foi recebida pelo seudestinatário. Como ela foi do Bihé a Benguelanão sei. Era essa proteção que tinha levantadoem volta de mim Silva Porto, que ainda se faziasentir. O soba Mavanda passou o dia comigo econversamos muito. Eu dei-lhe algunspequenos objetos, e entre eles uma caixa de

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fósforos, com que ficou maravilhado. Naocasião de retirar-se, disse ele aos seus macotasestas palavras - que me impressionaram pelafigura empregada. “Não vêdes de longe um pássaro que voamuito alto e vai pousar em árvore distante, edizeis é uma rola; depois caminhaes e abeirais-vos dele, e ficais admirados do tamanho; erauma águia. Assim foi o Manjóro (nome que medavam); passou ao largo da povoação, e nósdissemos é a rola; agora vivemos com ele econhecemo-lo, e dizemos, é a águia.” Nos passeios que dei nas cercanias,perseguindo os antílopes que são escassos,levantei a carta do país, ou, antes, pudeconcluir a carta do país compreendido entre oCuqueima e Cuanza. O soba Mavandamandou-me dizer que o maior pedido que mepodia dirigir era o de lhe dar eu um par decalças. Resolvi logo fazer-lhe a vontade - echamei o velho Antonio. Arvorei-o emAlfaiate, coisa que muito o surprendeu, eenviei-o a tomar medida às calças do soba.

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Talhei depois as calças, que foram cosidas pelovelho Antonio e levaram 5 jardas de algodãolargo!! Este rei é um verdadeiro hipopótamo -mas muito boa pessoa. No dia 20 de manhã, veio um enviado do sobadizer-me que, por ser então a época em quefestejam uma espécie de carnaval, o soba, parame fazer honra, viria ao meu campomascarado e dançaria diante de mim. Pelas 8 horas, chegaram os batuques e juntou-se grande concurso de povo. Meia hora depoisapareceu o soba, com a cabeça metida em umacabaça pintada de branco e preto - e o enormecorpo aumentado por uma armação de varascoberta de liconde*, igualmente pintado depreto e branco. * Tecido orndinário. Uma saia de crinas e caudas de animais,completavam o traje. Logo que ele chegou, oshomens formaram em linha, com os batuquesatrás, e as mulheres e rapazes desviaram-separa longe. Começaram os batuques e os

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homens, imóveis do corpo, cantando as suasmonótonas toadas e batendo as palmas.

O soba foi colocar-se a uns trinta passos emfrente da linha e começou uma brutesca dançaem que parecia fera enraivecida, conquistandoos maiores aplausos da sua e da minha gente.Meia hora depois, correu e foi sumir-se na suapovoação, sendo seguido pelos seus. Poucotempo mais tarde, voltou ao meu campo - jásem o seu traje feroz - e andou comigo até ànoite. Decididamente eu tinha-lhe caído emgraça.

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Tinha aproveitado todo o tempo que podiatirar aos meus trabalhos, dando melhorarrumação às cargas e tendente a diminuir onúmero delas. A fazenda que tinha era já quasenenhuma - e toda a minha riqueza monetáriaconsistia em um saco de búzios e na miçangacomprada ao José Alves, mas o gasto parasustentar a minha gente era grande e eu viacom horror a diminuição do meu pequenohaver. No país a caça era pouca e miúda, poisapenas se encontravam algumas gazelas(cervicapra bohor). . . . . . . . . . . .

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Quantas vezes a pobre pilha pouco volumosadas fazendas e miçangas me não despertavauma atroz angústia! Quantas vezes uma dorpungente me não cerrava o coração, fazendo-me antever um futuro bem sombrio! Quantasvezes ficavam sem resposta as carícias daminha cabrinha Cora e os cantares folgazãos

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do meu meigo papagaio - que voava para omeu ombro pedindo-me uma meiguice! Quantas vezes uma fé sem limites me invadiao coração, e o desalento era banido do meuânimo! A razão queria lutar contra esses raiosde infundada esperança que me alegravam oespírito, mas essa esperança era tão tenaz queprocurava argumentos e sofismas paracombater a razão. São momentos indescritíveis,essas lutas do espírito, estando o homemisolado, sendo ele mesmo o pró e o contra dassuas ideias, sem um amigo, ou um inimigo,que lhe adule um pensamento - ou lhe combataoutro. Fui jovem e tive amores, e com eles as penasdos amores; fui pai, e vi morrer-me nos braçosuma filha que adorava. Mas confesso quenunca senti na alma tão profunda tristeza, tãocruel melancolia como a que, por vezes, emdias aziagos, experimentei em África. Só!Sozinho, no meio de uma multidão ignara eestridente cuja língua e falares não

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compreendia. Tinha momentos horríveis, quese traduziam logo em febre e doença! Não conto como sofrimento as fomes, asdoenças, a miséria. Não!, que o homem é edeve ser superior à matéria bruta - que devedominar, para se afastar do irracional. Osofrimento é a dúvida. O sofrimento é nãosaber como se há de vencer o abismo que arazão nos mostra, cavado ante os passos quequeremos dar. O sofrimento é ver dezenas depessoas que nos acompanham, cegas, dizendo:“Ele sabe o que faz” - e que arrastamosconosco ao abismo! O sofrimento é aresponsabilidade tremenda da missão que nosimpusemos. Não me importaria muito, hoje,que os meus detratores experimentassem umpouco da fome, da sede e das privações quepassei. Não lhes desejo, mesmo a eles, quesofressem a milésima parte do que eu sofrimoralmente. É verdade que, para sofrer comoeu sofri, é preciso ter alma, coração e umaconsciência. .

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A carta que de Mavanda escrevi ao Dr. Bocageressentia-se já do que eu sofria então. Foiescrita num dos meus dias nebulosos. Deixemos porém esta divagação, que poucointeressa, e falemos dos acontecimentos deentão. Os Quimbandes fabricam alguns objetos deferro e de madeira, muito mais perfeitos doque os fabricados no Oeste-Cuanza.

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O frio de noite era muito intenso e já eragrande a diferença entre as máximas e asmínimas. Apesar da carta que recebi do sobaCapôco, não acreditava muito na promessa doscarregadores, nem na volta do meu DoutorChacaiombe. Por isso, ia sempre reduzindo ascargas quanto era possível - o que só podiafazer distribuindo o conteudo de uma pelasoutras. Isto tinha um limite, com o limite dopeso que podiam carregar os homens. Estávamos a 22 de junho, dia em que expiravao prazo que eu decidira esperar por oscarregadores do soba Capôco. A minhaangústia era grande e só então avaliei bem omau bocado porque têm passado outrosexploradores, tendo de abandonar cargas quelhes são absolutamente necessárias. A escolha écoisa séria, quando todas se nos afiguramindispensáveis. O pouco que de comodidadeseu levava já tinha sido abandonado; o resto dealgumas latas de comida dei-as aos moleques. Os meus carregadores, vendo o meu embaraço,pedem-me que os carregue até ao máximo peso

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com que puderem caminhar - mas, ainda assimé impossível ir tudo. Depois de todas asreduções, e de ter distribuído as cargas, ficam 4sem carregadores. São elas as duas do meu barco Macintosh, umbarril de aguardente e 50 libras de pólvora.Decidi abandonar o barco, com grande pesar, epedir ao soba Mavanda dois homens para melevarem a pólvora e o barril de aguardente deacampamento em acampamento até que doisdos meus carregadores ficassem sem carga, oque não tardaria a suceder pelo grande gastoque fazíamos. O soba tomou conta do barco e deu-me os doishomens que lhe pedi, ficando tudo pronto paraseguirmos no dia imediato. Levantei campo no dia 23, às 8 horas, e depoisde três horas e meia, cheguei à margemesquerda do rio Varea, que passei sobre umasofrível ponte de madeira. O soveta deDivindica, povoação que assenta na margemesquerda do Varea, na confluência do riachoMoconco, veio pedir-me alguma coisa pela

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passagem da ponte, e dando-lhe eu quatrojardas de fazenda, retirou-se satisfeito. O rio Varea corre ali ao N., e vai afluir aoCuime. Tem 25 metros de largo por 2 de fundoe pequena corrente, não tendo cataratas àjusante de Divindica. Marquei a uma milha aosul as povoações de Moariro e Moaringonga.Segui a leste, indo acampar, pelas 2 horas, namargem esquerda do rio Onda, em frente àgrande povoação de Cabango, capital dospovos Quimbandes de Leste. Eu levava duas garrafas de vinho do Porto de1815, resto de um presente do meu amigo E.Borges de Castro, e ao chegar ao ponto em queacampei o moleque Moero, que as levava, caiu,quebrando-se uma delas e entornando-se oprecioso néctar - sem que se pudesseaproveitar uma gota. Desde Mavanda até às nascentes do riachoMoconco, cujo curso segui até à confluênciacom o Varea, a vegetação arbórea é esplêndidae no cimo dos montes que marginam o riacho é

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também pomposa. Para além do Varea é aindamais rica. Desde que passei o Cuanza ouvia falar no rioCuime como o rio maior do país dosQuimbandes, afirmação que me eraconfirmada pelos grandes afluentes que lhe iaencontrando - o que me fazia arder em desejosde lhe ir lançar uma vista d’olhos. Do Cuanza a leste o planalto apresenta umaspecto muito diferente do que até ali. Aspaisagens são mais pitorescas e nãoapresentam a monotonia do Bihé. Os rios eribeiros cavam os seus leitos mais fundos,tornando mais sensíveis os acidentes doterreno. As margens dos rios e ribeiros, alémdos limites das cheias, já se apresentamcobertas de vigorosa vegetação arbórea - e avegetação arborescente forma barreirasimpassáveis nas florestas. Na parte leste dopaís dos Quimbandes a população começa ararear. O soba de Cabango é ainda tributáriodo soba do Cuio ou Mucuzo. .

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Os costumes destes povos são os mesmos dosBihenos, salvo na atividade - que é entre osQuimbandes substituída pela mais vergonhosapreguiça. Os Quimbandes andam quase nus,não trabalham, não viajam e não negociam.Poucos têm espingardas, por não terem comque as comprar. Já apanham alguma cera, queos Bailundos lhes vêm permutar a búzios emiçangas, mas isto em pequeníssima escala. A terra é cultivada pelas mulheres, e a suaprodução é rica. O que mais tenho visto nasplantações é mandioca e ginguba.* * amendoim. Este país deve merecer particular atenção.Cortado por rios navegáveis que vão afluir aum grande traço navegável do Cuanza, tendoum clima magnífico e ubérrimos terrenos -onde produz bem o algodão, a cana de açúcar,os cereais e virentes pastagens, é ocupado poruma população que facilmente se submete eestá nas melhores condições de umdesenvolvimento rápido. .

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No dia 24 de junho passei o rio Onda e fuiacampar na sua margem direita, três milhasalém do meu campo anterior. O rio Onda tem,em Cabango, 15 metros de largo por 5 defundo e, vindo de leste, corre depois a N.O. aafluir ao Varea. Depois de ter determinado a posição do meuacampamento, fui passear rio acima eencontrei bastante caça. Logo acima deCabango, o Onda estreita a 10 metros, masaprofunda a 6, tendo uma corrente de 10metros por minuto - corrente que se estendeaté ao fundo, o que me foi denunciado não sópela sonda mas também pela inclinação quetomam as plantas que vegetam no fundo, o quese vê facilmente por serem as águas muitocristalinas e o fundo de areia alvíssima.

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Neste rio não vi outro peixe, a não ser um queos naturais chamam Ditassoa, e que é sofrível.Percorrendo as margens do rio, vi, à distância,um grupo de árvores que se destacava dapaisagem e que julguei serem palmeiras - masaproximando-me reconheci um lindo grupo defetus arboreos, da mais elegante beleza. Asmargens do rio são cortadas verticalmente epor isso apresentam junto à borda a mesmaprofundidade que no meio. Retirei do meu passeio, satisfeito com o quevira. O rio Onda era outro rio navegável, outraestrada natural que encontrava neste soberbopaís. Ao chegar ao meu campo aguardava-meuma agradável surpresa. O DoutorChacaiombe foi a primeira pessoa que veiocumprimentar-me. Eu, que julgava não maisvê-lo, saudei-o com o maior júbilo, porque oseu desaparecimento era uma nuvem negra naminha viagem. . . .

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Já por vezes tenho falado no DoutorChacaiombe, e não disse quem era. Estehomem foi o adivinho que, em casa do filho docapitão do Quingue, me predisse as coisasmais agradáveis a respeito do meu futuro.Acumulando as funções de cirurgião com as deadivinho, veio ele estabelecer-se junto a mimno Bihé - e não mais me deixou até que se

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encarregou da missão de obter carregadores noCapôco, de onde julguei que não mais voltaria. Depois de muitos cumprimentos, anunciou-meChacaiombe que os carregadores chegariamdentro de dois dias, e eu resolvi esperá-los. Omeu Augusto veio dar-me parte de que o sobade Cabango viera visitar-me e se retirara muitocontrariado por não me encontrar. Mandeilogo o pombeiro Chaquiçonde ao soba, pedir-lhe dois homens para mandar a Mavandabuscar o barco que ali tinha deixado, com bempesar meu e da minha gente, que viram osserviços que ele nos prestou nas passagens doCuqueima e do Cuanza. Fui, em seguida,enxugar-me ao fogo - pois que cheguei do riomuito molhado e ainda me lembrava comhorror do reumatismo no Bihé. No dia seguinte parti de madrugada para acaça, dirigindo-me ao norte, onde o país écoberto de densas florestas. Depois de terandado oito milhas encontrei o rio Cuime, àjusante da sua grande catarata. Voltei e já eranoite quando alcancei o meu campo,

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extenuado de fadiga - mas tendo feito boacaçada e tendo visto o rio que ardia em desejosde ver e que efetivamente é uma viaimportante, sendo, como me asseguraram osnaturais, navegável desde a sua grandecatarata até ao Cuanza. No outro dia, voltei ao rio Onda e alisurprendeu-me a vista mais de uma povoaçãoque divisava ao longe. Ao aproximar-me,conheci que eram não povoações de pretos,mas sim de formigas brancas (termites), quejuntavam em grandes grupos as suasconstruções cônicas - cuja cor alvacenta, devidaà da argila que iam buscar ao subsolo, lhesdava toda a aparência de aldeias de indígenas.De volta ao meu campo, encontrei o soba deCabango, que ali tinha chegado havia pouco,com uma comitiva de 60 homens e muitasmulheres. . . . .

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Esta gente, que se apresenta quase emcompleta nudez, faz consistir todo o seu luxonos penteados. Variam-nos ao infinito e sãoeles verdadeiras obras de arte, e têm tecnologiaprópria. Nas mulheres o cabelo, que fica emforma de topo de elmo Romano, chama-se“tronda”, e o que cai em trancinhas, dos lados,“caingue”. Os penteados masculinos, queformam tufos encrespados, chamam-se“sanica”. O soba ofereceu-me um boi, e eu dei-

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lhe um presente com que ele pareceu retirar-sesatisfeito. Chegaram nesse dia os carregadoresque vinham do Capôco e eram apenas quatro,mas eram os suficientes, sendo dois para obarco e outros dois para aliviar algumas cargasmais pesadas. À noite os meus pretos e os daterra fizeram grande batuque, que durou atédepois das 10 horas.

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O frio de noite continuava intenso, sendo queàs 3 e meia horas da manhã desse dia, otermômetro marcara 0°C. A desigualdade entrea máxima e a mínima era já extraordinária egrande a secura da atmosfera, como se verádos boletins meteorológicos. O soba voltou aver-me e deu-me alguns esclarecimentos sobreo país. Diz ele, que já não reconhece asoberania do soba do Cuio ou Mucuzo, e seconsidera independente. As matas têm muita cera e os Bailundos vêmali permutá-la a búzio (caurim) e miçangas.Trabalham em ferro e fazem machadosgrandes, balas e facas. Os machados de guerra,flechas e azagaias vêm-lhes dos Luchazes - e asenxadas dos Ganguelas, Nhembas e Gonzellos. . . . . . . .

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Este soba, que se chama Chaquiunde, é umpouco falto de probidade, o que não admiramuito. Veio, depois de larga conversa, fazer-me exigências, alegando ter-me dado um boi.Vi-me na necessidade de o pôr fora doacampamento - mas ele, vendo a aspereza comque eu o tratava, mostrou-se contente eexplicou a sua impertinência, desculpando-se

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com os seus macotas, que o tinhamaconselhado a fazer grandes exigências, e queo que pedia era para eles, pois que a ele eutinha dado um presente superior ao valor doboi. Tendo chegado os dois Quimbandes com omeu barco, resolvi seguir no dia imediato. Odia 28 amanheceu frigidíssimo, pois que otermômetro, às 6 horas, marcava apenas doisgraus acima de zero e por isso pude só levantarcampo às 8 horas, indo acampar às 10 e 40junto da margem do Onda, tendo andado aE.S.E. Precisava fazer pequenas marchas, porque osmeus carregadores iam muito pesados. Oterreno desde o rio Varea até ali é coberto deuma camada arenosa, sendo o subsoloformado por uma argila de cor cinzenta,variando desde o branco sujo até ao azulacinzentado. Junto ao leito do Onda o solo éformado por uma forte camada de humos, queainda assim assenta sobre o subsolo da mesmaargila acinzentada. Junto ao rio vi alguns

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montes termíticos, apresentando a cor azulcobalto. O terreno das clareiras é habitado por umaespécie de termites diferente daquela quehabita as florestas. As termites das clareirasconstroem montes mamelados*, apresentandoo aspecto de cones truncados cobertos porcúpulas hemisféricas, tendo de 80 centímetrosa um metro de diâmetro na base, por igualaltura. Nas florestas formam elas verdadeiroscones, tendo de 4 a 6 centímetros de diâmetrona base, por 25 a 30 centímetros de altura. * Que têm forma de mama. São muito aproximados e semelham umeriçado de espinhos que parecem brotar daterra. Estas termites das florestas vão buscar osmateriais das suas construções muito perto dasuperfície da terra, porque nas suasarquiteturas figura como matéria prima a terravegetal que forma o solo dos matos, e estas,apesar do cimento empregado, não têm aligação e dureza das termites das clareiras, que,empregando uma argila consistente, formam

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verdadeiras petrificações. Nas habitações dastermites das clareiras, apesar do seu interiorser formado de células como as de um favo deabelhas, a bala de uma Snider não penetranelas a mais de 10 centímetros. Como já disse, nas encostas que abeiram oOnda estas formigas acumulam as suashabitações em limitados espaços, figurando, aquem de longe as vê, verdadeiras povoaçõesQuimbandes. Por espaço de uma hora, depois que deixei oacampamento, caminhei na margem do rio emterreno descoberto - mas depois entrei em umaesplêndida floresta, cortada de riachosafluentes do Onda. . . . . . . . .

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Por vezes, a floresta tomava o aspecto de umdesses grandes parques do norte da Europa,onde uma viçosa relva cobria completamente osolo. No meio da mata os meus passos foramsuspensos para contemplar uma das maispitorescas paisagens que tenho visto. Umavasta clareira era ocupada por uma lagoa deágua cristalina e fundo arenoso. Árvoresenormes assombravam o pequeno lago, querefletia os seus ramos de um belo verde-escuro,onde chilreavam mil pássaros. .

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A relva descia dos lados até à água e sódesaparecia para deixar lugar a uma areia alvae fina. Os pretos deste país, que não são muitopoetas, acham encanto neste pequeno lago - aque chamam Lago Liguri, e em que já mehaviam falado. Todos os riachos deste país têmas margens apauladas e na água estagnada háum depósito de cor vermelha - que aoprincípio atribuí à presença de ferro - o queconheci ser engano, porque o chá verde feitocom aquela água não a denunciava férrea pelaformação do tanato de ferro. Só, talvez, poruma acumulação de animalículos infusórios seproduzam aqueles depósitos vermelhos. Desde o Bihé, observei que em todos os pontosonde há águas estagnadas abundamsanguessugas, mas nestes córregos afluentesdo Onda são elas em maior número. O riocontinua a ter entre 10 e 12 metros de largo por4 a 5 de fundo, tem corrente muito insensível.Abunda a caça. No dia seguinte, caminhei a S.E., sempre namargem direita do Onda, por espaço de três

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horas, sendo difícil a passagem de umaemaranhada floresta, e, mais difícil ainda, ovadear o ribeiro Cobongo, de 4 metros de largopor 1 de fundo - e cujo leito lodoso embaraçavao andar. Depois de três horas de caminho,afastei-me do Onda, seguindo a margem doribeiro Cangombo, que passei indo acampar namargem esquerda do ribeiro Bitovo. A 30 de junho segui a leste, aproveitando todaa margem do Bitovo para caminhar livre defloresta e dali passei ao vale do ribeiroChiconde, cujo curso segui até ao Cuito, ondeacampei. Fez-me profunda impressão ocontemplar as águas do ribeiro Chiconde,correndo velozes para o Cuito. Até ali tinhaencontrado águas correndo ao oceanoAtlântico - e essas águas, cujo murmúrioacalentava o meu sono, eram como um laçoque me prendia à minha pátria, indo cair nomesmo mar que banhava o meu Portugal. Seelas pudessem converter o seu murmúrio emfalas, que de saudades, das angústias queviram, podiam ir contar aos meus! Ao deixar o

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Bitovo partiu-se esse laço que me ligava à costado Oeste. Que pungente saudade não foi aminha! Fazia um ano naquele dia que eu fora dar oabraço de despedida a meu velho pai, erecordou-me mais do que nunca que ele medeixara com o presentimento de não mais mever. Naquele dia já assentava o meu campo nopaís dos Luchazes, tendo deixado o dosQuimbandes com o ribeiro Bitovo. Vieram alguns homens e mulheres daspovoações da margem direita do Cuito ao meucampo, mas nada trouxeram que vender e nósprecisávamos de comida. Prometeram contudoque no dia seguinte traziam algum Massango*,porque não cultivam milho nem mesmoMassambala. * Gramínea semelhante ao painço. Nos seus arimbos* cultivam o Massango,alguma mandioca, feijão fradinho, ginguba,mamona e algodão, tudo em pequena escala,apenas o necessário para o consumo docultivador. * Pequenas propriedades rurais.

