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A retomada do ceticismo no Renascimento Gilmar Henrique da Conceição Introdução É sabido o quanto o conceito de Renascimento é muito debatido por aqueles que se debruçam sobre o tema. Quem mais contribuiu para difundir a ideia de Renascimento é Jacob Burckhardt (2009) que o identificou como uma época de libertação da ordem medieval e início da era moderna do chamado desenvolvimento do indivíduo. Ainda que, atualmente, alguns reparos possam ser feitos, por exemplo, à interpretação de Burckhardt sobre a Idade Média, bem como sobre seu conceito de ‘modernidade’, seus escritos são clássicos e de leitura obrigatória. Conforme Burckhardt é na Itália, pela primeira vez, que se dá um tratamento objetivo do Estado: “Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece como tal” (BURCKHARDT, 2009, P. 145). O Renascimento na Itália é a primeira época na história da civilização que se deu conta de ser uma época (HALE, 1970, p. 7), com a consequente descoberta da antiguidade clássica e sua descoberta correlativa de si mesmos. Como afirmamos anteriormente, a noção de Renascimento como geralmente se entende surgiu a com a publicação do livro de Jacob Burckhardt. De fato, o Renascimento cultural revelou-se

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Page 1: Artaud/A Retomada Do Ceticismo No Renascimento

A retomada do ceticismo no Renascimento

Gilmar Henrique da Conceição

Introdução

É sabido o quanto o conceito de Renascimento é muito debatido por aqueles que se

debruçam sobre o tema. Quem mais contribuiu para difundir a ideia de Renascimento é Jacob

Burckhardt (2009) que o identificou como uma época de libertação da ordem medieval e

início da era moderna do chamado desenvolvimento do indivíduo. Ainda que, atualmente,

alguns reparos possam ser feitos, por exemplo, à interpretação de Burckhardt sobre a Idade

Média, bem como sobre seu conceito de ‘modernidade’, seus escritos são clássicos e de

leitura obrigatória. Conforme Burckhardt é na Itália, pela primeira vez, que se dá um

tratamento objetivo do Estado: “Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na

plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se

reconhece como tal” (BURCKHARDT, 2009, P. 145). O Renascimento na Itália é a primeira

época na história da civilização que se deu conta de ser uma época (HALE, 1970, p. 7), com a

consequente descoberta da antiguidade clássica e sua descoberta correlativa de si mesmos.

Como afirmamos anteriormente, a noção de Renascimento como geralmente se entende

surgiu a com a publicação do livro de Jacob Burckhardt. De fato, o Renascimento cultural

revelou-se inicialmente na Itália de onde se difundiu para os países do Oeste Europeu. Assim,

na perspectiva de nosso estudo é nuclear a ideia de Burckhardt, de que a cultura italiana

supera a concepção de outros povos:

O Renascimento não se teria configurado na elevada e universal necessidade histórica que foi se se pudesse abstrair facilmente da Antiguidade. Nesse ponto temos que insistir, como proposição central deste livro: não foi a Antiguidade sozinha, mas sua estreita ligação com o espírito italiano, presente a seu lado, que sujeitou o mundo ocidental (BURCKHARDT, 2009, p. 177)

De fato, o Renascimento constitui-se em um período importante para a história da humanidade, em que redefine a sociedade europeia como era conhecida até aquele momento. Esse período é de grande inventividade técnica estimulada e estimuladora do desenvolvimento econômico. Busca-se revitalizar o currículo científico das universidades medievais com o acréscimo de outras áreas do conhecimento como a poesia, a filosofia, a história, a matemática e a eloquência, baseadas nos modelos da Antiguidade Clássica (SEVCENKO,

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1985. p. 12). Humanismo, na Renascença, refere-se a uma visão do mundo que, embora aceite devotadamente a existência de Deus, partilha uma série de atitudes intelectuais do mundo antigo pagão (HALE, 1970, p. 15). A compreensão renascentista de que o estudo dos clássicos gregos e romanos era o melhor treinamento para a inteligência teve profundas influências.

Em sua Carta sobre o humanismo (1967), Heidegger responde à pergunta de Jean Beaufret: “de que maneira se pode restituir um sentido à palavra humanismo?”. Heidegger não é metafísico, não interpreta a essência do homem como uma substância (SANSEVERO, 2010, p. 107). Mas, conforme Cardoso, Heidegger, relembra os vínculos deste projeto civilizatório com a cultura republicana romana, com a aspiração do homo romanus à humanitas, contraposta à barbárie. De fato Heidegger afirma: “Em sua essência o humanismo permanece um fenômeno especificamente romano, nascido do encontro da romanidade com a cultura do helenismo” (HEIDEGGER, 1967, p.35). E continua: “A primeira figura do homo humanus é, pois, aquela do romano que exalta e enobrece a virtus romana pela incorporação da Paideia grega” (HEIDEGGER, 1967, p.35), pela eruditio et institutio in bonas artes. Assim, a cultura europeia dos séculos XIV e XV, como renascentia romanitatis, retoma as aspirações deste primeiro humanismo, buscando realizá-lo através de seus studia humanitatis, a Paideia propriamente renascentista. Escreve Cardoso:

No entanto, podemos observar que Heidegger, ao lembrar tudo isso, certamente desconsidera um traço central desta cultura humanista: ao atribuir-lhe um fundo essencialista e metafísico, ele obscurece seu sentido e intento fundamentalmente práticos. Pois, sabemos que a virtus romana a que a romanitas nos remete evoca em primeiro lugar o ‘mos maiorum’, o conjunto de valores, costumes e representações herdados dos antepassados, enriquecido, ou ’enobrecido’, pela incorporação das artes e do acervo filosófico do helenismo, também ele de índole primordialmente prática” (CARDOSO, p. 259).

