dancando pela vida

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Dançando pela Vida - do criador da Dança solta - Luiz Sander (Mineirinho de Maceió) - 1995 - edição , diagramação projeto gráfico e capa- Roberto Tostes

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criador da Dança Solta

Luiz Sander (Mineirinho de Maceió)

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DANÇANDO PELA VIDA

Capa, edição e projeto gráfico:

Roberto Tostes

[email protected]

Foto de capa:

Claus Lehmann

Texto original:

Luiz Sander

Revisão Final:

Alaysse Franco

Rio de Janeiro - Maio de 2016

Copyright © 2015 by Luiz Sander (Mineirinho de Maceió)

Todos os direitos reservados.

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EU TE DEDICO

Dedico este livro à Thaíza, minha esposa, há dezoito anos me ensinando a amar, receber carinhos, buscar dentro de mim a paz e a harmonia, com quem eu me solto e sem a qual eu me aprisiono; e à minha filha Luanna, que, há seis anos, vem dando mais sentido às nossas vidas.

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Aqui começo uma etapa bacana, quando exponho meus dilemas, minhas dúvidas e minhas certezas, que podem não ser as mes-mas no próximo movimento coreográfico, mas o que importa é estarmos todos juntos, nesse grande baile que é a Vida.

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ApresentaçãoCom a maior satisfação recebi o honroso convite do San-

der Nunes para prefaciar este livro, resultado de uma longa jornada, ultrapassando obstáculos, praticamente partindo do nada, até alcançar o objetivo que só se constrói com mui-to companheirismo, renúncia, trabalho.

Ao ler este livro, as reminiscências fizeram-me voltar àqueles “pagodes” domingueiros, que começavam às 5 da tarde no restaurante Aquarela, sempre abarrotado de dan-çarinos, sem vaga para sentar-se. Certo domingo, minha amiga Antonieta voltou do salão contando que havia co-nhecido um moço, todo vestido de branco, que dançava di-vinamente, parecendo deslizar pela pista. Ao perguntar se ensinava a “coroas”, ele respondeu que possuía uma aca-demia, com alunos de 8 a 80 anos. Era a Escola de Dança Tropicália, aonde fomos no dia seguinte, nos inscrevemos e ficamos.

Não perdíamos aula. Havia bailinhos periódicos, com lanches deliciosos (a “vaca atolada” da D. Norma, nin-guém esquece), shows dos alunos e do professor. Depois a academia tomou novos rumos. Mudou-se para a belíssima praia de Pajuçara, ocupando uma sala no andar superior do Iate Clube. E mudou de nome: Studio Mineirinho de

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dança, cujo lema era o seguinte: “Aqui você não aprende, você apenas descobre que sabe”. Ali, as paredes espelhadas permitiam-nos acompanhar facilmente todos os movimen-tos de Mineirinho e seus monitores. Pelo dia, estudávamos dança solta e à noite ensinava-se dança de salão. Os bai-linhos continuavam, de acordo com a época. Quadrilhas, quebra-pote, carnaval...

O professor não trabalhava sozinho. Tinha uma equipe de dançarinos competentes, como Shirley, Rubinho, Sheila, Williams, Dedéu, Val, entre outros, que sempre o acom-panhavam, e depois formaram o grupo de dança Tropicá-lia, promovendo shows que animavam as melhores casas de eventos de Maceió. Às vezes, em parceria com nosso gru-po, como ocorreu no Teatro de Arena, em temporada com a casa cheia.

A disciplina era o seu forte. Pontualíssimo, podia cho-ver pedra, mas ele estava lá, arrumado e perfumado, inde-pendente do número de alunos, começando cada aula com precisão.

Mais adiante, na época em que algumas de suas alunas e eu fundamos o grupo de dança interpretativa Rugas de Ouro, Mineirinho nos incentivou a participar do Festival de Dança de Recife, organizado pelo professor Shiro, com palcos montados por toda a cidade. Nossa apresentação foi no Shopping Recife, e o grupo de dança Tropicália, em trajes de malandro e sambando como nunca, apresentou-

Dança Solta

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se garbosamente no Teatro do Parque, onde todos foram aplaudidos de pé.

A criação do Centro Cultural Chica da Silva, em mini-palco de madeira montado dentro da academia não poderia deixar de fazer parte da bagagem cultural desse mineiro que, por tanto semear inovações musicais, recebeu o título de Cidadão Honorário de Maceió.

O corso no carnaval já era considerado extinto, até que Mineirinho resolveu resgatar essa folia, e saímos em busca de aluguel de bugres, que foram ocupados pelos alunos, todos fantasiados e munidos de confete, serpentina e tudo o mais. E o Mineirinho desfilando em cima de um caminhão todo ilumi-nado. Até um sambinha ele compôs para o carnaval, sobre a criação do Bloco Tropicália:” Nasceu, nasceu, nasceu a fan-tasia de um bloco genial. Nasceu, nasceu, nasceu a alegria de brincar o carnaval...” E o desfile fez-se ao longo da praia de Ponta Verde.

E no ano seguinte, com Carina Padilha, Edu Passos e esta que vos fala, Mineirinho criou a primeira Mostra Ala-goana de Dança, com a participação de vários grupos em todos os estilos, desde a dança de rua ao balé clássico. Essa mostra repetiu-se durante alguns anos, e mesmo com a ida de Mineirinho para o Rio de Janeiro, ainda continua, hoje sob nova direção.

A criatividade sempre foi sua companheira inseparável. Percebe-se que, para conseguir o objetivo, ele usa de várias

APRESENTAÇÃO

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artimanhas, como foi o caso da entrada na gaiola para conse-guir comer a fruta do passarinho; ou, muito mais adiante, e já maduro, na questão das cadeiras ocupadas do teatro.

O livro “Dançando pela vida” leva o leitor a um agradável e jocoso passeio pelas pistas de dança, desde o clube Estrela, em Minas, passando por Maceió, Fortaleza, Rio, São Paulo, bem como às dispersões que a vida nos faz e nos traz.

Parabéns, Mineiro! Sei que você não vai ficar só nesse li-vro, que já li de uma talagada só e adorei. Muitos outros virão, pois o seu palco é o seu sucesso!

Vania PapiniMaceió, 08-04-2016

Dança Solta

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Agradecimentos

Eu teria realmente várias pessoas a quem agrade-cer pelo conjunto da obra, pessoas que me ajudaram (“quem tem amigos não precisa de cheques”); pessoas que me prejudicaram; pessoas que me foram gentis e pessoas que me humilharam. Tudo isso faz a pessoa que sou hoje. Tudo isso faz o conjunto da obra.

Olhando para trás, vejo que tenho muito mais a agra-decer às relações positivas do que às negativas, todas elas baseadas em minha postura, minha positividade, meu otimismo e minha simpatia, por isso devo fazer um agradecimento especial àqueles que conhecem um lado que geralmente não mostro, por instinto ou por auto-proteção; o meu lado eu, sem defesas e couraças, àque-les com quem me relaciono que sabem que eu acordo completamente mal humorado, que tenho azia e que

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gosto de ficar sozinho de vez em quando; que sabem que sou uma manteiga derretida e que choro em qual-quer situação, até assistindo ao Chaves na TV; que me emociono fácil com notícias boas e, se a notícia é ruim ou trágica, sabem que eu não choro, apenas respiro e tento resolver.

Agradeço a meu Pai, que foi e é um amigo-irmão (hoje com Papai do Céu), à minha mãe e às minhas ir-mãs, pessoas que me conhecem bem de perto e que pro-curam entender que ninguém é normal, quando se vê de perto. Já ouvi essa expressão em algum lugar!

Dança Solta

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Certamente você já ouviu a expressão “Fulano dançou...” Bom, nem precisa dizer que foi no sentido pejorativo ou negativo. Eu gostaria de saber de onde tiraram essa história de que o verbo dançar poderia ser usado no sentido negativo.

O fulano atravessou a rua sem olhar para os dois lados e “dançou”... Que nada! Ele foi atropelado. Se estivesse dançando, provavelmente não estaria todo quebrado no hospital. O auxiliar de escritório chegou atrasado dois dias consecutivos no emprego, e sabe o que aconteceu? “Ele dançou.”

Dançou?Desde quando irresponsabilidade rima com dan-

ça? Ele perdeu o emprego, isso sim, e não para por aí. É.. dançou para isso, dançou para aquilo, tem dançou até para quem não dança, “quem não dança, dança” ...???

Por que não usam o verbo “CANTAR”? Nada con-

Dançar, verbo errado

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tra, afinal dançar com alguém cantando é muito gos-toso. O bom mesmo é não usar nada, apenas o que deve ser usado: fulano foi atropelado, sicrano perdeu o emprego, e beltrano dançou, mas dançou de verda-de, girou no salão de baile com maestria, e todas as damas o olhavam. Então, pode surgir o comentário:

- Galera, vamos ter que botar pra quebrar no salão, senão todo mundo dança... O quê?

Dança Solta

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Antes de descobrirmos a fala, aprendemos a dançar, não digo propriamente se movimentar ao som de um ritmo, mas descobrimos a linguagem corporal, gestos, olhares. Essa era a nossa comunicação, com o corpo, dançando. A comunicação corporal só não é mais anti- ga do que comer e fazer amor. Aprendemos a “dançar”, antes de perceber que poderíamos emitir sons pelas cordas vocais, ou seja, dançamos antes mesmo de falar. Acredito que todos nós temos a dança em nosso DNA, essa primeira forma de nos expressarmos. Talvez por isso todos os bebês dancem. Penso que, com a evolução do tempo, ou pelo tipo de educação, por algum tipo de trauma ou até por causa da religião - além de tantas op-ções de comunicação - a linguagem corporal tenha sido preterida por uma grande parte da sociedade.

Mas, nós não deixamos de ler as entrelinhas cor-porais. Nosso instinto corporal funciona bem quando vemos alguém cabisbaixo, ou alguém elétrico demais,

START

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quando há uma ocasião de perigo, ou quando alguém cambaleante à nossa frente faz-nos pressupor que está embriagado. São coisas que não sabemos explicar, ape-nas sentimos, não é mesmo? Você deve estar lembrando de várias ocasiões em que só de olhar, você já sabia o que ia acontecer.

Bom, o que eu queria dizer com isso é que você deve ter muito cuidado com sua aparência, sua postura, seu tom de voz e suas perspectivas, pois ninguém faz negó-cios com fracassados. A vida é um palco, um salão de dança.

Dança Solta

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Era assim que eu estava me sentindo: no canto da sala, olhando para uma mesa de petiscos que encheria minha boca d’água em qualquer situação, exceto ali. A poltrona onde eu estava sentado parecia tão confortável quanto o colo de mãe, mas não naquele momento. Sabe aquela história do pato na lagoa? Pois bem, por cima d’água, ele é um ser totalmente inacessível, tran- quilo e desliza com suavidade em uma lagoa calma, mas, ao olharmos por debaixo d’água, percebemos a velocidade com que ele bate os pés.

Pois é, ali estava eu, como um pato em uma lagoa, com a maior cara de tranquilidade, aparentando segu- rança para todos os que estavam comigo naquele cama-rim. Porém, intimamente, eu estava em ebulição, agita-do, desesperado, esmagado pela pressão de entrar em cena, ao vivo, em cadeia nacional, no programa “Mais Você”, da Ana Maria Braga, na Rede Globo, um dos pro-gramas de maior audiência do país.

Entrando na Tela Mágica

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Muita gente não imagina o mundo que existe por trás da tela da tevê. Muitos, rindo ou vibrando, tensos ou atentos, em momentos de alegria ou de tristeza, vi-vem e choram diante dessa tela brilhante. Sofremos e vivemos com os artistas, com as novelas, com os filmes, com os noticiários e os programas de variedades. E quando surge uma oportunidade de entrar nesse mun-do, relutamos em acreditar que tudo possa mesmo estar acontecendo de verdade.

Renata, a produtora que nos convidou para fazer a matéria, super atenciosa, carinhosa mesmo, ia sempre ao camarim para ver se estávamos bem, ou se estava faltando alguma coisa. Bom, coragem e calma era algo que eu estava precisando e muito naquele momento.

Estavam comigo algumas “soltarinas” e os profes- sores Thaíza, Dudu e Amaury. Todos confiantes e an- siosos para começar a matéria, e eu no desespero pela responsabilidade de falar, dançar e, ao mesmo tempo, explicar em pouquíssimo tempo o que era a “Dança Sol-ta”.

Quando recordo momentos como esse, percebo que, nessas horas, o tempo corre de forma diferente. A Ana Maria Braga foi um amor e conduziu tudo maravilhosa-mente bem, deixando-nos muito à vontade, e a matéria fluiu tão frenética quanto o resultado.

Quando soube que o programa iria ao ar às 8h do dia seguinte, eu realmente não imaginava que teríamos uma repercussão tão grande. É inegável o impacto da

Dança Solta

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audiência estrondosa da Ana Maria Braga, pois recebe-mos milhares de e-mails, e os telefones não pararam de tocar o dia todo.

E até hoje, mesmo depois que a matéria foi ao ar, ainda me reconhecem na rua e falam que me viram no “Mais Você”. Eu já participei de outros programas bem legais e de repercussão nacional depois disso, como o “Programa do Jô”, o “Estrelas” da Angélica e o “Bem Estar”, mas penso que o “Mais Você” foi nosso “pé de coelho”, o primeiro.

Guardo especial carinho pela Renata, por toda a pro-dução e pela Ana Maria Braga, que foram uma espécie de “madrinhas” do nosso trabalho. Como diz aquele co-mercial que marcou época : O primeiro a gente nunca esquece!

ENTRANDO NA TELA MÁGICA

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A vida de artista é uma busca constan-te, busca do seu “Eu”, do meu “Seu”, busca pelo inalcançável, busca pelo infinito, sempre na esperança de estar no caminho certo, ou menos errado, porém seguindo sempre os seus instin- tos. Eu sou assim. Assim sou Eu. Bora comigo!?