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Colhem bastante cera, já apanhada nasflorestas e já de colmeias que colocam sobre asárvores - e onde os enxames vêm habitar. Acera é um gênero que eles permutam por peixeseco do Cuanza e que os Quimbandes ali vamlevar. O rio Cuito ali não tem peixe. Os povos Luchazes são pouco viajantes eapenas deixam as suas povoações para fazerempequenas caçadas aos antílopes, afim deobterem peles para se vestirem. A pequenacultura é feita por homens e mulheres. Osoveta que governa as poucas povoações damargem do rio Cuito é o Muene-Calengo, quepaga tributo a outro soba Muene-Mutemba,cuja povoação não pude precisar bem ondefica. . . . . . . .

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Estes Luchazes trabalham em ferro e fazemtodas as obras de que precisam. O ferro éencontrado no país. Uma coisa única que vi entre os povosbárbaros que visitei é usarem os Luchazes deisqueiros para fazerem fogo, com fuzil epederneira. As pederneiras são trazidas pelosQuibôcos, ou Quiôcos, que as vêm trocar porcera - e os fuzis fabricados por eles são de ferro

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forjado e temperados em água fria, onde oslançam estando o ferro rubro. A isca épreparada com algodão misturado com aamêndoa pisada, contida no endocárpio de umfruto chamado Micha. As mulheres Luchazes usam cestos diferentesdos empregados pelas Quimbandes, ediferentemente os trazem, porque sãosuspensos da cabeça por uma larga tira decasca de árvore e caem sobre as costas. Este modo de trazer os cestos impede-as detrazerem os filhos, como é uso geral em África,sobre os rins, trazendo-os ao lado. No dia seguinte, vieram de manhã algumasmulheres trazer massango - mas em tãopequena quantidade que mais fez sentir a fomeque já tínhamos. . . . . . .

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.. O rio Cuito tem no ponto em que o passei 7metros de largo por 1 de fundo, com umacorrente de 25 metros por minuto. É afluentedo Cubango e na sua confluência assenta agrande povoação de Darico. Nasce na planície

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de Cangaba, onde têm nascente muito próximao Cuime e o Cuiba, afluentes do Cuanza - e oLungo-e-ungo, afluente do Zambeze.

Não podendo obter víveres, resolvi seguiravante. Quando dava ordens para levantarcampo, chegava à margem do rio Cuito umacomitiva de escravos, capitaneada por trêspretos. Apoderei-me dos três pretos e solteitodas as escravas, pois que na comitiva não

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iam escravos. Fiz com que entrassem no meucampo e disse-lhes que eram livres, e sequisessem acompanhar-me eu as fazia chegar aBenguela. Disse-lhes, que nada receassem dosseus guardas e que se convencessem de queeram livres. Declararam-me uma a uma, quenão queriam a minha proteção - e que asdeixasse ir como tinham vindo. De onde eram?Não mo sabiam dizer. Que fazer? Repugnou-me levá-las comigo a despeito seu. Depois dealgumas instâncias, resolvi deixar aquelasdesgraçadas seguirem o triste fado a que nãoqueriam esquivar-se. Demais, seria ele melhorse me seguissem? Não é fácil, ainda que isso seafigure na Europa libertar uma leva deescravos - quando essa leva é encontrada longedos domínios Europeus. Uma leva de escravos tem gente denaturalidades diferentes, e muitas vezeslongínquas. Se aquele que os pode libertar osquiser restituir às suas famílias, tem depercorrer uma grande parte da África embusca dos lares dos seus protegidos, o que é

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praticamente impossível. Abandoná-los edizer-lhes: “ide-vos” é fazê-los novamenteescravos dos primeiros povos queencontrarem. Muitas vezes aqueles desgraçados, arrancadosdas povoações em tenros anos, perderam damemória o lugar onde nasceram - e falando jáuma língua diferente da que balbuciaramcrianças e esqueceram longe dos seus. Têm porsua pátria a terra da escravidão, e nãoconhecem outra. Hoje, depois que os navios deguerra portugueses e ingleses cruzam noAtlântico e no Índico, impedindo a exportaçãodo homem, a escravatura é gênero depermutação apenas no interior - e o seusistema tem-se modificado. O escravo apareceem África por dois modos: ou é o prisioneirode guerra, ou é o gênero de pagamento dedívida pelos parentes. Outrora fazia-se a guerra expressamente parase fazer o prisioneiro, e infelizmente ainda hojese faz, posto que em menor escala. O entehumano dado, pelo parente pobre em

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pagamento da dívida contraída, ou da multadecretada, é vulgar. No caso de guerra, antigamente todoprisioneiro servia para escravo - porque lhenão era fácil, adulto que fosse, voltar de outrocontinente à África. O Atlântico era garantiasegura. Os adultos, podendo logo produzir umtrabalho maior, eram preferidos ao adolescentee à criança. Hoje não é assim. O homem feito foge e temsempre na ideia o voltar ao ninho de onde oarrancaram - e essa esperança não o abandonaenquanto pisa o continente onde tem seu país.Disse-me a mim um negreiro: “são muitofugitivos”. A criança, o adolescente e a mulher oferecemao comerciante maior garantia, porque,espíritos mais irresolutos, não ousam encarar opensamento de atravessar países enormes,para voltar ao seu. Tem por isso mais valor, hoje, na ÁfricaAustral, a criança e a mulher - e nas levas dedesgraçados que infelizmente ainda arrastam

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os duros grilhões através do solo Africano éraro vermos um homem feito. Uma vez que falei na escravatura, direi aindamais algumas palavras sobre ela. Portugal, aInglaterra e a França, têm, nos últimos tempos,empenhado uma verdadeira luta contra ocomércio da carne humana - e as modificaçõesfeitas nas antigas praxes americanasconcorreram para que esse comérciodiminuísse consideravelmente e se modificasseessencialmente na África Austral. Contudo, eu atrevo-me a dizer que não seráainda a geração que ora começa aquela queverá desaparecer o escravo do solo Africano. Omesmo princípio que imperava outrora naAmérica, fazendo colonizar com os escravos,existe e existirá por muito tempo ainda emÁfrica. Os governos pretos também têm a sua políticacolonizadora - e entre eles e os lugares deprocedência do escravo falta um oceano, ondepossamos fazer singrar as nossas esquadras eproteger os oprimidos com as nossas baterias

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de aço. Só os princípios civilizadores poderãofazer cessar um dia a escravidão, masinfelizmente esse dia está longe, porque osargumentos de que se servem esses princípiossão menos eloquentes e menos enérgicos doque os projéteis cilindro-cônicos o foram noAtlântico e no Índico. Eu tenho para mim, que a abolição daescravatura, no interior da África Austral há deexistir de fato, quando deixar de existir apoligamia entre os pretos, porque, ainda queos princípios civilizadores façam desaparecer oescravo, a sensualidade asinina* do negro farásubsistir a escrava. * Referente a “asno”. Isto não quer dizer que eu descreia de que sepossam dar alguns rudes golpes de imediatoefeito no reprovado comércio, mas sim quepenso na dificuldade do seu completoextermínio. Já vai longa a divagação, voltemosao assunto. Dizia eu, que as raparigas não quiseram serlivres, e seguiram os seus condutores. Eu

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preparei-me também para partir, forçadosobretudo pelas imperiosas necessidades dosestômagos, que em viagens de exploraçãogovernam tanto e mais do que as sociedadesde Geografia. Segui quase a Leste e depois de marcha deduas horas avistava uma povoação e acampavana margem de um ribeiro perto dela. Soubeque ribeiro e povoação se chamavam Bembe. Quando começava a faina de cortar madeirapara acampar, vi de repente os meus pretosdispersarem-se em várias direções, fugindoespavoridos. Não atinava eu com a causa de talterror, e dirigi-me ao lugar onde elestrabalhavam, a investigar o que seria. No lugaronde eu tinha mandado construir o campo,milhões da terrível formiga chamada pelosBihenos Quissonde, saíam da terra e delafugiram os meus homens. A formigaQuissonde é uma das mais temíveis feras docontinente Africano. Dizem os naturais queataca e mata o elefante - introduzindo-se-lhe natromba e nos ouvidos. É inimigo que se não

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pode combater, e, atacando aos milhares, só selhe pode escapar na fuga. O Quissonde tementre 6 e 8 milímetros de comprido, corcastanho-clara muito luzidia. As mandíbulas deste feroz himenóptero, sãofortíssimas e de grandeza desproporcionada.Da sua mordedura no homem saí logo um jatode sangue. Os chefes conduzem as suasfalanges a grandes distâncias e atacam todoanimal que encontram no seu caminho. Por mais de uma vez, durante a minha viagem,tive de fugir aos ataques deste feroz inseto.Algumas vezes vi nos caminhos centenasdelas, depois de esfregadas aos pés,levantarem-se e continuarem a sua marcha -primeiro lentamente, depois com a suaceleridade ordinária, tanta é a sua vitalidade. Vem a propósito falar aqui de outras formigasmais vulgares do que o Quissonde. Uma épequena, de três milímetros a quatro decomprido, negra e como o Quissonde e armadade fortes mandíbulas. Chamam-lhe os BihenosOlunginge. É o maior inimigo das termites,

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contra as quais dirige terríveis ataques - e quevence, apesar da desproporção do seutamanho. Estas pequenas formigas são umverdadeiro benefício, pela enorme destruiçãoque causam nas larvas, ninfas e ovos dastermites. Em alguns pontos encontrei nas habitações dastermites uma grande quantidade de formigasenormes, atingindo o comprimento de 20milímetros, que vivem em comunidade com osabundantes nevrópteros da África Austral. Estas formigas, suponho eu, que, pouco dadasao trabalho de construir habitações, vãoprocurar nas construções termíticas abrigo emorada. Nenhum destes pequenos insetosataca o homem, além do Quissonde, que oataca sempre - e ainda nas margens do rioBembe fez dispersar os meus carregadores.Tive pois de ir longe escolher outro lugar paraacampar. Voltaram da povoação do Bembe algunshomens que ali tinha enviado, com a tristenova de que o soveta dera ordem para nada

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me venderem. A fome já se fazia sentir muito,caça não aparecia, e apenas tivemos nesse diaum punhado de massango - que tanto coube acada um de nós na divisão que fiz, do poucoque obtivemos na margem do rio Cuito. Ali o país já era completamente desconhecido atodos, e nenhumas informações podíamoscolher do gentio esquivo. Reuni os meuspombeiros e fiz-lhes ver a grande necessidadede alargarmos a marcha no dia seguinte, atéencontrarmos povoações mais hospitaleiras.Eles convieram na imperiosa necessidade e,apesar de muito carregada a comitiva eenfraquecida pela falta de alimento, decidiramanimar a sua gente para os fazer ir avante.Havia dois dias que encontrava vestígios de tersido outrora povoadíssimo este país - pelasruínas, já antigas, de muitas povoações queencontrei. O que determinaria este abandono? Seria adevastação pela escravatura? Seria ainsalubridade do clima? Seria a falta de caça?Seria a má qualidade do terreno? Não o pude

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saber - mas a primeira hipótese parece-me amais admissível. O fato era, que essa falta de populaçãoinesperada, nos criu o maior embaraço, e eunessa noite sofri horrielmente das torturas dafome. No dia imediato, tive logo de manhã otranstorno de um carregador doente - mas omeu Doutor Chacaiombe houve-se com toda abizarria e ofereceu-se para levar a carga. Na ocasião de partir, apareceram uns enviadosdo soveta do Bembe pedindo-me alguma coisapara ele. Fiz-lhes ver o mau procedimento dosoveta para comigo e mandei-os pôr fora docampo. Segui às 8 horas e 40 minutos. O rioBembe, que tinha a vadear, tem dois metroslargo por um de fundo e corre a S.O. para oCuito. A sua margem direita é montanha íngreme -mas a esquerda, depois de uma trincheiraquase vertical de 10 metros, estende-se plana epaludosa por um quilômetro. A marchaatravés do paul levou uma hora e fatigoumuito a faminta caravana. O terreno em

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seguida é levemente inclinado e coberto deuma vegetação arborescente difícil de transpor.Depois de outra hora de fatigante caminhar,comecei a descer uma encosta, a cujo sopé sedesenrolava uma planície, oculta por densafloresta. Desci uns 50 metros para alcançar aorla da mata - mas tive logo de alterar o meurumo. A floresta era impassável. Aprovetei um difícil trilho de caça, que ora melevava a Leste ora a Noroeste, e depois aSueste, até que o terreno me faltou de repente.Um sulco profundo de cem metros, cavadopelas águas de um ribeiro, tolhia-me apassagem. A dificuldade do caminho, o pesodas cargas e a fraqueza dos meus carregadores,obrigaram-me a acampar ali. A fome já se faziasentir em todos os seus horrores. Umaesperança todavia me animava: eu tinha vistovestígios de caça. Pouco depois de chegarmos, matou-se nocampo uma cobra, que me disse o meu doutorser muito venenosa - mas haver contravenenoà sua mordedura. Tinha um metro de

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comprido e era cor de telha no dorso, tendo oventre um pouco mais claro. Os olhos eramverdes muito brilhantes e a língua bipartida. Aboca era armada de quatro dentes dispostoscomo as presas de um cão. Aí ficam os sinaisdela para aqueles que pisarem um dia aquelasparagens. Era preciso caçar, e eu, logo que fiz as minhasobservações, parti para um lado e mandei emoutras direções os meus pretos Augusto eMiguel, os únicos que têm algumas manhas decaçadores na minha comitiva. Encontrei pertodo campo um grande rasto de búfalos e segui-o. Não se faz ideia na Europa do que seja caçarpara comer. É um prazer horrível. Deve serassim o apontar à banca, do jogador queprecisa ganhar uma certa quantia para pagaruma dívida de honra - e que mistura o febrilprazer do jogo com a cruciante angústia daincerteza. Os olhos com que ele devora ascartas que lentamente vão escorregando porentre os dedos do banqueiro; os olhos quequeriam penetrar através da carta opaca para

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antecipar o desfecho da agonia da dúvida, nofim da qual está a salvação ou a morte suicida,devem ter a mesma expressão dos olhos docaçador faminto que perscruta a floresta embusca da caça que é para ele questão de vidaou morte. Há contudo uma diferença. É que o caçadorfaminto pode invocar em seu auxílio adivindade, pode balbuciar uma súplica a Deus.Ao passo que o caçador por prazer seguedescuidoso uma pista, cheio de felizes emoçõesao avistar o gamo que procura. Caminhadesassombradamente, sabendo que no lugarajustado um cozinheiro prepara ótimosmanjares - e para aqui e além para contemplaruma flor mimosa, uma paisagem agradável. Ocaçador por necessidade só pensa na caça que,matando-a, lhe matará a fome. Ao passo que um caminha curvado parachegar ao alcance do tiro, o outro deita-se derastos, não sente os espinhos que lhe rasgam ascarnes - e por umas palhas que faz tremer,treme também de dar um alarme e caminha

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devagar, devagar, reduzindo a distância paraque o tiro não falhe, com o coração a palpitar ecom o estômago a bradar em contorsõespungentes. Deve ser assim o caçar do tigre e do leão. Orasto que eu segui levou-me ao fundo doprecipício onde corre o pequeno córrego, e pormuito tempo segui a sua margem direita,passando depois à esquerda, onde vi osbúfalos - que caminhavam pastando na orla deuma densa floresta virgem. Estavam a 500metros de mim. Começou então esse fatigante caminhar derastos, a carabina a tiracolo como que nadandonum mar de palha curta. De quando emquando levantava a cabeça descoberta paraespreitar a minha presa - e prosseguia naquelecaminhar difícil cheio de comoções. Os búfalospastando, ora caminhavam ora paravam,sempre na orla da mata. Se paravam quealegria, se andavam que desespero o meu! Na mente, fantasiava eu chegar aoacampamento e dizer: “vão à margem do

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córrego e lá encontrarão caça para matar afome.” Era uma mistura de prazer e deangústia que me causava a incerteza horrível. De repente os animais desapareceram nafloresta em apressado trotar. O que seria? Ter-me-iam presentido? Levantei-me e segui orasto com a maior presteza - mas entrando nafloresta, o meu desespero subiu de ponto. Namata virgem o solo coberto de musgo espessonão deixa perceber um rasto ao olho maisexperimentado. Parei desanimado. Tudo o quetinha fantasiado caiu como sonho fagueiro aoimpertinente despertar. Ainda fui longe sem nada perceber de caça - eperto das 6 horas da tarde recolhi ao campo,prostrado de fadiga e fome, tendo andadoinutilmente 20 quilômetros! Ao entrar noacampamento, chegou-se a mim o meuAugusto, mostrando-me radiante de alegriaum soberbo antílope que tinha morto! Era umaenorme Malanca (hippotragus equinus) dacorpulência de um boi. .

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Fiz imediatamente a partilha pelos meuscarregadores e por mim mesmo e, depois deum longo jejum, que nem Deus me leva emconta por ser involuntário, tive um opíparojantar, adubado pela fome - que faria inveja aosmais caprichosos gastrônomos. Miguel, o meu bravo caçador de elefantestambém veio cumprimentar-me - masrevelava-se-lhe no rosto a mais profundatristeza. Logo que soube a causa do desesperodo meu valente, não pude deixar de meconsternar muito. Durante a ausência de Miguel, a minhacabrinha Cora entrou na sua tenda, e comera-lhe o grande feitiço que ele possuía para mataros elefantes. Consistia o valioso talismã em umdente humano caído do teto de uma casa velhae embrulhado em palha e trapos por umcirurgião de grande fama - que lhe tinhaincutido as maiores virtudes, sendo facílimo aoportador de tão extraordinário objeto oencontrar e matar elefantes sem o menorperigo. Miguel estava inconsolável - mas eu

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consegui tranquilizá-lo, prometendo-lhe maiorfeitiço do que o perdido, para o mesmo fim. Enão o enganava, pois que a boa carabina quetencionava dar-lhe, logo que chegássemos apaís de elefantes, valia bem por todos os denteshumanos embrulhados em palha e trapos. Depois de comer, reuniram-se em torno daminha fogueira os meus pombeiros econtaram-me que durante a minha ausênciatoda a gente tinha ido ao mato. Seguindo unsos indicators, haviam colhido bastante mel,sendo que outros haviam feito larga colheita deuma fruta chamada pelos Bienos “atundo”,semelhante à goiaba - mas produzida por umaplanta herbácea de pequeno talhe. Ospedúnculos desta fruta partem do caule junto àterra e o fruto cresce semi-enterrado. O seusabor é agradável, não julgando eu que sejamuito nutriente. . . . .

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No dia seguinte era preciso seguir avante, epor isso, apesar do frio, levantamos campomuito mais cedo que do custume. Seguimos aS.E., encontrando, depois de duas horas demarcha um rio difícil de transpor. Tinha 4metros de largo por 4 de fundo e violentacorrente. Mandei cortar grandes árvores nafloresta, e pouco depois estava lançada umaponte e a comitiva passava. Pouco à jusante dolugar em que passei o rio, afluía a ele um

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riacho vindo de Leste. Segui a margem direitadeste riacho e uma hora depois acampavaperto de duas povoações que avistava. Logo que chegamos, vieram espreitar-nosalguns gentios - com quem pudemos falar apedir provisões. Pouco depois já aparecia nonosso campo algum massango - que pretasquase nuas vinham vender. Comprando amiçanga sem regatear, em breve tivemosalimentação suficiente para aquele dia. Embreve se estabeleceram relações cordiais entreaquele gentio e nós. Por eles soubemos que oribeiro onde acampamos na véspera sechamava Licocotoa; o rio onde naquele diahavíamos lançado a ponte Nhongoaviranda - eo córrego em cujas nascentes estávamosacampados Cambimbia. As duas povoações que ficam na margemesquerda do ribeiro são Luchazes; aquela queficava a N.O. do meu campo era de Quiôcos ouQuibôcos. Foram estes últimos que vieram aomeu campo e com quem estava em relações. .

