agostinho e o ceticismo (tese de mestrado)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA AGOSTINHO E O CETICISMO: Um estudo da crítica agostiniana ao ceticismo em Contra Academicos ANTONIO PEREIRA JÚNIOR NATAL/RN 2012

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Agostinho e o Ceticismo (Tese de Mestrado)

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    AGOSTINHO E O CETICISMO: Um estudo da crtica agostiniana ao

    ceticismo em Contra Academicos

    ANTONIO PEREIRA JNIOR

    NATAL/RN

    2012

  • ANTONIO PEREIRA JNIOR

    AGOSTINHO E O CETICISMO: Um estudo da crtica agostiniana ao

    ceticismo em Contra Academicos

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-graduao

    em Filosofia Programa de Ps-Graduao em Filosofia (PPGFIL) do Centro de Cincias Humanas,

    Letras e Artes (CCHLA) da Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte (UFRN) como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em

    Filosofia.

    Orientadora: Profa. Dra. Gisele Amaral dos Santos.

    NATAL/RN

    2012

  • Catalogao da Publicao na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

    Pereira Jnior, Antonio.

    Agostinho e o ceticismo: um estudo da crtica agostiniana ao ceticismo

    em Contra Academicos / Antonio Pereira Jnior. 2012. 118 f.

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de

    Ps-Graduao em Filosofia, Natal, 2012.

    Orientadora: Prof. Dr. Gisele Amaral dos Santos.

    1. Ceticismo. 2. Verdade. 3. Contra acadmicos Santo Agostinho. I. Santos, Gisele Amaral dos. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    III. Ttulo.

    RN/BSE-CCHLA CDU 165.72

  • ANTONIO PEREIRA JUNIOR

    Esta dissertao foi julgada adequada como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em

    Filosofia e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em

    Filosofia (PPGFIL), nvel mestrado, do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes

    (CCHLA) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em: 10 de abril de

    2012.

    Apresentada Comisso Examinadora, integrada pelos professores:

    _____________________________________

    Profa. Dra. Gisele Amaral (UFRN)

    (Orientadora)

    _____________________________________

    Prof. Dr. Oscar Bauchwitz (UFRN)

    (Membro Interno)

    _____________________________________

    Prof. Dr. Roberto Bolzani (USP)

    (Membro Externo)

    _____________________________________

    Prof. Dr. Edrisi de Arajo Fernandes

    (Suplente)

  • DEDICATRIA

    Aos meus pais:

    Antonio Pereira da Silva (in memoriam) e Terezinha de Paiva Pereira, pelo inestimvel amor

    e pela confiana que sempre depositaram em mim.

    minha esposa:

    Alessandra Rosa da Silva, exemplo de amor e dedicao famlia, pela colaborao no

    cuidado e na educao dos nossos filhos, especialmente nos momentos em que precisei estar

    ausente.

    Aos meus adorados filhos:

    Maria Isabel Pereira da Silva e Bernardo Augusto Pereira da Silva, aqui as palavras

    emudecem diante do amor que sinto por vocs.

    Comunidade Catlica Shekin:

    Irmos e membros de uma obra admirvel. Em especial, aos membros do Departamento de

    Estudos Bblicos e Religiosos (DEBIR), por aquelas longas tardes de profundas e

    arrebatadoras discusses, que me conduziram Filosofia.

  • AGRADECIMENTOS

    Mister se faz agradecer a todos que, de forma direta ou indireta, contriburam para a

    realizao deste trabalho.

    Aos meus pais, Antonio Pereira da Silva (in memoriam) e Terezinha de Paiva

    Pereira, pela confiana que sempre depositaram em mim.

    Aos meus irmos, Edimilson Pereira da Silva, Expedito Pereira da Silva, Elza Pereira

    de Paiva e Maria Salete da Silva, pelo apoio nas horas difceis. Um agradecimento especial

    queles que de braos abertos me receberam nesta cidade para que eu pudesse concluir o

    curso de mestrado: Antonio Balbino Neto, Maria de Ftima Pereira da Silva, Marilcia

    Pereira da Silva, Maria Susie Rosa da Silva, Joaquim Alexandre da Silva Neto e meus

    cunhados Emerson Rosa da Silva e Carolina Rosa da Silva.

    Aos colegas do Departamento de Administrao da Universidade do Estado do Rio

    Grande do Norte (UERN), pelo incentivo, apoio e compreenso. Ao meu professor de Lngua

    Grega, Hlio Fernandes, pelo conhecimento transmitido e pela amizade. Ao Prof. Dr. Jaimir

    Conte (UFSC), de quem tive as primeiras orientaes. minha orientadora, Profa. Dra.

    Gisele Amaral (UFRN), pela pacincia e dedicao. Aos membros da banca examinadora,

    Prof. Dr. Oscar Bauchwitz (UFRN), Prof. Dr. Roberto Bolzani (USP) e Dr. Edrisi de Arajo

    Fernandes (Suplente), pelas valiosas contribuies.

    Por fim, a Deus, Verdade suprema, que tornou possvel a realizao deste trabalho.

    A todos, os meus mais sinceros agradecimentos.

  • Tarde Vos amei, Beleza to antiga e to nova, tarde Vos amei! Eis

    que habitavas dentro de mim, e eu l fora, a procurar-Vos! Disforme,

    lanava-me sobre essas formosuras que criaste. Estveis comigo, e eu

    no estava convosco! Retinha-me longe de Vs aquilo que no

    existiria se no existisse em Vs. Porm chamastes-me, com uma voz

    to forte que rompestes a minha surdez! Brilhaste, cintilastes e logo

    afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, e

    suspirando por Vs. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vs.

    Tocaste-me, e ardi no desejo da Vossa paz.

    SANTO AGOSTINHO.

  • RESUMO

    O assentimento da verdade: eis uma frmula que parece ter intrigado os filsofos desde a

    antiguidade. A possibilidade de apreenso da verdade foi defendida por alguns filsofos, que

    foram chamados de dogmticos, devido sua precipitao em julgar as aparncias como

    representaes da realidade, e refutada por aqueles que preferiram continuar questionando em

    vez de se comprometer com o seu pronunciamento. Esses pensadores foram denominados

    cticos. Entre aqueles que defenderam o assentimento da verdade, ganha destaque nesta

    pesquisa Santo Agostinho, que se props a combater a doutrina ctica disseminada na antiga

    Academia de Plato, em sua obra Contra Academicos. Assim, para conduzir esta pesquisa,

    perguntamos: quais so os principais argumentos apresentados por Santo Agostinho contra o

    ceticismo acadmico? Com o intuito de responder ao problema apontado, propomos

    investigar a crtica de Santo Agostinho ao ceticismo, identificando e analisando as principais

    refutaes por ele construdas. Para isso, realizamos uma pesquisa que envolveu aspectos

    tanto do ceticismo quanto da vida e do pensamento de Santo Agostinho sobre essa doutrina.

    Palavras-chave: Ceticismo. Contra Academicos. Verdade.

  • ABSTRACT

    The assent of the Truth: here's a formula that seems to have puzzled philosophers since

    antiquity. The possibility of apprehending truth was defended by some philosophers who have

    been called dogmatic, due to their haste to judge appearances as representations of reality, and

    refuted by those who chose to continue questioning rather than engage with his predicament.

    These thinkers were called skeptics. Among those who defended the consent of the truth, is

    highlighted by St. Augustine in this research, which aims to combat the widespread

    skepticism in the ancient doctrine of the Academy of Plato in his work Against Academicos.

    Thus, to conduct this research we ask: What are the main arguments made by St. Augustine

    against the scholarly skepticism? In order to address the problem identified, we propose to

    investigate the critical skepticism of St. Augustine, identifying and analyzing the main

    rebuttals he built. For this purpose, we conducted a survey of aspects of both the skepticism

    about the life and thought of St. Augustine about this doctrine.

    Keywords: Skepticism. Contra Academicos. Truth.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................................................................ 11 2 CETICISMO: ASPECTOS GERAIS ............................................................................................................. 14

    2.1 QUADRO HISTRICO: O CETICISMO E SEUS PREDECESSORES .................................................. 18 2.2 O CETICISMO GREGO ............................................................................................................................ 21 2.3 A TRADIO PIRRNICA: PRINCIPAIS EXPOENTES ...................................................................... 29

    2.3.1 O Ceticismo Antigo: Pirro e Timo ............................................................................................... 30 2.3.2 O ceticismo dialtico: Enesidemo e Agripa ................................................................................... 31 2.3.3 O ceticismo emprico: Menodoto, Teodas e Sexto Emprico ........................................................ 34

    3 O CETICISMO ACADMICO ...................................................................................................................... 36 3.1 ABORDAGEM HISTRICA ................................................................................................................. 36 3.2 A ANTIGA ACADEMIA: PLATO, ESPEUSIPO E XENCRATES ................................................ 39 3.3 A ACADEMIA MDIA: ARCESILAU E CARNADES ..................................................................... 44 3.4 ECLETISMO NA NOVA ACADEMIA: FILO DE LARISSA .............................................................. 53 3.5 O ECLETISMO ROMANO: MARCUS TULLIUS CICERO ................................................................ 56

    3.5.1 O ceticismo acadmico de Ccero .................................................................................................. 57 3.5.2 A obra Academica de Ccero ......................................................................................................... 60 3.5.3 A influncia de Ccero sobre a filosofia de Santo Agostinho ........................................................ 61

    4 SANTO AGOSTINHO E A CRTICA AO CETICISMO ............................................................................ 64 4.1 CONTEXTUALIZAO: VIDA E OBRAS DE SANTO AGOSTINHO............................................. 64

    4.1.1 Quadro biogrfico ............................................................................................................................... 64 4.1.2 Quadro bibliogrfico ........................................................................................................................... 67

    4.2 O CETICISMO NO PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO ............................................................ 68 4.3 CONTRA ACADEMICOS: DO PRIMEIRO AO TERCEIRO LIVRO ....................................................... 73

    4.3.1 Livro Primeiro: o conhecimento e a busca pela verdade ..................................................................... 75 4.3.2 Livro Segundo: o problema do pithanon ou sobre o conceito da verossmil ...................................... 76 4.3.3 Livro Terceiro: o problema do assentimento ou sobre a epoch ......................................................... 78

    5 TBUA DE REFUTAES DE SANTO AGOSTINHO AO CETICISMO ACADMICO ................... 82 5.1 SOBRE A ATARAXIA .............................................................................................................................. 82 5.2 SOBRE A CONSTANTE BUSCA DA VERDADE .................................................................................. 85 5.3 SOBRE A SUSPENSO DE JUZO OU EPOCH .................................................................................. 87 5.4 SOBRE O VEROSSMIL ........................................................................................................................... 90 5.5 SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO ......................................................................... 92

    6 SNTESE DA CRTICA AGOSTINIANA AO CETICISMO .................................................................... 103 6.1 A PROVA DA EXISTNCIA DE DEUS ................................................................................................ 103 6.2 A VERDADE TRANSCENDENTE DE SANTO AGOSTINHO ............................................................ 104 6.3 A CONCEPO AGOSTINIANA SOBRE A VERDADEIRA CONDUTA DOS ACADMICOS ..... 107

    7 CONCLUSO ................................................................................................................................................ 110 REFERNCIAS ................................................................................................................................................ 114

  • 10

    LISTA DE ABREVIATURAS

    H.P. - Hipotiposis Pirronicas

    Fr. - Fragmento

    A.M. - Adversus Matematicos

    Acad. - Academica

    C.A. - Contra Academicos

    Cat. - Catillinam

    Met. - Metafsica (obra)

    Op. Cit - Obra Citada

  • 11

    1 INTRODUO

    Quem nada aprova, nada faz. homem rude! Onde est o Provvel? Onde o Verossmil? isso o que quereis. Ouvis ressoar os escudos gregos? O dardo extremamente forte, sem dvida, atingiu seu alvo. Mas com

    que mo arremessamos! (AGUSTIN, 1947, p. 204, traduo nossa)1.