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Quando saímos de Pirapora, nos mudamos para Sa- bará, em Minas Gerais, uma cidade histórica maravilho- sa onde se tem um dos melhores carnavais de Minas; onde o pierrô e a colombina ainda aparecem por lá nos dias de Momo.

Fomos morar em uma casa no centro da cidade. Como naquela época os melhores colégios eram os pú-blicos e estudar em colégios particulares somente era possível se você tivesse muito dinheiro - tanto que os colégios particulares eram conhecidos como PPP (Papai Pagou Passou) - meus pais somente conseguiram vaga no colégio Polivalente, uma instituição pública onde, acreditem, aprendi a arte da marcenaria, tornearia e elé-trica, na aula de Práticas Industriais; de cuidar de loja, na aula de Práticas Comerciais; e até de cozinhar, na matéria Educação para o Lar. Tipo de escola que não vemos mais nos dias de hoje. O único probleminha do Polivalente era que ele não era muito perto da minha

Pro sabiá

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casa, ficava a pelo menos uns doze quarteirões, subin-do e descendo ladeiras, dá para imaginar isso?

Considerando que as aulas começavam às 7h e ter-minavam às 13h e como não rolava ir de ônibus, a si-tuação era bem difícil. Naquela época, eu tinha que ir a pé. A ida nem era tão ruim, um friozinho bacana às 6h até que animava a dar aquela caminhada. Às segun-das, havia aula de Educação para o Lar e sempre comí-amos o que aprendíamos em sala de aula, mas de terça a sexta, sair do colégio com aquela fome, com o sol de rachar mamona e andar doze quarteirões aladeirados não era fácil. A cada ladeira era um ronco no estômago e a fraqueza estremecia as vistas.

Mas no caminho entre o colégio e minha casa havia pelo menos três quitandas, dessas que vendem de tudo: frutas, pão, verduras, bebidas etc. E em duas delas havia na porta algumas gaiolas com passarinhos cantadores que, provavelmente, davam orgulho aos seus donos, pois as gaiolas eram bem bonitas, e os pássaros muito bem cuidados. Foi em uma delas que, um dia, depois de uma estremecida nas vistas, eu entrei e, repentinamen-te, gritei ao proprietário:

- Moço, tem banana amassada para o meu sabiá?O dono olhou pra mim surpreso, com uma atenção

danada. Parecia curioso e meio pego de surpresa. Eu mesmo me espantei de como aquela frase tinha saído da minha boca. Após alguns segundos me encarando, acho que ele acabou por perceber lá no fundo dos meus

Dança Solta

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olhos de moleque que o passarinho era eu mesmo.Ele não disse nada e me entregou duas bananas. Es-

tavam já meio maduras, mas caíram como ouro em mi- nhas mãos magrinhas.

E foi assim que garanti a chegada à minha casa com as vistas sem estremecer, e a fome abrandada, para es-perar o almoço do dia, que não era farto nem diversifi-cado, mas muito bem feito e “temperadim” pela Dona Norma.

PRO SABIÁ

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Sempre fui muito elétrico e muito obs-tinado em meus objetivos. Sempre fui um sonhador, mas muito responsável também em obter o resultado dos meus sonhos.

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Você sabe o que significa a palavra Pirapora? Na lín- gua dos índios tupi-guaranis, que viviam às margens do Rio São Francisco, significa “Salto do Peixe”. Foi a primeira coisa que aprendi sobre a cidade de Pirapora.

Aos seis anos de idade, estávamos mais uma vez de mudança, devido a um emprego do meu pai. Você já está percebendo que eu me mudei mais que muitos ci- ganos originais... Bom, para fechar essa fatura, já morei em mais de setenta casas diferentes até os dias de hoje. E o que eu acho disso? Uma maravilha! Um dia escreve- rei um livro somente para contar todos esses “recome-ços”, trocas de energia e de metas, novos desafios etc etc...

Mas, voltando à Pirapora, eu, pela primeira vez, me deparei com algo tão grande na minha vida: o rio São Francisco. Meu Deus, o que era aquilo? O nome “salto do peixe” vem justamente porque na época de repro-dução - como em Pirapora há muitas quedas d’água no

O Salto do Peixe

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Dança Solta

rio - víamos os peixes pularem, saltarem por cima das cachoeiras para desovarem no alto do rio, daí o nome de Pirapora.

Mas não era somente isso. Havia as duchas, as que-das d’água onde entrávamos por debaixo das cortinas, desafiando as cachoeiras, em busca de passagens se-cretas. No rio também existia um local quase sagrado, chamado “caixão”, onde os garotos mais corajosos ali pulavam e desafiavam as corredeiras. Somente os que queriam mostrar que eram realmente machos é que en-frentavam aquele local.

Acho que não precisei me afirmar como corajoso, por isso nunca fui por lá , mas engoli muito peixe vivo. Existia uma lenda entre os garotos que, quem engolisse piaba viva, aprendia a nadar. Deve vir talvez daí o fato de eu não gostar de peixe até hoje.

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Em 1986, estávamos morando em Belo Horizonte. Eu trabalhava em um Banco no centro da cidade, e meu pai em uma empresa de ônibus. Um dia eu cheguei do tra-balho à noite e encontrei toda a família reunida na cozi-nha. Como a maioria das famílias mineiras, tínhamos o hábito de fazer as reuniões sempre na cozinha, por cau-sa do cafezinho, bebida fundamental para esclarecer as ideias. Meu pai então comunicou a todos a proposta que recebera para trabalhar no Nordeste do Brasil, em uma cidade chamada Maceió.

Fomos todos aos livros de Geografia da casa para localizarmos no mapa essa cidade de nome esquisito. Como todo bom mineiro, tínhamos a curiosidade de sa- ber se nela haveria praia, dúvida prevalecia sobre todas as outras.

No Banco onde trabalhava em Belo Horizonte, eu era office boy e acabara de ser promovido a auxiliar admi-nistrativo, o que me agradou muito, já que não precisava

Recomeço

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mais bater perna pelos cartórios da cidade.Logo após a chegada em Maceió, consegui, através

do meu pai, um emprego na TRANSPAL, como auxi- liar de escritório. Eu me sentia incomodado por meu pai ter-me arrumado esse emprego; ainda sou, até hoje, con-tra qualquer tipo de favorecimento, porém não tive mui-ta escolha, visto que o mercado de trabalho em Maceió na época ainda era muito pequeno e muito fechado.

Aceitei o emprego e procurei exaustivamente de- monstrar que, mesmo sendo indicado por um familiar, poderia ser um bom profissional. Isso impressionou al-guns funcionários mais antigos, tanto que alguns viviam me dando gibis para ler ou sugerindo que eu faltasse às sextas-feiras para conhecer as praias paradisíacas de Ma-ceió. A cobrança de mim mesmo com relação ao traba-lho, rendeu-me uma promoção para o cargo de super-visor de carteiras. Nesse mesmo período, já ouvíamos pela imprensa sobre a necessidade da implantação de um subsídio para o transporte do trabalhador brasileiro.

Em fevereiro de 1988, a empresa recebeu a incum- bência de criar um departamento exclusivo para a im- plantação do vale-transporte no estado de Alagoas. A diretoria me passou a responsabilidade total dessa im- plantação. Foram muitas horas de esforço e trabalho, e sem hora para largar o serviço. Após três meses, depois de muito estudo e reuniões, chegamos ao conceito ope- racional adequado para a implantação e o lançamento do vale-transporte em nosso estado. Finalmente, no dia 2 de Maio de 1988, inauguramos o departamento. Nos

Dança Solta

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primeiros seis meses, trabalhávamos mais de 12 horas por dia, porque, além de comunicarmos aos trabalhado-res esse novo direito, tínhamos que conscientizar os em-presários da importância e da obrigatoriedade de dar o vale-transporte aos seus funcionários. Em menos de um ano, já atingíramos mais de 30.000 trabalhadores e 1300 empresas cadastradas, entretanto a carga horária de tra-balho ainda não diminuíra; pelo contrário, aumentara já que o vale-transporte se expandia para todo o Estado.

Eu, na época com 26 anos de idade, já sentia o cansaço por estar trabalhando há quatro anos, sem tirar férias, em virtude de tanta responsabilidade. Foi quando, por orientação médica, negociei com a diretoria da empresa quinze dias de férias e escolhi Belo Horizonte como des-tino, por motivos familiares. De volta à minha cidade, a procura por distração, fui levado por meu Tio Wander-ley a uma escola de dança chamada Clube Estrela, loca-lizada no centro da cidade, com muito boa referência na mídia local. Lá conheci o professor e proprietário, Carlos Bibito, e a minha primeira professora de Bolero, a Nil-des. Foram 15 dias maravilhosos, em que os ensinamen-tos da dança podiam facilmente ser confundidos com ensinamentos de vida. O cavalheiro conduz a dama, que se deixa ser conduzida para um prazer total no movi-mento e no ritmo.

Ao receber as orientações da professora, eu procu- rava instintivamente traduzi-las em um linguajar mais claro e simples. Assim, eu assimilaria melhor e poderia repassá-lo com mais clareza à minha parceira de aula.

RECOMEÇO

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Esse procedimento começou a instigar-me quanto ao re-sultado físico e psíquico de todas aquelas aulas. A pro-fessora passava a ter uma função clara na coreografia, porém a forma de assimilar e repassar isso à minha par-ceira estavam tomando dimensões absolutamente claras e descontraídas, e minhas companheiras nas aulas come-çaram também a ter um desenvolvimento maior. Com o entusiasmo de iniciante, aumentei a carga horária de minhas aulas de bolero e no décimo dia das minhas fé-rias, eu cheguei à conclusão de que tinha talento para dar aula e gostaria de testá-lo, e mais, queria realmente me tornar um professor de dança.

Sempre fui muito elétrico e muito obstinado em meus objetivos. Sempre fui um sonhador, mas também mui-to responsável em obter o resultado dos meus sonhos. Sabia também que mais uma vez a minha vida estava para mudar drasticamente e eu não me sentia com forças para lutar contra essa mudança. Seria mais uma das vá-rias transformações em minha vida, mais um recomeço entre tantos outros, o que viria? Mais um sucesso como o do trabalho com o vale-transporte, ou seria um desati-no impensado e irresponsável de uma ilusão passageira? Todas essas perguntas eu me fiz várias vezes, e a respos-ta era sempre a mesma. O meu melhor amigo, com certe-za, iria me orientar de forma a me convencer se o que eu estava fazendo era adequado ou não, ou melhor, se era sensato ou não dar vazão a esse impulso

Dança Solta

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Cheguei a Maceió no domingo, e a primeira coisa que fiz foi procurar o meu pai, pessoa que, com certeza, me diria se era loucura ou não a minha ideia. Sentei na cadeira à sua frente e explanei todo o meu projeto, em breves pinceladas. Nunca fui detalhista para falar e nun-ca tive muita paciência para ouvir, por isso ele apenas sorriu e disse que eu era uma pessoa iluminada e que se esse projeto estava me instigando, ele confiava muito em mim e me apoiaria. Não era um executivo que iria largar um excelente emprego para ser professor de dança ou dançarino, mas era o seu filho que estava correndo atrás de um sonho e ele o realizaria junto comigo. Por conse-guinte poderia contar com seu apoio incondicional.

Com um ar de preocupada, minha mãe avalizou as palavras do meu pai e, na semana seguinte, comuni-quei à diretoria da empresa a minha intenção de deixar o cargo, mas que daria treinamento necessário ao meu substituto. Houve uma grande resistência quanto à mi-nha saída pelo fato de o setor de vale-transporte ter sido

Papo amigo

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integralmente implantado por mim. Por isso fiquei um mês dando treinamento ao meu substituto, período em que visitei várias imobiliárias à procura de um imóvel onde eu pudesse montar a minha escola de dança.

Avenida Rótary, 579, foi o primeiro endereço da ES-COLA DE DANÇAS TROPICÁLIA. Era uma casa espa-çosa. Adaptei a garagem como recepção, coloquei espe-lhos na parede da sala de estar e isolei a parte dos fundos, já que eu morava na própria casa para não pagar um ou-tro aluguel. Na ocasião, ainda tive o azar de avançar um sinal de trânsito e bater com meu carro. Assumi, então, todas as despesas com o conserto do outro automóvel, meu carro teve que ser vendido para um ferro-velho, e o dinheiro que sobrou foi a conta de comprar um bugre. Ou seja, já estava comprometido financeiramente, antes mesmo de abrir a escola de dança. Estava duro, com o primeiro aluguel por vencer, não existia sequer um alu-no e ainda havia aquelas propostas de trabalho que eu rejeitava com medo de estar cometendo um engano.

Com o objetivo de amenizar as despesas, fiz um con-vite a Antero, pessoa que se tornou um grande amigo e irmão, para morar na minha casa, pois, desse modo, po-deríamos dividir o aluguel e o salário da Fátima, que es-tava grávida e dividia as funções de arrumadeira, cozi-nheira e recepcionista da escola. Na quinta-feira, depois do carnaval de 1991, a escola começaria a funcionar.

Foi um carnaval muito tenso, sem sombra de dúvida. Fomos para a Barra de São Miguel , eu, Antero, Andréa,

Dança Solta

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uma amiga e super incentivadora, Leda, grande forro-zeira e um grande exemplo de amizade (que mantenho até hoje). Ficamos num acampamento sem nenhum con-forto, mas nos divertimos muito e, entre um samba e ou-tro, fazíamos a propaganda da nossa escola que estaria funcionando a partir da quinta-feira pós-carnaval.

Durante o período em que eu preparava a escola para abrir, meu pai me ligou muitas vezes, perguntan-do como eu estava e se precisava de alguma coisa. Claro que eu disse que estava tudo ótimo e que não precisava de nada. Assumi uma responsabilidade comigo mesmo e achei que não deveria estendê-la a ele.