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Comi mais de um litro de massango cozido emágua e não me foi desagradável tal alimento.Depois de ter saciado o apetite, calculei aposição em que estaria naquela noite o planetaJúpiter no momento do eclipse do 1o satéliteque eu precisava observar. Eu estava acampado numa floresta copada,que não me deixava ver os astros. Logo queachei pelo cálculo a posição do planeta nomomento desejado, escolhi o lugar ondeassentaria o meu telescópio e mandei rasgar nafloresta um claro suficiente para poder fazer aobservação. Houve grande faina - e os meus bravosBihenos, machado em punho, conseguiram emduas horas rasgar uma abertura por onde eupudesse dirigir o meu óculo. As mulheres dos Quiôcos ou Quibôcos quevieram ao meu campo traziam os filhos ao ladocomo as Luchazes, suspensos do ombro opostopor uma faixa de casca de árvore. Além demassango, trouxeram elas para vender umasraízes de tubérculos chamados genamba, de

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que os meus pretos gostavam muito e eu nada.Não cultivam o milho e alimentam-se demassango. O luxo dos penteados não se encontra entre osQuibôcos ou Quiôcos, e o seu vestir é maismiserável do que entre os Quimbandes. Asmulheres andam nuas! Causará decerto estranheza ao leitor, que eu,estando em pleno país dos Luchazes, lhe estejafalando em Quiôcos. Se isso o admira, não mesurprendeu menos a mim o caso de osencontrar ali. A emigração constante dosQuiôcos e a colonização das terras Luchazespor eles é um fato. O país dos Quiôcos ouQuibôcos (que lhes chamam indiferentemente)é colocado ao norte de Lobar, nas vertentesleste da serra da Mozamba. Livingstone fá-locortar pelo paralelo 11 sul e pelo meridiano 20leste de Greenwich. Os Quiôcos são viajantes, caçadores - eousados. Alguns, descontentes com o seu país,emigraram para o sul, atravessaram o Lobar evieram estabelecer-se na margem direita do

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Lungo-e-ungo, em país Luchaze. Não foramhostilizados, e atrás destes seguiram-se outros- sendo constante hoje a emigração. Nãopararam ali, e seguiram muitos emigrantesmais ao sul, indo até ao Cubango. A maiorparte da povoação de Darico é de Quiôcos. Perguntando-lhes eu, qual o motivo deabandonarem o seu país, disseram-me que adoença e a falta de caça os afugentava de lá.Estes Quiôcos com quem entrei em relações,estavam estabelecidos ali havia pouco - e nãolhes sobravam as provisões para venderem. Do alto da serra há um esplêndido panoramade N.E. a N.O. Vê-se todo o curso do rioCuango, afluente do Lungo-e-ungo pelo sul. Avista-se a bacia deste desde Cangala até àconfluência do Cuango, e bem assim as baciassuperiores dos rios Cuito, Cuime e Cuiba. Ogolpe de vista é surpreendente. Na vertente de oeste da serra Cassara-Caiéra avegetação arbórea é esplêndida, na cumeadaenfezada e pobre. Na vertente leste a vegetaçãoarborescente e herbácea verdadeiramente rica.

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Esta vertente leste é chamada Bongo-Iacongonzêlo. Fui acampar na nascente do ribeiroCanssãopoa, afluente do Cuango - e durantetodo o trajeto daquele dia não encontrei água.Junto ao meu campo, na outra margem doribeiro, ficavam cinco povoações Luchazes. Estas cinco povoações são governadas por umsoveta que obedece ao soba Chicôto, cujapovoação é na confluência do Cuango com oLungo-e-ungo. As duas povoações Luchazesque ficam no Cambimbia obedecem ao Muene-calengo do Cuito. O soveta Cassangassanga veio visitar-me etrouxe-me de presente um cabrito. Dei-lhealguma miçanga com que se retirou satisfeito,prometendo mandar-me algum massangonaquele dia - e guias no imediato para meconduzirem a Cambuta, onde me disse euencontraria muitos víveres. Cumpriu as suaspromessas, não só mandando o massangonaquele dia como os guias no seguinte. .

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O massango, dividido, deu uma pequena raçãoa cada um de nós; o cabrito não era coisa devulto para tanta gente - e francamentedormimos com fome.* * Sendo o massango não mais do que a pequenasemente de um tipo de capim, insossa e pouconutritiva, o leitor poderá imaginar as razões detantas queixas que ainda surgirão neste livro arespeito de ter-se exclusivamente este tipo de grãocomo alimentação, por dias seguidos, nos trechosmais difíceis da viagem. (nota do editor) Ali cultivam massango, pouca mandioca,menos feijão, bastante mamona e algumlúpulo. Trabalham o ferro com bastanteperfeição, sendo o minério encontrado no país. No dia 6 de julho, parti a leste e, depois de trêshoras de caminho - na última das quais segui amargem do ribeiro Andara-canssãopoa -,acampava em frente da povoação de Cambuta,junto ao rio Bicéque, que corre a N.E. paraunir-se ao Cutangjo, afluente do Lungo-e-ungo. O país tem uma certa aglomeração depopulação, que obedece ao soba de Cambuta.Ali pude obter bastante massango, único

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alimento que cultivam em abundância - e porisso único que me vieram vender.

. Nunca vi tão grande quantidade de rolas comoali, e eu matei muitas, carregando a arma compedrinhas miúdas das margens do ribeiro.Adoeceram-me alguns carregadores compapeira - e outros com gastrites, decertoprovenientes da má alimentação. Entre asraparigas que vieram ao meu campo vendermassango, notei algumas muito galantes emuito esbeltas. Andam quase nuas - e mal se

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lhes percebe, não uma folha de vinha, mas umpequeno farrapo de casca de árvore. Ali homens e mulheres, sem exceção, têm osdentes incisivos da frente cortados emtriângulo - de modo que estando a dentaduraunida, aparece um losango vazio, formadopelos dois triângulos cortados na frente emdentes de ambas as maxilas. O frio continuavaa ser intensíssimo durante a noite - e só juntode grandes fogueiras podiamos repousar.

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No dia seguinte, continuavam as doenças. Umcaso bem para notar era, serem só atacados osBihenos, e resistirem os negros de Benguela,não tão habituados como aqueles àsvicissitudes da vida sertaneja. De manhã, matou-se perto do acampamentouma ave de rapina, que a minha vista poucoexperimentada não soube colocar em algumdos gêneros em que se divide a família dosrapaces diurnos, querendo, na minhaignorância em tal assunto, que fosse umgypeta, ainda que julgo ser única a espécie dogênero conhecida. O meu pássaro parecia-se enormemente com ogypeta, exceto nas dimensões que as tinhamuito menores, pois contava apenas, de pontaa ponta de asa, 1 metro e 75 centímetros. Fosse o que fosse, foi saboreado pelos Bihenos,que em matéria de gastronomia, desde ohomem até ao abutre, passando pelo crocodilo,leopardo e hiena, de tudo comem semescrúpulo. .

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Nesse dia, como na véspera, o tempo que meficou livre das observações empreguei-o apercorrer os arredores, levantando, comocostumo, uma planta grosseira dos terrenosque avisto, tendo marcado três milhas ao sulda nascente do Biceque e a nascente do rioCuanavare, grande afluente do Cuito. Junto danascente do Cuanavare estive na povoação deMuenevinde, governada por uma dama cujo

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marido que se chama Ungira e não tem vozativa na governação. Eu nunca fui amante de feijão fradinho, mas ànoite, de volta ao campo, tive um pequenopresente dele - e comi-o com devoradorapetite.

1 e 3. Machados. 2. Flecha. 4. Ferros de flecha

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5. Enxada. O soba de Cambuta estava ausente em caçada,e fizeram-me as honras da casa as suas damas -com quem conservei as mais cordiais relações,obtendo delas, não só boa provisão demassango, mas ainda 12 carregadores para ele,e dois guias para me encaminharem àsnascentes do Cuando e do Cubangui, afluentedaquele e rios que me diziam no país serem osmaiores do mundo. Permitam-me aqui agora os meus leitores duaspalavras, a respeito das últimas do períodoanterior que sublinhei. O rio Cuando, decerto o maior afluente doZambeze, não foi conhecido por mim pelasinformações dos Luchazes de Cambuta - e eu,tendo sustentado a minha marcha do Bihé atéali, uma grande parte do caminho fora muitoao norte do trilho das caravanas Bihenas. Sabiao que fazia, e onde deveria pouco mais oumenos ir encontrar as nascentes de tão grandeartéria. Devia isso às informações de SilvaPorto, que já tinha descido aquele rio do

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Cuchibi até Liniante, levando cargas emcanoas. Silva Porto tinha-me assinalado asnascentes daquele rio, que ele conhecia nosseus terços médio e inferior, pouco mais oumenos no ponto em que as encontrei - e istopor informações colhidas por ele do gentio. Se Silva Porto pudesse dar aos pontos queconhece da África Austral as posiçõestraduzidas em longitudes e latitudes, enchiam-se facilmente os espaços em branco que aindaexistem na carta daqueles países. Assim, pois,partindo de Cambuta a buscar as nascentes doCuando, eu cumpria o itinerário que haviatraçado - e ia resolver um dos problemas quemais desejava resolver. As notícias detalhadas ia eu colhendo emcaminho; as gerais essas já as tinha aprendidode Silva Porto. Disseram-me os meus guias, que íamosatravessar, para além do rio Cutangjo, umaregião despovoada - e por isso era mister fazerprovisões para o caminho. Foi essa informação

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que me levou a comprar mais massango e apedir 12 homens, às mulheres do soba. Parti no dia 9 de julho às 9 da manhã, e trêshoras depois passava o rio Cutangjo,acampando na sua margem direita, junto dapovoação de Chaquissengo. O Cutangjo tem ali4 metros de largo, por 1 de fundo e corre aN.N.E. para o Lungo-e-ungo. Vi que, nasplantações, havia alguma mandioca e muitomassango — o terrível massango, que tanto mehavia de perseguir em África! Algodoeiros emamona cultivam muito estes Luchazes. Trabalham o ferro, que tiram das margens doCassongo, e as suas obras são muito perfeitas.Quase todos os Luchazes têm barba por baixodo queixo e pequeno bigode. Vai alidesaparecendo o luxo dos penteadosextraordinários que até então faziam a minhaadmiração. . . . .

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Os homens usam um largo cinto de couro cru,com fivelas feitas por eles. Cobrem com peles asua nudez e abrigam-se do frio com licondes*,que extraem de árvores das florestas. * árvore cuja casca é fibrosa e textil. Não fabricam panelas - e as que usam vãoobtê-las dos Quimbandes. Fazem manilhas,com cobre, que ali lhes vêm permutar a cera osLobares, sendo que estes o obtêm da Lunda.

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Fui ver a povoação de Chaquicengo, que, comotodas do país, é muito bonita e de um grandeasseio. As casas são feitas de troncos de árvoresde 1 metro e 20 centímetros de altura, quetanto é a altura das paredes. O intervalo damadeira, que é encostada uma à outra, é cheio,em umas de barro, em outras de palha. Ostetos são de colmo e como as armações sãofeitas de varas muito finas, fazem uma curva,tomando um aspecto de tetos chineses. Osceleiros são colocados muito altos sobre umaarmação de madeira, todos de palha, e decobertura móvel - pois é preciso levantá-la parair dentro buscar os mantimentos. Têm acessopor uma escada de mão - e não são mais doque um cesto gigantesco à prova d’água, emque é tampa um teto cônico.

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As capoeiras são umas pirâmidesquadrangulares de varas de árvore, assentesem quatro pés ou estacas muito altas, para aspôr ao abrigo dos pequenos carnívoros. Nocentro da povoação há, como no Huambo, umaespécie de quiosque para conversa. Ali, em

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torno de uma fogueira, alguns homenspreparavam arcos e flechas. Receberam-memuito bem - e vieram me oferecer uma bebidapreparada com água, mel e farinha de lúpulo,que misturam em uma cabaça onde a deixamfermentar. Chamam-lhe Bingundo, e é a maisalcoólica que tenho encontrado. Estes Luchazes usam uma armadilha paraapanhar pequenos antílopes e lebres, que éengenhosa - e bem se compreende em vista dodesenho. Chama-se Urivi.

Depois de um passeio até às nascentes doCutangjo, voltei ao meu campo acompanhadopor grande número de homens e mulheres que

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não cessavam de me admirar. Entre esta gentedas margens do Cutangjo vi muitos tiposmasculinos de uma fealdade repugnante. Estes povos, não só apanham muita cera nasflorestas, mas ainda colocam nas árvoresinúmeras colmeias - que fabricam com umagrossa casca de árvore ligada com pinos depau.

.

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No dia 10 de julho, parti às 8 da manhã - emeia hora depois, apesar dos guias, andavaperdido em uma floresta impassável - de ondepudemos a muito custo sair às 10 horas. Entãoencontramos terreno limpo de arbustos, mascoberto de árvores gigantes que nos abrigavamdo sol - prazer que durou pouco, porque, meiahora depois, já andávamos outra vez metidosem mato tão emaranhado que nos deuverdadeiro trabalho a transpor. Enfim, às 11 e20 minutos, descia eu a vertente suave de umcômoro, em cujo sopé a água limosa de uma

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pequena lagoa era cercada por um tapete deverdejantes gramíneas. Ao chegar ali, dei um tiro em um animal quecreio se chama leopardus jubatus, cuja pele veioaumentar a minha cama felina. Esta pele, quefoi minha cama até Pretoria, ofereci eu aoDoutor Bocage. Este leopardo jubatus, bastante raro, porque emtoda a minha viagem vi apenas dois, vê muitopouco de dia, suponho eu, e suponho isto porter notado em ambos, que, ao deparar comeles, fitavam as orelhas para o meu lado, emque sentiam rumor, como querendo perceber operigo mais pelos orgãos auditivos do quepelos visuais. Abeirei-me da lagoa e determinei a suaposição, tendo mandado construir o meucampo uns 100 metros ao sul, sobre a encosta,ficando uns 30 metros sobranceiro ao paul -que mais paul do que lagoa é o charco ondenasce o grande afluente do Zambeze. Quando trabalhava, fui acometido de umrepentino e violento acesso de febre que me

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prostrou por três horas. Quando voltei a mim,não pude deixar de sorrir. Estava coberto deamuletos, tendo ao pescoço um sem-númerode cornos de pequenos antílopes, cheios dasmais virtuosas medicinas. Uma pulseira dedentes de crocodilo enlaçava-me o braçodireito - e dois enormes cornos de malancapendiam de dois paus espetados dentro dabarraca. Os meus pretos, durante a febre, não se haviampoupado a cuidados, e, ouvido o doutorChacaiombe, tinham posto tudo aquilo sobremim, com a mais inteira fé no resultado. Umaforte dose de quinino, que tomei -determinando o meu pronto restabelecimento -veio corroborar mais as virtudes dos amuletos,que tudo a eles foi atribuído. Os meus pretos Augusto e Miguel tinham idocaçar, mas Voltaram sem nada, tendoencontrado alguns leopardos. Viram contudomuitos rastos de caça grossa. No dia seguinte,de manhã, levantei uma grosseira planta dopaul, rectifiquei a minha posição e levantei um

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pequeno padrão - construído de barro, dentroda barraca das observações, onde enterrei umfrasco que fora de quinino, perfeitamentearrolhado, contendo um papel, onde, de umlado, por baixo do nome d’El-Rei, escrevi osnomes dos membros da Comissão CentralPermanente de Geografia e do outro, ascoordenadas do ponto - e a data. Depois do meio-dia, os guias Luchazes forammostrar-me a nascente do rio Queimbo,afluente do Cuando por oeste. Marquei estasnascentes, 6 milhas geográficas a S.O. do paulda nascente do Cuando. Os doze carregadores Luchazes estavam muitosaudosos de suas casas e queixavam-se muitodo frio. O país é despovoado e deve ter muitacaça - porque dela haviam rastos, continuandoa aparecer leopardos, que dela são tambémindício certo. Nós não vimos nenhuma. Erapreciso seguir avante, porque os mantimentosdesapareciam rapidamente e precisávamosalcançar as povoações Ambuelas, para escaparà fome.

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Na manhã de 12 de julho, por um frio de doisgraus acima de zero, mandei levantar campo epreparar para partir - não conseguindo deixaro acampamento antes das 8 horas. Milhares de periquitos esvoaçavam nas matase faziam uma chiada infernal. Segui a margemdireita do Cuando por duas horas e emseguida, por indicação dos guias, passei àmargem esquerda sobre uma ponte queimprovisamos de troncos de árvore. Ali já o riotinha dois metros de largo por dois de fundo, eviolenta corrente. Ao passar o rio, avistei umamanada de gnus, a que não pude atirar.Acampei ali. As margens do Cuando sãomontanhosas, e desde a nascente até àqueleponto têm uma faixa apaulada de 30 a 40metros - que deita em toda a extensão muitaágua, que vai engrossar o rio. Este fato dá-se com quase todos os riosdaquelas regiões, que recebem por aquele meioenorme quantidade de águas, de modo que,sem a eles afluírem outros, são navegáveis aalgumas milhas das pequenas nascentes. Na

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margem direita do rio vi, aqui e além, algumasbarreiras verticais estratificadas, apresentandofaixas cor-de-rosa, brancas e azuis. No dia seguinte, levantei às 8 e caminhei até aomeio-dia - indo acampar junto de um córregoafluente do Cuando. Adoeceram-me algunshomens, com papeira, e outros cominflamações nas pernas. Felizmente, as cargasdas provisões tinham diminuído sensivelmente- e tinha carregadores de sobressalente. Nasmargens apauladas do Cuando abundavamsanguessugas, que mandei apanhar paraaplicar a alguns doentes que delas careciam. As matas que atravessei, e aquela em queestava acampado, eram quase exclusivamenteformadas de umas árvores enormes - a que osBihenos chamam Cuchibi, árvores prestadiasao viajante faminto. O seu fruto semelha umfeijão, onde só um grão de vivo escarlate estáencerrado na casca verde-escura. Este fruto,depois de uma demorada cocção, separa osinvólucros escarlates dos cotilédones brancos. .

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São aqueles invólucros escarlates a partecomestível desta semente.

São bastante oleaginosos, e os Ambuelas eLuchazes extraem deles um óleo que tempera acomida. Este fruto é decerto um grandesocorro ao viajante faminto - mas não é parapressas, que a sua cocção é demoradíssima.

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Outro fruto que se encontra ali e que é bastantevulgar em todo o planalto, é o que os Bihenoschamam Mapole. É produzido por uma árvorede mediana corpulência e semelha pela cor etamanho uma laranja madura. Um pedúnculo bastante comprido suspendeeste fruto verticalmente dos ramos da árvore.O epicárpio e o mesocárpio, estreitamenteligados, formam um invólucro de quatromilímetros de espessura, de dureza córnea.

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Só com um forte machado se pode partir. Nointerior, a parte comestível é um líquidoespesso e coagulado em que se aglomeramumas sementes como as das ameixas pequenas.Este líquido, de sabor agridoce, tomado emquantidade é bastante purgativo - masasseguraram-me os Bihenos que é muitonutritivo e que um homem pode viver delealguns dias. No dia seguinte, deixei o rio Cuando, que já alise inclina a S.S.E.. Por indicação dos guias,caminhei a leste, para ir demandar as nascentesdo Cubanguí, rio que eles me diziam ser muitogrande. Depois de uma hora de marcha, passeium ribeirão que corre ao sul, num terrenoapaulado de 100 metros de largo - que custou atranspor. Quatro milhas além, outro granderibeiro corre paralelo ao antecedente. . . . . .

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Entre os leitos destes ribeiros, e bem assimentre os dois afluentes do Cuando, a leste,correm montanhas norte-sul, montanhas quepertencem a um sistema mais importante, queao norte corre leste-oeste - indo as suasvertentes N. terminar no vale do Lungo-e-ungo.

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Pelas 11 e meia, cheguei ao alto da serra - deonde os guias me mostraram, muito ao longe,as nascentes do rio Cubanguí. Marquei aquelasnascentes perfeitamente a leste - e como receeinão poder, chegado que fosse, determinar alatitude, parei, e ao meio-dia determinei adaquele ponto em que estava, por ser a mesmadas nascentes do rio, estando, como estavam,leste-oeste com ele. Pelas 2 horas da tarde,acampei junto às nascentes - que são em tudosemelhantes às do Cuando. O pântano que dánascente a este rio tem o seu eixo norte-sul eestende-se por um quilômetro, variando a sualargura entre 80 e 100 metros. . . . . . . . . .

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Não apareceu caça, mas vimos dela muitosrastos - e durante a noite os leões fizeram umconcerto infernal em torno do campo. Já ali sedistribuíram as últimas rações - e de novotínhamos diante de nós a fome. Os guiasdiziam estarem perto as povoações, mastermos de marchar dois dias para as alcançar,porque os muitos doentes, e sobretudo opombeiro Canhengo, que estava mal, nos

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impediam de forçar as marchas. O meucuidado era extremo, e receava já que oagravarem-se as doenças com a fome e com afadiga me impedisse de alcançar a tempo osrecursos precisos. No dia seguinte, apesar de todos os meusesforços, não consegui sustentar a marcha alémde quatro horas e tive de acampar na margemdo Cubanguí - que não deixei desde a suanascente. No ponto em que acampei já o rioconta três metros de largo por um de fundo. Um gnu, que matei - e algum mel que os pretoscolheram na floresta -, deu minguada raçãocom que passamos um dia. No dia imediatocontinuei a seguir a margem direita doCubanguí, e, depois de quatro horas demarcha, acampei junto ao ribeiro Linde - emfrente de três povoações Ambuelas. Mandeilogo homens não só àquelas povoações, masainda a outras que ficavam na margem direita,e apenas pudemos obter uma escassa ração demassango. .

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Todos nos diziam, que no dia seguintechegaríamos à terra do soba, e que ele nosdaria de comer. Na confluência do Linde já orio Cubanguí tem 5 metros de largo por 3 defundo. Os meus doentes não melhoravam muito, oque não era por falta de dieta. Foi precisosustentar marcha de seis horas paraalcançarmos no dia imediato a povoação dochefe, a quem mandei logo um presente deuma farda velha de cabo de Infantaria 2, queele muito agradeceu, dando ordem aos seuspovos para me venderem mantimentos. Atroco de miçanga obtivemos massango, omaldito massango, que tanto me havia deperseguir. Despedi os meus guias - e os dozeLuchazes que até ali me acompanharam -, eeles se retiraram satisfeitos com o que lhes dei.Fraternizaram com a gente das povoaçõesAmbuelas, que estão ali um pouco misturadascom a raça Luchaze. Em um dos dias seguintes que passei ali,acampou junto de mim uma grande porção de

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famílias Luchazes que se vinham estabelecerno país.

