anÁlise da relaÇÃo literatura e sociedade em antonio

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO ROSANO FREIRE CARVALHO JUNIOR ANÁLISE DA RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE EM ANTONIO CANDIDO E RAYMOND WILLIAMS: interpretando os fatores sociais que atuam sobre a obra Natal 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DOUTORADO

ROSANO FREIRE CARVALHO JUNIOR

ANÁLISE DA RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE EM ANTONIO CANDIDO E

RAYMOND WILLIAMS: interpretando os fatores sociais que atuam sobre a obra

Natal

2019

ROSANO FREIRE CARVALHO JUNIOR

ANÁLISE DA RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE EM ANTONIO CANDIDO E

RAYMOND WILLIAMS: interpretando os fatores sociais que atuam sobre a obra

Tese apresentada ao Programa dePós-Graduação em CiênciasSociais, da Universidade Federal doRio Grande do Norte, como requistopara obtenção do título de Doutorem Ciências Sociais.

Área de concentração:Complexidade, Cultura ePensamento social

Orientador: Prof. Dr. Gilmar Santana

Natal

2019

ROSANO FREIRE CARVALHO JUNIOR

ANÁLISE DA RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE EM ANTONIO CANDIDO E

RAYMOND WILLIAMS: interpretando os fatores sociais que atuam sobre a obra

Tese apresentada ao Programa dePós-Graduação em CiênciasSociais, da Universidade Federal doRio Grande do Norte, como requisitopara obtenção do título de Doutorem Ciências Sociais.

Área de concentração:Complexidade, Cultura ePensamento social

Data da defesa: 29 / 05 / 2019

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________

Prof. Dr. Gilmar Santana (orientador)

____________________________________________________________

Prof. Dr. João Batista de Morais Neto, IFRN (Examinador Externo à Instituição)

____________________________________________________________

Profª. Dra. Lenina Lopes Soares Silva, IFRN (Examinadora Externa à Instituição)

_____________________________________________________________

Profª. Dra. Tania Maria de Araújo Lima, UFRN (Examinadora Externa ao Programa)

_____________________________________________________________

Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva, UNILA (Examinador Interno)

Natal

2019

Dedico aos meus sobrinhos Arthur eHeitor e à minha sobrinha Helena.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e à UFRN pelo

espaço a mim concedido na instituição.

Agradeço ao Prof. Dr. Gilmar Santana, pelo trabalho sério e paciente de orientação.

Agradeço ao CNPq, pela bolsa de doutorado que, durante três dos quatro anos do

curso, custeou as pesquisas.

Agradeço às/aos professores/as que, gentilmente, aceitaram compor esta banca.

Agradeço a Otânio e a Jeferson, secretários deste programa de pós-graduação, que

atuam com muita diligência, atenção e profissionalismo.

Agradeço, por fim, à minha família, aos amigos de sempre e à minha companheira,

Marília, pelo apoio e pela inspiração.

RESUMO

O modo de analisar a literatura a partir de sua relação com o mundo social sempre

foi um problema caro à sociologia da cultura. A partir do segundo quartel do século

XX, a necessidade de construir uma teoria que associasse interpretação sociológica

e análise formal se impôs aos pensadores da área. As maneiras pelas quais

Raymond Williams e Antonio Candido realizaram essa tarefa são dois dos capítulos

mais fecundos dessa tradição de pensamento. O presente trabalho buscou realizar

uma análise comparativa entre os dois pensadores, visando elucidar como cada um

deles concebe a relação da literatura com a sociedade e como os fatores sociais

devem entrar na análise de uma obra literária. Para tanto, realizou-se uma leitura

crítica de Literatura e Sociedade e O Discurso e a Cidade, de Antonio Candido, e

Marxismo e Literatura e O Campo e a Cidade, de Raymond Williams, obras nas

quais eles expõem suas respectivas visões acerca do fenômeno literário e exercitam

suas análises críticas. Procurando expor as principais semelhanças e divergências

dos pensadores e buscando uma reconstrução de seus programas teórico-

metodológicos em termos dos objetivos a que se propõem e dos resultados que

alcançam, o presente trabalho apontou para uma não equivalência entre as

propostas de Candido e Willimas porque elas diferem no modo de conceber e

analisar os fatores sociais que atuam sobre a obra literária.

Palavras-chave: Raymond Williams. Antonio Candido. Sociologia da Cultura.

Sociologia da Literatura. Literatura. Sociedade

ABSTRACT

The way of analysing the literature from its relation to the social world has always

been important for cultural sociology. Already in the second quarter of the century XX,

it has emerged the need to set up a theory, from the formal analysis of literary works,

associated with the sociological interpretation. The different routes in which Raymond

Williams and Antonio Candido took to accomplish this task are two of the most fertile

chapters of this tradition of thought. Thereby, this present work search for

accomplishing a comparative analysis between those two sociologists to clarify as

each one of them conceived the relationship between literature and society. In other

words, the way social factors should be analysed in literary works. For this, it was

necessary fulfilled a critical reading of "Literatura e Sociedade" and "O Discurso e a

Cidade" from Antonio Candido, and "Marxism and Literature" and "The Country and

the City" from Raymond Williams. It was in those works that the authors expressed

their respective visions concerning the literary phenomenon and implemented their

critical analysis. In order to explore the main similarities and divergences between

them and realign their theoretical-methodological programs in terms of goals

themselves considers and of results to reach them, the present work claims that an

equivalence between Candido and Willimas' proposals it is not possible because

they differ in the way to conceive and to analyze the social factors that act on the

literary composition.

Keywords: Raymond Williams. Antonio Candido. Sociology of Culture. Sociology of

Literature.

RESUMEN

La manera de analizar la literatura de su relación con el mundo social era siempre un

problema costoso a la sociología de la cultura. En el segundo cuarto del siglo XX, la

necesidad aparecía construir una teoría que se asoció a la interpretación

sociológica, el análisis formal de composiciones literarias. Las maneras para las

cuales Raymond Williams y Antonio Candido habían llevado con esta tarea son dos

de los capítulos más fértiles de esta tradición del pensamiento. El actual trabajo

buscado para llevar con un análisis comparativo entre los dos pensadores, siendo

dirigido para aclarar pues cada uno de ellos concibe la relación de la literatura con la

sociedad y mientras que los factores sociales deben entrar en el análisis de una

composición literaria. Con este fin, se presentó una lectura crítica de Literatura e

sociedade e O discurso e a cidade, de Antonio Candido, e Marxismo e Literatura e O

campo e a cidade, de Raymond Williams, en la que exponen sus puntos de vista

respectivos sobre el fenómeno y ejercitan su análisis crítico. El buscar para exhibir

las semejanzas y las divergencias principales de los pensadores y buscar una

reconstrucción de sus programas teórico-metodológicos en términos de objetivos el

que si considere y de los resultados que alcanzan, el actual trabajo señaló con

respecto a una equivalencia no incorpora las ofertas de Candido y de Willimas

porque diferencian de la manera de concebir y de analizar los factores sociales que

actúan en la composición literaria.

Palabras clave: Raymond Williams. Antonio Candido. Sociología de la Cultura.

Sociología de la Literatura.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Retrato de Antonio Candido…………………………………………….12Figura 2 – Retrato de Raymond Williams………………………………………….13Figura 3 – Capa do livro Literatura e Sociedade………………………………….92Figura 4 – Capa do livro Marxismo e Literatura………………………………….117Figura 5 – Capa do livro O discurso e a cidade………………………………….139Figura 6 – Esquema da dialética da ordem e da desordem............................144Figura 7 – Esquema conceitual: teoria da mediação de Antonio Candido......144Figura 8 – Capa do livro O campo e a cidade…………………………………...155

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................12

2 SOCIOLOGIA DA ARTE E DA LITERATURA......................................19

2.1 O panorama sobre os estudos de arte..............................................19

2.2 Sociologia, sociologia da arte e disciplinas humanísticas.............22

2.3 A questão do valor e a arte no mundo social...................................26

2.4 Reação das disciplinas humanísticas...............................................32

2.5 As novas posições em sociologia da arte e da literatura………....37

2.6 Aproximações e possíveis divergências entre Candido e Williams

para análise da literatura....................................................................45

3 TRAJETÓRIAS......................................................................................50

3.1 Antonio Candido e herança familiar..................................................50

3.2 Entrada na Universidade, grupo intelectual e atividade crítica

profissional...........................................................................................53

3.3 Sociologia, pensamento social brasileiro, cultura e deslocamento

institucional..........................................................................................57

3.4 Raymond Williams e herança familiar...............................................69

3.5 Entrada na universidade e ambiente intelectual..............................72

3.6 O trabalho na educação de adultos...................................................75

3.7 Grupo político e intelectual................................................................77

3.8 Construção de uma nova área de conhecimento............................81

4 OS PRINCIPAIS POSTULADOS TEÓRICOS......................................87

4.1 Antonio Candido..................................................................................87

4.1.1 A identificação dos elementos externos (sociais) e a restrição de seu

alcance explicativo.................................................................................92

4.1.2 Equacionando elementos internos e externos....................................103

4.2 Raymond Williams.............................................................................108

4.2.1 A influência da tradição idealista britânica e o marxismo das obras

iniciais...................................................................................................111

4.2.2 A materialidade da cultura em Marxismo e Literatura.........................117

5 O EXERCÍCIO ANALÍTICO.................................................................136

5.1 As análises de Antonio Candido......................................................136

5.1.1 Do contexto para o texto: como as obras incorporam elementos sociais

em Dialética da Malandragem e em De Cortiço a Cortiço..................140

5.2 As análises de Raymond Williams...................................................153

5.2.1 As imagens do campo e da cidade na história da literatura inglesa...155

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................171

REFERÊNCIAS……………………………………………………………181

13

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo explicar como se construíram os programas

teórico-metodológicos de Raymond Williams (1921 – 1988) e Antonio Candido (1918

– 2017) para a sociologia da cultura. Partiremos da percepção de que é necessário

compreender e explicar a sociedade em que vivemos. Essa tarefa se apresenta em

momentos cruciais para atores sociais alinhados historicamente por condições

sociais objetivas, que fazem com que eles assumam o desafio de interpretar o

mundo a sua volta.

Ambos são pensadores com grande alcance em seus respectivos meios

intelectuais. Antonio Candido foi crítico literário, sociólogo e professor. De um lado,

Candido atuou na sociologia, onde desenvolveu estudos sobre o processo de

desenvolvimento da sociedade brasileira. De outro, escreveu obras que tornaram-se

a base para o debate da formação literária nacional, sendo, por isso, considerado o

principal expoente da crítica literária brasileira.

Já Raymond Williams iniciou sua carreira intelectual como crítico literário, mas

rapidamente expandiu seu interesse para outras formas de expressão cultural, como

o cinema, o teatro, a televisão e o sistema de comunicações. Sua principal

contribuição encontra-se na reformulação do conceito de cultura, o que mudou a

maneira de analisar a produção e os objetos culturais.

Figura 1: Retrato de Antonio Candido

Fonte: USP Imagens/ Marcos Santos (2013)

Figura 2 – Retrato de Raymond Williams

14

A tentativa de aproximar os dois críticos nasceu da impressão de que ambos

buscam atuar em duas frentes interpretativas, que se complementam: de um lado,

expandir a compreensão sobre a literatura e as obras literárias por meio do estudo

das dinâmicas sociais que as envolvem; de outro, aprofundar o conhecimento sobre

a sociedade em que se vive a partir da análise do texto literário.

Para levar a cabo tal tarefa, Raymond Williams e Antonio Candido tiveram que

considerar que a sociologia de orientação materialista, que foca nos aspectos

estruturais das sociedades, é capaz de oferecer explicações sobre o fenômeno

literário. Por outro lado, também tiveram que admitir a arte e a literatura como um

tipo de discurso especializado e que, por isso, requerem um tratamento diferenciado

de análise.

A necessidade de aliar as duas perspectivas, em nossa visão, é marca do

período histórico em que viveram e produziram suas obras. Naquele momento, o ato

de interpretar a realidade requeria um esforço de tentar equilibrar – isto é, forjar uma

solução teórica entre – as duas principais correntes de pensamento que, até aquele

momento, se debruçavam sobre a arte e a literatura.

Desse modo, na Inglaterra, Raymond Williams logrou êxito em aliar o aporte

teórico marxista ao padrão de análise textual tradicionalmente britânico para

construir um programa vigoroso da crítica da cultura. No caso do Brasil, e de modo

semelhante, Antonio Candido uniu à análise de obras literárias a interpretação

sociológica do contexto social no qual essas obras foram produzidas, com o objetivo

de forjar um campo interdisciplinar de crítica literária.

Fonte: Mark Gerson (1985)

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Metodologicamente este trabalho está a meio caminho da história social das

ideias e da sociologia dos intelectuais. Tem-se a perspectiva de que as formulações

teóricas e analíticas do autores se inscrevem num contexto histórico específico, que

dá o conteúdo característico do que é debatido, mas que se localizam também

dentro de um espaço dos possíveis, formado pelo conjunto das estruturas e das

relações sociais que enredam os pensadores. Esse espaço não apenas limita o que

pode ser feito, mas impulsiona em determinado sentidos a discussão e o

desenvolvimento das ideias.

Em um nível amplo, pode-se dizer que muitas das concepções de Antonio

Candido e de Raymond Williams foram aplicadas a eles próprios, à guisa de

elucidação de suas respectivas obras – de quais preocupações e interesses

particulares envolveram a confecção delas. De Candido (2006), a famosa

caracterização da relação texto e contexto: ler nos textos dos autores o que

denuncia os seus respectivos contextos e, nos contextos, buscar a compreensão

geral de suas obras. De Williams (2001b), o também conhecido método de analisar

pequenos grupos culturais por meio da colocação de questões concernentes à

formação social (sobretudo, mas não só, questões de classe) e da influência que

essa posição social relativa tem para o significado cultural dos membros desse

círculo.

Os postulados de Pierre Bourdieu sobre o processo de produção e

reprodução da dominação simbólica também serviu de norte para este trabalho.

Bourdieu (1989; 2003) fala de como a posse de capitais específicos, incorporados,

predispõem um ator social a atuar num espaço estruturado de posições, cujas

propriedades dependem justamente da sua posição nesses espaços; a partir da

posição relativa de cada ator dentro desse espaço pode-se medir a influência e o

alcance dele no campo e, assim, compreender melhor suas estratégias. Esses

elementos foram visados neste estudo a respeito de Candido e Williams, mas

comparativamente, buscando mostrar como as posições deles nos seus respectivos

espaços influenciaram suas obras e como isso repercutiu em diferenças teóricas e

analíticas decisivas.

Como as formulações de Bourdieu a respeito de habitus e campo tendem

para o polo objetivista das relações sociais, evitou-se utilizá-las aqui em suas

acepções originais. Preferiu-se o uso dos termos meio ou contexto intelectual

específico para se referir a essas áreas de atuação relativamente autônomas

16

(academia, ciência, etc) como forma de dar menos ênfase à reprodução social e

abrir maior margem para reflexividade dos atores.

Estudiosos de orientação bourdieusiana, como Sérgio Miceli e Heloísa

Pontes, também ofereceram apoio metodológico ao trabalho. Miceli (2001) forneceu

as lentes para pensar o peso dos capitais escolar e cultural num espaço de disputa

como a carreira docente e Pontes (1998) para refletir sobre as oportunidades e

espaços abertos pelas redes de amizade e coleguismo.

Cabe ressaltar que a história das ideias é tomada numa concepção muito

singular, a saber: a de Karl Mannheim. Ao lançar as bases para um programa da

sociologia da cultura, Mannheim (2014) sustentou a noção de que todos os

processos mentais humanos têm uma dimensão social e de que a sociologia é uma

tentativa de articular o caráter social desses processos. Para não incorrer no risco

de idealizar uma produção intelectual, deve-se colocá-la frente a uma situação

concreta – isto é, entender o pensamento introduzido numa situação. Nesse sentido,

pode-se empregar a sociologia da cultura à história do pensamento porque as

situações sociais são sempre parte dos processo mentais. Assim, a sociologia da

cultura analisa as expressões do pensamento, desenha o conjunto das relações

sociais nas quais se deram essas expressões e, por fim, reconstrói o significado

delas. Numa palavra:

A sociologia do espírito não é uma indagação sobre a causalidadesocial do processo intelectual, mas um estudo do caráter social deexpressões cuja voga não revela nem manifesta seu contexto deação. A sociologia do espírito procura descobrir e articular os atos deassociação inerentes à comunicação de ideias não manifestas(MANNHEIM, 2014, p. 27)

Buscou-se, neste trabalho, a reconstrução do percurso intelectual dos autores

e, neles, a identificação dos principais momentos, marcadamente a confecção e a

publicação das obras de maior relevo. A partir disso, circunscreveu-se esses

momentos em termos das exigências e possibilidades abertas pelos seus contextos

intelectuais, visando sempre entender como eles influenciaram as formulações em

torno da apreciação dos fatores sociais para a interpretação da obra literária. Desse

modo, elaborou-se o seguinte recorte: Marxismo e Literatura e O Campo e a Cidade,

de Raymond Williams; Literatura e Sociedade e O Discurso e a Cidade, de Antonio

Candido.

As duas primeiras obras de cada autor são correspondentes a um momento

17

de maior maturidade e sistematização de seus pensamentos. Inscrevem sua

necessidade nesta pesquisa por serem uma reflexão teórica: encontram-se nestas

obras os postulados centrais do pensamento dos autores, as noções mais

importantes a respeito da relação literatura e sociedade, bem como seus principais

conceitos. Desse modo, também identifica-se o debate que toca mais diretamente

aos objetivos desta pesquisa: como deve se realizar e por onde deve seguir o

estudo dos elementos sociais na obra de arte.

Na segunda obra selecionada de cada autor, encontra-se, não uma discussão

teórica, mas o método proposto por cada um deles em prática. Em O Discurso e a

Cidade, Candido trabalha algumas de suas grandes preocupações, tais como a

estruturação do objeto artístico a partir estímulos externos e internos; portanto, do

livro, foram selecionados seus dois mais famosos ensaios: “Dialética da

Malandragem” e “De cortiço a cortiço” (que analisam, respectivamente, os romances

Memórias de um Sargento de Milícia e O Cortiço). Em O Campo e a Cidade,

Williams estuda as relações que o desenvolvimento do mundo urbano e rural guarda

com a literatura inglesa (passando em revista obras que vão desde o século XVI até

o XX), tentando evidenciar as imagens que cada momento histórico produz destes

modos de vida. Sendo assim, este exercício crítico foi importante para entender

como cada um dos pensadores relaciona objeto artístico e meio social, literatura e

transcurso histórico.

Para chegar a tal ponto foi necessário, inicialmente, a realização de uma

ampla revisão bibliográfica dos dois autores, que passou por obras deles próprios

mas também de alguns comentadores. A respeito de Raymond Williams, sabe-se a

importância do esforço de Cevasco para a introdução ao estudo do autor galês no

Brasil, com livros seu pensamento e obra (2001) e sobre os grupos dos quais fazia

parte e a disciplina que ajudou a criar e estabelecer (2016). Existe também uma leva

recente de trabalhos acadêmicos sobre Williams com reconhecida relevância. Nesta

rubrica, entram a dissertação de Rivetti (2015) e as teses de Glaser (2008) e de

Azevedo (2014). No caso de Candido, um dos pensadores brasileiros com a maior

fortuna crítica, destacam-se as contribuições reunidas em Esboço de figura (1979) e

Dentro do texto, dentro da vida (1992). A isso somam-se as relvantes apreciações de

Schwarz sobre sua crítica (2012; 1992) bem como os trabalhos acadêmicos de

Ramassote (2006; 2013) e de Jackson (1998).

18

Apesar de serem dois críticos de cultura com grande alcance em seus

respetivos meios intelectuais – cuja marcas residem na construção de uma teoria

com a relação arte e sociedade como ponto central e em anos de atividade

intelectual e profissional, legaram aos dois larga influência nos debates e temas da

área – não se percebe um número significativo de trabalhos acadêmicos que tentem

aproximar os dois autores, com exceção de Cevasco (2004) e Paixão (2015).