    No sculo IV, o cristianismo se encontrava em processo de consolidao ante o

    Imprio Romano. Porm, apesar da fora do seu crescimento, muitas outras doutrinas surgiam

    e se difundiam, ameaando a f crist. Algumas ainda resistiam ao tempo, como foi o caso do

    Ceticismo, que havia se instaurado na Academia de Plato atravs de Arcesilau e Carnades

    sculos atrs. Em meio a todos esses acontecimentos, Santo Agostinho apresentava-se como

    importante personagem na defesa da doutrina da verdade, em oposio tese ctica de que

    nada pode ser conhecido e a nada se deve dar assentimento.

    O termo ceticismo deriva do grego skeptomai (), que significa investigar,

    olhar atentamente, examinar. Na viso de Santo Agostinho, os cticos (acadmicos) so

    aqueles cuja doutrina fundamenta-se na no possibilidade da apreenso da verdade e, por essa

    razo, suspendem todo e qualquer tipo de julgamento. No entanto, essa viso radical do

    ceticismo por parte de Agostinho contestada por grande parte dos pesquisadores do

    ceticismo antigo, apesar de, como veremos adiante, esse pensamento ter como base os escritos

    de sua grande influncia na filosofia Marcus Tullius Cicero.

    Assim, apoiando-se na viso ciceroniana do ceticismo, Santo Agostinho passa ento

    a combater e refutar os principais fundamentos do ceticismo grego em sua obra intitulada

    Contra Academicos, ponto central desta pesquisa. A partir da leitura e da anlise dessa obra,

    extraimos a questo-problema que conduzir este trabalho: quais os principais argumentos

    levantados por Santo Agostinho contra o ceticismo que se disseminou na Academia de

    Plato?

    Nesse sentido, com o intuito de apresentar uma soluo problemtica levantada,

    propomos reconstruir a crtica de Santo Agostinho ao ceticismo, identificando e analisando as

    principais refutaes por ele construdas em oposio corrente ctica, cujas ideias e

    pensamentos nos foram preservadas principalmente por Ccero e Sexto Emprico, em suas

    respectivas obras Academica e Hipotiposis Pirrnicas.

    Dada a especificidade e o carter do tema proposto, optamos pela realizao de uma

    pesquisa bibliogrfica junto aos principais autores que trataram da temtica em questo,

    1 Qui nihil approbat, nihil agit. O hominem rusticum! Et ubi est probabile?ubi est verisimile? Hoc volebatis.

    Auditisne ut somente scuta graecanica? Exceptum est quod robustissimum quidem: sed qua manu iaculati

    sumus? (AGUSTIN, 1947, p. 204).

  • 12

    ressaltando aquelas obras clssicas, por assim dizer, que acabaram se tornando fontes

    obrigatrias a todos aqueles que estudam essa temtica.

    Com isso, este estudo, assim como a resposta ao problema, ser norteado pela leitura

    no apenas do Contra Academicos, mas tambm de outras obras de Agostinho, como De

    Civitate Dei, De Trinitate e Confissiones, as quais, de forma no to direta quanto no Contra

    Academicos, tambm abordam a questo da dvida ctica, contribuindo, portanto, para a

    pesquisa.

    Porm, antes de adentrar especificamente na crtica de Agostinho ao ceticismo,

    consideramos necessrio tratar do ceticismo propriamente dito, para que, conhecendo suas

    bases e fundamentos, possamos compreender com maior propriedade a crtica dirigida por

    esse filsofo a essa antiga doutrina que tanto incmodo trouxe para diversas escolas

    filosficas.

    Para subsidiar essa parte do estudo, procuramos primeiramente ir at as mais antigas

    fontes disponveis sobre o ceticismo grego, nas quais encontramos, nos registros de Aulo

    Glio, Sexto Emprio, Digenes Lartius e Ccero, as mais relevantes e contundentes

    contribuies sobre o ceticismo grego, para ento confront-las com as obras de Santo

    Agostinho, visando, com isso, um respaldo maior para a concluso deste trabalho.

    Assim sendo, a presente dissertao ser composta por cinco captulos, que tero

    como estratgia a diviso e o afunilamento dos assuntos abordados, partindo sempre do mais

    amplo para o mais especfico.

    O primeiro captulo far uma abordagem geral sobre o ceticismo grego, situando-nos

    sobre o contexto em que o ceticismo se desenvolveu. O segundo captulo dedicado ao

    ceticismo acadmico. Os terceiro, quarto e quinto captulos trataro de Santo Agostinho, com

    o intuito de apresentar sua crtica e seus principais argumentos contra o ceticismo.

    Fazendo um rpido detalhamento, o primeiro captulo tentar esclarecer os aspectos

    mais fundamentais do ceticismo, apresentando um sucinto quadro histrico com os seus

    possveis predecessores. Em seguida, abordar de forma conceitual seus mais relevantes

    pontos, terminando com uma explanao sobre a Tradio Pirrnica, apresentando seu

    pensamento e seus principais expoentes.

    O captulo segundo dedicado Tradio Acadmica, que ganha notoriedade pelo

    fato de o ceticismo ser alvo das refutaes de Santo Agostinho. Assim, segundo a diviso

    feita por Brochard (1959), a fase acadmica do ceticismo corresponde segunda fase ctica e,

    portanto, localiza-se imediatamente aps aquela que ficou conhecida como a fase do

    ceticismo antigo e antes da denominada fase dialtica do ceticismo.

  • 13

    Todavia, optamos por classificar o ceticismo segundo as tradies e no segundo as

    fases supracitadas, para que assim pudssemos separ-lo e evidenci-lo num captulo parte,

    uma vez que, conforme foi dito, foi a esse ceticismo que a crtica de Agostinho foi dirigida. O

    segundo captulo guarda ainda uma peculiaridade: o tpico relativo ao ecletismo romano,

    inteiramente dedicado a Marcus Tullius Cicero, de grande influncia sobre Santo Agostinho

    e, portanto, porta de entrada para o captulo central desta dissertao.

    No terceiro captulo, faremos uma contextualizao, contendo uma sntese da vida e

    obra do bispo de Hipona, com nfase na obra Contra Academicos, que ser detalhada em seus

    trs livros, haja vista ser essa obra o locus em que se dar a investigao que culminar com a

    resposta problemtica central desta pesquisa.

    O quarto captulo consiste na apresentao dos argumentos dirigidos por Santo

    Agostinho ao ceticismo acadmico e ser realizada no que aqui denominamos de Tbua de

    Refutaes ao Ceticismo Acadmico, ltimo tpico desse captulo.

    Por fim, no quinto captulo ser apresentada uma sntese da crtica agostiniana ao

    ecletismo, com a finalidade de esclarecer as ideias e os pensamentos de Santo Agostinho

    sobre o ceticismo vigente na Academia. Em suma, esses sero os principais pontos

    trabalhados no decorrer da dissertao e com os quais esperamos ter argumentos suficientes

    para responder questo-problema deste estudo, consequentemente, alcanando o objetivo

    proposto.

  • 14

    2 CETICISMO: ASPECTOS GERAIS

    O assentimento da verdade. Eis uma frmula que parece sempre ter intrigado os

    filsofos na antiguidade. A possibilidade de apreenso da verdade foi defendida por alguns

    filsofos, que foram chamados de dogmticos (Dogmatiko),2 devido sua precipitao em

    julgar as aparncias como representaes da realidade, e refutada por aqueles que preferiram

    continuar questionando antes de qualquer pronunciamento, os quais foram denominados

    cticos (skeptiko)3.

    Entre aqueles que defenderam o assentimento da verdade, ganha destaque nesta

    pesquisa Aurelius Augustinus (Santo Agostinho), bispo de Hipona (354-430 d.C.), que se

    props a combater a doutrina ctica disseminada em sua poca. Assim, antes de adentrar na

    crtica desse filsofo ao ceticismo, preciso primeiramente conhecer a origem dessa

    discusso e o ceticismo propriamente dito, com seus fundamentos e seus principais expoentes.

    Tal levantamento se faz necessrio para que se possa compreender a posio de Santo

    Agostinho contra o ceticismo e, mais especificamente, entender qual tipo de ceticismo foi

    alvo de suas crticas e refutaes, uma vez que este passou por diversas etapas ao longo de

    toda sua histria.

    A discusso acerca do critrio da verdade teve sua origem na Grcia em decorrncia

    de um problema de cunho eminentemente epistemolgico, que envolvia a distino entre as

    coisas que aparecem, phainomenon (fainmenn),4 e as coisas que podem ser pensadas,

    noumnon (nooumnwn)5. Essa problemtica consiste na dificuldade em determinar se as

    aparncias condizem, de fato, com a realidade (lqeia)6 ou se so meras impresses

    (fantasa), impossveis de serem corretamente apreendidas pelos sentidos, uma vez que os

    2 Cf. Sexto Emprico. H.P. I, 3: [...] ka erhknai mn dokosin o dios kalomenoi ogmatik (Trad.: [...] e

    pensa verdadeiramente ter descoberto [a verdade]; com razo, so propriamente chamados de dogmticos). 3 Ibdem. Zhtosi de o skeptik. (Trad.: os cticos, ao contrrio [dos dogmticos], continuam procurando).

    4 O termo phainomenon uma transliterao da palavra grega fainmenwn e possui uma ligao muito estreita

    com as coisas ou os objetos que esto nossa vista. Dentre as muitas tradues, destacamos: aparecer, fazer

    conhecer, manifestar, surgir e parecer. Com isso, o termo phainomenon pode ser entendido como tudo que pode

    ser percebido e apreendido por meio do uso dos sentidos. 5 O termo grego noumnon (nooumnwn) pode ser tambm traduzido por coisas inteligveis e tambm por coisas

    que podem ser pensadas. O nooumnwn frequentemente se apresentava em contraposio ao fainmenwn, o que acabou determinando o carter investigativo do ceticismo. 6 O vocbulo lqeia (aletheia) se constitui como um termo-chave para a nossa pesquisa, uma vez que

    compreende em sua traduo o significado de realidade e/ou verdade. Ora, o assentimento da verdade se d

    justamente pela apreenso da realidade do objeto, ou seja, no que consiste ao objeto em sua mais pura essncia

    (osa), da sua relevncia.

  • 15

    cticos, embora no neguem a existncia dos sentidos, relutam em afirmar que estes sejam

    confiveis7.