Conforme Cardoso (2010), pensar a ética no contexto do humanismo implica em

atentar de imediato para o caráter peculiar de que se reveste o termo neste período. A ética é

aí destituída de um fundo metafísico e essencialista; possuindo uma natureza

fundamentalmente prática e educativa, centrada na formação do caráter sob os estudos das

letras clássicas. Segundo ainda Cardoso (2010), a perspectiva dos Antigos, cujo propósito era

tornar os homens melhores e de aproximá-los da felicidade ganha, no Renascimento, um

horizonte mais amplo; assume uma significação civilizatória, de alcance universalista. Ela se

refere aí (ao menos em desenvolvimentos centrais desta cultura) à formação, ou ‘instituição’, do

Homem, genericamente tomado: os homens se humanizam, realizam sua humanidade,

afastando-se da barbárie pelo refinamento de seus costumes e conhecimentos, mediante a

imitação dos ‘exemplos’ de excelência, beleza e sabedoria veiculados pelas Letras dos

clássicos e pelo cultivo da Filosofia.

Há, assim, a busca por textos estoicos, epicuristas e – com a crise intelectual trazida

pela Reforma – dos textos céticos. Nesse sentido a Reforma é um dos elementos do

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renascimento cultural que implicou no questionamento de alguns valores marcadamente

medievais.

Já mencionamos que Burckhardt, em A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio

trata da história política, cultural e religiosa dos séculos XIV, XV e XVI, constituindo um dos

estudos considerados clássicos acerca do Renascimento. Ressalte-se, ainda, que Burckhardt

(2009) dá ênfase na subjetividade da escrita da história e da cultura. Em sua introdução a esse

livro fundamental, Burke (2009) chama a atenção para o fato de que, ao longo dos anos,

alguns protestantes suspeitavam ser a arte, e sua história, assuntos mundanos, e que isso

incomodava Burckhardt (BURKE, 2009, p. 17). Em razão disso, salienta que para Burckhardt

o Renascimento é claramente exemplo de uma época que vive em função dos grandes

propósitos da cultura. Não obstante sua originalidade em sua interpretação ao escrever uma

história cultural e não uma história política

O débito de Burckhardt para com estudos anteriores acerca do Renascimento italiano foi igualmente grande. A ideia básica do redespertar da Antiguidade clássica foi formulada ao longo do próprio Renascimento, desde Petrarca até Vasari, sendo este último quem, pela primeira vez, fez uso do substantivo abstrato renascimento (rinascità). Tal ideia foi, portanto, objeto de elaboração nos séculos XVIII e XIX. Voltaire sugeriu que o Renascimento – “época da glória da Itália” – foi um dentre quatro períodos da história humana que seriam dignos da consideração de um ser pensante, ou de bom gosto (BURKE, 2009, p. 28-29).

Frente a Lutero a resposta da Igreja Católica Romana caracterizou-se pelo movimento

conhecido como Contrarreforma1. De acordo com Burckhardt há três acusações que a

Contrarreforma fazia aos humanistas: maligna altivez, vergonhosa devassidão e

irreligiosidade (BURKCHARDT, 2009, p. 253).

Ceticismo no Renascimento

Conforme Popkin (2000), o ceticismo como concepção filosófica e não como uma

série de dúvidas relativas a crenças religiosas costumeiras, se originou no pensamento grego

antigo. Basicamente, os céticos podem ser reduzidos a dois posicionamentos epistemológicos.

O primeiro é ceticismo acadêmico para o qual nenhuma forma de conhecimento é possível. O

segundo é o ceticismo pirrônico para o qual não há evidência adequada ou suficiente para

determinar se algum a forma de conhecimento é ou não possível. Como se pode observar, os

1 De acordo com Cairns, a Espanha tornou-se a nação líder na obra da Contrarreforma, isso, porque nacionalismo e religião tinham se associado para unificar e consolidar o Estado espanhol e expulsar os mouros mulçumanos e os judeus (CAIRNS, 2008, p. 316).

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céticos fazem uma crítica devastadora acerca da certeza do conhecimento. O problema básico

colocado em foco pelos céticos é que qualquer proposição pretendendo afirmar algum tipo de

conhecimento sobre o mundo contém pretensões que ultrapassam os relatos meramente

empíricos sobre como nos parecem ser os fatos:

Se nós temos algum conhecimento, isto significa, para os céticos, que o que conhecemos é o conteúdo de uma proposição, afirmando uma verdade não-empírica ou transempírica, que temos certeza não poder ser falsa. Se a proposição puder ser falsa, então não deve merecer o nome de conhecimento, mas apenas de opinião, isto é, de algo que representa uma mera possibilidade. Uma vez que a evidência corroborando este tipo de proposição, segundo os céticos, deve basear-se seja nos dados sensoriais, seja na razão, e uma vez que ambas estas fontes não são dignas de confiança e que não há critério último ou garantia de que o conhecimento verdadeiro é possível, ou que de fato o possuímos, portanto há sempre uma margem de dúvida sobre se uma proposição de conteúdo não-empírico ou transempírico pode ser verdadeira em um sentido absoluto, constituindo assim conhecimento autêntico (POPKIN, 2000, p. 2).