Assim, este trabalho tenta atuar nessa lacuna, revisando e criticando ambos

os autores. No que se refere a Candido, este estudo pode ajudar a dimensionar o

que significa, atualmente, o programa teórico mais renomado para a sociologia da

literatura no Brasil e que durante muito tempo polarizou em torno de si a cultura

como objeto de estudo.

No que se refere a Raymond Williams, sabe-se que ele foi uma das principais

influências para o campo das humanidades a partir do terceiro quartel do século XX.

No Brasil, tem despertado interesse recente – mais ou menos nos últimos vinte

anos. Sempre mais estudado no campo da comunicação, em curto prazo tem

adentrado o campo das Ciências Sociais. Acreditamos que este trabalho pode

auxiliar no estudo mais sistemático, por aqui, do legado da obra desse autor para a

sociologia da cultura.

A discussão aqui instigada também pode contribuir para o campo da

metodologia das Ciências Sociais no âmbito das análises literárias, explicando,

esclarecendo e pondo em diálogo dois grandes arcabouços teóricos.

Ainda que as semelhanças entre os dois pensadores sejam visíveis, a

solução teórica alcançada por cada um deles guarda diferenças importantes para

um programa de sociologia da cultura, sobretudo no que tange ao modo de

relacionar a literatura aos fenômenos sociais e à história.

Parte-se da hipótese de que essas distinções se estruturam como respostas

aos respectivos contextos sociais e intelectuais em que estavam inseridos os

autores. Especificamente, os contextos sociais e intelectuais de cada pensador

lançaram desafios específicos, que têm a ver com o estatuto da ciência e do

pensamento social em cada país e com as questões concernentes aos respectivos

projetos nacionais de cada lugar.

Ao realizar esse cotejo, espera-se, de fato, oferecer não respostas definitivas,

mas importantes subsídios para melhor compreender os dilemas, objetivos e

necessidades dessa área de estudo. As diferenças de concepção, na realidade, são

19

um primeiro passo de um trabalho que visa dar uma contribuição no terreno teórico-

metodológico das pesquisas em arte e literatura, visando elucidar como os distintos

modos de equacionar a relação entre fenômeno social e a obra de arte repercutem

em visões sociológicas divergentes sobre a sociedade e sobre a literatura.

No primeiro capítulo deste trabalho, expõe-se a grande discussão dentro do

campo de estudos da arte no que tange às principais correntes de pensamento que

dominaram a área. Assim, é discutida a influência do idealismo e do materialismo, o

lugar da sociologia nesse debate e o surgimento de uma concepção que visa unir as

duas abordagens, da qual, em nossa visão, ambos autores participam.

O segundo capítulo tenta iluminar os principais pontos da trajetória de

Raymond Williams e de Antonio Candido que direcionam seus respectivos projetos

intelectuais. Desse modo, apresentam-se a origem social e a inserção de ambos na

universidade, os grupos intelectuais aos quais se filiaram e a posição que eles

assumiram no campo científico e intelectual de meados do século XX, o que levou,

nos dois casos, à formação de uma área interdisciplinar de estudo.

O capítulo três discute as obras que pode-se chamar de manifesto teórico dos

autores, isto é, como eles armam teoricamente suas respectivas visões de análise

literária e de crítica de cultura. Procura-se discutir como, em Marxismo e Literatura,

de Raymond Williams, e em Literatura e Sociedade, de Antonio Candido, os

pensadores solucionam a questão da relação das obras literárias com o mundo

social – investigando, principalmente, como eles concebem o tipo de influência do

meio sobre a obra.

No quarto e último capítulo, debate-se o modo pelo qual os pensadores

realizaram seus respectivos projetos teóricos em obras de cunho analítico. O

objetivo é mostrar como, em cada uma das duas obras, há ênfases analíticas

distintas, expressas não só nas temáticas, mas, acima de tudo, em interesses

divergentes.

20

2 SOCIOLOGIA DA ARTE E DA LITERATURA

O objetivo deste capítulo é traçar um panorama do debate em torno das

pesquisas em arte e literatura. Não uma revisão completa de trabalhos ou temas,

mas um quadro no qual se localizem as principais questões concernentes à

sociologia da arte e da literatura. Esse movimento ajuda a compreender em que

ponto da discussão localizam-se os autores, objetos de estudo deste trabalho, e qual

elemento investiga-se na obra deles.

2.1 O panorama sobre os estudos de arte

De início, é importante ter em vista que a arte faz parte de um domínio

complexo, com intensos debates a respeito de sua definição e significado. Dito de

outro modo, a área é de difícil consenso e abriga as mais variadas disputas.

Convergem para este campo discursos que partem da academia, do estado, do

mercado, de colecionadores, de um artista ou um grupo, etc. Nesse sentido, a

própria sociologia da arte está em disputa no campo (FREIRE, 2018, p. 62).

No entanto, a arte foi historicamente governada pelos estetas, críticos e

filósofos. As diversas teorias produzidas por esses tinham o objetivo de dominar o

entendimento a respeito do fenômeno, e traziam a reboque um critério classificatório

(o que é ou não arte) e um critério valorativo (boa ou má arte).

Embora as diversas teorias (imitação, institucional, formalista, dentre outras)

divirjam entre si, elas partem de uma base comum: o estudo dos aspectos formais

da arte. Com isso quer se dizer que o foco recai sobre as técnicas e os meios

utilizados na produção da obra, o conteúdo da linguagem ou da imagem, as

influências estéticas mútuas dentro de uma tradição, geração ou período. Em uma

palavra, a arte é vista e interpretada por intermédio de uma “perspectiva internalista”

(ZOLBERG, 2006, p. 34).

Este parâmetro leva a um tipo de equiparação entre a obra e o criador: existe

a crença de que, em algum nível, as características pessoais do criador de arte são

responsáveis pela obra, que passa a ser considerada uma expressão individual.

21

Desse modo, as grandes obras são tidas como expressão de uma grande

personalidade – um gênio, por assim dizer (ZOLBERG, 2006, p. 34).

Este elemento, chamado de singularidade, é fundamental para estetas e

filósofos, porque a perspectiva internalista, buscando características formais para

especificar obras, autores e períodos, claramente se beneficia da raridade de uma

obra ou do caso singular do artista. Mesmo nos tipos de arte comerciais e inerentes

à era da reprodutibilidade técnica (fotografa, cinema) ocorreu a aparição de um

discurso semelhante ao das artes plásticas, a chamada teoria do autor, que tem

como objetivo apontar um único indivíduo como responsável pela criação do objeto

de arte (ZOLBERG, 2006, p. 35).

A sociologia, por outro lado, nasce da concepção de que a vida em sociedade

tem algum grau de permanência e previsibilidade. É passível, pois, de ser entendida

e explicada por meio de leis (lógicas ou causais). A busca pela compreensão do que

mantêm as sociedades unidas ao longo do tempo ou como elas se transformam (em

outros termos, estabilidade e previsibilidade) têm ocupado o pensamento ocidental

nos últimos dois séculos (OLIVEIRA, 1984, p. 83).

É bem verdade que a ciência e a arte têm alguma similaridade como formas

de expressão e comunicação e muitos dos princípios e das questões que estão na

origem da sociologia já animaram artistas e literatos. Mas quando se debruça sobre

arte ou literatura, a sociologia crê que estas atividades podem revelar algo sobre a

organização ou estrutura da sociedade (OLIVEIRA, 1984, p. 85-86). E é aqui que

radica a diferença de perspectiva entre os sociólogos e os estetas e humanistas.

Para os cientistas sociais, é um imperativo do ofício historicizar o fenômeno

arte. Do mesmo modo, também os artistas são produtos de seu tempo e sua

sociedade. Portanto, um artista, mesmo o mais consagrado, também estava sujeito

a todo tipo de condicionamentos sociais – de classe, de gênero ou de raça, por

exemplo. Seu gênio, isto é, sua criatividade, se desenvolveu dentro de um campo de

possibilidades que limitaram suas escolhas (FACINA, 2004, p. 10).

Em outras palavras, os cientistas sociais se guiam pelo pressuposto de que a

arte deve ser contextualizada, tanto de modo geral, com a delimitação no tempo e

no espaço, quanto de modo mais restrito, em relação a estruturas institucionais,

normas de recrutamento, treinamento profissional, recompensa e patronato. Em

suma, cientistas sociais dedicam-se a entender a relação da obra e do artista com

22

instituições políticas e ideologias e tudo o que for para além da ordem estética

(ZOLBERG, 2006, p. 38).

Sociólogos e cientistas sociais se orientam por uma perspectiva chamada

externalista, e vão de encontro às características que estetas, filósofos e críticos

atribuem à arte. Pois, ao passo que críticos e filósofos apreciam a singularidade na

arte, os cientistas sociais buscam a regularidade e a tipicidade nos seus objetos de

estudo (ZOLBERG, 2006).

Sob a perspectiva externalista, que baseia a abordagem tipicamente

sociológica, a obra de arte faz parte de um processo que envolve não apenas um

indivíduo, mas uma cadeia de produtores, organizados por certas instituições e

orientados por determinadas tendências históricas. Desse modo, chega-se à

conclusão de que o valor da obra não reside apenas em suas qualidades formais,

mas provém também de certas condições externas (ZOLBERG, 2006, p. 38).

Não que os sociólogos tenham o mesmo enfoque, até porque as diversas

tradições sociológicas diferem quanto aos aspectos que focalizam na sociedade:

umas se debruçam sobre microinterações entre os atores sociais, em pequenas

redes, fazendo uma análise de curta distância; outras buscam os padrões de

funcionamento das estruturas sociais no decurso histórico, procurando realizar

análises de amplo alcance. Em que pesem as diferenças, fica claro que são os

aspectos “extra-estéticos” os priorizados na análise (ZOLBERG, 2006, p. 38-39).

Pelo exposto, percebe-se que o ponto de divergência entre as duas

perspectivas é a fonte do valor estético da arte e como analisá-lo. Se para filósofos e

críticos da arte o valor provém das características formais e da personalidade

diferenciada do criador, levando à noção de singularidade, os cientistas sociais são

instigados pelo interesse em desvendar a natureza social do fenômeno de arte.

Para os sociólogos, deixar de lado as preferências individuais e esquivar-se

de qualquer postura valorativa é imperativo do fazer científico. A busca por

objetividade nos seus trabalhos, com clara distinção entre o que é gosto pessoal e o

que é pesquisa, também compõe essa atividade.

A divergência entre as duas perspectivas, além de ser de ordem

epistemológica, é também de ordem institucional (política, por assim dizer).

Filósofos, estetas, críticos e todos aqueles ligados às disciplinas humanísticas

arrogam para si o domínio sobre o valor estético, e todas as discussões de cunho

formal.

23

Esse ponto, ao invés de resvalar em uma postura acusatória para com os

humanistas, leva a debater a conformação da própria sociologia da arte dentro do

grande corpo de conhecimentos que é a Sociologia. O estatuto da arte como objeto

de estudo sempre foi preterido pelos sociólogos.

2.2 Sociologia, sociologia da arte e disciplinas humanísticas

A sociologia é uma disciplina que nasceu no século XIX; portanto,

relativamente nova quando comparada com outras ciências, como a medicina ou a

matemática. A sociologia é uma construção intelectual que surgiu como resposta às

transformações sociais pelas quais passava a Europa naquele período. Apesar de já

ter construído robusto arcabouço teórico, ainda é considerada uma disciplina em

processo formativo.

Como herança desse passado, os sociólogos são facilmente envolvidos pelas

temáticas que de uma maneira ou de outra são importantes para a modernização da

sociedade ou do estado-nação a que pertencem (sistema produtivo, trabalho,

religião, governo, dentre outras). Por conta disso, as artes nunca foram o centro de

atenção dos sociólogos, ocupando sempre uma posição secundária na disciplina

(ZOLBERG, 2006, p. 65).

Mesmo entre os sociólogos europeus, que são, na verdade, os fundadores da

disciplina, o debate sobre ocupou um lugar periférico. Dentre os principais nomes, os

que mais costumam ser lembrados quando se busca investigar a história da

sociologia da arte são Durkheim, Weber e Simmel.

Durkheim chegou a discutir a arte em um texto do começo do século XX,

mostrando como ela representou a mudança no modo de lidar com a religião

(HEINICH, 2008, p. 21). Mas, de acordo com Zolberg (2006, p. 76), no periódico

L’année Sociologique, fundado por Durkheim com interesse de institucionalizar a

sociologia, não se encontram debates sobre as questões da arte. Isso denota a falta

de espaço da temática entre os sociólogos.

Já Max Weber é lembrado pelo texto As bases racionais e sociológicas da

música, publicado postumamente. No artigo, Weber toma a estética como uma

estrutura cultural paralela à religião e em competição com ela (ZOLBERG, 2006, p.

74). E inscreve a música no panorama de seus estudos sobre o racionalismo

24

ocidental, atribuindo ao processo de racionalização e aos meios técnicos disponíveis

as diferenças estilísticas (HEINICH, 2008, p. 21).

Apenas Georg Simmel se debruçou mais detidamente sobre a arte. Escreveu

bastante sobre temas estéticos, sobre cultura geral e até sobre alguns artistas

famosos, como Rembrandt, Michelangelo e Rodin – nesses casos, tratou do

condicionamento social da arte, evidenciando a influência das visões de mundo

sobre as obras (HEINICH, 2008, p. 22; ZOLBERG, 2006, p. 74-75).

A facilidade que se tem de mapear os estudos sociológicos sobre as artes nos

fundadores da disciplina é prova da marginalidade a que foi condenada a questão.

Também explica muito do subdesenvolvimento a que foi relegada. Percebe-se que,

no mais das vezes, a arte, quando apareceu, veio de forma servil à preocupação

central dos pensadores. Em Durkheim, sob a temática da religião, das regras e dos

valores morais, que mantêm uma sociedade coesa; e em Weber, a partir da

racionalidade que caracteriza a modernidade ocidental.

No caso de Simmel, identifica-se com mais frequência a discussão sobre arte,

mas é importante lembrar que ele não era visto por seus contemporâneos como

sociólogo. Em uma época em que o esforço de institucionalização passava por uma

tentativa de cientifização que significava a busca de grandes modelos interpretativos

e explicativos para a sociedade, Simmel se caracterizou por dedicar a atenção a

assuntos aparentemente furtivos (dinheiro e vida mental na metrópole, por exemplo).

Também é característica de Simmel passar, de maneira sucessiva, de uma temática

a outra – sendo, por isso, classificado como autor impressionista ou flaneur

sociológico1.

Processo semelhante se repetiu em outros países, como o Brasil. A

institucionalização da sociologia brasileira, mormente a paulista, ocorreu entre os

segundo e terceiro quartéis do século XX. Durante esse período, após longa disputa

intelectual interna, o projeto liderado por Florestan Fernandes e que tinha como

temas caros, entre outros, o desenvolvimento, a dependência econômica e a

modernização de sociedades periféricas, saiu vencedor, dando o tom da sociologia

brasileira com anseios de cientificidade.

Chega-se à seguinte constatação: parte ínfima da produção sociológica é

oriunda do campo da sociologia da arte. Ao se fazer um levantamento bibliográfico,

percebe-se que as melhores obras, aquelas que podem ser vistas como

1 Ver Peres et all (2011, p. 98).

25

constitutivas da sociologia da arte, raramente aparecem com essa designação. Isso

se deve, primeiro, ao fato de a sociologia da arte ser uma disciplina com linhas

divisórias tênues, de maneira que não é tarefa simples delimitar o que pertence a

essa área e o que não pertence. Segundo: o critério quantitativo (o número de

produções e publicações) é insuficiente para aquilatar sua importância, pois ela

pode, do ponto de vista qualitativo, guardar possibilidades essenciais à sociologia

como um todo (HEINICH, 2008, p. 9).

O que torna difícil delimitar as fronteiras da sociologia da arte é sua

proximidade tanto com as disciplinas humanísticas (histórica e crítica da arte e

estética), que historicamente dominaram o objeto, quanto com outras áreas de

conhecimento próprias às ciências sociais e que têm proximidade com a sociologia

(como a história, a psicologia e a antropologia). Qualquer levantamento envolvendo

essas últimas disciplinas deve dar maior relevância à sociologia da arte, pois a

nomenclatura é usada para além do âmbito estrito da sociologia (HEINICH, 2008, p.

10).

Mas como as disciplinas humanísticas foram as primeiras a se debruçar sobre

arte, provém delas o ponto de partida. Pode-se sustentar, mesmo, que o

envolvimento com outras disciplinas (principalmente estas que aqui têm sido

chamadas de humanistas) é imprescindível ao próprio sentido da sociologia da arte

(ZOLBERG, 2006, p. 92).

O desafio que nós colocamos é pensar a sociologia da arte atualmente, em

um contexto de hiperespecialização das áreas de conhecimento. E discutir essa

questão passa pelo reconhecimento do fato de que essa área não é genuinamente

sociológica e só experimentou um avanço de modo tardio.

Os próprios autores estudados nesse trabalho têm uma relação muito forte

com isso que pode se chamar de disciplinas humanísticas. No caso de Antonio

Candido, isso se deve à influência da família, que desde cedo o ambientou no

mundo da literatura. Raymond Williams, por seu turno, foi para Cambridge estudar

Literatura Inglesa e, aí, teve contato com a tradição idealista. No desenvolvimento de

suas respectivas carreiras, a questão de estudar arte e o mundo social foi,

paulatinamente, surgindo e se impondo.

De fato, é no contexto da teoria de arte que se descobre o ambiente formador

da sociologia da arte, porque ela oferece uma espécie de “fundação teórica”

26

que consubstancia um alicerce de fortuna na medida em que abre omundo das inquietudes teóricas para aspectos que a sociologia daarte depois veio aprofundar, [sem ela] não entenderíamos aconjuntura teórica desta área do saber, e nem conheceríamos ohorizonte de seus propósitos (GONÇALVES, 2010, p. 39).

Com isso, quer-se dizer que foram as teorias de arte, a história da arte, a

crítica e a filosofia que estabeleceram o norte da discussão estética. Essa matéria

uma vez formulada fornece o parâmetro de toda a discussão. Ou seja, são as

disciplinas humanísticas que referenciam o debate ao qual vão se justapondo as

áreas de pensamento que desejam discutir a temática. Isso não significa

concordância com os critérios, conceitos e métodos, mas que esse quadro é o ponto

básico sobre o qual se pode criticar e refletir.

Desse modo, Gonçalves (2010, p. 39-43) aponta que pensadores como

Winckelmann, Burckhardt e Riegl devem ser vistos como alguns dos precursores da

sociologia da arte porque inseriram em seus estudos a preocupação da relação

entre arte e o mundo.

Outra contribuição importante é a de Erwin Panofsky, incorporado à sociologia

por meio de Pierre Bourdieu. Panofsky introduz a noção de método iconológico,

trabalhado em Significado nas artes visuais (1955). Para ele, existem três graus de

análise para as imagens: o primeiro, icônico ou pré-iconográfico, busca os

significados primários ou naturais, no qual se localizam os motivos artísticos. No

segundo nível, o método iconográfico tem-se a exata identificação dos motivos de

uma obra; e no terceiro, o iconológico, investiga-se o conteúdo intrínseco da obra, a

visão de mundo dela, que pode ser apreendido pela avaliação de pressupostos que

revelam a atitude de uma coletividade (nação, classe, convenções religiosas, dentre

outras) (GONÇALVES, 2010, p. 45).

De fato, em Panofsky não se encontra exatamente um tratamento sociológico

da arte, a não ser em potencial, pois ali só há apontamento da correlação entre obra

e cultura. O ponto de convergência com uma sociologia da arte não é extenso, mas

as noções de Panofsky o fazem ser uma influência muito forte na área, além de ser

exemplar do fato de que as fronteiras entre história da arte e sociologia não devem

ser extremamente rígidas (HEINICH, 2008, p. 26).

Os exemplos trazidos deixam claro um movimento característico dessa área

de estudo: quanto mais se aproxima da sociologia arte, mais se afasta da sociologia

geral para ir em direção à história da arte, área que trabalha há mais tempo com o

27

assunto. Entre as duas disciplinas, encontra-se a história cultural da arte, da qual

derivam grande parte os estudos que podem ser considerados como premissas de

uma sociologia da arte (HEINICH, 2008, p. 22).