Voltamos na terça-feira para Maceió a fim de dei-xar tudo pronto para a abertura da escola. Eu e Fátima limpamos os espelhos, varremos a sala e almoçamos o costumeiro macarrãozinho da crise. Eu torcia para que tudo melhorasse logo, uma vez que ela iria dar à luz em breve e nós estávamos preocupados com as necessida-des da Priscila, hoje uma linda jovem que, além de boa filha, é também minha afilhada.

Enfim, chegou o grande dia - 14 de fevereiro de 1991. Era quinta-feira, e a escola começaria a funcionar. Le-vantei da cama com muita esperança. Fátima já na re-cepção. Eu, apreensivo, abri o portão da casa, olhei para um lado e para o outro, e pedi a Deus para encaminhar tudo. Até as 16h, ninguém havia cruzado os limites da-quele portão. Esperamos até as 19h, quando fechamos e rimos da nossa desventura. Eu sempre tive o dom de

PAPO AMIGO

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rir das minhas mazelas. Acho que isso sempre me faz analisar melhor as coisas.

Passaram-se mais seis dias e nada. Preocupado, pois a tensão tomara conta do ambiente, fiquei na frente da casa toda a manhã e reparei em um senhor que passara por diversas vezes pelo outro lado da rua, olhando mui- to para a escola. Muito cauteloso, rapidamente entrei e observei-o, sem que ele percebesse, e vi que continua- va olhando muito para nossa casa Comecei a imaginar que poderia ser um assalto ou um fiscal da prefeitura (não tínhamos ainda autorização para funcionar). No momento em que ele cruzou o nosso portão, eu senti a respiração da Fátima acelerar, minhas pernas tremiam muito e meio que gaguejando eu o atendi pessoalmen-te. Ele queria obter informações sobre as aulas, se havia vagas nos cursos e como eram essas aulas.

Não deixei por nenhum momento que ele percebesse ser o primeiro candidato a aluno que passava por aquele portão, por isso eu prometi que conseguiria uma vaga em uma turma nova que iria começar as aulas na pró-xima quarta-feira. O Sr. Antônio, engenheiro, efetuou a matrícula. Foi uma festa. É claro que, após sua saída, a Fátima conseguiu com o dinheiro comprar coisas para o almoço, mas o importante mesmo era que teríamos o nosso primeiro aluno, o qual ficou para sempre na minha lembrança e na história da Escola de Danças Tropicália.

Dança Solta

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Quarta feira, às 19h, o Sr. Antônio chega acompa- nhado de sua esposa, Teodomira, contadora, a qual passa antes na recepção e também efetua sua matrí-cula. Chegam os dois na sala e me encontram vestido de branco, perfumado, cabelos penteados, disfarçando um enorme nervosismo. O casal reparou que eram os únicos alunos matriculados naquela turma e, para mi-nha felicidade, acharam muito bom, pois aprenderiam mais rápido, já que teriam um professor praticamente exclusivo. A aula de Bolero começou pontualmente, e eu comecei a colocar em prática os meus conceitos so-bre a didática da dança. A aula transcorreu muito tran-quila, apesar do nervosismo, e o casal aprovou-a, mas eu só me tranquilizei com a qualidade do meu trabalho na aula seguinte, quando, para minha surpresa, o meu casal de alunos trouxe também sua filha e o namorado, para dançar. A escola passou a ser alvo de comentários na rua. No dia seguinte, entra pelo nosso portão o Joa-

Primeira aula

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quim , um senhor que estudava Direito e que, entre tan-tas qualidades, possuía uma enorme paixão pela dança.

Andréa começava a me ajudar nas aulas. Em duas semanas, já contabilizávamos mais seis alunos: Oscar, Geraldino, Leda, Edleusa, Sílvia e Maria José. Nessa épo-ca, um cantor do Ceará, chamado Beto Barbosa, começa-ra a fazer muito sucesso, cantando um ritmo chamado de Lambada. “Santa Lambada”! Foi um corre-corre... Eu, Andréa e Leda saímos em busca daquela dança que eu pressentia que faria muito sucesso naquele verão. Fui aos bares onde dançavam esse ritmo, assistia a shows do cantor, aprendia os movimentos básicos, criava novos movimentos e estruturava uma didática para ensiná-los.

Então, junto com Andréia e Leda, ensinamos os pas-sos da dança aos nossos alunos, em cursos relâmpagos de 10 aulas. Houve um grande número de pessoas inte-ressadas em aprender essa nova dança, a tal da “Lam-bada”. Ritmo abençoado que me permitiu, pela primei-ra vez, pagar o aluguel da escola de dança no dia do vencimento. As pessoas começavam a comentar sobre os cursos de dança e sobre a escola. A lambada em seu auge também abriu o mercado para muitos cantores regionais, entre eles o José Orlando, que, com músicas como Pistoleiro do Amor, arrebatava milhares de pes-soas para os seus shows.

Em uma sexta-feira, o José Orlando procurava ca- sais para acompanhá-lo nos seus shows na região de Alagoas. O convite veio de Jadilson, um dançarino já

Dança Solta

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antigo do cantor que nos conheceu no bar Flor de Lis, reduto dos lambadeiros da época. A estreia nos shows de José Orlando também deu uma grande divulgação para a nossa escola de dança.

A lambada tomava conta do Brasil, e seu criador, Beto Barbosa, que não tinha conhecimento da grande magnitude e da força dessa dança, começou a enfraque-cê-la e, junto com ela, também a sua carreira, orientando seus dançarinos a ser sempre uma espécie de referência da dança. Eles deveriam se destacar sempre e ser os por-tadores de qualquer evolução no que se referia à Lam-bada. Como a disciplina é uma constante no meio da dança, para ficarem diferentes dos outros e continuarem como referência da Lambada, os dançarinos começaram a experimentar novos movimentos no palco, a mesclar ritmos e danças diferentes ao ritmo da Lambada, difi-cultando muito a forma de dançá-la.

Isso ocasionou um recuo da sociedade com relação a essa dança, e os shows então começaram a ficar menos concorridos. Nenhum namorado ou marido gostaria que sua esposa ou namorada ficasse de cabeça para bai-xo ou que mostrasse suas roupas íntimas. A Lambada deixava de ser uma dança social para se tornar uma dan-ça show, somente para profissionais. Isso foi um grande baque para todos quantos trabalhavam no meio. Com o enfraquecimento da Lambada, mais uma vez voltáva-mos à expectativa do surgimento de mais um ritmo de sucesso, porém a espera poderia ser longa e correríamos o risco de não conseguir esperá-lo.

PRIMEIRA AULA

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A forma como viajamos é que faz a di-ferença. Apesar de não termos um des-tino final, o veículo e o viajar é o que importa.“

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Precisávamos divulgar a escola de uma maneira ba- rata, eficiente e, no mínimo, muito criativa. Como nos-so produto era dança, resolvi frequentar casas noturnas de Maceió, usando camisetas com o nome da escola, a princípio pintadas à mão, sempre acompanhado pela Andréia ou pela Leda, e lá ficávamos quase a noite toda na pista de dança, distribuindo o número de telefone e o endereço da escola. Era cansativo, mas foi ali que co-meçamos a tomar gosto pelo palco e pelos aplausos das pessoas, ao término de cada música que dançávamos.

Entre as várias casas que frequentávamos, a que mais nos projetou, sem sombra de dúvida, foi o Lampião, não somente pelo bom astral da casa, como também pelo tino comercial do seu dono, Sr. Otávio Moura. Sempre que subíamos ao palco, ele nos anunciava como atração da casa, o que dava uma boa projeção. Em contraparti-da, havia um show a mais na sua casa e, o mais impor-tante, gratuito.

Divulgando

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Continuávamos trabalhando muito na divulgação da academia nos bares e casas noturnas para alcançar um número de alunos e, assim, pudéssemos nos manter.

Eu não sabia ainda se realmente estava valendo a pena todo aquele esforço. Estava sempre preocupado em conseguir pagar o aluguel no dia certo; não pensava em lucro, somente em pagar as despesas. Há muito tem-po eu não me divertia mais, não viajava, não comprava presentes para as pessoas de quem eu gostava, não ia ao cinema, sem falar no preconceito das pessoas por ser um dançarino. Mais de uma vez fui tachado de malandro, boêmio e caça-turista. A sociedade se afastara devido aos rótulos criados por ela mesma. Por outro lado, pes-soas promíscuas se aproximavam em virtude de uma re-ferência criada pela sociedade. Como eu nunca fui pro-míscuo, fiquei meio ilhado, sozinho comigo mesmo.

Andréa e Leda arrumaram emprego. Fiquei mui-to inclinado a arrumar um também e desistir de tudo. O contrato com a imobiliária estava terminando; era a oportunidade de seguir um caminho diferente. Já dis-posto a sair daquela casa, comecei a procurar uma outra menor que pudesse acomodar a mim e aos poucos alu-nos que tinha, os quais se transformaram em amigos, e mesmo que eu desistisse da escola, eu manteria as aulas para eles, afinal eram a minha referência de confiança, amizade, carinho, além de terem por mim uma admi-ração enorme, e eu procurava retribuir isso da melhor maneira possível.

Dança Solta

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Consegui uma pequena casa no bairro do Poço em frente ao SESC. Uma casa de dois quartos e uma peque-na sala onde, certamente, caberiam os meus oito queri-dos alunos: Geraldino, Oscar, Joaquim, Sônia, Jeferson, Maria José, Leda e Fátima - o clube dos oito. A sala tinha uns 15 m2 , porém com uma característica inadequada para uma sala de dança: não havia janelas. Ao término das aulas, poderíamos cobrar uma taxa extra pela sauna, mas, em se tratando do clube dos oito, tudo era festa e o que queríamos mesmo era nos divertir.

Eu havia parado de sair na noite para divulgar a es- cola e comecei a sondar algum emprego paralelo às au- las de dança. Por gostar muito de lidar com pessoas , procurei emprego em alguns hotéis de Maceió. Após muitas tentativas vãs, fui ao Hotel Matsubara falar com D. Nair, uma mulher guerreira, que, entre tantos predi-cados, podemos acrescentar o de visão comercial , res-peitabilidade e seriedade no que faz.

Ao chegar à recepção, solicitei uma hora com o chefe

Casa Nova

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do departamento de pessoal e fui encaminhado direta- mente a ela, que acumulara esse cargo entre muitos ou- tros no organograma administrativo do hotel.

Entro na sala, e ela continua assinando os papéis sem me olhar no rosto, como se já soubesse o que eu viera fazer ali. Comecei então a expressar a minha vontade de trabalhar no hotel, quando ela me interrompeu, per-guntando qual dia eu poderia começar a fazer o show. Fiquei meio sem entender nada, até que ela completou:

- Você não é dançarino? Comece a fazer um show para os meus hóspedes no próximo sábado, às 20h.

Eu mais do que depressa concordei e saí dali com a responsabilidade de conseguir mais algumas pessoas para montar uma apresentação e começar, assim, a ga-rantir uma graninha a mais no final do mês.

Passei no Lampião e chamei Rubinho e sua irmã Cleyde, como também Tiêta e Medeiros, um excelente casal de forrozeiros. Fomos para casa, ensaiamos algu-mas músicas, improvisamos as roupas e fizemos o pri-meiro show do grupo Tropicália. Os hóspedes gostaram e D.Nair marcou uma apresentação todos os sábados no mesmo horário. Mas e o emprego??? Deixei rolar!!!

Dança Solta

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Pelo menos nove entre dez pessoas a quem sou apre-sentado me fazem esta pergunta: Por que Mineirinho de Maceió? E, certamente, dez entre dez programas de tele-visão de que participei também me fizeram a mesma pergunta. Para mim era muito simples no início, mas acabei entendendo que, na verdade, era bem complica-do as pessoas entenderem um nome tão “geográfico”.

Na verdade, o personagem Mineirinho nasceu mes- mo em Maceió. Quando eu morava em Minas Gerais, ele não existia, visto que, por lá, salvo os imigrantes, to-dos são “mineirinhos”. Quando eu cheguei a Alagoas, vindo de Belo Horizonte, eu ainda era chamado de San-der, Sr. Sander, o Gerente da Transpal, o administrador que implantou o Vale-Transporte em Alagoas, o cara que usava óculos e dava palestras sobre a importância do Vale-transporte para o trabalhador brasileiro.

Então, você pode me perguntar: - E aí, quando nasce o Mineirinho?

O nome

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Bom, o Mineirinho nasceu mesmo naturalmente, quando eu larguei o trabalho burocrático e comecei a dançar. Não sei o porquê, talvez pelo caráter informal e descontraído da Dança, ou a minha energia tenha mu- dado e ampliado com ela o meu humor, sei lá ... Eu na-turalmente comecei a ser chamado de Mineiro, Mineiri-nho e assim fui batizado pelo povo de Alagoas.

E o Maceió, vem de onde? Bom, o Maceió já fora incorporado por mim no Rio. Eu explico. Quando eu morava em Minas não existia o Mineirinho, certo? O Mineirinho nasceu em Maceió já como artista, então o Mineirinho é maceioense, para não dar a cidadania mi-neira ao artista que nasceu em Maceió, eu autentiquei a naturalidade dele, ficando então o nome Mineirinho de Maceió. Entenderam? Foi por aí... Sei não, mas tenho pra mim que... sei lá!!!

E no exterior? Bem, aí, para manter essa lógica ge- ográfica, acho que vou ter que acrescentar um nome a mais: Mineirinho de Maceió do Brasil!