Passou ali também um rancho de caçadores,que iam para o sul em busca dos elefantes. Foia primeira vez que ouvi falar em elefantes,porque todo o país que atravessei desdeBenguela até ao Cubanguí, não os tem, nem

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mesmo deles vi rasto antigo. Ainda assim, ostais caçadores disseram-me que precisavamandar seis dias para os encontrarem. Dois dias depois da minha chegada, veiovisitar-me o soba de Cangamba, MueneCainda, que me levava um presente de quatrogalinhas e um grande cesto de massango.Trajava a farda que eu lhe tinha enviado, e dacinta pendiam-lhe peles de leopardo. Na mãotrazia ele um objeto formado de caudas deantílope, com que sacudia as moscas. A cultura é feita no país por homens emulheres, que, em pequenas plantações,cultivam massango, algodão, pouca mandioca- e ainda menos batata doce. Trabalham muitoem ferro, que extraem das minas na margemdireita do rio, junto das quais passei, ao nortede Cangamba. . . . . .

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Ao contrário dos outros povos Ganguelas, emCangamba são os homens que fazem aspanelas e as mulheres esteiras. Fiam o algodão,que tecem em teares de ocasião, fazendo unspanos, do tamanho de toalhas de rosto e muitoperfeitos. Vieram vender-me tabaco, que dizemcultivar no país, mas que eu não vi nasplantações que visitei. As armas de que usamsão flechas e machadinhas. O Cubanguí tem, junto a Cangamba, 15 metrosde largo por 6 de fundo - e 12 metros decorrente por minuto. Tem peixe, a que nãoposso assinalar o feitio, porque os que vi eram

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secos e tinham de 40 a 50 centímetros decomprido. Mandioca e peixe seco; que opíparo banquetepara quem andava condenado ao atrozmassango! O rio Cubanguí, para não escapar àlei geral daquele Continente, tem crocodilos -mas são nada vorazes, e afiançaram-me osAmbuelas, não haver exemplo de umadesgraça causada por eles.

Fui pagar a visita ao soba, que é sujeito distintoe simpático. Como me não vendiam senãomassango, pedi-lhe que me desse algumamandioca e algumas batatas doces, presenteque ele me fez em minguada porção,escusando-se por não ter mais. Ainda assim,

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chegou para três dias. Três dias de férias demassango! Tendo obtido guias, alguns carregadores - ebastante massango -, decidi seguir avante, nodia 22 de julho, a demandar as povoações dosoba Caú-eu-hue, no Rio Cuchibi, onde passa ocaminho outrora seguido por Silva Porto - eque eu abandonei no Cuanza, seguindo maisao norte. Disseram-me os guias, que teria de jornadearem país deserto por espaço de 8 dias, e por issoprecisava ir bem provido de rações. Os meusdoentes tinham melhorado com o descanso emais abundante alimentação. Ainda assim, oMuene-Cainga forneceu-me dez homens paraajudarem a carregar o massango de que meprovi. Tendo-me dito os guias, que durante dois diasdevíamos caminhar na margem do rio, tive alembrança infeliz de o descer embarcado. A 22de manhã, mandei transportar o meu barco deborracha ao rio. Fiz levantar campo, e tendoentregue o comando da comitiva ao Veríssimo,

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dirigi-me ao barco, que tripulei com doismoleques pequenos - o meu Catraio e outropequeno de 12 anos, chamado Sinjamba, filhode um carregador Biheno e que escolhi porfalar bem a língua Ganguela e poder servir-mede intérprete, se isso fosse preciso. Declaro que não foi sem uma certa comoçãoque deixei a margem e me lancei na correntede um rio desconhecido, tendo por únicoscompanheiros duas crianças e governando umbarco de frágil tela. O rio, que nasce trinta milhas ao N. Já tem ali15 metros de largo por 6 de fundo, e, pouco àjusante, alarga a 40 e 50 metros, e às vezesmais. O seu fundo, que varia entre 3 e 6metros, é coberto de areia muito alva - quedecerto cobre uma camada de lodo, porque aflora aquática do rio é verdadeiramenteassombrosa. Muitas espécies de juncos e outras plantasaquáticas enraízam no fundo, atravessam comsuas folhas e seus troncos finos, sempreagitados pela corrente, os 6 metros d’água, e

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vêm desabrochar à superfície as suas flores devariado colorido e elegantes formas. Por vezesesta pomposa vegetação ocupa toda a largurado rio, e parece impedir a passagem. Aprincípio hesitei em lançar o barco sobreaquele prado aquático, julgando encontrarfundo e falta d’água para navegar - mas depoisque a sonda ali me acusou, ora 4 ora 6 metrosde água, não mais duvidei em deslizar porentre aqueles jardins floridos. Nos pontos onde a água, pela disposição doleito, tem corrente insensível, é que estavegetação submersa se converte em verdadeiramata virgem - que prende o barco e não odeixa avançar. Vi muitos peixes nadandoligeiros por entre as sarças, sendo alguns demais de 60 centímetros de comprido. Bandos de patos fugiam diante de mim,estranhando decerto o serem interrompidosnaquelas regiões nunca devassadas por umacanoa. Nos juncais das margens, milhares depassarinhos chilreavam e saltavam nos ramos

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das gramíneas, que mal se curvavam ao seupeso ligeiro. Aqui e além, um pássaro pescadorsustentava a mesma posição no ar com umrápido bater de asas, até descer verticalmentecom velocidade de flecha a tomar a presa queespreitava. Nos canaviais da margem, um granderumorejar na folhagem verde deixava-meperceber um ou outro crocodilo quedesaparecia nas águas. Outras vezes, aquelerumor era seguido pelo baque de um corpoque em leve salto se precipitava na águacorrente, e mal eu tinha tempo de perceberuma esquiva lontra. O rio, cuja direção geral é Norte-sul, descreveas mais caprichosas curvas, que quadruplicamo caminho. A margem direita é um vasto paulde largura muito variável, que às vezes alcança1000 metros. Dali se escoa um grande volumede águas que engrossam o rio a olhos vistos.Três milhas além de Cangamba, vi um grupode 18 mulheres que pescavam junto à margem,peixes pequenos, com cestos de vime.

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Em uma das voltas do rio, percebi trêsantílopes desconhecidos para mim - e quandoia a tomar a carabina para lhes fazer fogo elessaltaram na água e desapareceram emprofundo mergulho. Este fato causou-me amaior estranheza, que cresceu de pontoquando, no correr da viagem, por vezes diviseimuitos daqueles animais, já nadando emergulhando rapidamente, já conservandosempre a cabeça submersa - e deixando verapenas as pontas dos cornos. Este animal curioso, que tive depois ocasião dematar no Cuchibi - e de cujos hábitos tivealgum conhecimento -, obriga-me a suspenderpor um momento a minha narrativa, para falardele. Chamam-lhe os Bihenos Quichôbo, e osAmbuelas Buzi. O seu tamanho, no estadoadulto, é o de um bezerro de um ano. O pêlo écinzento escuro, de 5 a 6 centímetros decomprido e extremamente macio. Na cabeça opêlo é mais curto e tem sobre as fossas nasaisuma lista esbranquiçada transversal. Os cornos

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têm 60 centímetros de comprido e a sua seçãona base é semi-circular, tendo a corda quaseretilínea. Conserva esta seção até três quartosda sua altura, depois do quê se torna quasecircular até à ponta. O eixo médio dos cornos éreto e formam entre si pequeno ângulo. Sãotorcidos em torno do eixo - sem perder a suaforma retilínea e apresentando as arestas umaespiral de passo muito largo. As patas têmcompridas unhas, semelhantes às do carneiro ereviradas nas pontas. A disposição das patas e os seus hábitossedentários tornam este notável ruminanteimpróprio para correr. A sua vida passa-se naágua e nunca se afasta muito da margem dorio, onde sai a pastar, raras vezes de dia - emuito de noite. O seu sono e o seu repouso éna água. A sua potência mergulhadora é igual, senãosuperior, à do hipopótamo. Durante o sonoaproximam-se da superfície da água e deixamver fora dela metade dos seus cornos. .

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É muito tímido e acoita-se no fundo das águasao menor sinal de perigo. É fácil de surprendere de matar, sendo que os indígenas lhe dãogrande caça, para se aproveitarem das suaspeles - que são magníficas, e da sua carne, quenão é muito boa. Quando saem a pastar, a sua pouca destreza nacarreira permite aos indígenas o apanharem-novivo - não se defendendo no último transe,como fazem quase todos os antílopes. A fêmea,como o macho, é armada de cornos. Há muitospontos de contato entre a vida deste

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extraordinário ruminante e a dos hipopótamosseus conterrâneos. O rio Cubanguí, o rio Cuchibi e o alto Cuando,dão guarida a centenares de Quichobos, quenão aparecem já no baixo Cuando, nem noZambeze. Eu explico este fato pela voracidadedos crocodilos no Zambeze e baixo Cuando,que em pouco tempo dizimariam tão tímidoanimal, se ele se afoitasse a ir viver nas águasonde reina com absoluta soberania o carniceiroanfíbio. Em uma entrevista que tive em Pretória comum notável caçador de antílopes, Mr. Selous,me disse ele ter ouvido falar do meu antílope,aos indígenas do alto Cafucue, onde lhedisseram existir um animal naquelas condiçõesde vida. A minha pouca competência emmatéria de zoologia não me permitiu fazermais minucioso estudo deste animal, que eujulgo merecer a atenção dos homens de ciênciapelos seus estranhos hábitos. Continuando com a minha narrativa, tenho afazer os maiores elogios ao meu barco

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Macintosh, que se portava muito bem naságuas do Cubanguí - mas cuja exiguidade deformas me obrigava a uma posiçãoconstrangida, que, pelas 4 horas da tarde já meproduzia dores em todas as articulações. Desde que deixei Cangamba não mais vi sinaisda minha comitiva – e, pelas 4 horas da tarde,às dores de uma posição contrafeita já se uniaum vago cuidado e uma fome bempronunciada. Os meus pequenos remadoresestavam extenuados de fadiga. Aportei àmargem esquerda, e mandei o molequeSinjamba subir ao alto de uma árvore ainvestigar se na outra margem se erguia ofumo do acampamento. Ele julgou ver o fumoa N.O., à montante por isso do lugar em queestávamos. Tornamos a subir o rio e eu com muito custopude saltar no paul da margem direita eencaminhar-me ao lugar onde foramassinalados os indícios de fumo. Teria andadoum quilômetro, quando percebi vestígios dapassagem da minha comitiva para o sul. Os

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rastos da minha cabra e dos cães não mepodiam enganar. Voltei ao barco e tornei anavegar rio abaixo. De vez em quando paravae mandava o moleque trepar a alguma árvoreda margem esquerda, mas esta manobrarepetia-se sem resultado. Aproximava-se a noite e eu não estava semcuidados - porque, além da fome que sentia,receava o dormir fora do campo, por causa dosmeus cronômetros que ficariam sem corda. Tinha desaparecido o sol, e naquelas paragenso crepúsculo é curto. Decidi acampar com osmeus dois pequenos na margem esquerda - equando já dava execução ao meu plano,pareceu-me ouvir o estampido de um tiromuito longe a S.O. Redobramos de esforços e,pouco depois, ouvia outro tiro, a que respondi.Ao meu tiro, vi o clarão de outro atirado a 200metros de mim. Dirigi para ali o barco edeparei com o meu Augusto metido em águaaté à cintura no paul de margem direita. UmBiheno estava com ele. Foi grande a sua alegriaao verem-me, e logo vieram tirar-me do barco

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e transportar-me às costas por todo o paul queera largo ali. Foi difícil aquele caminhar quelevou meia hora, mas eu cheguei enxuto àmargem. Os pequenos, depois de prenderem o barco aum canavial, seguiram-nos. Disse-me oAugusto ser longe o acampamento e termos deatravessar uma espessa floresta. Eramprofundas as trevas na floresta, e difícil ocaminhar por entre as sarças. Tropeçar aqui,cair além, andar dez metros em dez minutos,rasgando o vestuário e a carne nos espinhos domatagal, tal é o jornadear à noite em matavirgem. Depois de uma hora de violentos esforços,sentimos perto tiros e grande grita. Eram osmeus, que me buscavam. Fiz-lhes sinal eencontramo-nos. Vinha Veríssimo Gonçalves àfrente de um grupo de Bihenos - que quiserampor força transportar-me ao campo em umasandas* que ali improvisaram com troncoscortados na mata e folhagem de arbustos. * Liteira, andor, cama de varas.

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Assim entrei no meu acampamento, onde, àmeia-noite, junto de um bom fogo, matava afome de 36 horas. Demorei-me ali um dia - e noseguinte, logo de manhã, comecei a passagemdo rio, que foi muito demorada porquedispunha apenas para isso do meu pequenobarco Macintosh. Segui às 9 horas na margem esquerda do rio, euma hora depois encontrava um ribeiro nasmargens do qual apareceu muita caça. Seguisempre, e pela 1 hora fui acampar junto deoutro riacho, que como o primeiro eratributário do Cubangui. Apareceram no meu campo dois Ambuelascaçadores de cera (como eles dizem), quepreveniram os guias de que era imprudenteseguir para o Cuchibi - porque, tendo morridoum soveta próximo do caminho que devíamosseguir, estávamos expostos aos desatinos queeles costumam praticar em tais ocasiões. Vieram prevenir-me disto, mas eu, a despeitoda morte de todos os sovetas possíveis, resolviseguir avante - e efetivamente no outro dia,

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depois de marcha bastante forçada de 6 horas,alcancei a margem direita do rio Cuchibi. Na minha comitiva havia muita gente comuma moléstia que tinha alguma coisa deridículo; 18 ou 20 pessoas estavam compapeira. . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Capítulo VIII As Filhas do Rei dos Ambuelas O Cuchibi—O soba Caú-eu-hue—OsMucassequeres—Opudo e Capeu—Abundância—Bondade dos indígenas—Povoações e costumes—Um vau no Cuchibi—O rio Chicului—Caçada—Feras—O rio Chalongo—Uma jornada atroz—Asnascentes do Ninda—O túmulo de Luiz Albino—Aplanície do Nhengo—Trabalhos e fome—OZambeze afinal. Foi a 25 de julho que acampei na margemdireita do rio Cuchibi. O terreno que medeiaentre este rio e o Cubanguí é ocupado porfloresta virgem, onde se nota vegetaçãoopulentíssima. Um naturalista botânicoencontraria ali vasto assunto para demoradoestudo - tal é a variedade de plantas quecrescem, umas à sombra das outras, naquelabrenha enorme. Por espaços o caminhar foidifícil, e mais de uma vez os machados saíramdos fortes cinturões de couro para tornartransitável um ou outro carreiro de feras. .

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Ao caminhar na mata foi o meu olfatoimpressionado por um aroma suave edelicadíssimo, emanado da flor de uma árvoreabundante ali. Nenhuma das flores conhecidastem mais delicado aroma do que o da flor doOúco, que assim chamam os naturais àprimorosa árvore. A configuração da árvore, a disposição dasfolhas, as flores, em cachos - e sobretudo aminha ignorância em botânica -, fizeram-meescrever no meu diário sem hesitação: é umaacácia. Há tempo, recebendo a visita do boticário daminha aldeia, e vendo ele um dos meus álbunsde desenhos, disse-me com toda a franquezade aldeão: “O senhor escreveu aqui umaasneira. Esta flor não pode ser de uma acácia,porque tem só duas pétalas e três estames - edeve saber que a acácia produz flores de cincopétalas e dez estames. Por isso entra na famíliadas papilionáceas - e hoje entra na classe dasleguminosas -, e eu vou-lhe buscar o meu deCandolle…” Não vá, lhe disse eu. Acredito-o

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sobre palavra - e como aí vai representada aflor, não me meterei a querer classificá-la.

Flor dez vezes aumentada. As flores formamcachos de 3 centímetros de comprido por15mm de diâmetro. Pétalas brancas, ovário eestames castanhos, perfume delicioso. Estaárvore, cujas flores cobicei para oferecer àsdamas da Europa, não a encontrei antes desteponto - e desapareceu no curso superior do rioNinda. Outra árvore que encontrei ali e quechamou a minha atenção, não pelo aroma das

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flores, mas pelo gosto dos frutos, foi uma queos naturais chamam Opumbulume. O fruto é em tudo semelhante ao Mapole, quejá descrevi, sendo o seu gosto diferente e muitomais diferente a árvore que o produz. O rio Cuchibi apresenta um aspecto diferentedo dos outros afluentes do Cuando até aoponto em que os visitei. Corre no meio de umaplanície que encosta às vertentes doces demontanhas cobertas de espesso mato.

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A planície completamente enxuta, e nãoapaulada, como quase todas as que fazemmargem aos seus congêneres da África deSudoeste, chega por vezes a alargar-se em oitoquilômetros de extensão. O rio serpeia ali, nãoem curvas de curto raio como o Cubanguí, masem pouco ondulada linha, que ao longe fazparecer retilínea a sua diretriz. Uma pomposa vegetação herbácea vaiterminar nas escarpas do leito, onde corre umaágua cristalina deixando perceber o fundo deareia branca. Carece completamente da floraaquática que abunda no Cubanguí, não sendoinferior a sua fauna, de que falarei mais tarde. Havia caça e fiz uma boa caçada, pois quematei um songue, antílope vulgar nas margensdo Cuando e nas dos seus afluentes.Apareceram-me naquele dia alguns homensqueixando-se de uns tumores que sedesenvolviam nas articulações das pernas e osimpediam de andar. Felizmente, o gasto demantimentos já me deixava livres outroshomens, que tomaram as cargas daqueles.

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Uma grande parte dos meus carregadorestinham feridas sobre as tíbias, sobre a cabeçado perôneo e tendão de Aquilles, que nãohavia meio de curar. Debalde esgotei toda aminha ciência médica, emprestada doChernoviz, e debalde o meu doutorChacaiombe reuniu os seus medicamentosselvagens aos mais estupendos processos defeitiçaria: elas a tudo resistiram. Eu atribuí o caso a duas causas, e não sei seatribuía bem. Em primeiro lugar, o constanteexercício de andar, pensei eu ser uma; emsegundo lugar, a alimentação seria outra. Nãojulguem os meus leitores que lhes vou falarcontra o inocente Massango. Não; sou muitoleal inimigo para atacar na ausência aquele quetanto me perseguiu. Deixo em paz o Massango.Não é ele ofensivo - e creio mesmo que é boadieta. A alimentação a que me refiro, e à conta dequem deito em parte a inutilização dos meusesforços e dos do doutor Chacaiombe em curaros meus doentes é outra. Os Bihenos, como já

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tive ocasião de dizer, comem de tudo e detodas as carnes em estado de putrefação.Ainda que repugne um fato que vou narrar,mostra ele bem a que grau sobre o gosto doBiheno pela carne. A minha cadela Traviata teve em caminho oitocachorros mortos. Mandei-os enterrar pelomeu Augusto, em lugar oculto, para os subtrairà voracidade dos meus Bihenos - mas doisdeles, do acampamento seguinte, voltaramatrás e lograram descobrir o lugar onde elesforam enterrados. Levaram-nos, fazendo comaquela carne um banquete. As termites comemeles cruas às mãos cheias - e apreciam muito osratos. Na ordem dos roedores há um que eles muitoprocuram, e é um rato pequeno de farta caudasedosa, que vive nas tocas das abelhas, as quaisnão agride. . . . .

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O ponto do rio Cuchibi onde eu estavaacampado é despovoado de gente - e diziam-me os guias que só depois de quatro dias demarcha lograríamos alcançar as povoações. Nodia imediato, seguimos viagem rio-abaixo pelamargem direita. A meia jornada, nesse dia,notei eu que me faltava muita gente. Mandeifazer alto, e voltei atrás a indagar do caso -quando deparo em um mato com muitos dosmeus, que compraram a uns Ambuelas carnede Quichôbo, a troco de cartuchos que metinham furtado. Fugiram, ao ver-se descobertos, mas menos

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destros pude alcançar o pombeiroChaquiçonde e o meu doutor Chacaiombe.Este lançou-se de joelhos a pedir perdão - maso seculo Chaquiçonde tirou do machado parame agredir. Dei-lhe tão forte pancada na cabeça com acoronha da arma, que ele caiu por terraatordoado, e eu julgei-o morto - não mecausando tanta impressão ter morto umhomem em defesa própria, como o ter sido issopor uma insubordinação, a primeira que sedava comigo. Voltei à comitiva, que mandeiacampar, e fiz transportar ao campo o séculoChaquiçonde, que vinha banhado em sanguede larga ferida produzida pela pancada. Fiz-lhe um curativo e reconheci que não era decircunstância o ferimento, porque feridas nacabeça, quando não matam logo, em brevecicatrizam. Reuni depois os pombeiros, porquem fiz julgar o delito do culpado - sendo amaioria de voto que ele devia ser condenado àmorte. Outros entenderam, que lhe deveriamandar dar muita pancada.

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Mandei-o comparecer, fi-lo reconhecer a suaculpa e perdoei-lhe. A minha generosidadeproduziu geral assombro. No dia seguinte,sustentei marcha de seis horas, sempre namargem direita do rio. Continuava a aparecer bastante caça, masmuito esquiva. Matei um songue. Este eleganteantílope difere bastante daquele a que osBihenos dão o mesmo nome entre a Costa e oBihé. Tem 1 metro e 50 centímetros de alturana agulha e 1 e 40 da agulha à raiz da cauda. Opêlo curto é amarelo torrado - e de cor igual.Medi alguns saltos de 5 metros e vi-os saltarpor sobre um canavial de 2 metros de alto. Nomomento do halali* defende-se e ataca raivoso.A sua carne é saborosa, mas, como a de todosos antílopes, muito seca. * acuo, cerco do animal caçado. Vive em manadas, sempre na planície, e temvigias enquanto pasta. . . .