Isso deve ser pensado também com referência a Antonio Candido e Raymond

Williams. Quando nos acercamos desses autores, estamos tencionando as

fronteiras das diversas disciplinas que envolvem a arte. Considerando os elementos

trazidos (principalmente a difícil demarcação das fronteiras entre as áreas) pode-se

sustentar que a sociologia da arte engloba os dois autores. Se não com localização

institucional, sem dúvidas como referências.

2.3 A questão do valor e a arte no mundo social

Mas se as linhas fronteiriças entre as disciplinas são turvas e o trânsito de

temáticas e modelos analíticos é intenso, os pontos de contenda acabam sendo

inevitáveis. Em última instância, as diversas disciplinas devem guardar um núcleo

específico de identidade, sob o risco de diluição em outras áreas do conhecimento.

A sociologia, quando aproxima-se da arte, traz consigo alguns pressupostos

básicos – um dos mais importante deles, a noção de que a arte, como qualquer

outro fenômeno da sociedade, deve ser estudada com um fato social, buscando o

que é comum, fundamental, permanente e coletivo no processo artístico (NUÑEZ,

1967, p. 58).

Esse princípio epistemológico revela, na verdade, um anseio de objetividade

da sociologia. Quando levado ao campo da arte, significa que os sociólogos devem

evitar “cair em especulações filosóficas, em abstrusas indagações de estética e

afastar-se, especialmente, de qualquer pretensão de caráter crítico ou perceptivo”

(NUÑEZ, 1967, p. 58).

Ora, isso significa que os sociólogos têm que se manter distante de qualquer

postura valorativa. Ponderar sobre a relevância e importância de uma obra ou sobre

o peso de um determinado artista é postura fundamental da filosofia, da história e da

crítica de arte. Para esses, portanto, as noções básicas que orientam os sociólogos

atentam diretamente contra um ponto básico da arte: o valor estético.

Assim, o distanciamento do valor estético passa a ser característica fundante

dos sociólogos da arte. Não cabe à sociologia da arte criar ou legitimar critérios que

28

sirvam como validação do trabalho artístico, seja determinando a qualidade artística

de casos particulares ou qualidade da Arte em si. Em uma palavra, qualquer juízo de

valor é estranho ao modo de proceder da sociologia e deve ser rechaçado. Apenas a

história dos juízos de valor pode ser servida como objeto de estudo (GONÇALVES,

2010, p. 24).

Esse ponto é fundamental pois ajuda a diferenciar os campos de estudo. É

possível observar o expediente utilizado por Luiz Costa Lima a fim de diferenciar as

modalidades de aplicação da sociologia ao fato literário. Deve-se atentar para o

modo como este pensador trabalha a questão do valor.

Lima busca distinguir o que seria a “sociologia da literatura” e o que seria a

“análise sociológica do discurso literário”, a partir da problemática do valor. Sustenta

que é equivocado afirmar que os dois tipos de análise se diferenciam pelo fato de

que o primeiro não trabalha o valor e o segundo, sim; para o autor, as duas

modalidades reconhecem a problemática do valor: ele apenas está em níveis

distintos de consideração (LIMA,1983, p. 109).

O sociólogo concede à literatura valoração semelhante a qualquer outra

instituição social, porque a atividade literária está ali para comprovar a presença de

alguma outra manifestação; já o analista do discurso literário não tem a “apreciação

sociológica” em primeiro plano, porque a prioridade deve ser o “entendimento da raiz

ficcional, literariamente enraizada”, sendo ficcional compreendido como aquilo que

modifica o modo costumeiro de tematizar a liberdade (LIMA, 1983, p. 109-108).

Ainda finaliza afirmando que – e talvez seja aqui que os objetivos de Lima se

manifestem – o discurso literário tem como indicador visível a forma (ou o “como se

diz e o que se diz”); portanto, a análise sociológica do discurso literário impõe a

necessidade de diálogo com o teórico da literatura, que é mais apto que o “puro”

sociólogo a trabalhar a especificidade do objeto artístico (LIMA, 1983, p. 111, grifo

nosso).

Lima (1983) coloca a discussão do valor em outro nível, pode-se dizer que até

a sofistica, mas não a elimina. O autor acaba por categorizar dois tipos de valor: o

valor social, de qualquer instituição da sociedade, e o valor estético, que toca o nível

artístico e trabalha a especificidade do objeto artístico. O primeiro é próprio do

sociólogo de fato; o segundo, do analista sociológico da literatura – aquele que,

embora não sendo sociólogo, lança mão dos conhecimentos da sociologia.

29

A distinção proposta por Lima resulta numa questão superficial. Nos debates

da área, sabe-se que valor refere-se sempre ao valor estético – valor que uma obra

e/ou autor têm como arte. Ainda que seja em outros termos, em Lima, é ainda o

valor estético que serve para definir o que é próprio de uma área e de outra. Ou

seja, a questão permanece.

Apesar de a sociologia da arte, conforme sustentado aqui, ser uma área de

estudos fundada na proximidade com outras disciplinas, principalmente com as

humanísticas, é possível, mesmo assim, apontar suas especificidades. O que acima

foi chamado de ponto de contenda pode ser entendido como limites que as duas

áreas (sociologia e humanidades) não ultrapassam e ajuda, por conseguinte, a

defini-las.

O debate sobre o valor é o primeiro tópico de grande disputa entre as duas

áreas, porque ele aponta para as barreiras que não podem ser ultrapassadas, sob

pena de as diferenças se tornarem tão insignificantes ao ponto de diluir os dois

campos de estudos.

Os dois autores que são trazidos para debate neste trabalho realizaram

valoração de obras e autores, muitas vezes contribuindo para a legitimação ou

releitura da tradição de seus países. Isso deve ao fato de que eles têm vínculos com

área das Letras, no qual esta operação crítica é natural e esperada.

O segundo tópico de grande divergência, que é em larga medida um

desdobramento do primeiro, é como a sociologia trata a arte. Passando do nível das

proposições gerais – arte como fenômeno social e estudada no nível coletivo – para

uma compreensão mais precisa do seu significado: como definir a arte socialmente,

quais os fatores que influem sobre sua regularidade e tipicidade, como devem ser

tomados os fatores sociais na análise.

Nesta altura, vê-se o peso de Karl Marx e do materialismo na sociologia da

arte. As abordagens externalistas – aquelas próprias dos sociólogos – têm grandes

possibilidades de serem materialistas (ZOLBERG, 2006, p. 38) e o materialismo

sociológico apresenta-se de duas formas: uma se aglutina em torno dos escritos de

Karl Marx; e a outra enxerga a arte de modo simbólico, como sinal de status, e que,

apesar de guardar semelhança com o marxismo, tem influências variadas

(ZOLBERG, 2006, p. 86).

É importante notar que Marx e Engels nunca escreveram diretamente sobre

arte, menos ainda sobre filosofia ou história da arte. Buscar elementos para uma

30

sociologia da arte na obra desses dois pensadores é um verdadeiro trabalho de

exegese, mapeando as esparsas referências distribuídas por toda a obra e, ao

mesmo tempo, colocando-as em sintonia com pensamento geral deles. Portanto,

para um estudo sociológico das artes, o máximo que se pode extrair da obra

marxista são apontamentos.

Marx tinha a concepção de que a lei, a educação, a política e outras formas

de atividade cultural – a arte aí inclusa – pertenciam à superestrutura da sociedade,

esfera que guarda uma íntima relação com infraestrutura ou a base da sociedade,

lugar das relações de produção. Essas, por sua vez, podem ser definidas como as

relações que os homens estabelecem entre e si e com a natureza para produzir sua

subsistência e riqueza.

Reside neste ponto a grande contribuição do pensamento de Marx e Engels

para o campo de estudos da arte. Como qualquer outra atividade humana, a prática

artística deve correlacionar-se às estruturas sociais e econômicas de cada época. E,

se é aceita a premissa marxista de que de que o grupo dominante economicamente

em uma época tem poder para fazer penetrar sua ideologia no tecido social, o

entendimento da realidade artística também deve levar em consideração o papel da

ideologia (GONÇALVES, 2010, p. 60).

Em uma palavra: Marx ajudou a introduzir o problema das relações existentes

entre a arte e a sociedade, considerada em conjunto e como quadro da atividade do

artista. O debate, a partir daí, não é mais entre o artista e um universo eterno, mas

entre o artista e os modos de existência de seu tempo (FRANCASTEL, 1967, p. 27).

Se os estudos de Marx e Engels sobre arte, como dito, são escassos e

dispersos, em Plekhanov encontra-se um pensamento marxista sistematicamente

orientado para a análise desse fenômeno. Faz-se necessário conhecer como este

argumento é construído, pois grande parte do que se chama de abordagem marxista

para arte é oriundo não de Marx, mas de marxistas como Plekhanov.

No texto Arte e vida social, de 1913, tem-se uma das fórmulas marxistas mais

conhecidas, e também mais criticadas, na sociologia da arte. A ideia central é a de

que as obras e a atividade artística são o reflexo da vida social. Desse modo, a arte

de qualquer povo mantém uma relação causal com o sistema econômico, que

também é o responsável por determinar as preferências estéticas de uma dada

sociedade (GONÇALVES, 2010, p. 62).

31

O pensador russo vai além e sustenta que, se uma relação causal e linear

existe entre atividade artística e a esfera produtiva da sociedade, a arte deve ser

encarada como um meio para adentrar os problemas sociais. Não há arte destituída

de conteúdo ideológico, nem mesmo aquela que tem como prioridade a dimensão

formal – não implicando, desse modo, nenhuma diferença em relação às questões

políticas e sociais (GONÇALVES, 2010, p. 62-63).

Plekhanov colocava os fenômenos artísticos em uma dependência direta e

mecânica com a sociedade – a arte deve refletir ou trabalhar questões prementes da

sociedade, que, para um marxista ortodoxo, são sempre elementos relativos à

economia. A arte que não realizasse isso era rejeitada – não raras as vezes sendo

pejorativamente classificada de arte burguesa. Em uma palavra, Plekhanov retirava

toda e qualquer autonomia da esfera estética.

Marx colocava ênfase na dimensão criativa do ser humano que a arte traz à

luz – para o pensador alemão, o homem é um ser criador por excelência. O

capitalismo potencializa essa capacidade de criação ao oferecer possibilidades de

extensão em termos de progresso, mas acaba por impedi-la, porque as relações

sociais capitalistas negam o acesso e o livre exercício de criação a alguns setores

da sociedade. Essa discussão não se vê no russo Plekhanov (GONÇALVES, 2010,

p. 58).

Marx também nunca supôs que a relação entre arte e sociedade fosse tão

rudimentar ou que a arte não tivesse nenhum significado fora do local de produção.

Para Marx, ainda, “a dificuldade não está em entender que a arte e a épica gregas

estão comprometidas com certas formas de desenvolvimento social [mas no fato] de

que elas ainda nos dão prazer artístico” (ZOLBERG, 2006, p. 44).

Marx questionava-se muito sobre este ponto: a capacidade de entender e até

sentir prazer estético por formas artísticas cujas estruturas já há muito

desapareceram. Como considerava a arte grega uma das mais refinadas, Marx

chegou a afirmar que as produções artísticas daquele tempo possuíam uma ligação

profunda com a “infância social da humanidade”, e é por isso que elas ainda eram

atrativas, mesmo tendo transcorrido tanto tempo. Da mesma forma que o homem

sente-se atraído pela infância, o homem coletivo mantém relação semelhante com a

infância social da humanidade (GONÇALVES, 2010, p. 59).

Percebe-se que mesmo com pouco refinamento – afinal, esse não era o foco

do pensador alemão –, Marx buscava alguma justificativa para o alcance que

32

algumas formas de arte possuem. Na prática, isso significava a tentativa de delimitar

o espaço da esfera estética.

Contudo, pode-se dizer que, mesmo não afiançando de maneira integral e

precisa o que seus discípulos produziram sobre arte, Marx contribuiu, ainda que de

modo enviesado e inadvertido, para a construção de sistemas explicativos que

fizeram a sociologia da arte se desenvolver enquanto tal. Ao legado de Marx,

justapôs-se uma fortuna crítica dentro dessa área de estudos.

Esse legado não é de modo algum unívoco. Dentro da tradição aberta pelo

marxismo existe uma multiplicidade de posições. Mas, em uma palavra, a grande

contribuição do legado de Marx para o estudo das artes foi a historicização do

fenômeno artístico – a obra e o artista passaram a ser considerados como partes

integrantes da sociedade e, em maior ou menor grau, sujeitos às suas leis de

funcionamento.

No mais das vezes, contudo, a apropriação dessa ideia geral se deu de forma

mecânica – como nas proposições de Plekhanov sobre infraestrutura e

superestrutura que culminaram em uma teoria do reflexo, ou de modo reducionista,

como no realismo crítico de Lukács2, uma forma de valorar as obras de acordo com

nível de aproximação delas com os problemas do mundo social.

A corrente marxista – do ponto de vista mais geral, como ênfase na

necessidade de aproximar a obra do seu contexto social – será uma influência

decisiva tanto em Antonio Candido quanto em Raymond Williams. No caso de

Antonio Candido, essa influência veio por causa da formação que teve acesso na

USP – Universidade de São Paulo. O pensador brasileiro paulatinamente se certifica

dessa necessidade, mas procura se distanciar das visões mais reducionistas

atribuindo ênfase ao texto da obra.

Em Raymond Williams, o capítulo do marxismo é mais extenso e profundo. O

estudioso galês é amplamente reconhecido como uma das grandes figuras do

marxismo ocidental no século XX. O interesse por essa área de pensamento veio

por intermédio do seu engajamento político. Ele une a influência marxista ao estudo

de literatura, liga-a ao estudo da arte e da literatura, propõe uma análise bastante

original chamada de materialismo cultural.

2 “Do ponto de vista moral, considero toda aquela época condenável e, na minha concepção,a arte é boa quando se opõe a esse decurso” (LUKÁCS, 1999, p. 49).

33

2.4 Reação das disciplinas humanísticas

A rigidez da proposta marxista – principalmente pela redução da esfera

estética em que muitas versões ela irrompia – não passou ilesa. De acordo com

Castro (1979, p. 26), o campo dos estudos literários passou por uma reformulação

de suas bases teóricas no início do século XX, que tinha como ponto inicial a revisão

das principais correntes teóricas do século anterior, incluindo o marxismo. Na

perspectiva deste trabalho, essa revisão teórica dos estudos literários é um

movimento de retorno às propriedades formais da arte.

A primeira posição teórica desta reação é o Formalismo russo, que nasceu no

início do século XX, mas que só veio se tornar conhecido posteriormente por meio

das traduções para o francês realizadas por Tzvetan Todorov. Desde as formulações

iniciais desta corrente teórica, o Formalismo Russo se caracteriza por uma recusa

categórica das interpretações extraliterárias da obra. Objetivava definir a crítica

especificando o objeto de estudo e o método particular (CASTRO, 1979, p. 26).

Para os formalistas, a linguagem poética tem estruturas verbais autônomas,

opostas à linguagem cotidiana, e por isso independem de qualquer função

informativa. Desse modo, o texto literário é caracterizado a partir do texto em si,

opondo-se a qualquer outro tipo de influências. O acento dos formalistas sobre esse

pressuposto era tão forte que pode-se dizer que muitos deles desprezavam o

conhecimento histórico da literatura (CASTRO, 1979, p. 26-27).

A segunda posição teórica é a Estilística. Pode-se dizer que essa corrente

representa a tentativa de mobilizar a teoria linguística de Saussure para o estudo da

literatura. A visão dos teóricos da Estilística preocupados com o fenômeno literário

se resume a uma postura idealista, na qual a natureza da linguagem é vista como

atividade intuitiva individual. À Estilística cabe analisar a expressão verbal dessa

intuição (CASTRO, 1979, p. 28-29).

A terceira categoria chama-se Nova Crítica e nasceu nos Estados Unidos. Os

pensadores dessa corrente empregam um método descritivo, no qual o foco recai

sobre a análise do texto literário “em si”, isto é, sobre o emprego particular da

linguagem em cada caso. Desse modo, a obra é tratada tanto em suas variadas

partes quanto como em uma totalidade: funções de categorias gramaticais, valores

conotativos e denotativos, o ritmo, a harmonia, técnicas de composição, temas

34

principais e secundários, caracterização dos personagens, dentre outros. O analista

deve buscar as peculiaridades de cada obra, ou seja, a predominância da intuição

(CASTRO, 1979, p. 30-31).

Percebe-se claramente que essa é uma perspectiva cerrada no texto e

sincrônica uma vez que despreza a dimensão histórica da obra. A literatura é

autônoma porque se realiza de uma forma própria, utilizando a língua de forma

própria, criando estruturas que não se confundem com as demais. E mais: não só a

obra é autônoma como também o é a crítica literária, que tem por função estudar a

obra como tal e não os seus aspectos morais, sociológicos ou psicológicos

(CASTRO, 1979, p. 31).

A Nova Crítica americana será uma influência marcante em Antonio Candido.

Em um momento em que o pensador uspiano desejava fugir de uma sociologia que

não abordava o texto e as técnicas formais, a Nova Crítica lhe ofereceu um aparato

teórico cujo centro gravitacional era o texto. Ao mesmo tempo, lhe foi útil na tentativa

de forjar para si um espaço acadêmico dentro da USP, quando seu projeto

intelectual – mais voltado para a cultura e a arte – perdeu a disputa para o projeto de

Florestan Fernandes, focado em estruturas econômicas e sociais.

Mais recentemente, o estruturalismo, nas suas variadas posições, fundado

em uma busca objetivista e cientificista e nem sempre aberto a uma compreensão

mais complexa do fenômeno artístico, dominou o panorama crítico (CASTRO, 1979,

p. 32).

Todas as correntes, embora com suas particularidades, privilegiam uma visão

formal ou interna da arte e da literatura. A reação ao legado marxista também foi

profícua e fez surgir correntes que buscaram cientificizar e institucionalizar o estudo

artístico, circunscrevendo academicamente a dimensão estética como própria deste

campo de conhecimento.

Analisar a influência marxista sobre o domínio da arte e descrever a reação a

essa corrente em um campo específico (o do estudo da literatura) ajuda a

compreender a dinâmica dessa área de estudos: historicamente foram as correntes

humanas que focalizaram a arte e teorizaram sobre ela. A partir do século XIX,

outros referenciais teóricos com forte viés social se aproximam da arte. Por fim, o

século XX assiste a uma reação das disciplinas humanísticas, que voltaram a

acentuar o caráter formal da arte e que, além do mais, tentam dar contornos

científicos a seu campo de saber.

35

As perspectivas externalistas (aquelas que procuram destacar elementos que

estão fora da obra de arte) trouxeram ganhos para o campo de estudos da arte. Ao

inscrever a arte no mundo social, ainda possibilitaram que aspectos das obras,

negligenciados pelos estetas, possam ser destacados. Por exemplo, iluminaram as

estratégias de expressão e escolhas de carreira do criador, as instituições sociais e

as restrições econômicas da atividade (ZOLBERG, 2006, p. 41-42).

Portanto, pode-se concluir que, em alguns níveis, a contribuição sociológica

fez avançar o entendimento do que é arte, para além dos limites propostos pelas

disciplinas humanísticas.

No entanto, a empreitada intelectual dos sociólogos suscitou relutância no

campo da arte. Não são todos estudiosos que compartilham desse ponto de vista.

Os humanistas discordam, sobretudo, da tendência a tratar a arte como fruto de um

processo social e desprezarem suas características formais e estéticas.

Aí reside um dos pontos complexos da questão: os seguidores dos

pressupostos humanistas apontam o marxismo como o principal responsável por

reduzir as grandes obras de arte da história da humanidade a meros resultados de

fenômenos sociais (ZOLBERG, 2006, p. 43).

Como já foi dito, é improvável que Marx sustentasse tal visão, mas quem

levou adiante a tradição marxista acabou por conceber a chamada teoria do reflexo,

que sofreu críticas não só de humanistas, mas também de sociólogos e outros

adeptos do marxismo – como é caso do próprio Raymond Williams, estudado neste

trabalho, num longo debate teórico a ser abordado posteriomente; mas também é o

caso de Antonio Candido: quando critica a sociologia reducionista, parece ser ter em

mente o tipo de abordagem literária marxista que ignora as propriedades formais da

composição literária.

