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artigos Ceticismo e Novo Mundo1
Danilo Marcondes de Souza Filho2
Notre monde vient de trouver un autre. Michel de Montaigne, Essais (III,6), Des Coches
I. Introduo
significativo que Richard Popkin (1966) comece sua antologia de textos sobre
o pensamento moderno3 com a carta de Amrico Vespucci (pgs.23-30) de 1502
dirigida a Lorenzo de Per Francesco di Mdici.
Segundo Popkin na apresentao deste texto,
A carta de Vespucci mais do que a de Colombo ou de qualquer outro dentre os primeiros exploradores indica o significado revolucionrio das terras recm descobertas para o mundo intelectual da poca4.
curioso, contudo, que Popkin no tenha desenvolvido essa questo em sua
anlise da retomada do ceticismo antigo na formao do pensamento moderno.
Com efeito, a ausncia de discusso sobre o Novo Mundo na histria da filosofia
moderna surpreendente. Por exemplo, na Cambridge History of Renaissance
Philosophy 5 , nenhuma meno feita a essa questo embora o sc.XVI seja
amplamente discutido. Sequer o longo captulo sobre a cincia natural (VI, Natural
Philosophy, pp.199-301) se refere a qualquer impacto das navegaes e das descobertas,
de importncia fundamental para a redefinio desde a geografia e as tcnicas de
navegao at a histria natural propriamente dita (botnica, zoologia, geologia, etc.). O
mesmo pode ser dito sobre a Routledge History of Philosophy, cujo vol.IV The
Renaissance and the 17th Century Rationalism no menciona o descobrimento do Novo
1 Palestra proferida na ocasio do I Encontro de Ps-Graduao em Filosofia da UFMG, no dia 17/06/2016. Optamos por manter o texto integral da palestra, o que justifica a diferena entre algumas referncias em nota de rodap (Nota do editor). 2 Departamento de Filosofia - PUC-Rio. 3 Richard H. Popkin, Philosophy of the sixteenth and seventeenth centuries (Readings in the History of Philosophy), The Free Press, New York, 1966, p. 23. Contudo, o prprio Popkin no retoma esta questo em sua Histria do Ceticismo, nem em outros textos. 4 Trata-se da famosa carta intitulada Mundus Novus, dirigida em 1502 ao ento embaixador de Florena na corte de Carlos VIII, rei de Frana e publicada em 1503, com mais de onze edies entre 1503-1506. Ver Le nouveau monde: les voyages dAmerigo Vespucci (1497-1504), traduction, introduction et notes de Jean-Paul Duviols, Chandeigne, Paris, 2005. 5 ed. Charles B. Schmitt e Q. Skinner, Cambridge Univ.Press, 1988.
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Mundo uma nica vez6. O mais claro exemplo disso talvez seja a Histria da Filosofia
organizada por Franois Chtelet7, cujo volume 3 precisamente intitulado A Filosofia
do Mundo Novo (no original francs La philosophie du Monde Nouveau) e apesar disso
no faz uma nica referncia ao impacto do descobrimento do Novo Mundo sobre o
pensamento europeu do sc.XVI.
Portanto, a filosofia no parece ter reconhecido essa questo como tendo
qualquer relevncia. Tradicionalmente se considera que o Humanismo Renascentista, a
Reforma Protestante e a Revoluo Cientfica so os principais fatores constitutivos do
contexto histrico de formao do pensamento moderno, provocando uma profunda
transformao na viso de mundo da poca, o que Christopher Hill (1975), em um texto
j clssico, denominou de um mundo virado de cabea para baixo8. Esses fatores tm
sido interpretados tambm em relao retomada da filosofia ctica antiga no sc. XVI
por levarem ao conflito de doutrinas e ao questionamento da tradio, suscitando a
discusso sobre o problema do critrio de validade de teorias filosficas, cientficas,
teolgicas e mesmo jurdicas. Segundo Popkin (2000, 2002) nos mostrou, os
argumentos dos cticos antigos foram retomados e reformulados luz dessa nova
problemtica.
Levando adiante o projeto de Popkin, proponho discutir o surgimento do
ceticismo moderno em seu contexto inicial, contrastando-o com o antigo quanto ao
carter inovador e original dessas novas questes e destacando a descoberta do Novo
Mundo, a partir de 1492, como um dos elementos constitutivos desse contexto histrico
uma vez que seu impacto econmico, poltico e cultural efetivamente levou a uma
profunda transformao do mundo europeu a partir desse momento, contribuindo
inclusive, para a perda de credibilidade da cincia antiga ao revelar uma realidade at
ento desconhecida, levando com isso necessidade de um novo conhecimento desde a
geografia at as espcies naturais e, sobretudo, aos povos encontrados nas Amricas.
