dados de copyrightle-livros.com/wp-content/uploads/2018/08/o-papai-é-pop-marcos... · ensinam a...
TRANSCRIPT
DADOS DE COPYRIGHT
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudosacadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.
É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisqueruso comercial do presente conteúdo
Sobre nós:
O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico epropriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que oconhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquerpessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Folh a de ros to
© 2015 Marcos Piangers EditorGustavo Guertler Coordenação editorialFernanda Fedrizzi RevisãoMônica Ballejo Canto Capa e projeto gráficoCelso Orlandin Jr. Produção de ebookS2 Books E-ISBN: 978-85-8174-244-1
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.
[2015]Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA BELAS-LETRAS LTDA.Rua Coronel Camisão, 167Cep: 95020-420 – Caxias do Sul – RSFone: (54) 3025.3888 – www.belasletras.com.br
Pre fá cio
O Piangers é me io pa re cido com o Ja ck Nichols on . Tem as mes mas
s ob ran ce lh as em forma de ga ivota voando no horizon te e o mes mo
s orris o debochado de quem es tá s emp re s e d ive rtin do com a
es tup id ez a lh e ia .
Acho, in clu s ive , o s egu in te : o Pia nge rs e s tá mes mo s emp re s e
d ive rtin do com a e s tup id ez a lh e ia . Sob re tudo a p ie gu ice a lh e ia . Não
s e ja p ie gas pe rto do Pia nge rs . Ele va i goza r d e você . Ou , no mín imo,
le van ta rá a s a s as daque la s s ob ran ce lh as e os can tos dos lá b ios de
Ja ck e s eus olhos re lampe ja rão um olh a r ma licios o e você pens a rá :
e s s e ca ra e s tá s e d ive rtin do com a minha e s tup id ez. E, s im, ra paz,
s e rá ve rdade . Não dá pa ra s e r e s túp ido pe rto do Pia nge rs .
Um cama rada a s s im, tão Bukows ki, tão Fan te , tão Vonnegu t,
q ue , a liá s , é o e s critor p re fe rido do Pia nge rs , ta n to que , ao en tra r no
texto de le , você s en te a manha ame ricana do Vonnegu t de e s cre ve r,
a manha do coloqu ia lis mo s in ce ro e des conce rtan temente d ire to, o
coloqu ia lis mo genu íno de quem con ta uma h is tória com as vís ce ra s ,
e n tão, como eu d izia , um cama rada a s s im tão... e n fim, tão Ja ck
Nichols on , um cama rada a s s im você a cha que e le é um rebe ld e .
E ma is uma vez você e s tá ce rto. Ele é . Mas como Bukows ki,
como Fan te , como Vonnegu t e como Ja ck, Pia nge rs não s e re be la por
pe rve rs ão, e s im con tra a p e rve rs ão. Ele n ão ans e ia p e la ju s tiça ,
a n s e ia p e la bondade . É a fa lta d e bondade no mundo que de ixa
Pia nge rs re voltado. Ou a bondade fa ls a , a bondade in te re s s e ira , a
bondade ... p ie gas .
E a í é q ue e s tá ! No be lo livro que e s cre veu , O Papai é Pop ,
Piange rs cons egue exe rcita r s ua bondade in a ta , s em jama is s e r
p ie gas . Papa i Pia nge rs é pop , s em dúvid a que é , mas também é
s u rp reenden temente doce , p a ra quem o ouve b la s fema r no Pre tin ho
Bás ico, o p rog rama de ma ior s u ces s o da h is tória d a Rád io Atlâ n tid a .
O le itor a ten to de Zero Hora conhece rá um tan to do livro, q ue é
uma cole tânea de crôn ica s que Pia nge rs e s cre veu no jorna l s ob re a
vid a que pa rtilh a com s uas duas filh a s e , a té , s ob re o pa i q ue não
pa rtilh ou a vid a com e le . Mas nem o ma is a ten to le itor conhece rá de
an temão o que s ó s e cons egue ve r no con ju n to. O Papai é Pop é um
livro de texto le ve e d e emoções p rofundas . Como é o Pia nge rs . Você
va i s orrir e rir ao le r e s te livro. E pode , também, chora r. Mas a í,
cu id ado, n ão o fa ça na fre n te do Pia nge rs , e le pode a cha r p ie gas .
Nin guém pode s e r p ie gas pe rto do Pia nge rs .
David Coimb ra, jornalista
Sumá rio
Capa
Mídias Sociais
Folha de rosto
Créditos
Prefácio
Introdução
Então você vai ser pai
Guarde os presentes
Ser pai é fazer contas
Período de adaptação
Dando o troco nas crianças
Os melhores pais do mundo
Brincadeira de criança
Uma tarde no Shopping
Chocolate
Doce presente
Diamantes
Excesso de culpa na bagagem
Tá de babá?
Os terríveis de dois anos
Minha filha não tem nada contra gays
Anita e a éclair
Quando eu for velho
Máfia no divã
As histórias que me contam
Dicionário infantil da língua portuguesa - Edição revista e atualizada
Situação complicadíssima
A revolta dos colchões
Só isso?
Nossa melhor vista
A religião da minha filha
Tarde demais
Orgulho Nerd
O preço do sorriso está inflacionado
Avós
Um verão perigoso
Meninos e meninas
Que nunca acabe
Para saber mais sobre nossos lançamentos, acesse
In trodução
MINHA MÃE ESTAVA A CAMINHO DA CLÍNICA
Uma amiga e s ta va d irig in do, chovia b as tan te naque la te rça -
fe ira . As duas e s ta vam ne rvos as , a s itu ação, o tempora l, a s ru as
a la gadas . E a ile g a lid ade do que fa ziam. As duas a tra ves s a ram a
cid ade , p ega ram aque la a ven id a que pas s a na be ira do ma r, p a ra ram
em um s in a l ve rme lho na s ub id a de um morro. Es ta vam há vá rios
minu tos s em conve rs a r, em s ilê n cio tota l d en tro do ca rro. D en tro do
fus ca s ó o ba ru lho da chu va forte ba tendo na la ta ria . A minha mãe
es ta va in do me aborta r.
Acon te ce que meu pa i, q ue ro d ize r, o homem que eng ra vidou
minha mãe , n ão que ria s e r p a i. Tin ha ou tra vid a , ou tra s p riorid ades . O
homem tin ha ou tros p la nos . Não e ra o homem p ra s e r meu pa i. Ta lve z
nenhum homem s e ria . Ta lve z minha mãe não cons egu is s e me cria r
s ozin ha . Ta lve z não e ra p ra s e r.
Exis tem vá rios tipos de pa i. D es a ten tos , in s egu ros ,
d ed icados , ocupados , a tra s ados , e s tre s s ados , a g itados ,
b rin ca lhões . Há pa is q ue fa zem tudo, e h á pa is q ue não fa zem nada .
Há pa is q ue a ju dam no tema , d ão banho, fa zem a viãozin ho com a
colh e r, con tam h is tória s a n tes de a s cria n ças dormirem. Há pa is q ue
ens in am a anda r d e b icicle ta , q ue le vam no e s tád io, q ue dormem no
s ofá e de ixam os filh os dormir em cima . Pa is q ue de ixam os filh os
faze r tudo. D is tan tes , ca rin hos os , in conven ie n tes , mode rn in hos . Há
pa is d e todos os tipos .
E h á pa is q ue de cid em não s e r p a is .
Foi o ca s o do homem por q uem minha mãe s e apa ixonou . E é o
cas o de vá rios pa is . Es s a não é nenhuma h is tória extraord in á ria , n em
nada . É uma h is tória b as tan te comum, n a ve rdade . Há homens que
não que rem te r filh os . E, por fa vor, me re s pondam como is s o pode
acon te ce r? Como um pa i pode não que re r s e r p a i? Não s abe tudo o
que irá p e rde r!
Uma vez uma s enhora e s cre veu uma ca rta a Ku rt Vonnegu t,
meu es critor fa vorito. Ela q ue ria s abe r s e , n a op in ião do s r. Vonnegu t,
q ue tan to tin ha e s crito s ob re o te rror d a gue rra e a má condu ta
crôn ica da ra ça humana , uma pes s oa de ve ria te r filh os . Sr. Vonnegu t
re s pondeu : “ Não fa ça is s o! Era o que eu que ria lh e d ize r. (...). Mas
re s pond i q ue o que quas e fa zia va le r a p ena o fa to de e s ta r vivo p ra
mim, a lém da mús ica , e ram todos os s an tos que eu en con tra va , q ue
pod iam es ta r em qua lq ue r lu ga r” .[1]
Es te livro é d ed icado à s pes s oas que a cred ita ram nes s es
s an tos .
Não que ro pa re ce r ca tas trófico nem nada , mas é um a to de fé
coloca r filh os no mundo hoje . A p re vis ão é de um fu tu ro caótico, d e
mudanças climá tica s , s upe rpopu la ção, doenças ep id êmicas e
aumento da violê n cia u rbana . Te r filh os é a cred ita r no con trá rio d is s o
tudo. Todo pa i é um otimis ta .
Te r filh os é te r fé em um fu tu ro me lhor. Um mundo onde
nenhuma d ificu ld ade é des cu lp a pa ra fa ze r ma l a ou tra pes s oa . Um
fu tu ro onde a s pes s oas s e re s pe itam ma is e onde exis te gen te q ue
faz o bem s em ped ir a lgo em troca . Fa z o bem porque é a s s im que tem
que s e r. Não por medo do in fe rno ou p romes s a de ir ao céu . Não
porque te rão a lg uma van tagem com is s o. Não porque ou tra s
pes s oas e s tão olh ando. Mas porque is s o é o que nos fa z humanos .
Naque le fu s ca ba ru lh en to, n aque la te rça -fe ira chu vos a ,
n aque le s in a l ve rme lho na s ub id a de um morro minha mãe a chou
me lhor volta r p ra ca s a . D epois e la lig a va p ra rema rca r. E d epois foi
fica ndo p ra depois , e e la foi d ando um je ito, e e u a cho que cons egu iu
um emp rego, e a b a rrig a foi cre s cendo, e a b a rrig a e ra e u . E e u nas ci.
E minha mãe foi meu pa i. E tenho ce rte za que não foi fá cil p ra e la , mas
aqu i e s tou eu .
Não sei como é ter um pai.Mas sei como é ser um pai.
E é a melhor coisa do mundo.Tenho certeza que você concorda, mãe.
Para Eloisa Piangers, por topar esse passeio.
Para Ana Emília, Anita e Aurora,por serem anjos.
E para mães solteiras, onde estiverem.
Obrigado.
En tão você va i s e r p a i
Então você e sua companheira estão grávidos. Você s abe
que p re cis a comp ra r uma cas a ma ior. Tem que te r ma is e s paço p ra
cria n ça . Tem que te r ma is um qua rto no apa rtamento. Tem que te r um
be rço novo, n ão pode s e r a que le q ue a vizin ha s e d is pôs a
emp res ta r. En tão você s abe que tem que troca r d e ca rro. Aque le ca rro
não é con fortá ve l p ra le va r a família . Aque le ca rro não é s egu ro p ro
s eu filh o. Tem que te r s e is airb ags, n o mín imo. Tem que vir com a r-
cond icionado de fáb rica . Coitado do bebê no ve rão.
Pa i novo, fiz tudo aqu ilo q ue me d iziam, do apa rtamento ma ior
ao ca rro qua tro portas , d epois dos qua is p re cis e i tra ba lh a r ma is
pa ra pode r d a r con ta das p re s tações . Traba lh a va ma is p ra pode r
paga r a me lhor cre che . No s upe rme rcado, a penas a me lhor fra ld a .
Comp ra r a fra ld a ma is b a ra ta s ig n ifica va ama r menos meu filh o. Roupa
do b re chó, n em pens a r. D e b rin quedos ca ros nos s o a rmá rio e s tá
che io. D e cu lp a também, por te r q ue pas s a r mu ito tempo no traba lho.
O que ap rend i é q ue não fa z d ife rença a lg uma . Um
apa rtamento g rande não fa z d ife rença , porque a s cria n ças gos tam
mes mo é de dormir amontoadas na cama dos pa is . Um ca rro g rande
não fa z d ife rença , porque a s cria n ças gos tam mes mo é de anda r d e
b icicle ta . A me lhor cre che não fa z d ife rença , s e você é o ú ltimo pa i a
bus ca r s eu filh o. Os b rin quedos ma is ca ros e os jogos de vid eogame
não fa zem d ife rença : p a ra cria n ças , n ão há nada ma is d ive rtido do
que s e equ ilib ra r no me io--fio ou anda r n a ca lçada s em p is a r nos
ris cos . Joga r uma cria n ça p ro a lto e a ga rrá -la a n tes de ca ir no chão,
e s tá a í a me lhor b rin cade ira do mundo pa ra qua lq ue r p equeno. E tem
a van tagem de s e r d e g ra ça .
Adoro aque la tirin ha do Ra fae l S ica s ob re o s u je ito que e s tá
s emp re no tra ba lho pens ando no ba r. No ba r, o s u je ito e s tá s emp re
pens ando na família . Em cas a , com a família , o s u je ito e s tá s emp re
pens ando no traba lho. O s u je ito nun ca e s tá re a lmen te onde e le
e s tá . Cria s emp re a lg um tipo de ru ído na re la ção de le com as cois a s .
Es s e ca ra s ou eu , p ens e i q uando vi a tirin ha pe la p rime ira ve z. En tão
você e s ua companhe ira e s tão g rá vidos . En tão você s abe que não
p re cis a de uma cas a ma ior, d e um ca rro me lhor, n em da me lhor fra ld a ,
n em da me lhor cre che . Você s abe , no fundo, q ue s ó p re cis a e s ta r lá .
D e ve rdade .
Gua rde os p re s en tes
Cada pai é um colecionador de histórias. O d ia a d ia d a
pa te rn id ade , a pes a r d e mu ita s ve zes cans a tivo, é uma s u ces s ão de
s u rp re s as , poucas de la s re g is trá ve is . Cada p rime iro s orris o, cada
p rime iro pas s o, cada p rime ira fra s e comp le ta . Cada momento é
des es pe radamente re g is trado com uma câme ra tremida , uma
fotog ra fia em ba ixa re s olu ção que nenhum amigo va i a cha r g rande
cois a . Mas s e r p a i é ten ta r re g is tra r tudo is s o. Porque pa is s abem
que a s cria n ças cre s cem e que e s s es momentos p re cios os s ão
ún icos .