Os humanistas, portanto, são aqueles estudiosos que enfatizam a “grandeza”

da obra, suas características formais, que tocam o sensível. Dito de outro modo,

pregam uma autonomia da arte em relação ao seu contexto de produção,

sustentando que elas podem falar para todas as épocas e para toda a humanidade

(ZOLBERG, 2006, p. 45).

Mas uma análise exclusivamente estética não correria o risco de cair em outro

tipo de reducionismo? Para Zolberg (2006, p. 45-46) sim, pois ao conceber a arte

como uma atividade especializada que só diz respeito a grupos específicos, as

pretensões de universalidade propaladas pelos próprios estetas caem por terra.

36

Além disso, os críticos também divergem entre si quanto a questão do valor de uma

obra. Muito comumente os juízos de valor de uma obra mudam drasticamente, e o

que era considerado “grande obra” há cem anos pode não o ser hoje, e vice-versa.

Isso só revela que a “grandeza” é oriunda, pelo menos em parte, das opiniões

instáveis de uma gama inconstante de especialistas, em um contexto de

sensibilidades também variáveis e do grau de interesse que uma obra pode suscitar

no público (ZOLBERG, 2006, p. 46). Embora para muitos seja difícil admitir, isso

significa um grau de vinculação do fenômeno artístico a processos sociais – seja de

produção, de fruição ou de reconhecimento.

Desse modo, a abordagem externalista, embora muito criticada, se mostra

indispensável a essa área de estudos, tanto por salientar a correlação entre arte e

sociedade quanto por lançar luz sobre características das obras que são

negligenciadas pelos humanistas. O ganho é retirar a obra do reino do absoluto e do

inexplicável, embora esse postulado não encontre ressonância entre os humanistas

– não pelo menos para todas as formas de arte (ZOLBERG, 2006, p. 42).

Esses dois tipos de abordagens, durante muito tempo, dominaram o campo

de estudos da arte. Cada vez mais entrincheirados em suas posições, sociólogos e

humanistas acabaram por construir verdadeiras barreiras intelectuais e acadêmicas

entre a pesquisa estética e a pesquisa científico-social. Os resultados foram o

sufocamento da produção e o empobrecimento do debate (ZOLBERG, 2006, p. 46).

É por isso que há um movimento de superação dessa dicotomia, que parte

tanto de humanistas quanto de sociólogos. Os primeiros aproximando seus estudos

de uma compreensão social da arte e os segundos relativizando uma concepção

cientificista de sociologia (outras áreas, como a antropologia cultural, também estão

sendo chamadas a preencher algumas lacunas) (ZOLBERG, 2006, p. 46).

Dessa contenda, nasce uma postura que se pode chamar de sintética. Na

verdade, esta postura é uma tentativa de coadunar as principais contribuições de

humanistas e sociólogos com vistas ao melhor tratamento do fenômeno da arte.

Conforme salientouse em outra oportunidade, a interconexão entre as

abordagens estéticas e sociais não significa que o sociólogo vai se transferir para

outro campo de estudos, mas que deve justapor à base de formação conhecimentos

relativos à tradição de estudos da arte, como forma de equilibrar sua visão (FREIRE,

2018, p. 65).

37

Por fim, vale frisar que o chamado para uma abordagem sintética da arte não

quer esgotar a questão, nem tampouco deslegitimar análises que podem (e ainda

continuam a) ser feitas tanto de um lado quanto de outro. O que se quer, antes, é

conjugar duas perspectivas que se encontram contrapostas mais por elementos de

ordem acadêmica, institucional, e, por consequência, política, mas que

epistemologicamente, juntas, podem ser bastante produtivas para estudos sobre

arte (idem, ibdem).

Como panorama do campo da sociologia da arte temos que: embora seja

importante para o surgimento da disciplina, todos os estudos voltados apenas ao

âmbito estético estão fora do âmbito específico da sociologia. Dentro do escopo

sociológico encaixam-se os estudos externalistas ou materialistas, cujo foco recai

sobre as condições externas ao fenômeno da arte (aqui há pouco ou nenhum

espaço para a obra artística); e também entram os estudos da corrente sintética, que

advogam uma aproximação com as questões estéticas, por reconhecer que elas não

são redutíveis a questões políticas, econômicas e sociais (aqui há a consideração de

que a obra de arte pode ser estudada pela sociologia) (MORAIS; SOARES, 2000, p.

3).

É importante salientar que quando Zolberg (2006) conceitua o que chama de

abordagem sintética o que ela está fazendo é reivindicar para si essa posição,

focando especificamente o caso dos artistas – debatendo se são gênios ou se são

apenas realizadores de um trabalho especializado. A autora quer oferecer a sua

própria visão, mostrando como o disfarce dos indivíduos produtores de arte como

únicos que têm importância dentro das estruturas em que se encontram os artistas.

No entanto, a noção de corrente sintética é relevante para este trabalho, pois

ajuda a classificar, ainda que de maneira geral, os dois autores que baseiam esta

pesquisa – Antonio Candido e Raymond Williams. O uso desse conceito busca

designar os dois pensadores como preocupados em romper a polarização (já acima

exposta) que dominou a área por longo período. Estavam, pois, preocupados em

construir um diálogo entre a sociologia e os estudos literários.

Isso fica claro em passagens em que ambos os autores reivindicam uma

abordagem para a cultura e a literatura que guarde a especificidade estética, mas

que também seja capaz de trabalhar a arte com relação ao mundo social.

Candido diz que é necessário trabalhar a obra de arte a “partir de um ponto

objetivo, sem desfigurá-la nem de um lado e nem de outro”, pois “a integridade da

38

obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas” (CANDIDO, 2006, p.

13). Já Williams fala mais diretamente das posições materialista e idealista,

sustentando que a sociologia da cultura, embora formada a partir de cada uma delas

isoladamente, passa a buscar o que ele chama de “nova forma de convergência”

(WILLIAMS, 1992, p. 12-13).

Portanto, o interesse de construir uma nova abordagem que combine as duas

tradições está presente em ambos. Essa preocupação foi levada a cabo por meio de

um intenso trânsito entre literatura e sociologia que caracteriza a obra de Candido e

de Williams, que foi assinalado por Cevasco, para quem os dois autores

vêm de formações sócio-históricas comparáveis, transitam entre o queantes deles se chamava de “sociologia e literatura”. Ambosestabelecem um patamar de atividade crítica que modificaradicalmente as tradições culturais a que pertencem, são exemplosalentadores da difícil convivência do padrão universitário de excelência– característica do momento em que a crítica literária é disciplinaacadêmica – e a democratização de seus achados teóricos – poucoscríticos equiparam-se aos esforços de ambos de esclarecer e levaradiante as tarefas culturais do momento [...] (CEVASCO, 2004, p. 136,grifo da autora)

Para a referida pensadora, as similitudes se realizam por estímulos da

realidade sociocultural, que são estruturadas internacionalmente, e, assim, afetam

os dois países. Reside no quadro social e histórico geral a chave para a

compreensão do motivo pelo qual os dois autores, mesmo em ambientes

radicalmente distintos, produziram obras que se assemelham (CEVASCO, 2004, p.

136).

2.5 As novas posições em sociologia da arte e da literatura

Apesar de ser uma categoria necessária para situar os dois autores no debate

mais clássico do campo de estudos da arte (humanistas e estetas, materialismo e

esteticismo) e ajudar a entender a aproximação que se realiza neste trabalho, a

noção de “corrente sintética” é demasiado ampla para alcançar as diferenças, e

mesmo as semelhanças, entre os dois autores. Como nasceu de um debate que

opunha conceitos generalizantes (perspectivas externalista e internalista), a

abordagem sintética também herdou essa mesma característica.

39

Heinich (2008, p.12) propõe uma introdução à temática por meio das

tradições que compuseram o que hoje se denomina de sociologia da arte. Considera

que a sociologia da arte é, sem dúvidas, a subárea mais heterogênea da sociologia:

nela convivem gerações intelectuais extremamente distintas, quando não opostas.

Mas aquilo que pode ser apontado como início das preocupações que cabem

à disciplina sociológica vem daí e é esse o primeiro obstáculo que se deve ter mente

quando se almeja uma história mais apurada da sociologia da arte: a sua principal

origem está fora do grande corpo que é a sociologia (HEINICH, 2008, p. 21).

O que se pode chamar de sociologia da arte nasceu entre estudiosos de

estética e história da arte, que buscaram ultrapassar a tradicional relação bilateral

artista/obra e inseriram nela um outro termo: sociedade. A partir daí, novas

possibilidades foram abertas e uma nova disciplina começou a surgir. Há vários

modos de experimentar as possibilidades que se ofereceram, e, a depender do

enfoque, pode-se distinguir as principais tendências da nova disciplina (HEINICH,

2008, p. 26).

Quando há o interesse pela arte e pela sociedade, configura-se a linha

conhecida como estética sociológica, que pode ser apontada como o momento

fundador da sociologia da arte. Surgiu na metade do século XX. O que durante muito

tempo se ensinou nas universidades sob o título de Sociologia da arte, é, na

verdade, esta estética sociológica, ainda de caráter muito especulativo (HEINICH,

2008, p. 27).

A estética sociológica introduz dois elementos fundamentais para o

desenvolvimento da sociologia da arte: desautonomização, a ideia de que a arte não

pertence apenas ao domínio da estética, e desidealização, a noção de que ela não é

um valor absoluto (HEINICH, 2008, p. 29). Constituem essa tendência, a tradição

marxista, a Escola de Frankfurt e Pierre Francastel – este último que tem o mérito de

mostrar que a arte pode ser reveladora, e não apenas resultado de certas realidades

sociais e visões de mundo (HEINICH, 2008, p. 31-37).

Apesar das diferenças que possuem entre si, os pontos fracos se sobressaem

e denunciam a falta de autonomia de um projeto propriamente sociológico frente à

história da arte, ainda mais porque vigeram em um momento muito pouco

desenvolvido da sociologia. Assim, tem-se como pontos fracos: o fetichismo da obra,

quase sempre colocada como ponto de partida da reflexão; o substancialismo do

social, tomado como uma realidade em si mesma, postulando uma separação entre

40

a arte e o social; e o causalismo, que privilegia a explicação de causa e efeito em

prejuízo de interpretações mais descritivas ou analíticas (HEINICH, 2008, p. 40).

A segunda geração também surgiu em meados do século XX, por volta da

Segunda Guerra Mundial, mas nasceu entre historiadores da arte filiados a uma

tradição intelectual mais empírica, radicada na Itália e na Inglaterra. Buscavam

investigar a arte na sociedade, tornando clara a intenção de explicitar uma relação

de inclusão da primeira na segunda. Por isso, a questão central é a do contexto em

que se inserem obras e autores. Apesar de ser menos ambiciosa ideologicamente

que a primeira geração, esta, que se pode chamar de história social da arte, obteve

resultados mais concretos e duradouros (HEINICH, 2008, p. 27).

A corrente da história social da arte avançou na contextualização da arte

abrindo espaço para critérios menos heteronômicos, no qual o contexto deixou de

ser simplesmente econômico para ser “cultural”. Em outros termos, a autonomia e a

especificidade da esfera artística foram mais respeitadas. A ênfase no contexto fez

avançar o interesse em direção do mecenato e formas de patrocínio da arte, das

instituições de arte, da recepção (o âmbito no qual se dá o “consumo” de arte), bem

como dos produtores de arte – com foco no estatuto do artista na sociedade,

buscando romper a ideia de que o artista é uma figura apenas preocupada com

questões estéticas (HEINICH, 2008, p. 43-58).

A partir da década de 1960, surge uma terceira tendência, cuja tradição

localiza-se na França e nos EUA. Chama-se sociologia de pesquisa e se

desenvolveu paralelamente aos novos métodos oriundos da estatística e da

etnometodologia. Essa tendência pratica a pesquisa empírica com base em

econometria, entrevistas e observações. Aborda a arte como sociedade, isto é, toma

o conjunto das interações dos autores, das instituições, dos objetos, analisando

como eles se estruturam para fazer arte. Desse modo, a arte passa ser o ponto de

chegada, e não de partida, dos questionamentos (HEINICH, 2008, p. 27-28).

A sociologia de pesquisa é marca do momento em que a sociologia da arte se

autonomiza frente à estética e à história social da arte. Ganha força por intermédio,

também, da própria sociologia, que mais recentemente consolidou seus próprios

métodos e reflexões. A sociologia de pesquisa os põe a serviço de sua área de

estudos e se especifica como um campo da sociologia (HEINICH, 2008, p. 62).

O contato com outras disciplinas será sempre um traço característico da

sociologia da arte que é, por excelência, uma subárea que tenciona as fronteiras dos

41

campos institucionalizados de saber. No entanto, entende-se que a terceira geração

alcança, de fato, uma autonomia para a sociologia da arte, pois essa aparece agora

mais como uma disciplina particular (com tudo que isso implica: delimitação do

objeto e definição de métodos) e menos como assunto ou conteúdo de comentários

estéticos ou filosóficos, condição a qual era submetida no início das preocupações

sobre a relação arte e sociedade (HEINICH, 2008, p. 62).

Os autores sobre os quais se baseia este estudo, sem dúvidas, estão

distantes desse momento de autonomização da sociologia da arte. Embora tenham

produzido durante a parte mais significativa do século XX para sociologia da arte

(desde o fim da Segunda Grande Guerra até a década de 1970, com o período de

maturidade de seus pensamentos coincidindo com esse último momento),

perpassando, cronologicamente, os três períodos acima delimitados, percebe-se que

a formação deles e as preocupações centrais de seus escritos denunciam um

momento ainda turvo para a sociologia da arte e da literatura.

Quanto à formação, percebe-se que os dois autores se situaram entre as

tradições da Sociologia e das Letras. Ao passo que Antonio Candido iniciou sua

trajetória nas Ciências Sociais e migrou paulatinamente para o campo das Letras,

Raymond Williams desde cedo esteve vinculado às Letras, tendo contribuído para a

sociologia da literatura por intermédio do intenso debate que estabeleceu com o

marxismo.

Quanto às preocupações centrais, nota-se que elas revelam o estatuto do

debate no momento em que os autores produziam suas obras. Se é possível dizer

que “certas problemáticas parecem hoje obsoletas”, como a pertinência dos estudos

sociológicos sobre arte e literatura ou, até mesmo, o entendimento da arte como

uma atividade social (HEINICH, 2008, p. 63), vê-se que tanto Candido quanto

Williams ainda procuravam assentar essa discussão e, principalmente, em como

assentá-la.

Percebe-se que questões de como os fatores sociais devem entrar em uma

análise ou mesmo de como deve-se definir o estatuto das práticas artísticas no

interior da sociedade atravessam as preocupações dos dois autores. Se a grande

área da sociologia da arte teve como principal contribuição trazer a dimensão social

para o primeiro plano das discussões, o modo como os dois autores trabalham

essas questões passa a ser fundamental.

42

Por isso, faz-se necessário discutir como cada um deles soluciona

teoricamente essas questões e como as realizam em suas obras analíticas. Isso

permitirá esclarecer as diferenças fundamentais entre os dois pensadores, para

além de qualquer similitude que possa ser estabelecida do ponto de vista geral.

Também quanto ao tipo de método empregado há uma distância em relação à

sociologia de pesquisa. Se essa última caracteriza-se pelo recurso à enquete e pelo

uso de medidas estatísticas e de observações etnológicas para abordar a arte

(HEINICH, 2008, p. 62), Candido e Williams atuaram em um tempo em que a

aplicação desses métodos era completamente estanha à sociologia da arte e da

literatura.

Pela herança intelectual (autores com influência marxista que se preocuparam

com arte e literatura, inclusive se incumbindo da tarefa de levar o marxismo para

este campo originalmente não explorado), Candido e Williams se aproximam mais

da primeira geração da sociologia da arte. Contudo, os dois pensadores

reconheciam as especificidades da arte e estão longe de estabelecer um causalismo

mecânico em suas análises – o que, ao mesmo tempo, os distanciam da primeira

geração.

O mais preciso, talvez, seja localizá-los em algum ponto entre a primeira e a

segunda geração. Demonstraram um esforço de convergência ou de sintetização

muito grande, o que contribui sobremaneira a consolidação de questões importantes

ao desenvolvimento e autonomização da disciplina.

Prova do recrudescimento da sociologia da arte e da literatura são as diversas

áreas para as quais se expandiu: estudos sobre recepção, sobre os elementos

mediadores, sobre o estatuto do produtor de arte e, também, sobre a pertinência dos

estudos sociológicos sobre os objetos artísticos.

Ponto muito importante nos programas teórico e analítico de Antonio Candido

e Raymond Williams é a atenção que eles concedem às obras literárias. As questões

que envolvem a pertinência do estudo sociológico para as obras literárias, o modo

de proceder a essa análise e a reconstrução de um programa para uma sociologia

das obras literárias são, assim, centrais também.

A sociologia das obras parte da premissa que a sociologia não deve ficar

apenas no estudo dos contextos, das instituições, dos produtores de arte ou aos

quadros de recepção, mas deve focar também nas obras literárias em si. Nessa área

de estudos da sociologia da arte, desde que a dualidade estudo estético versus

43

estudo das condições sociais se solidificou, a necessidade de unir a visão

sociológica à apreciação estética vem sendo constantemente reiterada (HEINICH,

2008, p. 128).

No plano de uma sociologia das obras, a reivindicação de uma postura “não

dogmática” ou “aberta” nas abordagens leva à concepção de que a pesquisa deve

caminhar em dois planos: um exterior e outro interior – em relação às obras, leia-se

sempre em complemento. Ao investigar qual o fator é dominante para as

características de uma obra, se procederá à necessária passagem do plano exterior

de análise ao plano interior, ponto ao qual toda pesquisa deveria almejar

(FRANCASTEL, 1967, p. 37).

Vê-se, portanto, que esses postulados não são novos, mas ainda hoje são

sustentados. Por isso, Heinich (2008, p. 127) tem razão ao afirmar que “fazer a

sociologia das obras em si mesmas”, “passar da análise externa à interna”, ou do

social ao estético, são sentenças incessantemente repetidas nessa subárea de

estudos, e que elas podem ser aplicadas a programas de pesquisa muito diversos.

Esses termos e, sobretudo, esta intenção – a busca pela análise interna das

obras, o interesse por toda a dimensão formal, como porta de entrada para as

questões sociais encerradas na obra e não apenas o mundo social como dado e

explícito – estão muito presentes no pensamento de Antonio Candido. Pode-se dizer,

até mesmo, que solucionar essa questão é o objetivo principal do autor uspiano.

Nessa área há também uma dificuldade de passar da enunciação à prática. O

pressuposto da análise externa aliada à interna é mais apregoado do que praticado.

Na esteira dessa constatação, entende-se, mesmo que com alguma margem de

exagero, a visão de que a sociologia das obras compreende o domínio mais

esperado, controverso e decepcionante da sociologia da arte (HEINICH, 2008, p.

127).

Na perspectiva desta tese, os extensos debates não renderam um consenso

mínimo que pudesse legar a essa subárea um programa claro e bem delimitado para

orientar as pesquisas. Discutir o programa de Antonio Candido nesta direção é

também um dos objetivos deste trabalho, procurando debater a capacidade que o

seu programa tem para orientar outras análises

Entre os problemas concernentes a essa corrente de pesquisa podem-se

apontar, primeiro: uma postura inclinada ao hegemonismo, ou a tendência a

considerar que a sociologia tem igual ou até maior pertinência para tratar dos

44

objetos artísticos do que as disciplinas tradicionalmente a eles dedicadas – a

história, a estética e a crítica. O ponto central é que o objetivo principal não seria

fazer descobertas sobre o fenômeno artístico ou as obras, mas provar que a

sociologia pode ensinar aos especialistas dessas outras áreas. Isso revela uma

prática não colaborativa, mas competitiva da sociologia, que busca afirmar sua

supremacia frente ao objeto de arte (HEINICH, 2008, p. 128).