    Assim, Pereira (2007, p. 296), ao se referir ao ceticismo em relao s filosofias pr-

    socrticas, clssicas e helensticas, diz:

    O que nelas [as filosofias acima citadas] os cticos criticaram foi sua comum

    pretenso de conhecer as coisas em sua mesma natureza e essncia, sua alegada

    capacidade de revelar-nos como as coisas realmente e em si mesmas so. Essas

    filosofias, pretendendo explicar os fenmenos com que lidamos na vida ordinria,

    postularam entidades no evidentes (dela), a que teramos acesso unicamente por

    meio da reflexo. Ao assentimento dos filsofos a uma coisa no evidente os cticos

    chamaram dogma (dgma), por isso a esses filsofos chamaram de filsofos dogmticos (dogmatiki).

    Pois bem, em relao s coisas evidentes ou s representaes que nos chegam por

    meio dos sentidos, Santo Agostinho chama ateno para a definio de Zeno8 acerca das

    representaes: Segundo ele, s pode ser compreendida aquela representao que aparea de

    tal modo que o falso no possa mostrar-se. evidente que, fora disso, no h percepo9

    (AUGUSTIN, 1955, p. 105-106, traduo nossa). Dada a relevncia e o destaque da definio

    de Zeno ou Critrio da Verdade na crtica de Agostinho, ela ser detalhada mais adiante.

    Esse pensamento divergia da filosofia dos epicuristas,10

    que, embora dogmticos, se

    diferenciavam bastante dos estoicos. Ambas as escolas se opunham ao ceticismo, porm essa

    oposio se baseava numa divergncia em nvel doutrinal, de modo que, mesmo tendo em

    comum a oposio ao ceticismo, dificilmente se encontraria alguma semelhana entre essas

    duas escolas, exceto na incansvel busca pela vida feliz do filsofo, que, para o ctico, pode

    ser entendida como o estado de taraxa, cujo alcance s possvel a partir da poc.

    Em Epicuro, a busca pela felicidade pode ser notada na sua carta Per tj

    edaimniaj (Sobre a Felicidade): necessrio, portanto, cuidar das coisas que trazem a

    7 Cf. Ciceron. Acad. II, XXXII, 103: Itaque ait vehementer errare eos qui dicant ab Academia sensus eripi, a

    quibus numquam dictum sit aut colorem aut saporem aut sonum nullum esse, illud sit disputatum, non inesse in

    iis propriam quae nusquam alibi esset veri et certi notam. (Traduo nossa: Ento engana-se fortemente quem diz que a academia aboliu os sentidos: os Acadmicos jamais afirmaram que no existe cor, nem sabor, nem

    som; tudo que eles buscam estabelecer que no h nessas sensaes um carter de certeza e de verdade que no

    possa nunca se encontrar em outra parte). 8 Zeno de Cicio (333 262 a. C.) foi o fundador do estoicismo, escola que recebeu esse nome devido ao prtico

    (Sto) do mercado de Atenas, local onde os primeiros estoicos se reuniram. 9 Il dit quon peut percevoir une chose qui apparat de telle sorte quelle ne pusse paratr fausse. Il est evident

    quen dehors de l Il ny a pas de perception. 10

    importante frisar que o ceticismo, juntamente com o epicurismo e o estoicismo, constituram-se como as

    principais escolas filosficas daquele perodo.

  • 16

    felicidade, j que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcan-

    la11.

    Como se pode perceber, a busca pela felicidade tambm era meta dos epicuristas,

    diferenciando-se dos cticos no que concerne ao objeto dessa busca, uma vez que,

    diversamente do ceticismo, o epicurismo concentrava sua esperana em alcanar a taraxa

    por meio de alguns elementos fundamentais, os quais Epicuro passou a ensinar (didskw) a

    seus discpulos (maqhta): o primeiro desses elementos refere-se a manter uma determinada

    postura ante os dogmticos, o qual pode ser encontrado em sua carta a Meneceu12: Os deuses

    de fato existem e evidente o conhecimento que temos deles13.

    Esse recorte dos antigos manuscritos de Epicuro, datado do sculo IV a.C., traz na

    segunda parte do perodo dessa assero (nargj gr atn stin gnsij) a evidncia do

    assentimento dos epicuristas s coisas ocultas, uma vez que, em se tratando dos deuses

    gregos, nada poderia ser mais obscuro.

    Outra observao interessante diz respeito utilizao do vocbulo nargj para se

    referir ao termo evidente. importante lembrar que, no texto extrado das Hipotiposis,

    Sexto utiliza a palavra prdhla, que pode assumir o mesmo significado de nargj. Essa

    preferncia pela utilizao dos termos pode ser atribuda meramente a questes do lxico

    (lxikon) de cada filsofo, mas foi aqui destacada a ttulo de esclarecimento.

    O segundo elemento encontrado nos registros de Epicuro como necessrio para se

    alcanar uma vida tranquila o fato de que o filsofo deve se acostumar com a ideia da morte,

    pois no existe motivo para tal preocupao, haja vista que a morte a mais completa

    ausncia dos sentidos. Uma vez presente, nada podemos sentir, portanto, no h motivos para

    perturbaes, o filsofo deve se tranquilizar.

    Diante de tudo isso, torna-se pertinente uma anlise mais acurada sobre o ceticismo

    que vigorava na poca de Santo Agostinho. Para isso, faremos uma breve insero na histria

    da filosofia antiga, mais propriamente na literatura filosfica referente ao perodo clssico da

    Grcia, onde se iniciaram as primeiras especulaes sobre a possibilidade do assentimento da

    verdade, com o intuito de melhor compreender o ceticismo antigo e, dessa forma, melhor

    amparar esta pesquisa.

    11

    Cf. Texto grego da carta Sobre a Felicidade, de Epicuro: meletn on cr t poionta tn edaimna, eper parousj mn atj tnta cmen , pousj d pnta prttomen ej t tauthn cen. 12

    A carta Sobre a felicidade, de Epicuro, foi endereada ao seu discpulo Meneceu, ficando tambm conhecida como carta a Meneceu. 13

    qeo mn gr esn: nargj gr atn stn gnsij.

  • 17

    Entretanto, os registros deixados pelos cticos gregos so escassos, apesar de alguns

    historiadores afirmarem que, no perodo em que vigorou o ceticismo (do sculo IV a.C. ao

    sculo III de nossa era), muitos livros e documentos foram escritos. Quase tudo se perdeu, de

    forma que as informaes de que dispomos chegaram at ns por meio de fontes, de certo

    modo, distantes dos tempos ureos do ceticismo grego, como o caso de Ccero (sc. I a.C.),

    com suas obras Academica e De Natura Deorum; Sexto Emprico (sc. II d.C.), com as

    Hipotiposis Pirrnicas e Adversus Mathematicus; Digenes Lartius (sc. III d.C.), com

    Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres; Eusbio de Cesareia (sc. III-IV d.C.), com

    Preparao Evanglica; Aulo Glio (sc. II a.C.), com Noites ticas; alm do prprio Santo

    Agostinho (sc. IV d.C.), com Contra Academicos, obra central deste estudo.

    Das referncias apresentadas, certamente aquelas que merecem maior destaque e

    constituem fontes importantes para nossa consulta so as do mdico, empirista e ctico Sexto

    Emprico, dado o volume de livros e informaes encontradas em seu corpus, todas

    preservadas nos trs livros das Hipotiposis Pirrnicas e nos onze dos Adversus Mathematicos.

    No entanto, em relao ao testemunho de Sexto, torna-se pertinente uma ressalva que ser de

    fundamental importncia para a compreenso da crtica de Santo Agostinho ao ceticismo.

    Sexto Emprico pirrnico14

    , no no sentido estrito da palavra, ele mesmo trata de amenizar

    esse sentido nas Hipotiposis:

    Aqueles que afirmam que os cticos rejeitam as aparncias me parece que no

    entenderam as nossas razes. Pois, como ns dissemos antes, no negamos aquilo

    que, de acordo com a sensao passiva, nos conduz involuntariamente ao

    assentimento: e isso so as aparncias. Quando, sem embargo, perguntamos se o

    objeto real tal como aparece, admitimos o que aparece e investigamos no sobre a

    aparncia, mas sobre o que se afirma acerca da aparncia; mas isto difere de

    investigar acerca da aparncia mesma15

    (H.P. I, X, 19, traduo nossa).

    Com isso, o ceticismo em Sexto Emprico vai diferir bastante daquele iniciado por

    Pirro no sculo IV a.C. Embora o ceticismo daquele se apresente de forma mais amena do que

    o deste filsofo ctico, o mesmo no se pode dizer em relao ao ceticismo desenvolvido por

    Carnades e Arcesilau na Academia mdia (sobre esse aspecto nos deteremos no captulo II);

    a discrepncia entre esses dois pensamentos tanta que Sexto no chega nem mesmo a

    considerar como ceticismo a filosofia desenvolvida nesse perodo da Academia: Parece

    14

    Os adeptos do ceticismo antigo so denominados pirrnicos por seguirem a doutrina de Pirro, fundador do

    ceticismo, conforme veremos mais adiante. 15

    Quienes afirman que los escpticos rechazan las apariencias, me parece que no han atendido a nostras

    razones. Pues, como antes dijimos, no negamos lo que de acuerdo con la sensacin pasiva, nos conduce

    involuntariamente al asentimiento: y eso son las apariencias. Cuando, sin embargo, preguntamos si el objeto

    real es tal como aparece, admitimos lo que aparece e investigamos no sobre la apariencia, sino sobre lo que se

    afirma acerca de la apariencia; pero esto difiere de investigar acerca de la apariencia misma H.P. I, X, 19.

  • 18

    plausvel concluir que trs so as principais filosofias: a dogmtica, a acadmica e a ctica

    (SEXTO EMPRICO, 1996, p. 84, traduo nossa)16

    .

    Se assim for, o que teria ento levado Santo Agostinho a considerar a filosofia

    praticada na Academia como ctica? A resposta est em sua fonte. Sabe-se que a grande

    influncia sobre Agostinho na filosofia foi, sem dvida, Ccero, o que atestado pelo prprio

    Agostinho em suas Confisses. Grande parte da formao desse filsofo parece ser

    proveniente daqueles acadmicos responsveis por introduzir a doutrina ctica na Academia:

    Era entre estes companheiros que eu, ainda em tenra idade, estudava eloquncia, na

    qual desejava salientar-me, com inteno condenvel e v de saborear os prazeres da

    vaidade humana. Seguindo o programa do curso, cheguei ao livro de Ccero, cuja

    linguagem, mais do que o corao, quase todos louvavam. Esse livro contm uma

    exortao ao estudo da filosofia. Chama-se Hortnsius (AGOSTINHO, 2004, p. 83).

    No entanto, a distncia doutrinal que encontramos entre o ceticismo pirrnico e o

    acadmico se d devido a um elemento novo apresentado por Carnades: o provvel

    (piqanon)17. Talvez por causa desse elemento Sexto tenha resistido em enquadrar os

    acadmicos na filosofia ctica. Essa distino no foi levada em conta por Ccero, fonte de

    Santo Agostinho, e, por isso, ele conduziu toda a obra Contra Academicos apontando a

    Academia como uma escola ctica.