Acompanhamos Popkin em seu argumento de que a perspectiva cética parece ter sido

praticamente desconhecida no Ocidente até sua redescoberta no século XVI, e que o ceticismo

possui uma importância central no período do início da Reforma até a formulação da filosofia

cartesiana. De fato, a crise intelectual provocada pela Reforma coincidiu historicamente com

e redescoberta e a retomada do interesse pelos argumentos céticos gregos: “No século XVI,

com a redescoberta de manuscritos dos escritos de Sexto Empírico, há uma retomada do

interesse pelo ceticismo antigo, e pela aplicação desta visão à problemática da época”

(POPKIN, 2000, p. 4). Neste contexto, pensadores como Montaigne, Sanchez, Mersenne e

Gassendi voltam-se para o ceticismo em busca de bases filosóficas para enfrentar questões

trazidas à baila em seu tempo.

Como o pensamento cético penetrou no Renascimento? Examinaremos esta questão,

tendo o pensamento de Montaigne como central.

No âmbito da filosofia, o ceticismo, com a redescoberta de Sexto Empírico, surge

como um elemento importante, no debate que se inicia no interior da religião, mas que depois

se espraia pela filosofia. Nesse contexto Montaigne (2001) e Francisco Sánchez (1972)

surgem como os principais expoentes do ceticismo. Digamos, inicialmente, que Montaigne foi

educado nos moldes da mais perfeita orientação humanista, e é como rebento desta cultura, e

do interior dela, que empreende a transgressão de seus limites (CARDOSO, 2010, p. 7).

Montaigne constata a sociedade partida em muitas frações, e em eu cada parte julga

presunçosamente que possui a verdade.

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De um ponto de vista epistemológico, Montaigne se refere aos diversos partidos

interpretativos, às dissensões das seitas filosóficas, e remete continuamente aos partidos e às

seitas dos filósofos2. Ele se posiciona ao lado do partido dos céticos, visto que “[A] não há

argumento que não tenha um contrário, diz o mais sábio partido dos filósofos” (II, 15, p. 419).

Montaigne e o partido dos pirrônicos

Estávamos dizendo que a crise intelectual provocada pela Reforma coincide

historicamente com a redescoberta e a retomada do interesse pelos argumentos dos antigos

céticos gregos, com vista à sua aplicação nos conflitos (POPKIN, 2000). E que além de

Montaigne, cruciais nessa transição são os escritos de Francisco Sanchez, particularmente o

Que nada se sabe (SÁNCHEZ, 1972), que empreende uma crítica cética de cunho acadêmico

à concepção aristotélica de conhecimento, pois julga que não podemos conhecer a natureza de

nenhuma coisa, mas, mesmo assim, os filósofos se referem a ‘ente’, ‘substância’, ‘qualidade’

etc. Para Sánchez (1972), tudo isso são apenas ‘palavras e palavras’.

Desse modo, em uma perspectiva mais filosófica, registram-se duas sérias

apresentações do ponto de vista cético, uma escrita por Sánchez e outra por Montaigne, que

apareceram cerca de vinte anos após a primeira edição de Sexto Empírico (POPKIN, 2000, p.

79). Efetivamente, Montaigne, Sánchez e outros se voltam para o ceticismo em busca de

escritos a serem usados no tratamento das questões vividas. De posse do arsenal cético,

Montaigne leva a frente a crítica da razão e como desdobramento disso discute, por exemplo,

a política, a religião, e os costumes. A visão política do ensaísta aproxima-o de Maquiavel.

Ambos os pensadores são leitores assíduos da Antiguidade.

Montaigne e Maquiavel julgam que, politicamente, não há uma meta essencialista a

atingir. Montaigne é um filósofo de novo tipo (EVA, 2007), e, tal como Maquiavel, se coloca

como conselheiro do príncipe3. Há um realismo, no pensamento político do ensaísta, que nos

assombra e que insiste em aproximá-lo de Maquiavel; porém, se a análise realista da

sociedade os aproxima, suas proposições políticas os afastam, posto que, na vida em

2 O autor fala em “seita filosófica” (II, 12, p. 240), “três seitas gerais da filosofia” (II, 12, p. 260), “a liberdade e a gallhardia daqueles espíritos antigos criavam na filosofia e nas ciências humanas muitas facções com idéias diferentes, com todos pondo-se a julgar e a escolher para tomar partido” (II, 12, p. 340), “seita estóica ou epicurista” (II, 12, p. 256), “o partido da Academia”. Note-se: “Não há entre os filósofos combate tão violento e tão rude quanto o que se estabelece sobre a questão do soberano bem do homem, e do qual, pelo cálculo de Varro, nasceram 288 seitas” (II, 12, p. 367). Veja-se também: “A seita peripatética, de todas as seitas a mais civilizada, atribui à sabedoria o zelo em buscar e proporcionar em comum o bem dessas duas partes associadas [alma e corpo], e mostra que as outras seitas, por não se haverem detido suficientemente na consideração dessa mescla, tomaram partido, esta a favor do corpo, aquela outra em favor da alma, errando por igual; e afastaram-se de seu objeto, que é o homem, e de seu guia, que em geral declaram ser a natureza” (II, 17, p. 461).3 No ensaio Da experiência (III, 13), Montaigne se coloca na pessoa do conselheiro do príncipe.