As h is tória s d as minhas filh a s eu anoto no b loco de notas do
meu s ma rtphone . Tenho apenas fra s es me lemb rando de momentos
que eu a cho que va lem vira r textos . Cois a s como “ con to no livro da
es cola ” (s ob re uma vez que e la e s cre veu uma h is tória d e uma men in a
que s onhava em s e r p a tin adora do BIG) e “ An ita q ue r ca s a r” (uma vez
que minha filh a d is s e que que ria ca s a r logo, s egundo e la , “ p a ra te r
em quem manda r” ).
Alg umas h is tória s e u re g is tro em des enhos . Ou tra s em textos .
Que ro lemb ra r p a ra s emp re que a ma is ve lh a s emp re me a corda com
be ijos , p re pa ra meu ca fé da manhã quando e s tou de an ive rs á rio,
con ve rs a por hora s nas via gens longas e toma s orve te de vaga r “ p ra
du ra r ma is ” . Quando chega à porta de cas a , e la n un ca ape rta a
campa in ha : s emp re can ta a lg uma mús ica , cada vez ma is a lto, a té
a lg uém ab rir. Adoro is s o.
A menorzin ha me a corda aos g ritos . D orme ta rde dema is
quando eu tô cans ado. Que r colo quando minhas duas mãos e s tão
ocupadas . Grita s e não fa ço exa tamente o que e la q ue r, n a hora
exa ta que e la d es e ja . Ela cos tuma faze r xixi n a minha roupa no menor
s in a l d e des a tenção e cocô nas camas de hote l, q uando e s tamos
s a in do com p re s s a p ra pega r um a vião. Gos ta de e s ta r s emp re
s egu rando a lgo. As e s covas de den te ora mas s age iam s uas
geng iva s , ora s ão e s fregadas com força no chão s u jo.
Todo pa i é um cole cionador d e h is tória s . Cada h is tória é um
p res en te que nos s os filh os nos dão. Gua rde bem os s eus
p re s en tes .
Se r p a i é fa ze r con tas
Nesse começo de ano já foram a rematrícu la , os novos mate ria is ,
u n iformes que ca ib am nas cria n ças s em de ixa r a b a rrig a apa re cendo,
como es ta va a con te cendo no fin a l do ano pas s ado. Sepa re i uma
g rana p ro la n che , comp re i uma moch ila nova depois d e um ano
ouvin do lamú ria s . Fa ltam o tra ns porte e s cola r, o livro de in g lê s que
a in da não chegou à livra ria e e s tou cons id e rando corta r a Ne t,
mes mo s abendo que uma vicia da em Peppa Pig pode s e torna r
pe rigos a com a abs tin ên cia . Mas a ve rdade é que e s tá ca rís s imo s e r
pa i.
Mu ltip liq ue e s s es gas tos por doze mes es , e e s s es doze
mes es por ce rca de vin te e cin co anos e te remos ca lcu la do o cus to
de um filh o, q ue de ve s e r ma is d e dois milhões de re a is , e n ão e s tou
colocando a í n enhum cas amento ch iq ue nem os gas tos com a la ta ria
do meu ca rro nos p rime iros anos de d ire ção das cria n ças . São dois
milhões de re a is q ue e s tou in ves tin do com a e s pe rança de que
s e jam pes s oas b rilh an tes , mudem o mundo, d e s cub ram a cu ra do
cânce r. Es tou in ves tin do e s s a d in he irama pa ra s e r a cordado de
mad rugada porque a s men in as e s tão com medo do e s cu ro. Es tou
pagando p ra pega r trâ ns ito no p rime iro d ia d e au la .
Es tou pagando pa ra ve r a p re s en tações de fin a l d e ano. Es tou
pagando por d es enhos fe itos s ó com uma cor, onde apa re ço s em
na riz. Es tou pagando s a tis fe ito por is s o, p re cis o d ize r. Es tou
pagando e s s a d in he irama pa ra s e r chamado de he rói q uando mato
uma ba ra ta . Es tou pagando e s s a pequena fortuna pa ra pega r a bola
que ca iu no te rre no do vizin ho e s e r a p la ud ido pe la s pequenas .
Es tou pagando pa ra s abe r tudo s ob re todas a s cois a s e te r
re s pos tas pa ra todas a s pe rgun tas . Es tou pagando a té ba ra to por
is s o.
Es tou pagando uma pe ch in cha por a b ra ços . Cada ab ra ço de
uma men in a de dois a nos me e conomiza uma fortuna que eu gas ta ria
com ps iq u ia tra s . Cada be ijo d e boa noite me a livia a con ta do
ca rd iolog is ta . Cada “ eu te amo” me a fas ta do hos p ita l. É um a chado o
que e s tou pagando por tudo is s o. Que s orte g ig an tes ca te r a chado
es s a ba rbada . Que p romoção ma ra vilh os a e s s a de s e r p a i.
Pe ríodo de adap tação
Há quem diga aqui em casa q ue eu não que ro pa rticip a r dos
p roces s os e s cola re s das men in as , mas a ve rdade é que que ro, s ó
que não cons igo. Tudo começou mu ito cedo, q uando depois d e
qua tro mes es de lice nça mate rn id ade e um mês de fé ria s , min ha
mu lhe r p re cis ou volta r a tra ba lh a r. Sem babá ou a vó por p e rto,
tín hamos que ir à cre che todos os d ia s ju n to com a bebê , p a ra o que
a e s cola chama de “ p e ríodo de adap tação” .
Era um tormento abandona r minha filh a re cém-nas cid a nos
b ra ços de qua lq ue r p es s oa , q uan to ma is uma pes s oa que p re cis a ria
cu id a r d e ou tra s cria n ças re cém-nas cid as . Sua va frio e d is pa ra va o
miocá rd io s ó de ve r a que le monte de be rcin hos . E s e chora rem todas
ao mes mo tempo? E s e minha filh a e ngas ga r e n in guém pe rcebe r? E
s e troca rem as cria n ças , q ue nes s es p rime iros mes es s ão todas
me io pa re cid a s ? Com o tempo, p e rceb i q ue o “ p e ríodo de adap tação”
tem es s e nome não por caus a da adap tação ne ces s á ria p a ra a
cria n ça s e amb ien ta r n a e s cola . É um pe ríodo de adap tação pa ra os
pa is !
Pre cis e i d e uma temporada e s tend id a de adap tação e a che i
q ue cons egu iria d e ixa r a p equena na e s cola s ozin ha com uns dois
anos . Aí e n tão vem uma s egunda fa s e : a p a rtir do momento em que
começa a en tende r q ue e s tá s endo de ixada na cre che , a cria n ça
chora p ra n ão ir à e s cola . E a í, amigos , n ão há nada que corte ma is o
cora ção de um pa i do que en trega r s eu filh o chorando pa ra ou tra
pes s oa cu id a r. Cans e i d e le va r minha filh a n a e s cola , d e vê -la
chorando e d izendo que não que ria e n tra r n a cre che , uma men in in ha
gord in ha de dois a nos imp lorando “ s ó hoje , p apa i. Buáááááá . Não
que ro ir p ra e s cola , p apa i” , e tra zê -la d e volta p ra ca s a p ra que a
minha mu lh e r fa ça o tra ba lho. M in ha mu lh e r é mu ito me lhor em
entregá -la n a e s cola .
Os in s ens íve is d izem que is s o é manha da cria n ça , q ue e la
e s tá que rendo me man ip u la r. Pois , e n tão, p a rabéns , porque e s tá
tendo s u ces s o. Pra mim, p a re ce um choro de de cepção, um lamento
s in ce ro de quem es pe ra va ma is d e mim. Sou o p ior p a i do mundo no
ques ito en trega r a filh a n a cre che . Meu pe ríodo de adap tação a in da
não a cabou .
D ando o troco nas cria n ças
Vinguei-me das meninas esses dias. Es tá vamos no ca rro e , a
caminho de cas a , p a s s e i a p e rgun ta r in s is ten temente : “ Já
chegamos ? Já chegamos ? Já chegamos ? ” . Pra ve rem o que é bom p ra
tos s e . A cada dois minu tos pe rgun ta va “ Já chegamos ? ” , e e la s e ram
ob rig adas a me d ize r q ue não, q ue a in da não, ca lma que já va i
chega r. Foi uma ótima vin gança .
Aí e n tão, con fia n te com o s u ces s o des s e p rime iro
expe rimen to, amp lie i min ha á rea de a tuação. Pas s ava a manhã
g rita ndo “ Tô com fome ! Tô com fome !” , e q uando s a ía o a lmoço d izia
que não que ria come r. Ped ia a ju da pa ra fa ze r a s ta re fas ma is
s imp le s . Se n in guém me a ju da va eu g rita va : “ Mas eu não cons igo!” . E
fin g ia um choro quando que ria q ue e la s ama rra s s em meus cada rços ,
por exemp lo.
Pas s e i a p e rgun ta r “ Por q uê? ” p ra tudo. Se con ta vam uma
h is tória do colé g io, e u pe rgun ta va : “ Por q uê? ” . E s e uma exp lica va
que e ra porque a p rofes s ora de matemática pas s a mu ito tema de
cas a , e u mandava ou tro: “ Por q uê? ” . E e la tin ha que exp lica r q ue e ra
porque o pes s oa l d a s a la n ão e ra mu ito bom de matemática . “ Por
quê? ” . Porque todo mundo não p re s ta va a tenção na au la . “ Por
quê? ” . Porque e ra um as s un to que não in te re s s a va . “ Por q uê? Por
quê? Por q uê? ” . E e la fica va irrita da a té g rita r q ue não s ab ia , q ue e la
não tin ha que s abe r d e tudo, meu D eus p ra que pe rgun ta r ta n to
as s im?
E e ra ótimo dormir com a a lma la vada .
Até que um d ia s en ti um s orris o ma la nd ro na ca ra de la s , como
s e tive s s em des cobe rto a lgo que eu não s ab ia . Pas s amos o ca fé da
manhã todo nos olh ando, e u des con fia do e e la s rin do de a lg uma
cois a . Tome i b anho e fu i tra ba lh a r. Quando chegue i em cas a uma
de la s d is s e : “ Já p ro banho” . Mas o que é is s o, q uem manda nes s a
cas a aqu i s ou eu . “ Já p ro banho!” , e la re pe tiu . E a ou tra g ritou : “ Se
não toma r banho agora , va i fica r s em o ce lu la r” . Na ja n ta tive q ue
come r tudo, a té o b rócolis , ra s pa r o p ra to e coloca r n a p ia . Le ve i ma is
de uma hora a rrumando o qua rto. “ E e s cova os den tes bem
es covados !” .
Naque la noite fu i p ra cama an tes das nove , s em d ire ito a
te le vis ão.
Os me lhore s pa is do mundo
Somos uma geração de pais com culpa. Não s abemos nunca
s e e s tamos cu id ando de nos s os filh os d ire ito. Não s abemos s e
es tamos a limen tando nos s os filh os d ire ito, e du cando nos s os filh os
d ire ito, re p reendendo a s p irra ças d ire ito, a b ra çando e be ija ndo
d ire ito, dormindo na hora ce rta d ire ito, la rg a e s s e iPad d ire ito, p e lo
amor de D eus vem a lmoça r, já p ed i cin co vezes d ire ito. Somos uma
ge ração de pa is q ue s emp re a cha que e s tá fa zendo tudo e rra do. A
es cola ta lve z não s e ja a ce rta , a comida e s tá mu ito in dus tria liza da ,
a cho que o vid eogame de ixa e le s mu ito ag itados . Alg uma cois a e s tá
s emp re e rra da e a cu lp a é nos s a . Os p iore s pa is do mundo.
D ig am o que qu is e rem, a cred ito que s omos os me lhore s pa is
do mundo. M in ha mãe me en tup ia d e bola cha e ki-s u co na dé cada de
1980 e eu e s tou aqu i, n em tão firme e nem tão forte , mas vivo.
Pe rcebam: s omos a ge ra ção que fre quen ta fe ira s orgân ica s ! Que
s abe p ra que s e rve a q u in ua e a s emente de g ira s s ol (e u não s e i!).
Somos a ge ra ção p ró-educação cons tru tivis ta , a g e ra ção que ma is
d is s e eu te amo pa ra s eus filh os . Por D eus ! Somos a ge ra ção que s e
p reocupa com a quan tid ade de s ód io na água mine ra l! Nos s os pa is
nos da vam água de torne ira p ra b ebe r! Somos os me lhore s pa is d a
h is tória , com ce rte za !
E s ob re e s s e ad ven to ma ra vilh os o da te cnolog ia , o q ue d ize r?
Es s e apa re lho ce lu la r q ue nos p e rmite tira r cen tenas de fotos d as
cria n ças fa zendo a s a tivid ades ma is trivia is ? Es s e te le fone magn ífico
que nos pe rmite re s ponde r emails d e ca s a , e nquan to ab ra çamos
nos s os filh os no s ofá? Há quem d ig a que a te cnolog ia nos d is tan cia
dos filh os , pois nos s os pa is fica vam a té ta rde no e s critório e q uando
chegavam es tá vamos dormindo. D e ve z em quando nos s os pa is
via ja vam em fé ria s e n ão nos le va vam (hoje em d ia e s s es pa is s e riam
detonados no Fa cebook, compa rtilh e e s s a a trocid ade você também).
Pe rdoem-me vocês , mas is s o s im e ram pa is d is tan tes .
E n ão e s queçam que quando via já vamos , é ramos le vados no
banco de trá s (q uando não no vão tra s e iro do Fus ca ), s emp re s em
cin to de s egu rança . Como pode a ge ra ção da cade irin ha an ti-impacto
te r a lg uma cu lp a por q ua lq ue r cois a ? A ge ra ção que que r a bolir a
pa lmada a tra vés de uma le i? A ge ra ção que , por p ad rão, coloca uma
te le vis ão no qua rto dos filh os ? Somos d is pa radamente os me lhore s
pa is do mundo. Somos le ga is , g en te . Pode a cred ita r.