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Só muito perseguido se embrenha nas matas,ou atravessa um rio a nado. Este antílopedesaparece completamente além do cursosuperior do rio Ninda. Segui no dia imediato. À medida que iadescendo o rio, vi que a planície marginal maise mais se alargava. Nela pastam bandos deantílopes, predominando os songues. Nessedia já se sentia grande falta de víveres, ecomeram-se as últimas rações de massango. Finalmente, a 29 de julho, depois de três horasde marcha, fui acampar em frente daspovoações de Caú-eu-hue, onde reside o sobado Cuchibi. Antes de falar dos povos Ambuelas, e de umrico país atravessado pelo Cuchibi, quero dizerduas palavras do meu modo de viajar, ouantes, da minha vida em África. É certo quetodos os meus predecessores têm tido o seusistema, e aqueles que me seguirem terão oseu, todos ótimos. A minha vida, salvas raras exceções, foi aseguinte: Levantava-me às 5 horas, despia-me

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(porque dormia sempre vestido e armado), etomava banho em água à temperatura de 33graus centígrados. Os ingleses tomam banhoem água fria, que é mui tônica; eu por mim,lavo-me por asseio - e não uso da hidropatia.Para isso tinha uma chaleira de ferro que meservia para aquecer a água. Narrando o meuviver africano, falarei de alguns objetos que aele estavam estreitamente ligados. O primeiro,depois da chaleira, era a minha banheira deborracha, fabricada pela casa Macintosh deLondres. Era um traste precioso, que, depoisde tão aturado serviço, ainda se acha hoje emótimo estado. Coisa de borracha fabricada emInglaterra é assim. Depois do banho, passava ao meu toilet. Abacia era cortada em uma cabaça de 50centímetros de diâmetro. As toalhas eram definíssimo linho de Guimarães. Escovas,esponjas, sabonetes e perfumarias (eu emÁfrica usava muito de perfumarias), eram deprimeira qualidade - fornecidas pelo CarlosGodefroy, que vende tudo muito caro, mas

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muito bom. Terminado o meu toilet, a queassistia o meu criado de quarto Catraio,guardava ele cuidadosamente todos os objetosde que eu me tinha servido e vinha apresentar-me os cronômetros, termômetros e barômetro. Dava corda e comparava os primeiros;registrava as indicações dos segundos. A essetempo já o meu moleque Pepéca tinta feito ochá, e vinha apresentar-mo. Figura aqui umobjeto a que eu ligava a maior importância. Erauma chávena de porcelana, chávena que me foioferecida pela esposa do tenente Rosa, emQuillengues. Fina como uma folha de papel,transparente e elegante, aquela chávena faziaas minhas delícias, tornando mais saborosa ainfusão das folhas do arbusto chinês. Depoisde tomar três chávenas de chá verde, semaçúcar, porque o não tinha, fechava as malas edava ordem de partida - partida, que rarasvezes se efetuava antes das 8 horas, por serimpossível arrancar os carregadores de juntodas fogueiras, onde os prendia um frio intenso. .

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Partíamos pelas 8 horas. Na frente da comitivao preto Caínga, de Silva Porto, levantava abandeira, e logo após ele seguiam as caixas decartuchos, a pau e corda. Iam após os outroscarregadores indistintamente, a um de fundo.Fechando a marcha eu, o Veríssimo, e ospombeiros. O carregador que por qualquer motivo tinhade deixar o caminho, pousava a carga - e eraisso sinal para junto dela parar o pombeiro aquem ele pertencia, que depois oacompanhava. Durante o caminho observava os meus rumose calculava as minhas marchas, combinando opedômetro com o relógio. As marchasregulares eram entre 8 e 10 milhas geográficas,sendo variáveis a muito mais quando ascircunstâncias o exigiam. A tempo acampava, edurante uma hora durava a faina de construirbarracas. Era um cortar de madeira, de ramos e de ervaque durava uma hora. Se não tinhaobservações a fazer, estendia-me

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horizontalmente na erva viçosa - e dormia atéme virem prevenir que estava pronta a barraca. Geralmente a barraca estava pronta à umahora; tinha pois de esperar algum tempo parafazer as minhas observações para o boletimmeteorológico, que era feito a 0h43m deGreenwich. Para saber a hora consultava umrelógio que o Pereira de Mello me mandara deBenguela para o Bihé, relógio de latão, purocilindro de construção helvética, oito rubis etc.,que trabalhava desembaraçadamente. À hora precisa, chamava o Catraio, que metrazia os instrumentos, - e usando eu de umtermômetro de funda, que pertencera ao infelizBarão de Barth, quando eu fazia girar otermômetro juntavam-se sempre, à distância,todos os carregadores Bihenos quecontemplavam pasmados aquela operação, queeu repetia todos os dias e eles todos os diasvinham contemplar pasmados. Logo que registava as observações, vinha omeu moleque Moero com os pratos e a ração -

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que eu não quero chamar jantar aquelepunhado de massango cozido em água. Depois da refeição, se a fadiga me impedia deir caçar e percorrer os arredores, empregava otempo passando as notas do dia para o diário,calculando as observações, desenhando, etc. Atinta que eu empreguei em todos os meustrabalhos foi a dos pequenos tinteiros mágicos*- cada um dos quais me durava de dois a trêsmeses. * Espécie de proto-caneta-tinteiro, de pena metálica. Este sistema de fazer apontamentos durante asmarchas e durante o dia, que depois passavaao diário, dava em resultado o ter eu umduplicado dos meus trabalhos - e de haversempre a possibilidade de se salvar um, se ooutro se perdesse. Os apontamentos diárioseram feitos a lápis, em pequenos cadernos, queeu ia lacrando e selando à medida que ospreenchia. Neles, além dos fatos, estavamregistradas todas as observações iniciais, jáastronômicas, já meteorológicas. Estescadernos, que ao deixar Durban enviei a

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Portugal por via de Inglaterra, chegaram asalvo a Lisboa, onde ainda estão por abrir, aopasso que a cópia desenvolvida do que elescontém sempre me acompanhou - e estáservindo de norma ao que estou escrevendoagora. Foi-me preciso fazer esta viagem para saber oquanto vale o tempo - e para quanto ele chegasendo bem aproveitado. Vinha a noite, e então crepitava na minhabarraca grande fogueira, que meproporcionava calor e luz. Se eu não tinhaobservações a fazer durante a noite, ou, muitasvezes, se a fadiga obrigava o repouso a preterirtudo o que houvesse a fazer, ia deitar-me sobreas peles de leopardo que formavam a minhacama, tendo por travesseiro a pequena malinhaem que guardava os meus papéis. Um hábito que adquiri em viagem, de envoltacom o frio da antemanhã, faziam-meregularmente acordar às três horas. Levantava-me então e reacendia a fogueira amortecida.Vinha à porta da barraca, onde via um

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termômetro deixado fora, e que a essa hora medava uma mínima muito aproximada. Eu nãotinha termômetros de máxima e mínima - e sãoapenas aproximadas estas duas indicaçõestermométricas que vêm nos meus boletins,sendo a temperatura máxima aproximada aque se fazia sentir à 1h30m, proximamente àhora do meu boletim a 0h43m do tempo deGreenwich. Depois das 3 até às 5 horas o meu tempo erapassado junto ao fogo, fumandoininterrompidamente 10 ou 12 cigarros epensando na minha pátria e nos meus. Quantas vezes a essa hora, hora para mim demeditação e tristeza, não cogitava eu no futurodo meu empreendimento! Estava então noCuchibi, 20 graus a leste de Greenwich e 14 emeio ao sul do Equador. Estava longe de todoo socorro que carecesse. Onde iria buscarrecursos para seguir avante? Do Bihé até ali ainda tive a pouca fazenda dealgodão de que dispunha - mas as últimaspeças estavam diante de mim. Eram o meu

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último dinheiro. Em todos os povos encontreimais ou menos facilidade de permutar oalimento pela fazenda de algodão, sendo apreferida o zuarte, o zuarte pintado e oalgodão branco ordinário. Raras vezes querem os riscados e a fazenda delei. O búzio miúdo (caurim), que tem muitovalor entre os Quimbandes, e muito poucoentre os Luchazes, recupera no Cuchibi a suaimportância, para emprego bem diversodaquele que lhe dão os primeiros destes povos.Ali é para ornamentar as cabeças, aqui é parafazer cinturões, em que há grande luxo. Amiçanga Maria 2a tem grande valor em toda aparte, mas no Cuchibi é preferida a tudo -exceto à pólvora. Chegando ao Cuchibi, cheguei ao primeiroponto em que nesta viagem me pedirammanilhas de cobre e arame para elas. Logodepois de ter estabelecido o meu campo,apareceu nele um homem que veio falar-me,dizendo ser Biheno e ter ficado ali doente,deixado por uma comitiva, havia três anos. Foi

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reconhecido por muitos dos meus carregadorese engajou-se ao meu serviço. Eu estava no caminho das comitivas do Bihé, ecomo tencionava demorar-me alguns diasmandei um pequeno presente ao soba - eparticipar-lhe a minha resolução. Soube peloBiheno que me apareceu, que corria a notíciade ter havido uma revolução no Baroze, tendosido expulso o régulo Manauíno e aclamadoum outro de que não se conhecia por ora ocaráter. Não me foi agradável esta notícia, porque eusabia que Manauíno era feroz e sanguináriocom os seus, mas hospitaleiro para comestranhos. Estes Ambuelas, entre os quaisestava, são a pura raça Ambuela - porque as doCubangui estão muito misturadas com a raçaLuchaze. São os habitantes do Cuchibi inimigos dosAmbuelas de Oeste, e muitas vezes lutam. Araça Ambuela ocupa todo o país banhado peloCuando superior, e está aglomerada sobretudona parte em que este rio recebe os seus

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confluentes Queimbo, Cubangui, Cuchibi, eChicului. As povoações no rio Cubangui são construídas,já nas ilhas do rio, já no mesmo rio sobreestacaria. Sendo estes povos os únicos quepossuem canoas, dormem de noitedescansados nas suas habitações aquáticas,sem receio de serem atacados. O soba mandou-me logo provisões e bastantemilho. Com que prazer eu comi um prato demilho cozido! Estava por algum tempo livre dofatal massango! Mandou ele dizer, que viriavisitar-me no dia imediato. Nesse dia, logo de manhã, saí a dar umpasseio. O emaranhado da brenha espinhosatornava difícil o caminhar na floresta. Aindaassim, afastei-me uns três quilômetros doacampamento e fui deparar com uma enormearmadilha de apanhar caça. Era ela formada por uma sebe que devia teralguns quilômetros de extensão, fechando umespaço aproximadamente circular. Este cercadoenorme tinha, de 20 em 20 metros, umas

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aberturas em cada uma das quais estavaarmado um Urivi, armadilha em que a caça -lebres e antílopes pequenos - são esmagadospor um pesado cepo. Reunida muita gente,fazem uma grande batida no mato e então acaça foge espavorida - e não podendo saltar ocercado, investe contra as aberturas, onde évítima dos Urivis ali colocados. De volta ao meu campo, encontrei no mato umacampamento de Mucassequeres, abandonadode há pouco. . . . . . . . . . . . .

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Recebi a visita do soba, homem de idadeavançada, de tipo simpático, com um perfiljudaico. Vinha bem vestido, trazendo sobreuma farda um casaco de linho branco e aopescoço um grande e vistoso lenço. Cobria-lhea cabeça um barrete de listas pretas eencarnadas. Na mão trazia uma concertina deque tirava sons desordenados. .

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Deu-me novo presente, de milho, mandioca,feijão e galinhas - que eu retribuí dando-lhealgumas cargas de pólvora, o mais estimadopresente que se pode fazer no Cuchibi.Retirou-se o velho muito satisfeito,prometendo avistar-nos mais vezes. Disse-me ele, nesta primeira visita, que os reisdo Baroze mandam ali receber tributos - e queele, para evitar guerra, lhos manda pagar,estando assim estabelecida uma espécie devassalagem. Que, havia pouco, soubera darevolução do Zambeze, mas não conhecia onovo potentado e nenhumas informações mepodia dar dele. Nessa tarde, os meus pretos prenderam nomato dois Mucassequeres que trouxeram àminha presença. Os dois pobres selvagenstremiam de medo e julgavam-se perdidos.Falavam um pouco a língua Ambuela, e pormeio de um intérprete pudemos entender-nos.Eles julgavam que uma sentença de morte os iafulminar, ou ao menos que a escravidão iriasujeitar o resto de seus dias.

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Mandei que os desamarrassem e lhesentregassem as suas armas. Disse-lhes queestavam livres e que voltariam para a sua tribo- e dei-lhes alguns fios de miçanga para as suasmulheres. Eles caminhavam de surpresa em surpresa, enão podiam crer na verdade das minhaspalavras. Dei-lhes de comer e pedi-lhes que melevassem a ver o seu acampamento. Depois dediscutirem acaloradamente um com o outro,numa língua desconhecida a todos os queouviam, e completamente diferente naentonação a tudo o que em línguas africanas eutinha ouvido até ali, decidiram que melevariam à sua tribo se eu quisesse ir só.Aceitei, e parti com os dois horrorososselvagens. Apesar do meu muito hábito da floresta, era-me difícil acompanhar os ágeis guias, que maisde uma vez tiveram de esperar por mim. Aocabo de uma hora de caminho, deparamos, nomeio de uma pequena clareira, com oacampamento da tribo. Haviam ali mais três

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homens, sete mulheres e cinco crianças. Algunsramos de árvore derreados, com outrosencostados na frente, são os seus únicosabrigos. Não têm o menor apresto de cozinha.Sustentam-se de raízes e de carne que assamem espetos de pau. Não conhecem o sal.Homens e mulheres mal cobriam a sua nudezcom pequenas peles de macacos. Arcos e flechas são as únicas armas de que seservem. Eu estava muito embaraçado, porquenão os entendia nem podia fazer-me entenderdeles. Dirigi-me às mulheres, a quem deialguns fios de miçangas que tinha levado paraisso. Elas receberam-nos sem darem mostra denenhum sentimento de agrado. A misériadaqueles desgraçados compungia-me. O seurosto é feíssimo, olhos pequenos e um poucoinclinados nas órbitas, ossos molares muitodistanciados e salientes; nariz achatado, com asfossas nasais desmesuradas. Têm o cabeloencarapinhado e pouco, crescendo em montõesseparados, mais basto no alto da cabeça. .

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Alguns bocados de pele de animais atados nospulsos e nos artelhos são o seu ornamento, outalvez amuleto milagroso. Procurei fazercompreender aos meus guias que ia voltar, eeles precederam-me no caminho, deixando-me,já noite, na orla do bosque de onde eu ouvia ovozear do meu campo e alegres cantares. Durante a minha permanência no Cuchibi,pude recolher algumas informações, ainda queescassas, a respeito de tão estranhas gentes. OsMucassequeres partilham com os Ambuelas osterritórios de entre Cubango e Cuando, sendoque estes vivem sobre os rios e aqueles nasflorestas; estes são bárbaros, aqueles selvagens.Não convivem, mas não se hostilizam. Se a fome os obriga, os Mucassequeres vêm aosAmbuelas permutar marfim e cera poralimentos. As tribos Mucassequeres sãoindependentes - e não obedecem a chefecomum. Guerreiam-se mesmo e os escravos que fazemuns aos outros vêm eles vender aos Ambuelas,que os permutam depois às comitivas do Bihé.

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Os Mucassequeres são os verdadeirosselvagens da África tropical do sul: os outrospovos podem ser chamados bárbaros. OMucassequer nunca teve casa ou simulacrodela. Nasceu sob a árvore da floresta, viveu emorreu sob a árvore da floresta. Despreza achuva e o sol - e suporta as intempéries comoqualquer fera dos matagais. Ainda o leão e o tigre têm um antro onde seescondem; o Mucassequer precisa que pelocorpo despido lhe sopre a brisa do mato. Nãoconhece a enxada, porque nunca cultivou aterra. Raízes, mel e caça são o seu alimento - ecada tribo vagueia sem cessar em busca deraízes, mel e caça. Nunca dormem hoje onde ficaram ontem. Aflecha é a sua arma, e tão destros são no seumanejo que caça apontada é caça morta. Opróprio elefante cai traspassado pelas suassetas lançadas por musculosos braços. As duas raças que habitam este país são tãodiferentes no corpo como nos hábitos. OAmbuela é preto e tem o tipo da raça

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caucásica; o Mucassequer é branco e tem o tipoda raça hotentótica em toda a sua hediondez.O nosso marinheiro crestado pelo sol e pelovento dos temporais é mais escuro do que oMucassequer. Há, contudo, naquela cor branca,alguma coisa de amarelo terroso que os tornahediondos. Tive o maior pesar de não poder recolherdados mais precisos sobre esta curiosa raça,que me parece dever merecer atenção especialdos antropologistas e dos etnógrafos. É minha opinião, que este ramo da raça Etíopepode ser colocado no grupo da divisãoHotentótia. Tem na forma muito dos seuscaráteres - e nós vemos nessa raça umavariação sensível na cor da pele. O bushman dosul do Calaari é de cor mui clara - e algunstenho visto quase brancos. São de estaturapequena e de corpo franzino, mas têm todos oscaráteres do tipo Hotentótio. No norte domesmo deserto, sobretudo junto aos lagossalgados, formiga outra raça nômade, osMassaruas. Fortes e de estatura alta, de cor

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negra carregada, possuindo o mesmo tipoHotentote, e indubitavelmente pertencendo aomesmo grupo. Disseram-me no Cuchibi queainda entre o Cubango e Cuando, mas muitoao sul, existia outra raça em tudo semelhanteaos Mucassequeres, em tipo e hábitos, masmuito pretos. Assim, pois, em vista da afinidade doscaráteres, não me repugna admitir, que ogrupo Hotentótico da raça Etíope se estenda aoN. do Cabo até entre Cubango e Cuando,passando por diversas modificações de cor ede estatura, devidas quiçá aos meios em quevivem, à altitude, à grande diferença delatitudes - ou ainda a outras causas menosapreciáveis. Por muito tempo as subdivisões da raça Etíopena África tropical serão mal conhecidas naEuropa, por não ser fácil coligir os dados parao seu estudo. Qual é o indígena dessas tribosbárbaras que deixa moldar o seu corpo? Casodeixasse, como pode o antropologista levar a

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matéria para fazer os moldes e reconduzirdepois esses moldes até à costa? Como colecionar esqueletos, crânios mesmosomente, em países onde a profanação de umasepultura pode ser caso da perda de umaexpedição? Como ocultar da sua própriacomitiva, dos seus próprios carregadores, essesdespojos humanos - que seriam olhados comouma fonte de malefícios? A fotografia, de todos o meio mais incompletode fazer esses estudos, apresenta, ainda assim,dificuldades insuperáveis. Em primeiro lugar,é difícil empregá-la em viagem de exploração,onde nem sempre dá os resultados que dela seesperam - sendo quase impossível o transportede um laboratório em frascos de vidro à cabeçade um carregador, que tropeça e caí dez vezespor dia. Eu sei-o de experiência própria; e queo digam Capello e Ivens. Supondo porém que se podiam mais ou menosfacilmente empregar os meios fotográficos,qual era o indígena do interior que deixava

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apontar uma máquina, e estava um momentofirme diante da objectiva da câmara escura? No correr da minha narrativa terei ocasião denarrar uma anedota acontecida comigo e com ofotógrafo suíço M. Gross, em que eu conseguiobter um grupo de Betjuanas, já meio-civilizadas, com uma paciência e uma despesaincalculaveis. Com os Mucassequeresaconteceu-me de nem mesmo lhes poderapanhar o tipo com o lápis e papel! Voltemos à minha narrativa. Ao deixarem-me na orla da floresta, já noite, osmeus Mucassequeres disseram-me maispalavras, que provavelmente queriam dizerboa noite, e foram-se. A claridade espalhada naatmosfera pelas fogueiras do meu campo e osom de alegres cantares guiavam meus passos- e pouco depois entrava eu no recinto doacampamento, onde, ao som da músicabárbara dos Ambuelas, havia um dançarfrenético. . .

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Muitas raparigas Ambuelas dançavam com osmeus carregadores, fazendo soar as manilhasdos braços em compassado tinir.Impressionou-me o tipo daquelas raparigas,que era perfeitamente europeu - e algumas vique, com a mudança de cor, fariam inveja amuitas formosas europeias, a quem igualariamem beleza e excederiam em formas e elegânciasnaturais.

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Ali soube um caso novo para mim. EstesAmbuelas, quando chega ao país umacomitiva, vêm tocar e dançar ao seu campo - eà medida que a noite se adianta, vão pouco apouco retirando e deixando ali mulheres, irmãse filhas. É costume de hospitalidade destagente oferecerem companheiras aos foragidosque aparecem. No dia seguinte, muito cedo,elas retiram para as suas povoações - e poucodepois voltam, trazendo presentes ao amantede uma noite. . . . . . . . . . . . .

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Comigo deu-se uma estranha aventura.Moene-Caú-eu-hue, o velho soba, mandou-meas suas duas filhas, Opudo e Capêu. Opudoteria uns vinte anos, Capêu dezesseis. A maisvelha era feia e tinha um modo altivo; a maisnova, simpática, tinha um rosto cândido eingênuo. .

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Desde que me internei em África, decidi teruma vida austera, o que me deu sempregrande influência sobre os meus pretos, que,não me vendo beber senão água e não meconhecendo uma só aventura galante, mejulgaram sempre um ente superior eprivilegiado. Apesar da minha força de vontade, tive desustentar uma luta atroz comigo mesmo pararesistir à tentação da filha mais nova do sobaCaú-eu-hue. Capêu só fala o Ganguela, que eunão entendia, mas Opudo falava o Hambundo. . . . . . . . . . . .

