memórias do colonialismo e da guerra - pdf...

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APRESENTAÇÃO

Este é um livro de sofrimento e dor, de sangue e morte. Mas o ser humano é sempre capaz de vencer a dor e de sorrir para a vida. De modo que, aqui e ali, surgem episódios que acabam por desanuviar um ambiente demasiado pesado.

Este livro compila 40 entrevistas feitas a angolanos, moçambica-nos, guineenses e portugueses. Foram entrevistados antigos presos políticos e seus advogados, dirigentes dos movimentos independen-tistas, guerrilheiros, um militar de Abril, um inspector de prisões, um quadro da polícia política, um africano admirador de Salazar, um antigo sacerdote, o coordenador de um jornal clandestino contra o colonialismo e a Guerra Colonial. A tarefa da entrevistadora foi muito facilitada pela disponibilidade e franqueza dos entrevistados, assim como pela circunstância de os Africanos serem magníficos narradores, ainda que, nalguns casos, a partilha de dores e sofrimen-tos tenha sido um processo profundamente emotivo e doloroso, por vezes dilacerante.

Estamos perante a história oral, que, como é sabido, apresenta sé-rias limitações. Com efeito e como já se sublinhou, a memória é ma-treira como uma raposa, podendo suavizar o sofrimento, aumentar

as alegrias, distorcer as opiniões, contar factos que não ocorreram ou não aconteceram exactamente como estão a ser contados1. Não existe uma lembrança perfeita das dores e dos prazeres, das alegrias e das tristezas, dos êxitos e dos fracassos. Nos testemunhos presta-dos haverá certamente omissões, autocensura, buracos na memória, até adornos. Ocasionalmente, até detectámos e assinalámos inexac-tidões, incongruências. Nada disso é estranho. A nossa memória não funciona como o computador, não recorda o passado exactamente como aconteceu, pois o seu papel é fazer do homem um construtor de novas ideias e não um mero repetidor de acontecimentos do pas-sado.

Tudo isso é verdade, exigindo especiais cuidados no tratamento e confirmação dos factos descritos. Podemos, entretanto, afirmar que os testemunhos recolhidos nestas entrevistas, gravadas, transcritas e corrigidas, de modo a suprimir repetições e marcas da oralidade, constituem um documento histórico de inegável valor. Confirma-o o facto de, em momentos e espaços diferentes, termos ouvido relatos semelhantes, quase idênticos. E confirma-o, ainda e sobretudo, a cir-cunstância de certas afirmações terem sido, depois, confirmadas por outros registos, como relatórios de personalidades e organizações internacionais, informações de arquivos policiais, boletins oficiais das colónias2, contos, romances, poemas e, inclusive, desenhos ou até pinturas. Atentemos em três exemplos esclarecedores: no primei-ro, recolhido nos arquivos de Salazar, uma informação obtida pela polícia e redigida por «entidade estrangeira com responsabilidades políticas» confirma a versão de que a organização do 4 de Fevereiro foi obra de «elementos do MPLA ou próximos do MPLA»; no se-gundo, também obtido a partir dos arquivos de Salazar, confirma-se que a chamada «fuga dos 75» moçambicanos da Suazilândia foi, de facto, organizada pela PIDE com a colaboração da polícia política sul-africana; no terceiro, o relato de uma testemunha presencial con-firma que o massacre de Wiriyamu, em Moçambique, foi obra da 1 Luís Reis Torgal, «Prefácio», in Américo de Carvalho, Angola, Anos de Esperança, p. 102 Identificados no texto com as siglas BOA (Boletim Oficial de Angola), BOM (Boletim Oficial de Moçambique) e BOG (Boletim Oficial da Guiné).

polícia política e de militares portugueses.As entrevistas recolhidas contribuem para caracterizar o colonia-

lismo português, para mostrar o arbítrio das autoridades coloniais, as medidas discriminatórias e os vexames a que estavam sujeitos os Africanos. Ilustram a violência do Acto Colonial, cuja brutalidade se acentua com o eclodir da Guerra Colonial. Permitem fazer um esboço da repressão policial, reconstituindo interrogatórios e tor-turas. E dão a conhecer o regime existente nas prisões e campos de concentração: a sua direcção, o seu pessoal, o número de presos, as instalações, a alimentação, a assistência médica, os castigos, as visi-tas, as restrições no acesso à instrução e à cultura.

A referência ao colonialismo e à guerra colocava um limite tem-poral ao trabalho. Contudo, porque sendo semidirectivas, as entre-vistas ultrapassaram frequentemente o ano de 1974, acabando por fornecer dados sobre os tempos que precederam e se seguiram às independências.

Na capital angolana, onde o MPLA praticamente deixara de exis-tir, alguns antigos presos políticos tiveram um papel destacado na mobilização de jovens e de antigos companheiros de cativeiro para a resistência à tentativa de ocupação de Luanda pela FNLA. Terá sido o caso de José Van-Dúnem3. O grupo de São Nicolau, a espi-nha dorsal do Comité Regional de Luanda, foi acusado de planear, ao longo de três anos, o açambarcamento da revolução angolana e, ainda, de ser elitista, incapaz de ultrapassar preconceitos pequeno--burgueses4. Muitos destes antigos presos, acusados de participação nos acontecimentos de 27 de Maio de 1977, acabaram por sofrer os efeitos da brutal e sangrenta repressão que se seguiu. Não poucos foram mortos, sem qualquer julgamento. Com efeito, o chamado Tribunal Revolucionário Popular não tinha funções jurisdicionais, sendo apenas um órgão político-administrativo de revisão de proces-sos dos presos do 27 de Maio.

Em Moçambique, também os presos políticos tiveram papel des-

3 Da entrevista do almirante António Rosa Coutinho.4 David Birmingham, Portugal e Africa, Vega, s/l, 2003, p. 186

tacado na resistência. A FRELIMO também deixara de existir em Lourenço Marques. Os antigos presos começaram, então, a organi-zar-se. O movimento cresceu na Mafalala, bairro suburbano onde foi criado o quartel-general da resistência no 7 de Setembro. Para fazer face aos grupos de colonos que invadiam os subúrbios e come-çavam a matar, ergueram-se barricadas. O já falecido Amaral Matos, com a participação destes antigos presos e de muitos jovens, encabe-çou o movimento.

Também, neste caso, os presos políticos foram acusados de prepa-rar um golpe de Estado, para o que teriam chegado a trocar corres-pondência. Quanto ao elemento mais destacado do grupo, Matias Mboa, companheiro de fuga de Samora Machel e antigo comandan-te da 4.ª Região Militar da FRELIMO, já então detido, era acusado de capitalista e latifundiário, de cúmplice dos invasores sul-africanos e de outros crimes.

As acusações aos presos eram ditadas pelos acontecimentos de Angola. Com efeito, em busca de uma explicação para o que ali acontecia, a FRELIMO fizera deslocar a Luanda uma delegação, encabeçada por Sérgio Vieira, antigo secretário pessoal de Machel. De modo que os presos políticos moçambicanos acabaram por ser levados a um julgamento, presidido pela Comissão Política da FRE-LIMO e realizado na pousada dos Caminhos-de-Ferro. Durante este julgamento, Samora Machel afirmou a dada altura:

«– Não queremos aqui Nitos Alves».Os presos nem sabiam quem era Nito Alves. E este nunca estivera

detido, tendo sido confundido com José Van-Dúnem.Admitamos até que havia antecedentes que podiam levar a des-

confiar de antigos presos. E tais antecedentes não se limitavam ao referido caso dos antigos presos angolanos. Lembremos o facto de alguns dos chefes da conjura contra a direcção do PAIGC, conjura que custou a vida a Amílcar Cabral, também terem passado pelas cadeias do regime colonial, onde teriam sido aliciados pela PIDE.

No termo do julgamento, presidido pela Comissão Política da FRELIMO, foram detidos meia dúzia de antigos presos. Matias

Mboa passaria outros cinco anos no local em que já estivera sete, a Cadeia da Machava, sendo mesmo castigado por ser encontrado a rezar e donde sairá a sofrer de epilepsia. Alguns são condenados a prisão domiciliária. E todos os outros, em que se incluíam desta-cados intelectuais, foram mandados reeducar, começando por fazer treino militar e sendo, depois, enviados separadamente para regiões longínquas, a trabalhar no campo, claro mimetismo dos processos de reeducação em voga durante a chamada «Revolução Cultural».

O mais chocante para os presos condenados terá sido o facto de, anos depois, os chamados «comprometidos» com o regime colonial (comandos, informadores da polícia e outros) terem sido, na sua es-magadora maioria, julgados e mandados em paz. Ao passo que to-dos eles sofreram uma condenação. E, no entanto, os antigos presos políticos moçambicanos têm orgulho em afirmar que nenhum deles mudou de partido, continuando a ser da FRELIMO.

De resto, a triste sina dos combatentes devorados pelo poder que ajudaram a criar parece ser regra geral. De modo que, na Guiné, o membro do PAIGC, Bruno Dantas Pereira, antigo preso do Tarra-fal e da ilha das Galinhas, tal como outros combatentes, seria preso depois do golpe de Nino Vieira.

Mas estes acontecimentos da pós-independência são apenas uma adenda a esta história construída sobre memórias e que contribui, principalmente, para caracterizar o colonialismo e esclarecer vários episódios da Guerra Colonial.

Estas entrevistas eram o anexo de uma tese de doutoramento, vi-sando ilustrar o capítulo dedicado à repressão policial. No entan-to, como se pode verificar, possuem vida própria. Esperemos que as apreciem na sua enorme riqueza informativa, partilhando as dores e os sofrimentos, mas também os risos e as alegrias dos africanos e dos portugueses que entrevistámos. E quantas surpresas não esperam os que tiverem a paciência de as ler!

Dalila Cabrita Mateus

AGOSTINHO MENDES DE CARVALHO

(UANHENGA XITU)

Preso do Tarrafal, antigo ministro e embaixador, deputado

ANGOLA

Agostinho André Mendes de Carvalho (Uanhenga Xitu, nome quim-bundo, pelo qual gosta de ser conhecido) nasceu em 1924 em Calom-boloca, Catete.

Foi politicamente influenciado por Mário de Andrade e, sobretudo, por Viriato da Cruz. Primo do dirigente guerrilheiro Hoji la Henda, é membro do MPLA desde os seus primeiros anos.

Enfermeiro, fez parte do grupo a que foi dada a designação de «Es-palha Brasas» e que se dedicava à agitação política. Em 1959, casado e com 11 filhos, é preso pela PIDE. Julgado em Tribunal Militar, é condenado a 10 anos de prisão. Passa pela prisão de São Paulo de Luanda e, logo depois, pelo Campo de Concentração do Tarrafal, só sendo libertado em 1970.

Após a independência, será ministro da Saúde e embaixador.

É hoje deputado pelo MPLA.Autor de várias obras em prosa, alguns dos seus contos encontram-

-se editados nos Estados Unidos da América, em França e na Rússia.

P— Vamos começar pelo seu nome, local e data de nascimento.R— Chamo-me Agostinho André Mendes de Carvalho e nasci em

Calomboloca, Catete, no dia 29 de Agosto de 1924. Até à 3.ª classe fiz os meus estudos em Calomboloca e, depois, vim fazer exame aqui em Luanda, na missão protestante, uma missão evangélica. Fiz a 4.ª classe. Depois, como autodidacta, estudei com o Mário Pinto de Andrade, meu explicador, na casa do pai. E ao mesmo tempo fre-quentava o curso de Enfermagem. Tirei, pois, o curso de Enfermeiro.

O meu primeiro trabalho foi em Cabinda, no posto de Dinge. De-pois fui para o Dondo, Cuanza Norte, Bié, Huíla, Benguela, Huam-bo e Bailundo.

P— Correu Angola quase inteira?R— Corri, de facto, Angola quase inteira!P— Deu-lhe uma grande experiência e pôde observar como a po-

pulação vivia.R— Falo bem a língua da minha zona, o quimbundo. E no Bié,

Bailundo e Benguela falava a língua do Sul, o umbundo. Vi muita coisa. No meu livro estão retratadas algumas destas situações.

P— Qual livro?R— Sobretudo na obra Os Sobreviventes da Máquina Colonial

Depõem, embora também noutros.P— Tem algum livro que fale concretamente nos campos de tra-

balho?R— Nesse livro, falo disso. Vai ser reeditado no mês que vem.

Escrevi-o na altura em que estive na cadeia. Fui preso no dia 29 de Março de 1959 e estive 12 anos detido.

P— Foi preso em Luanda? De dia ou de noite?R— Fui preso em Luanda, de dia.Na situação social em que vivíamos, em que vivia o Indígena, me-

lhor dizendo, o Preto, nas dificuldades que encontrava para entrar

no liceu, para obter o bilhete de identidade, para ser assimilado, fo-ram tantas as dificuldades, que vi nos lugares por onde passei, que comecei a tirar notas.

P— As dificuldades eram maiores fora das cidades?R— Muito maiores. Quanto mais para o interior, maiores eram

as dificuldades.P— Ganhou consciência dessas dificuldades, quando se deslocava

e trabalhava como enfermeiro, ou foi o convívio com Mário Pinto de Andrade que o fez ver as coisas?

R— Mário de Andrade abriu-me um pouco os olhos, mas foi o Viriato da Cruz que me fez ver as coisas. Trocávamos impressões e notícias, daqui e dali Depois, a vivência dos acontecimentos aumen-tou a minha consciência.

P— Vamos voltar à sua prisão?R— Estava em Luanda. Embora já tivesse um certo estatuto so-

cial, se me meti na política foi por causa da crueldade do colonialis-mo. Embora a Polícia de Investigação Criminal (PIC), nessa altura, ainda não actuasse com tanta crueldade, no caso do chefe de posto e do próprio sipaio (um irmão meu), esses matavam. E quando, anos depois, chegou a PIDE, prosseguiu a mesma linha de dureza. Mas atenção, porque a dureza da PIDE era sofisticada, científica. Na mi-nha prisão, por exemplo, fiz estátua e levei, de facto, uma sova.

P— O que utilizavam para bater?R— Era o chicote. E obrigavam à estátua, durante muitas horas.P— Qual era o tamanho da sua cela?R— Era uma cela de dois metros por três, onde, se cabia alguma

coisa, era uma camazita. Isto, quando havia cama, porque geralmen-te era um estrado, quando não era um simples papel. Porque, quan-do as pessoas não queriam confessar, tiravam-lhes tudo. Tinham de se deitar no chão. Mas nem todos eram tratados da mesma forma.

Nós sofremos. Mas quem sofreu mesmo na carne foram, por exemplo, os enviados para São Pedro da Barra. O que ali aconteceu! Já depois de o 4 de Fevereiro eclodir, muitos foram para São Pedro da Barra. E foi um desastre. Sobraram poucos.

P— A PIDE matou? Como?R— Fuzilou. Mas nem era preciso fuzilar. Bastava meter 500 ou

600 presos num cubículo onde só cabiam 100 pessoas. No dia se-guinte, abriam as portas e havia cadáveres por todos os lados. Os presos tinham morrido asfixiados.

P— Onde fica São Pedro da Barra?R— Fica perto do porto de Luanda, junto à cadeia civil, lá em

baixo. Aquilo foi um matadouro. E para transferir os presos dali, foi necessária a acção de alguns médicos nossos amigos, médicos portu-gueses, que nos visitavam na cadeia e que também... [o entrevistado está perturbado].

P— Mas esteve preso em São Pedro da Barra?R— Já não fui para lá; foram outros. Isto porque fomos presos

antes. Nós, os primeiros detidos, podemos dizer que fomos presos de elite. Fomos tratados duramente como era habitual na polícia, mas não tivemos tanto sofrimento como o dos que foram presos depois. Sabe que, quando digo tratamento sofisticado e científico, não quero dizer que o tratamento não fosse o mesmo. Só que havia nuances. Por vezes, não era tão animalesco. Eram mortos na mesma, mas não eram espancados com pauladas até morrer. Isto porque, aqui na cadeia civil, onde o Neves Bendinha morreu, ele foi tratado assim. Hoje há o bairro popular Neves Bendinha, que foi um dos comandantes do 4 de Fevereiro e estava a ser procurado. Quem lhe deu guarida foi, por acaso, a minha mulher. Quando foi apanhado, não esperaram, arrastaram-no pela escada, do segundo andar até cá abaixo, onde já chegou a sangrar. Depois, soltaram os cães, uns pastores-alemães, que o morderam de um lado para o outro. E de-ram-lhe cacetadas por todo o lado. Uma crueldade de bestas. Assim o mataram. Isto é só um exemplo.

São Pedro da Barra era mesmo um matadouro. Mataram tantos presos, e os médicos ficaram tão enjoados, que propuseram que aqui-lo fosse transferido para outro lado, para um campo de trabalho. Metiam os presos nas celas e, no dia seguinte, ao abrirem a grade, eram 20, 30 ou mesmo 50 mortos, esmagados uns contra os outros.

P— Quando foi preso, durante o percurso até chegar à cadeia, como é que o trataram?

R— Ah! Entraram de mansinho, para verem se eu falava. Mas quando viram que não falava, então começou a tortura física e psi-cológica. E, quando necessário, porque não falava, entravam os por-retes. E éramos espancados.

P— De que foi acusado?R— Fazíamos parte de um clube de enfermeiros, a que tínhamos

dado o nome de Espalha Brasas. E já havia um outro grupo, do Lopo de Nascimento, com o nome de Bota Fogo. Como estávamos bem perto, nós espalhávamos as brasas, e eles botavam o fogo. Eram clubes recreativos e sociais, para atrair as pessoas. Uma vez lá den-tro, cabia-nos doutriná-las.

Antes de ser preso, fui a Kinshasa, naquele tempo Leopoldville. Já tínhamos o clube formado, mas queríamos um local, lá fora, para o envio da correspondência. Fui, então, a Kinshasa para encontrar alguns angolanos, pois havia lá alguns, de Cabinda e do Uíje. Queria sondar e encontrar um meio de me encontrar com Kasavubu. Em Dezembro de 1958, fui lá e fiz muitas reuniões com angolanos que lá estavam, a ver se nos ajudavam.

P— Lembra-se dos nomes de alguns desses angolanos?R— O Armando Ferreira, o Van-Dúnem, o Mingas sobrinho (que

lá vivia há muito tempo, mas depois voltou), o Capita, o Zé Maria e muitos outros, que tinham já uma linha política.

Tinham ido para lá, para conseguirem um meio de sustento e, ao mesmo tempo, para começarem a procurar saídas políticas. Como lhe disse, encontrei-me com o Kasavubu, pois o Lumumba não es-tava lá. Mas, ao sair de Luanda, num avião da companhia Sabena, notei que viajava com Amílcar Cabral. Escrevi-lhe um bilhete, pois gostava de saber para onde ia. Chamei a hospedeira e entreguei-lhe o bilhete. O Amílcar Cabral não me respondeu. Ao desembarcar no aeroporto de Leopoldville, aproximei-me dele, que me disse:

«— Recebi o seu bilhete. Vou partir num avião da Pan-American, que vem do Quénia. Mas tenha cuidado. Como lhe disse, recebi o seu

bilhete. Mas, antes de mo entregar, a hospedeira foi mostrá-lo a outra pessoa. Tenha, pois, cuidado, porque está a ser seguido!»

Tomei cautela. Fiz os meus papéis e dei um saltinho a Brazzaville. Contactei com alguns elementos, designadamente com um ministro. E fiz contactos para marcar uma audiência com o padre Youlou. Mas, quando estava na sala para ser recebido, ao fim de uma hora, como não falava bem o francês, estava à espera do meu intérprete; apareceu um francês, um jovem militar, bem-vestido, um verdadeiro galã, que me disse:

«— Cheguei, Senhor Mendes de Carvalho. Daqui a pouco vêm-no buscar para irmos à audiência.»

Perguntei quem era aquele indivíduo e disseram-me que era um oficial às ordens do padre Youlou. Um francês? Considerando que me metera na boca do lobo, fugi.

Atravessei o rio para o outro lado. Bem, em Dezembro, quando cheguei a Luanda, passei a ser vítima de uma perseguição constante.

P— Mas o francês que lhe apareceu era alguém mandado para o vigiar?

R— Não sei. Mas não aceitei o facto. Como é que um francês me ia buscar para a audiência, quando o assunto que ali me levava era mesmo o pedido de auxílio para Angola e a troca de impressões so-bre o meu país. Um francês a assistir a essa audiência? Fugi.

Regressado a Luanda, no dia 29 de Março de 1959, fui preso. Mandámos uns papéis para o estrangeiro, dirigidos sobretudo à vi-úva de Roosevelt, uns papéis da nossa associação e de uma outra as-sociação de que fazia parte o André Mingas pai, o Belarmino Van--Dúnem, o António Pedro Benge, o Fernando Pascoal da Costa (pai do Desidério) e o Figueiredo, que pertenciam à outra associação. Mas, de vez em quando, trocávamos impressões, porque vivíamos no mesmo bairro. Eles aproveitaram o nosso portador para o aeropor-to. Mas já vigiavam o portador, o José Manuel Lisboa, que foi preso.

Embarcou no avião da Sabena, mas, quando o avião se fez à pista, parou. Meteram-lhe, então, um capacete e um capote, tiraram-lhe todas as malas e desembarcaram-no. E o avião seguiu. Mandaram-

-no abrir as malas e descobriram as cartas. Caiu tudo. Nessa mesma noite prenderam os membros da outra associação, o Benge e os ou-tros. Alguém viu as prisões. De modo que foram a minha casa dizer que Fulano fora preso. Passei a noite a avisar as pessoas. Era véspera do Dia de Páscoa, já não dormi em casa, para poder avisar alguns. Saí da minha casa por volta da 1 hora da manhã e, ao passar de casa em casa, iam-me dizendo:

«— Fulano já está preso, Fulano de tal já está preso, já está preso, já está preso.»

Eram nove horas da manhã, quando mandei o José Bernardo Domingos ir ter com o padre Joaquim Pinto de Andrade e com o Lopo do Nascimento, para os avisar do que se estava a passar. Mas o portador foi, e nunca mais voltava. E eu à espera. Bom, o melhor é ir, porque se calhar também já está preso. Vou para o hospital, e lá dizem-me que estou a ser procurado, que até já tinham ido à minha casa, que a casa estava toda revolvida, que as estações estavam todas vigiadas, para não sair dali. Avisei os outros colegas que também pertenciam à nossa associação. Pensei:

«— Como tantos já foram presos, em vez de estar a atrapalhar tudo, vou mandar chamar os gajos. Não tenho medo, chegou a hora, pronto! É desta vez que a gente vai falar a verdade.»

Telefonei para os polícias.P— Telefonou para a PIDE?R— Sim, para a PIDE.«— Ouvi dizer que estão à procura de Fulano de tal.— Sim senhor.»Veio o agente.«— É o Senhor Mendes de Carvalho?— Ouvi dizer que os senhores foram à minha casa e a revolveram

toda. E como não tenho medo, aqui estou.»P— Lembra-se do nome do agente que o prendeu?R— Era um muito conhecido. Era o Jaime de Oliveira5, que co-

5 Jaime José dos Santos Oliveira é sucessivamente promovido de chefe de brigada a subinspector e a inspector da PIDE. Recebeu a medalha de prata de bons serviços (BOA n° 292, de 15. 12. 1971).

meçou na PIC e passou para a PIDE. Lá encontrei o Lontrão, o Reis Teixeira, o São José Lopes e muitos, muitos outros.

Começou o interrogatório. Estivemos lá umas horas. De tarde fui transferido para a cadeia. Nesse dia não me bateram. Quando entrei, até estava engripado, e não me bateram. No dia seguinte, começa-ram novamente com os interrogatórios. Faziam as perguntas, dando a entender que estavam a fazer uma acareação indirecta. Vinha um e perguntava, depois vinha outro e voltava a perguntar. Três dias de-pois, já as declarações não condiziam. Cada um dizia coisa diferente. Então começou a surra. E um dia fazem mesmo uma acareação, na cadeia, entre mim e o falecido Benge, que tinha sido acusado de mandar uns jovens para o Gana, através de Cabinda, para receberem treino militar.

P— E era verdade? R— Bem, essa era a intenção. Era uma das hipóteses que a gente

tinha. A luta era difícil e a nossa acção era ver para onde podíamos mandar fugir jovens, não só para fazerem a guerra, mas também para estudarem e aumentarem os seus conhecimentos com vista ao futuro do país. Outros países africanos estavam quase a tornar-se independentes e nós tínhamos poucos quadros. Essa era, pois, a in-tenção. A acareação veio meses depois.

«— Ah! Mas você disse isto ao Benge.— Eu? Não disse tal.— Senhor Benge, este senhor está a dizer que não disse isso, ao pas-

so que nas suas declarações...!» O Benge ficou calado. Levaram-no. No dia de autenticar as decla-

rações, baterem-lhe, para que modificasse aquela parte. Mas, quan-do cheguei no Tribunal, lá onde ele tinha rectificado, estava tudo na mesma. Depois houve o 4 de Fevereiro e fui chamado.

P— Vamos voltar à sua prisão. No interrogatório, ao terceiro dia, foi torturado. Lembra-se de quem lhe batia?

R— Já não sei. Apenas me lembro de que era baixinho.P— Era branco?R— Sim. Aqui, o preto era o servente, que varria as celas. Feliz-

mente, encontrámos alguns que levavam bilhetes lá para fora.P— Depois da cadeia civil, para onde foi?R— Depois de sermos ouvidos, fomos para a 7.ª Esquadra e, mais

tarde, para a Casa de Reclusão Militar. Então, fomos julgados.P— Ah, foram mesmo julgados!?R— Sim, fomos a tribunal.P— Quem era o seu advogado?R— O Dr. João Luís Saias. Havia um Saias, em Portugal, que era

primo dele. Olhe, este é o Valentim. Conhece?P— Não, não conheço. Também passou pelas mãos da PIDE?R— Este? O Valentim foi da UNITA6. Não. Estes não passavam

por lá. O João Luís Saias quis fazer uma contestação a pedir perdão. Quando a vi, disse-lhe que não, que não aceitava aquilo. No caso de certos presos, os advogados fizeram uma contestação jurídica, tal como os tribunais mandam. Não no nosso caso. Fomos sete os que resolvemos não aceitar aquilo. Fomos duros. Dissemos ter sido mal-tratados e denunciámos a situação colonial. Um pegou na questão da população, outro, na da saúde, outro, na miséria dos trabalhado-res, outro, noutra coisa.

Houve um caso curioso com os advogados. Como fizemos a nossa contestação por escrito, dispensámos o advogado. E os advogados, quando leram as nossas contestações, fizeram grande barulheira. Dividiram-se.

O nosso julgamento foi um julgamento de gala, com os soldados envergando fardas de gala, as espadas desembainhadas, junto dos juízes e dos advogados. E, atrás de nós, mais soldados com as espa-das desembainhadas.

Os advogados estavam, pois, divididos. Uns diziam que não po-diam assistir, que era uma pouca-vergonha. Outros afirmavam que aquilo era contra Salazar, contra o Governo Português. A Dra. Me-dina e outros passeavam. Os juízes retiraram-se. E então a maioria dos advogados começou a dizer que aquilo não podia ser, que não sabiam como tinham consentido, estavam em causa o Governo Por-

6 Tratava-se de Jorge Valentim, dirigente da UNITA, que foi membro do Governo.

tuguês, o Império e a sua defesa. A Dra. Medina acabou por ficar sozinha.

P— Quantos presos defendeu a Dra. Medina?R— Ela defendeu três processos, o meu foi o quarto. Os próprios

advogados tiveram medo, só ela é que teve coragem. Por isso é que todos os anos homenageamos a Dra. Medina.

O julgamento acabou por ser adiado. O meu advogado veio dizer-me que não podia tomar outra ati-

tude, porque já tinha estado em Caxias, e lhe tinham partido a asa. Na altura, devia ter quarenta e poucos anos Tinha um primo em Portugal, que era da oposição.

O Santana Godinho e outros tiveram medo. Outros ainda disse-ram que aquilo era um insulto à dignidade do Império.

A um meu colega, o Orlando Ferreira da Conceição, os agentes da PIDE disseram:

«— Até você, que nós tratámos tão bem!»O Orlando trabalhava no Consulado de Portugal em Leopoldville

e era preto. A PIDE foi lá, trouxeram-no preso no avião e disseram: «— Até você foi ingrato!»Ameaçaram-nos, mesmo na cadeia.P— Da sua associação, quantos é que foram presos?R— No primeiro dia fui eu só.P— E depois?R— Foram buscar pessoas, a pouco e pouco. Acabámos por ser

20, os presos da minha associação.P— Encontrou-se com eles?R— Só depois de termos sido espremidos. Então já podíamos fi-

car todos juntos.P— E ficaram todos na mesma cela?R— Ficámos na mesma cela, tanto na 7.ª Esquadra como na Casa

de Reclusão Militar. Na PIDE ficávamos em celas individuais.P— Foi na PIDE que o puseram na estátua?R— Logo no primeiro dia.P— Na PIDE, como era a sua cela?