Em segundo lugar, visando desenvolver essa nova hiptese sobre a relevncia da
descoberta do Novo Mundo, proponho tambm o exame de questes encontradas em
textos da chamada literatura das navegaes, fortemente marcada pelo Humanismo e
contendo relatos tanto de primeira mo, os dos navegadores, quanto indiretos, os dos
cronistas, sobre o Novo Mundo. Esses textos levantam questionamentos que vo da
6 Routledge History of Philosohy, vol.IV: The Renaissance and 17th Century Rationalism, ed. G.Parkinson, Routledge, Londres, 1999. 7 Franois Chtelet. Histria da filosofia: idias e doutrinas. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, 8 volumes, original francs pela ed. Hachette, 1972. 8 Christopher Hill, The world turned upside down: radical ideas during the English Revolution: 1975, Harmondsworth, Penguin.
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cincia antiga at a universalidade da natureza humana, radicalizando, a partir de um
novo contexto, as questes cticas. De incio pretendo me concentrar apenas nas
primeiras dcadas do sculo XVI, no momento de constituio das assim chamadas
primeiras imagens do Novo Mundo, quando esses autores escreveram ainda sobre o
impacto da descoberta dessa nova realidade9. A descoberta do Novo Mundo como fato
histrico e geogrfico dever levar a uma descoberta intelectual do Novo Mundo, o que
significa a necessidade de interpretar esse acontecimento, de lhe dar sentido, de
incorpor-lo ao pensamento e ao imaginrio europeus10. Isso se torna necessrio,
sobretudo, a partir de um conflito bsico que se d entre o objetivo primordial e
declarado dos primeiros exploradores como Colombo e Vespcio, que seria o de
encontrar o caminho para as ndias e trazer riquezas e o objetivo efetivamente
alcanado, a descoberta de terras desconhecidas, com povos desconhecidos e, ao menos
inicialmente, sem as riquezas pretendidas.
Formulo assim uma distino entre duas ordens de fatores que devem ser levadas
em conta como intervindo diretamente na retomada do ceticismo antigo, influindo assim
na formao do pensamento moderno:
(1) um contexto de crise que leva a questes cticas; para o qual o descobrimento do
Novo Mundo teve uma importncia capital.
Isso significa uma srie de crises no pensamento europeu desde o final da Idade
Mdia levando perda de credibilidade da autoridade institucional da Igreja e da
cincia tradicional. Essas transformaes de carter terico, mas tambm sobretudo
histrico, econmico e social representam mudanas no prprio contexto da poca
(scs. XV-XVI), profundamente diferente dos sculos anteriores e explicitamente
consciente disso. Os vrios aspectos dessa ruptura so discutidos de Petrarca a
Montaigne, embora claro a descontinuidade no tenha sido total.
(2) a leitura e interpretao efetiva de textos cticos antigos luz dessa crise no
contexto da viso de mundo e de natureza humana do Humanismo.
A retomada do interesse pelos textos clssicos no contexto do Humanismo,
sobretudo de incio italiano e at mesmo mais especificamente florentino,
possibilitou a recuperao de obras de Ccero, Digenes Larcio e Sexto
Emprico, mas tambm de outros pensadores importantes para o debate ctico
como Herdoto, o prprio Plato e Plutarco. Mesmo textos conhecidos no
perodo medieval passaram a circular com maior intensidade e a receber nova 9 Ver The first images of America. Fred Chiappelli, (org.). Univ. of California Press, 1976. 10 Ver prefcio de T.Todorov edio francesa dos textos de Colombo, Vespcio e Pedro Mrtir em Le nouveau monde. Paris: Belles Lettres, 2004.
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ateno luz das transformaes indicadas no item anterior (1). significativo
que os primeiros autores da literatura das navegaes como Colombo, Pedro
Mrtir e Amrico Vespcio pertenciam ao contexto cultural italiano, sendo que
ao menos os dois ltimos receberam uma slida formao humanstica.
A conjuno desses dois fatores permitiu com que as crises e transformaes no
mundo pudessem ser pensadas a partir das leituras dos cticos como conflito de
doutrinas, diaphonia e como levantando mais uma vez o problema do critrio devido
perda de credibilidade das autoridades tradicionais, sobretudo os dois pilares da
tradio, a cincia e a Igreja, provocando assim uma aporia, um impasse, resultante de
um conflito entre vises de mundo e entre teorias que no do mais conta dessa nova
realidade e entre as teorias e a experincia dos navegadores e colonizadores que
primeiro entraram em contato com essa nova realidade. As vrias ordens de conflito que
Sexto Emprico explicita