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“Porque nos desprezas?” me perguntou elacom modo altivo. “Por ventura na tua terratens mulheres mais bonitas do que minhairmã?” “Nós dormiremos aqui, porque eu nãoquero que se diga que as filhas do chefe dosAmbuelas foram expulsas por um branco.” . .

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Imagine-se a ridícula situação em que euestava colocado! Era tal a atribulação do meuespírito, que não sabia que responder. É verdade que a única resposta a dar eraaquela que eu não queria dar. Na minhabarraca estavam sentadas duas mulheres, sobrepeles de leopardo; entre mim e elas a vastafogueira deitava uma luz pálida - que era indaamortecida pelo verde escuro da folhagem queforrava o interior da cabana. Os lampejos da fogueira iluminavam a cabeçacândida e colo nu de uma mulher de dezesseisanos, que me fitava com um olhar lânguido,túmido de desejos, inebriante de lascivaspromessas. Eu via o arfar daquele peito nu, debeleza escultural, e não podia desviar os meusolhos dele. Lá fora, ao ruidoso som dos batuques, haviaum cantar mais brando - e o dançar maiscompassado indicava a lassidão dos membros.Os meus bravos carregadores escolhiam ascompanheiras da noite. .

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Eu estava só com as duas raparigas, mais só doque se estivesse muito longe de gente. “Nósficaremos aqui, me disse a orgulhosa Ambuela;não quero expor minha irmã aos chascos dasmulheres velhas das povoações - e só te digo,branco, que se tu és seculo do Muene-Puto, eusou filha do soba.” O ridículo da minha posição aumentava; eusustentava uma luta comigo mesmo para nãoceder aos atrativos da joven selvagem e nãotinha uma palavra a dizer, porque não sabia oque fazer. Aquela situação picaresca não podia continuar,e eu não sabia como terminá-la. Preferia milvezes estar em luta com o guerreiro pai, do queem tal colóquio com a amante filha. De repente levantou-se a pele que fechava aporta da barraca e alguém entrou. Era apequena Mariana, que tinha escutado tudo oque se disse na tenda. Entrou e foi acocorar-sejunto à fogueira que atiçou. Depoiscumprimentou as Ambuelas batendo repetidasvezes as palmas, como é uso no país, e

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repetindo a palavra cô-qué-tú, cô-qué-tú, edisse-lhes: “O branco não as depreza; se as nãodeixa dormir aqui é porque aqui só eu durmo;o branco é meu. Junto desta está a minhabarraca, podem ir dormir ali.” As filhas dosoba Caú-eu-hue levantaram-se e saíram com apequena, a quem eu daria tudo para pagar talserviço. Momentos depois, voltava Opudo edizia-me baixo: “Hoje dormimos fora, mas tuhás de ser amante de minha irmã.” Confessoque me meteu medo aquela mulher, a mim quenunca temi as feras! Deitei-me pensando na estranha aventura, evindo-me vivamente à lembrança a bíblicahistória da capa de José no Egito. No diaimediato, as filhas do régulo vieram como asoutras trazer-me presentes. Eu dei-lhes algumamiçanga e elas retiraram, sem fazer a menoralusão à cena da noite. Pouco depois, um portador do soba veioprevenir-me de que ele me esperava essa tarde- e me mandaria um barco para eu ir à suapovoação. No acampamento apareceram

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algumas cobras, que os pretos diziam seremvenenosas, e muitos escorpiões negros de 10 a12 centímetros de comprido. Alguns dos meuspretos foram picados por estes repugnantesaracnídeos, cujo veneno não produziu outroacidente além de violenta dor e tumefação dostecidos próximos. Os Ambuelas são os primeiros povos que seencontram no meu caminho, que não vãoocultar nas florestas as suas plantações. É nagrande planície por onde corre o rio que acultura é feita - por isso a abundância deprodução que tem afamado estes povos comocultivadores. As cheias alagam a campina e o sedimento queali deixam as águas é ubérrimo adubo que lheavigora a cultura. Se não regam o terreno,como não vi fazer a povo algum africano,fazem irrigações - e observei em volta dasplantações fundos sulcos, por onde se produz asecagem dos terrenos que cercam. Estive trabalhando, e só tarde me lembrei de irprocurar a canoa que o soba me preveniu

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estaria à minha disposição junto ao rio, para irà sua povoação. Ao chegar ao pontodesignado, qual não foi a minha surpresa aover a ligeira barca tripulada por Opudo eCapêu, as duas filhas do régulo! Eu, que mejulgo pouco medroso, confesso que sempre tivemuito medo de mulheres. Todavia não quis deixar perceber receios - esaltei para a estreita piroga, que equilibrei,dizendo-lhes: “Vamos.” Elas, com imensadestreza e com extrema elegância,manobraram a canoa - correndo por umcanalete que conduz ao rio. O sol estava no ocaso. O ligeiro barco deslizavapor entre uma vegetação aquática riquíssima,que vinha expor as suas belezas à superfície daágua do canal. As vitória-régias - e muitasespécies de nenúfar - prendiam às vezes oandar da canoa. . . . .

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Eu só pensava naquelas mulheres. Via já acanoa virada, e eu presa de um crocodilo. Derepente, por uma hábil manobra dos remos, acanoa estacou e Opudo disse-me: “Já é muitotarde para irmos a casa de meu pai, eu esperei-te muito tempo, volvamos para a terra, eamanhã voltarás.” Pouco depois atracávamos,e elas acompanharam-me ao campo. Veio a noite, e lá fora no acampamento asdanças e os cantares - e na minha barraca asfilhas do régulo conversando de coisasindiferentes. Levantaram-se quando cessou oruído das festas e foram deitar-se à porta dabarraca junto de uma fogueira que acenderam. Quis que elas fossem para a barraca dapequena Mariana, mas Opudo respondeu-me,que “era bicho do mato e estava acostumada atudo.”

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Nesse dia o meu Augusto, que foi ao matocaçar, encontrou um bando de macacospequenos - os primeiros que apareceram nomeu caminho desde a costa de Oeste. No diaimediato, fui logo de manhã visitar o soba -

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mas, querendo evitar aventuras, armei o meubarco de borracha e fui nele. O canal que segui vai desembocar num braçodo rio que tem 20 metros de largo por 6 defundo, com corrente rápida de 50 metros porminuto. O rio divide-se, formando ilhotasbaixas e encharcadas onde cresce um canavialespesso. É nestas ilhotas, ainda cortadas porpequenos canais, formando um verdadeirolabirinto, que assentam as povoaçõesAmbuelas num solo pantanoso, ao nível do rio.As casas são meio encobertas pelo canavialbasto. As paredes são construídas de caniços,assentes sobre estacaria - e as coberturas são decolmo. . . . . . . . .

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Casas, como tudo o que fazem estes Ambuelas,são pessimamente construídas - e poucoabrigam. Fora das portas, pendem de grandesestacas enormes cabaças, onde eles guardam acera e outros objetos. As próprias casas estão atulhadas de cabaças.Entre os Ambuelas, a cabaça é mala, é cofre, é oseu principal traste de mobília. Os depósitos demantimentos só diferem das casas de habitaçãoem estarem dois metros elevados do solo,sobre estacas, e por isso livres das inundaçõesdo rio. .

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Numa das ilhotas mora o soba Moene-Caú-eu-hue. Há ali a sua casa de habitação, quatromais, de quatro mulheres, e alguns depósitosde mantimentos. Junto da casa do régulo estãomisturados, em troféu rústico, caveiras, cornose outros despojos de caça. Moene-Caú-eu-hue recebeu-me tendo a seulado dois dos seus favoritos. Logo que mesentei, o meu intérprete e um dos favoritoscomeçaram um estridente bater de palmas - eapanhando um pouco de terra, esfregaramcom ela o peito e repetiram muitas vezes,apressadamente, as palavras Bamba e Calunga,terminando por novo bater de palmas muitorápido mas pouco forte. Estavam oscomprimentos feitos. O régulo quis ver o meu barco, e fez nele umapequena excursão pelo rio. O seu espanto, ao ver o poder de flutuação dobarco portátil, não tinha limites - e muitasvezes me repetiu que não vendesse daquelesbarcos aos Ambuelas do Cubangui, senãoestavam perdidos.

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Tranquilizei-o, dizendo-lhe que os brancos nãoqueriam guerra entre eles - e por isso teriamtodo o cuidado em não lhes dar os meios de afazerem. De volta à ilha, mandou ele vir uma cabaça deBingundo* em um copo de folha de flandres -lata tronco-cônica de marmelada de Lisboa,deixada ali por algum sertanejo Biheno emviagem de comércio. * Bebida fermentada feita de água, mel e lúpulo. Cheio o copo, entornou o soba algumas gotasdo líquido fermentado no solo e cobriu de terraúmida o lugar, bebendo em seguida todo o seuconteúdo. Tendo-lhe dito o intérprete que eu só bebiaágua, ele passou a cabaça aos seus favoritos -que a esgotaram em um momento. Ao meio-dia estava de volta ao meu acampamento.Estive nesse dia com um indígena, irmão dosoba, que me disse ter descido dali ao Zambezeembarcado pelo Cuchibi e Cuando. . .

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Este preto é inteligente e fala bem o português,por ter sido soldado em Luanda, para ondefora vendido no tempo da escravatura. É umgrande caçador - e muitas vezes percorreu, nassuas excursões cinegéticas, as margens doGuando até Linianti. .

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Disse-me ser o Guando completamentenavegável, sem rápidos, mas por vezes alargartanto que adquire pouco fundo. E ser tãopoderosa a vegetação aquática, que prende osbarcos, tornando em alguns pontos difícil anavegação. Afirmou-me, e depois tive ocasiãode verificar nas localidades, que o rio Cuandose chama sempre Cuando até Linianti - e daliao Zambe ainda Cuando ou rio de Linianti, enunca Chobe, ou Tchobe, como vem designadonas cartas. A raça Ambuela continua no Cuando o mesmosistema de vida que tem no Cuchibi e as ilhassão ainda o local onde edificam as suaspovoações. Nas margens do Cuchibi reaparece o luxo dospenteados, que tinha desaparecido com a raçaQuimbande. O búzio miúdo, caurim, é de novomuito apreciado ali - não para enfeitar ascabeças, mas para fazer largos cintosadornados com ele. No fim do canal onde embarquei para ir a casado soba, notei dois molhos de grossos paus

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espetados verticalmente e distanciados dealguns metros. Destes paus pendiam bocadosde esteiras já meio apodrecidas do tempo.Indagando o que era aquilo, soube que juntoàqueles paus se praticava a circuncisão àscrianças másculas de 6 a 7 anos, e depois asmandavam para o mato completamentedespidas, até completa cura, sendo-lhesministrada a alimentação pelos operados doano antecedente. Eles, no mato, teciam esteiraspara cobrirem a sua nudez - e ao reentraremnas povoações deixavam-nas penduradas nospaus em que haviam sido operados. Mostraram-me ali também outra engenhocamuito curiosa. Sobre duas forquilhas toscasrodeadas de meio metro de terra, descansa umpau cilíndrico de um metro de comprido com30 milímetros de diâmetro, envolvido empalha fortemente amarrada - que lhe dá umaspecto fusiforme. Este aparelho é feito por um cirurgião de fama,que lhe incute um poder extraordinário. Logoque um marido suspeita sua mulher de

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esterilidade, manda chamar o cirurgião, que aconduz junto ao curativo. No meio de palavras cabalísticas, é-lheesfregado o peito e as costas com o preciosopau envolto em palha - e afiançou-me o sobaque o resultado apenas se fazia esperar noveluas. Apesar da muita fé que os Ambuelas têmneste sistema de terminar a esterilidade, eu nãome atrevo a aconselhá-lo na Europa. As minhas relações com os indígenas eram asmais cordiais e afáveis. As filhas do régulocontinuavam a trazer-me presentes - e só elasproviam à minha alimentação e à dos meusmoleques de serviço. Coisa que eu desejava era logo procurada e aminha vontade satisfeita - querendo elas fazeracreditar às outras que entre nós existiamrelações mais íntimas do que as de uma lealamizade. Eu sabia que era uma vergonha paraelas o serem repudiadas pelo forasteiro a quemse dão - e deixava-as aparentar a meu respeitoo que realmente não eram. .

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Vivíamos assim nos termos da melhoramizade, sendo verdadeiramente importante acoadjuvação que elas me prestavam para obteros carregadores e mantimentos de que euprecisava, para atravessar uma larga zonadespovoada e falta de recursos. Pude obterlarga provisão de milho e algum feijão, sendo amaior parte presente das filhas do régulo. Os meus haveres tocavam o seu fim - e salvouma grande porção de pólvora encartuchada,alguma miçanga e pouco cobre para manilhas,já nada mais possuía. Dois dos meuscarregadores levavam o presente que eudestinava ao régulo do Baroze, que era umrealejo em cuja tampa dois bonecosautomáticos dançavam ao som do moinho demúsica e faziam divertir enormemente ogentio. O meu Augusto aproveitava acuriosidade dos indígenas, explorando-a emmeu favor e fazendo ver o realejo em ação - atroco de ovos de galinha, que ele tinha ocuidado prévio de deitar em água para ver seestavam em bom estado, porque mais de uma

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vez, no princípio, foi enganado pelo gentiomanhoso, que ávido de satisfazer a curiosidadee não exitava em ir aos ninheiros tirar àsgalinhas os ovos incubados. Moene-Caú-eu-hue, decerto a instâncias dasfilhas, resolvia todas as dificuldades que seapresentavam e preparava-me rapidamente apartida. Elas tinham resolvido acompanhar-me atéonde fossem os Ambuelas, devendo ser Opudoquem dirigisse a horda dos seus súditos. Antes de seguir os acontecimentos da minhaviagem, direi mais algumas palavras do país edos Ambuelas, que tão hospitaleiros forampara mim. A língua Ambuela não é mais do que a línguaGanguela, a mesma que se começa a falar aleste do rio Cuqueima. Como o Hambundo, deque é um dialeto, é pobríssima - muitoirregular nos verbos e falta de todos osvocábulos que exprimem um sentimento nobree generoso. .

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Serão tão infelizes estes povos que não sintama necessidade de exprimir esses sentimentospela palavra, por serem eles estranhos à suaexistência? Impossível me foi averiguá-lo - masnão me repugna crê-lo. Neste ponto, onde fuirecebido como amigo - e por isso livre dequalquer influência que predispusesse o meuespírito contra o gentio africano -, não pude lerainda nos arcanos da alma do negro mais doque sórdida cupidez. A material lascívia, acovardia em presença do forte e a ousadiacontra o fraco. Os povos Ambuelas são, de todos os queencontrei no meu caminho, os que em maiorescala cultivam a terra, que lhes paga otrabalho que eles lhe dispensam comprodigalidade admirável. O feijão, a abóbora, abatata doce, a ginguba, o rícino e o algodão,são cultivados entre as enormes searas demilho de ótima qualidade. Também cultivamestes povos a mandioca, mas pouca pude obter- por terem sido naquele ano destruídas as

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plantações dela por uma cheia do rioextemporânea. As galinhas são o único dos animaisdomésticos que possuem os Ambuelas. O seuviver, sempre em receio dos ataques dosvizinhos, faz com que estes povos não sejampastores, deixando ao abandono as extensasplanícies cobertas de viçoso pasto, ondepoderiam apascentar enormes rebanhos. Ogado bovino deixa de aparecer ondedesaparecem os Quimbandes. O caprino aparece, ainda que raro, entre osLuchazes - entre os quais aparece mais raroainda o porco doméstico, que abunda no Bihé eentre o Bihé e a Costa Oeste. Em paísescobertos de ubérrimas pastagens, livres daterrível mosca tsé-tsé, com todas as condiçõesdesejáveis para largas criações de gados,porque faltaram eles? Não é talvez difícil encontrar a explicação. Ogado é a riqueza maior dos povos africanos, eexcita sempre a cupidez dos vizinhos, sendo,como eu já tive ocasião de dizer, a causa

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permanente das guerras entre os povos quedemoram da Costa Oeste ao Bihé. O receio deser rico, e por isso de ser atacado e roubado,não é estranho talvez à falta de gados que seencontra do Cuanza ao Zambeze. Entre estasbárbaras gentes os paradoxos são vulgares, ehá ali princípios estabelecidos e arraigados quedificilmente podem ser compreendidos naEuropa. O cão, esse fiel e dedicado amigo do homem,não desmente junto do preto o seu mister decompanheiro desvelado e vigia ladino,encontrando-se entre todos os povos das raçasGanguelas. É verdade que se trata de umavariedade de gozos* e alguns podengos**degenerados - e são apenas esses osespécimens da raça canina que se encontramnesta parte de África. Entre os Quimbandes eos Bihenos são os cães desveladamentetratados, porque são destinados a seremcomidos e são apreciado manjar. * Cão pequeno e comum. ** Cão que se presta, no máximo, à caça de coelhos. .

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Os Ambuelas, como disse, com elementos paraserem dos primeiros povos pastores de ÁfricaAustral, nenhum gado possuem - e apenasfazem criação de uma variedade de galinhasmuito pequenas. Entre os habitantes do rio Cuchibi não hálugares destinados para cemitérios. Os sobassão enterrados no mato em lugar separado,mas o povo é indistintamente sepultado nolodo do rio. Os Ambuelas têm costumesbrandos, e é mais franca a sua hospitalidade.São bastante caçadores, e apanham muita ceranos matos. . . . . . . . . . .

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. A mulher tem mais alguma consideração entreeles do que entre os outros povos que até alivisitei, onde é apenas escrava ignóbil. Estes indígenas são muito pescadores, o quenão admira vivendo no meio de um rio cujafauna aquática é variadíssima. Efetivamente,

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de todos os rios que até ali encontrei, nenhumvi tão piscoso. Pude obter dos indígenas,durante a minha estada ali, 18 variedades depeixes, assegurando-me eles haverem outrasainda.

1/4 do tamanho natural. Pele mole edesprovida de escamas. Dorso castanho commanchas mais escuras; forma triangular, sendoo ventre um lado e o dorso o vértice; 3barbatanas ventrais, 2 subdorsais e duasdorsais. Dois fios musculares sobre a boca edois na maxila inferior. É espécie de um gêneromuito vulgar em África e que conta muitasespécies. Aqueles que pude ver dão eles osnomes seguintes: Peixes pequenos, menores de 20 centímetros. 1. Mussouzi peixe de pele. 2. Mango idem. 3. Chinguene idem.

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4. Chibembe idem. 5. Limbumbo idem. 6. Dipa peixe de escamas. 7. Chitungulo idem. 8. Lincumba idem. 9. Nhele idem. 10. Lingumoeno idem.

Tamanho natural. Escama dura e larga; dorsocinzento azulado; ventre branco prateado; 5barbatanas ventrais, 1 lombar. Barbatanasmoles. Peixes grandes, entre 20 e 50 centímetros. 11. Chó peixe de pele. 12. Mucunga peixe de escamas. 13. Undo idem. 14. Chinganja idem. 15. Nassi idem. 16. Bula idem. 17. Ganzi idem.

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18. Boei-ie idem.

Tamanho natural. Escama dura e miúda; dorsocinzento avermelhado; ventre brancoavermelhado; 3 barbatanas ventrais, duassobreventrais, e 1 lombar percorrendo todo edorso, armada de espinhos. Seis diferentes grandes mamíferos habitam orio Cuchibi. 1. O Hipopótamo. 2. O Quichôbo ou Buzi (antílope). 3. O Nhundo (lontra comum). 4. Libao (grande lontra malhada de branco). 5. Chitoto (pequena lontra completamentepreta). 6. Dima (herbívoro do tamanho de uma cabrapequena, desarmado de cornos, vivendo nasmesmas condições do Quichôbo ou Buzi).

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Ainda os répteis que habitam as águas do riosão numerosos, sendo que os crocodilos sãopequenos e pouco vorazes, e as cobras umassão, outras não venenosas. Tem uma grande variedade de batráquios, queos Ambuelas não distinguem, dando a todosindistintamente o nome de Manjunda. Noscanais e lugares onde a água é estagnada,vivem milhares de sanguessugas, como emtodos os rios desta parte de África. Tinha feito larga provisão de milho, e para elemuitos carregadores, sob o comando das filhasdo soba. Decidi-me pois a partir, e depois dasmais cordiais despedidas, segui, a 4 de agosto,continuando a descer o rio na margem direita.Duas horas depois de ter deixado Caú-eu-hue,foi-me indicado pelos guias um vau onde seriapossível a passagem. Passaram eles para memostrarem o caminho - e eu vi que a umhomem de estatura regular dava a água pelopescoço, durante uns 20 metros. O rio tem ali de 70 a 80 metros de largo. Despi-me e fui estudar o vau. Vi que era estreito, e

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logo à montante e à jusante aprofundava de 3 a4 metros - mas o fundo era de areia muitoresistente. A corrente do rio era, sobre o vau,de 60 metros por minuto. Nestas condições apassagem é sempre difícil a uma comitivacarregada. Dei ordem de começar a passagem, que levouduas horas - conservando-me eu sempredentro de água, com o Veríssimo e Augusto, osúnicos que sabíamos nadar, prontos a acudir aalgum que perdesse o pé. Não houve porém omenor incidente - e nem uma carga se molhou,tal cuidado tivemos todos. Passado o rio, comoestivéssemos bastante fatigados, apenasganhamos a povoação de Lionzi, ondeacampamos. Houve grande afluência de gentio no meucampo e choveram presentes e ofertas devenda de mantimentos. Nunca vi em Áfricatantas galinhas como nesse dia trouxeram osAmbuelas a meu campo. Não houvecarregador ou moleque que não comessegalinha assada.