Dança Solta

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Nesse período, em Maceió, já existia o grupo Tran-sarte, dirigido pelo professor universitário Rogers Ai-res, que divulgava o folclore alagoano através de seus shows, apresentando-se em feiras, praças e escolas. O grupo Tropicália começava a ficar conhecido, assim como a escola. Uma certa tarde, entra na recepção uma bela senhora, loura, elegante. Com um olhar curioso, pediu-me para mostrar as instalações. Como não havia muito a mostrar, procurei ser agradável com ela que, embora demonstrasse ser uma mulher de muita classe, passava muita simplicidade no olhar. Era a Antonieta Cansanção, que, naquele momento, fazia sua matrícula para as aulas de bolero.

Com a Antonieta, vieram muitas de suas amigas, e a escola passou a ter em seu quadro de alunos pessoas da sociedade alagoana, que, por se sentirem muito à vonta-de e gostarem muito do nosso trabalho, passaram a ser nossas principais divulgadoras. Agora, além da turma do clube dos oito, tínhamos outras turmas, o que nos

Show

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levou a ampliar o nosso quadro de professores. O Duda chega, começa a dividir comigo as turmas e a alegria da casa, junto com a recepcionista, a Fátima, aquela do macarrão do início da história. Formávamos um trio do barulho, por isso as aulas eram sempre muito criativas, e a alegria uma constante.

A academia ficava a cada dia mais conhecida. Che-garam D. Rosa e Daniele, sua filha, duas pessoas para somar na nossa divulgação e em nossa vida. Logo após, veio a Ita, senhora apaixonada por tango, que gostaria que eu a ensinasse a dançá-lo. Disse-lhe que seria um prazer se, por acaso, eu soubesse tal dança, mas poderia ensiná-la um bom bolero, enquanto me prepararia para aprender a didática do tango a fim de poder ensiná-la.

Com D. Rosa, Ita, Antonieta e os nossos primeiros alunos, Seu Antônio e Teodomira (a qual até hoje cui-da da minha contabilidade pessoal junto com a Til, sua rmã, a quem tenho muito carinho também), tivemos a oportunidade de conviver com pessoas muito especiais durante a nossa história em Alagoas. Talvez isso nos te-nha abstraído de forma a não ver muito as dificuldades e os sacrifícios para continuar.

Dança Solta

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A nossa única sala de danças tinha 15 m2, e qualquer turma que passasse de dez alunos ficaria superlotada, mas, como não havia janelas, o calor era insuportável. Eu e o professor Duda já não dávamos aulas juntos, pre-cisávamos nos revezar para darmos conta de todas as turmas, que eram muitas. Por causa do número limita-do de alunos, eu ficava com três horários pela manhã, e ele com outros três pela tarde. Eu, como professor de dança e animador, já me sentia muito à vontade, porém, como estrategista, ainda não tinha experiência alguma (até hoje isso requer de mim um pouco mais). Sendo as-sim, permiti ao Duda, que dava aulas na escola somente à tarde, trabalhar em outra escola pela manhã, a Aca-demia Meliá, surgindo, então, o meu primeiro concor-rente.

Nossos alunos eram, em sua maioria, pessoas de classe média da nossa cidade; tinham facilidade de re- manejar seus horários diários, o que nos levou a perder

Concorrência

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muitos deles, já que o Meliá, um hotel cinco estrelas, oferecia um enorme conforto aos seus hóspedes, o que se estendia à sua academia. Muitas pessoas preferiram se transferir para a academia do hotel a ficar em uma academia no centro, pequena e mal ventilada, além, é claro, de contar com as aulas do professor Duda, que, certamente, manteria a mesma qualidade, ou seja, te-riam o mesmo tipo de aula em um local mais adequado ao seu nível e suas expectativas.

Eu logo percebi que algo deveria ser imediatamente providenciado. Muitos alunos preferiram ficar, mas eu tinha consciência de que precisava oferecer-lhes um lo-cal mais adequado, e tinha que ser logo. Iniciei a busca nas imobiliárias e conseguimos alugar uma boa casa na praça Sinimbu, na parte central da cidade. Um sobra-do que, com apenas algumas modificações,poderia ser transformado em escola de dança.

As adaptações começaram de imediato. Então, em menos de um mês, e com um grande rombo na conta bancária, nós inauguramos a nova academia. Na oca-sião, pudemos contar com a apresentação dos dançari-nos mineiros Carlos Bibito e Valéria, os quais estavam de férias, hospedados na minha casa e nos brindaram com um belíssimo show de tango.

Dança Solta

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Como já era esperado, com a mudança de endereço da academia,houve um remanejamento de alunos; al-guns se desligaram ante as razões geográficas, e outros entraram porque a nova localização lhes era mais con-veniente. O aluguel agora era mais caro, por conseguin-te teria que trabalhar mais. O grupo continuava fazendo shows no hotel Matsubara, mas minha parte nos cachês já não ajudava a escola nas suas despesas. Eu teria que ampliar os horários e oferecer mais aulas, todavia isso consistia em contratar professores.

Comecei a preparar outros professores. Fiz o convite ao Rubens e Tiêta, que eram do grupo, e no Lampião, uma casa de forró tradicional da cidade, eu conheci a Shirley. Assim, os três foram meus primeiros alunos es-tagiários. Trabalhávamos juntos das 15h às 22h, diaria-mente, com 15 minutos de intervalo entre uma aula e outra para tomarmos um cafezinho. Eu, particularmen-te, começava às 9h, com uma turma mista.

Passando a experiência

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Foram muitas aulas práticas e teóricas sobre compor-tamento, história da dança, postura profissional, conhe-cimentos gerais, entre outras coisas. Para ensinar tudo isso, tive que ler, pesquisar e estudar muito, a fim de que pudesse passar essas informações e transmitir-lhes a devida confiança, não só para enfrentar turmas geral-mente muito diversificadas culturalmente, como tam-bém para suprir as suas expectativas, independente do nível social ou intelectual de cada um.

Nossos alunos, a meu ver, gostaram do trabalho com os professores, que começaram a assumir turmas e a se identificar com elas. A Tiêta optou mais pelo estilo re-gional, assumindo aulas de forró; o Rubens começou a dar aulas variadas; e a Shirley, já muito preocupada com a técnica desde aquela época, especializou-se na área da dança de salão. E foi assim, procurando identificar o es-tilo de cada um deles que eu os ensinei, dando-lhes uma base para, a partir daí, escolherem seu rumo e seu futu-ro como professores de dança.

Dança Solta

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Em abril de 1994, recebemos a visita de Giovani, um dono de academia em João Pessoa, na Paraíba, o qual soube do nosso trabalho, através de uma aluna que participara de nossas aulas, quando estava de férias em Maceió. Tivemos uma conversa muito animada, e ele me falou da dificuldade em conseguir profissionais gabaritados para trabalhar com a dança, visto que era uma profissão muito discriminada, geralmente exercida por pessoas de pouca cultura, que não tiveram oportu-nidade de exercer outras profissões. Expliquei-lhe, en-tão, detalhadamente, o nosso procedimento para com os professores. Falei sobre os inúmeros cursos de aper-feiçoamento que eu ministrava, não só para os que tra-balhavam comigo; que esses cursos eram abertos para quem quisesse fazê-lo, porque eu sentia que somente es-truturando os profissionais de um modo geral, a dança se desenvolveria e seria respeitada pela sociedade como

Expandindo o conhecimento

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uma profissão digna. Não adiantava preparar somente os meus profissionais. Eu pensava na dança como arte, que precisava ser respeitada da forma como ela merecia.

A conversa com Giovani rendeu bons frutos. No mês de maio, eu daria o meu primeiro curso para professo- res de dança, fora de Maceió, na academia Pallavolo, em João Pessoa, onde tive a oportunidade de não só conhe-cer bons profissionais, como também fazer uma ótima amizade com o grande Mathias e sua esposa, pioneiros na dança de salão paraibana, além da Tia Ilma, uma ca-rioca da gema que passara por lá uma temporada, dan-do aulas de bolero.

Nessa ocasião, Mathias me comunicou que, em julho desse ano, iria organizar o primeiro encontro de dança nordestina em João Pessoa. Esse evento teria divulga-ção regional e contaria como convidado especial, o dan-çarino Carlinhos de Jesus. Mathias me convidou para participar do show de encerramento, junto com a Cia. Palavolo de Danças. Foi uma proposta irrecusável, não somente pela honra do convite, mas porque eu queria muito saber como é que se organizava um evento da-quele, quais seriam as preocupações e a estrutura.

O evento foi divulgado amplamente em todas as cida-des nordestinas e quase todos os professores de Maceió confirmaram sua presença, entre eles o Rubens, a Shir-ley, o Duda e também alguns dançarinos como Miller, Suely, entre outros. O evento seria no período de 17 a 19 de julho, tendo como encerramento um grandioso baile.

Dança Solta

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Uma semana antes de viajarmos para João Pessoa, recebi na minha academia, a proprietária da academia do hotel Meliá. Fiquei surpreso com a visita, pois não a conhecia. Após se identificar, convidei-a para conhe-cer as instalações da casa, e depois fomos até minha sala para conversar. Confesso que estava muito curio-so para saber o motivo da tal visita, pois os donos de academia não mantinham relações cordiais e profissio-nais entre si.

Não sabiam que o isolamento enfraquece o meio, e que somente juntos poderemos alcançar voos maio-res, não só para nós mesmos, mas também para toda a cidade.

Na conversa, ela me fez um convite para trabalhar na academia do hotel e assumir as aulas do Duda.

Eu tinha tudo para estar completamente satisfeito, contudo estava preocupado com essa substituição.

Seria uma boa decisão eu dar aulas em outra acade-

Um susto

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mia sem ser a minha? Como eu seria recebido pelos alu-nos, já que eles só saberiam da mudança na hora em que eu chegasse?

A volta de João Pessoa foi silenciosa e introspecti-va. Ainda bem que eu estava dirigindo, assim ninguém percebia a minha preocupação.

Na segunda, acordei às 8h, a aula era às 9h, e eu che-guei por volta de 8h55min. Até então, a Marisa ainda não tinha comunicado aos alunos a presença de um ou-tro professor; a sala estava muito cheia e aí eu senti a responsabilidade que estava assumindo.

Troquei a roupa e entrei na sala de dança, junto com a Marisa. O ruidoso burburinho da sala, aos poucos foi dando lugar a um silêncio profundo. Marisa, um pouco insegura, comunicou aos alunos que o professor Duda não trabalharia mais naquela academia e que eu seria o professor substituto. O comunicado foi rápido e a pala-vra me foi passada, como quem passa uma batata quen-te para alguém. Eu procurei ser o mais rápido o possível, afinal estava ali apenas para trabalhar. Não era da mi-nha conta o mérito da questão; eu precisava apenas que me dessem uma chance para mostrar o meu trabalho, já que a grande maioria dos alunos não me conhecia.

Perguntei a todos, em voz alta, se eles faziam mar-cações em 2X2, e logo uma das alunas me respondeu de pronto que aquilo era aula de dança e não de mate-mática.

Dança Solta

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A ironia da aluna (hoje, Solange é uma grande ami-ga) instigou muito o meu ego e tomei como meta con-quistar aquela turma toda em uma hora de aula, visto que era a única chance que tinha. Eles estavam ali para dançar e dançariam. Havia também a curiosidade de sa-ber como seria a aula daquele professor que estava ali, parado na frente da turma. Se não gostassem, apenas não voltassem no dia seguinte. Parei de falar, comecei a aula com um samba, um xote, depois uma salsa, aí veio um baião, e uma discoteca foi surgindo, e junto com ela o sorriso dos alunos foi decorando o meu espelho, que refletia o meu próprio sorriso, criando assim um elo mu-sical cúmplice que atordoava a todos e a mim mesmo.

A cada aplauso, entre uma música e outra, e ainda com um aplauso apoteótico no final da aula, tive a cer-teza de que tinha feito um bom trabalho, de que a turma tinha gostado. Isso antecipou meu prazer de ministrar a aula do dia seguinte. Naquele dia, começou a minha mágica relação com a famosa turma das 9h.

UM SUSTO

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Dança Solta

A dança teria um espaço muito maior e seria muito mais respeitada se ela fos-se levada realmente a sério por muitos profissionais que dela vivem.“

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Ao mesmo tempo em que aumentava o número de alunos da turma do Meliá, eu me sentia bem na relação com a direção da academia. Não consigo explicar muito bem isso. Vale salientar que minha condição de compo-nente daquela equipe de profissionais me dava muita satisfação, de cumprir com as obrigações a mim deter-minadas, de pertencer a um time, de me sentir parte de uma elite de profissionais que, junto com a academia, procurava meios para que ela se mantivesse no merca-do, uma vez que havia uma grande crise no estado de Alagoas, e as outras atividades da academia estavam muito aquém das necessidades para mantê-la; somente a dança não conseguiria esse mérito.

Três meses se passaram, até que Marisa nos comu-nica que a academia iria fechar e que, infelizmente, seu sonho como professora de educação física teria termi-

Bom enquanto durou

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nado, não por incompetência, mas por uma situação alheia à sua vontade, visto que a crise em uma cidade onde grande parte da população era de funcionários públicos, atinge de imediato as empresas consideradas de cunho supérfluo, portanto as academias são o pri-meiro descarte das pessoas.

Diante da crise, eu já com a turma muito bem for-mada, pensei em fazer uma proposta ao Meliá para que eu administrasse a academia e transferisse as aulas do centro da cidade para lá. Desse modo, juntaria todos os alunos em um só endereço. Entretanto, soube que, na época, a pessoa que administrava o hotel tinha outros planos para o espaço.

Setenta por cento dos alunos passaram a fazer aulas na academia da Sinimbu , minha academia no centro da cidade, aumentando consideravelmente o nosso movi- mento, mas, aos poucos, eu vinha percebendo a dificul- dade de alguns para continuar nas aulas. O centro da cidade era longe e de difícil acesso para 80% de nossos alunos; além de ser fora de mão para eles, ainda havia a dificuldade de estacionar os carros, obrigando-os até a utilizar o esquema de lotação entre eles, para virem fazer uma aula.

