da semiótica do texto literário à adaptação da … · descritivo. 2. literatura e cinema: uma...

14
Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos Revista Diálogos N. º 17 abril./maio. 2017 358 Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da Personagem Maggie Fitzgeraldpara O Cinema d.o.i.10.13115/2236-1499.v1n17p358 João Paulo Muniz da Silva 1 - UPE Deividy Ferreira dos Santos 2 - UPE Ivana Teixeira Siqueira 3 - UPE Resumo: Tomando como ponto de partida as transposições intersemióticas, a correspondência intermitente das artes e o jogo intertextual que faculta o trânsito entre as diversas linguagens artísticas, o presente artigo revisita, particularmente, os contrapontos existentes entre Literatura e Cinema. Assim, pretendemos realizar algumas análises interpretativas da adaptação cinematográfica da personagem Maggie Fitzgerald, da obra Menina de Ouro, de F. X. Toole, focalizando os aspectos dessa personagem, tentando fazer uma relação entre trechos do livro com as cenas do filme. Dessa maneira, buscaremos discutir sobre a produção cinematográfica e os recursos técnicos utilizados na produção pelo diretor Clint Eastwood e sua equipe para adaptar a obra de F. X. Toole para o cinema. Palavras-chave: Literatura, Cinema, Intertextualidade, Tradução Intersemiótica. Resumen: Tomando como punto de partida las transposiciones intersemióticas, la intermitente correspondencia entre las artes y el juego 1 Graduando em Licenciatura em Letras Língua Portuguesa e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco (UPE). Garanhuns-PE. 2 Especializando em Estudos Linguísticos e Literários (UCAM), Graduado em Letras Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE). Exerce a função de Tutor à distância no Departamento de Letras do Núcleo de Ensino à distância (NEAD/UPE/UAB) Bolsista CAPES. Garanhuns-PE. 3 Graduanda em Licenciatura em Letras Língua Portuguesa e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco (UPE). Garanhuns-PE.

Upload: truongtram

Post on 30-Jul-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 358

Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da Personagem

“Maggie Fitzgerald” para O Cinema

d.o.i.10.13115/2236-1499.v1n17p358

João Paulo Muniz da Silva1 - UPE

Deividy Ferreira dos Santos2 - UPE

Ivana Teixeira Siqueira3 - UPE

Resumo: Tomando como ponto de partida as transposições

intersemióticas, a correspondência intermitente das artes e o jogo

intertextual que faculta o trânsito entre as diversas linguagens artísticas,

o presente artigo revisita, particularmente, os contrapontos existentes

entre Literatura e Cinema. Assim, pretendemos realizar algumas análises

interpretativas da adaptação cinematográfica da personagem Maggie

Fitzgerald, da obra Menina de Ouro, de F. X. Toole, focalizando os

aspectos dessa personagem, tentando fazer uma relação entre trechos do

livro com as cenas do filme. Dessa maneira, buscaremos discutir sobre a

produção cinematográfica e os recursos técnicos utilizados na produção

pelo diretor Clint Eastwood e sua equipe para adaptar a obra de F. X.

Toole para o cinema.

Palavras-chave: Literatura, Cinema, Intertextualidade, Tradução

Intersemiótica.

Resumen: Tomando como punto de partida las transposiciones

intersemióticas, la intermitente correspondencia entre las artes y el juego

1 Graduando em Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e suas Literaturas pela

Universidade de Pernambuco (UPE). Garanhuns-PE. 2 Especializando em Estudos Linguísticos e Literários (UCAM), Graduado em Letras –

Língua Portuguesa e suas Literaturas (UPE). Exerce a função de Tutor à distância no

Departamento de Letras do Núcleo de Ensino à distância (NEAD/UPE/UAB) – Bolsista

CAPES. Garanhuns-PE. 3 Graduanda em Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e suas Literaturas pela

Universidade de Pernambuco (UPE). Garanhuns-PE.