    Em suma, o ceticismo achado nos manuscritos de Sexto Emprico diferencia-se

    bastante daquele apresentado por Ccero e, por essa razo, a crtica de Santo Agostinho ser

    direcionada ao ceticismo acadmico e no ao pirrnico, apresentado pelo filsofo emprico.

    As principais diferenas entre o ceticismo pirrnico e o acadmico sero expostas nos

    captulos que se seguem.

    A outra fonte de destaque apresentada Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, de

    Digenes Lartius , por ser considerada uma das mais antigas obras j conservadas sobre a

    histria da filosofia grega. graas ao testemunho sobre esses filsofos que podemos hoje ter

    acesso ao pensamento dos antigos cticos e, assim, depreender seus passos e sua importncia

    na formao da histria da filosofia ocidental bem como, mais especificamente, na construo

    da crtica agostiniana ao ceticismo acadmico.

    2.1 QUADRO HISTRICO: O CETICISMO E SEUS PREDECESSORES

    16

    Parece plausible concluir que tres son las principales filosofias: La dogmtica, La acadmica y la escptica

    (SEXTO EMPRICO, 1996, p. 84). 17

    Ccero latinizou o termo grego para provvel traduzindo-o por verossimilhana. Esse termo aparecer ao

    longo de todo o segundo livro de Contra Academicos de Santo Agostinho.

  • 19

    Na tentativa de reconstruir os passos do ceticismo na histria da filosofia, para

    melhor fundamentar a crtica de Santo Agostinho, encontramos os primeiros indcios de

    ceticismo em alguns pensadores que antecederam Scrates. Assim, buscando nos antigos

    registros cticos, encontramos em Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, de Digenes

    Lartius 18

    , que alguns autores apontam at mesmo Homero, autor da Ilada e da Odisseia,

    como precursor do ceticismo, devido ao seu hbito de jamais apresentar respostas definitivas

    em seus Cantos. Alguns insistem em encontrar elementos cticos nos versos dos poetas

    gregos Arquloco e Eurpedes19

    e outros, ainda, nos filsofos pr-socrticos Xenfanes, Zeno

    de Elia e Demcrito, merecendo destaque Xenfanes e Demcrito. Sobre Xenfanes,

    encontramos seu pensamento nos registros de Digenes Lartius : homem nenhum conhece a

    certeza e homem nenhum jamais conhecer 20. A respeito de Demcrito, Chisholm (1969, p.

    123) diz:

    Demcrito considerou que o fato implica no s que no percebemos o que que

    pensamos perceber, mas tambm que as coisas externas de maneira alguma so

    aquilo que tendemos acreditar que so. [...] Demcrito passou ento a inferir: 1) que

    ningum percebe jamais qualquer coisa externa como branca, preta, amarela,

    vermelha, doce ou amarga; e tambm, 2) que nenhuma coisa externa no percebida

    , de fato, branca, preta, amarela, vermelha, doce ou amarga.

    Essa citao apresenta de forma bastante clara a relao da filosofia dos pr-

    socrticos com a doutrina ctica. Isso nos leva a pensar que o ceticismo se desenvolveu a

    partir da filosofia desses pensadores. Sobre isso, dizem Annas e Baners (2000, p. 12, traduo

    nossa):

    No entanto, o ceticismo teve sua histria. Se fantasiosa ao considerar Homero

    como um ctico e alguns cticos professaram de modo a consider-lo no um absurdo colocar o incio do ceticismo perto do incio da prpria filosofia. Os

    filsofos pr-socrticos estavam envolvidos em investigaes mais audaciosas. Suas

    declaraes ousadas levaram a uma reao do ceticismo: o que podemos ns, pobres

    seres humanos, saber sobre assuntos ocultos e obscuros? Uma quadra clebre de

    Xenfanes, escrita talvez no sculo VI antes de Cristo, convencionalmente e para mim correta tida como a primeira expresso filosfica de uma atitude ctica.

    Certamente, a expresso ctica mencionada, mas no citada por Annas e Barnes na

    introduo dos Outlines of Scepticism, refere-se frase encontrada nos textos de Digenes

    Lartius , citada no final do pargrafo anterior. Essa sentena parece ser, sem dvida alguma,

    18

    Cf. Digenes Lartios, Vidas: XI, 71. 19

    Ibidem. 20

    Op. Cit.: XI, 72.

  • 20

    uma mxima ctica, restando ponderar sobre em quais circunstncias a proposio foi citada,

    para somente assim enquadr-la como um aforismo ctico.

    Em outros pr-socrticos, tambm encontramos indcios de ceticismo, entretanto dois

    ganharam destaque nesse estudo agostiniano sobre o assentimento da verdade: Parmnides e

    Herclito.

    Parmnides, filsofo eletico que viveu entre os anos de 530-460 a.C., defendeu a

    unidade, a imobilidade e a indestrutibilidade do Ser. Teve o seu pensamento conservado por

    emio do seu poema intitulado Da Natureza, do qual restaram apenas alguns fragmentos.

    Neles, Parmnides apresenta as suas possveis vias de acesso ao conhecimento, o caminho da

    verdade (alqeia) e o da opinio (dxa), sendo o segundo um caminho duvidoso por se

    referir s aparncias, uma vez que estas no oferecem segurana alguma sobre o que elas so

    de fato, constituindo-se meras opinies. Assim, podemos ler no fragmento 221:

    Vamos e dir-te-ei e tu escuta e leva as minhas palavras. Os nicos caminhos da investigao em que se pode pensar: um caminho que e no pode no ser, a via

    da persuaso, pois acompanha a Verdade; o outro o que no e foroso que no

    exista, esse digo-te, um caminho totalmente impensvel. Pois no poders

    conhecer o que no nem declar-lo, pois a mesma coisa tanto pode ser pensada

    como pode existir (KIRK; RAVEN, 1982. p. 275).

    Contudo, como relacionar a filosofia de Parmnides com a questo do assentimento

    da verdade? Ora, toda essa questo gira em torno da discusso que envolve o problema da

    aparncia e da realidade. Brochard (1959) apresenta esse pr-socrtico como um dos possveis

    precursores de toda discusso ctica.

    Outro ponto de conexo da filosofia parmendea com o ceticismo propriamente dito

    pode ser observado no testemunho de Digenes Lartius: No deixes que o hbito reiterado

    te leve fora por este caminho, nem sejas governado pelo olho sem objetivo, pelo ouvido

    que ecoa e pela lngua, mas julga com a razo a prova muito contestada22 (LARTIOS,

    2008, p. 257). Nele, Parmnides pe sob suspeita a veracidade dos sentidos, no entanto esse

    questionamento no aparece nos fragmentos de Da Natureza, mas como referncia em

    Vidas23

    , de Digenes Lartius .

    21

    Parmnides, Fr. 2: e d' g' gn, rw, kmisai d s mqon kosaj, aper do monai dizsij esi nosai: mn pwj stin te ka j ok sti m enai, peiqoj sti kleuqoj (lqeih gr phde), d j

    ok stin te ka j cren sti m enai, tn d toi frzw panapeuqa mmen tarpn: ote gr n gnohj t ge m n (o gr nustn) ote frsaij. T gr at noen stn te ka enai. 22

    Cf. Digenes Lartios, Vidas: III, 22. 23

    Mario da Gama Kury (2008) afirma que a obra Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, de Digenes Lartios,

    aparece por vezes referenciada na antiguidade como: Coleo das vidas e das doutrinas dos filsofos em Dez

    Livros; em outras ocasies, como: Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres e dogmas de cada Escola, em dez

    livros; e, por fim, como Vidas dos filsofos. Alguns autores, na tentativa de evitar a repetio prolongada do

    ttulo, costumam referir-se a essa obra apenas como Vidas.

  • 21

    Em Herclito, encontramos a mesma oposio aos sentidos. Segundo Brochard

    (1959), embora de maneira diferente, Herclito de feso (sc. VI-V a.C.) tambm discordou

    da exatido dos sentidos, pois em sua filosofia defendia a multiplicidade e a mobilidade e,

    segundo ele, os sentidos se contrapunham a esse pensamento, por passarem a ideia de unidade

    e imobilidade. Parmnides e Herclito divergiram bastante em suas doutrinas, no entanto, se

    possvel pensar em um ponto comum entre esses dois pr-socrticos, esse ponto , sem

    dvida, a falta de confiana nos sentidos e, consequentemente, a impossibilidade de

    conhecimento por meio destes.

    Assim, os pr-socrticos j testemunhavam a favor da insegurana dos sentidos e

    evitavam qualquer tipo de afirmao com base nestes, um comportamento bastante

    semelhante ao que seria adotado pelos pirrnicos sculos mais tarde. Isso nos leva

    inevitavelmente a considerar a hiptese de que os mais dogmticos dos filsofos estariam j

    em seu tempo esboando os primeiros passos do ceticismo grego sculos antes do seu

    surgimento.

    Nesse sentido, vale lembrar que o simples fato de se duvidar de alguma coisa no

    razo suficiente para enquadrar algum na categoria dos cticos. A prpria filosofia teve sua

    gnese com o questionamento dos fenmenos da natureza (fsij), mas isso no significa

    dizer que o ceticismo tenha dado origem filosofia; isso seria um absurdo! Assim, muito

    embora esses pr-socrticos no tenham sido cticos, o que se percebe so elementos em suas

    doutrinas que serviro de apoio para dar incio, sculos mais tarde, tese ctica.

    Em suma, o ceticismo s apareceu entre os sculos IV e III a.C., quando alguns

    pensadores se propuseram a examinar com maior cautela todo e qualquer argumento, nunca se

    precipitando em formar opinio, pois, para cada tese apresentada, uma de igual peso poderia

    ser-lhe contraposta. Pirro, diz Enesidemo, nada afirmou dogmaticamente, por causa

    da equipolncia das razes contrrias [...]24 (BROCHARD, 1959, p. 57). Esse princpio

    ctico, o da equipolncia, ser tratado mais adiante. Passemos exposio do ceticismo grego

    a partir dessa poca.

    2.2 O CETICISMO GREGO

    O ceticismo foi uma corrente filosfica que floresceu na Grcia Antiga entre os

    sculos III e IV a.C., afirmando a impossibilidade do conhecimento ou do acesso verdade.

    24

    Pyrrhon, dix Aensidme na affirmait rien dogmatiquement, causa de lquivalence des raisons contrares (BROCHARD, 1959, p. 57).

  • 22

    Acredita-se que o ceticismo teve origem com Pirro de lis (365-270 a.C.), filsofo que elevou

    a conduta ctica (gwg) ao seu mais alto grau de radicalismo. Numa anlise etimolgica,

    encontramos que o termo ceticismo deriva do grego skeptomai (skptomai), que pode ser

    traduzido por olhar atentamente, perscrutar ou examinar. Sua etimologia remonta

    palavra grega skepsis (skyij), que numa traduo literal significa exame e remete ao

    substantivo grego com sentido de busca.

    Isso posto, lemos em Pereira (2007, p. 296): os pirrnicos se chamaram a si mesmos

    de cticos () e esse termo, aparentado ao verbo skeptomai (), to somente

    significava aqueles que observam, isto , aqueles que examinam, consideram com ateno.