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sociedade, Montaigne valoriza três deveres: o da sinceridade, o da lealdade e o da clemência.

O ensaísta, diferentemente de Maquiavel, coloca a honestidade sempre presente no horizonte

da ação política, mas há, de qualquer forma, em seus escritos, aproximações com Maquiavel.

No Renascimento, aquilo que acontece não é mais encarado como inevitável, mas

como obra do destino inconsequente, um capricho da deusa Fortuna:

Na verdade, Fortuna era um dos dois emblemas mais populares do Renascimento; outro era Occasio, a oportunidade. Fortuna é frequentemente mostrada em um barco com timão e vela, a fim de que o homem possa dirigi-la. Mas às vezes ela se transforma em Occasio, tornando-se uma mulher que corre, com longos cabelos caindo em ondas na frente de sua cabeça, mas inteiramente calva na parte de trás. Tudo estava bem se se conseguisse andar com a rapidez necessária para vê-la de frente; um segundo perdido, e seria tarde demais (HALE, 1970, p. 17).

No Renascimento, cada vez mais crescia a suspeita de que a história humana não tinha

uma meta definida a atingir, embora o conhecimento do passado continuasse sendo útil para

governos e governados (História da Historiografia, 2010). Não podemos falar que havia um

telos nem nos estudos conhecidos como studia humanitatis, nem entre os homens que

levavam a cabo tais estudos e que são conhecidos como humanistas. Como não há telos e

como não é possível controlar os acontecimentos, devemos estar em sintonia com o devir,

como é o caso de Montaigne e Maquiavel. Em sua introdução ao livro de Burckchardt, Burke

afirma que a obra O príncipe de Maquiavel representa a objetividade renascentista e a ideia do

Estado como obra de arte (BURKE, 2009, p. 25). Quando Montaigne afirma que os vícios e

as atitudes ilegítimas e desonestas têm função no cimento da sociedade, aproxima-se de

Maquiavel, que compreende a política como arte humana, sem qualquer fundamento maior,

sem um logos organizador, sem um telos (AMES, 2008).

Maquiavel e Montaigne desconfiam da doxa que impera entre o povo e rompem com

as idealizações platônicas ou aristotélicas. Na realidade, se pudermos sintetizar algumas

breves relações entre os dois autores, nesse particular, mencionemos que ambos criticam as

formas imaginadas de governo e os regimes idealizados, ambos constatam o caráter mutável

do mundo, ambos criticam o prevalecimento do interesse privado sobre o interesse público e

ambos acabaram sendo presos. Não há neles um telos. No caso de Montaigne ele parece não

concordar que ideias constroem a realidade. Para ele, de fato, o que ocorre é a compreensão

(parcial e obscura) da realidade por meio da ideia, e não a construção da realidade. Maquiavel

pretende encontrar, pela análise crua da realidade, lições práticas, a fim de orientar o político

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de modo a realizar ações orientadas ao êxito, hic et nunc. O critério de escolha desses meios

deve ser determinado não pela moral, e sim, por sua factibilidade prática (AMES, 2008).

Claro que Montaigne, no caso, parece não acolher as afirmações confiantes do

humanismo, visto que se trata de uma época de guerras entre o partido católico e o partido

protestante, de revisão de valores, tempo propício à crítica e ao ceticismo (TELES, 2000).

Desde o seu surgimento com Pirro, o ceticismo constitui-se em uma filosofia de tempos de

crise.

Estávamos argumentando que na retomada dos pensadores da Antiguidade feita no

Renascimento há que se destacarem, entre eles, os escritos do pirrônico Sexto Empírico

(2000). Na realidade, porém, o ceticismo grego chegou aos pensadores do Renascimento,

especialmente, alem dos escritos de Sexto Empírico (2000), por meio dos textos de Cícero

(1994), de Diógenes Laércio (1977) e de Santo Agostinho (2009).

Depois do ‘esquecimento’ do ceticismo, por séculos, ele foi retomado no

Renascimento. Popkin (2000) escreve que uma das principais vias por meio das quais as

posições céticas adentraram no pensamento do final do Renascimento foi uma disputa

fundamental trazida pela Reforma, qual seja, a questão acerca do que seria o padrão correto

do conhecimento religioso (a chamada ‘regra da fé’). Ora, essa discussão levantava um dos

problemas clássicos dos pirrônicos gregos: o problema do critério de verdade. Os céticos

entendiam que na busca pela verdade, não se encontra ‘a Verdade’, mas apenas ‘verdades’.

Em 1562, surgiu na Europa uma tradução latina das Hipotiposes pirrônicas, de Sexto

Empírico, texto que constitui o principal legado do ceticismo originado com Pirro de Élis.

