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Daniel Sá Nogueira

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9O 11.º MANDAMENTO :: DANIEL SÁ NOGUEIRA

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– Senhores passageiros, vamos atravessar uma zona de turbulên-

cia. Peço -vos que voltem aos vossos lugares e apertem os cintos de segu-

rança. Obrigado.

A voz do comandante era suave, como seria de esperar. Até nas

situações mais preocupantes, os pilotos sabem que têm de acalmar os

passageiros. Talvez por isso, a sua suavidade não tranquilizasse Maria.

– Odeio turbulência!

– Tens é medo de voar, Maria! Com turbulência ou sem ela. Relaxa.

Estamos no ar. É natural que isto abane um bocadinho…

O último “o” de Diana tremeu com um forte abanão que a fez

agarrar -se aos braços da cadeira. Outro seguiu -se, segundos depois.

Maria não conseguia mover -se. Tinha o corpo petrificado. Ouvia -se o

choro de uma criança assustada, e a reza de uma senhora de idade que

pedia a Deus aquilo que ninguém, naquele momento, lhe poderia dar:

um céu sereno, um voo seguro.

Maria sentiu a mão de Diana procurar a sua. Ao contrário dela,

Diana nunca tivera medo de voar, mas quando o medo passa a ser o

de morrer, são poucos os corajosos. Diana tentou sossegar a irmã, pro-

curando dentro de si um tom de voz que se assemelhasse à segurança

de um comandante aéreo com milhares de horas de voo na caderneta.

– Deve ser só um poço de ar… – disse.

Mas Maria conhecia a irmã suficientemente bem para saber que

aquela voz escondia o medo que sentia.

O avião caiu bruscamente alguns metros, que pareceram quilóme-

tros. O computador de um passageiro, que se atrasara no regresso da casa

de banho e que, por isso, não acondicionara o material após o aviso do

comandante, embateu no tecto com violência. Estilhaços espalharam -se

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pelos bancos mais próximos, seguidos de gritos que nalguns casos eram

de dor, noutros de puro pânico.

O avião descaiu uma e outra vez, em movimentos tão repentinos

que nem permitiam que se respirasse entre eles. As máscaras de oxigé-

nio libertaram -se à frente dos passageiros, mas tudo acontecia de forma

tão rápida e intensa que era impossível agarrá -las. Dois compartimen-

tos de malas abriram -se, espalhando lembranças para os amigos e casa-

cos para o Inverno. O caos era tanto que nem o comandante, agarrado

à manche, se atrevia a interrompê -lo com uma qualquer voz tranquila.

Um barulho metálico, estridente, sobrepôs -se aos gritos dos pas-

sageiros e até ao silêncio de Maria e Diana, que não tinham voz para

expressar o seu pânico. Depois disso, o avião começou a cair de forma

descontrolada, sem direcção, sem rumo que não o abismo.

– Maria…

Maria olhou a irmã nos olhos, com uma dor aguda de despedida.

Diana apertou -lhe a mão com força e perguntou -lhe a coisa mais estra-

nha do mundo:

– Tu és feliz, Electa?

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– Maria…

A voz que continuava a chamá -la era agora de homem e não tinha

a gravidade de momento algum. Apenas o calor e o arrastar de uma voz

ensonada, de alguém acabado de acordar.

– Acorda, Maria…

Maria soergueu o corpo na cama, assustada. Tinha a testa suada e

as mãos húmidas de um pânico que extravasara o sono. Olhou a mão

que tinha dado à sua irmã. Tinha a certeza absoluta de que ainda agora

mesmo estava a apertá -la com toda a força.

– Estavas a sonhar?

A pergunta desinteressada foi feita de costas. Diogo não olhou

para ela, nem percebeu a sua expressão confusa. Já calçava os chinelos à

pressa, para voar até à casa de banho. Todos os dias punha o despertador

11O 11.º MANDAMENTO :: DANIEL SÁ NOGUEIRA

para dez minutos depois da hora a que devia acordar e tinha de ser o

primeiro a sair, senão não chegava a tempo à reunião matinal no ate-lier. Maria costumava acordar meia hora antes de o despertador tocar,

quando o primeiro raio de Sol tocava na sua almofada. Preferia acordar

assim, sem barulhos estridentes. Levantava -se, tomava banho, embalava

Joana até ela abrir os olhos para um novo dia e preparava o pequeno-

-almoço para estar pronto quando o Diogo se levantasse. Pelos vistos,

hoje dormira demais.

– Tive um pesadelo horrível. Sonhei que eu e a minha irmã está-

vamos num avião, que começou a cair, a cair…

– Isso é ridículo, Maria. Para começar, tu nunca entrarias num avião...

Diogo foi para a casa de banho, desvalorizando por completo a

angústia de Maria. O medo de voar de Maria era famoso lá em casa,

mas não tinha nenhuma razão racional para existir. Ela nunca estivera

envolvida num acidente aéreo, nunca apanhara nenhum susto a dez mil

metros. A verdade é que Maria nunca entrara, sequer, num avião. Diogo

já tentara convencê -la a experimentar, exibindo apelativos panfletos de

destinos paradisíacos, mas entretanto desistira. Não havia nada a fazer.

– Não estás a perceber, Diogo. A minha irmã… – Como é que Maria

podia explicar o que estava a sentir? Um aperto daqueles no peito não

era uma coisa fácil de pôr por palavras, mesmo para ela, que era profes-

sora de Português e tratava esta língua por tu. – Tenho de lhe ligar…

Maria pegou no telemóvel que tinha ao lado da cama e começou a

procurar o número da irmã.

– A esta hora a tua irmã ainda está a dormir. – A voz de Diogo,

vinda da casa de banho, era fria. Misturava -se agora com o som da água

quente a correr.

– E se lhe aconteceu alguma coisa?

– Ah… então o teu sonho foi uma premonição. É isso?

A ironia corrosiva, que conseguia sempre fazer com que Maria se sen-

tisse uma idiota, estava de volta. Interrompeu a busca pelo número da irmã.

Era, de facto, um disparate pensar que o sonho podia ter algum signifi-

cado que não fosse a sua conhecida fobia, as saudades da irmã que vivia a

milhares de quilómetros de distância, ou talvez ter visto dias antes algum

filme com um acidente de avião. Mas, e se o sonho tivesse outro significado?

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– Sabes quando sentes que tens mesmo de fazer alguma coisa? –

perguntou Maria, de telemóvel na mão, falando alto para dentro da

casa de banho.

– Não – respondeu Diogo, sem vontade de conversar, já com a

água a cair -lhe no corpo.

Maria resignou -se. Ele nunca entenderia. Para Diogo, aquilo a que

habitualmente se chama sexto sentido era apenas uma “mania das mulhe-

res”, uma fantasia. E a verdade é que Maria nem sequer era muito dada

a essas coisas. Não era lá muito intuitiva. Nunca fora. Num outro dia

qualquer, teria desistido do seu propósito e pousado o telemóvel, mas

hoje parecia que havia uma voz a insistir com ela para fazer o telefonema.

Não que ela a ouvisse, de facto, mas sentia -a muito presente. “Diana”,

o número estava ali. Carregou na tecla verde e esperou que do outro

lado atendessem, mas a chamada foi imediatamente para o atendedor.

– O número para o qual ligou não se encontra neste momento dis-

ponível – dizia uma voz em holandês – blá, blá, blá, blá, blá... – Maria

esperou que a voz do gravador terminasse e o “piii” apitasse, sem se

mover nem pestanejar, concentrada nas palavras que queria deixar no

voicemail da irmã.

– Diana… sou eu. Liga -me quando ouvires esta mensagem. Estou

preocupada contigo. – Maria desligou, apreensiva.

– Eu disse -te que ela ainda ia estar a dormir a esta hora. – Diogo

acabara de sair do duche, num dos banhos mais rápidos da história.

O atraso assim o impunha.

– Levas a Joana à escola? – pediu Maria ao marido.

– Não posso. Hoje estou atrasadíssimo!

– Também estou atrasada…

– Diz aos teus alunos que tiveste um acidente de avião.

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Diana só ligou de volta a meio da manhã, já Maria tinha levado a

filha à escola, pedido desculpa aos alunos pelo atraso e falado o suficiente

sobre a poesia das sensações de Alberto Caeiro para atirar para o fundo

13O 11.º MANDAMENTO :: DANIEL SÁ NOGUEIRA

da cabeça a angústia em que acordara nessa manhã. Quando o telemó-

vel, em silêncio, vibrou e Maria leu “Diana” no visor, o sentimento de

pânico com que acordara regressou. Só atendia o telemóvel numa aula

quando lhe ligavam de urgência da escola de Joana que, de tempos a tem-

pos, tinha ataques hipoglicémicos. Aliás, só o deixava ligado por isso.

– Desculpem, meninos, mas tenho mesmo de atender esta cha-

mada. Fiquem a ler o texto da página cento e onze. Já falamos sobre ele.

Maria olhou de relance para os alunos e encontrou o olhar de desa-

fio de David, um aluno inteligente mas irreverente, que volta e meia lhe

causava dificuldades nas aulas. “Só espero que ele não aproveite este

momento para criar confusão” – pensou, enquanto saía da sala e se

afastava até ao corredor do edifício.

– Diana…

– Olá, mana…

A voz de Diana era sempre jovem e fresca. Por mais que os anos

passassem, Diana não perdia essa jovialidade. Talvez fosse da rebel-

dia que Maria nunca tivera. “Se continuas certinha ficas com rugas…”,

dizia -lhe a irmã. Talvez tivesse razão. Maria só tinha mais cinco anos

do que Diana, mas todos achavam que a diferença era de pelo menos

dez ou quinze. Mas a voz de Diana, naquele “Olá mana”, não era a da

Diana que parecia sempre dez anos mais nova. Tinha um peso capaz

de fazer cair a pique um avião.

– O que é que tens? Eu sabia que não estavas bem…

– Sabias como?

O sonho de Maria parecia, naquele momento, irrelevante. Rele-

vante era a voz da irmã, grave e pesarosa.

– Simplesmente sabia. O que é que se passa?

– O Noah, Maria… O Noah morreu ontem.

Maria fez uma pesquisa rápida na sua cabeça, mas o nome não lhe

dizia nada. Não fazia ideia de quem era o Noah. Talvez um namorado

da irmã. Já tivera tantos. Mas, quem quer que fosse, era importante

para ela. A carga desconhecida na voz da irmã assim o confirmava. Era

o mesmo peso que sentira a bordo do avião do seu pesadelo.

– Vais -te meter amanhã mesmo num avião, Diana. Quero -te aqui

ao pé de mim!

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– Já estou em Portugal. Vim esta madrugada. Estou no aeroporto

à espera que me venhas buscar.

O texto da página cento e onze teve de esperar. Maria só teve

tempo de avisar a directora, que calculou ser mais um ataque da filha,

e voou para o aeroporto. Conduzia de forma automática, desafiando

os vermelhos e avançando nos verdes, sem prestar grande atenção ao

trânsito. Havia um pensamento que não lhe saía da cabeça: enquanto

sonhava que estava num avião com Diana, a irmã viajava de Amester-

dão para Lisboa. O avião não tremera, não se despenhara, mas a irmã

não estava bem. Talvez tivesse tido uma premonição. Já tinha ouvido

falar de pessoas que sentem a dor das que lhes estão mais próximas,

mas era a primeira vez que lhe acontecia algo semelhante. O trânsito

não avançava. Estava tudo parado. Na berma, via -se um carro da polí-

cia, com as luzes azuis ligadas. “Não me digas que foi um acidente”,

pensou Maria. Abriu o vidro para falar com o polícia, que estava a fazer

sinal para desviar o trânsito, e o som de batuques e gritos de protesto

chegou -lhe aos ouvidos.

– Queremos emprego já! Abaixo o governo! Queremos emprego já!

– Olhe, desculpe, pode dizer -me o que é que se passa? – pergun-

tou Maria, assim que o carro chegou ao sítio onde o polícia dava ins-

truções aos condutores.

– Mais uma manifestação, minha senhora. É melhor apanhar a

paralela e regressar a esta rua dois quarteirões à frente.

Desde que o desemprego ultrapassara a barreira dos trinta por cento,

um ano antes, as manifestações na rua eram quase diárias. Maria obe-

deceu às ordens do polícia, mas ainda apanhou o final da manifestação.

Viam -se pessoas de todas as idades, algumas com crianças pela mão,

ou empurrando carrinhos de bebé. Famílias inteiras seguravam carta-

zes e caminhavam lado a lado, de mãos dadas, ocupando toda a rua.

“Ao ponto a que chegámos”, pensou Maria, com o coração aper-

tado, enquanto avançava lentamente pela retaguarda da multidão.

O resto do caminho fez -se sem incidentes.

Assim que Maria chegou ao aeroporto, saiu a correr, abandonando

o carro mesmo em frente à porta das chegadas. Anos antes, teria sido

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impossível deixar o carro ali, mas os cortes orçamentais no aeroporto

tinham reduzido postos de trabalho também na segurança.

“No dia em que os terroristas quiserem fazer um atentado em Lis-

boa, estamos feitos.” Mas a verdade é que a cidade nos dias que corriam,

não interessava muito no panorama internacional. Na opinião de Maria,

até os terroristas tinham riscado a cidade do mapa.

Viu Diana assim que entrou no hall do aeroporto. Estava vestida

de branco, de havaianas, e tinha uma expressão abatida. Quem não a

conhecesse pensaria que tinha acabado de chegar de férias do Brasil.

Mas Maria conhecia -a e ficou espantada assim que a viu. Na juventude,

a irmã sempre preferira vestir -se de preto e o guarda -roupa não mudara

assim tanto nos últimos anos. Tanto quanto Maria se lembrava, era a

primeira vez que via Diana vestida de branco. Assim que a viu, Diana

abriu os braços, para receber o abraço de que tanto precisava.

Maria correspondeu, num abraço imenso que parecia nunca mais

acabar.

– Eu sabia que vinhas, Electa...

Maria deu -lhe a mão. A mão que, no sonho, a irmã lhe dera no avião.

– Há muito tempo que ninguém me chamava assim – disse, com

um sorriso.

– Isso é errado. És muito mais Electa do que Maria, não me canso

de te dizer – insistiu Diana.

Maria sorriu. Como sempre, sem resposta.

– Talvez um dia percebas o que eu quero dizer... – disse Diana.

– Nem tu sabes o que isso quer dizer.

– É claro que sei! Talvez não me saiba explicar, mas é importante!

– Como é que estás? – A pergunta directa de Maria interrompeu

a habitual discussão filosófica sobre o seu segundo nome, que nunca

levava a lado nenhum.

– A pôr muita coisa em causa... – disse Diana, empurrando o car-

rinho em direcção ao carro. – Não te sei explicar, mas a minha vida está

a levar um abanão como nunca levou. E vim o caminho todo a precisar

de te fazer uma pergunta, que também não paro de fazer a mim mesma.

Maria olhou para Diana, que olhava muito séria para ela.

– Tu és feliz, Electa?

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Enquanto conduzia de regresso a casa, que ficava numa terriola

chamada Paz, mesmo à saída do centro de Mafra, Maria esforçou -se

por esquecer mais uma coincidência que se atravessara no seu caminho.

Primeiro, o sonho com a irmã que na realidade viajara mesmo de avião

e sentira turbulência, ainda que a outro nível. Depois, a pergunta sobre

a sua felicidade, que ouvira no sonho e novamente na realidade, como o

eco de algo que tinha mesmo de ser perguntado… e respondido. Mas,

naquele momento, ela não estava interessada em perguntas filosóficas.

Tentava apenas concentrar -se no caminho. Pensar na pergunta da irmã

deixava -a cansada, sem energia. Afastou -a do seu espírito e concentrou-

-se em Diana. Estava mais preocupada com o bem estar da irmã do que

com a sua própria felicidade. Para Maria, essa preocupação era natu-

ral, genuína, fazia parte do seu padrão de comportamento. Sempre fora

assim. Se a felicidade de alguém estava em causa, Maria atirava -se como

uma leoa. Sem se importar com feridas, quedas ou mazelas. Fazia o que

podia e o que não podia pelos outros. A sua felicidade viria como con-

sequência natural. Quando viesse.

– Conta -me sobre o Noah – pediu. Diana ficou um instante em

silêncio e Maria percebeu que este era um tema difícil para a irmã. –

Se te fizer bem falar...

Fazia. Às mulheres faz sempre bem falar.

– O Noah era uma pessoa muito especial. Não sei bem explicar-

-te o que estou a dizer, Maria, porque ele era mais do que aquilo que

consigo descrever.

Maria ficou um instante em silêncio.

– Porque o Noah não era um homem qualquer. De certa maneira,

ele não era bem um homem – disse Diana, com o olhar perdido na pai-

sagem da A8. – Quer dizer, era um homem, claro. Um homem mara-

vilhoso. Humano, apaixonado e, sim, muito atraente. – O sorriso que

Diana dirigiu a Maria era o mesmo de sempre. Respirou fundo, para

controlar a emoção, e continuou:

– O Noah tinha qualquer coisa que ia para além da nossa compreensão.

Acho que ele era... uma espécie de iluminado. Sim, é essa a palavra certa.

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Maria olhou para a irmã com estranheza. Nunca a ouvira falar de

ninguém daquela forma. Nem de ninguém, nem de nada. Foi a pensar

nisso até chegarem à sua casa.

– Porque é que dizes que ele era um iluminado?

– Um tipo que era um gestor de topo, que ganhava rios de dinheiro,

e deixou tudo para passar meses numa casa de campo a meditar, ou é

louco ou é iluminado!

– Quantos anos é que ele tinha?

– Trinta e três. Ele brincava e dizia que era a idade de Cristo.

A idade em que tudo mudou.

Maria acomodou -se no sofá. Era apaixonante a forma como a irmã

falava daquele homem. No que respeitava a homens, Maria costumava

dizer que Diana era adepta do namoro descartável. Já na adolescência

não conseguia ter um namoro estável. Fartava -se dos namorados como

quem se farta de comer todos os dias bife com batatas fritas. O problema

é que Diana comia um dia bife, no outro dia peixe, no outro massa e

no outro comida chinesa e, mesmo assim, nunca se dava por satisfeita.

A paixão seguinte é que seria sempre a ideal. E esse ideal nunca chegava.

A dada altura, Maria fartou -se de tentar conhecer os namorados

da irmã. Optou mesmo por não querer saber rigorosamente nada acerca

deles. Se Diana levava algum lá a casa e o apresentava, Maria esforçava-

-se por nem lhe decorar o nome. Porque, na vez seguinte, a companhia

da irmã já seria outra. Inconstância. Intranquilidade. Diana nunca

tinha sido uma pessoa serena. Inicialmente, Maria defendia -a perante

os pais, dizendo que o seu comportamento era fruto da idade, ainda

que ela própria tivesse já tido essa mesma idade e nunca tivesse sido

inconstante como ela.

A irmã cresceu, entretanto, mantendo sempre o mesmo espírito

irrequieto. Parecia que nunca tinha aquilo que queria. Mas também

não era revoltada, porque sabia que tinha muito. Simplesmente, que-

ria mais. Ou melhor, queria coisas diferentes. Coisas que, às vezes,

nem sabia bem explicar o que eram. Parecia que a música “Estou

além”, do António Variações, tinha sido escrita para ela! “Estou bem,

aonde não estou e eu só quero ir aonde não vou...” Diana entrou na

faculdade por insistência dos pais. Mudou de curso no segundo ano.

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No terceiro estava em Amesterdão a fazer Erasmus. Nunca mais vol-

tou. Nem terminou o curso. Acabou por arranjar lá um trabalho, ou

vários. Maria nunca quis saber detalhes, pois tinha medo de imagi-

nar a irmã a posar atrás de uma das famosas montras do Red District. Sabia apenas que Diana ia tendo uns trabalhos e aproveitava os tempos

livres para viajar pela Holanda e países vizinhos, com as mais variadas

companhias.

Visitou -a apenas duas vezes. Uma com os pais que, pela primeira

e única vez, deixaram a Península Ibérica. Quando a visitaram, Diana

morava num barco com um pintor sem talento que passava os dias a

fumar ganzas. A visita durou apenas três dias. Os pais nunca mais

quiseram voltar a Amesterdão. O estilo de vida da filha era diferente

de tudo aquilo que eles poderiam alguma vez compreender. Amavam

Diana por ela ser sua filha, mas sabiam -na a uma distância inultrapas-

sável. Viviam em dimensões diferentes e era escusado tentar estabele-

cer pontes, porque uma e outra parte não queriam conviver. Viviam em

mundos incompatíveis.

A segunda vez que Maria visitou Amesterdão foi com João. Dessa

vez ficaram bem mais tempo. Diogo nunca tinha querido lá ir. Conhe-

cera Diana, numa curta visita a Portugal, e decidira logo que não ia pas-

sar muito tempo com ela. O marido tinha uma maneira estritamente

prática de ver o mundo. Arquitecto de profissão e mentalidade, para ele

o mundo dividia -se em andares. Havia o piso dos normais, que eram

muito poucos, o andar dos freaks e o sótão dos loucos. Maria estaria

algures nas escadas entre o rés -do -chão e o primeiro andar, mas Diana

estava nitidamente no sótão. Desde que ela não quisesse invadir o seu

piso, Diogo dava -se bem com ela. Diana também não se esforçava por

agradar a Diogo. Aliás, não se esforçava por agradar a quem quer que

fosse. Era o que era e quem gostasse, gostava. E o pior é que não sim-

patizava muito com Diogo. Sabia que ele não a tinha em grande conta,

mas também não era o único. Valia de alguma coisa aborrecer -se com

isso? Não, de todo. Até achava alguma graça. Ao menos assim sabia

como o podia irritar. Maria divagava pelo passado enquanto estudava

a nova Diana que tinha à sua frente. Que espécie de pessoa seria esse

Noah? O que mudara na vida da irmã, que parecia agora imbuída de

19O 11.º MANDAMENTO :: DANIEL SÁ NOGUEIRA

uma serenidade invulgar? Seria essa serenidade apenas fruto do can-

saço e sofrimento causado pela morte do amigo?

– Um dia, o Noah descobriu que estava a morrer. Tinha um can-

cro de tal forma disseminado que os médicos nem sequer colocaram a

hipótese de o operar, e ele também não quis submeter -se a tratamento

nenhum – continuou Diana. – Eu ainda não o conhecia nessa fase,

mas ele deixou -me ler as coisas que escreveu quando soube que tinha

uma doença incurável. Por incrível que pareça, a ideia não o assustou.

Não o revoltou. Quer dizer, revoltou no momento, mas o Noah ultra-

passou essa revolta e decidiu dedicar o tempo que lhe restava a viver, de

facto. E foi maravilhoso!

“Viver, de facto.” Como é que se pode viver de forma maravilhosa

com uma doença que nos dá meses de vida? Maria não entendia as

palavras da irmã, mas estava fascinada com a forma como ela falava.

As palavras vinham -lhe de dentro, de um entusiasmo que sempre lhe

conhecera, mas que agora parecia mais brilhante. Mais profundo. Mais

orgânico, talvez.

– A que é que chamas “viver, de facto”?

– Acordar cedo para ver o nascer do Sol, abraçar árvores, abraçar

pessoas. Simplesmente ficar quieto a ouvir os pássaros cantar, o vento

a soprar. Passar o dia a observar aquilo que nos rodeia. Sentir que per-

tences ao Planeta...

Maria olhou para Diana, sem saber o que dizer.

– Fiz essas coisas todas com o Noah, nos últimos seis meses de

vida dele...

– O que é que o Noah fez, quando soube que ia morrer?

– Fechou a empresa, deixou os bens que tinha com a família e partiu.

– Partiu para onde?

– Andou por aí...

– Mas fez o quê? Viveu do quê?

– As pessoas não têm obrigatoriamente que viver de coisa alguma.

Podem simplesmente viver. – O tom de Diana era muito seguro. –

Mas se queres pôr as coisas nesses termos, o Noah viveu do dia -a -dia,

de servir os outros. Oferecia ajuda aqui e ali e em troca davam -lhe uma

refeição. Foi voluntário em instituições de cariz humanitário, e muitas

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vezes deram -lhe cama. Nunca deixou de ter onde comer e dormir. Se

uma ou outra vez não tinha mesmo onde ficar por uma noite, então ele

aproveitava e agradecia a oportunidade de dormir na rua com os sem-

-abrigo, a ver as estrelas no céu.

– Não me parece que isso fosse um estilo de vida muito saudável para

quem estava assim tão doente. – Foi o único comentário que Maria fez.

– Sabes, a nossa vida é em grande parte aquilo que fazemos dela,

a maneira como olhamos para ela. A dada altura, o Noah deixou de

precisar de coisas materiais. Deixaram de fazer sentido para ele. Tudo

isso era secundário, percebes?

– Para ser sincera, não. Como é que comer e dormir pode ser secun-

dário? Se não comemos, morremos, Diana. E todos precisamos de dormir!

– Sim, claro! Temos de comer e dormir. Mas pode ser indiferente

o que comemos e o sítio onde dormimos... A vida é mais do que isso,

entendes?

Definitivamente, Maria não entendia. Para ela, uma boa noite de

sono numa cama feita de lavado com lençóis de linho bordados à mão e

passados a ferro com aquela água perfumada de alfazema, que ela ado-

rava, era muito diferente de uma noite dormida num sofá ou no chão,

na casa de um estranho. Um bom arroz de pato à antiga no forno, cozi-

nhado segundo a receita da mãe, era muito diferente de um arroz empa-

pado e salgado feito às pressas e sem amor para quinhentos alunos na

cantina da escola. E de arroz de pato ela percebia, pois era o prato pre-

ferido de Joana.

Mas Maria sabia uma coisa que ia no sentido das palavras da irmã.

Sabia que servir os outros era uma grande lição de vida. Isso ela conhe-

cia e entendia, porque experimentara fazer voluntariado quando era

mais nova. Tinha sido uma experiência dura, mas muito compensadora.

Começou a fazer voluntariado num centro paroquial na linha

de Cascais com as crianças de um bairro de lata local, as Marianas,

quando uma colega de faculdade a levou, quase à força, a passar um

sábado à tarde com miúdos entre os cinco e os doze anos, do projecto

“O Outro Lado do Jogo”. Bastou -lhe alguns minutos rodeada da alegria

daqueles a quem estava a ser roubada a inocência, para ficar rendida.

Entre as crianças havia casos de violações, famílias envolvidas com drogas