    Sua raiz latina conduz ao verbo specio (ver, olhar), porm, outra palavra aparentemente

    sinnima desta possui um significado bem mais apropriado, o verbo specto (pr prova). Ora,

    pr todo e qualquer argumento prova parece ser o desejo do ctico grego; essa sua postura

    ante o dogmatismo, conforme assegura o prprio Sexto Emprico25

    . Essa atitude de sempre

    confrontar argumentos justifica a preferncia pelo termo specio, apresentando-se neste estudo

    como a traduo latina mais adequada para o termo ceticismo.

    Em relao sua finalidade (tloj), o ceticismo se baseia no princpio da diaphonea

    (diafwne) ou na frmula pant lg lgoj soj ntkeitai. Nessa proposio, pode-se

    perceber que, dada a impossibilidade do assentimento, devido equipolncia (isosqneian)26

    de valor encontrada em ambos argumentos, o ctico dever abster-se de qualquer

    pronunciamento, suspendendo seu julgamento27

    .

    A suspenso de juzo ou epoch (poc), por sua vez, conduz o ctico a um estado de

    afasia (fsa), no qual, reconhecendo sua incapacidade de decidir entre uma assero e

    outra, silencia ante tais proposies. Esse silncio ctico, resultado do reconhecimento da total

    ignorncia do sujeito perante os argumentos (lgoi), o que os antigos gregos denominaram

    afasia. Diante do seu no pronunciamento, o ctico encontra a to procurada tranquilidade

    ou ausncia de qualquer perturbao (taraxa). Porm, a taraxa s possvel devido a

    25

    Cf. H.P. I, 202: pant lg lgoj soj ntkeitai: (Trad.: A todo argumento contrape-se outro [de] igual [valor]). 26

    Segundo o princpio da equipolncia, nenhuma proposio pode ser considerada verdadeira, visto que a sua

    negativa sempre se igualar em termos de valor quela proposio. Assim, no existe nada que possa comprovar

    que um argumento afirmativo se sobreponha a um argumento negativo ou vice-versa. A autenticidade de

    qualquer argumento fica, dessa forma, comprometida. 27

    Cf. H.P. I, IV, 8: sti d skptik dnamij ntiqetik fainomnwn te ka nooumnwn kaq' oio dpote trpon f j rcmeq di tn n toj ntikeimnoij prgmasi ka lgoij sosqneian t mn prton ej pocn t d met to e taraxian (Trad.: O ceticismo uma habilidade que ope as coisas que aparecem e so pensadas de todos os modos possveis, com o resultado de que, devido equipolncia nessa oposio, tanto

    no que diz respeito aos objetos quanto s explicaes, somos levados inicialmente suspenso do juzo e depois

    tranquilidade).

  • 23

    um outro estado no qual o ctico deve se encontrar, o estado de indiferena (diafora)28 ante

    os argumentos (lgoi) que se contrapem.

    Resumindo, tem-se que o ctico, na busca pela verdade, depara-se com argumentos

    divergentes ou conflituosos (diafwne). Ao analisar tais argumentos, percebemos que nenhum

    deles apresenta razes de valor suficientes para invalidar a autenticidade do outro, ficando os

    dois argumentos equilibrados em termos de fora (isosqneia). Diante de tal situao, no h

    outra coisa a fazer a no ser suspender o assentimento (poc). Uma vez suspenso o

    assentimento, o ctico opta por no se pronunciar, entrando em afasia (afasa). Esse

    comportamento faz com que o ceticismo atinja o seu fim: a serenidade da alma ou ataraxia

    (taraxa), que s conseguida devido ao seu estado de indiferena (diafora) em relao

    s proposies contrapostas.

    Fica evidenciado, portanto, que, diante de proposies conflitantes (diafonia), o

    ctico prefere se abster a se pronunciar em favor de algum argumento, pois, para ele, no

    existe razo para tal posicionamento; isso o coloca em estado de poc, uma atitude que o

    deixar bem mais confortvel, uma vez que no houve necessidade de dogmatizar. Esse

    estado de tranquilidade proporcionado pela suspenso de juzo o que os gregos denominam

    taraxa, imperturbabilidade ou serenidade da alma.

    Com isso, podemos conferir nas Hipotiposis I, VI, 12:

    Dizemos que a causa originria do ceticismo a esperana de alcanar a

    imperturbabilidade, pois os maiores talentos, confundidos pelo carter contraditrio

    das coisas e duvidosos com respeito a quais delas era melhor assentir, se viram

    obrigados a indagar o que verdadeiro e o que falso, buscando alcanar, atravs

    desse exame, a imperturbabilidade. Sem embargo, o princpio bsico da disposio

    ctica o de que a cada afirmao se ope a outra equivalente; cremos que da se

    segue o no dogmatizar (SEXTO EMPRICO, 1842, p. 5, traduo nossa)29

    .

    Isso posto, voltemo-nos para a segunda parte do problema: a questo do assentimento

    (sugkataqesij). Em relao a isso, se o ctico d ou no assentimento s coisas, poderamos

    dizer que sim e que no.

    Ora, dar assentimento no outra coisa seno dogmatizar. No seria, portanto,

    incoerente afirmar que o ctico seria capaz de dogmatizar? Antes de tudo, necessrio que se

    28

    A diafora deve ser entendida como a indiferena do ctico referente sua opo de escolha. Ora, j que existe impassibilidade por parte do ctico quanto aos argumentos apresentados, este no se perturbar caso

    nenhum argumento obtenha assentimento. A no perturbao a taraxa, da a afirmao de que a indiferena

    conduz tranquilidade. 29

    Cf. H.P. I, VI, 12: rkn d tj skeptikj atidh mn famen enai t lpda to taraktsein: o gr

    megalofue tn nqrpon tarassmenoi di tn n toj prgmasin nwmalan, ka porounte tsin utn cr mllon sugkatatqeoqai, lqon p t zten t te lhqj stn n toj prgmasi ka t yjdo, j k

    tj pikrsewj totwn taraktsontej. Soustsewj d tj skptikj stn rc mlista t pant lg lgon son ntikesqai: p gr totou katalgein docomen ej t m dogmatzein.

  • 24

    esclaream alguns pontos. Como j foi dito, o ctico no somente aquele sujeito que nega a

    existncia de todas as coisas30

    ; quem assim procedeu foi Pirro, considerado pelos

    historiadores como o fundador do ceticismo. Seus sucessores logo trataram de dar nova

    roupagem a essa postura, adotando a poc no para todas as coisas, mas apenas para aquelas

    que seriam, a seu modo de ver, no evidentes (dlon). Assim, as coisas de carter mais

    obscuro necessitariam de uma anlise mais acurada antes de qualquer pronunciamento.

    Em suma, a poc estaria reservada apenas para as coisas, do ponto de vista do

    ctico, ocultas e que necessitam de um exame mais detalhado. quelas representaes

    evidentes (prdla), que acabam fazendo parte do dia a dia do ctico, de sua vida comum (

    boj koinj), ele daria inevitavelmente assentimento.

    Entrementes, o que podem ser consideradas coisas evidentes e coisas no evidentes?

    Esses termos fazem parte da filosofia dogmtica e seus seguidores passaram a dividir as

    coisas externas em prdhla e dlo. Segundo o testemunho de Sexto31

    , as coisas evidentes

    seriam, por exemplo, a constatao de que dia ou noite, de que o fogo quente, de que o

    mel doce, ou seja, todas as afeces (pqoj) fenomnicas que so apreendidas

    imediatamente pelos sentidos, necessrias para a vivncia do dia a dia e que tm do ctico o

    seu assentimento. nesse sentido que o ctico dogmatiza. Pereira (2007, p. 285) refora isso:

    O ctico, seguindo o fenmeno, vive a vida comum cotidiana, em que se reconhece inserido.

    Como o comum dos homens, ele se serve de seus sentidos, inteligncia, experincia, instintos

    e paixes, se pauta por tradies e costumes, se serve dos ensinamentos das artes tcnicas.

    J no tocante s coisas no evidentes (dlon), Sexto (2007) assegura que estas se

    subdividem em: aquelas que so completamente ocultas, as ocasionalmente ocultas e as

    genuinamente ocultas. Como exemplo de coisas no evidentes ou ocultas, segundo essa

    subdiviso, poderamos citar: se o nmero das estrelas par ou impar; para as ocasionalmente

    ocultas, podemos pensar como se apresenta a cidade de Atenas agora, uma vez que estou

    distante dela; e, finalmente, aquelas que no so evidentes para ns devido sua prpria

    natureza e de cuja existncia s sabemos por algum fator externo, por exemplo, os poros da

    pele, que s seriam constatados mediante o efeito do fator suor32

    :

    30

    Esse tipo de ceticismo (o que nega a existncia de todas as coisas) certamente foi aquele vivido por Pirro de

    lis, considerado fundador do ceticismo. Pirro parece ter sido a nica pessoa (pelo menos que se tem notcia) a

    viver o ceticismo em sua forma mais radical, assim como as consequncias de uma vida ctica levada ao

    extremo. A vida e doutrina de Pirro sero tratadas mais adiante. 31

    Cf. H.P. II, X, 97-98. 32 Cf. H.P. II, X, 97-98: Twn pragmatwn toinun kata touj dogmatikouj ta men esti prodhla ta de adhla, kai twn adhlwn ta men kaqapax adhla ta de proj kairon adhla ta de fusei adhla. Kai prodhla men einai fasi ta ex eautwn eij gnwsin hmin ercomena, oion esti to hmeran einai, kaqapax de adhla a mh pefuken eij thn nmeteran piptein katalhyin, wj to artiouj einai touj asteraj, proj kairon de adhla aper thn fisin

  • 25

    Segundo os dogmticos, algumas coisas so evidentes por si e outras, ocultas. E

    sobre as ocultas, algumas so completamente ocultas, outras ocasionalmente ocultas

    e outras genuinamente ocultas. E dizem que so evidentes as que se apresentam por

    si mesmas a nosso conhecimento, como, por exemplo, que dia; completamente

    ocultas, aquelas cuja natureza no se apresenta nossa compreenso, por exemplo,

    se o nmero das estrelas par ou impar; ocasionalmente ocultas, as que, embora

    evidentes por si, permanecem ocasionalmente ocultas devido a certas circunstncias

    externas, como, por exemplo, a cidade de Atenas agora para mim; genuinamente

    ocultas aquelas cuja natureza no pode mostrar-se nossa evidncia como os poros

    inteligveis, que no podem mostrar-se por si mesmos, mas tudo o mais pode supor

    que se capta atravs de outras coisas, como a transpirao ou algo similar (SEXTO

    EMPRICO, 1842, p. 79, traduo nossa).