Argumenta Popkin que:

Com a redescoberta no século XVI dos escritos do pirrônico grego Sexto Empírico, os argumentos e pontos de vista dos céticos gregos tornaram-se parte do núcleo filosófico das lutas religiosas que ocorriam nesta época. O problema de se encontrar um critério de verdade, primeiro levantado em disputas teológicas, foi posteriormente levantado também em relação ao conhecimento natural, levando à crise pyrrhonienne do início do século XVII (POPKIN, 2000, p. 25).

Era a época do Renascimento, momento em que, no caso específico da filosofia, o

pensamento passou a intensificar sua luta contra a ideologia da Igreja de que a filosofia

deveria ser ancila da teologia. Estimuladas em grande medida pelo método e pelas objeções

céticas difundidas por essa tradução. As discussões filosóficas do período, cujo tom era dado

pelo conflito entre fé e razão. Em Apologia de Raymond Sebond (II, 12), Montaigne usa todo

o arsenal cético de argumentação para demonstrar que a razão era limitada e insuficiente para

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estabelecer critérios seguros e definitivos sobre os quais pudesse se erigir verdades

indubitáveis, e que os sentidos eram enganadores enfim, para persuadirem que o saber das

ciências era de fato precário.

A presença decisiva do ceticismo nesses debates gerou o que estudiosos do ceticismo,

como Richard Popkin (2000), chamou de “crise cética no Renascimento”. Mas, com o

interesse cada vez maior pelas reflexões de Sexto Empírico, essa crise se alastrou no tempo,

desencadeando uma outra crise intelectual talvez ainda mais relevante: a crise cética que

resultou na Reforma Protestante. Afinal, Martinho Lutero não ficou imune às críticas céticas

aos critérios de verdade, tampouco às tentações da técnica de suspensão do juízo esboçada por

Sexto Empírico.

Além da discussão filosófica a respeito do critério de verdade religioso, a Reforma traz

à baila a discussão mais geral entre protestantismo, cultura e arte. A geração dos primeiros

reformadores compreendia a cultura e a arte de uma maneira positiva. Todavia, ainda que

entre os primeiros reformadores a expressão cultural não tivesse apenas um caráter litúrgico-

religioso, este entendimento sofre uma substancial alteração por volta do século XVII,

principalmente com o calvinismo posterior, de modo especial entre os puritanos britânicos.

Conforme a interpretação puritana, tudo aquilo que não tivesse uma utilidade prática e,

particularmente, religiosa, deveria ser desconsiderado.

Outro fato curioso ocorrido no século XVI, durante a Reforma, foi a utilização

do ceticismo tanto pelos reformadores quanto pelos ideólogos da Contrarreforma para

marcarem as suas posições. E que este novo ceticismo renascentista surgiu mais por fins

práticos do que por motivos teoréticos. Os motivos mais específicos que deram origem ao

ceticismo da Renascença foram: a sede do individual, da concretidade; a paixão pela

observação detalhada própria do pensamento moderno em geral, em oposição ao pensamento

antigo e medieval, voltados para o universo e o abstrato; a variedade e o contraste das diversas

escolas e tradições (filosóficas e religiosas); a mentalidade literária da época, apaixonada pela

estética, e incapaz de levantar grandes construções sistemáticas; a religiosidade persistente,

que julgava salvar a fé deprimindo a razão, tendo esta atacado, frequente e violentamente, a

religião; o contraste entre a exigência religiosa e o paganismo da vida que surgia de novo.

Salientamos que o ceticismo da Renascença tem seus maiores expoentes fora da Itália, e o

maior é Montaigne. Salientam-se, porém, que, além de Montaigne, as novas ideias do

Renascimento francês aparecem nos escritos de François Rabelais (VAN LOON, 1945).

Porém, entre a cidadania do Renascimento florentino e a exigência de liberdade de expressão

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pública que caracterizou o iluminismo, Montaigne parece personificar o momento em que a

liberdade se refugia no privado, com uma inabalável obediência à ordem estabelecida.

Como se pode constatar, não há como estudar a retomada do ceticismo no

Renascimento dissociando-o dos debates filosóficos, políticos e religiosos, que se fracionam

em “partes”. Tanto isso é verdade que Montaigne distingue os partidos dos filósofos e

também alude aos critérios do partido católico e aos do protestante sem dissociá-los de suas

dimensões políticas. Inserindo-se na discussão sobre o problema de se encontrar um critério

de verdade no Renascimento, Popkin (2000) escreve:

Uma das principais vias através das quais as posições céticas penetraram no pensamento do final do Renascimento foi uma disputa central na Reforma, a disputa acerca do que seria padrão correto do conhecimento religioso, o que era chamado de ‘a regra da fé’. Este argumento levantava um dos problemas clássicos dos pirrônicos gregos, o problema do critério de verdade (POPKIN, 2000, p. 25).

Montaigne utiliza, a palavra ‘partido’ para designar diferenças de interpretação4 entre

os cristãos, e aponta quão difícil é alguém ser isento. Para julgar, seria preciso um juiz que

não existe: “[A] De resto, quem será adequado para julgar sobre essas diferenças? Como

dizemos, nos debates religiosos, que precisamos de um juiz não ligado a um nem a outro

partido isento de preferência e de paixão, o que não é possível entre os cristãos [...]” (II, 12, p.