Em face da situação, senti que, logo, logo, iria come-çar a perder aqueles novos alunos; por mais que tives-sem boa vontade em participar das aulas, eles logo fica-riam cansados daquela situação, principalmente porque

Dança Solta

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as grandes academias de ginástica que estavam de olho no mercado da dança, começaram a divulgar aulas com os mais variados professores, alguns dos quais até que foram meus alunos de dança em cursos regulares por um pequeno período, mas se achavam aptos para mi-nistrar aulas.

Como disse antes, as academias não se relaciona-vam, ficava cada uma em seu canto, por isso nem pude dar referência desses profissionais e tive que assistir a muitas fracassadas tentativas de academias, ao criar um departamento de dança aos seus alunos.

A dança teria um espaço muito maior e seria muito mais respeitada, se fosse levada realmente a sério por muitos profissionais que dela vivem.

BOM ENQUANTO DUROU

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Um professor é apenas o interme- dia-dor entre a música e o seu esta- do de espírito. Elas não aprenderam a dan-çar. Descobriram que sabiam. Trans-formaram aquele encontro diário em festa.

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Eu tinha que providenciar um outro lugar mais per-to da grande maioria dos nossos alunos. Teríamos que facilitar o acesso às aulas; somente indo até eles é que conseguiríamos. Muitas buscas foram feitas, até que eu um dia passei na porta do Iate Clube Pajuçara e vi na sua placa luminosa que, além de natação, basquete e vôlei, o clube também oferecia, entre outras modalidades espor-tivas, a dança.

Eu nunca tinha ouvido falar em dança naquele lugar. Era mesmo na medida para uma parceria, pois, além de ser muito bem localizado, tinha um grande estaciona-mento, e me parecia haver uma espécie de galpão desa-tivado onde era a antiga boate do clube.

Procurei, então, o comodoro do clube, Moacir Albu-querque, que, ao me receber, demonstrou um certo de-sinteresse pelo assunto, haja vista a tentativa infrutífera de dois professores de dança de Maceió para implantar a dança no clube, porém só conseguiram manter a ativi-

Outra mudança

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dade por alguns poucos meses.Confesso que fiquei um pouco surpreso com o fato,

posto que achara aquele lugar ideal para o meu objeti-vo. Diante da insegurança do comodoro pelo assunto, tive que reformular minha proposta antes mesmo de apresentá-la. Propus, então, uma parceria com o clu-be, que só precisaria limpar o galpão e terminar o piso, que estava incompleto. O comodoro achou que seria melhor providenciar também o forro. Da nossa par-te ficaríamos responsáveis por todos os equipamentos de som, móveis, espelhos, discos, placas, toldos, fun-cionários (com as devidas obrigações sociais), divulga-ção, divisórias, vidros, enfim, tudo que fosse necessário para o perfeito funcionamento da academia.

Começamos as atividades no Iate no dia 2 de maio de 1998, com aula inaugural marcada para as 9h. Apre-sentamos, então, a turma das 9 à sua nova sala e à sua nova academia, mais espaçosa, mais bem localizada e mais confortável. As aulas ainda continuaram na aca-demia da praça Sinimbu por dois meses, todavia a di-visão dos alunos entre as duas academias afetou muito o nosso orçamento. Então, resolvi ficar somente no Iate Clube Pajuçara.

Dança Solta

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As aulas começavam pela manhã, a partir das 8h. Uma turma às 9h, depois às 15h, 16h, 17h, 18h, 19h , 20h e 21h. Ampliamos bastante os horários para ofe-recer mais opções aos alunos. As aulas de dança solta sempre são as mais delicadas para se ministrar, visto que o professor, além de ser bastante perceptivo, tem que contar com fatores externos como o tempo, o horá-rio de chegada dele e dos alunos na academia , músicas atualizadas, astral coletivo da turma, tópicos explora-dos com algum comentário descontraído, aniversarian-tes do dia, manchetes do jornal, percepção do elemento surpresa em sala de aula, temporização dos intervalos entre as músicas, uso de um bom perfume e sempre muito bem vestido, de acordo com as necessidades que a aula exigir em termos de movimentos, administração das aulas temáticas (saber adequá-las e usá-las na hora certa) e o mais importante de tudo: ser muito respon-sável e juntar tudo isso a uma super sensibilidade mu-sical. Ufa!

A maratona

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A comunicação corporal só não é mais antiga do que comer e fazer amor. Aprendemos a “dançar” antes de des-cobrir que poderíamos emitir sons pe-las cordas vocais, ou seja, dançamos antes de falar. Acredito que todos nós temos a dança em nosso DNA, essa primeira forma de nos expressarmos.

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A aula de Dança Solta foi criada meio por acaso. Um certo dia, fui convidado para fazer uma apresen-tação em uma festa. Eu e minha parceira iríamos fazer um número de dança e depois daría- mos uma aula para os casais da festa, o que seria uma ótima opor-tunidade de divulgar a escola, conforme já mencionei anteriormente.

Na hora da apresentação, no camarim, eu já devi-damente vestido para a ocasião, esperava ansioso a chegada da minha parceira que, para minha infelici-dade, ou não, faltou.

Até então, não via nenhum problema nesse fato. Apenas iria ensinar os casais a dançar a tal Lamba- da; assim, cumpriria o meu contrato, pegaria o meu cachê e iria embora, assim que terminasse.

O número foi anunciado. Ao sair do camarim, de-parei-me com uma situação atípica: 99% dos partici-

Dança Solta, um achado, um presente

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pantes do evento eram damas, não havia cavalheiros.Eu deveria ter imaginado, porque estando a aula

marcada para as 17h, dificilmente teríamos algum cavalheiro no evento nesse horário. Quando me vi diante de tudo aquilo, não vislumbrei a mínima pos-sibilidade de voltar para o camarim; peguei, então, vários discos da casa e, aleatoriamente, comecei um movimento simples com um samba lento, porém mui-to conhecido. Notei que elas conseguiam fazer os mo-vimentos, além de cantar o samba junto comigo. Meu nervosismo foi passando e vieram os sambas, os fre-vos, as salsas, os boleros, os gritos e as brincadeiras.

Quando dei por mim já estávamos dançando há mais de duas horas, mas a animação continuava a mesma. Nesse momento, sob protestos, parei a aula e anunciei a aula na academia, como se ela já existisse há muito tempo (isto era um segredinho).

Portanto, graças à falta da minha parceira, nós cria- mos aquele tipo de aula que nos leva à alegria de dan- çar pelo simples prazer de estar solto consi-go mesmo, solto no espaço e no tempo, no sorriso e na voz, buscando em si uma alegria infantil, ou uma infantilidade alegre, extasiante ... O nome surgiu na-turalmente, já que os próprios alunos comentavam entre si que, naquela aula, eles se soltavam.

Dança Solta

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Estruturando

O próximo passo era preparar os professores para pôr em prática o nosso projeto. Vários cursos foram pre-parados por mim, buscando sempre qualificar os pro-fessores da nossa academia (e de outras também). Sem-pre mandávamos mala direta para todas as academias que ofereciam aulas de dança na cidade.

Estava certo de que, para ser respeitada, a dança ti-nha que ser forte e, para fortalecê-la, eu teria que ajudar na qualificação não apenas dos nossos professores, mas dos professores de dança de um modo geral. Infeliz-mente, nem todos os profissionais de Maceió percebiam isso, ao contrário dos professores de Recife, João Pessoa e Fortaleza, que marcavam presença nos nossos cursos.

Hoje, uma grande parte dos professores que atuam em Maceió, passaram pelos nossos cursos, os quais visa-vam não somente à questão coreográfica da dança, mas também à postura, à etiqueta e à ética profissional, ca-racterísticas fundamentais em qualquer profissão.

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É comum ver uma pessoa entrar na sala pela primeira vez, com a insegu-rança natural de quem se depara com uma nova turma, mas que, no meio da aula, já se faz presente, cantando as músicas de que mais gosta, gritando junto com todos e participando como se sempre tivesse pertencido àquela turma.

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A turma das 9

Sem sombra de dúvida, a nossa maior referência com relação ao sucesso da Dança Solta é a turma das 9h do Studio Mineirinho de Danças, em Maceió, onde uma constelação de sorrisos iluminava, todas as ma-nhãs, a praia da Pajuçara. Juntas há mais de seis anos, essas alunas contrariam qualquer estatística relativa à média de permanência, frequência etc., em academias.

A média de permanência nessa turma era de 18 meses, e 70% das alunas frequentavam a academia de segunda a sexta-feira. A faixa etária era bem diversi-ficada, visto que tínhamos alunas de 15 anos e de 89 anos, dividindo o mesmo espaço, a mesma aula e a mesma descontração. Como pode? Com a Dança Sol-ta pode, uma vez que ninguém está preocupado em fazer todos os movimentos. Se você não gosta deste ou daquele movimento, você simplesmente inventa um para você e dança por si só, esperando o próximo movimento que lhe agrade.

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Na aula de dança solta, o importante é se distrair, dançar, cantar, brincar. O professor não lhe cobrará aquele passo certo, aquela postura britânica ou aquelas repetições que não acabam nunca. Ele é apenas o inter-mediador entre a música e o seu estado de espírito.

As alunas da turma das 9 não aprenderam a dan-çar; descobriram que sabiam, transformaram aquele encontro diário em festa. Algumas foram rebatizadas com apelidos carinhosos como a Carneirinho, a Se-cretária, a Nolasco, a Black, a Rita Lee, a Sorriso, a Oncinha, a Barbie, a Peralta, a Dona do primeiro an-dar, a Penedo, a Socorrinho, a Mariluza, a Darcy, a Alicita, a Bell, a Delza, a Carola ...

Dança Solta

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Um cuidado constante

Um professor de dança, seja ela de qualquer estilo, tem que estar consciente de seu alcance e limite para com os alunos, mas dentro de todos os requisitos ne-cessários para que um profissional seja respeitado. O mais importante, sem sombra de dúvida, é o pro-fissionalismo ético; porém, infelizmente, nem todos os professores de dança estão, digamos, preparados para isso.

A falta de recursos ou de maiores oportunidades le-vam muitas vezes as pessoas a seguir o caminho da dan-ça. Geralmente os talentos são natos, e a vida humilde lhe dá a oportunidade de pegar um atalho para um me-lhor salário ou melhores condições de vida. O problema é que muitas vezes eles não têm consciência da força se-dutora da dança, o que pode lhes acarretar alguns pro-blemas de cunho pessoal.

Muitas pessoas procuram a dança não com o intuito de apenas aprender a dançar, mas fazer uma espécie

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de terapia, conhecer pessoas, combater o stress, sair da monotonia.

Ou porque foram indicados por algum terapeuta, ou porque acabaram um relacionamento e querem se dis-trair um pouco, enfim ...

Pelos meus cálculos, apenas 10% dos alunos de uma academia de dança querem realmente se dedicar exclu- sivamente à arte e ser um profissional da dança. Os 90% restantes entram por motivos diversos. Quando eles se deparam com um profissional bem treinado, carismáti-co, atencioso, cordial, educado, cavalheiro, um otimista nato, que fale da dança com amor e defenda o romantis-mo e a boa relação a dois, como exige a profissão, mui-tas vezes há uma certa confusão por parte dos alunos e também dos professores.

Se o professor não estiver muito bem preparado para essas ocasiões, um grande engano pode acontecer. Pri- meiro porque muitas vezes os alunos saem do problema e deixam o professor com ele. Há muitos casos em que alunos deixaram os professores conscientes de que per-tenciam a mundos diferentes. Enfim, eu sempre aconse-lho muita cautela a todos os alunos e a todos os profes-sores, no que se refere a relacionamento. É claro que há exceções, mas não custa ter cuidado.

Dança Solta

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Criada quase por acaso, a dança solta vem na contra-mão da técnica, da postura, dos contratempos etc... Nes-se tipo de dança, tudo isso já está embutido, sem que o aluno se preocupe. Não se pode querer que um parceiro de 1,20m dance um tango com uma parceira de 1,80m; mas, se ele faz Dança Solta, isso é possível.

É muito difícil definir a Dança Solta. Penso que ela chega a ser bastante etérea para tal. Por isso solicitei que alguns alunos a definissem para mim. São muitas as de-finições, mas, em suas diferentes formas, falam relati-vamente a mesma linguagem, independentemente da cultura, posição social ou geográfica dos alunos.

Não daria para colocar aqui todos os depoimentos. Dentre eles, selecionei alguns que me chamaram mais a atenção:

Gente Solta

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É uma modalidade de dança alegre, relaxante e muito praze- rosa, podemos nos ver refletidos no espelho e nos autocorrigir, nos aperfeiçoando a cada dia.

M.R.M. - Maceió - AL

É só você deixar se envolver pelo ritmo, aproveitando ao máxi- mo esse prazer maravilhoso que só a dança nos oferece.

W.B. - Maceió - AL

Cada um faz de acordo com o seu ritmo, pretendo ficar até quando Deus permitir e ele vai permitir, por muito tempo.

M.M.J. - Maceió - AL

Dançar sem o compromisso com o saber e sim com o divertir. Os principais componentes são: alegria, descontração, alto astral e sobretudo sentir-se vivo.

H.W.M. - Maceió - AL

Além de criar um ambiente de grande energia física estimula a coordenação motora e o equilíbrio físico e psicológico, tão impor- tantes em qualquer faixa etária. Contribui através de seus variados ritmos para a leveza e a beleza de movimentos. Sem perceber, o aluno acaba transferindo para a vida pessoal os benefícios desse exercício artístico.

G.N. - Maceió - AL

Uma proposta para ajudar a colocar o corpo em forma sem té- dio, sem sacrifício, sem mesmice e com muita liberdade.

S.C. - Rio de Janeiro - RJ

Dança Solta

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Coreografias acessíveis, mesmo quem nunca fez dança consegue acompanhar. Além disso exercita ludicamente o corpo e o espírito.