    Nessas situaes em que o ctico est diante de argumentos favorveis s coisas no

    evidentes, ele ento suspende seu julgamento e, portanto, nesse caso, no dogmatiza. Assim,

    no contra as aparncias ou fainmenwn (phainomenon) que o ctico vai se opor, mas contra

    a possibilidade de conhecimento da natureza ou essncia dos fenmenos que, segundo ele, a

    presuno dos dogmatiko alega poder alcanar:

    Afirmamos que o ctico no dogmatiza, mas no segundo aquela aceitao de

    dogma que sustentam alguns, e segundo a qual o mais simples assentimento a qualquer coisa (pois o ctico d crdito a impresses que se impe implacavelmente

    segundo a percepo; por exemplo, no dir creio no sentir calor ou frio quando os sinta, mas dizemos que no dogmatiza entendendo por dogma, como fazem alguns, o assentimento a qualquer dos objetos no evidentes investigados nas

    cincias33

    (SEXTO EMPRICO, 1842, p. 5, traduo nossa).

    O texto grego enfatiza ao mesmo tempo que esclarece o antagonismo paradoxal do

    assentimento (sugkataqesij) ctico s impresses. Para isso, inicia com uma espcie de

    afirmao adogmtica sobre a conduta ctica: dizemos, porm, que o ctico no dogmatiza

    (lgomen d m dogmatzein tn skeptikn). Sexto expe sua preocupao em esclarecer em

    quais circunstncias o ctico dogmatiza; ele comea com a explicao do sentido da palavra

    dogma (dgma), que, segundo ele, pode tambm ser entendida como o assentimento das coisas

    no evidentes (dla). Nesse sentido, o ctico, de fato, no d o seu assentimento.

    Outra observao importante se refere ao termo usado nos manuscritos das

    potpwsij para impresses. Sexto emprega termo fantasi (phantasia) para indicar as

    coisas que aparecem. Esse termo significa, alm de impresses, aparncia exterior, apario

    econta enargh para tinaj exwqen peristaseij kata kairon hmin a dhleitai, wj emoi nun h twn Aqnhnaiwn polis, fusei de adhla ta um econta fisin upo thn hmeteran pipstein enageian, ws oi nontoi poroi: outoi gar oudepote ex eautwn fainontai, all ei ara ex eterwn katalambanesqai na nomisqeien, oion twn idrwtwn h tinoj paraplhsiou. 33

    Lgomen d m dogmatzein tn skeptikn o kat keo t shmainmenon to dgmato kaq ka dgma enai fasi tnej kointeron t edoken tini prgmati (toj gr kat fantasan kathnagkasmnoij pqesi sugkaratqetai skeptikj, oon ok epoi qermainmeno yucmeno ti dok m qermanesqai

    ycesqai), ll m dogmatzein lgmen kaq dgma ena fas tinej tn tini prmati tn kat t pistmaj zhtoumnwn dlwn sugkatqesin: oden gr tn dln sugkatatqetai Pirrneioj (SEXTO EMPRICO, H.P. I, VII, 13).

  • 26

    de coisas que provocam iluso, imagem, dentre outros, de modo que seu significado bem

    traduz a ideia grega de coisa externa. Por fim, a citao encerrada com uma assero

    categrica, reafirmando a conduta ctica ante as coisas no evidentes: oden gr tn

    dln sugkatatqetai Pirrneioj 34.

    Desse modo, Sexto prossegue sua explicao sobre a conduta ctica, referindo-se

    possibilidade de assentimento por parte do ctico. Ainda em Sexto Emprico (1997, p. 36),

    lemos em Contra os Professores:

    Portanto, no h nada que [seja] ensinado. E em geral se algo ensinado, ou bem

    algo tcnico ou bem no tcnico. E se no tcnico no ensinvel, mas se algo

    tcnico, ou bem algo evidente por si mesmo e portanto no suceptvel de tcnica

    ou ensinamento, ou bem algo no evidente e ento tampouco ensinvel, em

    virtude desse carter no evidente35

    .

    Como podemos observar, as coisas evidentes por si mesmas no necessitam de

    didtica alguma para ensinamento devido ao seu carter fenomnico, que dispensa toda e

    qualquer tcnica para tal fim, uma vez que elas podem ser apreendidas mediante a experincia

    cotidiana do sujeito36

    . A compreenso desse fenomenismo no seio do ceticismo grego ser de

    grande valia para o entendimento das refutaes que Santo Agostinho ir aduzir ao ceticismo

    acadmico, como abordaremos mais adiante.

    Outro aspecto bastante relevante a ser considerado em qualquer estudo que envolva o

    ceticismo antigo diz a respeito s suas nomenclaturas ou denominaes. O ceticismo pode ser

    caracterizado segundo a sua conduta ou o seu modo de agir. Dessa forma, o carter

    investigativo atribui aos cticos a denominao de zetticos (zhthtikoi) ou [aqueles]

    dispostos ou aptos a investigar. Por suspenderem seu juzo ante a equipolncia dos

    argumentos, foram chamados de efticos (fektikoi); por costumeiramente duvidarem de

    tudo, exceto dos fenmenos, foram denominados aporticos (portikoi); e, por fim, os

    cticos receberam a denominao de pirrnicos, devido ao seu fundador Pirro de lis. O

    registro de todas essas denominaes encontra-se nas Hipotiposis Pirrnicas, de Sexto

    Emprico37

    , e nas Vidas e Doutrinas, de Digenes Lartius 38

    .

    34

    Trad.: Certamente, o pirrnico no d assentimento para as coisas no evidentes. 35

    Por tanto no hay nada que sea enseado. Y en general, si algo es enseado, o bien es algo tcnico o bien no

    tcnico. Y si no es tcnico no es enseable, pero si es algo tcnico, o bien es algo evidente por s mismo y por

    tanto no es susceptible de tcnica ni de enseanza, o bien es algo no evidente y entonces tampoco es enseable,

    en virtud de ese carcter no evidente. 36

    Cf. Digenes Lartios, Vidas, IX, 11,105-108. 37

    Cf. H.P. I, 3,7: H skeptik tonun gog kaletai mn ka zhthtik p nergeaj tj kat t zht ka

    skptesqai, ka fektik p to met tn zthsin per tn skeptmenon ginnou pqouj, ka porhtik toi p to per pantj, poren ka zhten, j nio fasin, p to mhganen prj sugkatqesin

    rnesn, ka Pirrneioj p to fanesqai mn tn Prrwna swmatikteron ka pifansteron tn pr ato proselhluqnai t skyei.

  • 27

    A orientao ctica se denomina a si mesma inquiridora, por causa de sua atividade

    de investigar e indagar; suspensiva, devido ao estado de nimo subsequente

    investigao; aportico, porque manteve a incerteza entre a afirmao e a negao;

    finalmente, pirrnica, pelo fato de que Pirro parece ter-se dedicado ao ceticismo de

    um modo mais concreto e notvel que seus predecessores (SEXTO EMPRICO,

    1842, p. 4, traduo nossa).

    Na histria do ceticismo, ainda possvel perceber algumas mudanas de ordem

    gnosiolgica. Seus representantes foram aos poucos se afastando do modo de vida ctico

    adotado pelo seu fundador e consequentemente dando uma nova roupagem ao ceticismo

    propriamente dito. Esse distanciamento, de certa forma, acabou acarretando o surgimento

    daquilo que os filsofos e historiadores denominam fases do ceticismo.

    A primeira fase corresponde ao ceticismo antigo, que se desenvolveu entre os sculos

    IV e III a.C. e teve como principais representantes o seu fundador, Pirro de lis, e seu

    discpulo, Timo. Foi nessa fase que o ceticismo viveu a sua forma mais radical, negando a

    existncia at mesmo dos fenmenos. Todo esse radicalismo foi amenizado na segunda fase

    dessa escola, o ceticismo acadmico.

    O ceticismo da segunda fase recebeu a denominao de acadmico por ter se

    desenvolvido no seio da Academia de Plato aps sua morte, em 347 a.C. Seus principais

    representantes foram Arcesilau, que segundo Digenes Lartius foi o fundador da Academia

    mdia e o primeiro a adotar a poc39, e Carnades, que adotou o piqann como resposta

    questo das representaes, as quais ora se apresentavam como verdadeiras, ora como falsas.

    Por ser a fase Acadmica o alvo da crtica agostiniana, ser abordada com mais detalhe no

    terceiro captulo.

    A terceira fase do ceticismo foi caracterizada pelo seu cunho dialtico. Sua finalidade

    principal foi combater o dogmatismo da doutrina platnica e seus principais representantes

    foram Enesidemo e Agripa. Enesidemo, considerado por muitos filsofos um dos mais fortes

    representantes do ceticismo grego, em sua doutrina, apresentou os dez modos (trpoi)40 que

    asseguravam os motivos pelos quais o ctico deveria suspender seu juzo. Sobre Agripa pouco

    se sabe, a no ser pelos doxgrafos Sexto Emprico e Digenes Lartius 41

    , que afirmaram ter

    Agripa acrescentado mais cinco tropos aos j existentes.

    38

    Cf. Vidas, IX, 11,70: Chamam-se zetticos os que buscam sempre e sobretudo a verdade, cticos os que indagam e nunca chegam a uma concluso; os efticos tm esse nome por causa do estado mental subsequente

    sua indagao, ou seja, a suspenso de juzo; finalmente, os aporticos recebem tal nome porque no somente

    eles, mas os prprios filsofos dogmticos esto frequentemente perplexos. Os pirronianos tiram obviamente seu

    nome de Pirro. 39

    Cf. Vidas, IV, 28. 40

    Cf. Digenes Lartios, Vidas, IX, 78-79. 41

    Cf. H.P. I, 167-177 e Vidas, IX, 88-99.

  • 28

    Por fim, a quarta e ltima fase do ceticismo antigo ficou sob a orientao dos

    mdicos empiristas (mpeiriko) Sexto, Menodoto e Teodas. Brochard (1959) divide essa fase

    em duas partes distintas: uma denominada por ele de negativa ou destrutiva e outra de positiva

    ou construtiva. Na parte negativa, o ceticismo emprico assemelha-se ao ceticismo dialtico

    da terceira fase, principalmente no que diz respeito desconstruo das teses dos dogmticos,

    opondo experincia ou observao (trhsij) filosofia (filosofa). Nisso, no se

    diferenciaram muito de Enesidemo e Agripa. Em sua parte positiva, o ceticismo emprico

    esteve relacionado sua adeso ao fainmnn ou s coisas evidentes. Sexto Emprico (H.P.

    I, 19) confirma:

    Aqueles que dizem que o ctico no admite aquilo que aparece42

    no

    compreenderam o que dissemos ser. Pois, como dissemos anteriormente43

    ,

    certamente no refutamos as aparncias sensveis. Mas quando investigamos a

    essncia tal qual aparece assentimos sobre aquilo que aparece, o que est evidente44

    ,

    mas [quando] investigamos o que aparece sobre o que se diz acerca do que aparece

    (SEXTO EMPRICO,1842, p. 07, traduo nossa)45

    .

    Como podemos perceber na citao de Sexto, o ceticismo emprico concede o

    assentimento s coisas evidentes, que fazem parte do dia a dia do ctico, como foi mostrado

    anteriormente; o que se questiona se essas coisas so de fato como aparecem. Sobre esse

    ponto especfico, Sexto aconselha a suspenso de juzo ou, utilizando o termo grego, a poc.