401-402). Chamamos a atenção para o fato de que, na época de Montaigne, as relações entre

política e religião passam por um processo de transformação, e o fracionamento da sociedade

cria o partido católico e o partido dos reformadores, como ele denomina. Todo partido está

convencido que busca o bem, inclusive aquele partido que busca inovações. Conforme

Montaigne, como o bem não sucede necessariamente ao mal, a inovação como um mal

oprime um Estado e pode resultar em efeitos desagregadores, visto que a sociedade é um

imenso edifício composto de tantas partes, de difícil equilíbrio:

Nada oprime um Estado como a inovação: a mudança apenas dá forma à injustiça e à tirania. Quando alguma peça cede, podemos escorá-la; podemos opor-nos a que a alteração e degradação natural a todas as coisas afastemo-nos demais de nossos começos e princípios. Mas aventurar-se a refundir uma tão grande massa e a mudar os alicerces de um edifício tão grande é próprio daqueles que para limpar apagam, que querem corrigir os defeitos particulares com uma confusão universal e curar os doentes com a morte (III, 9, p. 258).

4 Eva (2007) observa que “Montaigne menciona os debates religiosos sobre os textos bíblicos como exemplo da diversidade das opiniões humanas, e observa que a citação desses textos em tais debates constitui uma tentativa inútil para minorá-los ou estancá-los” (EVA, 2007, p. 88).

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Montaigne pensa o social como uma acomodação costumeira,  soldada pela crença na

legitimidade (naturalidade) desses costumes, de acordo com os assuntos públicos.

Quem caminha na multidão precisa desviar-se, encolher os braços, recuar ou avançar e mesmo sair do caminho reto, dependendo do que encontrar; viver não tanto de acordo consigo como de acordo com outrem, não de acordo com o que se propõe, mas de acordo com o que lhe propõem com a época, de acordo com os homens, de acordo com os assuntos públicos (III, 9, p. 311).

Assim, não parece que haja espaço para algo como uma legitimação  dos conflitos.

Para o autor, os huguenotes 5, como parte, tentam impor a esse todo social – costumeiramente

legitimado – uma inovação inspirada  apenas em seus interesses (particulares).

Consequentemente, essa solda já foi rompida com o partido protestante e com a Reforma6.

Desse modo, cabe aqui uma questão trazida à baila por Montaigne na discussão que ele faz

sobre a Reforma, na Apologia a Raymond Sebond: Como não há, um critério de verdade

indiscutível para todos, a Reforma divide as partes e aguça a crise social ao trazer à tona essa

disputa em que não há vencedores (II, 12). Na realidade, o ceticismo penetrou, especialmente,

no Renascimento a partir da disputa sobre o “padrão correto” do conhecimento religioso, o

que era chamado de ‘a regra da fé’.

Frente a isso, católicos e protestantes tinham as mesmas dificuldades em relação a

estabelecer a verdade indiscutível. Como reconhecer o verdadeiro critério? Os protestantes

negam a regra de fé da Igreja e apresentam um critério de conhecimento religioso muito

diferente. Busca-se, assim, um critério de verdade e adentra-se nas dificuldades filosóficas

geradas por esse conflito, como mostra Montaigne no mencionado texto Apologia a Raymond

Sebond (II, 12). Nesse ensaio, o ponto culminante é a dúvida total 7. O valor da evidência

5 Designação pejorativa dada pelos católicos franceses aos protestantes, na França, no século XVI, especialmente aos calvinistas, e que estes adotaram, qualificando a si mesmos como o ‘partido’ dos hugenotes. Os protestantes propunham um novo critério. Conforme Popkin, “[...] Lutero estabeleceu seu novo critério de conhecimento religioso, ou seja, que aquilo que a consciência é compelida a aceitar ao ler as Escrituras é verdade” (POPKIN, 2000, p. 27). Na realidade, protestantes e católicos buscam uma justificativa para a verdade infalível em questões religiosas, por meio de um crítério que fosse autoevidente ou que justificasse a si mesmo.6 O livro Theologia naturalis sive liber creaturarum magistri Raymond de Sabonde (traduzido para o francês por Montaine, a pedido de seu pai) foi recomendado por Pierre Bunel como útil e adequado para a época, visto que a Reforma sacudia os costumes e as leis. De acordo com Montaigne: “[...] foi quando as novidades de Lutero começavam a entrar em voga e a abalar em muitos lugares nossa antiga crença. Nisto ele tinha uma opinião muito acertada, prevendo pelo raciocínio que aquele início de doença facilmente degeneraria num execrável ateísmo [...]” (II, 12, p. 161).7 Popkin entende que “a última série de dúvidas de Montaigne, o nível mais filosófico de seu pirronismo, levanta todo um conjunto de problemas sobre a confiabilidade do conhecimento sensível, sobre a verdade dos primeiros princípios, sobre o critério do conhecimento racional, sobre nossa incapacidade de conhecer algo exceto aparências, e sobre nossa falta de qualquer evidência segura sobre a existência e a natureza do mundo real” (POPKIN, 2000, p.105).