O segundo problema ataca diretamente o centro das preocupações da

sociologia das obras: o próprio interesse em estudar os objetos artísticos. Se a

determinação de estudar as obras, e não pessoas ou instituições, obedece a um

critério estabelecido no mundo erudito das artes, a sociologia corre o risco de tomar

para si um ponto de vista que é estranho ao seu. Ou seja, ao invés de tomar esse

ponto de vista por objeto, a sociologia faz dele a sua própria base epistemológica

(HEINICH, 2008, p. 129).

A terceira e última problemática também é um questionamento primordial e

alude à falta de um método de descrição das obras que seja propriamente

sociológico. As obras não se prestam tão facilmente às análises estatísticas quanto

os grupos e as coisas. E muitas das análises empíricas que se conhece são

redutíveis às descrições que críticos e historiadores já utilizaram anteriormente

(HEINICH, 2008).

Apesar dos obstáculos, na sociologia das obras tem-se algumas tentativas de

construir programas de estudos. Para Heinich (2008, p. 132-143), a sociologia das

obras pode avaliar os valores estéticos dos objetos de arte, interpretar uma obra por

meio do contexto social vigente ou, por fim, optar por uma abordagem pragmática,

analisando o que as obras fazem, observando-as o mais próximo da realidade.

Ao passo que a avaliação varia entre a consagração dos valores originários

do campo da arte e a negação deles, tendo como única saída uma antropologia

descritiva, a questão da interpretação, além de ser excessivamente polissêmica, tem

seu alcance diminuído pelo grau de autonomização da obra em apreço. Na área da

abordagem pragmática, o problema é aliar à análise formal e material todos os

discursos que acompanham as obras de arte (HEINICH, 2008).

Aplicada especificamente à literatura, a sociologia das obras encontra outras

nuances. Para Sapiro (2016, p. 78), o primeiro modo de abordagem das obras na

sociologia foi tomá-las como participantes da visão de mundo de uma época. Essa

ideia foi central na sociologia da literatura entre as décadas de 1920 e 1950, quando

45

a intenção de ver obras de modo menos idealizado e de vinculá-las a certos grupos

sociais era dominante. Nos fins dos anos 1960 e durante a década de 1970 a noção

foi recuperada, principalmente pela corrente marxista por meio dos conceitos de

consciência coletiva e ideologia.

A premissa desse tipo de abordagem é a de que as obras são uma fonte

privilegiada para conhecer e adentrar as representações sociais de uma época. A

crítica de orientação sociológica (ou “sociocrítica”) tem levado a cabo a tarefa de

iluminar essas representações contidas nas obras, com objetivo de reconstruir o

universo literário atravessado de relações sociais, históricas e espaciais (SAPIRO,

2016, p. 79-80).

Tomando as duas perspectivas sobre o modo como a literatura se vincula à

realidade, pode-se dizer que as obras literárias oscilam entre representação e

simbolização. Do lado da representação, se postula a transparência da linguagem,

dando primazia ao significado e ao sentido metonímico da literatura, ao passo que

do lado da simbolização enfatiza-se a opacidade da linguagem e o aspecto formal

dos objetos artísticos, na qual a literatura adquire sentido metafórico (SAPIRO, 2016,

p. 85-86).

Outra perspectiva para analisar as obras é a que se chama de trabalho de

colocar em forma. Essa abordagem parte da ideia de que a literarização de uma

temática ocorre com a ajuda de esquemas sociais e literários de representação do

mundo, dos gêneros (poesia, novela), dos subgêneros (novela picarescas, novela de

iniciação), dos modelos formais de estruturação dos relatos (ordem do relato,

temporalidade), entre outros. Em suma: de todos os elementos que podem remeter

em maior ou menor grau à tradição literária (SAPIRO, 2016, p. 86).

Por fim, ainda temos alguns métodos quantitativos aplicados ao estudo das

escolas, correntes e gêneros literários, objetos tradicionalmente vinculados à história

literária. Os métodos quantitativos podem oferecer ferramentas para analisar

variações diacrônicas (a evolução dos gêneros, por exemplo) e as distâncias

sincrônicas (recrutamento social de escritores segundo gêneros e escolas literárias

(SAPIRO, 2016, p. 88).

Foi o que fez, por exemplo, Franco Moretti em A literatura vista de longe

(2008). Partindo da constatação de que as obras que dominam o cânone dos

estudos literários representam apenas 1% da produção literária do século XIX, o

autor convida a uma ampliação do enfoque por meio de modelos abstratos: os

46

gráficos quantitativos da história, as árvores da teoria evolucionista e os mapas da

geografia.

2.6 Aproximações e possíveis divergências entre Candido e Williams para

análise da literatura

Antonio Candido e Raymond Williams certamente fazem uso de métodos

qualitativos em seus trabalhos. São os pioneiros na tentativa de aliar análise externa

e interna – ou, melhor, de superar essa dicotomia. Para tanto, os dois autores

passam a pontuar a necessidade de atentar para os aspectos estéticos da obra

literária para que se compreenda melhor o que ela extrai do mundo social. No ponto

alto de suas carreiras, constroem conceitos para orientar as análises: Antonio

Candido com a noção de redução estrutural e Raymond Williams com a de estrutura

de sentimentos.

É digno de nota que Antonio Candido, apesar de ter uma contribuição muito

original para analisar a literatura sob o prisma sociológico, não mereceu menções

nas obras trazidas aqui para a reconstrução do panorama da sociologia da arte e da

literatura (nada se encontra em HEINICH, 2008 e SAPIRO, 2016, por exemplo).

Pesa contra o pensador brasileiro o fato de escrever em uma língua de pouco

alcance mundial e de estar radicado em um país de periferia, em um contexto de

relativo atraso de institucionalização das Ciências Sociais e de pouca consolidação

da cultura como objeto sociológico de pesquisa.

Já Raymond Williams escreveu em língua inglesa, idioma que se tornou

padrão na ciência contemporânea, e produziu na Inglaterra, país do centro do

capitalismo europeu e que, conforme Lepenies (1996, p. 194), apesar de só ter

institucionalizado a sociologia após a segunda guerra mundial, tinha esse campo de

estudos diluído em uma série de disciplinas acadêmicas já existentes. Por esses

fatores, recebeu menções de Heinich (2008, p. 47) quando discute contextualização,

e de Sapiro (2016, p. 78) a propósito da ideia de representação. Apesar de tudo, sua

contribuição é considerada mais ou menos datada para a sociologia da literatura.

As semelhanças entre autores imersos em contextos tão diversos veio a ser

percebida, como não poderia deixar de ser, por uma pensadora da periferia:

Cevasco. A posição privilegiada para a crítica epistemológica que a periferia oferece

(por estar em contato com a produção tanto do centro quanto da periferia), fez a

47

autora notar um paralelismo estreito entre o modo como os dois autores concebem e

analisam a cultura.

Para além das coincidências, acima referidas, e que foram operadas pela

realidade social e histórica que, de modo geral, enlaçou os dois países, a conexão

entre os pensadores começa a ser delineada a partir da tentativa deles de fugir à

polarização da área. Interessavam-se pelos elementos estéticos, mas de um modo

distinto da crítica literária tradicional, e buscavam os fatores sociais inscritos nas

obras, mas não da maneira dogmática como prescrevia a crítica cultural marxista até

então.

Pensando especialmente na concepção que os dois autores têm da relação

arte-sociedade, ponto que toca mais diretamente no cerne desta pesquisa, percebe-

se que os dois se afastam de análises de caráter conteudista, defendendo o estudo

da forma por intermédio da tentativa de elucidar a “significação do elemento externo,

o histórico social, na obra literária” (CEVASCO, 2004, p. 144-145).

Para Cevasco, esta é a “tradição disjuntiva” a que se filiam Candido e

Williams e ela dá o traço distintivo da contribuição dos dois pensadores para a crítica

de cultura de origem marxista e para toda uma teoria crítica de esquerda

contemporânea. A autora conclui, dessa forma, que “os dois críticos preconizam uma

dialética da obra/sociedade que vai além das concepções de reflexo do marxismo

ortodoxo e além também de tudo o que se pensava em termos de ligação

sociedade/literatura” (CEVASCO, 2004, p. 148).

Em outra ocasião, ao prefaciar um livro de Raymond Williams e ao tocar na

questão de como os Estudos Culturais analisam os objetos culturais, Cevasco

mobiliza a discussão acima exposta e convida os termos do referencial teórico de

Antonio Candido para explicar o pensamento do autor galês. Diz a autora: “O

trabalho da crítica é justamente o de mostrar como o externo, o que se chama

social, traduz-se em interno, em elemento estruturante da obra” (CEVASCO, 2011, p.

11).

Se no artigo as comparações foram feitas com o cuidado de indicar

cuidadosamente as aproximações, no prefácio à obra de Williams Cevasco procede

a uma voluntária permuta de termos. Mais do que tornar mais claro ao público

brasileiro o pensamento de Williams, nota-se a tentativa de criar uma equivalência

entre as propostas teóricas dos dois autores.

48

As semelhanças também foram notadas por Paixão (2015) que parte da

constatação inicial de que Candido e Williams, guardadas as devidas proporções,

acreditam que a análise e a interpretação da literatura e da sociedade permitem

compreender as crises culturais ou os problemas estruturais de seus respectivos

países. Os conceitos-chave de Williams e Candido para compreender as crises

estruturais pelas quais passaram suas respectivas sociedades e o modo como a

literatura as representou no tempo do romantismo são, respectivamente, estrutura

de sentimentos e sistema literário.

Mas o objetivo dos autores não seria o de simplesmente compreender a

realidade social por si só, e sim estudar como a realidade ganha forma e aparece na

literatura. A forma é, assim, uma ferramenta utilizada para a interpretação da cultura

ou da sociedade, porque as “contradições e potencialidades” da realidade estão

“reduzidas estruturalmente nos textos” (PAIXÃO, 2015, p. 2).

Chama a atenção a última expressão, marca do pensamento de Antonio

Candido e que o autor utiliza livremente para caracterizar o projeto teórico de

ambos: tanto do cientista social uspiano quanto do marxista galês. Embora o

interesse de Paixão seja analisar o problema do público (inexistência de público

leitor especializado no Brasil e pouco qualificado na Inglaterra) como questão

transversal utilizada por Candido e Williams para adentrar as crises de suas

sociedades, a relação reversa entre a teoria de ambos é mais uma vez salientada.

O paralelo mais uma vez é traçado por meio do “interesse na forma”, a

contribuição de ambos para teoria da literatura contemporânea (CEVASCO, 2004, p.

145). Para Paixão (2015, p.2), “a forma faz as vezes de realidade e ela é que está

no horizonte de análise e interpretação que Candido e Williams desejam

empreender”; mais do que isso, o destaque à forma literária é dado porque é ela o

ponto de convergência entre os dois autores.

Embora os trabalhos que discutam paralelamente Candido e Williams não

sejam numerosos – uma lacuna para dois nomes tão importantes nos meios

intelectuais – parece que, de algum modo, as semelhanças esboçadas por Cevasco

parecem ter se consolidado. O tipo de abordagem dos dois autores, além de

postular o estudo de elementos estéticos e extra estéticos, teria em comum o fato de

dar um passo à frente em relação à rotina de pesquisas da sociologia da

arte/literatura, polarizada em torno de perspectivas dicotômicas. Ao tomar as

49

principais premissas de cada uma dessas concepções atomizadas em seus

respectivos campos para construir seus programas, eles estariam conjugando-as.

Conquanto pesem as semelhanças entre os dois autores, a hipótese que

baseia este estudo é a de que eles se distanciam no que tange ao modo como

coadunam elementos externos e internos para análise da obra literária, resultando

em divergências significativas sobre a maneira como percebem a relação arte e

sociedade, ao modo como historicizam seus objetos de análise e, por fim, quanto a

própria concepção de arte e literatura.

Antonio Candido é o pensador, no Brasil, que mais focou nas relações entre a

literatura e o mundo social. Para o campo da Sociologia da Literatura brasileira, esse

autor surge como uma possibilidade factível de realizar uma pesquisa não

reducionista dentro da área, tanto porque atenta para os fatores sociais –

atendendo, assim, aos pressupostos da sociologia – quanto porque seu programa

analítico reserva um espaço especial para tratamento do objeto artístico – análise

interna, nos dizeres do próprio pensador –, dimensão essa negligenciada pelos

cientistas sociais.

No entanto, alguns questionamentos podem ser lançados à teoria de

Candido. O fato de ele ser um autor pouco afeito a discussões teóricas mais longas

(o que permitiria esclarecer pontos importantes do seu pensamento) e de ter o seu

programa metodológico excessivamente focado no texto, na obra em si, não

favorece toda a pesquisa preliminar do sociólogo da literatura, no momento em que

este quer levantar informações e buscar afinidades eletivas entre o objeto literário

que tem em apreço e o fenômeno social que busca compreender.

É bem verdade que Candido identifica o social a partir mesmo da obra

literária, mas parece que a reconstrução do meio social da obra depende dos

conhecimentos prévios do próprio analista. Há algo anterior que orienta o próprio

Candido na análise de suas obras, mas que só vem à tona no momento da leitura da

obra. A hipótese deste trabalha é de que isso torna o projeto de Antonio Candido

para a sociologia da literatura um ato mais intuitivo que sistemático.

De grande valia, portanto, é a analogia com Raymond Williams, pensador

galês que, a exemplo de Antonio Candido, também construiu seu projeto teórico na

intersecção entre as Ciências Sociais e as Letras. Não para apenas apontar as

similitudes, mas também para localizar os distanciamentos. Williams, a uma primeira

visada, oferece o que em Candido se ausenta: debate teórico amplo e um conceito

50

(estrutura de sentimentos) que abarca todo um período e congrega fenômenos

sociais e artísticos como prática materiais da sociedade (localizando-o nas gerações

da sociologia da arte de Heinich, Williams foi o pioneiro do que se chamou arte

como sociedade).

Neste caso, a reconstrução do social de que depende a obra é um movimento

necessário, pois há o reconhecimento de que certas condições sociais são

indispensáveis à prática artística, embora dificilmente a satisfaçam em um nível mais

elevado. Pode-se explicar um (obra) pelo outro (social) sem que isso signifique

necessariamente o desprezo pela dimensão estética e sem que isso impeça

interpretações analíticas.

A hipótese que orienta este trabalho é a de que, apesar da justificável

aproximação entre os dois autores no que concerne ao modelo teórico e analítico de

cada um deles, que reside na justaposição de elementos estéticos e extra estéticos,

em Candido há um tipo de seletividade entre os fatores sociais que entram na

análise, ao passo que em Williams estes fenômenos estão em uma medida mais

abrangente, porque o objeto a artístico é concebido com prática social constante.

A seletividade que Antonio Candido constrói para delimitar a atividade do

crítico não impossibilita o uso de seu método na sociologia, mas ela finda por limitar

o alcance de seu programa a uma especificidade histórica. Raymond Williams

congrega um espectro qualitativamente mais extenso de fenômenos sociais, o que

lhe permite relacionar de modo contínuo a literatura aos processos sociais gerais e a

perceber as mudanças reversas da literatura por meio do tempo histórico.

Se as semelhanças teóricas e de projetos políticos foram operadas pela

realidade sociocultural estruturada internacionalmente, nossa hipótese, quanto às

divergências sobre os modos de se acercar do objeto artístico e de apreender o

social na obra literária, é a de que os meios intelectuais e os campos científicos de

cada um dos dois autores fomentaram necessidades distintas, que, por conseguinte,

tiveram de ser satisfeitas de modos particulares.

51

3 TRAJETÓRIAS

O objetivo deste capítulo é situar os percursos de Antonio Candido e

Raymond Williams. Convém pontuar que só desse modo é possível entender a

concepção de análise social do fenômeno literário proposta por eles dois. Sendo

assim, este capítulo foca brevemente na biografia de cada autor – sobretudo nas

oportunidades de vida que tiveram –, o contexto histórico geral e particular em que

surgiram como pensadores, o grupo intelectual a que se filiaram e os esforços para

formar uma disciplina ou campo de estudos. Nesse movimento, forma-se um

panorama da trajetória dos pensadores e assentam-se as bases para a discussão

teórica do capítulo subsequente.

3.1 Antonio Candido e herança familiar

Antonio Candido nasceu no Rio de Janeiro, em julho de 1918, no seio de uma

família abastada de classe média, mas viveu desde cedo em Minas Gerais,

incialmente em Cássia e posteriormente em Poços de Caldas. Foi nessa última

cidade que Candido fez o curso ginasiano, antes de migrar para São Paulo. Foi o

primeiro filho do casal Clarisse Tolentino de Mello e Souza e de Aristides Candido de

Mello e Souza. Seu pai e seu avô materno foram médicos. Alguns tios e primos, de

primeiro e segundo graus, também o foram. A medicina, portanto, era um assunto

constante em sua casa (PONTES, 1998, p. 153).

A formação de Antonio Candido ocorreu toda no período entre guerras –

desde a formação ginasial até a universitária. O crítico brasileiro cresceu durante o

período do Estado Novo, no interior de Minas Gerais, e entre 1940 e 1950

desenrolou-se grande parte de sua educação acadêmica na USP (Universidade de

São Paulo). Nas décadas de 1960 e 1970 atou com destaque como professor de

literatura brasileira. A atenção dispensada à análise da cultura brasileira,

particularmente o processo de formação, expresso por intermédio da literatura, é um

dos fatores que o diferenciam.

Importa salientar que um pensador da relevância de Antonio Candido,

tomando o conjunto de sua obra, não surge por acaso, mesmo levando em

consideração que ele teve acesso ao ensino universitário em uma época em que

52

isso estava longe de ser factível para a fatia majoritária da população. Explicamos:

se o próprio acesso ao ensino universitário é um reflexo da posição social que

Candido ocupava, não é ele o único fator que concorre para a sua constituição como

crítico de cultura. A sua família e o ambiente culto que nela imperava são também

elementos determinantes.

É válido notar, por exemplo, a oportunidade que teve Antonio Candido em

aprender a língua e a cultura francesa quando ainda era muito jovem. Isso porque,

por meio de compromissos profissionais de seu pai, passou um ano na Europa,

entre 1928 e 1929. Enquanto Aristides de Mello e Souza fazia um curso de

especialização em medicina, Antonio Candido tinha aulas de francês e cultura

europeia com Marie Rohlfs de Sussex, que atuava como um tipo de governanta na

casa onde vivia. A experiência da viagem e todo o conhecimento adquirido tiveram

impacto fortíssimo na formação do futuro sociólogo e crítico (PONTES, 1998, p.

155).

Antonio Candido afirmou que essa viagem solidificou e cristalizou a influência

clássica que a cultura francesa exercia à época sobre o brasileiro – como ele – de

classe média, dado que essa presença se fazia sentir dentro de sua família, que

experimentava o francês quase como segunda língua. Por fim, e como

reconhecimento da condição social privilegiada, Candido também admitiu que para

seus contemporâneos brasileiros isso não era algo comum (PONTES, 1998, p. 156).

Algumas figuras da família de Antonio Candido desempenharam o papel de

intelectual nos círculos sociais do começo do século XX no Brasil e, por isso, tiveram

sobre ele forte precedência. Lúcia Miguel-Pereira, prima de primeiro grau, mas

tratada como tia pela diferença de idade, e por quem Candido nutria grande afeição,

exerceu sobre ele esse tipo de influência. Miguel-Pereira iniciou-se na crítica literária

aos 28 anos como colaboradora do Boletim Ariel, uma das publicações literárias

mais importantes da década de 1930; escreveu também uma biografia sobre

Machado de Assis e um estudo sobre Gonçalves Dias. Como corolário dessas

realizações, Miguel-Pereira foi a única mulher a alcançar, em um meio intelectual

predominantemente masculino, a condição de autora mais editada pela coleção

Documentos Brasileiros (PONTES, 1998, p. 153). Por tudo isso, teve um peso muito

grande para Antonio Candido, como figura que personificava o que era o papel e a

atuação intelectual.

53

Outra figura de destaque, nessa direção, é o próprio pai de Antonio Candido,

Aristides de Mello e Souza. Esse era graduado em medicina, mas com um tipo de

formação ampla, com interesse para uma cultura geral. Tanto que, ao lado da sua

clínica, edificou também uma sólida biblioteca particular que congregava obras de

filosofia, ciências, história e literatura (PONTES, 1998, p. 154).