    Sintetizando, teramos ento a seguinte estrutura acerca das fases do ceticismo:

    (1) Primeira fase (sc. IV a.C.): fase correspondente ao ceticismo antigo. Seus

    principais expoentes foram Pirro e Timo;

    (2) Segunda fase (sc. III e II a.C.): refere-se ao ceticismo acadmico. Teve como

    principais representantes Arcesilau e Carnades;

    (3) Terceira fase (sc. II e I a.C.): corresponde ao ceticismo dialtico. Os principais

    expoentes dessa fase foram Enesidemo e Agripa;

    (4) Quarta fase (sc. III d.C.): referente ao ceticismo emprico, cujo principal

    representante foi Sexto Emprico.

    42

    Fainmenon: fenmeno. 43

    Cf. H.P. I,13 e 17. 44

    Muito embora o termo evidente traduza o grego prodlon, o autor optou por atribuir o sentido de evidente para palavra fanetai. Dentre outros sentidos para esse termo, tem-se: reluzente, ser manifesto, aparecer como, mostrar-se. Note que todas as tradues acabam sendo sinnimas do termo evidente, no causando quaisquer prejuzos de ordem filolgica para o texto. 45

    Texto em grego: O d lgontej ti nairosi t fainmena o skeptiko nkoo moi dokosin enai tn

    par mn legomnon: t gr kat fantasan paqhtik boultwj mj gonta ej ougkatqesin ok natrpomen, j ka mprosqen lgomen: tata d sti t fainmena. tan d zhtmen e toiotn sti t

    pokemenon poon fanetai, t mn ti fanetai ddomen, zhtomen d o per to fainmnou ll per kenou lgetai per to fainomno.

  • 29

    Perpassando essas fases, percebemos um determinado afastamento do ceticismo

    pirrnico na fase inerente ao ceticismo acadmico, ficando, assim, a primeira, a terceira e a

    quarta fases relacionadas tradio pirrnica propriamente dita, enquanto a segunda fase

    ligava-se tradio acadmica. A fim de auxiliar no cumprimento dos objetivos propostos por

    esta pesquisa, o presente trabalho obedecer a uma estrutura no relacionada s fases do

    ceticismo, mas s tradies existentes nelas. O intuito isolar a fase acadmica em um

    captulo parte para melhor analis-la, uma vez que, ao que tudo indica, foi a essa fase que

    Santo Agostinho direcionou a sua crtica, encontrada nos registros de Contra Academicos.

    Dando seguimento, segue-se o detalhamento dessas tradies.

    2.3 A TRADIO PIRRNICA: PRINCIPAIS EXPOENTES

    Sobre a tradio pirrnica, compartilha desse pensamento o ceticismo desenvolvido

    nas seguintes fases: o antigo ou pirrnico, como no poderia deixar de ser, devido ao seu

    fundador, bem como o ceticismo dialtico e o emprico, ambos com uma postura bem mais

    amena e menos radical do que o ceticismo pirrnico. Porm, antes de tratar da tradio

    pirrnica propriamente dita, convm considerar ainda que, segundo Brochard (1959), alguns

    historiadores fizeram uma diviso bastante simples do ceticismo: diferenciaram-no apenas

    como sendo o antigo e o novo ceticismo, colocando nessa ltima diviso os acadmicos.

    As semelhanas e diferenas existentes entre as fases do ceticismo j foram abordadas

    no tpico anterior, porm faz-se necessrio notar que, no que diz respeito tradio do

    ceticismo, h algumas divergncias de opinies quanto ao incio do novo ceticismo. O

    problema gira em torno da localizao de Enesidemo nessa diviso. O doxgrafo Digenes

    Lartius sempre, ao se referir a Enesidemo, coloca-o ao lado de Pirro e de seu discpulo

    Timo, representantes do ceticismo antigo. Assim, lemos em Lartius: Pode-se compreender

    todo o modo de dedues conclusivas dos cticos lendo suas obras conservadas. O prprio

    Pirro, na verdade, nada deixou escrito, porm seus discpulos e companheiros de investigao

    Timo, Aenesdemos, Nausifanes e ainda outros , deixaram (LARTIUS, 2008, p. 278)46.

    Assim, Enesidemo colocado no apenas como fazendo parte dessa tradio, mas

    tambm como companheiro de Pirro e Timo. Se assim o for, Enesidemo enquadrar-se-ia no

    ceticismo antigo. No entanto, Brochard (1959) alerta para a diferena nas doutrinas desses

    filsofos, citando Eusbio de Cesareia em sua Praeparatio Evangelica: Enesidemo renovou

    46

    Cf. Vidas IX, 102.

  • 30

    o ceticismo, que sofrera um eclipse durante muito tempo. Ora, tal renovao coloc-lo-ia no

    no antigo ceticismo, mas diretamente no novo. Esse trabalho seguir a linha de pensamento de

    Brochard, localizando Enesidemo no incio do novo ceticismo ou, segundo a diviso deste

    trabalho, no ceticismo dialtico.

    2.3.1 O Ceticismo Antigo: Pirro e Timo

    O ceticismo antigo surgiu com Pirro de lis por volta do ano 365 a.C. O filsofo em

    questo viveu o ceticismo em sua mais austera forma; depois de Pirro, nenhum outro seguidor

    conseguiu ser to fiel a essa doutrina. Pirro no deixou nada escrito, ficando aos seus

    discpulos e seguidores a misso de registrar a sua doutrina na histria da filosofia. O fato de

    nada ter deixado escrito alinha-se perfeitamente com a sua conduta e o seu pensamento:

    Pirro afirmava que nada honroso ou vergonhoso, nada justo ou injusto, e aplicava

    igualmente a todas as coisas o princpio de que nada existe realmente [...] (LARTIUS,

    2008, p. 268). Assim sendo, Pirro jamais cairia na incoerncia de deixar registrada sua

    doutrina, sua indiferena (diafora)47 o impedia.

    A vida de Pirro, registra Digenes Lartius 48

    , foi um exemplo de fidelidade ao seu

    pensamento, o que lhe custou inmeras histrias pitorescas baseadas em fatos jocosos do seu

    cotidiano49

    . Acompanhou a expedio de Alexandre, o Grande, sia, o que lhe conferiu

    contato com a cultura e filosofia do Oriente.

    Sobre sua doutrina, graas ao testemunho de Digenes Lartius 50

    , sabe-se que

    adotava a poc devido equipolncia dos argumentos: Pirro introduziu e adotou os

    princpios do agnosticismo e da suspenso de juzo, como diz Ascnio de Abdera

    (LARTIOS, 2008, p. 267). Porm, veremos esse testemunho entrar em contradio se nos

    depararmos com outra citao de Digenes Lartius 51: Arcesilao, filho de Seute [...] nasceu

    em Pitane, na Elia. Com ele comea a Academia mdia; foi o primeiro a suspender o juzo

    por causa da contradio de argumentos opostos (LARTIUS, 2008, p. 118).

    Como se percebe, h certa contradio nas citaes desse doxgrafo, j que ora

    aponta Pirro como introdutor da poc no ceticismo, ora aponta esse feito para Arcesilau.

    Porm, se aceitarmos o ponto de vista dos historiadores que defendem Pirro como o pai do

    47

    Cf. Vidas, IX, 63. 48

    Cf. Vidas IX, 62. 49

    Ibidem, IX, 62-67. 50

    Ibidem, IX, 61. 51

    Ibidem, IV, 28.

  • 31

    ceticismo e considerarmos que Arcesilau tenha nascido cinquenta anos aps o florescimento

    desse filsofo52

    , bem como o modo de vida indiferente que levava, alis uma caracterstica

    bem marcante de Pirro, isso tudo nos daria subsdios e motivos suficientes para considerar

    Pirro o autor da poc.

    Pirro tivera alguns discpulos, porm o mais ilustre sem dvida foi Timo de Fliunte

    (325-235 a.C.), considerado o sucessor mais legtimo da doutrina de Pirro, devido

    semelhana entre o seu pensamento e o do seu mestre. Escreveu inmeros livros, no entanto

    quase todos se perderam, restando apenas alguns fragmentos da sua mais famosa obra, Silos, e

    da obra Imagens (dalmo). Por meio desses fragmentos, podemos ter acesso ao pensamento

    de Timo.

    Segundo Brochard (1959), Silos uma pardia ao canto de Homero e uma obra

    destinada a menosprezar e destruir a importncia dos filsofos que defendiam a segurana das

    impresses sensveis. No primeiro livro dos Silos, Timo, referindo-se a Pirro, escreveu: ao

    qual nenhum mortal capaz de resistir. Essa citao demonstra a admirao de Timo por

    Pirro, assim como a importncia deste para o ceticismo que se iniciava.

    A segunda obra que restou, Imagens, refere-se, numa primeira interpretao, aos

    fenmenos observveis e necessrios vida comum de qualquer pessoa. Sob outro ponto de

    vista, a obra diz respeito s aparncias enganosas que servem de obstculo vida feliz do

    filsofo. Diferentemente de Silos, um livro que trata dos modos pelos quais se pode chegar

    taraxa.

    Outra pista sobre o pensamento desse filsofo ctico quem nos d Digenes

    Lartius 53

    . Segundo ele, Timo, em Pton, obra hoje perdida, interpretava a frmula no

    mais (odn mllon) como no definir coisa alguma, ou antes, no aderir a opinio

    alguma. Em outras palavras, conforme seu mestre, suspender o juzo.

    2.3.2 O ceticismo dialtico: Enesidemo e Agripa

    Como j acenamos, o ceticismo dialtico teve como seus representantes Enesidemo e

    Agripa. Enesidemo certamente foi o seu mais notvel membro. Nasceu em Cnossos, Creta.

    Ensinou em Alexandria. A data exata do seu nascimento incerta; alguns historiadores

    52

    Se acompanharmos a tese de Brochard de que Pirro nasceu por volta do ano 365 a.C. e que, segundo os

    antigos doxgrafos, tenha vivido at os noventa anos, temos uma base para situar sua morte em torno do ano 275

    a.C. Considerando ainda que Arcesilau tenha florescido por volta de 315 a.C. e morrido em 240 a.C., por meio

    de um simples raciocnio, justificamos a situao supracitada. 53

    Cf. Vidas, IX, 76.

  • 32

    sustentam que vivera por volta do ano 130 d.C., outros o colocam como contemporneo de

    Ccero. Talvez suas mais significativas contribuies ao ceticismo tenham sido: 1) a

    organizao dos dez modos (trpoi), trazendo tona os argumentos que invalidam qualquer

    possibilidade de apreenso da realidade (lqeia), dada a insegurana dos sentidos; 2) os oito

    modos do ceticismo destinados a desconstruir as teses dos dogmticos. Todos esses modos

    oferecem as razes necessrias e fundamentais para levar qualquer pessoa suspenso de

    juzo (poc), abstendo-se, assim, de todo assentimento.

    Sumariamente, temos que Enesidemo54

    , em seus dez modos, apresenta uma srie de

    sinais relacionados s inmeras diferenas de percepo existentes entre os homens e os

    animais e nos homens entre si, os quais anulam qualquer tentativa de pronunciamento sobre a

    realidade das coisas externas. Assim, no primeiro modo, teramos que as coisas externas nos

    afetam de forma diversa da que ocorre com os outros animais. Por exemplo, a viso da abelha

    diferente da viso do homem, o olfato do co difere tambm do olfato dos seres humanos,

    de modo que no existe razo alguma para privilegiar uma outra.