Page 2: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 359

intertextual que proporciona tránsito entre los diferentes lenguajes

artísticos, este artículo se propone a revisitar, muy particularmente, los

contrapuntos posibles entre la Literatura y el Cine. Por lo tanto, tenemos

la intención, en este trabajo, de hacer análisis interpretativos de la

adaptación cinematográfica del personaje Maggie Fitzgerald, de la obra

Million Dollar Baby de F. X. Toole, centrándose en los aspectos de este

personaje, estableciendo una relación entre partes del libro y las escenas

de la película. De esta manera, se entabla una discusión sobre el trabajo

cinematográfico y los recursos técnicos utilizados en su producción por

el director Clint Eastwood y su equipo durante la adaptación de la obra

de F. X. Toole para el cine.

Palabras-clave: Literatura, Cinema, Intertextualidad, Traducción

Intersemiótica

1. Introdução

Antes do surgimento das produções audiovisuais, a literatura era o

único meio de acesso a histórias que envolviam o imaginário com o

cotidiano das pessoas. A partir do surgimento das produções

audiovisuais, como por exemplo, a novela, as minisséries e os filmes, que

sofreram grande influência da literatura, é possível ver nas várias

adaptações de gêneros literários para as telas, sejam elas televisivas ou

nas grandes telas do cinema, que com sua linguagem híbrida, o Cinema

transforma o discurso – no caso, a obra literária – em imagens, som,

movimento, luzes, e essa nova obra, independente, desvinculada do texto

de origem, mas sem perdê-lo de vista, ganha autonomia e novos sentidos.

Extrapolando a nossa capacidade de assimilação e apreensão, na

contemporaneidade, as imagens, veiculadas pelos mais diversos meios de

expressão, ganharam uma inegável preponderância, tomando o receptor

de chofre, provocando um atordoamento, deixando-nos sem norte.

Nesse sentido, as primeiras adaptações de obras para as telas

possuíam uma preocupação apenas em manter a fidelidade ao enredo

original. Os diretores cinematográficos encontraram na literatura

modelos para que pudessem elaborar um enredo, criar personagens,

Page 3: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 360

apresentar como se dá o processo de pensamentos e como trabalhar o

tempo e espaço, dando novas características aos aspectos encontrados na

literatura. Com as comparações entre os filmes e as obras literárias, os

espectadores e vários críticos de cinema procuram a fidelidade, isto é,

buscam encontrar no filme a perfeita correspondência com a obra

literária. Assim, pode-se afirmar que a adaptação de uma obra literária

para o cinema deixa, obviamente, de ser um livro com as ideias do autor

e passa a adquirir novos significados e com as ideias do diretor-

adaptador, que será o autor.

Partindo desta perspectiva, o presente trabalho tem como objetivo

analisar a adaptação do personagem feminino Maggie Fitzgerald da obra

Menina de Ouro, de F. X. Toole, para o cinema, como também, verificar

como certos aspectos do livro são traduzidos para o cinema, mostrando a

utilização da Semiótica na tradução de signos literários. Então, partindo

do pressuposto de que a adaptação/tradução de uma obra literária escrita

produz signos que têm a capacidade de traduzir signos literários em uma

produção cinematográfica e acrescentando outras marcas sobre

personagem feminino, caracterizamos o nosso trabalho como analítico-

descritivo.

2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa

Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura com o

cinema, ou mais especificamente, quando um texto literário é adaptado

para o cinema é comum ouvirmos questões polêmicas e discussões sobre

a “fidelidade” ou “infidelidade” que uma produção cinematográfica tem

com a obra literária. Leitores de romances, por exemplo, procuram

assistir à adaptação para o cinema buscando, não a versão do diretor, mas

a sua versão particular, frutos de suas expectativas e comparações

infundadas com o livro. Entretanto, o filme deve ser visto como uma obra

independente.

A esse respeito, segundo Corseuil (2003), para que uma obra

literária seja adaptada para o cinema, é necessário respeitar o momento

Page 4: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 361

histórico-cultural e é preciso também a inserção dos vários discursos que

constituem como uma produção cinematográfica, como o desempenho

dos atores e como eles operam dentro dessa indústria cinematográfica, a

ideologia dominante no filme, o sistema responsável pela divulgação e

produção, os elementos narrativos envolvidos e a linguagem específica

para o cinema. Sendo assim, Corseuil afirma que: Ao contrário dessa perspectiva redutora de adaptação, vários

estudos de adaptação têm proposto uma análise mais

contextualizada do filme adaptado, respeitando o momento

histórico-cultural em que ele é produzido e inserindo-o nos vários

discursos que o constituem como produção cinematográfica, tais

como: a performance dos diversos atores e como eles operam na

indústria cinematográfica, a ideologia dominante no filme, o

sistema de divulgação e produção, os elementos narrativos e a

linguagem específica ao cinema. (CORSEUIL, 2003, p. 296).

A partir desta abordagem, percebe-se que a comparação com o

original deixa de ser o foco de análise, assim, o filme passa a ser

apreciado como um novo texto, com elementos que devem ser julgados

em seu próprio texto, reconhecendo a importância dessa produção no

processo de reescrita do texto literário. Portanto, é importante observar

que as relações entre o cinema e a literatura são complexas e se

caracterizam pela intertextualidade que, por sua vez, leva a literatura ao

cinema, com a certeza de que não apenas é impossível ser fiel ao livro

como também uma adaptação cinematográfica não deve ter isso como

pretensão.

Em relação à insistência na fidelidade, pode-se afirmar que é um

falso problema, pois se ignora a dinâmica do campo de produção em que

os meios estão inseridos. Então, Johnson (2003, p. 2) afirma que “Um

filme – baseado ou não em obra literária – tem que ser julgado antes de

tudo como um filme, e não como uma adaptação [...] a adaptação fílmica

como uma forma de tradução e, como tal, uma forma de recriação

artística”. De acordo com a colocação de Johnson (2003), não podemos

pensar que será possível colocar em duas horas de filme cada detalhe que

o autor escreve no livro. Sabemos que quando um livro é lido, cada um

tem seu ponto de vista sobre esse livro, da mesma forma é o diretor. Um

Page 5: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 362

diretor de cinema faz a sua própria leitura sobre uma obra literária e

produz sua releitura na adaptação cinematográfica.

Então, a adaptação fílmica é uma comunicação direta entre a

literatura e o cinema, pois as palavras escritas são transformadas em

sequências de palavras e os personagens são transformados em imagens

reais. Assim, uma obra literária adaptada para o cinema é uma

transmutação de um texto verbal em um texto não verbal, pois essa

adaptação ou transmutação pode ser considerada de tradução

intersemiótica.

3. Adaptação/Tradução

Quando diante de linguagens e signos distintos, a relação que

existe entre as diversas modalidades textuais, a forma pela qual um texto

pode incorporar e representar os outros textos, tudo isso, conjuntamente,

acaba por se constituir como objeto dos estudos de tradução

intersemiótica. O conceito de tradução está, tradicionalmente, vinculado

à ideia de fidelidade a algo original. Numa outra face, tem-se o conceito

de adaptação tradicionalmente ligado à ideia de “simplificação” ou até

mesmo de “manipulação” do original. Isso acontece quando o adaptador

tem o intuito de auxiliar a compreensão do receptor do texto-meta,

buscando uma maneira de estabelecer uma ponte entre a cultura de

partida e a cultura de chegada.

A adaptação é vista, por muitos, como ferramenta para adequar

determinada texto-fonte à realidade do receptor do texto-meta. Essa

adequação, muitas vezes, se refere a mudanças de linguagem, sejam estas

mudanças simplificações, atualizações etc. Só o leitor, com seu

conhecimento próprio, com a sua sensibilidade, pode constatar,

gerenciar, perceber a presença ou não de outros textos no texto que lê.

Trata-se da busca que o leitor ou o espectador poderá fazer quando, ao

ler uma obra literária ou assistir a um filme, for provocado pelo

reconhecimento de determinados elementos presentes em suas leituras

anteriores. Trata-se de uma evocação particular e sensitiva desse receptor

específico no seu ato particular de leitura. Na realidade, o leitor faz um

passeio, incursionando pelas suas lembranças, promovendo associações

textuais perceptíveis no universo do seu saber cultural.

Page 6: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 363

Quando a tradução foi reconhecida no mundo como algo

necessário para o crescimento intelectual do homem, King James (apud

Milton, 1998, p. 2) afirma que “é a tradução que abre a janela, para deixar

entrar; que quebra a casca, a fim de podermos comer a polpa; que abre a

cortina, a fim de podermos olhar o lugar mais sagrado; que remove a

tampa do poço, a fim de podermos tirar água”. Então, podemos afirmar

que a partir da tradução, o mundo pode ter acesso a obras escritas em

outras línguas, agora, escritas em sua própria língua materna. De acordo

com Hutcheon (2011), a tradução pode ser, inevitavelmente, alterada, não

apenas no sentido literal, mas também em certas nuances, em associações

e no próprio significado cultural do material traduzido. Já com as

adaptações surgem as complicações, pois as mudanças ocorrem entre

mídias, gêneros e, muitas vezes entre idiomas e, portanto, culturas.

Dessa forma, para Vieira (1996), o papel da tradução na criação

das imagens relaciona-se com a inversão do aforismo convencional,

afirmando que “tradutores têm que ser traidores” e relaciona-se também

à metáfora óptica da refração, a qual foi introduzida por Lefevere para

descrever os efeitos da tradução. O termo metáfora da refração na

tradução foi utilizado por Lefevere em suas primeiras publicações,

passando a ser considerado como reescrita da literatura, pois o mesmo vê

a literatura como um jogo de linguagem e cultura.

É necessário enxergarmos a adaptação não como um objeto

subordinado a sua obra fonte e sim entendermos essa obra como uma

nova obra, um resultado, outro produto criativo, com suas próprias

especificidades. Desse modo, a adaptação sugere que, como qualquer

texto literário, pode-se gerar um número infinito de leituras, pois um

romance pode ter diversas adaptações, dependendo do contexto social,

histórico e cultural.

4. A adaptação do personagem feminino Maggie Fitzgerald para o

cinema

Nesta seção do trabalho, faremos um estudo de como o

personagem feminino Maggie Fitzgerald foi adaptado para o cinema,

Page 7: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 364

bem como mostraremos passagens da obra literária e suas respectivas

traduções/adaptações intersemióticas para a linguagem cinematográfica.

O primeiro encontro de Maggie e Frankie foi numa luta de boxe.

Um boxeador, treinado por Frankie, estava em combate e acabou por

vencer a luta. Maggie estava na arquibancada observando todas as

expressões de Frankie durante a luta. Com o término do combate, Maggie

procura Frankie para uma conversa, com o intuito de que o mesmo seja

seu treinador. No entanto, Frankie estranha uma garota a sua procura e

pergunta se está devendo algum dinheiro a ela, obtendo uma resposta

negativa da mesma. A recusa de Frankie, a partir das descrições feitas

pelo autor, nos remete ao cotidiano, quando os homens olham para uma

mulher apenas como um objeto de desejo e insignificante para o mundo

propriamente masculino. No entanto, percebemos que o autor também a

mostra como uma pessoa equilibrada e com grande potencial para ser

uma lutadora de boxe. Frankie nunca tinha treinado garotas e achava o

boxe um ato antinatural, do qual só os homens poderiam participar, por

ser um esporte sangrento.

O autor descreve a história de Maggie e Frankie através da

narração de Scrap (amigo de muito tempo de Frankie), que é um

narrador-personagem. Scrap consegue perceber o que cada personagem

pensa e nos mostra os aspectos do livro em que ele e o personagem de

Frankie pensam sobre como a mulher está se inserindo no espaço que

antes era apenas masculino. Assim, percebemos no livro aspectos que

retratam os pensamentos de Frankie: Ok, ele pensou, os tempos mudaram. As damas estão fazendo o

que os caras fazem, mas não significa que está certo. E aí vinham

os motivos práticos. Marcar lutas de acordo com os ciclos

menstruais. E peitos com hematomas. E se uma estivesse grávida

e perdesse o filho numa luta? Tudo isso. E ele não podia falar

palavrão. Não que ele falasse tanto palavrão. Mas às vezes um

palavrão é a melhor maneira de dizer o que você quer. Como,

mantenham a porra das mãos levantadas! (TOOLE, 2005, p. 94).

Nesses aspectos, percebemos como o pensamento do homem em

relação à mulher ainda é preconceituoso e machista. As mulheres, desde

que conseguiram ter acesso à educação, também vêm conseguindo

Page 8: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 365

espaço no mercado de trabalho, que antes era prioridade apenas do sexo

masculino. O boxe foi um deles, apesar de a mulher ter os ciclos

menstruais e ter uma gestação de nove meses, sendo esposa, mãe, ela

consegue dar conta da profissão. Percebe-se que os homens só

conseguem ver o lado negativo de mulheres inseridas em espaços vistos

apenas como masculinos.

Nas imagens a seguir, visualizaremos a tradução das expressões

que o personagem feminino Maggie fez durante a cena da luta e o seu

encontro com Frankie, o qual ocorreu à primeira conversa entre os dois.

Fonte: http://sallinos.blogspot.com/2009/08/ameninadeouro.html. Acesso em:

07/04/17

Primeira conversa

Page 9: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 366

Destacamos nas imagens o primeiro encontro e a primeira

conversa entre Maggie e Frankie, como foi traduzido para o cinema. A

expressão do rosto de Maggie é de satisfação em perceber que a sua

escolha para treinador é a melhor. Durante a conversa com Frankie,

aparentemente, percebemos a submissão dela diante de Frankie. No

entanto, não é a submissão por ele ser do sexo masculino, e sim por

respeito ao profissional que está ao seu lado.

As imagens logo no início do filme mostram uma decomposição

do primeiro plano, ou seja, o tipo de plano close up que apresenta o rosto

da personagem bem próximo, passando aos telespectadores do filme a

expressão emocional de cada personagem que pode ser chamada de

visualização do close up. Sobre este tipo de plano, Xavier (1984:19) nos

mostra que “a câmera, próxima da figura humana, apresenta apenas um

rosto ou outro detalhe qualquer que ocupa a quase totalidade da tela (há

uma variante chamada primeiríssimo plano, que se refere a um maior

detalhamento – um olho ou uma boca ocupando toda a tela)”.

Nas imagens, nas quais está ocorrendo o diálogo entre Maggie e

Frankie, vemos uma apresentação do cenário onde passa a cena,

mostrando o plano médio ou de conjunto, que pode ser confundido com

o plano geral. O plano médio apresenta uma cena em situação interior

que remete às figuras humanas e aos cenários, como foi observado. Em

relação ao plano médio, Xavier afirma que:

[...] uso aqui para situações em que, principalmente em interiores

(uma sala, por exemplo), a câmera mostra o conjunto de elementos

envolvidos na ação (figuras humanas e cenários). A distinção entre

plano de conjunto e plano geral é aqui evidentemente arbitrária e

corresponde ao fato de que o último abrange um campo maior de

visão. (XAVIER, 1984, p. 19).

No cenário dos bastidores do ginásio, percebemos um local

rústico e com pouca iluminação, representando um espaço masculino. O

plano médio nos remete à conclusão de que foi usado esse recurso para

apresentar um espaço apropriado para lutadores de boxe do sexo

masculino. Na obra literária não conseguimos sentir o grande impacto da

situação. A tradução cinematográfica prende a atenção dos espectadores,

Page 10: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 367

passando ao público uma grande emoção da cena e a impossibilidade de

evitar o acidente. Durante a vida como treinador de boxe profissional o

lema de Frankie para com seus lutadores era o de “sempre se protejam”.

Maggie foi a primeira e única mulher que Frankie treinou, sempre dava

um jeito de fazer as coisas como ela queria e não como Frankie mandava.

Ele tratava Maggie como se fosse a sua própria filha.

Fonte: http://sallinos.blogspot.com/2009/08/ameninadeouro.html. Acesso

em: 07/04/17

A última luta

As imagens retratam o momento da luta mais importante da vida

de Maggie, já que ela estava enfrentando uma adversária muito forte.

Mas, por obra do destino, embora ela estivesse ganhando a luta, Maggie

acabou sendo golpeada covardemente pela sua adversária e acabou

caindo, batendo o pescoço, atingindo a coluna, o que a deixou

Page 11: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 368

tetraplégica. Nas imagens, percebemos a utilização de vários recursos. O

som, o silêncio, o movimento da câmera para mostrar cada etapa da queda

e o momento exato em que Maggie bate no banquinho e o som do

impacto. Sobre o som, Martin (2007, p. 111) afirma que “o som faz parte,

sem dúvida, da essência do cinema, por ser, como a imagem, um

fenômeno que se desenvolve no tempo”.

Maggie ficou tetraplégica, apenas falava e movimentava um

pouco a cabeça, perdera a capacidade de respirar por conta própria e, para

continuar sobrevivendo, precisava de uma bomba de oxigênio que era

instalada na garganta. Devido às delimitações do seu corpo sem

movimento, começam a surgir feridas causando um grande mau cheiro,

chegando até a ter uma perna amputada. Nunca reclamava de nada, nem

o fato de a família não ir visitá-la e quando foram apenas tentaram que

ela passasse para a mãe a responsabilidade de cuidar do seu dinheiro. No

entanto, a ex-boxeadora já havia doado todo o seu dinheiro para a

Associação Americana de Paralisia. Maggie ficou ainda mais

decepcionada com sua mãe.

Certo dia, ela contou uma história sobre o pai a Frankie; ele tinha

um cachorro aleijado e, com muito penar, o pai sacrificou o cão para

acabar com o sofrimento do pobre animal. Maggie, então, pede que

Frankie a coloque para dormir, como o pai fez com o cão. Frankie tenta

tirar esses pensamentos da cabeça dela. No entanto, certo dia, ainda sem

poder se movimentar, Maggie morde a própria língua que sangra muito,

e só não morreu porque a equipe médica percebeu o que ela havia feito.

Essa atitude custou sua fala, mas as enfermeiras ensinaram Maggie a se

comunicar por sinais piscando os olhos.

Após várias reflexões e conselhos de um padre, Frankie não

suporta mais ver o sofrimento de Maggie, e então, resolve atender ao

pedido de Maggie de colocá-la para dormir, como o pai fez com o seu

cachorro. Frankie aplica uma grande dose de adrenalina na veia de

Maggie, ele queria ter certeza de que não teria possibilidade de Maggie

voltar a sofrer, como presenciou o sofrimento desde o seu acidente.

Page 12: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 369

Fonte: http://sallinos.blogspot.com/2009/08/ameninadeouro.html. Acesso

em: 07/02/16

Frankie coloca Maggie para dormir (eutanásia)

As imagens traduzem todo o aspecto descrito no conto, já exposto

anteriormente. A tradução para o cinema envolve recursos que não

existiam na época em que a história foi produzida, o que se percebe por

meio de aparelhos bem modernos apresentados nas cenas do hospital. A

iluminação da cena nos repassa um aspecto de tristeza, de luto.

Percebemos que as imagens são envolvidas por metáforas, pois cada

detalhe que possamos observar tem um grande significado. Xavier (1984,

p. 15) nos mostra que “as metáforas que propõe a lente da câmera como

uma espécie de olho de um observador astuto apóiam-se muito no

movimento de câmera para legitimar sua validade, pois são as mudanças

de direções, os avanços e recuos, que permitem as associações entre o

comportamento do aparelho e os diferentes momentos de um olhar

intencionado. ”

Page 13: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 370

Além do final do enredo, outra parte da história que nos chamou

a atenção foi o nome em irlandês que Frankie mandou bordar no roupão

de Maggie em uma luta na qual ela ficou conhecida no mundo todo. O

nome bordado era em gaélico, Mo cuishle, tinha vários irlandeses que

começaram a gritar pelo nome escrito, ganhando fãs irlandeses. Na

história de Toole, é revelado logo a Maggie o significado da palavra. No

entanto, no filme, para prender a atenção do público, o significado só foi

revelado apenas antes de Frankie injetar a adrenalina em Maggie, que no

filme não foi na ponta da língua conforme narra o livro, e sim na veia do

braço. Como percebemos ao longo do contexto, Frankie via a Maggie

como uma filha e a amava como tal, da mesma forma Maggie o via como

o seu segundo pai. A palavra irlandesa Mo cuishle, significa “minha

querida, meu sangue” e foi assim até o final.

5. Considerações finais

Como foi possível demonstrarmos ao decorrer deste trabalho com

a produção cinematográfica do livro em estudo, a adaptação do literário

para o fílmico não se encerra ou se esgota na transposição de um para

outro meio. É um processo permanente e extremamente dinâmico, que

permite uma infinidade de inferências, referências, ajustes, adequações,

para moldar as (re) interpretações e postular a observância de

significados desejados.

É claro que quando os diretores se propõem a levar para a telona

um texto literário, com certeza, estão conscientes do desafio que a

empreitada requer. Da concepção tradicional de tradução baseada na

obstinação pela fidelidade ao texto original, podem advir julgamentos

superficiais. A questão da fidelidade textual é, na realidade, como

tentamos reiteradamente demonstrar, uma questão não pertinente. Há que

se considerar os recursos da nova linguagem. Se a literatura dialoga,

como sempre o fez, consigo mesma, a abrangência do discurso literário,

num dialogismo intertextual, pode, com certeza, enveredar para outras

áreas do conhecimento humano.

Page 14: Da Semiótica do Texto Literário à Adaptação da … · descritivo. 2. Literatura e Cinema: uma relação conflituosa Quando o assunto em pauta envolve a relação da literatura

Da Semiótica do Texto Literária à Adaptação... – Silva & Santos

Revista Diálogos N. º 17 – abril./maio. – 2017 371

Muitas são as designações atribuídas ao processo de tradução

intersemiótica. Entre as denominações mais frequentes, constam

transposição, transmutação, transcodificação, transformação,

transcriação, tradução e transmigração. Na realidade, há entre livros e

filmes uma produção de significados estéticos. As películas partem das

palavras escritas para se redimensionarem como imagem, som,

movimento etc.

Nosso propósito, ante a abrangência do tema, é esperar que,

instaurando dúvidas, suscitando questões, enfrentando a polêmica, o

tema seja ponto de partida para retomadas, críticas e, naturalmente, outras

e melhores considerações.

6. Referências

CORSEUIL, Anelise Reich. Literatura e cinema. In: BONNICI, T.;

ZOLIN, L. O. (Orgs.) Teoria literária: abordagens históricas e tendências

contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. de André

Cechinel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011.

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema. Macunaíma: do modernismo

na literatura ao cinema novo. São Paulo: Queiroz editor, 2003.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. de Paulo Neves.

São Paulo: Brasiliense, 2007.

MILTON, John. Tradução: teoria e prática. 2ª Ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1998. [Coleção leitura e crítica].

TOOLE, F. X. Menina de Ouro. Trad. de Marçal Aquino. São Paulo:

Geração Editorial, 2005.

VIEIRA, Else Ribeiro Pires. André Lefevere: a teoria das refrações e da

tradução como reescrita. In: VIEIRA, Else Ribeiro Pires. (Org.)

Teorizando e contextualizando a tradução. Curso de Pós-graduação em

Estudos Linguísticos da FALE/UFMG, 1996.

XAVIER, Ismael. O discurso cinematográfico: a opacidade e a

transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.