P.A. - Rio de Janeiro - RJ

Movimenta o corpo, relaxando a mente e diminui o stress.A.J.V. - Rio de Janeiro - RJ

Interação da saúde mental e física através do prazer. Não esti- mula a competição de corpos ,tão comuns em academias, mas inte- gra pessoas de várias idades.

M.J.S. - Rio de Janeiro - RJ

Uma aula em que a alegria e o movimento estão em perfeita sintonia. Com a solta parece que a estória da lagarta é real, quando ela pensava que ia morrer, virou borboleta! E aconteceu comigo!!

T.V. - Rio de Janeiro - RJ

É uma aeróbica preguiçosa em que se coloca para fora tudo que está reprimido no seu interior, trazendo uma sensação de liberdade.

A.J.V. - Rio de Janeiro - RJ

É a dança que brota em nosso corpo escondido, revelando algo que era uma semente adormecida.

Z.J.V. - Rio de Janeiro - RJ

Liberdade, voo, soltar a imaginação e o corpo. Tem o poder de entrosar as pessoas.

L.U. - Rio de Janeiro - RJ

GENTE SOLTA

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Você dança muito e não se preocupa em pisar no pé de ninguém.R.M. - Rio de Janeiro - RJ

É a maneira mais simples e lúdica de exercitar a expressão cor- poral. É um grande auxílio para a liberação de tensões do dia-a-dia.

H.L. - Rio de Janeiro - RJ

Dança solta é a ludicidade da infância resgatada. Alegria, des- contração, interação, encontro...

E.C.J.V. - Rio de Janeiro - RJ

Adoro a dança solta, mesmo sem saber dançar.A .C. - Rio de Janeiro - RJ

Dança Solta

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Apesar de todas as possibilidades, boas ou más, que a profissão traz, muitas coisas maravilhosas acontece-ram durante este percurso, e o nascimento do Grupo Rugas de Ouro foi um deles. Pilotado pela Vânia Papi-ne, o grupo veio a superar todas as expectativas relati-vas a respeito, a otimismo, criatividade, gentileza, cari-nho e autoestima.

Tudo começou por acaso, quando o grupo preparou uma coreografia para se apresentar no aniversário de uma colega da turma das 9h. A experiência foi tão deli-ciosa que se tornou uma solicitação constante de todas as aniversariantes da turma. A partir daí, já foram várias apresentações no teatro Deodoro, participação no III , IV, V e VI festival nacional de dança em Recife, sendo aplaudidas de pé em todas as apresentações, shows em congressos, hotéis , enfim ... Uma maravilha que nasceu entre as alunas da turma das 9h e que tomou um rumo próprio e vencedor.

Frutos

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Por falar em vencedores da dança, não poderia esque-

cer-me de Seu Rafael Cordeiro, um exemplo de amante do ritmo e da dança, um homem que superou desde a timidez, ao entrar na academia pela primeira vez, a pro-blemas de saúde, quando os médicos não foram muito otimistas em seu prognóstico.

Ao receber uma notícia desagradável, ele pediu ao médico que não o proibisse de dançar, e há 15 anos Seu Rafael nos brinda diariamente com seu sorriso de crian- ça e seu olhar de esperança, usando seu colete terapêu- tico especial , o que lhe dá até uma certa elegância, pois sem ele, não conseguiria ficar de pé, já que não lhe res-tou um só músculo abdominal, depois de sua cirurgia. Ele, Magda, sua esposa, e seu filho, todos se tornaram alunos da Dança Solta.

Dança Solta

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Em Maceió, tive a oportunidade de colocar em prá- tica todos os meios possíveis e necessários para a divul-gação da dança. Planejei desde aulas temáticas até even-tos de grande porte, onde premiávamos todos aqueles que, durante o ano, tivessem realizado algo significativo para o desenvolvimento da dança na cidade. Era o Tro-féu Studio Mineirinho de Danças, uma obra de arte con-feccionada por um artista da terra, fazendo com que a sociedade passasse a conhecer a sua arte. Tratava-se de um evento muito concorrido, com grande interesse da mídia, visto que a dança estava sendo tratada de manei-ra tão séria como nunca fora. Foram cinco edições muito felizes do Troféu Studio Mineirinho.

Em 2000, completaríamos 11 anos de mercado; um grande feito para uma empresa comercial, mas uma si- tuação delicada para uma empresa estabelecida em uma cidade de médio porte como Maceió. Era necessário am-pliar os serviços oferecidos pelo Studio, pois assim tería-mos sempre uma novidade de interesse do público.

Inquietação

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Assim sendo, encontrei um local que seria perfeito para montar um centro cultural, onde poderíamos ter aulas de canto, teatro, apresentações de pequenos espe-táculos, enfim, algo novo, que me desse também muito prazer em coordenar. Foi então que, com mais um furo na conta bancária e muita luta, conseguimos inaugurar o Centro Cultural Chica da Silva, nome sugerido pelo grande colunista social Romeu Loureiro.

Na inauguração, tivemos várias apresentações, es- quetes teatrais, shows de dança e o comunicado de que, em breve, o centro começaria a funcionar. Entre todas as atividades, a que mais me fascinava era o teatro. A pos-sibilidade de dar aulas de teatro ou encenar uma peça me instigava muito. Era algo que teria que ser feito logo, porque estávamos um tanto estagnados, não só ofere-cendo apenas um produto - a dança – como também su-jeitos à sazonalidade dessa atividade, uma vez que, em certos períodos do ano, o número de alunos diminuía muito, em razão das férias, das chuvas etc.

Dessa forma, se diversificássemos os produtos e ser-viços, poderíamos distribuir melhor a frequência dos alunos na academia e, consequentemente, teríamos um maior equilíbrio nas despesas.

Com o Centro Cultural Chica da Silva inaugurado, abriu-se uma lacuna na programação das aulas do Stu-dio Mineirinho.

Qual seria a programação do Centro Cultural? Que

Dança SoltaDança Solta

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tipo de aulas seriam ministradas? Que profissionais da cidade seriam convidados a participar desse projeto? Eram muitas perguntas sem respostas, mas uma respos-ta eu tinha na ponta da língua: Eu não estava qualifica-do para exercer nenhuma atividade no Centro Cultural, uma vez que não era ator nem professor de teatro ou de canto, ou de qualquer outra atividade que pudesse ou quisesse oferecer.

Desse modo, para suprir essa lacuna, eu deveria me capacitar para assumir essa responsabilidade. Fiz uma pesquisa entre o Rio de Janeiro e São Paulo e optei por passar alguns meses no Rio a fim de que me qualificasse como ator e professor de teatro. Aí sim, poderia exercer esta nova profissão no Centro Cultural Chica da Silva. Foram seis meses de preparativos. Mudei de minha casa para um pequeno hotel, vendi meu carro e passei a direção do estúdio para a Tia Rosa, uma das pessoas a quem dedico de coração este livro.

Assim, a meta era fazer um curso de três meses no Rio de Janeiro, depois voltar para Maceió e criar uma turma de teatro. Pela meta fantasiosa, você já deve ter percebido que eu não tinha a mínima noção do que era ser professor de teatro. Preparativos tomados, parto para o Rio de Janeiro na ânsia de me qualificar e, com um retorno triunfante, mudar a visão do Studio Minei-rinho, tornando–o um centro cultural completo.

Fui recebido no Rio pela grande amiga Leila e sua família, que me hospedaram até eu agilizar algum apar-

INQUIETAÇÃO

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tamento por temporada para ficar. Na mesma semana, fui a um curso de teatro com o intuito de me matricular num curso regular. A matrícula não se efetuou porque o curso não aceitava pagamento em cheques. Isso me deu a oportunidade de ouvir de alguns alunos que as ins-crições para a Escola Estadual de Teatro Martins Pena estavam abertas. Com essa dica, procurei o endereço da escola e soube que era a escola mais tradicional de teatro da América do Sul, além de gratuita; mas, para ingres-sar nela, teria que ser aprovado no vestibular.

Mais um engano. Como iria imaginar que havia ves-tibular para fazer teatro? Para minha maior sur- presa, não havia somente o vestibular e em três etapas, mas também um número de 320 candidatos para 15 vagas.

Não me perguntem como, mas passei na primeira etapa, chamada de banquinha. Na segunda etapa, prova escrita sobre teoria teatral, exerci o meu poder de adi- vinhação nas questões de múltipla escolha, já que não sabia nada referente ao assunto da prova. Penso que a minha salvação foi a prova de redação, com dois temas para escolher: a) teoria de Stanilavski; b) o Racismo no Brasil. Bom, vocês já sabem qual foi o tema escolhido, claro! Na terceira etapa, chamada de bancão, os profes-sores fazem exercícios de improviso com os candidatos. Acho que o meu sotaque nordestino carregado, a em-polgação por ter passado nas etapas anteriores e minha predisposição para dançar e cantar fizeram o diferencial, pois fiquei entre os 15 - o 15° é verdade.... Mas passei.

Dança Solta

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Recapitulando: a inscrição foi feita na quinta; a pri-meira prova na sexta; a segunda no sábado; a terceira e última no domingo e logo no dia seguinte, os aprova-dos fariam a matrícula. Meu Deus, quanta mão de obra para fazer um “cursinho” de Teatro.

Levei os documentos, as fotos e ouvi a secretária dizer: “Esta é uma escola de Teatro em que, após dois anos e meio, você sairá um ator completo.” ”Como as-sim dois anos e meio? Só posso ficar três meses, não vou ficar esse tempo todo aqui no Rio”. Além do mais, a Tia Rosa concordou em tomar conta da academia por ape-nas três meses e não dois anos e meio. Faço ou não faço a matrícula?... Quer saber: faço, não custa nada; depois é só parar o curso nos três meses e voltar para casa. Ten-tarei absorver o máximo que conseguir nesse período e estarei mais ou menos preparado para montar uma turma de teatro por lá!... Então, fiz a matrícula e come-cei a estudar teatro. Teoria do teatro, música, cenografia, canto, voz, dança, expressão corporal e interpretação, cada qual com os seus diferentes professores (alguns adorados outros odiados). Mais uma vez percebi que estava completamente enganado, visto que três meses não daria nem para eu arriscar algo, dada a dificuldade e complexidade dessa nova realidade. Percebi o quanto eu ignorava a respeito de Teatro.

Sendo assim, vou ter que conversar com a Tia Rosa e a Teodomira e falar sobre os meus planos de ficar no Rio durante esses três anos.

INQUIETAÇÃO

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- Três anos????? perguntou Tia Rosa.- Tá maluco??? replicou Teodomira.Mas a verdade é que elas não me deixaram na mão

e cuidaram da academia até que eu me decidisse a ficar definitivamente no Rio. Voltei a Maceió, então, para fe-char mais um ciclo na minha vida, e, mais uma vez, re-começar.

Era hora de começar a me mexer. A Leila me apre-sentou ao proprietário da academia Júlio Veloso, em La-ranjeiras. Seria a primeira experiência com turma regu-lar de dança solta, fora de Maceió. Agora era pra valer. Eu não só iria dar início a um novo ciclo como também precisava que ele desse muito certo. Como a grana es-tava curta, eu precisava muito desse empurrãozinho fi-nanceiro para me manter no Rio.

O coordenador da academia, sr. Ricardo, não tinha a menor noção do meu trabalho. Fiz-lhe, então, uma ex-planação da minha experiência com a dança solta (eu não tinha me dado conta que dança solta era um nome inventado por mim). Daí ele me deu a oportunidade de fazer uma aula experimental com os alunos, a qual foi marcada para o dia 31 de julho de 2001, às 9h.

Colocamos alguns cartazes na parte interna da aca- demia, e os professores, que também não sabiam do que se tratava, divulgaram a tal aula entre alguns alu-nos curiosos. No dia marcado, a sala estava com- ple-tamente cheia de alunos e professores que não tinham a menor noção do que iria acontecer. Eu me apresen-

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tei e disse que a dança solta era solta, e que se alguém sentisse alguma dificuldade, ficasse que nem cocô de marinheiro, isto é, que fosse na onda, que tudo se ajei-taria. Comecei a aula e fiquei impressionado. Sem dar nenhuma referência sobre o comportamento dos alunos que já conheciam a aula em outras cidades, os alunos da Júlio Veloso se comportaram exatamente como todos os alunos de dança solta, ou seja, gritaram , pularam , cantaram, sorriram muito, criaram personagens, tipos interessantes apareceram na turma como por encanto. Enfim, um turbilhão de informações que surgiu de re-pente que fizeram com que a aula fluísse de tal maneira que a coordenação aprovou a dança solta e já começou fazendo várias matrículas no mesmo dia.

Essa experiência me revelou que não era o tipo da dança, que garantia a energia da aula, mas o professor. A dança solta é o professor, repartindo com seus alunos um pouco de sua vivência, sua experiência, sua sensi-bilidade e gosto musical... Creio que a dança solta é a que mais exige, do professor, postura, intelectualidade e sensibilidade humana e musical. É o tipo de aula em que o professor tem que estar 100% integrado com a res-piração, com o astral e o objetivo coletivo da turma. Se, em uma academia, existem cinco turmas de dança solta, serão cinco estilos de aula diferentes, porém com a mes-ma essência. Em outras palavras, o objetivo é o mesmo para todas as turmas, porém o professor terá que usar métodos diferentes para alcançar esse objetivo.

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Muitas são as características que diferenciam uma turma de outra, e o professor, como maestro, deve le-var as cinco turmas ao mesmo patamar de alegria e des-prendimento.