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Notei entre aquele gentio uma moderação ebrandura verdadeiramente admiráveis empovo africano. Todos os homens vinhamarmados de arco e flechas; alguns traziamazagaias, e muitos, além das armas gentílicas,compridas carabinas de silex, de fabricaçãobelga.

Entre os Ambuelas, homens e mulheres cortamum triângulo nos dois dentes incisivos dafrente, mas em ângulo muito mais aberto doque entre os Quimbandes. As suas armas sãofabricadas por eles, sendo muito imperfeito otrabalho do ferro, que extraem em minas à

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jusante da confluência do Cuchibi e Cuando.Os Ambuelas que usam espingardas sóquerem, como eu já disse, as armas lazarinashoje fabricadas na Bélgica - e a cada peça decaça que matam, enrolam em torno do canoum bocado de pele do animal, o que dá lugar,pela simples inspeção da arma, a saber quantasvítimas ela tem feito. Isto deforma a arma eimpede de apontar - mas, como eles sóarriscam um tiro a dez passos, acontecematarem. O caçador que vi ali tendo mortomais caça tinha dez bocados de pele em tornodo cano da espingarda. Aquela pobre gente, sem as armadilhas domato, não teria peles para cobrir a sua nudez.Pólvora é rara ali, onde apenas de anos a anosaparece um sertanejo Biheno que lhe vendepouca - e por isso tem subido valor.

.

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Entre os Ambuelas que vieram ao meu campoapareceu um muito engraçado, que por todosos modos procurava convencer-me a dar-lheuma carga de pólvora por um galo grande quetrazia. Divertiu-me muito com o modoengraçado por que tentava convencer-me afazer a transação, até que eu lhe disse que fariao negócio se ele matasse o galo a cinquentapassos com uma flecha. Ele aceitou, e eu media distância.

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Colocado o galo convenientemente, disparou-lhe oito flechas que trazia - fazendo péssimostiros. Outros indígenas entusiasmaram-se como divertimento e começou um chuveiro deflechas em torno do pobre animal - e ainda quealguns se acercaram a quarenta passos, foi demeio metro distante do alvo o tiro maiscerteiro. Eu então disse aos Bihenos que dava ogalo a quem o matasse. Vieram os melhoresatiradores de flecha da comitiva, e quemmelhores tiros fez foi o preto Jamba, de SilvaPorto, que chegou a cravar uma seta a cincocentímetros do galo - que ficaria vivo, se eu onão matasse com um tiro da minha carabinaWinchester. No mato em que estava acampado havia umaenorme quantidade de aranhas brancas, com ocorpo volumoso como uma ervilha, quemordiam - causando uma dor violenta maspassageira. O acampamento esteve sempre cheio demulheres, talvez por estarem ali comigo asfilhas do régulo. Usam elas grande número de

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manilhas de ferro da espessura de dois a trêsmilímetros, de corte quadrangular, tendo asduas arestas exteriores picadas. Quandodançam (e dançam muito as Ambuelas), só otinir das manilhas é uma música. Elascomprimentam-se umas às outras batendorepetidas vezes com as mãos abertas nos peitosnus. Um costume que encontrei entre todos ospovos Ganguelas, mas mais rigorosamentecumprido no Cuchibi, é o modo de falar aossobas ou sovetas. A pessoa que fala, diz o quequer dizer ao soba, através de um dos pretosque ele tem a seu lado; este repete o recado aum segundo preto - que o transmite ao soba. Aresposta segue pelas mesmas vias. Aexplicação que me deram disto foi a seguinte: apessoa que dá o recado, ouvindo repetir depoisduas vezes o que disse, pode corrigir algumainterpretação errônea que houvesse da suaideia - e o mesmo se dá com quem responde. Eu suponho, porém, que há ali mais algumacoisa, e que os sobas estabeleceram o uso para,

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durante a repetição tríplice da arenga, teremtempo de preparar a resposta. De Lionzi fui dar um passeio de caça pelo rioaté à sua confluência com o Cuando, cujaposição marquei grosseiramente, por não terpodido fazer observações, mas que, aindaassim, não deve ter grande erro - por haver eudeterminado perfeitamente a posição deLionzi. Junto à confluência do Cuchibi, encontrei duasgrandes povoações Ambuelas: Linhonzi eMaramo - e entre elas e Lionzi, uma grandepovoação Chimbambo. Na confluência do rioQueimbo está situada a povoação de Catiba,governada por um preto da povoação de Caú-eu-hue, sujeito ao soba do Cuchibi. De volta ao meu campo, vim encontrar aminha gente de tal modo entregue às delíciasde Capua, que não havia força para os arrancardos braços das formosas filhas desta novaNínive africana. A embriaguez do Bingundo ea embriaguez do amor, tornavam surdos osmeus homens a rogos e a ameaças.

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O soveta do Lionzi veio ao meu campo etrouxe consigo um Mucassequer, seu hóspede.Eu entendi-me logo com o Mucassequer, paraele ser guia até às nascentes do rio Ninda, queeu queria ir demandar. Estando eu nesse dia demuito bom humor, chamei os pombeiros edisse-lhes que ia seguir com os Ambuelas e osmeus moleques - e que ficassem eles sequisessem, mas que eu lhes levava todos osmantimentos. Pus-me logo a caminho, guiado peloMucassequer e acompanhado das filhas dosoba e sua gente. Os meus Quimbares, vendo-me partir, deixaram também o campo eseguiram-me - ficando todos os Quimbundos eos moleques do Veríssimo. Depois de uma difícil marcha de seis horasatravés de floresta emaranhada, e onde se nãoencontra água, alcançamos a margem direitado rio Chicului, abrasados de sede. Este riocorre em uma planície deserta e apaulada, de1600 a 2000 metros de largo, e a floresta sempreespessa vem terminar onde começa o paul.

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Durante a noite os leões e leopardos rondaramsem cessar o meu acampamento, rugindo emcoro infernal. No dia imediato, decido logo demanhã passar à outra margem. Passei o rio numa ponte, decerto construídaoutrora por comitivas Bihenas, que eureconstruí e que me deu fácil passagem - masnão foi igualmente fácil alcançar a floresta damargem esquerda, porque havia a atravessar aplanície lodosa, onde nos enterrávamos até porcima da cintura. O meu Pepéca por vezes ficou só com a cabeçade fora, e deu trabalho a desenterrar. Foram1500 metros de travessia difícil e fatigante. Orio tem 15 metros de largo por 4 a 5 de fundo,com uma corrente de 40 a 45 metros porminuto. Vi nele muito peixe grande e pequeno- e alguns crocodilos de pequeno talhe. Depois de passar o rio, vi, um quilômetro àjusante, uma grande manada de songues - eindo logo ali encoberto pelo mato, conseguimatar três. .

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A minha cabrinha Cora não se separa ummomento de mim e anda em contínuosobresalto desde que sentiu os leões. Os meuspretos apanharam muitas aves, variedade decodornizes - com uma poupa* branca e pernasbrancas. * Crista, penacho. Pela uma hora, nesse dia, chegaram os meusQuimbundos e os pombeiros, de orelha baixa.Vieram pedir-me mil perdões de não teremseguido na véspera. Eu andava então de talmodo satisfeito, que tudo perdoei - indo emseguida pescar com um enorme tresmalho quelevava e com o qual apanhei inúmeros peixesmuito semelhantes aos mugens ou taínhas dosnossos rios. Esta rede, tresmalho ou barbal,como lhe chamam os pescadores do rio Douro,foi um presente que me fez meu pai - e que, emmuitas circunstâncias, foi o único recurso quetivemos para matar a fome. A doença grave de um dos meus pretos fez-medemorar dois dias naquele ponto, o que mecontrariou em extremo, porque, tendo comigo

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numerosos Ambuelas, as provisões que eutinha trazido do Cuchibi desapareciamrapidamente - e eu tinha diante de mim umenorme país a atravessar até ao Zambeze, ondenenhum recurso encontraria além da caça,sempre problemática em África. Em um dos dias, os Ambuelas foram à florestaem busca de mel, guiados pelos indicators(“indicadores”) e dele fizeram grande colheita.Muitos naturalistas notáveis, desde Sparmanne Leveillant - os primeiros que estudaram estacuriosa ave - até os mais modernosexploradores que têm descrito os seus hábitos,que me perdoem ainda aqui falar dela e lhesdiga, na minha humildade, o que concluí domuito que observei os seus costumes emÁfrica. Que o indicator seja ou não um cuco é coisa deque não faço questão, deixando isso àautoridade dos Bocages e dos Günthers. Queele se deva chamar cuculus albirostris, comoqueria Temminck, ou somente indicator, comoquerem outros, é nova questão em que não

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entro. Descrevê-lo, sendo profano emornitologia, seria pedantismo - e por issolimitar-me-ei a contar o que lhe vi fazer e atirar uma conclusão minha. Logo que o homem penetra em uma florestados sertões da Africa Austral, aparece-lhe oindicator saltitando de ramo em ramo - echegando a aproximar-se, sempre com o seuchilrear monótono. Logo que lhe damosatenção, levanta ele o seu voo pesado e vaipousar mais longe, vigiando se o seguimos. Seo desprezamos, volta ele para junto de nós econtinua a saltar e a chilrear, voando outra veze formulando muito pronunciadamente oconvite de o seguirmos. Cedemos a final eacompanhamos a avezinha – que, de ramo emramo, com voos curtos para não nos perder devista, nos vai guiando através da floresta, amaior parte das vezes até junto de um ninhode abelhas. Este caso é o mais vulgar, e ésempre aproveitado pelos indígenasbuscadores de cera. .

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Alguns exploradores, e entre eles o nossoGamito, dizem que ele conduz também ohomem junto do antro da fera. Esse caso nuncase deu comigo, que segui dezenas de indicatorse nunca encontrei indígena que mo afirmasse. Conduzir-me junto do cadáver de caça já emputrefação, a um acampamento abandonadode há pouco, a uma lagoa, junto de outra gente,isso me aconteceu a mim - e acontece a todosos que seguem o buliçoso passarinho. Econtudo ele nada lucra em guiar os passos dohomem para ali. O fato é que ele leva o homem quase sempreao mel, e eu suponho que é o quer levarsempre - e que são ocasionais os outrosencontros, que têm feito impressão a muitosviajantes. Encontros nada de estranhar emflorestas africanas. É mesmo possível que, no caminho para oenxame encontremos o leão - sem que aintenção do pássaro seja a de nos fazer devorarpela fera. Se porém a regra geral - de ir indicaras abelhas - tem exceções, são elas tantas e tão

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variadas que eu atrevo-me a dizer que oindicator é o verdadeiro zombador dahumanidade. Encontrei junto ao rio Chicului uma pele decobra de sete metros de comprido por 40centímetros de largo, afirmando-me osindígenas que as há ali maiores. Pudefinalmente seguir a 9 de agosto, já desejoso queas filhas do soba do Cuchibi voltassem com asua gente, porque os mantimentos quetrazíamos desapareciam a olhos vistos e já nãoera pequeno o meu cuidado pensando nofuturo. Depois de marcha de três horas, encontrei umribeiro, correndo a S.S.E. - e depois deatravessarmos a vau, encontramos uma lagoade duzentos metros, que tivemos de vadearcom água pela cintura. Este ribeiro, que entrano Chicului perto da sua foz, é o Chalongo -provavelmente o que nas cartas aparece com onome de Longo, e que, por uma erradainformação, os cartógrafos têm feito correr aoZambeze.

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Durante a passagem da lagoa, vimos algunsabutres descendo com persistência em ummesmo lugar, a meio quilômetro de nós. Fuiver o que atraía ali os repugnantes rapaces, eao longe vi uma nuvem deles esvoaçandosobre um corpo volumoso cercado de hienas,que fugiram sem que eu lhes pudesse atirar.Aproximei-me e encontrei uma enormeMalanca (hippotragus equinus) recentementemorta pelo leão. . . . . . . . . . . . . .

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A pele do soberbo antílope estava rasgada emtiras pelas garras da fera, e, coisa notável, queeu não pude explicar, as unhas das patasestavam completamente roídas. Os olhostinham sido arrancados das órbitas, decertopelas aves de rapina. Os meus Quimbundos, logo que viram aMalanca, correram sobre ela - e com unhas e

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dentes disputaram uns aos outros os restosdaquela carne bafejada pelas hienas, em maisrepugnante espetáculo do que, minutos antes,me tinham oferecido as próprias hienas eabutres. Mais pareciam feras do que homens. Enote-se que, então, não havia necessidade -porque eu tinha morto caça e as provisõesfeitas no Cuchibi nos tinham em abundância.Os meus próprios Quimbares não resistiram àtentação e juntaram-se aos Quimbundos norepugnante espetáculo. Meti em ordem a caravana, e fiz seguir avante.Pelo caminho fui pensando no poder que tem avida selvagem sobre o preto. . . . . . . . . .

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Os meus Quimbares, gente meio civilizada deBenguela, já igualam os Quimbundos emselvageria e embrutecimento. Eu às vezespenso que isto, que se afigura possível a muitagente na Europa - de civilizar o preto emÁfrica - é simplesmente absurdo. O elementocivilizador será por ora tão pequeno junto doelemento selvagem que este predominará -enquanto aquele não tomar proporções

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enormes. É preciso que em África haja porcada preto um branco, para se realizar essesonho de muitos espíritos elevados do velhomundo. Porque só então o elemento civilizadorequilibrará com o selvagem e poderá vencê-lo. Temos até um exemplo disto com os Böers doTransvaal, que, europeus de origem, em umséculo apenas, perderam tudo que decivilização trouxeram da Europa: foramvencidos pelo elemento selvagem do meio emque viviam - e hoje, se são europeus pela cor epela religião de Cristo que professam, sãobárbaros pelos costumes que tiraram do país. O notável era ter eu atravessado tantos povosbárbaros, onde nunca chegou o menorelemento civilizador, e não ter encontradopovo algum pior do que o Biheno - que está emcontato com a civilização da Costa de Oeste. Ao caminhar pensava eu nisso, e repetia a fraseque tantas vezes me tinha repetido o meuamigo Silva Porto: “Olhe que os melhoresBihenos são incorrigíveis; firme-se nesteprincípio e marche com eles.” Depois que eu

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entendia o Hambundo* é que bem podiaavaliar o que eles eram. * Dialeto dos Bihenos. Às vezes, à noite, na minha barraca, euescutava as conversas que se falavam em tornode mim - e não se calcula o que eu ouvia. Umanoite, escutava eu episódios de uma guerraque um ano antes tinha havido no Bihé, contragente Bihena que não reconhecia a autoridadedo soba Quilemo. Entre outras coisas ouvi oseguinte, no meio das gargalhadas e dos sinaisde aprovação que os ouvintes dispensavam aonarrador: Contava ele que, uma noite, fizera doisprisioneiros: um moleque e uma raparigapequena. Como a pequena chorasse e gritassepor ele lhe ter amarrado fortemente os braços,ele cortou-lhe uma orelha com o machado - edepois deu-lhe com o mesmo machado nopescoço, mas devagar para a não matar logo.Ele descrevia ao auditório as contorções egritos da vítima - com grande aplauso doscompanheiros -, até que narrou o modo como a

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tinha morto, coisa de que depois searrependera muito, porque a família dela, quenão sabia do ocorrido, veio oferecer-lhe emresgate três escravos - com que ele poderia tercomeçado um pequeno negócio. Não quero narrar mais destas cenasrepugnantes e direi apenas que se deve avaliarbem como o chefe de bandidos, na Europa, nãoprecisa - para sustentar a disciplina em suaorda de réprobos - ter mais energia do que oeuropeu que, em África, tem de comandar talgente. Fui acampar à nascente de um córregochamado Combule, que, a uma milha da suafonte, vai lançar para o Oeste, no rio Chicului,as suas águas - que ainda ali não seriamsuficientes para mover uma azenha.* * Roda d’água. Convenci as filhas do soba a voltarem aos seuslares e fizemos as mais cordiais despedidas.Ainda Opudo arriscou com timidez o pedidode eu voltar para o Cuchibi e ir viver entre eles- e Capêu fez-me mais eloquente ainda a

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súplica, com um olhar de mulher, um dessesolhares que são a verdadeira força delas,porque são espontâneos e não aprendidos naescola da garridice. Não foi sem pesar que vi partir aquelas duasboas raparigas, as duas únicas amizades quepercebi em indígenas africanos. Ao separarmo-nos, chegou-se a mim o meu guia Mucassequere disse-me: “Eu tenho passado a minha vida nocaminho que vais seguir daqui ao Limbai, epor isso conheço bem o país. Leva semprepronta a tua melhor espingarda e desconfia detudo no mato, porque vais viver muitos diasentre feras. Toma cautela sobretudo com osbúfalos do Ninda; no caminho hás de versepulturas de gente morta por eles - e mesmode brancos. Eu sou teu amigo, porque não mefizeste mal e deste-me pólvora e miçangas. Porisso te previno.” Depois da partida dos Ambuelas, fiquei só coma minha gente e verifiquei, não sem algumsobresalto, que tinha havido uma reduçãoenorme nos víveres.

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No dia imediato, embrenhei-me em umaenorme floresta espinhosa - onde era amiúdepreciso abrir caminho para seguir avante. Depois de uma fatigante marcha de 5 horas, amais difícil e atroz que fiz em África, acampei ànascente do rio Ninda, tendo deixado umagrande parte da roupa nos espinhos dafloresta. Meia hora depois de chegar, estavaconvertido em verdadeira caricatura, porqueestava coberto de bocados de tafetá inglês -onde os espinhos me haviam rasgado ascarnes. Estava pois à nascente do rio Ninda, afamadopela ferocidade dos habitantes das suasmargens. Os leões ainda não me tinhamdevorado - mas cheguei a pensar que, se oquisessem fazer, tinham de se apressar paraencontrarem alguns restos do que deixassemmilhares de insetos que dirigiam um ataqueencarniçado contra mim. Ao cair da tarde, uma nuvem de moscas, tãopequenas que não tinham mais de ummilímetro, caiu sobre o acampamento. Num

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louco esvoaçar, entravam pelo nariz, pela boca,pelos ouvidos e enchiam-nos os olhos, dando-nos um verdadeiro suplício, verdadeira praga. O acampamento foi rodeado de fortespaliçadas e enormes abatizes, tomando-setodas as precauções para que ficássemos aoabrigo de um ataque das feras. Eu fuiacometido por um violento acesso de febre - oque não impediu que, durante a noite, pormais de uma vez, saísse da minha tenda ainvestigar porque ladravam os cães. Os leões rugiram toda a noite em volta docampo, e sobre a madrugada um coro dehienas veio completar aquela música infernal.Não posso deixar de declarar aqui, àqueles queno entusiasmo de uma coragem temerária sefazem ilusões sobre as belezas da vida dasselvas, que a vida entre feras é positivamentedesagradável. . . . .

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No dia imediato, demorei-me até à tarde parapoder determinar aquela posição e mudei omeu acampamento para uma milha mais aleste. Junto do lugar onde acampei ficava asepultura de um português, o sertanejo LuizAlbino, morto naquele ponto por um búfalo.Na minha comitiva estava o preto de confiançade Luiz Albino, o velho Antonio de PungoAndongo, aquele que eu fiz alfaiate do sobaMavanda. Luiz Albino saíra do Bihé com uma grandefatura que vinha negociar ao Zambeze, e em

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uma das suas etapas, veio acampar no mesmoponto onde eu estava acampado naquele dia.Saiu a caçar e deu um tiro em um búfalo,ferindo-o na articulação de um pé. Já se vê queatirava mal, porque não se fere um búfalo emum pé. Voltou ao acampamento e chamou ovelho Antonio (que então era novo), dizendo-lhe que tinha ferido um búfalo mortalmente - eque chamasse gente para o irem buscar. Os Bihenos, sempre cautelosos, não quiseramir - e ele, chamando-lhes covardes, foi só com opreto Antonio. Chegado ao mato, o búfalo,que, como todos os búfalos feridos queriavingança e o esperava, correu sobre ele. LuizAlbino disparou-lhe os dois tiros daespingarda sem lhe acertar - e foi em seguidacolhido pela fera, que com uma cornada lherasgou o baixo ventre. Antonio disparou contra o feroz ruminante, e ocadáver da fera foi cair sobre o cadáver dobranco. Hoje, uma forte estacada de madeira, cercandoum quadrado de cinco metros de lado, fecha

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um recinto onde se levanta uma cruz tosca demadeira - e lembra ao caminhante que épreciso ter pronta a carabina e olho à mira paraviajar ali. Tinha chegado ao primeiro ponto da minhaviagem onde aparecem elefantes - e por issomandei alguns homens à descoberta, mas osexploradores voltaram tendo apenasencontrado alguns rastos antigos. Eu fui daruma volta pelo mato, mas nada vi em quepudesse dar um tiro. No dia imediato, segui viagem, sempre namargem direita do Ninda e sem que algumfato extraordinário viesse perturbar a marcha. A 13 de agosto, fui estabelecer um novoacampamento dez milhas para leste do davéspera. Um vago receio já me perturbava oespírito. Os víveres diminuiam rapidamente eeu estava ainda longe de país de recursos.Tentei caçar, mas sem resultado percorri afloresta. Vi muitos rastos frescos e chegueimesmo a perceber caça, mas tão longe eesquiva que nada fiz.