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depende do critério, e não o contrário. Assim, a análise da experiência sensível, base de todo

conhecimento, coloca o problema do critério. Não há critério com certeza ou fundamento

confiável. Desse modo, na luta para estabelecer o verdadeiro critério da fé, uma postura cética

surge dentre alguns pensadores, porque o problema em questão fora examinado por Sexto em

Hipotiposes pirrônicas:

[...] para decidir a disputa que surgiu sobre o critério devemos ter um critério aceito por meio do qual se possa julgar a disputa; e para ter um critério aceito devemos decidir primeiro a disputa sobre o critério. E quando o argumento reduz-se desta forma a um raciocínio circular, encontrar um critério torna-se impraticável, uma vez que não permitimos que eles [os filósofos dogmáticos] adotem um critério por suposição, enquanto que se oferecem para julgar o critério por um outro critério nós o forçamos a um regresso ad infinitum” (SEXTO EMPÍRICO, 2000a, p. 163-165).

Sexto Empírico escreve que os céticos mais recentes elaboraram os seguintes cinco

modos de suspensão do juízo: o do desacordo; o da regressão ao infinito; o da relatividade; o

da hipótese; e o da circularidade (SEXTO EMPÍRICO, 2000). Sexto, depois de explicar cada

tropo, conclui que, como somos incapazes de estabelecer a verdade, suspendemos o juízo.

Mas como a suspensão do juízo acontece nas ações do cético, prefeito e conselheiro

Montaigne? Qual é a atitude inicial da reflexão política montaigniana? Bornheim (1980)

dedicou um de seus estudos ao comportamento originante do filosofar e a possibilidade de

esclarecer a problemática implicada no ponto de partida do filosofar e conclui: “A atitude

inicial do filósofo determina o caráter último de sua filosofia” (BORNHEIM, 1980, p. 2,).

Nesse sentido, é este o exercício do filosofar montaigniano: como ver as partes e se

posicionar. Montaigne parece querer, simultaneamente, conhecer as partes, atuar

politicamente e suspender o juízo definitivo. De modo geral, dialoga com adeptos de várias

religiões. De acordo com Popkin (2000), o ensaísta tem um profundo interesse pelas várias

correntes de pensamento da Reforma e da Contrarreforma. Insere-se nesse debate ao traduzir

a obra de Sebond, conhece lideranças expressivas dos partidos: o líder protestante, Henrique

da Navarra, e o jesuíta da Contrarreforma, Juan Maldonado (POPKIN, 2000). Em sua família

também há membros do partido protestante. Em seu olhar sobre a política, Montaigne observa

com preocupações os efeitos deletérios dos partidos em disputa. O autor escreve: “[B] Vi na

Alemanha que Lutero deixou tantas dissensões e discussões sobre a diversidade de suas ideias

quantas provocou sobre as Sagradas Escrituras” (III, 13, p. 429). Assim, outras divisões

ocorrem, traduzindo-se em partes que esfacelam a sociedade, com seus interesses particulares.

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Por isso, afirmamos que a base  da ideia política de Montaigne é a preocupação com as partes

destrutivas da sociedade, pois é isso que lhe salta aos olhos.

O costume, que surge de forma fortuita, é costurado depois em leis, constituindo base

para a política: “Essa costura fortuita formula-se depois em leis; pois houve-as tão selvagens

que nenhuma decisão humana poderia gerar, e que no entanto mantiveram seus corpos com

tanta saúde e longevidade quanto as de Platão e Aristóteles poderiam manter” (III, 9, p. 256).

Rompida a solda entre os homens (submetidos e conformados a certos costumes), como a

sociedade é composta de partes em conflito, tudo se desmancha Nas palavras de Montaigne:

“Por qualquer meio que nos dê poder para corrigi-los e sujeitá-los [os homens] novamente,

dificilmente podemos torcê-los de seu vínculo costumeiro sem desmancharmos tudo” (III, 9,

p. 257). Não há mais volta possível para uma suposta unidade. Um novo equilíbrio precisa ser

costurado (caso contrário, “o navio afunda”) para recompor a ordem: “Poucos navios afundam

por seu próprio peso e sem violência externa. Ora, voltemos os olhos para todos os lados: tudo

desmorona ao nosso redor; em todos os grandes Estados, seja da cristandade, seja alhures, que

conhecemos, observai: encontrareis neles um claro presságio de mudança e de ruína [...]” (III,

9, p. 262-263). Portanto, a partir dessa situação irreversível, parece que, para Montaigne,

trata-se de buscar equilíbrio, com negociações entre as frações do corpo social. Ele mesmo,

inclusive, serviu como mediador. Não há legitimação dos conflitos, mas há o reconhecimento

de que eles existem, ainda que com riscos terríveis. A questão não é “uma alteração na massa

inteira e sólida” (III, 9, p. 264), mas sim sua “dissipação e divulsão – o extremo de nossos

temores” (III, 9, p. 264).