A aula de dança é uma espécie de terapia tanto para o aluno quanto para o professor, é claro que mais para o professor, pois ele aprende a conviver com os mais variados estilos de pessoas, das mais variadas classes sociais. Ele tem que transitar em todos esses mundos, sem se esquecer do seu próprio. Deve portar-se como uma canoa que, apesar de estar dentro d`água, muitas vezes racha com o bater do sol. Se o professor não ti-ver essa consciência, certamente não conseguirá ser um bom profissional da dança solta ou de qualquer estilo de dança que se queira ensinar. Já vi vários professores que, embora muito talentosos, não obtiveram sucesso por causa do deslumbramento; por ser considerado, por muitos alunos, um “maravilhoso professor”.

Na minha opinião, o sucesso almejado por esse tipo de profissional deve ser muito bem definido. Existem dois tipos de desejo muito comuns entre as pessoas: sucesso profissional e o sucesso financeiro. Se um pro-fessor de dança almeja o sucesso profissional, ele certa-mente estará ciente de que, muitas vezes, este sucesso não acompanha o financeiro. Não acredito que alguém fique rico, ministrando aulas de dança. Somente os amantes da dança que dão aula por amor à dança têm consciência disso.

Dança Solta

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Depois de me formar na Escola de Teatro Martins Pena - RJ, saí do processo de formação teatral com uma fome de bola danada. Queria montar um espetáculo logo e começar a colher os louros da fama, ser reconhe-cido pelo trabalho, algo que eu pudesse mostrar que valeu a pena ter saído de minha cidade, minha casa e me lançado em um centro importante, com o intuito de aprender. Quando você acaba de terminar um curso, você acha que aprendeu tudo, não é mesmo?

Então, montei com outros humoristas, como André Siqueira, Fernandão, Raul Franco e Henrique Lima, al- guns espetáculos como o Ato Avariado, muito aprecia- do pela crítica, porém pouco conhecido pelo público. A história desse espetáculo começa em outra peça, Ricar- do III, de Shakespeare , em uma prova de interpretação na Martins Pena, assistida por Antônio Pedro, uma fi-

Nome de peso

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gurinha carimbada, um nome de peso que, provavel-mente, colocaria nosso nome no mapa teatral carioca.

O convite não poderia ser feito tão informalmente. Afinal, o Antônio Pedro nunca me vira fazendo comé-dia e, certamente, não iria aceitar nos dirigir, sem uma referência mais definida. Perguntei-lhe qual dia da se-mana, à noite, estaria mais tranquilo, uma vez que ele trabalhava como louco e ainda tinha um bebê em casa. Ele me disse que às segundas-feiras seria bom porque era sua folga no teatro, e a babá ficaria até mais tarde. Foi quando eu soltei um alto e sonoro: “Que coincidên-cia!!!! É exatamente nesse dia que estou em cartaz com o espetáculo Ato Avariado e gostaria muito que você as-sistisse a ele. Sua opinião é muito importante para nós, que estamos começando agora”.

Vocês podem até pensar que fiz jogo baixo, mas o importante é que ele disse que iria. Então, eu saí dali com a missão de conseguir um teatro na próxima se-gunda, para fazermos nossa apresentação.

E como diz aquele ditado: quem tem amigos não pre- cisa de cheques, fui ao John Vaz, coordenador do peque- no teatro do Museu da República e lhe expliquei a situação. Ele cedeu o espaço na segunda seguinte para apresentarmos a peça e, assim, o Antônio Pedro poderia ver o nosso trabalho.

Enviamos os convites, como cortesia, é claro. Desse modo, conseguimos lotar o teatro de quarenta lugares. E depois de muito esperar, muita ansiedade e tensão,

Dança Solta

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adentra no recinto o Antônio Pedro, diretamente para a primeira fila, cadeira naturalmente reservada especial-mente para ele e a Andréa , sua esposa.

Os dois assistiram a um de nossos melhores espetá- culos. A cada risada deles aumentava mais a nossa con- fiança e a nossa esperança de que ele aceitaria o convite para nos dirigir. Ao término da apresentação, depois de sermos ovacionados pelos amigos, colegas de turma e convidados, e até parentes do iluminador, fui ao encon-tro do Antônio Pedro no hall do teatro e lhe confessei a minha artimanha para que ele assistisse ao espetáculo.

Só não falei que toda a plateia era cortesia e a maio- ria de amigos. Ele disse que gostou muito, que riu bas- tante, porém não iria dirigi-lo porque o espetáculo já estava pronto, mas que poderíamos contar com ele para assumir a supervisão da direção. O espetáculo teve pou-ca repercussão. Ficou em cartaz por um mês no teatro Porão Laura Alvim, hoje teatro Rogério Cardoso, no en-tanto a falta de estrutura e divulgação pesa para quem não tem a cara na mídia.

Naquela época, não tínhamos a tal da rede social, e a divulgação era no grito mesmo, mas sempre dávamos um jeito de fazer do incômodo de haver poucas pessoas na plateia, mais um motivo para piadas.

Cinco minutos antes de começar o espetáculo, inter-fonávamos para a bilheteria e perguntávamos quantos ingressos tinham sido vendidos. Como as cadeiras do teatro eram soltas, nós as tirávamos todas e só deixáva-

NOME DE PESO

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mos o número certo de cadeiras vendidas na bilheteria, Assim tínhamos sempre nossa lotação esgotada. Chega-mos a lotar com duas pessoas na plateia, e quando che-gava alguém atrasado era uma festa, por quê? Porque havia cadeira extra!!!

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Minha decisão em mudar para o Rio de Janeiro em 2000 foi muito difícil, mas, uma vez que aconteceu, pa-rece que os caminhos se abriram e, em menos de dois meses, estava tudo acertado e devidamente provi- den-ciado. Hoje faz 17 anos que pulei de cabeça para algo cuja profundidade desconhecia. Saí apenas com a mala na mão e muitas perguntas e incertezas na cabeça, em busca de algo desconhecido que, lá no âmago, sentia me pertencer.

De lá pra cá, foram muitas vitórias e muitas frustra- ções (vitórias gigantescas e frustrações na mesma or- dem), muitas barreiras, preconceitos e quedas que me levaram a pensar em desistir algumas vezes.

Em uma dessas ocasiões, vi-me sozinho, em um con-jugado de 18m², em Copacabana, em uma turma na es-cola de Teatro cuja faixa etária era, em média, 20 anos. Eu e a Fátima, uma grande colega de turma, éramos os titios da turma. Minha professora de interpretação fazia

Desistir é mais difícil

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questão de me lembrar sempre que eu já tinha quase 40 e que minhas atitudes não deveriam ser iguais às dos meus colegas. Eu me sentia esquisito, pegando ônibus pela porta da frente com a camisa de uma escola esta-dual, junto com uma galera de 13 anos, que também es-perava no ponto de ônibus; afinal, o salário das minhas aulas de dança era quase insuficiente para pagar meu aluguel e bancar as despesas básicas.

Em face disso, eu tive minha primeira recaída e pen-sei em voltar para Maceió. Então, numa certa segunda-feira, na escola de Teatro, desabafei com uma das pro-fessoras, a Elza, de sorriso lindo, olhos apertados e uma positividade infinita.

Falei com ela sobre minha intenção de voltar, mas ela disse: “Pense um pouco. Aqui você ainda tem inúmeras possibilidades, o quanto você ganha aqui hoje, pode ser algo que entrará em sua biografia daqui a algum tem-po como fase difícil, porém representa o ponto de refe-rência e de partida de sua luta, de onde você começou e aonde pôde chegar. Voltando, você estará dando as costas para o inesperado e retomando a sua posição de conforto, sem muitas histórias para contar ou, o que é pior, sem uma única história.”

Quem é artista e está lendo este livro sabe do que estou falando. Desistir de um sonho é muito mais difí-cil do que embarcar nele. Voltar pode ser bom se você enten- de que já conquistou o bastante ou que suas as-pirações foram cumpridas, ou por um motivo superior

Dança Solta

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ao seu sonho, como sua família, por exemplo. Hoje eu entendo por que muitos têm medo de embarcar nesse trem. Ter que voltar pode ser muito ruim e frustrante, se você ainda não chegou à conclusão de que é sua hora de voltar. Alguns nunca voltam. Hoje, com a tecnologia, pode-se fazer carreira em qualquer lugar do mundo.

Se você é um ator, aconselho-o a ficar nos grandes centros culturais como Rio e São Paulo. Entretanto, se é um artista, um empreendedor, você pode transitar en-tre as várias vertentes da área artística e coorporativa, ministrando palestras, elaborando roteiros, realizando shows corporativos, discorrendo sobre a literatura, co-locando, assim, a roda cultural de sua cidade para girar. Não se permita ser contador de uma só história e ter que repeti-la, algo como: “Passei seis meses me aventurando em São Paulo para tentar minha carreira artística. Eita lugar difícil, muito frio...”

Em seis meses, você provavelmente não conhecerá nem o porteiro do seu prédio. Se você embarcou ou vai embarcar no seu sonho, vá sem data para voltar e sem medo. Faça com que sua volta, caso aconteça, seja con-sensual entre você e suas aspirações. Não espere que as coisas aconteçam em menos de três ou quatro anos. Pode até ser que aconteça, se você for uma pessoa de sorte; mas, como sorte apenas não basta, espero que você esteja no lugar certo, na hora certa; que não este-ja caindo em roubada, porém esteja muito, mas muito bem preparado.

DESISTIR É MAIS DIFÍCIL

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Hoje eu entendo por que muitos têm medo de embarcar nesse trem. Ter que voltar pode ser muito ruim e frustran-te, se você ainda não chegou à conclu-são de que é sua hora de voltar. Alguns nunca voltam.

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“Quem espera sempre alcança” e outras frases do mesmo naipe não deveriam fazer parte do mesmo movimento coreográfico da vida. Ela toca uma músi-ca “policórdia”: ora uma valsa, ora um baião arretado, ora uma bossa nova e assim por diante. Temos que estar preparados e com o devido tônus para identifi-car o ritmo tocado e, assim, acompanhá-lo, sem muito esforço, pois seguiremos o fluxo da melodia, tendo sempre a vida como uma boa parceira nessa jornada.

Vejo muitos colegas esperando acontecer algo de bom. Ouço aquele “Sinto que algo de bom vai acon-tecer hoje”. Meu caro, enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé, tira o som da vida do “pause” e começa a botar pra quebrar, rebola e quica nos 30.

Faça as coisas acontecerem. Se ninguém o convida para uma festa, faça uma e convide a todos. Se não o chamam para participar de nenhuma coreografia,-componha uma música inédita, que muitos irão que-

Muita expectativae pouca perspectiva

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rer participar dela com você. Não banque o girassol, assistindo a luz nascer e se pondo no final da jorna-da.

Não fique assistindo a banda passar na janela. Pule a janela e vá atrás da banda. Lembre-se de que alguém tem que pegar no leme, então que seja você mesmo.

Dança Solta

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Mandaram-me, via e-mail, um vídeo de uma senhora de 73 anos, canadense (se não me engano), que partici-pava de um concurso de dança e que, antes de começar a dançar, foi esnobada por um dos jurados. Ela, como quem sabia o que estava fazendo, deu uma olhadela para o jurado idiota, começou a dançar e sur- preen-deu não só o despreparado para julgar, como também o mundo inteiro, visto que o tal vídeo teve mais de trinta milhões de visualizações.

Confesso que fiquei muito mais impressionado com a cara de idiota do jurado do que com a performance da senhora, porque eu, há vinte e cinco anos, como profes-sor de dança e dançarino, tenho, ao longo desse tem-po, me deparado com senhoras dançarinas, cantoras, escritoras excepcionais. São tantas que não daria para citar nomes, uma vez que poderia cometer o pecado de esquecer algumas. Garanto que isso iria me dar uma grande dor de cabeça, pois elas são ciumentas, vaidosas e têm todo o direito de ter mimos de grandes estrelas.

No DNA

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Gostaria de ressaltar o nome de duas delas, as quais considero minhas joias raras. Somente os que dividem comigo momentos familiares, as conhecem e comparti-lham o carinho que sinto por essas lindas, bravas e mu-sas inspiradoras.

Trata-se da Vivi, minha vó materna, artesã, que pin-tava quadros lindos, bordava como ninguém, boa con-tadora de piadas, escritora e, além disso tudo, fazia um pão de banana de fazer inveja a qualquer master chef.

A outra chama-se Alzira, minha avó paterna, mu-lher de muita fibra. Perdeu o primeiro marido aos vinte e três anos, de tuberculose, e com um filho seguiu em frente, lavando roupas para se manter. Casou-se pela segunda vez com um senhor que, embora suprisse to-dos os requisitos de um provedor, não era uma pessoa afetuosa, e ela, por falta de oportunidade ou de opção, respeitou aquele senhor, até que Deus o levasse. Aos oi-tenta e oito anos, final - mente reencontrou o Amor e se casou com o queridão Euclides, de setenta anos, em uma emocionante cerimônia a que esteve presente toda a família. Hoje, ela com noventa e três, e ele com setenta e cinco, ainda em lua de mel, como eles mesmos dizem, vivem uma linda história de amor.

A Vivi, que já foi morar com Papai do céu, gostava de escrever as histórias da família em versos bem-hu-morados. Eu, metido a besta, fiz-lhe uma homenagem, em forma de prefácio do seu primeiro livro, o qual divi-do com vocês.

Dança Solta

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Quando peguei lápis e papel Eu não podia imaginarQue era a Vivi queridaQue eu ia homenagearFoi aí que descobriQue isso não era o meu universo Putz, como é difícilFazer o tal do verso

Minha cabeça fica rodandoNo pensamento vou voando O papel já está reclamando Da merda que nele vou colocando

Histórias da grande famíliaDeu um livro engraçadoMas história nenhuma é lembradaSe a Vivi não estiver do lado

Todos os mencionados no livroSão gente muito batuta Alguns já foram pro céuOutros continuam na luta

NO DNA

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Aquele que não está no livro aposto que está com ciúmeMas já pensa em aprontar alguma pra sair no próximo volume

Minha avó queridaReceba de coração essa homenagem em nome de toda a famíliaEscrevo essa fuleragemBeijos dos filhos, netos e sobrinhose de toda a malandragem

Dança Solta

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Tive a grande oportunidade de ser pai aos quarenta e poucos. Isso é uma das coisas mais bacanas ou mais complicadas que podem acontecer com um homem. Penso assim porque, aos vinte, os compromissos são mais imediatistas. Temos que pensar na garantia de um futuro digno para nós e para nossa família, mesmo que isso nos faça esquecer um pouco o presente. Já aos 40, temos muito mais senso de res- ponsabilidade, com obrigações morais e financeiras de manter uma família. Como diz Djavan: “Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar...”.

Então, aos quarenta, nós sabemos. Temos consciên-cia de que levar o filho ou a filha na escola é importante, assim como ir ao teatro juntos. Passar um tempo com eles todos os dias é crucial para incutir-lhes autocon-fiança, participando da sua vida, sem interferir no seu desenvolvimento, aceitando suas perdas e vibrando

Sabe Lá...

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com suas vitórias.Aos 40, ter um filho é saber que nada vale a pena, se

não conseguirmos lhe deixar um legado, uma boa edu-cação, um bom futuro. Sabemos que criar cidadãos é ta-refa mais difícil que construir prédios e juntar fortunas. Quando somos pais, a vida nos sacode em uma mon-tanha russa, desgasta-nos, esmerilha-nos e nos brinda com a oportunidade divina de fazer quase tudo que achamos certo e adequado. A vida nos dá um presente, uma semente, um arbusto, uma árvore, uma flor e um fruto.

Certo dia, lá estava eu na escola da minha filha as-sistindo a uma apresentação onde ela tocava pandeiro junto com seus coleguinhas. Eles estavam em cima de um palco improvisado e embaixo os panáticos (pais fa-náticos). Noventa por cento deles sem olhar os filhos nos olhinhos assustados e nervosos com o ritmo da bandinha, sem passar a devida confiança no olhar, para que o filho, sentindo-se protegido, pudesse soltar a voz sem medo. Vi os pimpolhos buscarem com os olhos um apoio, mas só encontravam aparelhos celulares e filma-doras. Por trás de todo esse aparato eletrônico é que es-tava o que os pequeninos tanto procuravam: o olhar de segurança dos pais.

Tenho certeza de que muitos daqueles arquivos nun- ca serão vistos em outra oportunidade. Provavelmente, a grande maioria irá se perder, seja por perda ou roubo do celular, seja para abrir mais espaço na memória do

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telefone, mas o que mais me entristece é que, por vaida-de, esses pais perderam uma oportunidade maravilhosa de ver, ao vivo, seu filho enfrentar uma barreira, expor-se , ver seus pais e ser visto por eles, conectar-se, não por meio de uma tela de 3, 4 ou 5”, mas com o seu próprio olhar e curtir aquele momento único, que nunca mais irá se repetir.

Entre tantos exemplos, vale lembrar quando o Papa Francisco, em uma visita aos Estados Unidos, quebrou o protocolo e foi até a grade de segurança cumprimentar as pessoas. Sabe o que elas fizeram? Ficaram de costas para o Papa e tiraram selfies... Será que elas não pensa-ram que, provavelmente, nunca mais viveriam um mo-mento como aquele? Eu, certamente, choraria baldes na presença do querido Francisco, queria ver aquele olhar com meus olhos e não pela tela de um celular.

Certa vez, permiti o uso de celulares no meu espetá-culo. Houve momentos em que eu estava me sentindo em um estúdio de televisão, fazendo takes direcionados para todas aquelas câmeras que se postavam entre mim e os espectadores. Já cheguei a contar 35 câmeras volta-das para mim em uma sessão.

Sabe o que eu fiz? Nada... pois é, tento me adap-tar ao mundo atual, mas sem perder o bom senso das coisas. Aí penso em outra música: “E tudo passa, tudo passará...”

SABE LÁ

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Aquele que só faz o que gosta é um cara limitado e corre o risco de não reali-zar seus sonhos, mas aquele que gosta do que faz, o leque de opções é infini-tamente maior e, assim, tem maiores oportunidades e chances de conseguir crescer.

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Fui chamado para dar uma palestra em abril de 2015, em uma universidade particular do Rio de Ja-neiro. A ideia era que eu levasse a minha experiência de vida aos alunos em um evento cujo tema era justa-mente focado na orientação profissional.

O evento foi realizado no turno da noite. Como foi divulgado que seria uma palestra show, com humor, o auditório ficou lotado. Observando os alunos en-trarem e se acomodarem nas cadeiras, pude perceber quão eclético era o público. Havia senhores, senhoras, jovens, idosos, representantes de todas as classes so-ciais; gente que, a olhos vistos, era batalhadora, que estavam ali não porque preferiam estudar no período da noite, mas que deixavam em casa sua família, tra-balhavam o dia inteiro e ainda tinham que enfrentar cinco ou seis horas de bunda na cadeira para estudar e, assim, ter mais chances na vida.

Assim que terminei a parte de humor, comecei a palestra, dizendo que tinha sido convidado para di-

Prêmio

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vidir com eles a minha história de luta e como eu ti- nha vencido os obstáculos para estar ali, naquele mo- mento, dividindo aquelas experiências com eles. Aí comecei a refletir que eu estava ali para passar uma experiência que eles próprios estavam vivendo, assim como eu vivera. Como eu poderia falar de uma expe-riência minha, se quase todos ali estavam vivencian-do-a na prática?

Eu trabalhei duro e estudei à noite? Eles também estavam fazendo isso. Eu batalhei em busca de opor-tunidades? Eles também estavam no mesmo barco. Então resolvi dar sequência aos planos, ao roteiro da vida. Deixei claro que ainda não tinha vencido, que era tão batalhador quanto eles, que ainda havia mui-tos sonhos não realizados por mim, mas que eu esta-va trabalhando para que isso acontecesse, e que para mim o que deu certo era não fazer o que gosto, mas gostar do que faço.

Há uma grande diferença nisso. Aquele que só faz o que gosta é um cara limitado e corre o risco de não realizar seus sonhos, mas aquele que gosta do que faz, o leque de opções é infinitamente maior e, assim, tem maiores oportunidades e chances de conseguir crescer. Quem não gosta do que faz, chega cansado em casa, com o peso dobrado no corpo e na mente, não se realiza e reclama de tudo, inclusive do pou-co tempo para descansar. Por outro lado, quem gosta do que faz, pode chegar cansado em casa, porém vi-

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brando pelas conquistas do dia, pela boa empreitada e sente que o amanhã poderá ainda ser melhor, como se tivesse saído de uma boa partida de futebol onde fizera um gol de cabeça. Por isso eu sempre digo: para quem ama o que faz, cansaço vira prêmio.

PRÊMIO

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A dança solta nunca poderá ser apenas ensinada. Ela deve ser com- partilha-da. Tem que haver uma grande energia entre professor e alunos. O sentimento de desprendimento deve ser unânime, deve ser bom para todos

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A dança solta nunca poderá ser apenas ensinada. Ela deve ser compartilhada. Tem que haver uma gran-de energia entre professor e alunos. O sentimento de desprendimento deve ser unânime , deve ser bom para todos. Se o professor não usufruir de tudo quanto a dan-ça solta pode lhe trazer, a sua aula, provavelmente, não será interessante.

Ele deve usufruir de cada momento e, ao mesmo tem- po, ter uma grande generosidade em compartilhar isso com todos os alunos da sala, independentemente do número de participantes. Se a turma tiver 1, 2 , 50 , 80 ou até 1.200 alunos, cada um deles deve receber, tro-car e compartilhar a energia com o professor, todos na mesma sintonia.

Se você é um professor, não se assuste com a quan- tidade de alunos aqui declarada. Se você sabe o que faz e gosta disso, a sua aula é a mesma com 1 ou com os 1.200 alunos mencionados. Compartilhe sempre as suas

Ser Professor

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alegrias, assim você verá que tudo muda para muito melhor.

Este é meu primeiro e, talvez, último livro. Isso é meio complicado porque o fiz de forma instintiva, as-sim como acho que deveria pedir também uma avalia-ção terapêutica profissional sobre a Dança Solta, uma vez que a concebi da mesma maneira, intuitivamente.

Sei lá, às vezes me assusta um pouco a reação das pessoas depois que elas começam a praticar a dança sol-ta, visto que as mudanças que se operam nelas são mui-to rápidas e constantes. É comum ver uma pessoa que entra na aula pela primeira vez, com a insegurança na-tural de todo aluno que se depara com uma nova turma, mas que, no meio da aula, já se faz presente, cantando as músicas de que mais gosta, gritando junto com to-dos e participando, como se sempre tivesse pertencido àquela turma. E o mais interessante é que em inúmeras oportunidades, alunos de outras cidades que vêm ao Rio ou vão a Maceió e participam da aula como visi-tante, soltam-se da mesma maneira, como se a língua universal fosse a dança.

Todas as aulas são igualmente eletrizantes, como se fôssemos uma só unidade, uma só energia

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Uma tradição em nossas aulas são os gritos de guer- ra, as brincadeiras entre uma música e outra. Desse modo, energizamos a turma e preenchemos esse tempo com algo divertido.

Quando sentimos que a energia está caindo, e o as- tral está baixando, eu começo a gritar: “Saia!” Então, corro, abro uma janela, e todos nós jogamos as nossas preocupações, estresses e neuras para fora. Também te-mos o “olha a Saia”; o “Bom dia, Pajuçara”; o “Bom dia, Cristo” etc...

Embora cada grito tenha surgido em uma turma es-pecífica, todos são usados em todas elas. Em uma home-nagem a cada uma das turmas onde surgiram os gritos, eu fiz este poema rimado, para ficar mais divertido de ler, além de matar a saudade de fazer rimas, coisa que amo fazer, mas que tenho poucas oportunidades para exercitar:

Resumo da Opereta

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Tudo começou meio no aperreio a dama não apareceuAchei que ia fazer feio mas quando dei por mim tava todo mundo no meio

O dj entusiasmado eu mais relaxadoE na pista de dança um forró arretadoDepois entrou um samba eita povo animado !

Dali saiu minha primeira turmatodas queriam se matricularA recepção ficou confusa sem saber explicarO que esse povo quer, meu Deus? Queremos nos soltar

Todo mundo matriculado a turma estava enormeEu meio preocupadoDe camiseta de uniforme Essa turma é especialÉ a primeira, e isso me comove

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tinha que ter um nome nasceu a turma das nove.

De segunda a sextaO encontro era certeiro todo mundo vinha dançar no meu terreiro gente de todo lugar tinha até uma manauara mas o grito alto mesmoVinha no “bom dia, pajuçara!”

No rio, a solta pegou de primeira Tinha manicure, empresária, doceiraSem diferenças, todas curtindo a mesma praia mas o barulho era geral quando eu gritava “olha a saia” Tinha a turma da madruga oito horas já agitadanunca vi tanta loucura soltarinas da madrugada uma outra turma assim eu sempre quisA turma da machado de assis

RESUMO DA OPERETA

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O espaço foi ficando pequeno eem um clube tivemos Que nos acomodar o jardim botânico, lugar abençoadoSe transformou em nosso lar energia boa assim eu não tinha visto também pudera, nosso grito era “bom dia, cristo”

Com a solta consolidada resolvemos ampliarDecidimos então que são paulo iria se soltarMas a surpresa foi maior quando chegamos no lugar o paulista além de solto,Já sabia rebolarE quando o frio batia em nossa raia nós não tinhamos dúvidasAbríamos a porta e gritávamos “saia!” A história aqui não acaba estamos no meio da pista

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A dança solta só cresce tem até turma mista soltarinos e soltarinastodos estamos a milSe continuarmos desse jeito vamos soltar o brasil

RESUMO DA OPERETA

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Ao final nunca chegamos, mas a forma como viajamos é que faz a diferença.“

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Para mim a vida de artista sempre foi comparada a uma viagem, uma viagem onde nunca chegamos ao destino final, não interessa o final, nunca deixamos de aprender e viajar entre personagens, performances, mu-sicalidades e coreografias, fotos, pinturas e em outras milhares de manifestações artísticas, como eu disse , o final nunca chegamos , mas a forma que viajamos é que faz a diferença, digamos que apesar de não termos um destino final, o veículo e como viajamos é o que impor-ta, vamos basear a nossa viagem a uma viagem de trem.

Quando me vi artista, descobri em minha essência uma passagem para esta viagem, vi abrir diante de meus sentidos visões inimagináveis, resolvi então carimbar minha passagem e embarcar nesse trem, ondulante, prateado, ora dourado, ora incolor... quando cheguei na estação ele já estava de saída, mas consegui pular e agarrar no último vagão, o vagão de cargas e neste trem os vagões não se intercomunicam, para chegar à primei-ra classe tenho que ir por fora, no sol, na chuva, frio,

Que eu abra o caminho

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calor, vislumbrando o pôr do sol, as vezes enfrentando tempestades , mas ali, agarrado firme. As vezes dá von-tade de descer e desistir, e não são poucas vezes, mas a cada vagão que alcanço, encontro seres, entidades, figu-ras pitorescas que brindam comigo a cada etapa, passo a passo na minha luta constante em alcançar a primeira classe, a melhor parte desse trem., sair da bosta do cava-lo e ir direto para a ova do peixe, o caviar!

Dizem que demora uns vinte anos para voce alcan-çar a primeira classe, eu estou nessa viagem a dez, ou seja: um copo meio cheio ou meio vazio, dependendo do humor com que acordo a cada manhã, mas o bom mesmo está sendo a viagem, a aventura, a dúvida se vou ou não chegar à primeira classe, a cada vagão um novo personagem aparece, um novo desafio ,uma nova coreografia é feita e novas amizades são conquistadas, e se eu não conseguir chegar na primeira classe a tempo, não tem problema, vou abrindo o caminho para os pró-ximos que virão.