E a gora la rg a o ce lu la r q ue a cria n ça e s tá chamando.
Brin cade ira d e cria n ça
Não sei se a Janis Joplin a gora é p rofes s ora do ens ino
fundamenta l, mas minha filh a ma is ve lh a e todos os amigos de la ,
a pa ren temente , vira ram h ip p ie s . Pas s am horas re un idos em
rod in has , todos e le s com s eus equ ip amentos , cada um p roduzin do
s ua va rie dade de pu ls e irin has de e lá s tico colorido. Pas s am horas na
con fe cção e depois ten tam vende r o a rte s ana to pa ra pob re s adu ltos
que , d e s a vis ados , p agam dois , a té trê s re a is por uma pu ls e ira q ue
mu ita s ve zes ape rta o pu ls o. A minha já p ed i n a cor roxa , q ue é p ra
comb ina r com a gang rena que va i caus a r.
Não que ro s e r s audos is ta , mas na minha época s e b rin ca va
de e s tilin g ue , za raba tana , b rin cade ira s s audáve is a todos , menos
p ro Otávio, q ue uma vez quas e ficou cego. Mas s ub íamos em á rvore s ,
exp lorá vamos cons tru ções abandonadas , tudo mu ito d ive rtido,
menos p ro Otá vio, q ue p is ou num p rego e te ve que le va r a
an tite tân ica . Bons tempos aque le s em que jogá vamos fu tebol o d ia
todo, menos p ro Otá vio, q ue s emp re torcia o pé .
E n ão vamos mu ito longe . Até bem pouco tempo as cria n ças
b rin ca vam com jogos s audáve is , como o Banco Imob iliá rio, q ue
ens in a va va lore s como a ne ces s id ade de poupa r o d in he iro, comp ra r
imóve is q uando tive r oportun id ade e humilh a r os amigos ma is
pob re s . Ou mes mo es s es jogos de vid eogame , onde ap rend íamos a
da r tiros em pes s oas no me io da ru a e a rouba r ca rros e d es tru í-los
ba tendo no ca rro da polícia . Aqu ilo é q ue e ra um pas s a tempo
s audáve l.
Mas e s s a nova ge ra ção e s tá mes mo pe rd id a , fa zendo
pu ls e irin ha o d ia todo e vendendo pa ra pob re s adu ltos des avis ados .
Em cada re s id ên cia a gora temos um H.Ste rn da b iju te ria in fan til, uma
Tiffany & Co das borra chas colorid a s . E onde e s tão os ca rrin hos de
rolimã? Onde e s tão a s b rin cade ira s com ovos que s emp re a ce rta vam
aque la s enhora do 50 2 , p a ra a exp los ão de ris adas de toda a
cria n çada?
Menos p ro Otá vio, q ue s emp re e ra pego e fica va de cas tigo.
Uma ta rde no Shopp in g
Essa aqui é pra você que está pensando em ter fIlhos.A pa te rn id ade , em longo p ra zo, é extremamente g ra tifica n te ,
p reen che um vazio exis ten cia l, p e rmite que você s e s in ta e te rno,
d es pe rta o orgu lho de te r formado um cid adão que pode fa ze r
d ife rença pos itiva no mundo. Mas em cu rto p ra zo, no d ia a d ia ,
exis tem pequenas cois a s que colocam es s e p la no ma ior à p rova , nos
dando uma von tad in ha de des is tir. Por exemp lo, uma id a ao shopp ing
com duas filh a s .
A filh a ma is ve lh a norma lmente e s tá fa la ndo, porque é is s o o
que a s mu lh e re s fa zem quando e s tão a cordadas – a lg umas também
fazem quando e s tão dormindo –: fa lam. Ela va i fa la r s ob re comp ra r
uma moch ila nova , ou pu ls e ira s de zíp e r, ou qua lq ue r ou tro ape tre cho
colorido que você não va i e n tende r mu ito bem o que é ou p ra que
s e rve , e te rá nome es qu is ito como niddles, ou popp ies, ou boob leb is. A
ma is nova e s ta rá chorando, in d ig nada por e s ta r s en tada em uma
cade irin ha pa ra cria n ças , p re s a por um cin to de s egu rança . Você te rá
mu ita s ve zes von tade de de ixá -la s em cin to, s em cade irin ha , e ta lve z
a té com a porta me io abe rta .
Quando fin a lmen te cons egu ir e s ta ciona r, a ma is ve lh a e s ta rá
chorando porque você d is s e que não va i comp ra r niddles ou popp ies ou
boob leb is e a ma is nova e s ta rá dando chu tes no en cos to pa ra
cabeça do banco do motoris ta . Agora você tirou a ma is nova da
cade irin ha , mas a ma is ve lh a s e re cus a a s a ir do ca rro. D epois d e
a lg uma conve rs a , a ma is ve lh a s a irá , mas a ma is nova e s ta rá
chorando agora . Pa ra a ca lmá -la , você pe rmitirá q ue e la a nde na
es cada rola n te 13 ve zes , s ub in do e des cendo pe la e s cada do la do,
p a ra en tão, fin a lmen te , pode r e n tra r d e fa to no shopp ing.
D en tro do shopp ing, h a ve rá pa radas nas loja s d e doces , d e
ba lões , d e s orve te , d e ce lu la re s e , é cla ro, n a s loja s d e b rin quedos .
Em cada uma das loja s , h a ve rá uma comp ra ou uma conve rs a longa
s ob re como não exis te a pos s ib ilid a de de você comp ra r, por exemp lo,
um ch icle te de dezes s e is re a is . Em cada pa rada , você pe rde rá uma
filh a , porque enquan to uma pa ra a ou tra s egue tra nqu ila p e lo me io
da mu ltid ão. Ain da que o s en timen to de pe rde r uma filh a s e ja
des es pe rador, o s en timen to de pe rde r a s duas filh a s é um pouco
re vigoran te .
A loja p a ra a q ua l você foi a té o shopp ing n ão te rá o p rodu to
que você e s pe ra va en con tra r, e n tão é hora de paga r o
es ta cionamento. Aqu i temos um momento e s pecia l n a vid a do cid adão
mode rno, momento e s te que me re ce um pa rág ra fo s ó p ra e le .
An tig amente os qu ios ques de pagamento de e s ta cionamento
e ram loca lizados na s a íd a do shopp ing, o q ue fa zia toda lóg ica do
mundo. En tão os qu ios ques pas s a ram pa ra o me io do shopp ing,
imag ino que s e ja p ra s pes s oas fica rem ma is tempo circu la ndo,
a umentando a s chances de você comp ra r a lgo ou de pe rde r um filh o.
Mas agora os qu ios ques e s tão nos loca is menos p rová ve is ,
e s cond idos , emba ra lh ados , mudando de lu ga r o tempo todo. Imag ino
que em b re ve te remos que pe rgun ta r p a ra os s egu ranças a
loca liza ção dos qu ios ques e re cebe remos uma s enha s e cre ta – e
s ub in do ao te rce iro a nda r do shopp ing e n con tra remos um s enhor d e
ócu los , s ob re tudo e chapéu que ou virá a s enha e nos da rá um
pendrive com as coordenadas de la titu de e long itude do qu ios que
pa ra pagamento do e s ta cionamento. Mas voltemos à s minhas …
filh a s … cadê minhas filh a s ? !!? !
Ah , e s tão lá . Você en tão g rita rá p a ra s uas filh a s que virão
correndo e e s ba rra ndo nas pes s oas , todas e la s mu ito civiliza das e
cons id e rando você um pés s imo pa i. Você paga rá o e s ta cionamento
com a ma is nova no colo, a ma is ve lh a , fe liz com s eus niddles, te n ta rá
en tra r no ca rro com o ou tro ca rro cola do ao s eu , ou virá os choros de
p rotes to da ma is nova na cade irin ha , a gua rda rá a can ce la a b rir e
e s ta rá novamente em con ta to com o a r p u ro, o s ol, os pás s a ros . Você
ab rirá o vid ro e e n tra rá uma b ris a s ua ve . No rá d io e s ta rá tocando um
ja zz gos tos o, os motoris ta s da rão pas s agem e o trâ ns ito flu irá com
ca lma , mas cons tância . Você olh a rá pe lo re trovis or e ve rá duas lin das
cria n ças fe lize s , olh ando a pa is agem.
E, n aque le momento, você s e rá a p es s oa ma is fe liz do mundo.
Chocola te
Estava empolgado com a caça aos ovos de chocola te e s te
ano, mas anuncia ram lá em cas a que não va i te r chocola te . Fa remos
uma caça aos ovos de qu in ua . Ouvi d ize r q ue é moda en tre os pa is
ma is mode rnos e nos s as filh a s pode rão de vora r e s te be lo re gu la dor
in te s tin a l e nquan to tomam um de licios o s u co ve rde de couve . Se rá
uma Pás coa d ive rtid a . As s is tiremos os des enhos da TVE que , e u não
s ab ia , s ão os ún icos com lin guagem ap rovada e não in fan tilizam as
cria n ças . Fiq ue i s u rp re s o ao des cob rir q ue in fan tiliza r cria n ças é uma
cois a ru im.
Não s e i q uem fez a le i, mas também es tá abolid a qua lq ue r
h is tória s ob re o coe lh in ho da pás coa . Não cons igo mentir p ra s
cria n ças . Ao me pe rgun ta rem “ Quem trouxe os ovin hos , p apa i? ” , d ire i
s ole nemente que re a lize i a comp ra dos in g red ie n tes pagos com
ca rtão e com CPF na nota , e e u mes mo que trouxe em uma s a cola
re ciclá ve l. Não s e rá bem uma “ ca ça ” ao te s ou ro, porque o u s o do
te rmo pode in cen tiva r violê n cia con tra an ima is . Nem podemos chama r
de “ te s ou ro” a lgo que não é tão va lios o quan to a vid a , a família . Se rá
uma “ bus ca aos ovos de qu in ua ” . Uma b rin cade ira d ive rtid ís s ima que
as cria n ças vão adora r.
M in has pás coas e ram um horror. Tenho nove p rimos e todos
nos re un íamos na s a la e nquan to os tios e s pa lh a vam chocola te p e la
cas a do vô. Era tan to chocola te que fica va impos s íve l n ão a cha r os
ovos , tin ha s emp re um pape l b rilh a n te e s capando por a lg uma porta
do a rmá rio. Cada p rimo de vora va um ovo g ig an te , e d en tro dos ovos
de chocola te , n aque la é poca , vin ha a in da ma is chocola te . E e ram
coe lhos enormes fe itos de chocola te e b enga la s de chocola te e
ba rra s de chocola te . E minha vó de rre tia a lg umas ba rra s de chocola te
pa ra e s cre ve r nos s o nome em cima de um bolo de chocola te com
reche io de chocola te . Ficá vamos s u jos de chocola te na ca ra , n a s
mãos , n a camis e ta e o s ofá da cas a do vô fica va uma noje ira . Até a TV,
q ue naque la é poca pas s ava des enhos viole n tos , fica va toda
ma rcada com imp res s ões d ig ita is ma rrons .
Aqu ilo foi h á ma is d e vin te anos . O crime já p re s cre veu . Hoje
s abemos que d ia be tes é cois a s é ria e q ue des enhos viole n tos
des educam. Meus a vós não conhece ram os bene fícios do ama ran to,
d a qu in ua e da lin haça . Não s abem o que pe rde ram.
D oce p re s en te
Estou tentando ensinar pra min ha filh a d e dois a nos
conce itos bás icos , como on tem, hoje e amanhã . Ela s abe ma is ou
menos o que é on tem, le vando em con ta que já e n tende que fa ze r xixi
no chão da s a la n ão é a lgo que de ixa o papa i mu ito fe liz. Mas n ão
s abe o que é amanhã . Quando d igo que amanhã chega a vovó, e la
corre p ra porta . Quando d igo que mês que vem vamos p ra p ra ia , e la já
pega o ma iô no a rmá rio. Ela n ão s abe o que é pa ciê n cia , o q ue é
es pe ra r p a ra fa ze r a lgo. Ela n ão s abe o que é fu tu ro, n ão cons id e ra
mu ito o pas s ado. A Au rora vive s ó o agora .
Nós , a du ltos , cos tumamos vive r tudo, menos o agora .
Sabemos bem o que é o pas s ado, p a s s amos boa pa rte do tempo nos
compa rando com nós mes mos há a lg uns anos . Como é ramos ma is
jovens , como é ramos ma is pob re s , como nos s a vid a me lhorou , como
eu tin ha ma is cabe lo. No meu tempo é que e ra bom! E q uando não
es tamos com a cabeça no pas s ado e s tamos com a cabeça no fu tu ro.
Se rá que va i chove r? Onde va i s e r o ja n ta r? Se rá que e le va i lig a r?
Como s e rá minha apos en tadoria ?
Pois b em, e u ten te i e n s in a r o que é o fu tu ro p ra Au rora . D e i
p ra e la um doce e exp liq ue i q ue s ó pode ria come r depois do a lmoço.
Ela colocou o doce na boca imed ia tamente . Com a boca che ia d e doce
e la s orria com os olhos , p ra minha in d ig nação. Exp liq ue i cla ramente
que doce é s ó p ra depois do a lmoço. Ela d e ve ria e n tende r.
“ En tendeu , Au rora ? ” . “ Ted i” , q ue s ig n ifica “ e n tend i” em au rorê s .
Como p rova de en tend imento, p ropus comp ra r ma is um doce , q ue e la
de ve ria cons e rva r a té “ d epois d e fa ze r p apá ” . Ain da re force i com
mímica , le vando a mão a té a boca com uma colh e r imag in á ria . “ Ted i” ,
e la d is s e , olh ando nos meus olhos .
Agora , é cla ro que eu imag in e i q ue e la também come ria e s te
doce . Mas a cred ita va que e s te du ra ria ma is a lg uns s egundos do que
o p rime iro, e a s s im eu te ria e ns in ado a lgo com o expe rimen to, o q ue
não a con te ceu . Ou e la mentiu d es ca radamente p ra mim, ou é pés s ima
pa ra en tende r mímica . Se eu exp lica s s e mil ve zes e la d e vora ria mil
doces a li, a n tes de come r qua lq ue r a rroz com fe ijã o.