A autuação de Aristides de Mello e Souza sobre o filho foi, então, dúplice: se

desdobrou no empenho em estimular e acompanhar os estudos de Antonio Candido

e, por outro lado, se realizou de modo indireto, por meio da sua biblioteca, que, junto

com outra biblioteca particular, a da mãe, formou o espectro cultural dentro do qual

se deram as primeiras descobertas do filho primogênito (PONTES, 1998, p.154).

Ora, a referência a esses exemplos familiares é um modo de dimensionar o

grau de intimidade que Antonio Candido teve com o modelo dominante das carreiras

intelectuais nas décadas de 1920 e 1930. Essas carreiras eram marcadas pela

inserção na vida política do país, além de terem se construído no encontro do

jornalismo com a crítica literária e no contato com algumas instituições de prestígio –

as faculdades de medicina e direito, grandes editoras, academias de letras e jornais

(PONTES, 1998, p.154).

Portanto, pode-se dizer que o ambiente familiar, rodeado de livros e de

pessoas com interesse pela leitura, pela música (ópera em especial) e pela cultura

em geral, com grande incentivo aos filhos ao hábito da leitura foi decisivo em Antonio

Candido, pois despertou o seu interesse intelectual de forma genuína (PONTES,

1998, p. 155). A atuação da sua família se fez sentir em uma série de privilégios de

classe, no acesso a bens materiais e culturais, que situam Candido em um estrato

social muito específico da sociedade brasileira da primeira metade do século XX.

Ao dar peso à influência social e familiar de Candido, não se quer

desmerecer a formação acadêmica do autor, que mais à frente será alvo de

apreciações, mas ponderar que é a família dele, na realidade, a sua principal base

cultural. Se é verdade que ela lhe concedeu o suporte material para a sua formação,

também é verdade que ela fez um pouco mais que isso: lhe ofereceu de herança um

matiz e um pendor particular, bem como suas principais motivações e seus

principais interesses no terreno da cultura. Ele próprio reconhece:

Ora, o espírito analítico depende de uma inclinação natural e doconvívio com certos textos, além das oportunidades de receberinfluências diretas ou indiretas. [...] O que formou a minhamentalidade, e portanto o meu espírito crítico, foram, em primeiro

54

lugar, o ambiente de minha família, marcado por pai e mãe muitocultos e por uma ótima biblioteca. A seguir, a leitura voraz ecaudalosa desde os oito ou nove anos, com predomínio dos autoresfranceses. Mais tarde, a Faculdade de Filosofia da USP, com seusprofessores estrangeiros, que nos marcaram profundamente [...](PINTO, 2010, s.p.).

Interessante notar no breve depoimento de Antonio Candido é que ela não só

reconhece a influência decisiva da sua família e de sua inclinação cultural na sua

formação, mas estabelece uma ordem de hierarquia: primeiro esse fator familiar, e

em segundo a formação universitária proporcionada pela USP.

Mas o próprio depoimento nos direciona a esse segundo fator, os estudos

universitários, de peso também significativo. Porque, embora sua vocação literária

tenha sido despertada muito cedo por causa da sua origem social, pela inclinação

cultural da sua família e pelo empenho de seus pais, não se pode negar que um tipo

de formação intelectual sistemática ele só obteve quando ingressou na USP

(Universidade de São Paulo). Em 1939, Candido prestou dois vestibulares: para a

Faculdade de Direito e para a Faculdade de Medicina, tendo sido aprovado em

ambos. Frequentou os dois cursos durante cinco períodos, até finalmente optar

pelas Ciências Sociais , cujas aulas eram realizadas na FFLCH-USP (Faculdade de

Filosofia Ciências Humanas e Letras, da Universidade de São Paulo).

3.2 Entrada na Universidade, grupo intelectual e atividade crítica profissional

A inserção de Antonio Candido na universidade remonta a um capítulo da

institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, particularmente em São Paulo. A

posição histórica alcançada pela supremacia econômica do referido estado –

ancorada no processo de industrialização e de construção de centros urbanos

durante a República Velha – e pelas derrotas políticas em 1930 e 1932 permitiram a

consecução de uma reforma educacional que teve como ponto central a fundação

USP e, nela, da Faculdade de Filosofia Ciências Humanas e Letras, e da Escola

Livre de Sociologia Paulista.

A universidade e o curso foram fundados no bojo da missão francesa, que

buscou dar caráter acadêmico e técnico aos estudos de cunho social no Brasil. Para

isso, contrataram professores e pesquisadores franceses para implantar sofisticar a

ciência social brasileira. Destacam-se Pau Arbousse-Bastide, Roger Bastide, Claude

55

Lévi-Strauss, Jean Maugüé e Fernand Braudel. Candido cursou Ciências Sociais de

1939 a 1941, e teve como marca distintiva o ensino científico, a particularidade do

objeto de estudo e dos métodos de pesquisa em ciência social, a importância da

empiria e contato com as principais teorias da área.

O objetivo central desta empreitada era forjar quadros políticos e técnicos

para a retomada da hegemonia política do país. Ambas as instituições guiavam-se

pela precedência dos parâmetros acadêmicos sobre os políticos, o que resultou no

surgimento de uma vida acadêmica como tal, possibilitada pelas oportunidades de

trabalho de intelectual que surgiram não apenas na universidade, mas, também, no

mercado de cultura em franco crescimento (JACKSON, 2007a, p. 118).

Existem, aí, dois elementos importantes: o primeiro diz respeito ao processo

de autonomização do campo acadêmico, pois se, por definição, a constituição

própria do espaço científico implica a diferenciação em relação às esferas da cultura

e da política, a vida acadêmica paulistana, por outro lado, se constituiu por meio de

uma grande proximidade e de um intenso contato com essas áreas (JACKSON,

2007a, p.118).

O segundo diz respeito à vida acadêmica dentro das universidades como

espaços de sociabilidade que forjam grupos de afinidade pessoal, política e

espiritual. Esses grupos que vão disputar espaço no meio intelectual da cidade,

concorrendo com um projeto distinto (JACKSON, 2007a, p.118).

Isto é, a universidade representava mais do que um espaço de

profissionalização: era também o centro em torno do qual girava a sociabilidade de

grupos de amigos, que ali, pela intensidade dos contatos diários, puderam construir

relações intelectuais, pessoais, afetivas e, em alguns casos, amorosas (PONTES,

1998, p. 141).

Como o próprio Antonio Candido, professores e alunos eram oriundos da

classe média alta paulista. Havia uma espécie de homologia entre a classe social de

Candido e de seus colegas e o projeto da universidade. Em consequência, Candido

não teve dificuldades para encontrar, dentro da academia, um espaço de aderência.

Esse tipo de composição social amparada em laços sociais informais permitiu

a formação, no ano de 1939, do Grupo Clima, constituído por jovens estudantes da

FFCL-USP, que se reuniram por meio de uma forte identidade pessoal. Décio de

Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão

de Andrada Coelho, Gilda de Mello e Souza, Antônio Branco Lefèvre, Roberto Pinto

56

Souza, Marcelo Damy de Souza eram alguns dos membros. Essas figuras marcaram

a cena cultural paulista por meio da crítica aplicada ao teatro, ao cinema, à literatura,

às artes plásticas etc. (PONTES, 1998, p.13).

Pode-se afirmar que eram produtos do novo sistema intelectual vigente na

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Antonio Candido e seus colegas

mobilizaram o arsenal teórico adquirido na universidade para a crítica de cultura e

renovaram a tradição ensaística brasileira. Eram críticos “puros” no sentido de que

essa era única atividade a que se dedicaram, diferenciando-se, assim, da noção de

trabalho e do padrão de carreira comum até então (com atuação na literatura e na

política). Como intelectuais, também lograram se diferenciar dos modernistas e dos

outros cientistas sociais da USP (PONTES, 1998, p. 14).

Eles estavam localizados entre literatos, modernistas, jornalistas e cientistas

sociais, e delimitaram seu espaço de atuação justamente por meio da crítica, que,

embora fosse exercida nos moldes ensaísticos, era orientada pelos princípios e

critérios acadêmicos (PONTES, 1998, p.14).

Como críticos, adentraram a grande imprensa, os projetos editoriais e muitos

dos empreendimentos culturais de São Paulo. Como intelectuais forjados na USP,

conceberam um dos mais exitosos programas de análise da cultura brasileira. Ao

atuarem concomitantemente como críticos, acadêmicos e professores universitários

estabeleceram uma ligação entre a universidade e as áreas de produção e

divulgação cultural de São Paulo (PONTES, 1998, p.14).

Na Revista Clima, existiam seções permanentes: a de literatura ficava a cargo

de Antonio Candido; a de música, com Antônio B. Lefèvre; a de teatro, sob a batuta

de Décio de Almeida Prado; a de cinema, sob responsabilidade de Paulo Emilio

Salles Gomes; a de artes plásticas, com Lourival Gomes Machado; etc. E ainda

tinham colaboradores sem seção definida, como Ruy Coelho e Gilda de Mello e

Souza. Essa divisão do trabalho intelectual em Clima selou, de certo modo, o

destino intelectual de muitos desses pensadores, que, daí em diante, dedicaram-se

especialmente às áreas sobre as quais se debruçaram na revista (PONTES, 1998,

p. 97-98).

O periódico sempre foi muito eclético e, durante algum tempo, sem linha

editorial definida. Serviu como plataforma para que os alunos da Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas exibissem o resultado da formação acadêmica que

tinham recebido. Dessa maneira, por intermédio de Clima, os jovens deram

57

visibilidade a uma nova postura intelectual, universitária e acadêmica, que surgiu

com o estabelecimento da Universidade de São Paulo. Mas ali não praticavam um

simples debate teórico, dedicavam-se à análise de obras culturais também

(PONTES, 1998, p.97-98).

Com a chegada dessa nova geração de críticos, os parâmetros fundamentais

que legitimavam a atividade intelectual se redefiniram. A partir de então, um conflito

geracional profundo se estabeleceu, e se expressou em posturas políticas, formação

científica e profissional e gêneros de investimento intelectual distintos, corporificados

em balanços críticos, manifestos e provocações recíprocas (RAMASSTOE, 2013, p.

53)

Durante o tempo em que atuou na revista, Antonio Candido fez crítica de

livros e logrou consolidar, por meio da sua atividade, a orientação analítica que

determinaria a sua trajetória como crítico e pensador da literatura. Investigou as

relações que podem se estabelecer entre literatura e sociedade, atentando para a

particularidade das mediações que cotejam ambos os domínios. Tentou ainda

redefinir o papel do crítico, afastando-o da crítica de tipo impressionista, baseada

nas percepções individuais de quem analisa a obra:

Dedicando-se à crítica de livros, Antonio Candido fixou, desde oinício, o viés analítico mas geral que guiaria sua trajetória comocrítico. E estudioso da literatura. [...] Seu empenho em construir umacrítica que se exprimisse por conceitos e abandonasse a visão do“autor como uma entidade independente” – para em seu lugar buscaras “ligações profundas” que todo escritor mantém com seu “tempo” ecom “o grupo social em função do qual trabalha e cria” – dá o tom daplataforma crítica que formou no interior de Clima (PONTES, 1998, p.100).

Com o prestígio angariado em Clima, quando ainda era estudante, Antonio

Candido conseguiu ingressar na imprensa diária de São Paulo. Foi indicado pelo

colega Lourival Gomes Machado e assumiu a condição de crítico titular do jornal

Folha da Manhã. Tinha a responsabilidade de enviar semanalmente ao jornal um

comentário crítico sobre algum livro do momento, que era publicado na parte de

baixo, o rodapé do periódico (RAMASSOTE, 2013, p. 51).

A conquista desse lugar significava para o seu ocupante, além de um ganho

financeiro considerável, o acúmulo de reputação intelectual e notoriedade pública,

que poderia habilitá-lo ao exercício de funções mais vantajosas do ponto de vista

intelectual ou financeiro nos setores em expansão no mercado de trabalho das

58

décadas de 1930 e 1940 – no Estado, no mercado editorial ou em agremiações

políticas (RAMASSOTE, 2013, p. 52).

Vê-se claramente como Candido mobilizou o capital social adquirido na

universidade para angariar oportunidades sociais e profissionais. A partir deste

momento, Candido já tinha ocupação, valorizada material e simbolicamente, para se

apoiar. Não dependia exclusivamente da docência, menos ainda aquela exercida no

ensino médio (antigo magistério), que nunca precisou executar.

Mais ainda: a atividade de crítico trouxe uma identidade para Candido, tanto

que sempre se apresentou como professor e crítico – e parte significativa da sua

produção intelectual posterior pode ser entendida como um esforço para dar bases

teóricas e metodológicas à atividade crítica.

A literatura, área sobre a qual se debruçava Antonio Candido, figurava como o

elemento central da vida cultural do país. E, dentre as várias atividades simbólicas

praticadas à época, a crítica era a que mais se aproximava da tradição intelectual

brasileira, sendo as revistas especializadas e os rodapés dos jornais espaço

privilegiado para divulgação da produção dos críticos (PONTES, 1998, p. 101).

Assim, Candido rapidamente aderiu a um espaço de atividade profissional legitimado

no campo intelectual brasileiro. Podemos afirmar que a sua origem social está na

base disso.

Nos rodapés e comentários escritos para o periódico Folha da Manhã, Antonio

Candido prosseguiu com o delineamento de sua proposta crítica, que buscava uma

relação com o contexto histórico abrangente; isto é, a análise deveria se guiar pelo

esforço de integrar a significação da obra ao seu momento cultural. Em suma,

Candido era à época um estudioso que tentava investigar a significação geral da

obra – em um sistema de relações que a prendem a seu momento e, entre elas, a

posição dos leitores. (RAMASSOTE, 2013, p. 54-56).

3.3 Sociologia, pensamento social brasileiro, cultura e deslocamento institucional

Paralelamente às atividades como crítico, Antonio Candido continuava com

suas atividades acadêmicas e docentes. Cursou a graduação em Ciências Sociais

na USP no período de 1939 a 1941, e, logo em seguida, em 1942, passou a atuar

59

como assistente do Professor Fernando Azevedo, na cadeira de Sociologia II,

atividade que exerceu até 1958.

Em sua trajetória – desde cedo marcada pela dualidade entre cientista de

perfil acadêmico, forjado na USP, e pensador público, com atuação na imprensa

diária – há um momento de inflexão na atuação como crítico: a partir de 1947,

Antonio Candido se afastou dos jornais, de modo que o intelectual acadêmico

predominou sobre o intelectual público. O número de comentários críticos diminuiu

consideravelmente e a produção de trabalhos sociológicos se sobressaiu – isso até

a criação, em 1956, do Suplemento Literário do jornal Estado de S. Paulo

(JACKSON, 2009, p. 275).

É justamente neste interregno, marcado pelo distanciamento de Antonio

Candido da imprensa pública, que ocorreu a produção e a defesa de Os Parceiros

do Rio Bonito: precisamente em 1954, Candido apresentou esse trabalho para

obtenção do título de doutor em sociologia. Conforme Jackson (2001, p. 128), essa

pode ser considerada sua maior contribuição para a sociologia brasileira.

A tese de doutoramento de Antonio Candido foi construída, em larga medida,

pelas pesquisas de campo realizadas entre 1947 e 1953 e foi realizada

principalmente em municípios do interior de São Paulo e Minhas Gerais. As

influências intelectuais são várias: de Marx a Lévi-Strauss, além da pesquisa

histórica, fazendo com que a obra seja heterogênea do ponto de vista teórico e que

esteja a meia caminho do estudo antropológico e da análise sociológica (CANDIDO,

1997, pp. 9-18).

Candido empreendeu um estudo do que ele chamou de cultura caipira, termo

que designa a cultura tradicional da vida rural. O pensador uspiano parte da

perspectiva de que a existência de qualquer cultura necessita de um equilíbrio social

que, por sua vez, depende de certos mínimos, que são os vitais (alimentação,

abrigo) e os sociais (organização e relações) (CANDIDO, 1997, p. 23-27).

O capiria encontrou o seu mínimo vital na tríade feijão milho e mandioca,

sendo a última substituída, mais tarde, pelo arroz (id., p. 52). O mínimo social

localiza-se no costume do trabalho coletivo, chamado de mutirão, e que consiste

numa obrigação bilateral de trabalho, e soluciona o problema da mão-de-obra e

supera os limites da atividade individual e familiar (id,p. 67-69).

Contudo, o processo de urbanização no estado de São Paulo, que trouxe

consigo o desenvolvimento industrial e a sociedade de mercado, fez com que

60

surgisse, na zona rural, bens de consumo até então desconhecidos. Isso forçou a

correlação da vida rural com o ritmo geral da economia e, por consequência, alterou

suas formas de vida. Em primeiro lugar, para enfrentar as necessidades comerciais

de compra e venda, a vida familiar e grupal se transformou: foi necessário a

construção de um orçamento doméstico, onde o dinheiro ocupava papel central –

isso em lugares o onde comportamento econômico e o cálculo era rudimentar, pois a

economia era baseada na troca. Em segundo lugar, os processos e ritmos de

trabalho foram profundamente mudados. O caipira teve que multiplicar o esforço

físico até a exaustão para atender as demandas da sociedade de mercado – o que

implicou, também, na atrofia das formas de trabalho coletivo (CANDIDO, 1997, pp.

165-171). Como resultado, as formas antigas de sociabilidade foram eliminadas. Isto

é, o que Antonio Candido constatou foi a paulatina eliminação da cultura caipira,

como resultados da chegada da modernização e do capitalismo nas zonas rurais.

Mesmo que seja visto como um clássico das Ciências Sociais no Brasil em

muitos espaços acadêmicos, este livro de Antonio Candido não se ajusta tão

facilmente aos parâmetros da sociologia uspiana da década de 1960. Apesar de o

percurso acima exposto, indo da investigação metódica e objetiva à intervenção

política, sugerir uma aproximação, não se encontra em Os Parceiros do Rio Bonito

categorias como “subdesenvolvimento” e “capitalismo dependente”. Essas últimas

expressões só vieram ganhar maiores contornos em obras publicadas um pouco

mais tarde, como Dependência e subdesenvolvimento na América Latina (1969), de

Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto, Capitalismo dependente e classes

sociais na América Latina (1972) e A revolução burguesa no Brasil (1974) de

Florestan Fernandes (MOREIRA, 2013, p. 35).

Outros fatores importantes são quando sua tese veio a público, em meados

de 1960, já fazia seis anos que Antonio Candido tinha optado definitivamente pela

carreira na área da literatura, ou seja, ele optou pelos estudos literários em um

momento anterior àquele que veio dar caráter mais reconhecível à sociologia da

USP. Do mesmo modo, as referências teóricas parecem indicar uma divergência: se

não se pode negar que Marx é peça-chave das argumentações dos Parceiros,

também é evidente, por outro lado, que Candido se dirige muito mais à antropologia

nesse trabalho, por meio de nomes como Robert Redfield, Audrey Richards,

Malinowski e Lévi-Strauss (MOREIRA, 2013, p. 36).

61

A ponte com a antropologia aponta, ainda, uma coesão dentro de sua obra, já

que o apoio em conceitos antropológicos foi fundamental para o livro Formação da

Literatura Brasileira – escrito ao mesmo tempo em que os Parceiros – e a ideia de

sistema literário que nele se encontra.

A filiação da tese de doutoramento de Antonio Candido parece ser mais

facilmente estabelecida com a tradição ensaística das Ciências Sociais no Brasil.

Desse ponto de vista, é possível sustentar que Os Parceiros do Rio Bonito não

constituem apenas uma monografia de caráter antropológico, mas um esforço de

interpretação do Brasil, tal como os ensaios das décadas de 1930 e 1940, embora

de modo diverso (JACKSON, 2001, p. 128).

Anda que tenha sido concebido dentro da USP, no departamento de Ciências

Sociais – cujo contexto apontava para a tentativa de superação da perspectiva dos

chamados grandes intérpretes, identificados com o Brasil arcaico e conservador –

Os Parceiros do Rio Bonito aproximam-se do tipo de abordagem ensaística ao

propor uma interpretação ampla da formação social brasileira a partir da colonização

paulista, iniciado no século XVI. É sob esse prisma que o livro pode ser encaixado

dentro da longa tradição do pensamento social brasileiro: como trabalho de

interpretação do processo de formação da sociedade brasileira, ao modo do que

fizeram Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.

Mas ao focar na figura do caipira, o homem rústico da área delimitada em

razão da colonização paulista, e tratá-lo sob o prisma da sua constituição histórica,

Antonio Candido chama a atenção para os grupos marginalizados pela colonização,

que não tinham sido contemplados pelas interpretações mais amplas da nossa

formação histórica até então. Com exceção, talvez, para Euclides da Cunha, que se

debruçou sobre o sertanejo (JACKSON, 2001, p. 130).

Apesar de o texto quase literário e a utilização discreta das ferramentas

teóricas da antropologia o distanciarem do cientificismo vigente, a interpretação que

ele propôs não era neutra e visava a resolução dos problemas sociais

diagnosticados. Pode-se dizer que o autor encarou pelo avesso o nosso processo de

formação social e histórica, focando o agricultor pobre e a pequena propriedade rural

(JACKSON, 2009, p. 270).

É bem verdade, no entanto, que a aproximação de Os Parceiros do Rio

Bonito com a tradição ensaística do pensamento social brasileiro deve ser

ponderada: o tema selecionado, a pesquisa empírica que foi levada a cabo e a

62

modelagem teórica do trabalho se devem, em larga medida, à formação recebida na

USP. Mas se pode advogar que os Parceiros, por meio de um recorte restrito, propõe

uma interpretação da formação social do Brasil, talvez esse alinhamento possa ser

sustentado (JACKSON, 2001, p. 137).

Essa discussão em torno da tese de doutoramento de Antonio Candido dá

notas de um debate premente no meio intelectual brasileiro que envolvia

concepções do que é ciência, dos modos corretos de proceder à investigação da

realidade, e revelava, por consequência, uma competição em torno da validade do

saber sociológico e do cunho mais ou menos científico da análise social.

O referido debate está relacionado ao processo de institucionalização das

Ciências Sociais no Brasil, que pode ser assim periodizado: em um primeiro

momento, tem-se trabalhos que propõem “grandes sínteses” da formação social

brasileira, por intermédio de amplas considerações; o segundo representa,

justamente, o movimento das Ciências Sociais para dentro de determinadas

instituições, particularmente a USP e a ELSP; e o terceiro, e mais recente, relaciona-

se com a reforma do ensino universitário que ocorreu no final da década de 1960 e

se expressa na inauguração dos programas de pós-graduação (CORRÊA, 1987, p.

21).

O processo aqui discutido, envolvendo a figura de Antonio Candido como um

todo, e particularmente sua trajetória dentro da sociologia, localiza-se na transição

do primeiro para o segundo momento, pois entre 1930 e 1964 o desenvolvimento

intelectual das Ciências Sociais esteve “estreitamente vinculado aos avanços da

organização universitária e à disponibilidade de recursos governamentais para a

criação de centros independentes de investigação e reflexão” (MICELI, 1989, p. 12).

Assim sendo, a trajetória de Candido está em um ponto de intersecção entre a

tradição ensaística brasileira e a sociologia com contornos acadêmicos.

Sob a rubrica Ensaios de interpretação do Brasil entram trabalhos como

Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, Retratos do Brasil, de Paulo

Prado, Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mocambos, de Gilberto Freyre,

Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil

Contemporâneo, de Caio Prado Jr. Embora tenham traços em comum, não formam

uma unidade sistematizada do ponto de vista contextual mais amplo (BOTELHO,

2010, p. 47-48).

63

O processo de institucionalização das Ciências Sociais teve como marca

fundamental a deslegitimação desse ensaísmo como forma de produção de

conhecimento válida para analisar a realidade social. O tipo específico de

pensamento que estava sendo forjado nas instituições recém-criadas buscava

arrogar para si a categoria de conhecimento isento e objetivo.

Como se tratava de construir um “campo científico” de conhecimento, o

próprio desenvolvimento das Ciências Sociais foi pensado a partir de uma

polarização aberta entre os perfis “científico” e “pré-científico” dos ensaios de

interpretação do Brasil. No contexto brasileiro, o tipo de abordagem realizada pelos

diferentes ensaios, particularmente o tipo de recomposição sujeito/objeto, figurava

mais como um “desvio” do rigor científico almejado e menos como uma

contraposição a ele (BOTELHO, 2010, p. 51).

Esse rigor científico tinha como lugar principal as novas universidades. É

assim que, a despeito das diferentes caracterizações que se pode fazer dos autores

e do período, a institucionalização se torna o ponto nevrálgico em torno do qual se

compreende o nascimento das Ciências Sociais no Brasil e se configura, no limite,

como critério de valorização e de legitimidade do conhecimento (SEGATTO;

BARIANI, 2010, p. 205).

O tipo de ciência social que estava surgindo alcançou status científico a partir

da sua fundamentação em bases empíricas e indutivas, ao passo que a produção do

período imediatamente anterior estaria baseada no dedutivismo e negligenciava a

devida coleta e análise dos dados objetivos. Portanto, os ensaístas do Brasil se

caracterizariam pela falta de apuro metodológico e pela ausência de um padrão

científico de trabalho, aproximando-se muito mais da literatura e da filosofia social

que da ciência propriamente dita.

A nova concepção de conhecimento, então, pensava a sociologia como uma

ciência empírico-indutiva, calcada no rigor metodológico e em um elevado padrão de

trabalho científico, prezando pelo distanciamento em relação aos valores e pela

articulação do ensino e da pesquisa. Essas foram as características do período

científico da ciência social no Brasil, que passou a ter o seu marco a partir da

criação de cursos superiores, com professores estrangeiros e a utilização de

técnicas de investigação de campo (SEGATTO; BARIANI, 2010, p. 205-206).

Essa polarização se materializou na sociologia paulista, que passou a

congregar projetos intelectuais distintos e concorrentes – que eram, a bem dizer,

64

mais perspectivas analíticas que especialidades propriamente ditas. A disputa entre

esses projetos se expressava em termos de alguns pares antitéticos: o já referido

debate ciência e ensaio, mas também pensamento radical e pensamento

conservador, teoria e pesquisa empírica, interpretações totalizadoras e dualistas,

sociologia do desenvolvimento e sociologia da cultura (JACKSON, 2007b, p. 33).

Essas oposições – principalmente a de ciência e ensaio – devem ser

pensadas como uma relação complexa em torno da qual gravitavam personagens e

grupos mais ou menos envolvidos em cada projeto. Dessa forma, ninguém nas

universidades poderia escapar a essa orientação geral, porque ela é parte do

processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil (JACKSON, 2007b, p.

35).

É neste contexto que avulta a figura de Florestan Fernandes, cuja origem

social é completamente distinta da de Antonio Candido e do seu círculo de amigos.

Devido à vulnerabilidade da situação econômica de sua mãe, Florestan não

frequentou a escola com regularidade: já aos nove anos de idade interrompeu os

estudos para trabalhar. Na altura da adolescência, retomou os estudos no Ginásio

Riachuelo, conciliando os estudos com um emprego (PONTES, 1998, p. 165-167).

Ao se atentar para a origem social de Florestan, com foco nas dificuldades

que passou na infância e na adolescência, percebe-se um campo de possibilidades

muito estreito – o ingresso em uma carreira de medicina ou direito, por exemplo, se

fazia extremamente improvável. Dada sua origem social, o ingresso no curso de

Ciências Sociais era uma possibilidade de dar uma nova trajetória à sua vida e

experimentar, mesmo que timidamente, uma ascensão social.

O inverso se deu com Antonio Candido, que tinha na família ampla tradição

de médicos, e que só ingressou no curso de Ciências Sociais após ter sido

reprovado no exame para a Faculdade de Medicina – portanto, em relação à

geração anterior da sua família, pode-se dizer que Candido vivenciou um pequeno

descenso social. Candido também cursou, durante um tempo, Direito enquanto

frequentava as aulas de Ciências Sociais, até optar definitivamente pelo segundo.

Para compensar o déficit da sua formação educacional e cultural e a ausência

de capital social, Florestan Fernandes se dedicou de forma incansável ao curso de

graduação durante o primeiro ano, mobilizando todo o seu empenho na confecção e

finalização dos trabalhos universitários, obtendo retorno com a publicação do estudo

65

sobre o folclore em São Paulo – o que lhe rendeu certo renome entre os professores

e os alunos (PONTES, 1998, p.145-146).

Não é que Florestan Fernandes e Antonio Candido fossem inimigos ou

nutrissem algo em torno da aversão, muito pelo contrário, do círculo de estudantes

mais abastados econômica e socialmente, Candido era o único com quem Florestan

mantinha uma relação de amizade, tendo, até mesmo, ajudado o colega em

algumas situações, quando, por exemplo, interviu junto a Fernando de Azevedo para

que aceitasse Florestan como assistente na cadeira de Sociologia II (PONTES,

1998, p. 148).

Mas a questão básica era que as diferentes origens sociais traçaram

caminhos distintos para ambos dentro das Ciências Sociais – e que os caminhos

distintos de cada um deles dizem muito sobre o tipo de ciência que se queria fazer

no Brasil e porque Candido teve que se mover institucionalmente

Portanto, por ser desprovido de bens materiais, de formação cultural e de

inserção social, Florestan Fernandes transforma a carreira no mundo das Ciências

Sociais como único espaço capaz de lhe proporcionar ascensão social e, também,

de lhe render algum prestígio do ponto de vista intelectual:

Mais do que qualquer outro assistente da Faculdade de Filosofia noperíodo, Florestan concentrava a “voltagem” máxima de absorção devirtualidades na absorção do padrão de trabalho, da linguagemespecializada e do rigor metodológico introduzidos pelos professoresestrangeiros. O recorte erudito e científico que imprimiu ao objeto datese de doutoramento; a postura profissional e nada amadorísticaque, desde o início, modelou a sua atuação na faculdade; o uso doavental branco [...]; a receptividade com que se deixara impregnarpelas novas definições de trabalho intelectual e pelo conjunto deensinamentos transplantados do exterior para a universidadepaulista; tudo isso contribuiu para fazer de Florestan o discípulo maisindicado para gerenciar a herança intelectual dos mestresestrangeiros (PONTES, 1998, p. 184)

Florestan defendeu sua tese de doutoramento sobre a guerra entre os

tupinambás em um momento em que a sociologia e a antropologia ainda não tinham

adquirido as características distintivas que possuem hoje. Com esse trabalho,

demonstrou para os colegas e para os professores estrangeiros a sua capacidade

como cientista social. Depois redirecionou seus interesses para questões

econômicas da sociedade brasileira (PONTES, 1998, p. 183-184)

66

A partir daí, pode-se dizer que Florestan erigiu um vigoroso projeto intelectual

voltado para a análise da formação da sociedade burguesa no Brasil e de seus

elementos estruturais. Diferenciou-se por meio de uma linguagem especializada,

acadêmica, pautada pela ideia corrente de cientificidade. Seu modelo de explicação

e exposição dos fenômenos sociais configurou-se como um dos pilares da

construção da identidade disciplinar da sociologia brasileira (PONTES, 1998, p.

174).

A situação de Antonio Candido era diametralmente oposta: apesar de ter

iniciado e finalizado o curso de Ciências Sociais antes, nunca fez desse espaço

acadêmico – ou, pelo menos, o lugar institucional da sociologia – o único âmbito

possível para a sua atuação profissional. Não que o espaço acadêmico, com todo os

recursos que dispõe, fosse desdenhável. Mas as condições sociais de Antonio

Candido faziam com que ele pudesse vislumbrar outras possibilidades que não

apenas essa.

Tanto que Candido conseguiu angariar prestígio intelectual antes do colega,

por meio da atuação na imprensa diária de São Paulo. Mas realizou isso lançando

mão de um estilo ensaístico de escrita, que considerava mais apropriado para tratar

questões relativas à cultura.

Florestan Fernandes, por ter assimilado com voracidade o novo perfil de

trabalho intelectual trazido pelos professores estrangeiros, correlacionava ensaísmo

– não obstante reconhecer sua importância para o entendimento da nossa formação

social e histórica (JACKSON, 2007b, p. 35) – ao amadorismo. Isso porque, na sua

concepção, tanto o ensaio como a forma literária revelavam uma visão estamental

da sociedade brasileira. Ele então levou a cabo uma luta simbólica no plano da

linguagem com o propósito de legitimar a sociologia no campo intelectual paulista

(PONTES, 1998, p. 174-175).

Embora a ruptura realizada pela escola paulista de sociologia, expressão que

designa Florestan e seu grupo, tenha sido muitas vezes superestimada, por se

constituir muito mais como um programa recorrentemente reiterado do que em uma

clivagem de fato, é razoável reconhecer que a passagem do ensaio à ciência, e da

análise da cultura à de problemas estruturais, significava suplantar a cultura

bacharelesca dos intelectuais de então, da qual Antonio Candido era em grande

medida debitário.

67

Portanto, Antonio Candido e Florestan Fernandes, companheiros do curso de

Ciências Sociais no início da década de 1940 e alunos de Roger Bastide,

compreendiam os pontos de vistas antagônicos, inseridos em experiências sociais

distintas e trajetórias concorrentes (JACKSON, 2007b, p. 35). Desse modo, a

oposição que se estabeleceu nesse período entre as atividades tidas como científica

e aquelas consideradas como culturais expressou-se de maneira emblemática nas

figuras de ambos (PONTES, 1998, p. 176).

Quando Roger Bastide saiu da Universidade de São Paulo, por volta de 1954,

Florestan Fernandes ocupou seu lugar na cadeira de Sociologia I. Como essa

disciplina era uma das mais importantes do curso, esse evento significou a

desvalorização da sociologia da cultura até, pelo menos, meados dos anos 1970

(JACKSON, 2007a, p. 124).

Naquele momento, todas as características de Florestan atendiam muito mais

a necessidade de definição de um campo científico para as Ciências Sociais. O tipo

de trabalho que Antonio Candido se propunha fazer, interconectando literatura e

ciência social, mais atrapalhava que ajudava o andamento da diferenciação da

sociologia. Desse modo, no decorrer da década de 1950, Antonio Candido encontrou

cada vez menos espaço dentro da sociologia para dar prosseguimento ao seu

interesse intelectual mais profundo: as intersecções entre a literatura e a cultura em

sentido amplo (PONTES, 1998, p. 176).

Como Antonio Candido não estava ligado apenas à academia (sabe-se que a

ocupação como crítico também definia seu perfil), pode-se dizer que a inclinação

familiar pela alta literatura se transformou em atividade profissional crítica. E com a

experiência adquirida na crítica, também se transformou em estudos de caráter

teórico (como Introdução ao Método de Sílvio Romero e Formação da Literatura

Brasileira), obras que expandiram as possibilidades de Candido.

Assim, Antonio Candido abriu um espaço intelectual no qual seu interesse

principal – a literatura – podia se processar. Nesse novo espaço, a relação com o

pensamento social brasileiro era extremamente íntima – conforme já foi exposto

acima. Desse modo, a projeção de Candido está marcada por um senso de

continuidade com a maior tradição intelectual brasileira, dando novo vigor a ela.

Foi nesse contexto que o projeto intelectual se transformou em projeto

institucional e a trajetória de Candido se vinculou intimamente ao campo das Letras,

no Brasil. Durante o período de 1961 a 1970, ele foi o mentor, e, durante muito

68

tempo, principal executor, acumulando as tarefas de professor e orientador, do curso

de Teoria Literária e Literatura Comparada (TLLC), da Universidade de São Paulo,

tendo formado, nesse tempo, os principais nomes da crítica literária do Brasil

(RAMASSOTE, 2010b).

A entrada no campo das Letras foi facilitada pela publicação, em 1959,

quando estava vinculado à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis, do

livro Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Nessa obra, Antonio

Candido analisa o processo de constituição da literatura brasileira, isto é, do

momento em que ela ganha relativa autonomia em relação às letras portuguesas e

europeias como um todo.

Para tanto, lança mão do conceito de sistema literário, definido como uma

interação contínua entre autores, obras e público. A configuração do sistema é

correlata, então, à formação de uma tradição nativa de obras e autores ligados uns

aos outros e ao consumo por parte do público local. As análises empreendidas por

Candido nesse livro, no entanto, não negligenciam a face estética: a preocupação

em julgar obras e autores de maneira particularizada está sempre presente

(CANDIDO, 2013, pp. 25-42).

Se a vinculação departamental de Antonio Candido for tomada como uma

mera linha cronológica de produção intelectual e acadêmica, pode-se incorrer no

equívoco de sugerir uma clara separação entre o sociólogo e o crítico literário –

primeiro cientista social, depois estudioso da literatura. Como já explicitado, a

preocupação com a literatura já era premente no cientista social em formação

Antonio Candido, que contribuiu, nos anos 1930 e 1940, com diversos estudos

literários em suplementos culturais da imprensa paulista – tendo chegado, mesmo, a

publicar alguns livros sobre o tema.

Na verdade, a assunção da cátedra de Teoria Literária e Literatura

Comparada, depois da passagem pela Faculdade de Assis, que durou de 1958 a

1961, significou a conclusão de um itinerário pessoal que tinha como fim a

transferência para as Letras, mas que não inviabilizou seu prosseguimento na

sociologia, conforme competência já comprovada quando da defesa de sua tese de

doutorado (JACKSON, 2009, p. 275-276).

É válido notar, nessa direção, que Formação da Literatura Brasileira e Os

Parceiros do Rio Bonito foram escritos ao mesmo tempo, e que um revela o que

outro esconde: enquanto no primeiro a intenção de dialogar com o ensaísmo

69

brasileiro está clara, no segundo ela permanece implícita; e ao passo que no

segundo os contornos sociológicos e o diálogo com escola paulista são explícitos,

no primeiro esses elementos só se mostram nas estrelinhas, porque foi publicado

longe dos problemas pessoais e das disputas acadêmicas que circundavam o seu

autor na sociologia uspiana (JACKSON, 2009, p. 271). Esse é mais um fator que

confirma a percepção de que não existe, em Candido, separação entre o sociólogo e

o crítico – as duas dimensões sempre estiveram presentes.

Outro fator que reforça a proximidade entre as duas formações do mesmo

intelectual é a sua defesa de tese baseada no método crítico de Sílvio Romero

(intitulada Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero), que foi elaborada para o

concurso da cadeira de Literatura Brasileira da FFCL e que lhe rendeu o título de

livre-docente em Letras, em 1945 – isso quando estava plenamente vinculado à

sociologia.

Em suma, a divisão desdobrada no plano intelectual pelo exercício da crítica

literária e o ensino de sociologia nos moldes acadêmicos marcou desde cedo a

trajetória profissional de Antonio Candido. Outra seria sua trajetória acadêmica se

tivesse optado pela graduação em Letras quando jovem, mas outra não seria sua

produção intelectual (PONTES, 1998, p. 170).

Trazemos esses elementos à luz para ressaltar que concorrem em Antonio

Candido duas grandes vertentes (Sociologia e Letras, mundo social e literatura), que

não se separam, e que talvez sejam a chave para entender porque o seu método de

abordagem da obra literária é reconhecido justamente por conjugar os elementos

formais e os elementos sociais. Antes de ser um entrave para o seu

desenvolvimento, é dessa relação mútua que a sua proposta teórica extrai força.

No entanto, é nesse processo de mudança departamental que deve ser

localizada a base para a consolidação do pensamento de Candido no campo

intelectual brasileiro: ao liderar um programa coletivo de pesquisas, com todo o

esteio institucional que ele oferecia, pôde proporcionar maior impacto e alcance à

sua obra (JACKSON, 2009, p. 276).

Durante o tempo em que conduziu o departamento de Teoria Literária e

Literatura Comparada (TLLC), formou alguns discípulos que foram responsáveis por

levar adiante tanto a literatura como tema privilegiado quanto um padrão de crítica e

análise característico. Como exemplo, podemos citar Walnice Nogueira Galvão e

Roberto Schwarz, ambos formados no curso de Ciências Sociais e posteriormente

70

vinculados ao departamento de TLLC. Galvão ganhou notoriedade com as análises

sobre Euclides da Cunha, mostrando como já estavam presentes nesse escritor os

traços modernistas (2019). Schwarz se destacou por localizar na obra Machado de

Assis as dinâmicas do capitalismo na periferia do sistema (2000).