Montaigne desconfia de tudo aquilo que ultrapassa o empírico. Dessa maneira, o

ceticismo de Montaigne o leva a diagnosticar que nenhuma das partes tem a verdade absoluta,

seja na filosofia, na religião ou na política. Nunca saímos da esfera dos costumes, que invade

até mesmo as leis da consciência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que informações sobre os céticos gregos chegaram aos pensadores do

Renascimento por meio de poucas fontes, basicamente só temos: os textos de Sexto Empírico

(2000), os escritos céticos de Cícero (1994) e a descrição das correntes céticas nas Vidas e

doutrinas dos filósofos ilustres de Diógenes Laércio (1977), e na obra de Santo Agostinho

(2009). Não há outras fontes primárias conhecidas do ceticismo. Saliente-se também que

Sexto Empírico é o único cético pirrônico grego cuja obra sobreviveu e que teve uma

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extraordinária importância na formação do pensamento moderno. Anteriormente a Sexto não

parecem ter havido muitas considerações filosóficas sérias acerca do ceticismo.

Em razão do caráter desse trabalho não iremos esmiuçar quando essas fontes se

tornaram disponíveis. Entretanto, apenas para dar algumas primeiras indicações:

É possível datar de maneira razoavelmente precisa o começo do impacto das ideias de Sexto Empírico no pensamento do Renascimento. Suas obras foram praticamente desconhecidas na Idade Média, e conhecemos apenas uns poucos leitores de suas obras antes de sua primeira publicação em 1562. Até agora apenas dois manuscritos latinos medievais das obras de Sexto foram descobertas, um em Paris, datado do final do século XVIII, uma tradução das Hipotiposes pirrônicas (estranhamente atribuídas a Aristóteles), e o outro, uma versão melhorada da mesma tradução, descoberta na Espanha aproximadamente 100 anos após a primeira. (POPKIN, p. 50).

Argumentamos que, em razão do surgimento da Reforma, o problema cético do

critério deu às ideias de Sexto Empírico grande proeminência. Em suma, na busca incessante

pela verdade, o diagnóstico cético é o da diafonia, tanto no campo católico quanto no campo

protestante. Ou seja, cada partido tem razão na crítica ao critério do outro, porém as partes

conflitantes não apresentam razões indiscutíveis de que o próprio critério tem caráter

universal. Há, assim, algo de certeiro na crítica ao critério católico (acusado de ‘pirronismo da

Igreja de Roma’), pois de fato se usando os princípios de conhecimento religioso adotados

pela própria Igreja, jamais poderíamos ter certeza. Por outro lado, os católicos também têm

suas razões, quando atacam o critério protestante como ‘cético’, uma vez que leva a um total

subjetivismo, seja na versão de que ‘a verdade está na Bíblia’, seja na versão de que se trata

de uma ‘iluminação interior’. O problema persiste: qual é o critério para decidir o critério?

(SEXTO EMPÍRICO, 2000). Talvez, porém, não se deva referir à diafonia cética como

insolúvel (uma vez que pode haver, nessa expressão, um caráter dogmático), e sim como não

solúvel.

Todavia, escreve Popkin:

Enquanto cada lado tentava solapar os fundamentos da posição do outro, e mostrar que o outro enfrentava uma versão insolúvel do problema cético do critério, cada lado na realidade fazia afirmações de certeza absoluta sobre suas próprias posições. Os católicos encontravam a garantia na tradição, os protestantes na iluminação reveladora da Palavra de Deus nas Escrituras (POPKIN, 2011, p.43).

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Portanto, a necessidade que se tinha de encontrar um princípio por meio do qual o

critério de verdade fosse reconhecido por todos se tornou premente aos pensadores do

Renascimento8.

Em outro texto, Popkin (2011) interpreta que o ceticismo assumiu diferentes formas,

reagindo de diferentes maneiras, mediante as quais os filósofos dogmáticos tentaram

responder ao desafio cético. Alguns de seus efeitos não filosóficos, que engendraram uma

“base” cética que permitiu a possibilidade de surgirem a tolerância e a democracia universais,

implicaram o solapamento da confiança nas antigas ordens da Igreja e do Estado na Europa

Ocidental a partir do momento em que considerou a possibilidade de que nenhum sistema

tradicional de ideias ou instituições pudesse ser racionalmente defendido. Acrescenta, ainda,

que a combinação de ceticismo religiosos e metafísica realista constituiu a posição de muitos

filósofos do Iluminismo. Foi apenas com Hume que se dá o encontro do ceticismo tanto do

ponto de vista religioso quanto epistemológico. O caráter e a qualidade das crenças religiosas

foram profundamente abalados e o tipo de crença que pode sobreviver a este ataque baseava-

se cada vez mais em uma posição cética e fideísta. Este tipo de desafio continua ao final do

século XX como uma das principais questões que um pensador religioso deve enfrentar

(POPKIN, 2000, p. 381). De tal forma que o ataque cético que surge no ambiente religioso,

espraia-se para a filosofia e para a ciência.

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BURKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

8 Para acompanhar o início desse debate leia-se a atitude cética de Erasmo de Rotterdam (De líbero arbítrio), que ataca a posição de Lutero sobre livre-arbítrio. Esse autor também critica as buscas intelectuais dos filósofos como um fim em si mesmo em outra obra Elogio da Loucura. Tais escritos suscitaram uma serie infindável de réplicas e tréplicas, etc. Na realidade, essa polêmica se apresenta inextinguível até os nossos dias.

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