A Au rora , com is s o, n ega a nos ta lg ia d e vive r no pas s ado e a
ans ie dade de an te cip a r o fu tu ro. Ela vive o doce p re s en te , d e vora a
vid a como s e não houves s e amanhã . Ela e s tá onde e s tá , p re s tando
atenção no que a con te ce com e la n aque le momento, s em compa ra r
com o que já foi e n em es pe ra r n ada do fu tu ro. Um d ia irá a p rende r
que e s cova r os den tes e vita dor, q ue gua rda r p ra ma is ta rde e vita
s ofrimen to.
Mas s e rá que cá rie dói tan to a s s im? Eu nunca tive . Se rá que
economiza r va i me ga ran tir um fu tu ro p rós pe ro? A Au rora , com a boca
che ia d e doce , e s tá abs olu tamente re a liza da .
Enquan to is s o, nós adu ltos mu ita s ve zes gua rdamos os
doces , p ra mu ita s ve zes jama is comê-los .
D iamantesDIAMANTES
Num casamento que eu fui esses tempos, o mes tre de
ce rimôn ia s e ra d aque le s mode rnos , s em re lig ião, q ue fa zem o
cas amento fica r b em des con tra ído e , à s ve zes , por caus a d is s o,
cons trangedoro. A g en te s e s en te me io que numa pa le s tra
motiva ciona l (q uem é cas ado cons egue en tende r a iron ia n is s o).
Em de te rminado momento, o mes tre de ce rimôn ia s mode rn in ho
ped iu p ra todo mundo da r a s mãos e , n a con tagem do trê s , g rita r b em
a lto a lg uma cois a que des e já vamos pa ra os noivos . Todos con ta ram
“ um… dois … trê s … e ” e b e rra ram ao mes mo tempo cois a s do tipo
“ a le g ria !” , ou “ amor!” , ou “ fe licid ade !” .
E no me io d is s o uma cria n ça de s e te anos g ritou :
“ D iamantes !” .
O que pode ria s e r me lhor do que ganha r d iamantes no d ia do
cas amento? Ale g ria é p as s age ira , fe licid ade p le na é in a lcançá ve l,
amor o ca s a l d e noivos já e s tá che io. D es e jem aos noivos d iamantes !
Ele s s ão e te rnos , e em um momento de ne ces s id ade pode rão vende r
a lg uns pa ra fa ze r um cru ze iro p e lo mundo ou comp le ta r o tanque de
combus tíve l com gas olin a (n ão ad itiva da que e s tá mu ito ca ra ). D izem
que vendendo a lg uns d iamantes s e cons egue paga r uma re fe ição no
ae roporto, mas não a cred ito que s e ja re a lmen te pos s íve l.
Chamou-me a a tenção que n in guém g ritou “ me ia s !” . Me ia s ,
portan to, n ão s ão um bom p re s en te p ra s e des e ja r aos ou tros .
Nin guém tampouco g ritou “ va le -p re s en te da Sa ra iva !” . Eu gos to mu ito
da Sa ra iva , mas abomino va le -p re s en tes , p ra ticamente um ca rtão
es crito “ n ão pe rd i tempo pens ando em um p re s en te me lhor” .
Nin guém g ritou “ compact discs!” , n em “ a cole ção comp le ta do s e ria do
Friends em D VD !” . Se riam p re s en tes in te re s s an tes , mas fora de moda .
Eu g rite i “ amor” , me io cons trang ido com a s itu ação e com
medo de pa re ce r um des e jo rid ícu lo p a ra os ou tros na fe s ta . Grite i
“ amor” porque s e i q ue no fin a l d a s con tas é a cois a ma is importan te
em uma re la ção (tira ndo o ia te , q uando houve r). Mas des e je i te r
g rita do “ d iamantes ” d epois q ue o mes tre de ce rimôn ia mode rn in ho
fa lou no microfone : “ Que vocês re cebam o que g rita ram em dob ro!” .
Exces s o de cu lp a na bagagem
Viajamos sem as crianças por vin te d ia s pe la Eu ropa . (Quão
irrita n te é e s s a fra s e? Cons egu i com menos de dez pa la vra s irrita r
quem nunca via jou p ra Eu ropa , q uem nunca cons egu iu via ja r s em os
filh os e quem já foi p ra Eu ropa s em os filh os , mas a chava que e ra o
ún ico no mundo a fa ze r is s o. Ca lma , tenho ou tra s fra s es irrita n tes
pa ra compor e s te texto). D e ixamos a s men in as com as a vós e
le vamos na bagagem mu ito cas a co e cu lp a por a bandona r nos s as
men in as por vin te d ia s .
Como e la s e s ta rão quando a gen te volta r? A ma is ve lh a e s ta rá
ma lcria da , re s pondendo a tudo com ra iva e d es dém? Te rá adqu irid o o
háb ito do fumo? A de dois a nos não irá nos re conhece r q uando
volta rmos ? Ela s não vão ma is nos ama r? Es ta rão che ia s de
ta tuagens ? Es ta rão todas bêbadas quando en tra rmos em cas a? As
pa redes p ichadas “ Fora papa i” e “ Mamãe te ode io” ?
D es emba rcamos no ae roporto ans ios os , fu rando a fila d a
imig ra ção, com lice nça , cu id ado a ma la , o s enhor n ão en tende ,
nos s as filh a s e s tão em pe rigo, meu D eus . O taxis ta puxou conve rs a ,
a doro s eus textos , s ou s eu fã , ok, ok, meu amigo, vamos logo com
is s o, min has filh a s e s tão me od ia ndo, e u não de via n em te r via ja do.
Como faz p ra tira r ta tuagem?
Chegamos em cas a , a s og ra e s ta va s orrid en te e
apa ren temente s ób ria . As men in as corre ram p ra nos ab ra ça r.
Che ira ndo s uas roupas não s en ti che iro a lg um de n icotin a . Nenhuma
pa rede ris cada . D es cob rimos que a de dois a nos não u s a va ma is
fra ld a . Fa zia xixi e cocô no pen ico, p ed in do educadamente em todo
momento de ne ces s id ade . As duas e s ta vam dormindo cedo, s emp re
de banho tomado e de ve re s fe itos . A ma is nova e s ta va comendo
b rócolis , a ma is ve lh a in te re s s ada por poes ia e ja zz.
Apa ren temente , e u e minha mu lh e r n ão s omos pa is
irre s pons áve is porque abandonamos a ca s a por vin te d ia s . Mas por
não fa ze rmos is s o com ma is fre quência .
Tá de babá?
Semp re tive e s s a ca ra de ma lu co, b a rba ma l fe ita , cabe lo
des reg rado, mas jama is u s u fru í d e s ubs tância s p roib id a s por le i,
e xceção do pe ríodo de fa cu ld ade , q uando namore i uma men in a que
cu rs a va Biolog ia . Vocês s abem como é o pes s oa l d e b iológ ica s ... Mas ,
d u ran te toda a minha vid a , por caus a do meu je ito, s e ap roximavam
pes s oas que rendo en ca ra r uma noite longa dema is ou pe rgun tando
s e eu tin ha s eda (d emore i p ra d es cob rir q ue não s e tra ta va do
te cido). Era d ifícil e xp lica r q ue minha noite id ea l e n volve o mín imo de
ag ito, o mín imo de ba ru lho, o mín imo de fumaça e o mín imo de
pes s oas me pe rgun tando: “ O que mes mo eu ta va fa la ndo? ” .
Tive filh o cedo e a lg umas pes s oas a chavam es tranho eu
es ta r s emp re com um bebê no colo. Pra mim, a qu ilo s emp re foi uma
boa companh ia . Eu adora va a id e ia d e s e r p a i. Mas a s pes s oas não
es pe ra vam is s o de mim. O lh a vam-me fe io n a ru a . Eu e ra um cas o de
pa tru lh amento in ve rs o: a s pes s oas e s pe ra vam de mim um
comportamento PIOR! Fica vam con fus as de me ve r cu id ando de
cria n ças . Nunca e s queço de uma manhã pas s eando com minha filh a
na be ira d a Lagoa , q uando dois jovens vira dos da noite pas s a ram
por mim e d is s e ram: “ Pia nge rs ? !? ! Que ba ita ca re tão!” .
Se r p a i jovem es tá na moda porque a s fotos ficam lin das nas
redes s ocia is . Mas quando você e s tá num e ven to rodeado de
moch ila s , fra ld a s , p anos p ra limpa r o na riz e chupe tas , a s pes s oas te
olh am com pena . Ela s n ão en tendem que é uma pa rte do negócio.
Cha to ou d ive rtido, is s o é s e r p a i. Se r p a i é e s ta r com os filh os .
Quando veem a minha ca ra , a s p es s oas e s pe ram que eu s e ja mu ito
lou co, d e ixe a s men in as em cas a e volte s ó de manhã ; um pa i q ue
le va a s filh a s pa ra a loja d e ta tuagens e que pas s e ia com e la s de
moto. Longe d is s o. Nos s o pas s e io ma is ra d ica l foi no Pa rque Tupã .
Toda vez que eu le vo minhas filh a s p ra q ua lq ue r e ven to fica
aque le clima : “ Puxa vid a , ca ra . Hoje tu tá de babá? ” .
E e u adoro re s ponde r: “ Não. Tô de pa i” .
Os te rríve is d e dois a nos
Tenho uma menina de dois anos e uma de oito. Exis te um te rmo
mund ia lmen te famos o pa ra s e re fe rir à s cria n ças de dois a nos :
terrib le two (te rríve is d e dois ). Es s as pob re s cria n ças s ão chamadas
de te rríve is ta lve z porque adoram ris ca r p a redes com lá p is d e cor,
ta lve z porque cos tumam faze r xixi no chão da s a la , ta lve z porque
au tomaticamente be rram e e s pe rne iam ao ouvir a p a la vra “ n ão” , ou
ta lve z porque e s tão agora mes mo em cima do la p top do pa i
imped in do-o de e s cre ve rpeo ]v-rmwew vd ‘wea ;D L, 2 L3-
LD D VXFGD GD F\WT;
Quando você não tem filh o, cos tuma s ubes tima r os terrib le two .
Você a cha que aque la mãe no shopp ing n ão deu a edu cação corre ta
pa ra aque la cria n ça que e s tá de itada chorando no me io da Renne r.
Você cons id e ra aque le p a i q ue colocou a Ga lin ha Pin tad in ha no iPad
p ro filh o a s s is tir no re s tau ran te um s e r h umano des p re zíve l. Você
in genuamente a cred ita q ue , com um pouco de d iá logo e ca rin ho, a s
cria n ças cre s ce rão s em b irra e s em ranho. Você e s tá e rra do.
Aque la mãe no me io da Renne r, d e s es pe rada e cons trang id a
com a cena que a cria n ça e s tá fa zendo, d eu todo d iá logo e ca rin ho
que uma mãe pode da r. O coitado do pa i s ó cons egue s e a limen ta r
com a ju da da ga lin á cea an il – e e le p rova ve lmente não dorme
decen temente há s emanas . Quando você chega na cas a de amigos e
vê a s pa redes p in tadas , p a s ta de den te e s pa lh ada pe lo chão e
fra ld a s u s adas nos lu ga re s ma is s in is tros , n ão é cu lp a dos s eus
amigos . A cu lp a é d a cria tu ra ma is fofin ha do re cin to.
É como d ivid ir s ua cas a com o p ior tipo de in qu ilin o pos s íve l.
D o tipo que não gua rda nada no lu ga r. D o tipo que fica a cordado a té
às trê s da manhã que rendo ve r te le vis ão. D o tipo que que r s emp re
dormir n a s ua cama , s epa rando você e s ua mu lh e r. D o tipo que te
a corda com tapas na ca ra em um s ábado de manhã . D o tipo que não
paga a lu gue l.
Mas não que ro pa re ce r in ju s to.
Fa la r ma l d e cria tu ra s tão fofas s ó va i coloca r o púb lico con tra
mim. Os terrib le two n ão s ão apenas ru in s , e le s s ão ótimos pa ra
a lg umas cois a s , a s abe r:
1. Tes ta r p rodu tos que você a cabou de comp ra r, d e s cob rin do
formas de des tru ir mes mo aque le s ap rovados pe los te s tes do
INMETRO (que não tem nenhum terrib le two no s eu quad ro de
funcioná rios , uma fa lh a g ra ve );
2. Ras ga r/d es enha r em livros fa voritos , in cen tivando a
mig ra ção d ig ita l d e s ua b ib liote ca ;
3. Convence r a que le amigo que e s tá pens ando em te r filh o a
abandona r a id e ia comp le tamente ao fica r com s eu filh o por q u in ze
minu tos no shopp ing.
A boa notícia é q ue a expe riê n cia com um terrib le two d u ra
apenas um ano. A má notícia é q ue exis te um ou tro te rmo
mund ia lmen te famos o: terrib le th ree.
M inha filh a n ão tem nada con tra gays
Quando uma criança nos brinda com sua vis ão de mundo é
uma de lícia tão g rande que de vemos fica r b em qu ie tos . É como olh a r
un icórn ios s e a limen tando. Você que r fica r vendo aqu ilo s em
es pan ta r a mag ia do amb ien te . Es tá vamos no ca rro, e u d irig in do,
minha mu lh e r no banco do ca rona e minha pequena no banco de trá s ,
s en tada no me io. A d e dois a nos dormia . Lá fora a s pes s oas
des re s pe ita vam ou tra s pes s oas no trâ ns ito. O que podemos chama r
de um d ia norma l.
“ O que eu não en tendo é que uma mu lhe r pode s e ves tir com
ca lça je ans e a té com camis as mas cu lin a s . Is s o é a ce ito pe la
s ocie dade ,” e la tem oito anos e e s tá fa la ndo s ob re a s ocie dade . “ E
um homem não pode s e ves tir com roupas de mu lh e re s que todo
mundo fa la ma l. Não que eu tenha a lg uma cois a con tra tra ves tis .” Eu
exp lod i em ris os . “ O quê , p a i? !” , p rotes tou a An ita .
A An ita s emp re d iz q ue não tem nada con tra de te rminada
minoria , s emp re que fa la d e la s . “ Por q ue a s pes s oas tra tam os
pob res ma l, p a i? Não que eu tenha a lg uma cois a con tra os pob re s .”
Ela s emp re pa re ce p reocupada com a pos s ib ilid a de de s e r
cons id e rada ra cis ta , e litis ta , s exis ta , mach is ta ou p re conce ituos a .
D eve s e r uma p reocupação mu ito a tua l e n tre a s cria n ças . Porque o
mundo e s tá politicamente corre to. E imag ino que is s o s e ja uma cois a
boa . Mas quando eu tin ha oito anos , nos s a p rin cip a l p reocupação
e ra cons egu ir a ma ior q uan tid ade de doces en tre a hora de a corda r e
a hora de dormir.
“ Eu s ó a cho que os homens de ve riam pode r s e ve s tir com s a ia
e s a lto a lto s e qu is e s s em. As mu lh e re s podem faze r is s o. Os homens
não, porque s ão cons id e rados gays . Nada con tra os gays ,” e la d iz
novamente , a n tes que s e ja ma l in te rp re tada . Es tá vamos no ca rro
ouvin do a An ita fa la r s ob re a s ocie dade . Lá fora a s pes s oas
des re s pe ita vam ou tra s pes s oas no trâ ns ito. O que podemos chama r
de um d ia norma l.
An ita e a é cla ir
O procedimento é sempre o mesmo, d e ixamos a irmã menor n a
es cola e d amos um je ito de pas s a r n a con fe ita ria , porque a An ita
adora o app le strudel, o mil folh a s de doce de le ite , a s ca rolin a s de
creme . Mas a cima de tudo, a cima de todos os doces do mundo, a éclair
de chocola te . No meu tempo chamava -s e bomba de chocola te . Mas
éclair fica ma is bon ito. Pre firo a s s im. Ela p ede uma éclair, e u p eço um
café . E e u viro e s pectador d es s e momento lin do, q ue é uma cria n ça
comendo um doce .
A An ita re cebe a éclair em um p ra tin ho. Não u s a gua rdanapo,
porque gos ta de lambe r os ded in hos depois . Segu ra com o in d icador
e o dedo méd io a p a rte de cima da éclair, a que la p a rte que tem uma
camada de cobe rtu ra de chocola te . O pole ga r a pe rta o doce emba ixo.
Nes s e momento o re che io cremos o dá a imp res s ão de que va i
tra ns borda r, mas é ra p id amente le vado a té a boca pequena , e pos s o
ouvir o p es s oa l d a mes a ao meu la do comentando “ que cois a fofa
es s a men in a ” , à boca pequena . An ita , e n tão, morde com cu id ado a s
camadas de mas s a s upe rior e in fe rior, d e ixando o re che io cremos o
de chocola te re pous a r em s ua lín gua . É a p rime ira mord id a , a
s egunda ma is importan te da re fe ição.
Pe rcebe -s e , n e s s e momento, o re che io da éclair e s capando
pe lo la do opos to ao da mord id a . Qua lq ue r cid adão ma is in expe rie n te
fica ria d es es pe rado, n ão s abe ria o que fa ze r. Não a An ita . Ela
re pous a a éclair no p ra tin ho. Não é hora pa ra vã s p reocupações . É o
momento de lambe r a pon ta dos dedos in d icador e méd io, q ue e s tão
p re tos de tan to chocola te . D uas imp res s ões d ig ita is ma rcam a pa rte
s upe rior d a éclair, um la do mord ido e o ou tro com re che io
trans bordan te .
D e um p rofis s iona lis mo tremendo, An ita g ira o p ra tin ho em 180
g raus , fica ndo de fre n te pa ra a p a rte não mord id a da éclair. A p róxima
mord id a não en cos ta rá nas camadas de mas s a : é uma den tada
p re cis a que abocanha apenas os milíme tros de re che io cremos o.
D es s a forma , a éclair e s tá novamente ap ta pa ra con tin ua r a s e r
de vorada a tra vés do la do já mord ido. Alte rnam-s e , a gora , mord id as ,
lamb id as nos dedos , g iros de 180 g raus no p ra tin ho, d en tadas
p re cis a s no re che io que amb iciona ca ir do doce . E a s s im An ita chega
a té o ú ltimo pedacin ho da éclair: uma camada s upe rior q ue a in da
mantém um re s to de cobe rtu ra , o re che io remanes cen te e uma
camada de mas s a in fe rior d e uns dois cen tímetros no máximo.
Agora , An ita p ega o p rime iro gua rdanapo do d ia . Limpa a boca
e os dedos . Cu id ados amente , p ega a ú ltima mord id a , o me lhor
pedaço, p e la p a rte in fe rior do doce , a que la d e mas s a pu ra , e s em
s u ja r n em os dedos nem a boca , a bocanha o que re s tou da éclair.
Ap rove ita os ú ltimos momentos do chocola te nas pap ila s g us ta tiva s .
Não há ves tíg ios do doce . En tão e la me olh a e d iz: “ Vamos ? ” .
Quando eu for ve lho
A Aurora está cuidando de mim. Eu pegue i um re s fria do
viole n to e quem me tra z xa rope é a p equena , com um cu id ado
emocionan te , olh ando concen tradamente pa ra o cop in ho che io de
líq u ido ros a que p in ga no chão a cada pas s in ho. É uma e volu ção. Na
p rime ira ve z que re cebeu e s s a mis s ão, Au rora tomou todo o meu
xa rope .
A Au rora também pen te ia o meu cabe lo. An tes de cada
es covada e la lambe a mão e pas s a na minha cabeça , porque
p rova ve lmente é como as p rofes s oras pen te iam o cabe lo das
cria n ças na e s colin ha . Ela vê aque la té cn ica de baba -ge l e a cred ita
que é a ú n ica forma de pen tea r o cabe lo de a lg uém. A Au rora também
ten ta e s cova r meus den tes , p ed in do p ra que eu ab ra a boca , e
depois d iz “ Cupe !” , q ue é p ra me a vis a r q ue e s tá na hora de cus p ir.
Ela fica fe liz q uando de ixo e la me da r comida na boca , e o fa to de a
ma ioria do meu a lmoço ca ir n a minha roupa não me de ixa menos
ag radecido. A Au rora cu id a de mim, mes mo eu não p re cis ando que e la
cu id e . Mas quando eu e s tive r ve lho e cans ado e ra nzin za e mag ro e
bangue la ? Você va i cu id a r d e mim, Au rora ?
Quando eu for ve lho s e re i rico ou pob re ? Te re i e rra do mu ito,
d e cepcionado mu itos , tomado de cis ões e s túp id as ? Te re i p ed ido
demis s ão em um momento de ra iva , colocado todo o meu d in he iro em
um negócio a rris cado? Te re i te fe ito chora r, Au rora ? Quan tas ve zes ?
E quan tas des s as ve zes vão nos s epa ra r um pouqu in ho? E quan tas
vezes você a in da va i q ue re r e s cova r o re s to dos meus den tes ?
D aqu i a q ua ren ta , cin quen ta anos . Você a in da va i cu id a r d e mim?
Eu pa re i e s s es d ia s na fre n te do corre dor d e fra ld a s do
s upe rme rcado. Tocava um s onzin ho amb ien te mu ito ag radáve l no
a lto-fa la n te , a cho que e ra uma bos s a , e e u fiq ue i a li olh ando a s
fra ld a s por u ns qu in ze , vin te s egundos . Ma is q ue is s o a s pes s oas
iam me a cha r e s qu is ito. Mas naque le momento olh ando a s fra ld a s eu
já s en ti s audade de hoje . Sen ti s audade des s a fa s e , d e s s a id a de
es pecífica em que tudo é p re s ta tivid ade e amor. Eu s en ti s audade de
te r q ue comp ra r fra ld a s p ra Au rora . Sen ti s audade de te r e s crito e s te
texto. Sen ti s audade des ta fra s e . Ela a cabou de fa ze r dois a nos . Ela
não cons egue fa la r d ire ito, s e limpa r d ire ito, n ão cons egue anda r
d ire ito e p re cis a de a ju da p ra fa ze r a ma ioria d as cois a s .
Ma is ou menos como eu , d aqu i a cin quen ta anos .
Máfia no d ivã
Provavelmente deveria estar falando is s o apenas pa ra o
meu p s iq u ia tra , mas me lemb ro a té hoje do d ia em que o meu
p rofes s or n a fa cu ld ade exp licou por q ue não tin ha filh os . Ele olhou
pa ra a s a la lotada e pe rgun tou : “ Quan tos de vocês a cham s eus pa is
uns bananas ? ” . A s a la ficou muda , mas aos poucos dezenas de
mãos s e le van ta ram. “ Pois e n tão. É por is s o que eu não tenho filh os .
Não que ro s e r um banana p ra n in guém.”
Não é p re cis o olh a r nos s os ócu los de a ro g ros s o e nos s a
fixação por b andas indies do Canadá p ra pe rcebe r q ue s omos uma
ge ração de jovens pa is in s egu ros e pe rd idos , ten tando s e r amigos
de nos s os filh os enquan to e le s e s tão mu ito ma is p ro clima “ a cho
que cons igo a lgo me lhor” . Algo a con te ceu com a nos s a ge ra ção. Eu
olh a va aque le s filmes do John Hughes no me io dos anos 1980 e os
pa is d e família e ram s enhores de re s pe ito, n ão e s s es b ranque los
ranhen tos que a minha ge ra ção s e tornou .
Lemb ro-me de b rin ca r n a ca s a do meu amigo Gus ta vo. O pa i do
Gus ta vo e ra um pa i típ ico da época : b a rrig a g rande , d edos g ros s os
na mão e pouca pa ciê n cia p a ra b rin cade ira s . Ele e n tra va em cas a ,
e s tá vamos jogando Ata ri, d a va um be ijo no filh o e d es apa re cia . A
pa rtir d a li p re cis á vamos aba ixa r o volume da TV e das conve rs as , ou a
mãe do Gus ta vo vin ha g rita ndo: “ S ilê n cio! Teu pa i tá em cas a ! Teu pa i
tá cans ado!” . Se r p a i n aque la é poca e ra como s e r um mafios o. As
pes s oas te re s pe ita vam.
Hoje em d ia minhas filh a s me a cordam pu la ndo na minha
ba rrig a . “ Ta mimindo papa i? ” , p e rgun ta a menor, e nquan to ab re meu
olho a força . A ma is ve lh a exig e que eu pa re tudo o que eu e s tou
fazendo p ra a rruma r a lg um p rob lema no Ne tflix. O ún ico momento que
me s in to um mafios o com um traba lho s u jo é q uando troco a s fra ld a s
da pequena . Eu a chava que minha vid a de pa i s e ria como a do pa i do
Gus ta vo, mas e s tou ma is p a ra a mãe de le . Semp re com medo e
a rrumando tudo. As mafios as de ve rdade lá d e ca s a têm dois e oito
anos .
As h is tória s q ue me con tam
Uma das coisas mais incríveis de escrever s ob re cria n ças é
pode r ou vir h is tória s d e ou tros pa is . Re ceb i a h is tória d a Gab rie la ,
cin co anos , s ob rin ha do Alf, q ue quando viu a imagem de uma s an ta
no pa in e l do ca rro da a vó, p e rgun tou : “ Vó, p ra q ue s e rve aque le
s an tin ho? ” , ao que a vó re s pondeu : “ Pra nos p rotege r. Se a vó ba te r
o ca rro a s an tin ha e vita q ue a gen te s e machuque ” . A Gab rie la
pens ou um pouco e ponde rou : “ Ah , o ca rro do papa i também tem um
des s e . Só que no ca rro de le é um ba lão que s a i do pa in e l” . En tre fé e
airb ag, e u e a Gab rie la ficamos com o s egundo.
A Le tícia tin ha s e te anos quando e s ta va começando a
ap rende r a le r. Num domingo de ta rde , ca rro che io, p a rado em um
s emáforo, Le tícia s olta : “ VA-CHI-LES-KI PN-EUS” . Todos no ca rro s e
olh a ram! A p rime ira fra s e comp le ta lid a p e la Le tícia . Es ta ciona ram o
ca rro a li mes mo na fre n te da oficin a e s a íram pu la ndo, re a liza dos com
a conqu is ta da men in a . Agora , n ão me pe rgun tem como s e s ole tra
“ Vach ile s ki” . Além de gên ia , a Le tícia d e ve s e r ru s s a .
A He le na é a filh a do Ma rcos . Ela é morena e tem olhos
enormes . Fa ze r a He le na dormir n ão é fá cil (n enhuma cria n ça dorme
fácil d epois d e dois a nos , a n ão s e r q ue você e s te ja a tra s ado pa ra
uma fes ta de an ive rs á rio in fan til e PRECISA que e la n ão du rma . Aí
e n tão e la dorme extremamente fá cil). A He le na , s emp re quando va i
dormir, q ues tiona o Ma rcos s e todas a s ou tra s pes s oas já dormiram
também. E q uando eu d igo todas a s ou tra s pes s oas que ro d ize r
TOD AS as pes s oas que a He le na s abe que exis te . “ A vovó? ” ,
p e rgun ta a He le na . “ Já foi dormir” , re s ponde o pa i. “ A p rofe? ” . “ S im, a
p rofe também” . E a s s im por d ia n te , p a s s ando pe la tia , vó, amigu in hos
da e s cola e todos os pe rs onagens de todos os des enhos do
D is cove ry Kid s . Alg umas vezes , o Ma rcos dorme an tes da He le na .
D e uma hora p ra ou tra o Gu ilh e rme , dois a nos , começou a fa la r
nome fe io. “ Ca ia io! Ca ia io!” , e a mãe ficou apavorada . Te le fonou p ra
es cola . “ Quem es tá ens in ando meu filh o a fa la r p a la vrão? ” E o
Gu ilh e rme lá , s oltando “ ca ia io” n as s itu ações ma is cons trangedoras ,
no e le vador, no a lmoço de domingo. Um d ia , p a s s eando no pa rque ,
começou a g rita r: “ CAIAIO !” . E a mãe corada de ve rgonha . Gu ilh e rme
aponta va e g rita va “ CAIAIO !” . A mãe olhou p ra onde Gu ilh e rme
aponta va . Era um ca va lo.
A Sofia , s e te anos , foi p a s s a r um mês de fé ria s com os pa is n a
cas a do amigu in ho Arthu r, no Rio de Ja ne iro. Pra ia todo d ia , mu ito
pas s e io de b icicle ta , e um d ia Sofia notou que o ga roto nunca
as s is tia te le vis ão. O pa i d e la exp licou : “ Ele s n em têm te le vis ão em
cas a . Os pa is d e le n ão que rem que e le fiq ue vendo des enho o d ia
todo” . E, re a lmen te , o g a roto e ra ma is ca lmo que a s ou tra s cria n ças e
pas s ava o d ia todo b rin cando com le go, p ip a e b icicle ta . Um d ia , Arthu r
pe rgun tou p ra Sofia q ue tipo de cas tigo e la le va va s e não s e
comporta va d ire ito. A Sofia re s pondeu : “ Ficou uma s emana s em ve r
te le vis ão” . Arthu r re cebeu a impactan te in formação, e n cheu os olhos
de lá g rima e vira ndo pa ra os pa is p e rgun tou : “ En tão eu tô s emp re de
cas tigo? ” .
D icioná rio in fan til d a lín g ua portugues a - Ed ição re vis ta e a tua lizada
Aurora está começando a falar. Ela já e n tende tudo o que a
gen te fa la , como por exemp lo, “ Au rora , p ega uma ce rve ja g e la da p ro
pa i” , mas a in da não formava fra s es a té s emana pas s ada , q uando me
viu fa ze r um víd eo em câme ra le n ta no iPhone e s oltou um “ QUE LEGAL!” ,
p ra d e lírio dos donos de la , a s abe r, e u e a minha mu lh e r. A Au rora é
uma das cois a s ma is le ga is q ue a gen te já fe z, s em dúvid a .
Ela e n tão começou a ju n ta r a s pa la vra s e on tem já e s ta va
d izendo “ Papa i, vem toma ca ca co comigo” , q ue s ig n ifica “ Papa i, vem
toma r um s u co comigo” . Se i d is s o porque e la e s ta va tomando s u co,
mas a fra s e s e ria a mes ma pa ra água , p is cin a ou banho. Tudo é
ca ca co. Uma s u til d ife rença pa ra “ p apa to” , q ue s ig n ifica “ s apa to” e
va le p a ra s apa tos , tên is , ch in e lo, botas e a té crocs , mes mo que e s te
s e ja um item p roib ido aqu i em cas a (minhas filh a s cons omem
es cond id as , in cen tivadas pe la minha mu lh e r. Alô, ju izado de
menores !).
Todos os an ima is d e qua tro pa tas s ão “ auau ” e todos os
an ima is q ue voam s ão “ cocó” . Todas a s cria n ças s ão “ nenê ” , mes mo
que s e jam ma iore s que a Au rora . As ún ica s pes s oas que têm a hon ra
de te rem pa la vra s exclu s iva s s ão “ Papa i” , “ Mamãe ” e a Ga lin ha
Pin tad in ha , q ue é a te rce ira “ p es s oa ” q ue a Au rora ma is vê e ,
portan to, tem a a lcunha exclu s iva “ popó” . A Ga lin ha Pin tad in ha é a
me lhor b abá que já tivemos , a liá s . Aca lma a Au rora como n in guém e
não cob ra dé cimo te rce iro. A Supe r Nanny pe rdeu o emp rego depois
do ad ven to da Ga lin ha Pin tad in ha .
É uma fas e des lumb ran te pa ra os pa is , e s s a dos quas e dois
anos . Se e la tive s s e dez anos e fa la s s e des s e je ito ia s e r me io
p reocupan te , mas como e la p a re ce uma anã fa la n te de p ijama pe la
cas a , q ua lq ue r g runh ido emociona . Is s o a té você des cob rir q ue a
filh a do vizin ho já fa la “ e u te amo, p apa i” . Es tamos p re cis ando
a tua liza r o d icioná rio, Au rora .
Situação comp lica d ís s ima
segundo minha f ilha, e la e s tá em uma s ituação
“ comp lica d ís s ima ” . Pa la vra s de la . O fa to é que e la tem um namoro
não de cla rado com um men ino do p réd io (a pa ren temente e le n ão
s abe d is s o) e a gora começou a gos ta r d e um ou tro ga roto no colé g io.
“ Não que ro machuca r n enhum dos dois ,” e la me d is s e , a p reens iva .
Ela n ão s abe que em s ituação comp lica d ís s ima e s tou eu , is s o s im.
Que r d ize r: e s pe ro que com bas tan te conve rs a eu pos s a
p rote la r um namoro s é rio por p e lo menos ma is d ez anos (n ão riam),
mas uma hora eu s e i q ue um ga roto s uado e de boné , com uma
be rmuda la rg a dema is e uma ta tuagem de d ragão no omb ro va i me
chama r de s og ro. E e u já q ue ro e s trangu la r e s s e ra paz. Mes mo que
e le exis ta apenas nes te texto eu que ro e s trangu la r e s s e ra paz. Por
fa vor, meu filh o, p ra q ue e s s a ta tuagem de d ragão? ! Ponha -s e já p ra
fora da minha cas a . E minha filh a , p a re de chora r!
Porque eu não conheço nenhuma mu lhe r q ue tenha e s colh ido
um homem corre to (exceção da minha mu lh e r) e a ra zão é s imp le s : a s
mu lhe re s cos tumam es colh e r ma l porque a s más e s colh as s ão a
ma ioria . A p equena porcen tagem de homens educados nes s e mundo
é te rrive lmen te ig norada pe la s mu lh e re s , q ue não que rem namora r o
que e la s chamam de “ ca ra s cha tos ” . Homens educados dema is ,
corre tos dema is , g en tis d ema is , limpos dema is ou s ób rios dema is
s ão cons id e rados cha tos pe la mu lh e r mode rna .
Imag ino que is s o fa rá com que os homens corre tos s e
trans formem cada vez ma is em homens in corre tos , com ta tuagens de
d ragão no omb ro. Ques tão de s ob re vivên cia . As s im, d aqu i a d ez anos
minha filh a te rá pouqu ís s ima opção.
Portan to, e s tamos eu e a minha filh a em uma s ituação
comp lica d ís s ima , como e la gos ta de fris a r. Ela porque não va i q ue re r
machuca r n in guém. E e u porque vou que re r machuca r a todos .
A re volta dos colchões
Estamos em guerra lá em casa. E e u não vou med ir e s forços
pa ra ven cê -la .
Quando coloque i te le vis ão, móve is novos e a r-cond icionado
no qua rto das men in as , n ão foi p ens ando ne la s , mas em mim mes mo.
Es s e é um dos meus p la nos de gue rra . A ú n ica ra zão de de ixa r o
qua rto de la s ma is bon ito e h ab itá ve l é q ue eu não aguen to ma is q ue
e la s du rmam na minha cama .
Tenho convicção de que é uma re volta comb inada . Pa ra cada
vez que a s ob rigo a toma r banho ou a come r b rócolis , e la s p repa ram
a vin gança pa ra o me io da noite . Pe rto da me ia -noite e la s en tram
s orra te ira s no qua rto e começam a tortu ra r.
Na re voltos a ma is nova , p e rcebo o pad rão de dormir
a tra ves s ada na cama , com um de nos s os tra ves s e iros emba ixo de la .
D es s a forma , e la cons egue da r chu tes em mim ao mes mo tempo em
que dá cabeçadas na minha mu lh e r. A ma is ve lh a gos ta mu ito de
dormir a b ra çada na gen te . En tão, e nquan to le vo chu tes na ca ra de
uma , a ou tra e s tá me imob iliza ndo. É, s em dúvid a , um traba lho em
equ ip e mu ito bem-fe ito.
M in ha p rime ira e s tra tég ia d e re s is tên cia d epois d as
s is temática s in vas ões ao meu colchão foi comp ra r uma cama ma ior.
En comendamos uma s ob med id a que ocupa p ra ticamente o qua rto
todo. “ Is s o de ve re s olve r,” e u pens e i, in gênuo. Mas a s in vas oras de
colchão não s e con ten tam em apenas dormir n a s ua cama . Ela s
também que rem dormir do s eu la do da cama . En tão não importa o
tamanho da cama , in e vita ve lmente no me io da mad rugada e la s vão
es ta r com um pé na s ua ca ra e um cotove lo no s eu e s tômago.
Já ten te i a e s tra tég ia “ dormir n a cama de la s pa ra que pens em
que a cama de la s é a minha cama e pas s em a dormir s emp re lá ” . Não
funcionou porque e la s me e s pancavam na cama de la s E n a minha
cama , s egu in do-me no me io da noite . Já ten te i a “ trin che ira d e
tra ves s e iros ” me s epa rando de la s du ran te a noite , mas e la s
romp iam a ba rre ira . Já ten te i a e s tra tég ia dos móve is novos e TV no
qua rto de la s . Nada pa re ce e s ta r d ando ce rto.
Es tou pens ando em lib e rá -la s do banho e do b rócolis . Se rá
minha bande ira d e paz.
Só is s o?
Vocês vão dizer ``tal pai, tal FIlha``, mas a ve rdade é que
eu que ria q ue minha filh a ma is ve lh a a cred ita s s e em a lgo que não
fos s e a s imp le s maté ria . Mas e la n ão a cred ita . Ela n un ca a cred itou
em Papa i Noe l, por exemp lo. Nunca te ve medo de Papa i Noe l, como
a lg umas cria n ças . S imp le s mente olh a va impas s íve l p a ra o ca ra
ves tido de Papa i Noe l porque p ra e la e ra exa tamente is s o: um s u je ito
ves tido com uma roupa e s qu is ita .
Eu d izia : “ O lh a filh a , o Papa i Noe l!” . E e la me olh a va como s e eu
fos s e a lg um id iota . “ Pa i, é um ca ra ve s tido de Papa i Noe l.” Is s o
quando e la tin ha trê s anos . Com o pas s a r do tempo, o ce ticis mo de la
foi me de ixando cons trang ido de s uge rir q ua lq ue r e n tid ade
fan tas ios a . Eu ia me s en tir rid ícu lo ten tando ap re s en ta r, como a lgo
ve ros s ímil, o coe lho da pás coa , por exemp lo.
— É um coe lho que tra z ovos de chocola te , filh a .
— Sé rio, p a i. Is s o não fa z s en tido nenhum!
— Errrr… ok, filh a . Eu s e i.
Quando ca iu o p rime iro den te da An ita a g en te ten tou fa ze r
a lg uma cois a ma is lú d ica , p ra e la a cred ita r n a fada do den te . Sabe?
Aque la q ue pega o den te da cria n ça? Ok, e u s e i q ue não fa z s en tido.
Tô s ó con tando uma h is tória . En fim. Fa lamos p ra que e la colocas s e o
den te emba ixo do tra ves s e iro, e s pe ramos e la dormir, colocamos uma
moeda de um rea l no lu ga r do den te , e e s pe ramos pe lo d ia s egu in te .
Ela a cordou g rita ndo: “ PAI!” . Naque la manhã eu re a lmen te
ache i q ue ve ria a que le s olhos b rilh ando, a que le s orris o la rgo e
aque la a le g ria do tipo: “ É REAL! FAD AS EXISTEM !” .
Ela e n trou no qua rto mos trando a moeda de um rea l.
E d is s e :
— Só is s o? !
Nos s a me lhor vis ta
Da única vez que eu visitei o Caribe, e a s pa rce la s não e s tão
pagas a té hoje , o hote l tin ha nos dado o qua rto com a p ior vis ta
pos s íve l. A ja ne la n ão da va p ra uma pa is agem tos ca , n em p ra uma
pa rede de um p réd io, como o conce ito de “ p ior vis ta pos s íve l” pode
p re s s upor, mas pa ra a p a rte de den tro do cen tro de convenções do
p róp rio hote l. Não s e via o d ia , n em o s ol, a penas a s lu zes fria s e a
de cora ção ma is fria a in da . Os d ia s e ram ótimos nas p ra ia s , mas
volta r p raque le q ua rto com vis ta p ra d en tro do p róp rio hote l, e ra
tris te .
D a nos s a ja ne la s ó pod íamos ve r ou tra s ja ne la s , todas
vira das pa ra o cen tro de convenções , e no cen tro de convenções
rola vam aque la s fe s tas dep rimen tes – fe s tas de qu in ze anos de
men in as maqu ia das dema is e con fra te rn iza ções de emp res as onde
todo mundo u s a te rnos dois n úme ros a cima do tamanho ce rto, e s s e
tipo de cois a . Nas ja ne la s vira das pa ra o cen tro de convenção,
a penas ou tros cas a is , d e olh a r vid ra do e me la n cólico. O mes mo olh a r
que tín hamos , e u , min ha mu lh e r e nos s as filh a s .
Fa ltando dois d ia s p a ra irmos embora re s olvi a b rir mão de
me ia d úzia d e lamba ris ve rdes e muda r d e qua rto. Não aguen tá vamos
ma is dormir ao s om de lambada e a corda r s em s abe r s e fa zia s ol ou
chuva . Que ríamos o me lhor q ua rto agora , com a me lhor vis ta , p e la s
p róximas duas noite s . Que ríamos dormir com o ba ru lho das ondas ,
a corda r com os pás s a ros ca rib enhos can tando em pap iamento.
“ En tão vamos coloca r vocês no 80 9, s enhor. É a nos s a me lhor vis ta ,”
d is s e a a tenden te . Pas s ado o ca rtão de créd ito (o s is tema de
pon tos s emp re me cons ola n es s a hora , a pes a r d e eu a té hoje n ão
te r pon tos nem p ra comp ra r uma ba tede ira ), fomos a rruma r a s ma la s
p ra mudança de qua rto.
Ca lções de banho e ma iôs em s a cos p lá s ticos , a ú ltima cois a
que p re cis a va fa ze r a n tes de s a ir d aque le q ua rto dep rimen te e ra
troca r a fra ld a da Au rora (minha filh a ma is nova ). D e ite i-a n a cama ,
tire i a fra ld a com xixi d e ixando a men in a pe la da em cima dos le n çóis
b ran cos . O lh e i o le n ço umedecido em cima do ba lcão e , nos dois
s egundos que me es tiq ue i p ra p egá -lo, min ha filh a fe z o ma ior cocô
que eu já h a via p re s encia do. Era me io ve rde , e me io p re to, e tin ha
uma cons is tên cia p as tos a , q ue não s ó manchava os le n çóis e
imp regnava o qua rto com um che iro in s uportá ve l, como também
ameaçava e s correga r d a cama em d ire ção ao ca rpe te do qua rto.
O lh e i p a ra aque le e s trago e por a lg uns s egundos me
des es pe re i. A g en te não tin ha como limpa r a qu ilo, s e ria um s e rviço
pa ra a ma is b ra va das cama re ira s . O lh e i p e la ma ld ita ja ne la com a
p ior vis ta do mundo. Vi o ma ld ito cen tro de convenções . Vi também um
outro hós pede , q ue de ou tra me la n cólica ja ne la via a min ha
comp lica da s itu ação. Ele mexeu os lá b ios e p ude le r o q ue e le d izia .
“ D e ixa a s s im” . Ele tin ha um s orris o de vin gança na boca . “ D e ixa
as s im,” e le fa la va s orrin do.
Pegue i a cria n ça e pa rti rumo ao 80 9.
A re lig ião da minha filh a
A Anita não acredita em Deus. Ou me lhor, n a s pa la vra s de la ,
e la “ a cha que D eus não exis te de ve rdade ” . O lh a eu s endo
tendencios o. “ Como é que D eus exis te s e nun ca n in guém viu e le ? ,”
e la me pe rgun tou . Eu de via te r s imp le s mente concordado, porque
reducion is ticamente é n is s o que eu a cred ito também. Mas re s olvi
e s tende r um papo porque pa i gos ta mes mo é de comp lica r a s cois a s .
Um pa i q ue não comp lica a s cois a s não é pa i, é uma vis ita .
Es tá vamos den tro do ca rro num d ia d e chu va , voltando da au la
de re forço.
— O lh a , An ita , tem gen te que a cred ita q ue Ele exis te s im. E, em
teoria , ju deus e cris tãos a cred itam que Mois és viu D eus no Monte
Sin a i.
O que le vou à p róxima pe rgun ta . Toda re s pos ta pa ra uma
cria n ça é um convite a uma p róxima pe rgun ta . “ E como é D eus
en tão? ”
— Na Bíb lia , d iz q ue e le e ra uma p la n ta que pegava fogo.
Ela fe z uma ca re ta . Eu vi p e lo re trovis or, me io orgu lhos o de
nota r q ue os abs u rdos b íb licos n ão convenciam nem uma men in a de
oito anos .
— En tão D eus é um fogu in ho?
— Não, e le , teoricamente -ve ja -bem, é uma p la n ta que pega
fogo e te rnamente e fa la com as pes s oas que e le e s colh e , no cas o
Mois és , q ue lib e rtou o povo ju deu .
Um taxis ta me u ltra pas s ou pe la d ire ita , no me io das ob ra s da
Protás io. D eus o abençoe .
— Que que é ju deu?
— Ju deus s ão os ca ra s que a cred itam em tudo que e s tá na
Bíb lia , menos na pa rte de Je s us . Pra e le s o bam-bam-bam, filh o de
D eus , a in da não voltou p ra Te rra p ra fa la r com as pes s oas . Ele s
a cred itam em D eus , mas não em Je s us . Quem a cred ita em Je s us é
cris tão.
— E d a í a s p es s oas têm es s as duas re lig iões ?
— Vixi, a s p es s oas têm mil re lig iões . Tem gen te que a cred ita
que D eus na ve rdade s e chama Alá , tem gen te que a cred ita q ue tem
um men in in ho que nas ce na Ás ia q ue é o re p re s en tan te de D eus na
Te rra , tem gen te que a cred ita q ue D eus na ve rdade não é um, mas
vá rios deus es ; tem a té uns ca ra s da cie n tolog ia q ue a cred itam que
na ve rdade vie ram a lie n íg enas de ou tros p la ne tas que povoa ram a
Te rra h á mu ito tempo e a g en te é filh o des s es a lie n íg enas …
E an tes que eu pudes s e a caba r a minha lis ta in forma l d e
re lig iões a An ita fa lou , como quem tem a ma ior ce rte za do mundo do
que que r s e r: “ Eu que ro s e r cie n tolog is ta ” .
As s im, como quem d iz “ e u que ro s e r p s icóloga ” . Ou “ eu que ro
torce r p ro Corin th ia n s ” . Um des gos to tremendo. M in ha filh a q ue r s e r
cie n tolog is ta . M in ha filh a q ue r a cred ita r q ue s omos fru to de uma
reenca rnação de a lmas a lie n íg enas . Con fes s o que , s e pudes s e
volta r a trá s , te ria re s pond ido “ Como é que D eus exis te s e nun ca
n in guém viu e le ? ” d a s egu in te mane ira :
— Ta lve z e le s e ja me io tímido.
Ta rde dema is
Quando meu vô precisou de transfusão d e s angue nos
ú ltimos trê s mes es de vid a (a que la é poca em que fa zemos de tudo
s abendo que não ad ia n ta de nada ), fiq ue i com e le no qua rto de
hos p ita l por a lg umas manhãs . Quando chegou o a lmoço do hos p ita l,
meu vô não qu is come r. “ Quan to cus ta? ” Exp liq ue i q ue e s ta va in clu s o
no pa cote . “ A s ob remes a também? ” Res pond i q ue s im. “ En tão toma r
banho aqu i também não é cob rado? ” E e n tend i porque ha via dois
d ia s e le n ão ia ao chu ve iro.
Pas s e i por uma s ituação pa re cid a com a minha mãe . Na
p rime ira ve z de la n uma chu rra s ca ria d e e s pe to corrido e s tranhe i a
e le gância , pouco hab itua l, d e d ize r n ão pa ra quas e tudo e pega r
apenas a lg umas ca rnes ma is b a ra tas . Bas icamente e la a lmoçou
frango e a rroz. Exp liq ue i q ue e s ta va tudo in clu s o e que e la p aga ria o
mes mo p re ço, comendo p icanha ou lin gu iça , filé mig non ou abacaxi
com cane la . Mas a ve lh a já e s ta va e s tu fada de ga lin ha com bacon .
Na hora do ga rçom ofe re ce r a b ande ja d e s ob remes as , a
lou ca não hes itou em aga rra r dois mous s es , trê s tru fas e um
qu in d im. Ten te i d ize r “ n ão que ro” p ra ou vir um en fá tico “ q ue r s im!”
e nquan to e la d is trib u ía s ob remes as no meu p ra to. Exp liq ue i q ue a s
s ob remes as , e s s as s im, e ram pagas (e por u n id ade !) e e la q u is
de volve r um qu in d im me io mord ido. Ju ro. His tória re a l.
Nos s a família s emp re a cred itou que s ó o muqu ira n is mo s a lva .
Nenhum gas to a cima de trin ta re a is é ju s tificá ve l. Os ite ns do
s upe rme rcado s ão re vis tos pon to a pon to, como s e e s tivé s s emos
lid ando com gangsters do ou tro la do da ca ixa re g is tradora . Um ca rro
deve du ra r ma is d e dez anos , d e p re fe rên cia s em troca r o óleo do
motor. Um chuve iro s ó p re cis a s e r trocado s e s a ir fumaça . “ Fumaça
p re ta , é cla ro” , d iria meu tio Vitor.
Es s a s emana minha filh a ma is ve lh a fe z um traba lho de
mode lo e embols ou a quan tia d e 10 0 rea is . Ju n tou ma is 10 0 de uma
vó, ma is 10 0 de umas vendas de re vis tin has , e voilá: tin ha d in he iro
s u ficie n te p ra comp ra r um Fu rby . Eu me re cus o a exp lica r o que é um
Fu rby , tenho pouco e s paço aqu i p ra e s s as cois a s . Mas é um des s es
b rin quedos que tra zem mu ito aborre cimen to pa ra pa is e filh os . Mas
e la foi ve r o Fu rby . O lhou o Fu rby , te s tou o Fu rby na loja . Pens ou .
D epois foi ve r um tamagoch i. Tes tou o b rin qued in ho. D epois um le go.
D epois q u is ve r umas roupas .
“ Pa i, por q ue os b rin quedos pa re cem tão le ga is n a loja , mas
tão cha tos quando e s tão em cas a? ” Eu exp liq ue i q ue a s pes s oas
s ão a s s im, s ó des e jam o que não têm.
Ela re s olveu gua rda r o d in he iro d e la . M in ha mu lh e r fa lou :
“ An ita , o d in he iro é teu . Tens que gas ta r com a lg uma cois a que tu
gos tes . Não va i vira r uma ‘p ia nge rs ’” , no tom pe jora tivo que s ó a
minha mu lh e r s abe en toa r.
E a An ita re s pondeu : “ Ta rde dema is , mãe ” .
Orgu lho Ne rd
Estou apresentando pra minha filh a ma is ve lh a todos os
g randes filmes da minha in fân cia .
A An ita n ão cu rtiu tan to Goonies, mas adorou E.T. Achou méd ios
os filmes da trilog ia De Volta Para o Futuro , g os tou de Curtindo a Vida
Adoidado e a chou os filmes do Tim Bu rton mu ito tris te s (e la s e re fe re a
Edward Mãos de Tesoura e Os Fantasmas se Divertem). An ita a chou o rote iro d e
Karatê Kid (o a n tigo, com o Ra lp h Macch io) mu ito p re vis íve l – “ Ele va i
g anha r no fin a l” , a rris cou aos 34 minu tos – e virou fã do Macau la y
Cu lkin d epois d e Esqueceram de Mim (e vite i con ta r p ra e la o que o ga roto
s e tornou hoje em d ia ). E e la a dora , re a lmen te adora , todos os filmes
do Chap lin . Acha o Bus te r Kea ton me io cha to. Sabe mu ito.
Nos s a nova feb re é Star Wars. Eu s emp re fu i fã do Luke
Skywa lke r. A An ita q ue r s e r a p rin ces a Leah . Es tamos a s s is tin do o
ép ico O Império Contra-Ataca. On tem à noite a s s is timos Uma Nova Esperança.
A An ita e s tá empolgada com es s e s egundo filme . Ela ri d a s
ca fa je s tice s do Hans Solo. Tenho que ba ixa r Indiana Jones p ra e la ve r.
Com uma hora e q ua ren ta de filme , n a lu ta en tre Luke e D a rth
Vade r, e la a b ra ça um tra ves s e iro. D iz q ue não que r a s s is tir. “ O Luke
va i morre r,” d iz e la e cob re a ca ra com as mãos . “ Se o Luke morre r n ão
tem p róximo filme . Ele n ão va i morre r,” g a ran to. É minha té cn ica p ra
que e la e s te ja olh ando o filme quando a con te ce r uma das cenas
ma is in críve is d a h is tória do cin ema .
Ela e s tá olh ando p ra TV, Lu ke pe rdeu um b ra ço. Ele e s tá
pendu rado numa an tena . Ven ta mu ito no p la ne ta Bes p in . “ Você matou
meu pa i,” fa la Skywa lke r p a ra Lorde Vade r. “ Não, Lu ke ” , re s ponde
Vade r. A An ita e s tá olh ando fixo p ra te la . Eu olh ando fixo p ros olhos
de la . “ Lu ke ,” d iz D a rth Vade r. “ Eu s ou s eu pa i.”
Um s egundo. O lhos vid ra dos na te la . D ois s egundos . Trê s
s egundos de s ilê n cio. Ela a b ra ça o tra ves s e iro com força . “ Pa i...” A
boca a in da en treabe rta , e la n ão a cred ita no que e s tá a con te cendo.
Eu olho fixo p ra e la . Ela olh a p ra mim e pe rgun ta : “ Pa i... é ve rdade? ” . É
o ma ior p lot twist d a h is tória do cin ema . Eu d igo que é ve rdade . Ela
volta a olh a r p ra te le vis ão. Ma is a lg uns s egundos de boca abe rta .
Nem e la , n em Luke Skywa lke r a cred itam no que a caba ram de ouvir.
Lu ke g rita “ Nããããão” e a An ita a rre ga la os olhos . A M ile n ium Fa lcon
re s ga ta Luke . O filme a caba .
Corta pa ra duas s emanas depois .
Es tamos no shopp ing con ve rs ando s ob re o d ia dos pa is . Eu
d igo que não p re cis a comp ra r p re s en te , e la g a ran te que já s abe o
que va i me da r. “ Só exis te um pa i q ue não me re ce ganha r p re s en te
no d ia dos pa is , p a i.” Eu pe rgun to qua l. E e la re s ponde : “ O D a rth
Vade r, p a i” .
O p re ço do s orris o e s tá in fla cionado
A Aurora vai desenvolvendo uma con fia n ça , d aque la s
con fia n ças irrita n tes de cria n ças , em que fin ge nem lig a r p ro meu
olh a r d e te rnu ra , p ros meus be ijos na cabeça , p ros s op ros que dou
no pes coço de la . Cada d ia , por s abe r q ue é amada e p roteg id a , fica
ma is d ifícil s u rp reendê -la com um ca rin ho e , d e s s a forma , d es cola r um
s orris in ho. Aque la s ris adas a lta s e s tão cada vez ma is ca ra s ,
p a s s ando da cotação “ me ro ba ru lh in ho com a boca ” p a ra
“ a rremes s o de cria n ça o ma is a lto pos s íve l” . O p re ço da ris ada
pas s a por um pe ríodo de in fla ção des con trola da .
Eu ten te i u n s be ijos na ba rrig a , umas cos qu in has emba ixo do
b ra ço, e meu pagamento e ra um s orris o cada vez ma is ama re lo. En tão
des cob ri q ue e la a dora corre r p e la da ao s a ir do banho. É uma
des cobe rta ma ra vilh os a , e la d á ga rga lh adas a ltís s imas quando eu
g rito: “ Vou pega r” . A vizin ha do 110 4, q ue não tem filh os , re clama mu ito
na re un ião de condomín io d as “ ris adas a ltís s imas pe rto das oito da
noite ” .
Só que , ob viamente , o p re ço da ris ada foi s ub in do e o tempo
s em fra ld a corre ndo pe la ca s a te ve que ir a umentando p ra
mante rmos um n íve l b á s ico de ga rga lh ada . Um n íve l a ce itá ve l d e RIB
(Ris ada In te rna Bru ta ). E a Au rora , e ven tua lmente , começou a fa ze r
xixi no me io da s a la d epois d e corre r e g a rga lh a r por d ezenas de
minu tos . E a í e u fico b rabo e ponho fra ld a ne la , s ob p rotes tos e
choros . Os choros anu lam boa pa rte do RIB aqu i d e ca s a . (Jama is
te remos um RIB de pa ís d es envolvido.)
Mas agora chegamos em um momento em que eu s e i q ue e la
va i fa ze r xixi no me io da s a la , e la s abe que va i fa ze r xixi no me io da
s a la , mas a gen te fin ge um p ro ou tro que não. Eu p ra ou vir ris a das
de licios as , e la porque de ve s e r mu ito ag radáve l fa ze r xixi no chão da
s a la (n ão p re tendo expe rimen ta r). M in ha mu lh e r q ue r a caba r com a
fa rra , mas s omos eu e a Au rora con tra e la . Limpa r xixi no chão da s a la
é dep lorá ve l. Mas ma is d ep lorá ve l a in da é uma cas a s em ris adas de
cria n ça .
Avós
Minha vó servia pão de trigo aberto com a s mãos , s em fa ca ,
lambuzado de ge le ia d e pe ra , q ue e la mes ma fazia no qu in ta l d e trá s
da cas a . Por trá s dos ócu los enormes , com aque le s quad rad in hos
es tranhos na pa rte de ba ixo p rova ve lmente p ra a ju da r a le r, e la
olh a va empolgada os nove p rimos s en tados , mis tu rando fa re los e
re s tos de lama emba ixo das unhas e ge le ia d e pe ra por toda a ca ra .
Ela p e rgun ta va : “ Es tá boa a ch imia ? ” . Todos os p rimos
res pond iam ao mes mo tempo: “ S im!” , menos o Timóteo, meu p rimo
gordo, q ue quando e s ta va comendo pa re cia e s ta r n uma mis s ão
s ag rada de s e aga rra r no a limen to e empu rrá -lo goe la a ba ixo. A
matria rca fa zia ou tra pe rgun ta re tórica : “ En tão, a ‘ch imia d a fó ’ é
me lhor q ue a ch imia Fritz e Frid a ? ” . Todos em un ís s ono (menos
Timóteo): “ S im!” . En tão e la conclu ía : “ En tão, a ch imia d a fó é a me lhor
ch imia do mundo. Porque d izem que a Fritz e Frid a é a me lhor ch imia do
mundo e a ch imia d a fó é me lhor q ue a Fritz e Frid a ” .
A man ip u la ção p s icológ ica dos meus a vós nos le va va a ou tra s
s ituações s eme lhan tes . Meu vô s emp re de fendeu que a p ipoca doce
que e le fa zia e ra a me lhor p ipoca doce do mundo. Anos depois e u
a in da lemb ra va do che iro e do s abor d aque la p ipoca s ua ve . Meu vô
também abomina va ce rve ja s mu ito ge la das . D e ixa va a ge la de ira com
potência b em ba ixin ha (d a va a des cu lp a das ce rve ja s , mas
p rova ve lmente e ra p ra e conomiza r d in he iro n a con ta de lu z). O fa to é
que tome i uma Ka is e r d a ge la de ira d e le , n um domingo in fe rna l, e
e s ta va s u rp reenden temente de licios a .
Ele gos ta va de re pe tir o tempo todo a s s egu in tes h is tória s :
como cons tru iu d uas cas as e uma ga ragem com as p róp ria s mãos ;
como e ram ed ifica ções tão bem cons tru íd a s que e s tão de pé a té
hoje ; como foi a s tu to nas negocia ções pa ra comp ra r os te rre nos ;
como e ra hones to na época que corta va cabe los no cen tro da cid ade
(s e não apa re ciam clie n tes e le coloca va cin co p ila do p róp rio bols o
p ro che fe não pens a r q ue e le e s ta va roubando). Na época em que foi
caminhone iro, e le d irig ia o me lhor caminhão do mundo e conheceu o
Bras il todo com o ba ru lho do motor d e trilh a s onora . Por is s o,
exp lica va e le , tin ha um zumb ido cons tan te no ouvido e fa zia concha
com a mão do la do da cabeça na hora de a s s is tir o “ noticios o do 12 ” .
Meu vô, Hugo Pia nge rs , morreu d ia 15 d e ab ril d e 20 12 , à s 19h ,
d e des is tên cia mú ltip la d e p la nos . Ele comp le ta ria 93 anos qua torze
d ia s depois . Ve lório p ad rão, com d is cu rs o p ros e litis ta do pas tor
e vangé lico p re s en te e um en te rrin ho bem dep rimen te numa ga ve ta
logo aba ixo de um ou tro morto chamado Romá rio. Núme ro 664 do
cemité rio d e Novo Hambu rgo.
Voltamos p ra ca s a de le , p a redes in crive lmen te bem
cons tru íd a s , s en tamos ao re dor d a ve lh a mes a p ra bebe r a s ú ltimas
ce rve ja s quen tes do vô, come r a s ú ltimas la ra n ja s do qu in ta l,
e s tou ra r os ú ltimos milhos pa ra p ipoca . M in ha mãe trouxe uns
b is coitos de mante ig a fe itos na cas a de la . Tirou da bols a , ofe re ceu
p ros p rimos , ótimo a companhamento p ro ch ima rrão.
Todos comemos . O Timóteo com o vigor h ab itua l.
En tão minha mãe pe rgun tou :
— Es tão bons os b is coitos ?
Um ve rão pe rigos o
No primeiro verão que passei em Porto Ale g re , d epois d e te r me
mudado de Floria nópolis (tra je to opos to ao s ens o comum), a capa do
jorna l Zero Hora a nuncia va “ O ve rão ma is q uen te em qua ren ta anos ” .
Eu não tin ha a r-cond icionado, n em em cas a e nem no ca rro, e a
s olu ção p ra re fre s ca r minha filh a p equena foi comp ra r uma p is cin a de
mil litros , d aque la s de p lá s tico, e coloca r no me io da nos s a s a la . O
chão e ra de pa rquê .
As vis ita s a chavam me io e s tranho, mas me io eng ra çado, ve z
ou ou tra uma ma is b êbada en tra va na p is cin a também, norma lmente
molhando o chão do oita vo anda r. Não tin ha nem um ven tin ho na
cid ade , n ão tín hamos nada a lém de a lg uns cubos de ge lo que iam
d ire to da ge la de ira p a ra a á gua da nos s a p is cin a p role tá ria , ú n ica
forma de re fre s co, a lém da ce rve ja e d a ca ip ira (minha filh a tomava
s uco de la ra n ja ).
Pois o ve rão não pas s ava e nos s a p is cin a p re cis a va te r a
água trocada . Es s as p is cin a s têm aque la p equena abe rtu ra no fundo
de la s , mas não pod íamos u s á -la no chão de pa rquê . Começamos a
es vazia r a p is cin a com ba ld es , mas chegou uma hora que , p ra tira r
toda a água , tivemos que le van ta r o p lá s tico todo, p ra joga r o re s to
de líq u ido no tanque da á rea de s e rviço. E a í vimos que , s emanas de
us o, tín hamos des tru ído um pedaço do p is o. Agora s im ia fe rve r p ro
nos s o la do.
Volta a fita s e is mes es . Quando chegue i n a cid ade , em
agos to, fa zia p e rto de cin co g raus . Es tá vamos fe lize s por a rruma r um
apa rtamento p ra a lu ga r p e rto do tra ba lho, com vis ta p ro rio, por 850
rea is ao mês . Nos qua rtos en tra va s ol à ta rde e minha filh a , à s ve zes ,
p as s ava des enhando em folh as de pape l d e ra s cunho, no chão. A
dona do imóve l mora va logo aba ixo da gen te , no 70 4. E é a í q ue
es ta va o p rob lema .
D e volta ao ve rão, a á gua da nos s a ja cuzi imp rovis ada já tin ha
molhado tan to o pa rquê que o negócio e s ta va mole . A á gua já tin ha
chegado à la je , e p rova ve lmente e ra ques tão de d ia s p ra locadora
pe rcebe r nos s a imp rudência , d a p ior mane ira pos s íve l: com manchas
de in filtra ção no te to da cas a de la .
No d ia s egu in te , a Ana fe z um bolo de cenou ra e d es cemos
pa ra exp lica r a s itu ação. Tocamos a campa in ha e a Sra . Não Pos s o
D ize r o Nome g ritou “ s ó um minu to!” lá d e den tro, vin do a tende r a
porta en rola da numa toa lh a . D e can to a gen te cons egu iu p e rcebe r,
no me io da s a la d e la , uma p is cin a colorid a , d aque la s de cria n ça ,
che ia e no me io da s a la d e la . O chão comp le tamente molhado. E e la
d is s e : “ D ane -s e o vizin ho, e s s e ca lor tá in s uportá ve l” .
Era domingo e comemos o bolo den tro da p is cin a .
Men inos e men in as
É incrível que hoje em dia, com tan tas inovações te cnológ ica s ,
do botox à u va itá lia s em ca roço, n ão e s te jamos ap tos a e s colh e r o
s exo dos nos s os filh os . Podemos de cid ir s ob re cois a s bana is , como
o s abor d a pas ta de den te e s hampoos pa ra cabe los lis os ou
cre s pos , mas a lgo importan te como o s exo dos nos s os filh os é a lgo
que nem a na tu re za nem a ciê n cia nos concedeu e s colh e r. Só
des cob rimos no qua rto ou qu in to mês da ges tação, n aque la imagem
pés s ima da te le vis ão da e cog ra fia (ou tra cois a que p re cis a s e r
ap rimorada pe la te cnolog ia ).
Fa z d ife rença s e é men ino ou men in a? Sou pa i d e duas
men in as . Ela s s ão me ig as e ca rin hos as e s e eu tive s s e ma is mil
filh os gos ta ria q ue fos s em mil g a rotas . Mas tenho amigos que têm
men inos in críve is , e du cados e cria tivos . Men inos s ão ma is p rá ticos ,
exp loram lu ga re s e fa zem expe riê n cia s . Ga rotos gos tam de queb ra r
cois a s , chu ta r bola em cois a s , s u ja r cois a s , p is a r em cois a s . Acho
que eu me d ive rtiria mu ito com filh os homens . Porém, d izem que
men inos s ão ma is lig a dos à mãe . Men in as s ão ma is lig a das ao pa i.
Não s e i s e é ve rdade , mas gos to de s e r o p re fe rido. Vocês , mães de
ga rotos , s abem como é .
Se pudes s e e s colh e r, porém, a cred ito que a ma ioria d as
pes s oas e s colh e ria te r filh os homens . O mundo é me lhor p a ra os
homens . Men inos s ão tra tados com ma is lib e rdades , têm menos
medo de s a ir n a ru a , s ofrem menos p re conce ito e q uando começam a
traba lh a r g anham s a lá rios me lhore s . Se ria lou cu ra s e pudés s emos
es colh e r o s exo dos filh os e mes mo as s im es colh ês s emos men in as .
O lho p ra s minhas filh a s todos os d ia s e lemb ro que um d ia
irão cre s ce r. Ganha rão s a lá rios menores ? Se rão a s s ed ia das pe lo
che fe? Se rão tra tadas como pes s oas frá ge is e in capazes ? Te rão
s uas in timid ades vazadas na in te rne t? Ou te remos e volu ído? O
mundo s e rá ma is s egu ro pa ra e la s ? O mundo s e rá ma is ju s to?
Acho que s e ria uma e volu ção te cnológ ica in críve l pode r
e s colh e r o s exo do s eu fu tu ro filh o. Mas uma ou tra e volu ção p re cis a
a con te ce r a n tes d is s o.
Que nunca a cabe
Domingo a gente foi andar de bicicleta. O d ia e s ta va
acabando, tin ha um monte de ou tros pa is e ou tra s filh a s na ciclovia .
O s ol a in da ba tia d e la do e uma b ris a boa s op ra va , e nquan to minha
filh a fa la va . Era um des s es d ia s de ca lor no me io de ou tros d ia s de
frio. Um des s es d ia s que a gen te e s quece que exis te qua lq ue r
p rob lema . Era um des s es d ia s que , e nquan to você ap rove ita , va i
s en tin do uma nos ta lg ia porque s abe que va i a caba r.
Ela d is s e que não tin ha medo da morte . Mas tenho medo do
fu tu ro, p a i. Tenho medo de cre s ce r. Tenho medo de você e a mamãe
enve lh e ce rem. Tenho medo de vira r a du lta , d e te r q ue a rruma r um
emp rego. Tenho medo de te r con tas p ra paga r. Não tenho medo da
morte , p ra mim a morte não é a p ior cois a que pode a con te ce r a
a lg uém. A morte é como dormir p ra s emp re , s ó is s o. É mu ito p ior s ofre r
um a cid en te , n ão pode r ma is corre r, n un ca ma is a nda r d e b icicle ta . É
mu ito p ior ve r os pa is e n ve lh e ce r, s abe r q ue vão morre r.
Eu s ó d izia q ue “ s im” , “ pois é ” . Que eu também s en tia a s s im. A
b ris a ba tia no meu olho e e ra uma boa des cu lp a p ro choro. Ela d izia
que que ria conge la r o tempo. Que ria fica r p ra s emp re com oito anos ,
a irmã com dois . Os pa is conge la dos com es s a id ade , com es s e
traba lho. Eu gos to do meu colé g io, p a i. D as minhas amigas . Gos to da
nos s a vid a , d a nos s a cas a . A g en te andando de b icicle ta e e la
fa la ndo e s s as cois a s s em s abe r q ue e ram bon ita s .
Fa la va tudo is s o s em s abe r q ue eu s en tia a mes ma cois a . Era
lin do e doído ao mes mo tempo. Como uma mús ica tris te em um
cas amento. Como um jovem que adoece no ve rão. Como um d ia q uen te
no me io dos d ia s frios . Um d ia q ue você s abe que va i a caba r.
Para saber mais sobre nossos lançamentos, acesse:www.belasletras.com.br
[1] A man withou t a coun try (20 0 5).