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No dia 14, tinha eu, sozinho com o meuPepéca, tomado a dianteira à caravana,quando, ao chegar ao lugar onde resolviterminar a marcha daquele dia, percebi umenorme búfalo que pastava tranquilamente.Pude, ao abrigo do mato, aproximar-me dele -e atirei-lhe a trinta metros, apontando àespádua, porque me ficava atravessado. Oanimal caiu fulminado, com grande espantomeu, porque o lugar onde atirei era para fazeruma ferida mortal - mas não produzir mortetão rápida como a que eu vi produzir. Abeirei-me dele - e como não fiquei espantado, vendoque a bala, em lugar de ferir o ponto a que adirigi, subiu perto de vinte centímetros navertical, indo cortar-lhe as vértebras eproduzindo a morte instantânea, pelorompimento da medula espinal! Este caso fez-me profunda impressão, porqueum tal desvio da bala podia, em qualquercircunstância, ser causa da minha perda. Logoque estabeleci o meu campo, tratei de alvejarcom a carabina a 25 metros.

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O desvio vertical revelado no tiro ao búfalocontinuava a manifestar-se. Era a minhacarabina Lepage, de grande calibre e balas deaço. Sendo a sua trajetória muito curva, oarmeiro calculou a última ranhura da alça para80 metros - e como eu não tinha ainda comaquela arma atirado a menor distância, nãotinha ainda advertido no perigo que corriafazendo um tiro de 20 a 30 metros. Assim, pois,a estas distâncias, ainda que eu pela ranhuramal percebesse o ponto culminante da mira, odesvio vertical era constante. Cuidei logo de remediar o defeito – e, portentativas, fui aprofundando a ranhura da alçaaté que obtive a maior precisão à pequenadistância requerida. Este episódio, que registreino meu diário e que hoje descrevo aqui, aindaque seja de interesse nulo para a maioria dosmeus leitores, é uma prevenção àqueles queme seguirem em África - prevenção que lhespode ser de subida utilidade. O rio Ninda corre numa planície levementeinclinada a leste, e que me afirmam se estende

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ao sul até à junção do Cuando e Zambeze. Atéao ponto em que eu estava acampado, afloresta desce espessa até à margem do rio -mas dali em diante forma apenas tufos deárvores, semeados aqui e além numa planícieenorme. Ali o Ouco é árvore corpulenta - e tãoabundante que, por espaço de horas, ocaminhante vive numa atmosferaembalsamada pelo suave perfume das suasflores. No dia imediato, sustentei marcha de seishoras e desviei-me um pouco da margem dorio, cujo canavial espesso era obstáculo aocaminhar, indo acampar junto de uma lagoa deboa água, não longe da pequena povoação deCalombeu, posto avançado do régulo doBaroze. Nada nos quiseram vender, e já começavam aescassear os mantimentos. Não achando boa aminha posição - e não podendo seguir no diaimediato, por ter muitos doentes - mudei ocampo para uma milha mais a leste,

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continuando a tirar água da mesma lagoa, ouantes paul, que melhor lhe cabe este nome. Estava na enorme planície do Nhengo, planícieelevada mil e doze metros ao nível do mar, quese estende a leste até ao Zambeze e ao sul até àconfluência do Cuando. O terreno enxuto naaparência, é encharcado e esponjoso - e cedelentamente à pressão do corpo, deixandoinfiltrar água do seu seio alagado. Nas noites que ali dormi, deitei-me em leitoseco de ervas cobertas de peles, para acordarnum charco. Começava ali para mim uma nova vida detormentos, porque nem à noite um sonoreparador podia vir mitigar as fadigas docorpo e adormecer as apreensões do espírito. A falta de víveres, que não tardaria a chegar; adificuldade que me apresentava o país; aminha saúde que eu sentia profundamenteafetada - e a minha própria comitiva quecomeçava a dar sinais de insubordinação -traziam o meu espírito perturbado,perturbação que se traduzia por um mau-

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humor contínuo. No dia 16 de agosto, tive ummomento de desespero. Estavia só,completamente só. Não havia um homem naminha comitiva que tivesse um pouco deenergia. Além das dificuldades que se erguiam diantede mim, todos me criavam dificuldades. Eutinha de decidir, de intervir em tudo - até nasmais pequenas coisas de que nunca me deveriaocupar. Algumas dedicações me rodeavam, não oduvidava, mas dedicações sem energia - emgente capaz de cumprir uma ordem, masincapaz de fazer cumprir a outros as que lhetransmitia. O Veríssimo não é covarde, mas espíritoacanhadíssimo, sem vontade própria eirresoluto; não tinha a força suficiente para seimpor no comando. Além disto, aparentadocom alguns dos pombeiros, era por elesdesatendido. Via-me forçado até a fazercumprir as ordens que dava! .

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No meu diário escrevi então alguns períodos,que vou transcrever aqui, textualmente, e quetraduzem o meu sofrimento de então. “Isto desnorteia-me, e traz-me de péssimohumor. Meu Deus, quanta vontade, quantapersistência, quanta energia é precisa a umhomem que só, rodeado de dificuldades, riospróprios que o cercam, as encontra paraproseguir na missão que se impôs! Hojesozinho no meio da África, tendo uma missãoa cumprir - e tendo de sustentar a honra dabandeira da minha pátria, quanto eu sofro! Equanto eu temo por ela! Preciso ser um anjo ouum demônio, e chego a crer que sou às vezesuma e outra coisa.” Neste dia, na hora da comida, só milho jáhavia. Sentado à porta da minha barraca, aocair da tarde, terminava a minha parca refeiçãoe olhava em roda os meus carregadores, quecomiam em silêncio. Parecia que uma tristezaprofunda havia caído sobre o meu campo,apossando-se de todos os espíritos. .

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De repente os meus cães levantaram-se ecorreram ao mato ladrando furiosos. Umhomem desconhecido, seguido por umamulher e dois rapazes, saiu do mato - e semfazer caso dos cães, entrou no acampamento,que percorreu com um rápido olhar, vindosentar-se a meus pés. Era um preto coberto de andrajos. Um panoesfarrapado mal encobria a sua nudez. Umcasaco completamente despedaçado pendia-lhe dos ombros nus. Na cabeça uma coisa quemuito esforço de imaginação faria supor osrestos de um chapéu braguês, e na mão umpau. As suas armas eram trazidas pelos doismoleques que o seguiam. A fisionomiaenérgica, o olhar, andar e os modos decididosdo indígena, prenderam logo a minha atenção.Perguntei-lhe quem era, e o que queria. Elerespondeu-me em Hambundo: “Eu souCaiumbuca, e venho procurá-lo.” Ao ouvir onome de Caiumbuca, não pude conter a minhaemoção. Tinha diante de mim o mais audaz

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dos sertanejos do Bihé. Do Nyangue ao LagoNgami é conhecido o nome de Caiumbuca, oantigo pombeiro de Silva Porto. Em Benguela dissera-me Silva Porto: “Chamepara junto de si a Caiumbuca - e terá o melhorimediato que pode encontrar em toda a ÁfricaAustral.” Procurei-o debalde no Bihé, onde nãome souberam dar notícias dele. “Anda nosertão, e nunca se sabe bem onde ele anda”, foia resposta que obtive de todos. Caiumbuca estava no Cuando, abaixo daconfluência do Cuchibi - e sabendo da minhapassagem, viera, só com uma mulher e doismoleques, procurar-me. Conversei a sós comele por espaço de uma hora, li-lhe mesmo umacarta que Silva Porto me tinha dado emBenguela para ele. Fiz-lhe as minhas propostas,e, ao cair da noite, reuni os meus carregadorese apresentei-lhes o meu imediato. A 17 de agosto forcei marcha de seis horas,porque os víveres estavam no fim e era precisoalcançar as povoações. Acampei na margemdireita do rio Nhengo, que é o Ninda depois de

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receber do norte um afluente volumoso, oLoati. O Nhengo tem de 80 a 100 metros de largo, por4 e mais de fundo, com uma corrente quaseinsensível. Às vezes parece uma compridalagoa, onde vegetam milhares de plantasaquáticas. Nas suas margens há uma fortevegetação arbórea - vegetação que por vezesestende os seus ramos vigorosos por sobre aságuas, e, de uma e outra margem, vêm dar umabraço fraternal a meio rio. Este grande afluente do Zambeze corre naenorme planície de que já disse duas palavras,a planície que dele toma o nome, planícieúmida, onde não é encharcada ou verdadeiropaul. Ali milhares de moluscos terrestresarrastam a sua casa espiral por entre a ervacurta e raquítica. Alguns cágados e muitas tartarugas de lagoa(emydes), vivem na campina - onde já, aqui ealém, algumas palmeiras, as primeiras queencontrava desde Benguela, balançam ao ventoas suas copas elegantes. Os meus pretos

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fizeram colheita de tartarugas, que a fome lhesfez devorar - apesar do repugnante cheiro querescendem estes pequenos cheloneas carnivoros. Tendo me dito Caiumbuca que, a pequenadistância do acapamento haviam algumaspovoações, decidi demorar-me ali um dia, paraobter víveres. Foi debalde que, no diaimediato, enviei gente às povoações a pedirmantimentos; o gentio muito esquivo fugia - enão atendia razão nem ofertas. A nossa posição tornava-se muito séria, porquejá nada havia que comer para esse dia, e astentativas de caça e pesca não deram o menorresultado. Um pequeno bando capitaneado pelo meuAugusto, entrou no campo perseguido por umbando de leões - que só retiraram ao perceber oruído do acampamento. Conferenciei comCaiumbuca e decidimos fazer, no dia seguinte,marcha grande - para alcançar umas povoaçõesa que ele chamava Cacapa, e onde me disseque poderíamos obter víveres. .

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Seguimos pois no dia 19, tendo comido pelaúltima vez a 17 de manhã. A marcha foisustentada por oito horas, indo acampar pertode uma lagoa, porque tínhamos deixado amargem do rio, para nos aproximarmos daspovoações. Apesar da fadiga da jornada e da fraquezaproduzida pela fome, enviei gente a procurarvíveres, indo entre eles o próprio Caiumbuca.Voltaram ao anoitecer com as mãos vazias.Nada, absolutamente nada o gentio lhesquisera ceder, mostrando-se até hostil! A nossa posição era grave. Tentar outramarcha, no estado de fraqueza em queestávamos, era arriscarmo-nos a ficar todosmortos de inanição. Reuni os pombeiros, aquem expus as circunstâncias precárias dacaravana - e de tal modo os encontreidesalentados que nenhum alvitre me foiproposto. Chamei alguns dos pretos que tinham ido àspovoações e perguntei-lhes se efetivamente alihaveria mantimentos. Tendo-me eles

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respondido afirmativamente, eu tomei umaresolução imediata. Disse aos pombeiros quefossem animar a sua gente, porque no diaimediato, de manhã, teríamos de comer emabundância. Ficando só com Caiumbuca, comuniquei-lhe aresolução que tinha tomado de ir no diaimediato fazer provisão de alimentos por bemou por mal. Na madrugada de 20, mandei de novo oAugusto com alguns pretos às povoações,pedir que me vendessem milho ou mandioca -e expor as circunstâncias em que nosencontrávamos. A única resposta que obtiveram os meusenviados foi uma agressão insólita. Então reunitodos aqueles a quem a fome não tinhacompletamente prostrado, e pude ter oitentahomens, semi-válidos. Pus-me à sua frente eassaltei a povoação do chefe, que depois de umcurto tiroteio sem consequências, se rendeu àdiscrição. .

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Corri logo aos celeiros, que estavam cheios debatata doce - e tirei tanta quanta me era precisapara matar a fome da minha gente,regressando ao campo com o chefe e maisalguns pretos prisioneiros. Dei a estes o valordas batatas em miçanga e pólvora - e pu-los emliberdade, fazendo-lhes ver que era melhortratar as coisas por bem dali em diante. Elesagradeceram muito a minha generosidade - eprometeram fornecer-me aquilo que tivessemlogo que eu lho mandasse pedir. Nesse dia, à 1 hora e meia, estando o céulimpo, apenas com espessa barra no horizonte,caiu um tufão vindo do N. - que, depois correua S.O. O foco passou um quilômetro a O. demim, arrancando árvores e destruindo tudo nasua passagem. No meu campo, o vento soproutão rijo que tivemos de nos deitar por terraenquanto durou a sua maior intensidade. O termômetro subiu de 20 a 32 graus e obarômetro desceu de 667mm a 663. Foi esta amais violenta oscilação barométrica queobservei na África tropical. Às duas horas e

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meia o vento acalmou de repente, ficando aatmosfera completamente coberta de umnevoeiro denso. As povoações que me ficavam um quilômetroao sul chamam-se Lutué - mas Caiumbucadisse-me, que entre os Bihenos são conhecidasapenas pelo nome de Cacapa, por serem ricasem batata doce - que na língua Hambunda sechama “ecapa”. As gentes destas povoações, como a de todasda planície do Nhengo, são de raça Ganguela -submetidas pela força aos Luinas ou Barozes.São povos miseráveis e intratáveis. Pela tarde, chegou ao meu campo uma tropade Luinas que andavam rondando no país - eque, sabendo que eu chegara ali na véspera,me vieram ver. Era commandada por trêschefes, dos quais o maioral se chamava Cicota. Os chefes vieram cumprimentar-me e oferecer-me os seus serviços. Pedindo-lhes eu, logo, queme obtivessem de comer, eles responderamque também estavam lutando com falta devíveres, mas que no dia seguinte me

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acompanhariam até umas povoações ondeacharíamos recursos. Disseram-me, que meiriam conduzir até junto do rei do Lui - e quenada me faltaria pelo caminho logo quechegássemos às povoações Luinas, já poucodistantes.

Estes Luinas têm uma boa presença, são altos erobustos. Uma pele de antílope,

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primorosamente curtida, passada entre aspernas e presa no cinto de couro na frente e nascostas - e um amplo capote de peles - é o seuvestuário. Os três chefes traziam carabinasraiadas de grande calibre, de fabricaçãoinglesa. Os outros sobraçavam grandesescudos de forma ogival, de um metro e 40centímetros de comprido por 60 centímetros delargo, e estavam armados de um feixe deazagaias de arremesso. O peito e os braçoscheios de amuletos. Os pulsos são ornados demanilhas de cobre, latão e marfim. Por baixodos joelhos trazem de 3 a 5 manilhas muitofinas de latão. O que neles é admirável são ascabeças, não pelo cabelo, que é cortado curto,mas pelos enfeites que lhe põem. A do chefe Cicóta está coberta de uma enormecabeleira, feita da juba de um leão. Os outrostraziam penachos de plumas multicoloresverdadeiramente assombrosos. Durante a noite apareceram entre nósinúmeros escorpiões, sendo mordidos por elesalguns dos meus homens.

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O terreno continua esponjoso e úmido, sendoum tormento viver em tal país. Multiplicam-seali as palmeiras, e já vão aparecendo algumasárvores no campo. As termites apresentam

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aqui já um novo aspecto nas suas curiosasconstruções. A 22 de agosto levantei campo - e cinco horasdepois ia de novo acampar junto da povoaçãode Canhete, a primeira povoação de raçaLuina. Durante a manhã houve um densonevoeiro. Algumas matas que passei eramformadas de árvores enormes e limpas dearbustos, sendo fácil o caminhar ali. Logo que acampei, por providência de Cicóta,vieram muitas raparigas ao campo trazer-megalinhas, mandioca, massambala e ginguba.Durante toda a tarde continuaram a trazer-mepresentes, que eu retribuía o melhor que podia.Tinha já que comer em abundância!

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Pedi tabaco, de que eu trazia ainda boaprovisão, e sal; sal que eu não provava haviatantos meses! Responderam-me que tinham omaior pesar de não poderem satisfazer ao meudesejo, mas que o tabaco e o sal só se davam ouse vendiam por uma licença especial do régulo.Eis uma terra africana onde há dois artigos demonopólio! Felizmente não há Alfândegas. Fui visitar as povoações de Canhete. Cresce alinos quintais o tabaco e a cana de açúcar comum desenvolvimento enorme. As casas sãofeitas de caniço revestido de colmo, e têmumas a forma de um semi-cilindro de 1,5 metrode raio. Outras são ogivais, não tendo maisaltura do que aquelas. Os celeiros são como osdas povoações Ambuelas, mas de menoresdimensões. Os Luinas vieram ao meu campo e fizeram aliuma dança guerreira, muito pitoresca, em quehavia um mascarado que fazia o papel detruão. Nessa noite chegou o preto Cainga, queeu tinha mandado, dois dias antes, ao régulo, aparticipar-lhe a minha chegada.

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Vieram com ele alguns chefes com presentesdo rei para mim - e entre eles seis bois. Carnede vaca! Tinha carne de vaca para comer!Disse-me o Cainga que ele se mostrou ufanopor eu vir falar com ele de mando doMueneputo, e que me esperava uma recepçãoesplêndida. Eu estava sempre desconfiado, porqueconhecia bem os negros e sabia quantas

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traições encerram as suas zumbaias*, mas nãodeixei de ficar satisfeito. * Salamaleques. Ele mandou reunir muitos barcos, de modoque pudesse passar a minha comitiva de umasó vez, para mostrar a sua grandeza. Disse-me o Cainga, ele que era rapaz de 20anos, que, sabendo que eu era novo, disseraque seríamos amigos. Comi tanta carne e tantabatata - já temperadas com sal, condimentoque obtive por contrabando -, que me sentimuito incomodado e passei uma péssima noite.Os chefes Luinas que vieram da parte dorégulo trouxeram ordem às povoações para mefornecerem o que eu pedisse, sem retribuição.Esta ordem foi acertada, porque eu não tinhacom que retribuir. Quando ia a levantar campo, chegaram novosenviados do rei com sal e tabaco para mim - ecom o recado, de eu não seguir o caminhodireto da embocadura do Nhengo, porque elequeria castigar as povoações privando-as daminha visita.

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Mandei dizer-lhe que eu não seguiria outrocaminho, por ser este o que mais me convinha.Que eu não servia para ele castigar comigo osseus povos delinquentes - e que, se ele me nãomandasse barcos ao lugar do Zambeze que euhavia designado, eu passaria o rio sem oauxílio dele. Logo à saída de Canhete, encontrei um paulhorrível - que tendo apenas 500 metros delargo, levou 1 hora a transpor. Caminhei a lestee três horas depois alcancei as povoações daTapa, onde aceitei uma casa oferecida pelochefe, por não ser possível acampar fora dapovoação em terreno pantanoso. As casas ali são formadas por uma pirâmidetronco-cônica de caniço, coberto interna eexternamente de barro. A porta tem 60centímetros de alto por 50 de largo. Esta casa écercada por outra, só de granito, concêntricaàquela - e que tem de raio um metro mais. Oteto abrange as duas casas e é feito de caniçocoberto de colmo. .

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O chefe levou-me um presente de galinhas ebatata doce. Marquei, duas milhas ao sul, agrande povoação de Aruchico.

No dia 24 de agosto, parti às 8 horas da manhã.Depois de atravessar um paul como navéspera, alcancei a margem direita do rioNhengo às 9 horas, descendo até ao Zambezeque encontrei às 10 e meia. Com queentusiasmo eu saudei o grande rio! Algunshipopótamos vinham resfolegar à tona d’água

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a 30 metros de mim, e dois foram vítimas dasua imprudência. Um crocodilo enorme foitambém infeliz em se conservar ao sol numailha próxima. Tinha saudado devidamente o Liambai! Tinha-o saudado tingindo-o de púrpura com osangue das feras. No meio do maiorentusiasmo dos meus e dos muitos Luinas queme acompanhavam, alcancei as canoas epassei, ao meio-dia, para a margem esquerdado rio. Segui sempre a leste - e às 2 horas, encontreioutro braço do Liambai, que se separa delejunto a Nariere. Andei por isso em uma grandeilha onde há povoações, sendo a principalLiondo. Aquele braço do rio, ainda que tem 150 metrosde largo, é pouco fundo e foi transposto a vau.Na outra margem havia mais gente mandadapelo régulo. Segui sempre, e às 3 horasencontrei uma grande lagoa junto à povoaçãode Liara - que passei embarcado. Este lago,formado pelas águas que o Zambeze lhe

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introduz no tempo das chuvas, chama-seNorôco. Segui sempre a leste, por entre um labirinto depequenas lagoas que era preciso evitar, e às 5horas cheguei a Lialui, grande cidade, capitaldo Baroze, ou reino do Lui. O rei tinha feitoprograma. Tive, em poucos dias, duas grandes surpresas -para mim já meio selvagem e esquecido doscostumes europeus. O contrabando de tabaco,de sal e o programa do rei do Lui. Uns mil e duzentos guerreiros formaram alasaté a casa que eu devia provisoriamente irocupar - e um dos grandes da corte,acompanhado de uns trinta figurões, formaramo meu séquito. Chegado à casa, que tinha um grande pátiocercado de caniçal, estava um estrado onde eume devia sentar, para receber os comprimentosda corte. Logo em seguida chegaram os quatroconselheiros do rei, dos quais é presidenteGambela. Com eles vinham todos os grandesque formavam a corte do rei Lobossi.

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Sentaram-se - e começou, da parte deles e daminha, uma troca de comprimentos esaudações, com mil protestos de amizade. Porfim retiraram-se gravemente e foramsubstituídos por outros maçadores, que só medeixaram à noite fechada. Retirei-me para a casa que me destinavam, queera um desses semicilindros de que já falei, etive uma noite de insônia, pensando no futuroda minha empresa. Estava sem recursos, e se orei não protegesse energicamente a minhaviagem, que poderia fazer? Sem agenerosidade dele, nem mesmo teria quecomer ali. Ele mandara-me dizer, que me falaria no diaimediato. Como nos entenderíamos? AqueleGambela, o presidente do Conselho queacabava de estar comigo, o homem que todosme diziam ser o verdadeiro rei, que seria elepara mim? O capítulo seguinte mostrará que não era semrazão que um pressentimento mal definido me

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produziu uma noite de insônia em 24 deAgosto de 1878.

Fim do Primeiro Volume . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .