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X Reunião de Antropologia do Mercosul 10 a 13 de julho de 2011 - Curitiba, PR GT 69 – Xamanismos contemporâneos e seus desdobramentos Dai-me nixi pae, uni medicina: alianças e pajés nas cidades. Aline Ferreira Oliveira, UFSC. __________________________________________________________________________________________www.neip.info

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X Reunião de Antropologia do Mercosul

10 a 13 de julho de 2011 - Curitiba, PR

GT 69 – Xamanismos contemporâneos e seus desdobramentos

Dai-me nixi pae, uni medicina: alianças e pajés nas cidades.

Aline Ferreira Oliveira, UFSC.

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Dai-me nixi pae, uni medicina: alianças e pajés nas cidades. Aline Ferreira Oliveira, mestranda UFSC. Resumo: Considerando a diversidade de fenômenos relacionados ao “xamanismo” em contextos urbanos, proponho uma reflexão sobre as “alianças” que envolvem o movimento espiritual do Fogo Sagrado, a religião ayahuasqueira do Santo Daime, e grupos e/ou sujeitos indígenas. Levantarei questões sobre as relações estabelecidas entre o Santo Daime de Florianópolis-SC e alguns kaxinawás (Huni Kuin) do Rio Jordão-AC, tomando como pano de fundo a construção do Santo Daime em relação a práticas (neo) xamânicas (seja na literatura antropológica ou neste fenômeno etnográfico), e considerando a emergência do mito de origem daimista e a construção dos Kaxinawá enquanto os originários do uso da ayahuasca (nixi pae). Também considerarei as relações entre o Fogo Sagrado e yawanawas, destacando a reinvenção de tradições, o fluxo de elementos rituais e a dialogicidade na construção da “cultura”.

No centro de um salão do Santo Daime, um jovem kaxinawá veste seu grande cocar de penas

amarelas e azuis. Começa a preparação para uma oficina de pintura facial – evento esse realizado

por kaxinawás para “apresentar a cultura”, neste momento, através dos kene (desenhos) que a

jibóia ensinou para os humanos.

O ambiente há pouco foi transformado em relação a disposição de elementos que marcam

cotidianamente o salão da igreja. O cruzeiro – a cruz de caravaca, pilar de referência da doutrina

daimista, disposta na mesa centralizada em formato de estrela– é substituído por um chão de terra

batida e as toras que sinalizam a eminência de um fogo para o ritual com nixi pae (ayahuasca) que

será realizado a noite. A disposição das toras em formato de flecha – V – dá-se pela presença do

Fogo Sagrado no Santo Daime, através da “aliança” que esses grupos espirituais mantém entre si.

Um pano feito de tear com motivos do kene é estendido ao chão para que se sente a primeira

a ser pintada. Enquanto isso, um repórter do Diário Catarinense conversa com o cacique sobre as

fotos que tirará para uma matéria que sairá neste periódico de maior destaque na capital

catarinense. “Ele ali ó, tá pintado”- o cacique aponta para o pajé com um grande cocar vermelho e

rosto pintado, sentado sob um colchonete no chão do salão. O repórter olha, analisa, vira-se para

outra cena: o jovem kaxinawá que está pintando o rosto de uma mulher. Nota-se o caráter urbano

da cena: na “floresta” são as mulheres quem tradicionalmente dispõe das habilidades e prática dos

kene.

Circulam pelo ambiente máquinas fotográficas e filmadoras em distintas mãos: antropólogas,

daimistas, repórter da imprensa local, kaxinawá. Fotografando para o Diário Catarinense, o

repórter busca um plano privilegiado para registrar imagens, e por alguns momentos se incomoda

com os demais que tiram foto e interferem na disposição da luz de final de tarde. O cacique se

aproxima do pajé, falando em hatxa kuin indicando a cena que está sendo privilegiada pelas

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máquinas. O pajé levanta-se, aproxima-se, e senta de cócoras, concentrando-se para o canto: a i a

e-e A i a e-e A i a eeee...

Entra no salão uma senhora com vestimenta branca – camisa de gola alta e saia comprida – e

prepara uma mesa: estendido um pano branco, velas, e uma enorme cruz de caravaca. A senhora

ascende a vela, senta-se em uma cadeira frente a mesa, concentrando seu sério olhar na cruz,

começa o terço das almas, rezado toda segunda feira nesse salão as seis da tarde. Aos fundos,

quadros com imagens dos grandes mentores desse segmento da doutrina do Santo Daime: Mestre

Irineu, Padrinho Sebastião, Madrinha Rita, Padrinho Alfredo.

Se entrelaçam a cantoria do pajé – a ia ee aia e e aia ee - e a prece pelas almas: “Senhor

Jesus, derramai sobre as almas dos Sacerdotes e Religiosos as riquezas da vossa infinita

misericórdia (…)”. Logo a oficina de pintura vai terminando, o pajé deixa de cantar, e este e o

cacique sentam-se nas cadeiras dispostas ao redor da mesa compondo a cena do terço das

almas.

*******

Tal panorama – essa profusão de cenas e elementos – pode ser compreendido a partir de

vários contextos. Neste primeiro plano põe-se a questão: como se dá essa co-presença daimista e

kaxinawa?

Para além de uma breve incursão sobre a formação das alianças entre os grupos em questão,

o que venho a ressaltar nesse trabalho é uma reflexão sobre como o ‘xamanismo’ (considerando-o

enquanto uma categoria antropológica ou nativa e/ou fenômeno contemporâneo) nos possibilita

pensar como neste campo semântico – no qual, as alianças fornecem os elementos etnográficos –

podemos perceber a construção da “cultura” por sujeitos indígenas amazônicos em contexto de

fenômenos da espiritualidade nos centros urbanos. Certamente, trata-se de uma abordagem

preliminar que busca levantar alguns pontos para esta reflexão, não buscando exauri-la, mas

relacionando-a a um panorama mais geral (sobretudo etnográfico) que nos possibilita pensar sobre

os desdobramentos do xamanismo na contemporaneidade.

Utilizo esses termos “sujeitos indígenas” por tratar de cenas de encontros entre alguns

indígenas pano e nawas1 no sul do Brasil (portanto carecendo de um aprofundamento sobre os

processos mais amplos nas aldeias que possibilitam esses diálogos), e “amazônicos” por ser a

“floresta” um dos elementos simbólicos chave para a contrução da “cultura” Huni Kuin nessa

relação com demandas urbanas em torno da espiritualidade. Para tal reflexão, serão delineados os

                                                                                                               1 Nawa é a categoria para designar o Outro, em especial o “branco” – questão essa destacada por diversos antropologos em referência a grupos do tronco lingüístico pano, a exemplo dos Yawanawa (Carid 1999; Pérez Gil 1999), Kaxinawa (Lagrou, 1991) e outros. 2 Em certa ocasião quando falei em “aliança” com os Guarani, o líder do Fogo Sagrado ressaltou-me o termo “encontro”, considerando a concepção cosmológica do movimento de que o Fogo Sagrado já considera a participação

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elementos centrais das alianças, como se deram e seus desdobramentos atuais, bem como uma

incursão sobre alguns elementos de processos sociais recentes dos Kaxinawa que nos fornecem

elementos para uma compreensão sobre o panorama atual.

Este trabalho é parte da dissertação de mestrado que venho desenvolvendo, que por sua

vez decorre também da experiência de pesquisa na graduação (Ferreira Oliveira, 2009) em que

analisei a dinâmica de um ritual conhecido como busca da visão – uma experiência de jejum por

dias em isolamento na mata – em contexto de alianças entre o Fogo Sagrado do Brasil, o Santo

Daime de Florianópolis e os Guarani de Biguaçu-SC. Portanto, essa reflexão surge da experiência

em campo desde 2006 em eventos de alianças desses grupos, que foi diversificando a medida que

essa rede foi expandindo-se nessa relação com indígenas amazônicos – como os kaxinawás e

yawanawas.

As alianças: Fogo Sagrado, Guarani, Santo Daime.

Passamos nesse momento a construção de um panorama geral sobre a formação das

alianças, sem, portanto, ater-nos aos detalhes que já foram tratados etnograficamente em outros

escritos (Ferreira Oliveira, 2009; Rose, 2010).

O primeiro evento a que se relaciona a formação das alianças é a aproximação entre o líder

do Fogo Sagrado no Brasil – que na época, final da década de 90, recém construia esse

movimento no país – e um guarani. Esse encontro2 deu-se em virtude da profissão desse líder,

médico, que se encontrou com o guarani em um hospital – relação essa que foi também mediada

pelo uso comum do tabaco em cachimbo, cada qual segundo sua “tradição”, o petynguá guarani e

e a shanupa (instrumento de origem Lakota que vem sendo incorporado por distintos grupos neo-

xamânicos). Este líder então é convidado a visitar a aldeia, em seu primeiro encontro com o líder

espiritual da aldeia é então reconhecido como a pessoa que estava sendo esperada a 13 anos, e

que viria a ajudar a levantar o povo guarani.

                                                                                                               2 Em certa ocasião quando falei em “aliança” com os Guarani, o líder do Fogo Sagrado ressaltou-me o termo “encontro”, considerando a concepção cosmológica do movimento de que o Fogo Sagrado já considera a participação de indígenas (sob a concepção universalista de “Caminho Vermelho”), neste caso os Guarani, questionando o nome de aliança (que se daria entre sistemas distintos, como, segundo essa liderança, no caso entre o Fogo Sagrado e o Santo Daime). Sobre essa concepção, nota-se a contrapartida Guarani, que é a afirmação de que o Fogo Sagrado já seria da tradição Guarani – questão essa é explorada por Rose (2010) em torno da expressão guarani Tata Ende Rekoy e sua relação com a cosmologia Guarani.

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O Fogo Sagrado, também referenciado como Caminho Vermelho3, trata-se de uma

instituição internacional nomeada de Igreja Nativa Americana do Fogo Sagrado de Itzachilatlan que

atribui seus vínculos de surgimento com a NAC – Native American Church4. O movimento surge no

início da década de 80, a partir de um mexicano – Aurélio Tekpankalli - que participando de

diversos rituais entre os Lakota nos Estados Unidos, passa a organizar essa instituição, a partir da

combinação de elementos de diversos contextos culturais (destacando-se suas influências meso-

americanas), formando um sistema de rituais inspirados em práticas indígenas norte-americanas.

A partir da década de 90 o Fogo Sagrado consolidou-se em diversos países do continente

americano e europeu, dispondo de um sistema de rituais5 padronizado, o que permite uma

circulação transnacional de sujeitos envolvidos em iniações e realização de rituais.

Em um processo de incorporação de elementos trazidos pelo Fogo Sagrado do Brasil –

como é o caso do temazcal (opydjere) e da ayahuasca – os Guarani passaram a afirmar que estes

estão sendo retomados e fazem parte da “tradição” e “cultura” Guarani. Nesse período o líder do

Fogo Sagrado e sua família viveram na aldeia por aproximadamente um ano, sendo este

influenciado desde sua experiência com os Guarani, como nos conhecimentos sobre os

benzimentos e rezas com petynguá, no aprendizado da língua guarani e na apreensão da

cosmologia, até elementos materiais que tornam possível a visualização da aliança do Fogo

Sagrado e os Guarani, como é o caso da opy (casa de reza Guarani) constituir-se como o espaço

cerimonial do Fogo Sagrado para o uso da ayahuasca - o opy - e as correpondências

estabelecidas entre a chanupa e o petynguá, o Grande Espírito e Nhanderú, Aho metakiase e

Agudjevete, as quatro direções, a lua e o djatchy associadas à menstruação – “estar na lua’’ - e

esta envolta de restrições6.

A participação dos Guarani nas alianças traz um aspecto bem interesssante (e que

retomaremos mais adiante na sua relação com o Santo Daime). Trata-se da emergência de uma

presença indígena efetiva nesse cenário em questão. O mesmo argumento pode ser extendido                                                                                                                

3   Caminho Vermelho – ou Red Path – é uma designação utilizada por diversos indígenas norte- americanos, indicando elementos comuns entre vários grupos étnicos, e é apropriada por não-indígenas como auto-nomeação por grupos em diversas localidades do mundo.  4 A Igreja Nativa Americana (NAC) é uma organização que reúne diversas nações indígenas – em sua maioria – e que, dentre outros motivos, foi criada como meio de respaldo para que determinadas práticas rituais indígenas norte-americanas, tais como o uso cerimonial do peiote (cacto Lophophora williamsii nativo da região do México) e a Dança do sol (jejuns que envolvem escarificações corporais) – pudessem ser realizados sem a perseguição de órgãos estatais norte-americanos 5 Trata-se resumidamente, de rituais inspirados em práticas Lakota: a chanupa (ou pipa sagrada) que se reza com tabaco como forma de elevação de rezos ao Grande Espírito; a busca da visão (uma experiência de dias de jejum na mata) essencial na formação de líderes; o temazcal (ou tenda do suor) que é uma espécie de sauna que se associa ao “útero da mãe terra”; a dança do sol, uma experiência de dança em jejum; e a cerimônia de medicina, em que se usa alguma “medicina”, tais como ayahuasca e outras plantas (de acordo com a localidade a que se refere o movimento).  6  Para uma reflexão complementar sobre essas analogias em relação a cosmovisão Guarani, ver Rose (2010).  

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para a recente presença de indigenas amazônicos nessa rede. Quer dizer, no fundamento de

movimentos urbanos como o Fogo Sagrado, residem afirmações de que praticam uma “tradição

ancestral” e têm acesso a um “conhecimento indígena” de “tempos imemoriais” – de fato, as

práticas e cosmologias envolvidas em fenômenos como este resultam de uma fusão de elementos

inspirados em práticas indígenas de diversas localidades, bem como se remetemo-nos a uma

historicidade da formação do Fogo Sagrado, podemos perceber que houveram atores indígenas

que constituem parte dessa trajetória.

No que concerne ao fenômeno etnográfico em questão, a aliança com os Guarani contribui

na construção de uma legitimidade do movimento – que tem muito de ideiais relacionados aos

“índios” – deslocando suas práticas de um imaginário sobre esses povos e suas “sabedorias”, do

plano das idéias para o plano da prática (embora esse imaginário, embebido de referenciais

ocidentais sobre os indígenas, não deixa de ser aplicado aos Guarani, mas que sim abrem campo

para transformações dessas construções através das relações entre guaranis e djuruas).

As “alianças” entre o Fogo Sagrado o Santo Daime e os Guarani têm seu início em 2002,

primeiramente com a aproximação do líder espiritual do Fogo Sagrado no Brasil e o dirigente do

Santo Daime em Florianópolis. Tal evento deu-se pela motivação de que na época o líder do Fogo

Sagrado buscava uma forma de conseguir “medicina” (ayahuasca), que até então vinha do

Equador através do Fogo Sagrado, especialmente porque estava sendo usada também pelos

Guarani de Biguaçu. Um daimista intermedia o encontro entre o lider do Fogo Sagrado e o

dirigente do Santo Daime, que logo resultou em uma cerimônia para poucas pessoas e os

primeiros acordos de “aliança” entre o Santo Daime e o Fogo Sagrado – que atualmente vão além

do impulso inicial relacionado ao fornecimento da ayahuasca, manifestando um interesse mútuo

em “conhecer as tradições”, resultando em alianças oficializadas no Céu do Mapiá (sede oficial do

CEFLURIS) e no México, contando com a presença das hierarquias máximas de cada linha,

Padrinho Alfredo e Aurélio Tekpankalli.

Essa é uma dimensão importante a ser pontuada: neste caso de relação entre o Fogo

Sagrado e Santo Daime se fez necessário oficializar (através de um documento) essa

aproximação, as eventuais trocas e fusões (que se nota também em sujeitos que pertecem a

ambos os grupos simultaneamente), especialmente considerando que o Santo Daime opera

nacionalmente segundo alguns fundamentos padronizados entre as diversas igrejas. Para uma

compreensão do que menciono, recorremos a narrativa empreendida no começo desse trabalho,

no que concerne a subtituição – temporária e contextual - da mesa central utilizada nos rituais do

Santo Daime (onde são dispostos o cruzeiro, fotos dos mestres, etc.), pelo chão de terra batido e o

fogo central, para os rituais do Fogo Sagrado (e mais recentemente, de kaxinawas). Esse ponto foi

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algo que provocou controvérsias inicialmente a partir de alguns daimistas da própria sede de

Florianópolis, o que envolvia inclusive o questionamento das diferenças no orçamento da

construção do salão da igreja (que foi feita com detalhes especialmente direcionados para a

circulação da fumaça). Isso pontua o caráter inovador desse fenômeno etnográfico com relação a

transformações que ocorrem no Santo Daime nessas alianças, o que podemos contrastar com

aspectos que em outros grupos daimistas cria-se um ambiente de questionamentos (como pelo

uso do tabaco, ou mesmo por questões outras, como os homens deixarem o cabelo crescer –

marcando, portanto, uma estética inspirada em indígenas norte-americanos, próprio do universo do

Fogo Sagrado – em contraste com a estética daimista de cabelos bem aparados).

As relações de aliança tornam-se mais evidentes nos eventos anuais do Fogo Sagrado –

Busca da Visão e Dança do Sol, realizados nas proximidades de Urubici -SC – e nos eventos

criados recentemente pelo Santo Daime (já em contexto de aliança) que vinculam os “feitios” com

rituais de distintas linhas espirituais que usam alguma “medicina” – eventos esses nomeados de

“Encontros com as medicinas da Mae Terra” que iniciaram em 2007. Neste contexto, os “feitios”

são eventos essenciais, em que daimistas, guaranis e membros do Fogo Sagrado produzem em

colaboração mútua a bebida que será utilizada por estes ao longo do ano. Vale, portanto, sugerir,

que as alianças incitam novas formas (e políticas) de circulação da bebida que se dá pelo

reconhecimento inter-grupal de parâmetros intra-grupais – ou seja, como no caso de homens ou

mulheres-medicina reconhecidos pelo Fogo Sagrado (para servir ayahuasca) são respaldados pelo

Santo Daime como aptos a ter acesso a esta bebida.

Essa aliança veio do astral “Essa aliança veio do astral, vem do astral, do astral superior. Ela é divina e consagra

as medicinas, essas flores tão finas do nosso Pai Criador (…) Evoluindo as quatro

portas do mundo, na expansão da doutrina nativa. A profecia da águia e do condor

vem do norte para o sul selando com todo o amor” (trechos do hino da aliança)

O Santo Daime situa sua origem em seu fundador, Raimundo Irineu Serra, negro e

seringueiro. Conta-se que Mestre Irineu entrou em contato com a bebida através de vegetalistas

(“ayahuasqueiros” peruanos). Retirado na mata teve uma “miração” (visão) com a Rainha da

Floresta (um ser que se menciona como sendo a Nossa Senhora da Conceição), com a mensagem

de que ele deveria fundar a doutrina do Império de Juramidam (Jesus Cristo), que foi desenvolvida

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no período entre 1935 a 1940 (idem: 2004)7. Após o falecimento de Mestre Irineu, o Santo Daime

divide-se em duas vertentes, o Alto Alto e o CEFLURIS – sendo este o mais conhecido, expandiu-

se pelo Brasil na década de 80 e refere-se a linha aqui em questao nesta pesquisa. O Cefluris

surge na decada de 60 e foi fundado pelo Sebastião Motta Mello – conhecido entre os adeptos

como Padrinho Sebastião – e, em contraponto ao Alto Santo, é referenciado como um sistema de

intensa incorporação de práticas e noções de diversas linhas espirituais (como o orientalismo,

concepções do universo new age, umbanda, etc).

É neste sentido que podemos compreender a aliança entre o Santo Daime e o Fogo Sagrado.

Nesse contexto, não só os daimistas passam a conduzir rituais - como o temazcal, a chanupa, a

cerimônia de medicina - mas a receber cantos que tematizam elementos cosmológicos próprios do

Fogo Sagrado (muito dos quais nas estruturas ritmicas e melódicas dos hinos), bem como nota-se

nos rezos que tematizam “visões” (de experiência de busca de visão) que contemplam esse

universo semântico. De fato, há de se destacar o uso de “medicinas” – ou plantas enteogênicas8 -

pelo Fogo Sagrado como um elo que torna este interessante para a prática daimista. Ou seja, o

Fogo Sagrado, apesar de constituir-se inicialmente nos Estados Unidos (e também sua estrutura

ritual) com base em práticas peioteras (remetida a indígenas norte-americanos), passa a incorporar

na “cerimônia de medicina” (também conhecida como “meia-lua” ou “quatro tabacos”) outras

medicinas9, de acordo com as configuracoes locais onde se desenvolve - o que se dá a partir da

expansão do movimento (à América do Sul, por exemplo, como no caso do primeiro contato do

lider Tekpankalli com a ayahuasca no Peru em torno de 1992). No Brasil, utiliza-se a ayahuasca

(devido a seu status legal no país, bem como a aliança com o Santo Daime). Por um lado, há de se

destacar, portanto, que o Fogo Sagrado não constitui sua prática e cosmologia centralizadas no

uso da ayahuasca10, mas antes possuem uma ampla gama de rituais, nos quais apenas um deles

utiliza-se enteógenos, e se fomos mencionar alguma planta de referência, é o tabaco. Por outro

                                                                                                               7 De seus rituais destacam-se os trabalhos de cura, concentração e os bailados, envoltos de uma simbologia militar, tais como a farda (vestimenta que expressa a adesão a doutrina), noções de “disciplina”, “merecimento” e uma “batalha no astral” travada pelo “exército de Juramidan” (Groisman, 1992; Goulart, 2003; MacRae, apud Labate, 2009). Compõem o panteão mítico: Deus, Jesus, Virgem Maria, santos católicos, seres (como sol, lua, estrela), entidades oriundas do universo afro-brasileiro, etc. (Labate, 2004:73-74). 8 O termo “enteógeno” é utilizado recorrentemente na literatura científica, com um dos intuitos de evitar as distorções do termo “alucinógeno”, ou de termos de julgamento moral que endossam um suposto estado dito “normal”, como a idéia de “alteração da” consciência. O termo é usado para se remeter ao contexto de uso sacramental, ou seja, dentro de concepções e práticas rituais que se considere um vínculo com o sagrado, e é definido a partir de sua derivação do grego antigo como “aquilo que leva a alguém a ter o divino dentro de si” (Carneiro; Goulart; Labate, 2006:33). 9 Neste artigo utilizo o termo “medicina” em seu sentido estrito do termo, ou seja, em referência a plantas que produzem estados modificados de consciência, os enteógenos. Sobre a questão dos rituais do Fogo Sagrado, sua simbologia, bem como aspectos históricos do movimento tratei detalhadamente na pesquisa que realizei na graduação – Ferreira Oliveira (2009) – e em artigos ou papers nos quais venho a aprofundar algumas reflexões. 10 Portanto, o Fogo Sagrado diferencia-se das ditas “religiões ayahuasqueiras” enquanto fenômeno, embora tal designação possa ser agenciada para fins políticos.    

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lado, segundo a visão corrente no Fogo Sagrado, a própria “meia-lua” em si já consideraria o uso

de diversas medicinas em rituais conduzidos em seu altar.

Essa possibilidade do uso de diversas plantas em um mesmo ritual aponta claramente o

caráter globalizado do movimento do Fogo Sagrado e suas pretensões de aliança entre diversos

grupos (mencionados enquanto “povos”) a partir do uso de suas medicinas (a partir do qual

também se constrói um discurso de caráter universal do movimento). O que fundamenta tal visão é

a “profecia da águia e do condor” (a qual se referencia sua origem aos indígenas norte-

americanos) – e que, resumidamente, trata-se do encontro entre a águia (vinda do Norte) e do

condor (do Sul) concretizando a união entre povos de distintas localidades do planeta,

especialmente do continente americano. É nesse sentido que encontramos o elo que faz sentido à

prática daimista – novamente em referência ao Cefluris – uma vez que estes entendem a “aliança”

como uma realização do direcionamento que Padrinho Sebastião passou a dar ao Santo Daime,

em termos de síntese de cosmologias e a prática de uso sacramental de outras plantas além da

ayahuasca.

Nas palavras de uma dirigente daimista durante os “rezos” com tabaco em uma cerimônia de

medicina no Santo Daime: “a aliança é do jeito que o Padrinho via sua doutrina. Só estamos seguindo o

rezo do padrinho (…) da união de linhas espirituais (…) essa aliança e toda

essa relação com os povos indígenas está no nosso coração, e veio do

Padrinho para nós, a gente é só mensageiro”.

No que concerne à aliança do Santo Daime com o Fogo Sagrado, não apenas ressalta-se a

relação de síntese com outras práticas espirituais a partir de um direcionamento do Padrinho

Sebastião, mas destaco aqui o que se comenta sobre a vida do Padrinho e sua abertura: “ele já

usava várias medicinas”- diz um daimista, exemplificando o contato que ele teve com o São Pedro

(cacto de região andina conhecido como wachuma) e a referência que faz em uns dos hinos da

doutrina. Portanto, a aliança do Fogo Sagrado com o Santo Daime cria um espaço formalizado no

próprio Santo Daime de Florianópolis – o ritual da meia-lua, a “cerimônia de medicina” – no qual

outras medicinas podem ser usadas (neste caso, sob a mesma direção de daimistas reconhecidos

como “homens ou mulheres-medicina”). Nesse sentido, o que seria um “rezo” do Padrinho do

Sebastião, passa a ser uma prática entre daimistas (se considerarmos que essa rede vem

diversificando o acesso a uma ampla gama de novas substâncias – como o rapé – que são

assimiladas em termos de relações de “aliança espiritual” (além do elo que é a ayahuasca). Um

exemplo disso seria os Encontros com as Medicinas da Mãe Terra, que agregam novos atores,

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novas substâncias, novas alianças. Vale destacar que apesar do Santo Daime incorporar diversos

elementos do universo “xamânico” a partir do Fogo Sagrado – destacam-se o uso de tabaco,

penas, peles de animais, sopros às quatro direções, etc. – esses se dão em rituais próprios do

Fogo Sagrado, na medida em que nos rituais daimistas esses elementos não são inseridos. Na

visão de um daimista, essa aliança viria a “preparar o Santo Daime para alianças com indíos, como

com os kaxinawá”.

Santo Daime e xamanismo O fenômeno etnográfico em questão incita pensar na relação entre o Santo

Daime e o xamanismo - algo que não é novo no debate antropológico.

Diversos estudos se põe a negociar – constituiria o Santo Daime um sistema

xamânico? – buscando elementos na doutrina, cosmologia e prática daimista, a fim de identificar

elementos que possibilitem classificá-lo enquanto xamânico. Assim, o “vôo extático do Padrinho

Sebastião” é comparado a luz da literatura clássica - como Eliade - ao vôo xamânico, e esse seria

o elemento que o caracterizaria enquanto tal (Cemin, apud Ferreira, 2008) ou no conteúdo

semântico dos hinos (cantos) são buscados elementos que possibilitem tal comparação, conforme

podemos perceber na revisão bibliográfica realizada por Ferreira (2008). Enquanto Silva (apud

Ferreira, 2008) destaca a experiência de morte e renascimento, traçando um paralelo com o

xamanismo, La Rocque Couto (2003) propõe pensar em termos de “iniciação xamânica” para

referir-se ao “rito de passagem” de Irineu para Mestre Irineu (em referência a seu isolamento na

mata quando recebe a revelação de sua missão com a doutrina através da “Rainha da floresta”). O

autor também propõe considerar o Santo Daime a partir da noção de “xamanismo coletivo”, em

que esta prática não estaria relacionada apenas aos especialistas, mas que todo daimista é um

“xamã em potencial”. Groisman (1999) parece tomar outros caminhos ao propor pensar que há

uma “práxis xamânica” ao identificar elementos do xamanismo a partir de um estudo etnográfico

pensado a luz da literatura antropológica, destacando Eliade e Harner (embora sem classificar o

Santo Daime como um sistema xamânico).

Com tantos estudos que enfocam essa questão, seria conveniente reflexionar que

eles aportam elementos na cosmologia ou pratica daimista para pensar o atual interesse de

daimistas – não apenas de Florianópolis – pelo “xamanismo”. Porém, não se trata de buscar

elementos da práxis daimista que permitam pensar em xamanismo, segundo critério antropológico

–pois isso remeteria a considerar o xamanismo enquanto uma categoria analítica que classifica

segundo um marco estabelecido . Ou seja, não se trata de um empreendimento do pesquisador

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definir o Santo Daime enquanto um movimento xamânico (ou não), mas pensar

antropologicamente a emergência do xamanismo enquanto “fenômeno dialógico” (Langdon, 2008)

em que os daimistas passam a se iniciar em práticas tidas como “xamânicas”, bem como,

contigencialmente, tecer discursos produzidos em torno da categoria “xamanismo” – evidenciando-

a como uma “categoria dialógica”(Langdon, 2008).

Quer dizer, há uma espécie de xamanização do Santo Daime produzido sob dois

viéses. Primeiramente enquanto projeto antropológico: diante da vasta literatura que busca

estabelecer o que seria “xamanismo” – dentre elas, algumas conflitantes, concomitantes ou

complementares entre si – incita um debate acadêmico e contribui na construção de

compreensões que não se fixam ao primeiro olhar (quer dizer, podemos perceber elementos

xamânicos em uma religião com uma cosmologia marcadamente cristã). Em um segundo viés, há

uma xamanização do Santo Daime a partir do próprio discurso nativo, que também busca

estabelecer, segundo parâmetros próprios (em diálogo direto ou não com a antropologia), em que

medida o Santo Daime é também ‘xamanismo”- o que podemos evidenciar, de forma extrema, em

uma afirmação pautada em que a bebida em si seria “xamânica”.

Onde podemos então localizar uma reflexão sobre o fenômeno etnográfico em questão?

De fato, nem cá nem lá, mas sem deixar de estar lá e cá. Ou seja, pensar o Santo Daime em

contexto de aliança com grupos – que não questionamos de compreendê-los como “xamânicos”,

com ou sem o prefixo “neo” – nos põe a refletir sobre uma suposta “xamanização do Santo Daime”

que se dá pelas duas vias (que são, sobretudo, artifícios heurísticos). E é no plano das

ambiguidades e múltiplos sentidos que se confere ao “xamanismo” – especialmente considerando

que o xamanismo enquanto categoria deixa de ser restrita aos antropológos para ser apropriada

por sujeitos de pesquisa – que essa discussão complexifica se considerarmos que o xamanismo

torna-se uma “categoria dialógica” de produção criativa.

Talvez poderíamos pensar em termos de uma “indianização do Santo Daime” para

apontar um fenômeno que considera que o Santo Daime tanto incorpora novas práticas, que

remetem ao universo “indígena” (seja por exemplo através do Fogo Sagrado ou dos próprios

indígenas, como os Kaxinawá), quanto atribui essa característica – ou, para usar uma expressão

local, essa “essência”- ao próprio Santo Daime, suas origens, em uma visão do ser também

indígena? Conflue-se, assim, pensar possíveis transformações da ordem cosmológica daimista e a

emergência de discursos que reinvindicam uma origem indígena na doutrina e vinculam suas

práticas ao universo xamânico, incorporando rituais, instrumentos, cantos, rezas, plantas,

categorias, discursos, éticas, estéticas.

Atualmente daimistas de Florianópolis vêm participando em iniciações rituais do Fogo

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Sagrado, em rituais Guarani (alguns sendo aprendizes da prática de benzimentos), bem como

agenciando rituais (como o temazcal, uma espécie de sauna) e práticas que emergem na relação

com o Fogo Sagrado, tal como o uso de tabaco (com cachimbos, seja a chanupa ou o petynguá) e

os kaxinawás, tais como a preparação e aplicação do rapé (um pó que tem como base tabaco e

cinzas), e técnicas relacionadas (como os três tipos de sopros bastante mencionados).

É nesse novo cenário de alianças que daimistas passam a dispor de práticas que os

localizam enquanto possíveis detentores de conhecimentos tidos como próprios de universos

“xamânicos”. Exemplos nesse sentido são as viagens que o dirigente daimista faz ao México ou a

África anualmente, localidades essas em que realiza temazcais ou cerimônias de medicinas (rituais

do Fogo Sagrado em que se usa alguma planta, como ayahuasca), atraindo, por sua vez, os

daimistas destas localidades aos rituais desses outros grupos, como o Fogo Sagrado, ou dos

kaxinawas.

Raízes da Terra Ainda neste sentido vale destacar um evento chamado Raíces de la Tierra, em que

participei no Chile em 2010. Trata-se de um evento organizado por um grupo neo-xamânico

internacional que realiza encontros anuais com a proposta de unir “abuelos” ou “taitas” – termos

que fazem referência aos xamãs – de distintas localidades do mundo para fazer “rezos” para a

Mãe Terra. Dentro os vários “taitas” – mapuches, aimaras, siona, coffan, etc. – os únicos “abuelos”

não-indígenas eram os dirigentes do Santo Daime em Florianópolis. Neste caso, a doutrina do

Santo Daime estava sendo considerada como “xamânica”, em especial pelo destaque internacional

relacionado ao uso da bebida, mas particularmente vale notar que esses líderes inseriam-se nas

atividades também pela prática do temazcal, a partir de seu envolvimento com o Fogo Sagrado,

que por sua vez é o principal alvo de criticas desse outro grupo neo-xamânico, Raíces de la Tierra.

Assim, se por um lado, ressalta-se a inserção de daimistas enquanto representantes de uma

tradição xamânica, por outro, sua presença não deixou de fazer emergir algumas controversias

para alguns participantes, não apenas por seu vínculo com o Fogo Sagrado, mas por sua

cosmologia ser marcadamente cristã, o que questionaria seu status de “abuelos” ou “taitas”.

Com respeito ao uso da ayahausca, um indígena amazônico, afirmando-se

enquanto sua legitimidade para o uso da bebida, enfatizava que o Santo Daime seria uma “tradição

imposta”, que careceria de conhecimentos sobre a bebida e seria dotada de um caráter inventivo.

De qualquer forma, trata-se de um desdobramento também das atividades de aliança uma vez que

a prática do temazcal era, por assim dizer, um ritual transversal (e que estabelecia conexão) entre

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os diversos convidados, dotando-se de um caráter universal. Também outro elemento da aliança

chama a atenção, que era o uso de vestimentas Huni kuin com os desenhos do kene por parte

desses dirigentes, sinalizando sua relação de proximidade com esses indígenas.

Huni Kuin e a “cultura”

Os Kaxinawá – auto-denominados Huni Kuin “gente verdadeira” - pertencem à família

lingüística Pano e habitam a floresta amazônica na região fronteiriça entre Brasil e Peru,

distribuindo-se em várias aldeias, totalizando em torno de 7.000 pessoas. Os Kaxinawá (assim

como outros grupos com o sufixo nawa) são referenciados pelo seu fascínio pela alteridade (em

que se destacam as relações jocosas, por exemplo em relação ao brancos) (Lagrou, 1991).

Recentemente percebe-se um cenário de “movimento pró-cultura” entre os Kaxinawá, em que

“resgate cultural” vêm emergindo como categoria fundamental na objetificação da cultura (Weber,

2006 apud Mc Callum, 2007) - como vem ocorrendo com diversos grupos indígenas. Nesse sentido

podemos destacar suas parcerias com instituições internacionais de financiamento (tais como as

ONGs), a formação de jovens estudantes nas escolas Kaxinawá, a produção de vídeos, e, no

concernente ao interesse mais imediato dessa pesquisa, a circulação de jovens que atuam como

agentes relacionados à espiritualidade em relação a demandas urbanas a nível internacional.11

O discurso de revitalização cultural por parte desses indígenas foi pontuada por Lagrou (1991),

com respeito a auto-afirmação destes como ‘índios’ e a necessidade de resgate das festas,

medicina, língua e arte de tecelagem. Weber (2006:105, apud Yano, 2009) dedica especial

atenção ao fortalecimento das “identidades étnicas” através do incentivo à transmissão de cantos,

danças, mitos, etc. compreendidos enquanto “manifestações de cultura tradicional”. Segundo a

autora, há um movimento crescente nesse sentido, onde passa a notar-se um maior espaço para o

mariri, um aumento das sessões de cipó e uma proliferação de cantores (enquanto anteriormente

predominavam rituais acompanhados por fitas de gravador). (Weber, 2006:150, apud Yano, idem).

Com base na literatura antropológica, Yano pontua que o movimento de valorização cultural

remete ao processo de escolarização (por volta de 1977), período esse em que a T.I do Jordão já

havia sido delimitada e suas lideranças reuniram grande quantidade de borracha e venderam-na

sem a mediação dos patrões seringalistas. Nesse sentido, o resgate da cultura dá-se pela iniciativa

                                                                                                               11   Esses fenômenos articulam-se em grande escala (como, por exemplo, nota-se fenômenos similares entre os Ashaninka, Yawanawa, etc. e expressam-se claramente em políticas acreanas de “turismo vivencial” ou etno-turismo dedicados a sujeitos de segmentos urbanos interessados em participar em rituais xamânicos nas aldeias amazônicas).  

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marcante de professores e lideranças que após viajarem e receberem formação em cursos, trazem

essas idéias para a aldeia a fim de angariar projetos para a comunidade.

A emergencia da “cultura” há de ser compreendida, portanto, em relação a esses processos

políticos mencionados, especialmente pelo período de demarcação de terras, e, como pontua Tie

Yano, sobretudo pela “(…) convergência dos movimentos em defesa dos direitos dos seringueiros,

de um lado, e dos indígenas, por outro, estes últimos assistidos por organizações religiosas e não-

governamentais(…)”(idem :35).

Este período é mencionado por Aquino e Iglesias (2002, apud, Yano, idem) como o “tempo

dos direitos”, em referência a essa época em que os Kaxinawá procuraram organizar-se

politicamente, tornando-se livre da exploração dos patrões seringalistas em tempos anteriores e

fortalecendo sua autonomia quanto a produção e comercialização da borracha. Considerando

elaborações de Terri Aquino e Iglesias (2002) ; e Iglesias (2010), sobre o tempo do cativeiro

(escravidão nos seringuais) e tempo dos direitos (de legitimação de seus territórios) – podemos

sugerir assim um viés de análise do “tempo da cultura”12, que evidencia esses tempos em termos

de três gerações subseqüentes: Sueiro, seu filho atual cacique geral Huni Kuin, e os filhos destes

(que estão vivendo nos centros urbanos na “missão de resgate cultural”).

Cabe sugerir, portanto, que os Kaxinawa experienciam atualmente o “tempo da cultura”, ou

seja, da “cultura”. É nesse sentido que podemos compreender uma afirmação de uma liderança

Kaxinawa quando conversavamos no Rio Tarauacá:

“começou a renascer a cultura, os usos em geral, o ritual, a dança, os costumes(...)

antes a cultura tava ficando no espaço, ninguém correspondia. Acabou por causa da

correria. (...) as medicina da floresta tava deixado, esquecido. Antes da conquista da

terra, não podia produzir nossa cultura. Os tecidos, não tinha como fazer. Seringalista

era dono da terra, nós indígenas não podia fazer nada para vocês, só para ele. (...)

Por isso mudou muito, depois da conquista da terra, tá tendo uma resgatamento da

cultura tradicional”.

Xina Bena: novo tempo. A utilizacao do termo “cultura” por indígenas vem sendo utilizada amplamente em

diversos contextos. Sahlins (1997) propõe pensar em termos de indigenização da modernidade em

contraponto a noções de aculturação, enfatizando ainda que enquanto os antropólogos consideram                                                                                                                

12 Essa colocação parte do diálogo que tive com Edviges Ioris com relação a minha experiência em campo com os eventos realizados em Florianópolis em torno do tema “cultura Huni Kuin” e a referência de Ioris sobre os escritos de Aquino e Iglesias com relação ao “tempo dos direitos”.  

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o termo problemático, os indígenas estao utilizando-se deles como ferramenta para conquistas

politicas e reinvindicações de afirmação étnica. Em contexto do fenomeno etnográfico aqui

considerado, algo semelhante pode-se afirmar com relação aos termos “tradição” e “xamanismo”.

Carneiro da Cunha (2009) em conssonância com as observaçõs de Sahlins, pontua que

“cultura” e cultura não pertecem ao mesmo universo de discurso, sendo a “cultura” uma “cultura

para si” (não a “cultura em si”, a cultura) que pode ser exibida performaticamente. Neste caso,

expressões recorrentes entre os kaxinawás em centros urbanos - “apresentar a cultura” ou

“mostrar a cultura” – evidenciam o carater performático da “cultura” e dialógico da cultura.

Nesse sentido vale uma breve menção a um evento recente em que participei no rio

Tarauacá-AC, promovido por kaxinawas do Jordão, chamado “Festival Xina Bena” (Festival “novo

tempo”). Considera-se que esse é o primeiro festival desse caráter, aberto a participação – em

geral mediante pagamento - dos nawa (estes, por sua vez, relacionados aos kaxinawas inseridos

em circuitos urbanos, principalmente no Rio de Janeiro, como também em Florianópolis, como é

meu caso). O evento contava com uma programação – elaborada, em grande parte por um

kaxinawá que vive no Rio de Janeiro, e seus colaboradores nawa conhecidos como “guardiões

Huni Kuin” – que contava com danças, com brincadeiras de mariri, pescaria, rituais de nixi pae pela

noite e visitas a samauma com pajé aplicando rapé.

Ao redor da árvore da samauma, reuniam-se diversos homens huni kuin e os demais

nawa, dentre eles, uma equipe que produzia um documentário. “Tira a bota”- orientava o camera a

um pajé, para que ficasse descalso na gravação de uma cena para o documentário. “Então vocês

vem de lá, caminhando e cantando”- orienta o câmera. “Haux haux haux haux haux!”- pronunciam

alguns kaxinawa entrando pelo caminho na mata.

Enquanto isso eu conversava com um representante da ASKARJ13, que me falava sobre

a samauma, uma arvore de enorme porte. Segundo ele, antigamente os huni kuin viviam dentro

dela em “quartos” quando se escondiam dos nawa. A árvore teria por um tempo sido esquecida, e

hoje está sendo valorizada novamente, onde se reúnem para tomar uni, aplicar rapé, e fazer

cantoria. Segundo que pude escutar de vários Huni Kuin, nessa árvore vivem muito espíritos

poderosos, espíritos de ancestrais – o poder da árvore parece ser associada ao seu tamanho e

sua altura.

Caminhamos de volta ao acampamento central. Logo reunimos um grupo para voltar a

samauma e rezar o petynguá de um participante do Fogo Sagrado que foi comigo para o Acre e

mantem relações estreitas com os Guarani de Biguaçu. A noticia se espalha e um grupo de pajés –

txana (cantores) – direcionam-se juntamente conosco à samauma. Rezamos o petynguá em roda,                                                                                                                

13 Associação dos Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão (ASKARJ).

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dentro da samauma, e logo um deles pede que outro comece a cantar. São vários os cantos,

dentre eles um que fala da samauma (de fato só soube depois porque perguntei).

Em seguida um kaxinawa começa a contar que os brancos chegaram e os huni kuin se

esconderam na mata, abrigando-se na samauma. Segundo ele, a samauma é um “grande pajé”, é

o “chefe”, é o “governo federal”. Chegaram então os madeireiro, querendo acabar com a floresta e

fazer dinheiro. Quase acaba a floresta. “O pajé ficou triste”. Conta então que o pajé, que estava na

samauma, fez uma reza forte e uma cantoria, e conseguiu mandar eles embora e manter a

floresta. O pajé ficou dançando em cima da samauma. Em seguida ele fala longamente que os

huni kuin cuidam da floresta, que o lugar onde eles vivem, e se é preciso corta algo, eles fazem

com muito cuidado: “e fala que nós não cuidamo? Essa é a nossa casa. O índio sabe cuidar da

floresta”.

“É do pajé”

Nesse caso etnográfico acima mencionado, percebe-se como o “pajé” é evocado como

emblema de proteção da floresta em um argumento de que os indígenas tem uma atitude

ecológica. Em geral, no festival – que contava com uma “comissão de pajés” – o termo pajé era

constantemente remetido em meio a falas em hatxa kuin. Não há como negar, o pajé está em alta.

De maneira geral, a presença de um “pajé” em um ritual nos meios urbanos, é algo que faz valer

pagar mais caro. Vale nesse sentido ressaltar o valor econômico que agrega aos produtos. “Esse

rapé é do pajé. É do pajé. É forte” – dizia uma huni kuin, justificando o preço do rapé. Já em outra

ocasião, na cidade de Jordão, um kaxinawa menciona estar com um rapé que “é do pajé”. “é do

pajé?” – tento puxar assunto para perceber como se concebe algo que “é do pajé”. Nesse caso,

mais do que estar associada a algum sujeito especifico, o paje constituia-se como um qualificativo

generico que aponta para a potencia da substancia: “é forte, é bom!”. Como bem pontuou Carneiro

da Cunha, o termo pajé tornou-se corrente na lingua franca dos movimentos sociais indígenas

(Carneiro da Cunha, 2009:341). Nesse caso do festival, e em uma concepção mais ampla, nos

meios urbanos de eventos relacionados a espiritualidade, o “pajé” parece congregar uma ampla

gama de elementos. Depois do festival, me sento com um grupo de mulheres Huni kuin, que logo

chegam com seus produtos para que eu compre. Uma delas coloca uma pequena vasilha de

cerâmica em formato de jabuti na minha mão: “compra”. Pergunto: “o que é?”. Ela responde: “É do

pajé”. Copo do “pajé”. Dou uma leve risada, elas também. Coloco junto com a pulseira que havia

comprado. Franzo a testa – como quem diz que percebe a jogada – e elas comecam a rir. “É do

pajé?”- pergunto. Não – responde uma delas – “é pra tomá café”.

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Haux!! Dai-me medicina nixi pae. Desses kaxinawás que vêm estabelecendo “alianças”, destacam-se atualmente dois

irmãos, filhos do cacique geral dos Huni Kuin, e netos de Sueiro, que foi uma importante liderança

na conquista da demarcação do território. Desde 2003 esses jovens vivem nos centros urbanos e passam a agenciar rituais de

nixipae em diversas cidades do Brasil e da Europa. Um deles conta que saiu da aldeia do Rio

Jordão para estudar português e informática na cidade, onde assumiu importantes posições de

liderança política, tais como “representante do povo Huni Kuin” em São Paulo. Sua ida a cidade é

por ele justificada para uma preparação para o futuro quando será o cacique – note-se, portanto, a

importância de um conhecimento do global para o gerenciamento local.

Segundo ele, os rituais com nixi pae começou a realizar após um tempo estando na

cidade – questão essa relacionada a um status generalizado em que se associa indígenas a figura

do pajé. Nota-se, portanto, um deslocamento hierárquico pelo qual passam esses jovens, pois na

cidade seu reconhecimento enquanto “pajé” dá-se em associações que não correspondem aos

processos usuais na aldeia, e mais bem valem-se de aspectos comuns a diversos homens

kaxinawá. Esses irmãos viajam por diversas cidades “divulgando sua cultura ancestral” fazendo

rituais de nixipae, aplicando rapé e kambô (“vacina do sapo”) bem como “divulgando” a “cultura

kaxinawa” em escolas e universidades.

No caso das alianças no sul do Brasil, uma nova modalidade de encontro – o “evento

kaxinawá” – com a vinda de kaxinawás do Rio Jordão, indica uma programação voltada à rede de

alianças – com ritual de nixi pae, oficina de tecelagem, rapé e canto (dimensão que percebo ser a

mais comentada quando se refere à “força”, a “energia”, ao “poder” das cerimônias kaxinawás).

Outro evento que se realizou também em outubro de 2010, com a participação dos kaxinawá é a II

Mostra de Arte Índígena, realizada por doutorandos e um professor do PPGAS-UFSC

(intermediada pelo dirigente do Santo Daime), que contou com oficinas de pintura e tecelagem.

Entretanto – como era de se supor – não havia referências quanto ao nixi pae. Haveria aí distintos

campos de diálogo em uma objetivação da “cultura” Kaxinawá? Em ambos os eventos escutava-se

a menção ao “intercâmbio cultural”. Segundo um dos kaxinawas, eram eventos muito diferentes: na

UFSC, tratava-se de “apresentar e demonstrar a cultura”, enquanto no Santo Daime, está

relacionado com “aliança” e “espiritualidade”.

Mas o que se pode destacar como aspecto transformativo da presença dos kaxinawas

nas chamadas alianças?

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Quanto a presença dos Guarani ressaltei o caráter de certa indianidade agregada às

alianças. Entretanto, vale ressaltar que em geral estes mantêm uma atitude reservada em relação

aos não-indígenas – chamados de djuruá – a não ser que tenham uma relação de afinidade mais

estabelecida.14 Em contraste, os kaxinawas parecem dominar de maneira mais expressiva as

formas de comunicação usual aos não-indígenas, desde facilmente puxarem uma conversa, até

mesmo o formato em que transmitem alguns conhecimentos, como no caso das oficinas –

expressando, portanto, a compreensão que têm de como são os modos de produção de

conhecimento esperados por não-indígenas. Não exitam em contar mitos durante as oficinas,

proferir frases em hatxa kuin (mesmo sem a presença de outro Huni kuin) ou remeter

constantemente à jiboia, enriquecendo os eventos de imaginários sobre a floresta. Por outro lado,

em seus rituais, pode-se observar como um destes kaxinawas usa uma lanterna para ler o que

canta – evidenciando seu processo de aprendizagem já em fusão com o uso do livro e o

computador – bem como são presentes procedimentos rituais próprios de dinâmicas comuns ao

universo da nova era, como ao final do ritual, fazer passar um bastão ou uma pena (marcando no

círculo quem “está com a palavra”), o que leva a uma verbalização da experiência ritual,

geralmente associadas a processos de “transformação” do “ser” e sua relação com o uso da

ayahuasca e/ou do rapé.

Atualmente alguns daimistas dedicam-se a preparação e/ou “aplicação” do rapé,

ganhando inclusive o caráter de prática cotidiana. E essa é a dimensão que gostaria de destacar.

Os kaxinawás inseriram o rapé nas alianças de forma expressiva - não que não fosse conhecido

ou usado – trazendo não só a substância mas evidenciando um regime de trasmissão de

conhecimento em construção nessa relacao com os nawa. Quer dizer, os modos de preparar, as

plantas utilizadas, como aplicar, como receber, etc. são práticas que são compartilhadas nessa

rede, entretando nem todas disponíveis em formato de oficina, mas muitos aprofundamentos sobre

esse conhecimento dá-se nas proximidades estabelecidas entre os sujeitos em relações de

afinidade e de caráter informal. Esses conhecimentos que são trasmitidos instauram relações de

“professor/aluno”- para usar uma expressões correntemente usadas por esses indígenas nesse

contexto.

Essas relações mantém-se durante períodos em que os kaxinawás não estão em

Florianópolis, o que se nota particularmente por comentários daqueles que receberam alguma

                                                                                                               14  É neste sentido que podemos pontuar um contraste entre a inserção dos guarani e dos kaxinawa nesse universo de relações de alianças. Primeiramente, considerar o panorama de que diversos não-indígenas vão a esses rituais que têm em comum o uso da ayahuasca. Entre os Guarani, atualmente a participação de não-indígenas nesses eventos é restrita, ou seja, não se divulga amplamente os eventos (que sempre acontecem na aldeia), senão que através de emails já selecionados de acordo com críterios de proximidade (ainda que seja necessário o pagamento). Já os rituais conduzidos por kaxinawás são direcionados a um grande público, e a única condição de participação é o pagamento.  

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cinza ou tabaco pelo correio. Um daimista, ao dispor de uma grande quantidade dos elementos

necessários para a preparação, convidava seu amigo: “a gente faz e daí tu já coloca o teu rezo na

medicina”.15 Daqueles que se relacionam com maior proximidade com os kaxinawás, nota-se como

passam a assumir papéis relacionados a aplicação do rapé – como são instruídos a fazer

aplicações de “cura” naqueles que têm sinusite – e passa-se a construir modos de fazer, tal como:

não oferecer o rapé – ou seja, é preferível ser solicitado para que se aplique, não cobrar pelo rapé

(no caso, o rapé dado, não apenas o aplicado), e demais concepções decorrentes, como a

importância dada a pessoa que aplicará o rapé. Como me disse um daimista: “quando um

kaxinawá aplica, é mais especial. É diferente a energia”. Alguns kaxinawás, por sua vez,

comercializam o rapé, o tabaco (valorizado por ser orgânico) e as “cinzas kaxinawá” utilizadas para

o preparo de um bom (e genuíno) rapé.

Sintetizando, a presença de indígenas amazônicos vem agregar de forma expressiva a

possibilidade de circulação de conhecimento xamânicos – especialmente através de substâncias

(ayahuasca, rapé, etc.) - diretamente relacionados ao povos indígenas do Brasil16. Esta inserção

dá-se com tal intensidade em especial devido às substâncias, como a ayahuasca e o rapé, e

introduz elementos relacionados a pajelança amazônica nesse contexto das alianças no sul do

Brasil. Quer dizer, grande parte desses movimentos aos quais kaxinawas (e mais recentemente os

yawanawas) recorrem para construir sua “cultura” e “espiritualidade” nesse circuito de trocas (muito

das quais mediadas também pelo dinheiro) referem-se, além do Santo Daime, ao que

genericamente denomina-se de Caminho Vermelho – ou seja, uma gama ampla de grupos (dentre

eles o Fogo Sagrado) que baseiam seus rituais, elementos cosmológicos, etc. em conhecimentos

inspirados em práticas indígenas norte-americanas (geralmente construídos nesse imaginário

sobre esses povos indígenas que se dá mediante transmissao de práticas através de líderes não-

indígenas que tiveram experiência com indígenas).

Percebe-se, portanto, como diversos indígenas encontram nesses segmentos urbanos,

um espaço de interlocução e transformação do passado, reinventando suas tradições e tecendo

discursos sobre sua “cultura”, sua "tradição" e seu “xamanismo”. Ou seja, há um ponto de encontro

entre a demanda indígena de valorização da “cultura” e do “indígena” (expressa muitas vezes em

re-invenções de práticas dos “antigos”, de “costumes esquecidos”), e os discursos urbanos que

reivindicam uma “essência” dos diversos povos indígenas, tomando estes como depositários de

                                                                                                               15 Note-se, portanto, que as categorias rezo e medicina – centrais na cosmologia do Fogo Sagrado - tornaram-se expressão comum entre daimistas, guaranis, kaxinawas, em contexto de diálogos entre sujeitos desses grupos. Entretanto, em outros contextos, tais expressões são também conhecidas em grupos que tenham práticas similares aos do Fogo Sagrado. 16 Considerando, claro, o que mencionei brevemente sobre a forma diferenciada de interesses dos guarani e kaxinawas em relacao aos não-indígenas.  

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uma “sabedoria ancestral” de capacidades curativas (muito dos quais estariam em um processo de

“recordar” a “tradição”). É nesse limiar em que as “tradições” são re-inventadas, colocando em

tensão dicotomias - como (neo) xamanismo ou xamanismo urbano/xamanismo tradicional,

indígena/ não- indígena, sagrado/profano, religião/consumo, nós/eles, moderno/tradicional.

Xina Bena. Estamos em novos tempos. A figura do indígena é ressaltada, valorizada

globalmente, sugerindo novos atores em uma possível posição hierárquica na transmissão de

conhecimentos. Nas palavras de um kaxinawa “os txai nawa tem muito o que aprender com nós.

(…) Dono é a própria floresta, nós não somos donos”.

Huni Kuin, os originários da floresta

A presença de kaxinawas deu-se primeiramente entre esses grupos das “alianças” através

de um desses jovens que vivem em centros urbanos, que esporadicamente realizava ritual ou

oficina de rapé em um espaço holístico de propriedade de uma mulher-medicina do Fogo Sagrado

em Florianópolis. Em um dos rituais que estava por realizar, ficou sem o nixi pae, ocasião essa que

o levou ao Santo Daime – dimensão essa novamente que ressalta a posição do Santo Daime

nessas alianças em relação à produção da bebida como elo de contato e trocas com outros grupos

(como foi o caso com o Fogo Sagrado e os Guarani também).

Atualmente destacam-se as relações estabelecidas entre jovens kaxinawás e os daimistas

que passam a investir em um discurso que referência esses indígenas como os representantes do

uso original da ayahuasca. Essa aliança com kaxinawas tomou força a partir dos eventos

realizados pelo Santo Daime (já em sua relação de aliança com o Fogo Sagrado) que combinam o

feitio (preparo) da bebida com rituais de distintas “tradições” que usam ayahuasca ou algum outro

enteógeno. A primeira vinda de uma “comitiva Kaxinawa” ao Santo Daime deu-se em virtude que

um kaxinawa, fardado na doutrina17, tinha intenção de instaurar um ponto de daime dentro de uma

aldeia. Trata-se, talvez, do que Labate (2009) sugere pensar em termos de uma “daiminização da

ayahuasca”. Ao final, esse empreendimento não deu certo, porém foi o início de uma relação

intesificada entre esses indígenas e o Santo Daime, mais recentemente expressa em convênios

assinados pelas lideranças de cada grupo.

Assim, a primeira vinda de três kaxinawás ao Santo Daime foi intermediada por um daimista

do Rio de Janeiro e deu-se em 2008 em um desses eventos mencionados acima que recebem o

nome de Encontro com as Medicinas da Mãe Terra. Interessante faz-se notar que esse daimista –

                                                                                                               17 Este kaxinawa destacava-se por sua vestimenta branca, um grande crucifixo que carregada no peito, as cantigas que tocava no violão durante o ritual, bem como seu discurso permeado por noções e expressões do universo daimista.

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segundo o pouco que investiguei sobre o tema – teria sido o único nawa (pelo menos em contexto

de alianças nas cidades) a entrar em processo de dieta mas sem concluí-lo (segundo o que me

contou um kaxinawa que o acompanhou, teria ficado apenas dois dias, enquanto o processo pode

demorar meses ou mesmo anos). Faço esse breve parênteses pois esse panorama – da ausência

de nawas que estejam realizando dietas com kaxinawás – contrasta com o que eu considero uma

das dimensões que os Yawanawa vem a inovar em relação a essas alianças com nawa, na medida

em que há vários casos, alguns ainda em processo, dessa relação de iniciação na pagelança.18

Voltando ao evento no Santo Daime. Nessa ocasião, logo passou a circular uma nova

versão do mito de origem do Santo Daime. Ou seja, não apenas passa-se a referenciar os

Kaxinawa enquanto os originários do uso da ayahuasca – e, portanto, ser ressaltado o encontro do

Santo Daime com essa “fonte” essa “origem”- mas atribui-se uma relação entre os Kaxinawa e o

surgimento do Santo Daime. Nesse sentido, há uma idéia comum entre daimistas de Florianópolis,

de que Mestre Irineu – fundador da doutrina – teria conhecido esta bebida através de um

kaxinawa.

Conforme notado por Ferreira (2008), não há um consenso na literatura antropológica sobre

com quem Mestre Irineu haveria tomado ayahuasca (havendo referências que indicam que seria

um “índio peruano”). Essa incerteza sobre o personagem que seria vinculado ao surgimento da

doutrina ao oferecer ayahuasca para Mestre Irineu, faz-se bastante adequada para que o mito

entre em movimento segundo configurações cosmológicas locais, como é o caso dessas relações

entre o Santo daime e os kaxinawas em Florianópolis. Contam alguns daimistas que foram os

kaxinawá que fizeram essa afirmação.

Não demorou muito para surgir o nome (mas já em contexto carioca) do kaxinawa que

conheceu o Mestre Irineu – o velho Sueiro - o que foi publicado em uma reportagem “xamãs

urbanos” na revista Alfa – gerando controvérsias devido a um desacordo dessa versão por parte de

daimistas do Rio de Janeiro (que por sua vez mantêm aliança espiritual com os Yawanawa da

aldeia Nova Esperança no Acre). Segundo um kaxinawa, o jornalista haveria inventado isso. O

jornalista então retratou-se em seu blog, com uma correção que leva a frase no sentido: “versão

que os daimistas não concordam”. Parênteses: daimistas do Rio de Janeiro. Conversando com

este kaxinawá sobre o tema, pergunto se já havia escutado algo parecido no Jordão, de um

encontro entre Mestre Irineu e um Kaxinawa. Ele dá um sorriso e diz que não, que o que se diz no

Jordão é que os Kaxinawa foram os primeiros a conhecer a ayahausca19.

                                                                                                               18   Embora propus remeter-me à questão dos Yawanawa no sul do Brasil, abstenho-me neste momento de tal empreendimento por motivos de enfoque do debate.  19 Nota-se, portanto, uma forma de construção de legitimidade em torno da noção de origem associada à prática. Essa afirmação deste kaxinawa não exclui a possibilidade de considerar a afirmação de Carneiro de Cunha (2009) sobre

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Com a aproximação dos kaxinawas nos eventos de aliança no sul do Brasil, nota-se que o

Santo Daime passou a conferir um maior destaque a esses indígenas, em contraponto às suas

relações com os Guarani. Podemos considerar uma possível atração das marcas da indianidade –

pinturas, roupas, cocares, seus famosos cantos – em geral atribuídas a indígenas amazônicos ou

xinguanos no imaginário ocidental (e que por vezes se constituem como mecanismos de

hierarquização e exotização). Por outro lado, o que quero ressaltar, é uma autoridade de que são

revestidos os kaxinawa em relação a um universo simbólico central para o Santo Daime: eles são

detentores de um conhecimento sobre o daime – bebida que se constitui como pilar da doutrina - e

sobre a “floresta”, aspecto também elementar da doutrina. Como disse o cacique geral Huni Kuin

em um ritual de nixi pae em Florianópolis: “daime, nixi pae, medicina, ayahuasca, é uma só. É um

deus só. (...) e nesse conhecimento dessa bebida, nós estamos pelo menos 1.500 anos na frente”.

Eis que a jibóia ganha um novo status, é a “Rainha da floresta”, o ser que em uma

aparição na mata revelou a doutrina do Santo Daime.

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                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     uma tendência amazônica, como é no caso dos kaxinawa em relação ao nixi pae (segundo Keifenheim) e a atribuição desse empréstimo cultural aos Yaminawa, que denotaria um outro em posição genérica.

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