    Entre os homens, ocorre tambm algo semelhante: as particularidades inatas dos

    seres humanos ou as idiossincrasias (diosugkrsaij), se utilizarmos o termo grego

    encontrado nos antigos registros das Hipotiposis, so tantas que no se pode dar assentimento

    sobre qualquer tipo de comportamento como sendo o correto. Para uns, determinadas

    substncias so prejudiciais, para outros, no; ento qual o critrio de escolha? O da

    maioria? No suficiente e, portanto, no satisfaz a escolha.

    Enesidemo apresenta ainda outros argumentos relacionados diferena dos

    sentidos que envolvem as circunstncias bem como distncia das coisas, que se apresentam

    de uma determinada forma quando distantes e de outra quando prximas. Da tiraramos que

    aquilo a que temos acesso so apenas as fantasan, impresses das coisas reais; o real, ou a

    realidade das coisas, de fato inacessvel para o ctico. No possvel dar assentimento

    quanto natureza das coisas tambm devido s misturas que compem os objetos. Em outras

    palavras, no possvel separar os objetos daquilo que os envolve, como luz, calor etc., para,

    assim, poder examin-lo com mais cuidado; a quantidade, a relatividade das coisas, a raridade

    com que aparecem ao sujeito assim como os seus costumes e valores finalizariam os dez

    modos de Enesidemo.

    Sobre os seus oito modos, sem a inteno de enumer-los um a um, temos que

    foram dirigidos contra os dogmticos, que procuravam explicar os fenmenos por meio de

    54

    Cf. H.P. XIV, 36-175.

  • 33

    suas causas. Para Enesidemo, as causas de um determinado fenmeno tambm no nos so

    acessveis. Essas causas atribudas aos fenmenos pelos dogmticos so apenas especulaes

    ou hipteses que podem ser ou no verdadeiras; no entanto, quanto sua exatido, no existe

    certeza alguma.

    O sucessor de Enesidemo no ceticismo foi Agripa. Quase nada de informao nos

    chegou sobre esse filsofo ctico. Sexto Emprico no menciona uma s vez o seu nome em

    seus livros. O que encontramos so registros de cinco modos atribudos por Sexto aos

    netero skeptiko (novos cticos)55, que, no texto de Digenes Lartius 56, so relacionados

    ao nome de Agripa. Supomos, com grande possibilidade de acerto, dada a semelhana de

    contedo desses dois manuscritos, que foi a esse filsofo que Sexto57

    se referiu ao expor os

    cinco modos de suspenso de juzo.

    Os cinco modos de Agripa dizem respeito a: (i) discordncia das percepes; (ii)

    regresso ao infinito; (iii) relao; (iv) hiptese; e (v) raciocnio circular ou dialelo

    (dillhloj). Sobre a discordncia, Agripa alerta para as proposies que os filsofos

    dogmticos asseguram; ora, tais proposies so amide defendidas por determinados

    dogmticos e refutadas por outros, como o caso dos estoicos e epicuristas, o que evidencia

    um conflito de opinies em que no h qualquer meio para se optar por esta ou aquela

    afirmao.

    Na regresso ao infinito, as provas apresentadas para determinados axiomas no tm

    validade nenhuma, porque elas precisam ser comprovadas, como tambm a comprovao

    desta e assim por diante. No modo da relao, suspende-se o juzo porque nunca podemos

    saber a natureza real das coisas, somente como ela aparece em relao ao sujeito, o que

    considerado insuficiente do ponto de vista ctico. No quarto modo, Agripa questiona a atitude

    dos dogmticos, que, no encontrando uma sada para a regresso ao infinito, aceitam como

    certos alguns axiomas sem necessariamente test-los. Por fim, o raciocnio ou inferncia

    circular, que consiste em recorrer ao prprio objeto para poder demonstr-lo, como

    exemplifica Lartius (2008, p. 275): Por exemplo, algum que pretenda demonstrar a

    existncia dos poros pelas emanaes serve-se da existncia dos poros para confirmar a

    ocorrncia das emanaes.

    55

    Cf. H.P. I, 164: d neteroi skeptiko paradidasi trpou tj pocj pnte tosde, prton tn p tj diafonaj, deteron ej peron kbllonta, trton tn to prj ti, ttarton tn poqetikn,

    pmpton tn dillhlon (Trad.: Os novos cticos transmitiram estes cinco modos da suspenso de juzo: primeiro, o da discordncia, segundo, o da regresso ao infinito, terceiro, o da relao, quarto, o da suposio

    (hiptese), e quinto, o do crculo vicioso.) 56

    Cf. Vidas, IX, 88-89. 57

    Cf. H.P. I, 167-177.

  • 34

    Esses seriam, ento, os principais argumentos e razes expostos por Enesidemo e

    Agripa que justificariam a suspenso de julgamento por parte do ctico. Foram argumentos

    slidos que aliceraram toda a base filosfica do ceticismo grego e que durante muito tempo

    permaneceram como frmulas difceis de serem superadas; problemas levantados pelos

    cticos quase que intransponveis e que tantos transtornos trouxeram para os dogmticos

    daquela poca.

    2.3.3 O ceticismo emprico: Menodoto, Teodas e Sexto Emprico

    O ceticismo emprico est intimamente ligado medicina grega. Esta, aps ter passado

    por uma fase bastante obscura, foi, conforme afirma Pereira (2007), a partir do sculo V a.C.,

    tornando-se mais culta e tambm mais prxima dos problemas filosficos. No entanto, a

    escola emprica acabou por se dividir, adotando duas vises distintas, uma que passou a ser

    denominada de racionalista e outra, empirista.

    Os racionalistas (logiko) acreditavam que a medicina deveria ultrapassar as fronteiras

    da experincia, alcanando o inobservvel, assim, seria possvel se chegar causa das

    enfermidades e da cura das doenas. Os empiristas (mpeiriko) se opunham a esse

    pensamento. Para eles, nada que no fosse observvel poderia ser tido como verdadeiro,

    portanto, os mdicos racionalistas estavam equivocados.

    Entretanto, sculos mais tarde, surgia outra escola, conhecida como metdica, mais

    prxima do ceticismo, que questionava o pensamento dos empiristas e dos racionalistas.

    Concordava com aqueles no tocante impossibilidade do conhecimento do inobservvel,

    discordando deles no que diz respeito sua afirmao dogmtica de que o conhecimento s

    seria possvel no mbito do observvel. Assim, ainda conforme Pereira (2007, p. 281),

    Todo esse debate, de natureza em ltima anlise epistemolgica, entre as diferentes

    correntes da medicina grega, se desenvolveu fora das escolas filosficas [...]. Coube,

    porm, ao ceticismo grego a incorporao dessa epistemologia empirista ao campo

    da filosofia propriamente dito.

    Tendo em mente o que foi dito, temos, de forma resumida, que, conforme citam

    Annas e Barnes na introduo das Outlines of Scepticism: Os mdicos teoristas e prticos

    poderiam ser distribudos em trs grandes escolas de pensamento: racionalismo, empirismo e

    metodismo (ANNAS; BARNES, 2000, p. 12, traduo nossa)58.

    58

    Medical theorists e medical practitioners could be distributed among three broad schools of thought: rationalism, empiricism, Methodism.

  • 35

    Isso posto, encontramos a os primeiros passos do ceticismo emprico. o incio do

    ltimo perodo do ceticismo grego. Os empricos (mpeiriko) eram, como dizia Brochard

    (1959), antes de qualquer coisa, fenomenistas, ou seja, aceitavam o fenmeno como critrio

    para a aplicao do seu mtodo empirista, e no teria como ser diferente. Antes de tudo,

    possuam caractersticas marcantes do ceticismo dialtico, chegando alguns historiadores a

    no fazer qualquer distino entre o ceticismo dialtico e o ceticismo emprico. Assim, como

    os representantes do ceticismo dialtico, estavam determinados a destruir todo tipo de

    dogmatismo, misso que foi tomada similarmente pelos empiristas. Prova disso so os

    registros dos modos de Enesidemo e Agripa nas Hipotiposis Pirrnicas, pois juntos

    constituram a principal causa de tormentos dos dogmticos de sua poca.

    Dessa forma, os mais importantes representantes foram os mdicos Menodoto,

    Teodas e Sexto Emprico. Pouco se sabe sobre os dois primeiros. Digenes Lartius cita-os

    vagamente, sem se aprofundar na sua histria e na sua doutrina, limitando-se a escrever: [...]

    deste Antocos foram discpulos Mendotos de Nicomdia, mdico emprico, e Teiodas de

    Laodicea. De Mendotos foi discpulo Herdotos de Tarso, filho de Arieus (LARTIOS,

    2008, p. 281). Brochard (1959) afirma que foi a partir desses dois filsofos que a medicina foi

    incorporada de vez ao ceticismo e que Teodas parece ter sido o primeiro a utilizar o termo

    trhsij (observao) em substituio a atoya (autopsia).

    Assim como seus antecessores, pouco se sabe sobre Sexto Emprico. Seus pais e sua

    origem permanecem desconhecidos. O nome Emprico se d pela sua relao com o

    empirismo. De sua obra, sobreviveram dois livros: Hipotiposis Pirrnicas e Adversos

    Mathematicos, sendo estas as mais confiveis fontes sobre o ceticismo antigo. Graas

    conservao delas, hoje podemos ter acesso sua doutrina, assim como grande parte do

    conhecimento da histria do ceticismo grego.

    Tendo tudo isso em vista e dando seguimento pesquisa, apresentamos a seguir o

    ceticismo acadmico, lembrando que a estrutura deste trabalho no est seguindo a ordem

    cronolgica da histria do ceticismo. Nossa proposta foi apresentar sob forma esquemtica as

    tradies pelas quais passou o ceticismo grego. A razo para tal foi detalhar e,

    consequentemente, analisar de modo mais especfico o tipo de ceticismo que provavelmente

    foi alvo das crticas de Santo Agostinho.

  • 36

    3 O CETICISMO ACADMICO

    3.1 ABORDAGEM HISTRICA

    A histria da Academia teve incio com Plato, por volta do ano 387 a.C., quando ele

    fundou nos jardins localizados aos arredores de Atenas, que outrora pertenceram ao heri

    grego Academo (kadmj) da o nome Academia , uma instituio onde se versava sobre

    os diversos saberes daquela poca, tais como: filosofia, geometria, msica, dentre outros.

    Aps a morte de Plato, em 347 a.C., a Academia foi assumida por Espeusipo,

    permanecendo este como seu dirigente at 338 a.C. Outros escolarcas passaram por ela, como

    Xencrates (338-314 a.C.), Polmon (314-269 a.C.) e Crates (269-264 a.C.). Entretanto, foi

    somente com Arcesilau que o germe do ceticismo parece ter se fixado na Academia,

    afastando-a cada vez mais da doutrina do seu mestre e fundador. O incio desse perodo ficou

    conhecido como Academia mdia.

    Os principais expoentes dessa fase foram Arcesilau e Carnades. A crtica de Santo

    Agostinho ao