É a partir deste momento que a proposta teórico-metodológica de Candido

ganha preponderância no meio intelectual brasileiro, passando a inspirar e servir de

influência para a grande maioria dos trabalhos que objetivavam relacionar arte e

sociedade. Em outras palavras: o padrão analítico construído por Candido se

transformou na principal referência para a crítica literária e a sociologia da literatura,

no Brasil.

3.4 Raymond Williams e herança familiar

Raymond Williams é um estudioso galês com grande influência para o

pensamento social britânico, voltado aos chamados estudos culturais e ao marxismo

ocidental. Tal posição foi alcançada por meio de uma contribuição inovadora para

análise das questões relativas ao poder e à política no capitalismo, destacando o

âmbito cultural como o espaço no qual as relações de dominação também se

operam.

Faz-se necessário, aqui, esboçar um quadro geral sobre atuação intelectual e

a trajetória de Raymond Williams. Nesse percurso, procura-se destacar o contexto

histórico em que se deu o seu advento como pensador e a sua influência para os

estudos culturais britânicos, com o objetivo de entender a sua posição intelectual

atualmente. Para alcançar tal ponto, no entanto, é indispensável conhecer um pouco

da biografia de Raymond Williams. Por meio desse movimento pode-se iluminar os

elementos que estavam no centro das preocupações do pensador galês.

Williams cresceu em uma comunidade rural de pequenas fazendas familiares

no País de Gales, chamada Pandy. Seu pai começou a trabalhar em uma fazenda

ainda muito jovem, e por volta dos 15 anos ingressou como carregador em uma

ferrovia – ao voltar da Primeira Guerra foi assistente de sinaleiro e, depois, sinaleiro.

O cenário de sua infância foi, por conseguinte, muito peculiar: unia um espaço rural

à estrutura social dos ferroviários, ocupação própria do mundo urbano. Existia pouca

ou nenhuma barreira social entre fazendeiros e ferroviários, que conviviam de

maneira amistosa entre si, apesar das inclinações política distintas – os fazendeiros

71

estavam para o Partido Liberal e os ferroviários para o Partido Trabalhista

(WILLIAMS, 2013, p. 5-8).

Essa organização social específica legou uma formação intelectual muito

particular: embora inserido regular e formalmente na escola – Williams, aos 11 anos,

ganhou uma bolsa de estudos para uma instituição de ensino secundário em

Abergavenny, chamada King Henry VIII Grammar School – o pensador galês teve

pouquíssima influência do currículo escolar, marcadamente nacionalista, e só veio a

desenvolver o hábito da leitura um pouco mais tarde, aos 16 ou 17 anos, no Left

Book Club, anexo cultural do Partido Trabalhista britânico. Desse modo, pode-se

dizer que a influência política viria preencher o estudante que estava sendo formado

nas instituições regulares.

O primeiro ponto a se notar dentro dessa questão é que a ida para a

Grammar School em uma cidade próxima não era fato corriqueiro para as crianças

de Pandy. No ano em que Williams conseguiu ingressar, outras seis crianças

também conseguiram – e tal feito mereceu registro fotográfico, tamanha era a

raridade do evento. Apesar do acesso, a permanência também era difícil – para

meninas por questões de gênero, dado que era comum que em um dado momento

deixassem os estudos; e para os meninos pelas dificuldades de passar no processo

de admissão (WILLIAMS, 2013, p. 13).

Desse modo, no sexto período da Grammar School, Williams era a única

criança do vilarejo de Pandy a continuar frequentando a King Henri VIII. Apesar

disso, a atividade estudantil não era considerada, pela comunidade local, como algo

anormal. Isso se deve ao fato de que, historicamente, no País de Gales, muitos

intelectuais vêm das classes menos favorecidas. Mesmo assim, a percepção de que

a educação era o meio mais fácil de mobilidade social, algo que levaria a uma

ocupação simples, porém mais bem remunerada e não necessariamente a uma

atividade puramente intelectual, ainda persistia (WILLIAMS, 2013, p. 13-14).

A visão de educação como saída de um emprego degradante persistia de tal

modo que a própria possibilidade de ida para Cambridge foi tratada em sigilo pelo

pai de Williams e pelo diretor da escola até que fosse concretizada, com o objetivo

de não criar expectativas no garoto a respeito de seu futuro. Paralelamente a isso,

Williams relata que, já naquela altura, tinha cristalizado interiormente o que queria

ser – algo próximo do que fato de fato se tornou, mas que seria mais bem acertado

se falasse de um escritor ou dramaturgo (WILLIAMS, 2013, p.14).

72

Ora, essas aparentes contradições – escassez de oportunidades de acesso à

educação versus a visão de que a atividade intelectual não era nada extraordinária;

visão da educação como fuga de uma condição penosa versus a precoce

identificação com a carreira intelectual – só são entendidas no contexto específico

em que Williams estava inserido: embora desfavorecido economicamente, e,

portanto, com oportunidades sociais raras, as características culturais do vilarejo de

Pandy no País de Gales faziam que cada conquista fosse realizada com o mínimo

de atritos.

Vejamos: da infância até o ingresso na universidade, a trajetória de Raymond

Williams passou por uma série de pequenos privilégios que se caracterizam pela

ausência. Em primeiro lugar, a ausência de uma cisão profunda entre campo e

cidade, entendida como uma alienação em relação ao mundo natural, que

certamente ele teria sentido se pertencesse a uma região mais urbanizada.

Em segundo lugar, também não houve um sentimento de exploração, dado

que seu pai era um ferroviário em uma comunidade rural, e, desse modo, não havia

quem encarnasse o poder de mando localmente. Em terceiro lugar, também não

houve qualquer relação conflituosa entre trabalho manual e intelectual, dado que as

oportunidades de educação formal não vieram acompanhadas de um desconforto

quanto ao exercício da atividade intelectual (WILLIAMS, 2013, p. 19-20).

De acordo com o próprio Williams, as oportunidades que teve fizeram com

que ele chegasse à universidade com plenas energias, um sinal da ausência dos

conflitos acima relatados. Contudo, as clivagens de classe não foram apagadas e

deixaram marcas. Segundo o próprio Williams, seu objetivo era “golpear e não ter

medo” de Cambridge (WILLIAMS, 2013, p. 21), evidenciando que, apesar de tudo, o

movimento de um membro da classe trabalhadora até o ensino superior não é feito

sem um sentimento de hierarquia.

Em nossa visão, toda essa segurança experimentada quase que por acaso na

sua trajetória pessoal forma um feixe de pequenas condições objetivas, sem as

quais não seria possível que um pensador como Williams se realizasse. O marxista

galês viveu um verdadeiro processo de ascensão social, expresso na estabilidade

da ocupação do seu pai e facilitado pelas características de Pandy. Em uma

expressão, é como se Williams estivesse no lugar e na hora certos dos

acontecimentos e, assim, pudesse enxergar de maneira privilegiada determinados

eventos e relações sociais (CEVASCO, 2007, p. 10).

73

A biografia de Raymond Williams também ajuda a iluminar outra faceta da sua

vida: a orientação política. O estudioso galês cresceu em uma família socialista e se

conectou com movimentos de trabalhadores desde muito cedo. Recorda-se da

reviravolta política do seu avô, que após ser demitido e despejado de casa, deixou

de ser liberal e aderiu ao trabalhismo. Outros eventos marcantes foram a greve geral

de trabalhadores de 1926 e a vitória do Partido Trabalhista nas eleições de 1929,

que foi seguida de muita comemoração em Pandy (WILLIAMS, 2013, p. 10-11).

O Left Book Club foi outra fonte de influência para Williams. Lá, tomava livros

emprestados dos membros do grupo, todos vinculados ao Partido Trabalhista, e

pôde se aprofundar em temas como colonialismo e imperialismo, bem como se

informar a respeito de eventos como a guerra da Abissínia, a Revolução Chinesa e a

Guerra Civil Espanhola (WILLIAMS, 2013, p. 16).

A relação com o Partido Trabalhista é um capítulo à parte. Muito da ligação

que tinha com seu pai passava pelo envolvimento com o Partido Trabalhista. Seu

pai lhe para que se filiasse ao partido em 1936. Demonstrou insatisfação, em 1945,

quando Williams declinou o pedido para concorrer às eleições locais. Vê-se que

Williams tinha uma certa intimidade com o Partido Trabalhista. Entretanto, Williams

só foi de fato filiado durante a década de 1960, por considerar a única saída política

dentro da conjuntura (WILLIAMS, 2013, p. 16-17).

A presença da política no ambiente familiar legou a Williams uma outra

importante transição sem atritos: a militância política. É comum que a opção por ser

um indivíduo ativo politicamente venha acompanhada de um estremecimento nas

relações familiares. Esse não foi o caso de Williams. É justo considerar que a

posição trabalhista de esquerda encontrada na família abriu margem para o

engajamento comunista, que viria a caracterizar a figura pública de Williams

posteriormente (WILLIAMS, 2013, p. 20).

3.5 Entrada na universidade e ambiente intelectual

Ao chegar em Cambridge, instituição que é o reduto das classes dominantes

da Inglaterra e por isso se impõe com certa superioridade, Williams encontrou

dificuldades para se integrar. As relações sociais de classe dominam Cambridge de

uma tal forma que chegam mesmo a estar formalizadas: para adentrar no grêmio

estudantil da universidade, por exemplo, era necessário ser indicado por uma outra

74

pessoa. Mesmo que seja um calouro, esse teria de recorrer a um amigo de escola

(WILLIAMS, 2013, p. 23).

Isso por si só revela que, em Cambridge, presume-se tacitamente que os

estudantes são oriundos de um mesmo segmento social, quase uma continuação do

ensino médio – os alunos da elite esperam encontrar, na universidade, as pessoas

que estudaram consigo anteriormente. Na prática, o mecanismo de indicação para

participação do grêmio funciona como meio de controle social e de manutenção de

privilégios.

Raymond Williams só foi encontrar um espaço de aderência na universidade

quando descobriu o Clube Socialista. Mais do que simplesmente uma organização

política, o clube representava um lugar onde era possível encontrar uma alternativa

política aliada a uma cultura social, pois se constituía em um espaço de

sociabilidade e de redes de amizade. Importa assinalar que o Clube Socialista, do

ponto de vista do recorte social dos seus membros, não era diverso do resto de

Cambridge: era raro encontrar nele uma pessoa oriunda da classe trabalhadora

(WILLIAMS, 2013, p. 24).

Portanto, a estrutura social da universidade não foi um mecanismo de

sociabilização para Williams, ao contrário: funcionou com uma barreira à integração,

que só foi furada graças à inclinação política que autor galês herdou da família. Essa

situação específica vivida em Cambridge se sobrepõe e reforça a cultura familiar

herdada, de modo que sedimenta em Williams a centralidade da dimensão política –

as suas atividades docentes, teóricas e criativas terão sempre essa questão em

primeiro plano.

Por meio do Clube Socialista, Raymond Williams conheceu alguns textos

marxistas e livros sobre a história do Partido Comunista Bolchevique. Filiou-se ao

Partido Comunista britânico rapidamente (um mês após entrar no Clube Socialista).

Não enxergou nisso grande contradição, porque não sentia uma oposição real entre

a perspectiva trabalhista e a comunista naquele momento (WILLIAMS, 2013, p. 25-

26).

Dentro do Partido Comunista, Williams e alguns colegas, por estarem na

Faculdade de Inglês, eram chamados de Grupo dos Escritores e eram requisitados

para trabalhos de propaganda do partido e para redação de textos (WILLIAMS,

2013, p. 27). O termo Grupo dos Escritores, embora até certo ponto jocoso, dava o

75

tom do que viria a ser o trabalho intelectual de Williams: um marxista aplicado às

Letras e à esfera da cultura.

O ponto mais importante a se notar sobre esse primeiro período em

Cambridge é a presença de uma cultura socialista muito forte. Embora a

universidade fosse majoritariamente de direita, a esquerda, nesse período,

representada pela URSS, era um ponto de atração e convergência das atividades

acadêmicas e intelectuais, sendo muito eficiente na ocupação de espaços

institucionais. Essa cultura se manteve até pelo menos o início dos anos 1940.

Nesta altura, ocorre uma abrupta interrupção na trajetória de Raymond

Williams: a ida para Segunda Guerra Mundial. O pensador galês serviu durante nove

meses na Divisão Blindada da Guarda do Exército Britânico. Seus relatos dão conta

da experiência brutal e desumanizado que é a guerra. Politicamente, tinha a

percepção de estar em um esforço conjunto com o Exército Vermelho, contribuindo

para a derrota do fascismo (WILLIAMS, 2013, p. 42-46).

O retorno à Cambridge, em 1944, é marcado por uma mudança sensível no

contexto histórico. Williams nota que a cultura dos anos 1930 havia se esfacelado e

dado lugar a uma cultura conservadora e religiosa. No plano literário, F. R. Leavis3

havia sido alçado à posição de figura central, influenciando fortemente estudantes e

colegas de profissão (WILLIAMS, 2013, p. 47).

Interessante notar que em 1945 o Partido Trabalhista venceu as eleições,

sendo esse período visto, por isso, como um momento de radicalização na

Inglaterra. Mas não era sobre a política que Williams falava, e sim do espírito dos

intelectuais da época, que havia caminhado em direção à direita – situação diversa

de quando ele deixou a universidade pouco tempo antes. Foi nesse clima que o

autor galês finalizou seu curso, produzindo trabalhos sobre Ibsen e Eliot (WILLIAMS,

2013, p. 47-50).

Que cultura era essa? Durante o período entreguerras ocorreu a consolidação

dos estudos ingleses dentro do currículo das universidades. A corrente que venceu o

debate no interior da academia foi a de Leavis que, longe de propor o fim do

isolamento da literatura inglesa, preocupou-se em estabelecer uma pedagogia

exclusivamente centrada leitura de textos canônicos. O livro Culture and Enviroment

3 Frank Raymond Leavis (1895 – 1978): crítico literário britânico com forte atuaçãono primeiro quartel do século XX. Tinha uma visão negativa da industrialização e daurbanização, opondo a esses fenômenos o que considerava ser os valores principais dohomem.

76

tornou-se o documento principal dessa nova disciplina, recomendando a leitura

metódica de textos ingleses contra a degenerescência da língua provocada pela

sociedade mercantil (MATTELART; NEVEU; 2004, p. 35-36).

A revista Scrutiny, veículo pelo qual Leavis propagava suas ideias, era um

libelo moral e cultural contra a suposta decadência trazida pela mídia e pela

publicidade. Era basicamente uma saída, não política, mas “idealista” para o novo

contexto histórico e social que vivia a Inglaterra. Deve-se recordar que o choque da

Primeira Guerra Mundial traz à tona a necessidade de reanimar a nação inglesa,

abrindo espaço para soluções do tipo messiânicas. Some-se a isso a crise causada

pelo advento de uma cultura de massa industrializada no segundo pós-guerra em

uma Inglaterra na iminência de ceder seu lugar de primeira potência aos EUA

(MATTELART; NEVEU, p. 37).

Diante desse quadro, o expediente utilizado por Leavis foi propor um retorno a

uma sociedade pré-industrializada, no qual o ensino deveria ser submetido ao

regime da Grande Tradição da ficção inglesa. Essa tradição, não é demais enfatizar,

representava nada mais do que uma escolha arbitrária de autores e obras, que

viessem a legitimar e justificar a visão cultural por Leavis propagada (MATTELART;

NEVEU, p. 38).

A aproximação, do ponto de vista intelectual, de Raymond Williams com a

nova cultura estabelecida no pós-guerra se deu por meio da realização da revista

Politics and Lettres. O projeto do periódico era unir uma perspectiva radical de

esquerda à crítica literária leavisiana. O radicalismo cultural de Leavis, o fascínio da

crítica praticada por ele e a ênfase dada à educação foram os pontos que atraíram

Williams e seus colegas de universidade (WILLIAMS, 2013, p. 53-54).

Esse é um momento muito importante, pois representa uma apropriação mais

profunda e sistemática do pensamento de Leavis e da tradição na qual ele se

inscreve. A partir disso, Williams pôde reconhecer as limitações e contradições

dessa escola de pensamento – especialmente a noção de cultura – canônica na

Inglaterra. Esse arcabouço foi colocado em diálogo com o marxismo e está na base

da sua proposta teórica e metodológica para análise da cultura.

3.6 O trabalho na educação de adultos

77

Outro capítulo de extrema relevância na trajetória pessoal e intelectual de

Raymond Williams foi o trabalho de educação para adultos que ele desenvolveu

dentro da Universidade de Oxford em parceria com a Worker’s Education

Association (WEA) – instituição filantrópica criada no início do século XX. Durante

quinze anos, de 1946 a 1961, Williams se dedicou a esse projeto educativo,

desenvolvido em paralelo as suas outras atividades.

Para Williams, o mundo do pós-guerra estava marcado por uma aguda crise

de compreensão ou consciência, que era também uma crise teórica e de

aprendizagem. Essa crise era sintomática dos problemas de comunicação,

sobretudo dentro da classe trabalhadora, que não conseguiu acesso a todos os

meios disponíveis e, por isso, não se aglutinou em torno de uma cultura comum. O

reverso dessa crise era, desse modo, uma possibilidade de reconstrução histórica:

aproveitar as novas oportunidades sociais engendradas pelas transformações

(incluindo as tecnológicas) ocorridas nos pós-guerra, fazendo, por meio da troca de

experiências, expandir as capacidades e as potencialidades humanas,

impulsionando-as a ir além do limites comercias e políticos impostos pela

configuração capitalista da educação (PAIXÃO, 2017, p. 12).

O envolvimento na educação de adultos, portanto, é parte do esforço de

formar a classe trabalhadora para uma sociedade mais democrática e participativa.

O meio para se conseguir isso é o exercício da crítica, que parte do reconhecimento

e entendimento das mudanças pelas quais passaram a sociedade. Mas que não se

encerra aí, pois o objetivo final é transformar a sociedade. Williams emprega o

método do ensino da literatura aliado à crítica sociológica para ser usado nas aulas

de educação de adultos com a intenção de dotar os estudantes do referencial crítico

necessário para captar e debater as transformações sociais (PAIXÃO, 2017, p. 11-

15).

Nesse percurso foi necessário atentar para as novas formas culturais,

principalmente aquelas produzidas e reproduzidas pela então nascente sociedade

de massa, pois era nelas que a classe trabalhadora estava em larga medida

inserida. Desse modo, análise não se restringia ao ensino da literatura canônica,

mas se estendia aos livros best-sellers, a filmes e transmissões televisivas, jornais,

anúncios e propagandas.

Ainda do ponto de vista metodológico, Williams discordava da visão de que a

educação de adultos deveria ser construída em moldes semelhantes ao da

78

educação superior – currículo escolar, atividades escritas, etc. Seu desejo era

justamente ultrapassar o modelo de extensão universitária, criando, assim, um outro

modelo educacional, um novo padrão de atividade educativa. Esse novo projeto, que

deveria ter como foco central a desalienação da classe trabalhadora, foi minado pelo

contexto em que estava inserida a WEA, que paulatinamente esvaziou a dimensão

política dos cursos, transformando-se em algo próximo a uma profissionalização de

mão-de-obra.

De qualquer modo, a dimensão da atividade educativa para trabalhadores

muitas vezes é obliterada. Além de claramente exercitar a prática política durante

esse período, Williams pesquisou e desenvolveu temas que estariam presentes em

seus mais renomados livros. Já no início dos anos 1950, seus programas de estudos

na WEA estavam marcados temática e estruturalmente por elementos que, mais

tarde, se fariam presentes em Culture and Society (1958), The Long Revolution

(1961) e Keywords (1976) (PAIXÃO, 2017).

3.7 Grupo político e intelectual

Do ponto de vista histórico, há ainda outra dimensão que deve ser analisada:

o movimento de renovação da esquerda britânica e a posição de Raymond Williams

nesse contexto. Ao penetrar nesse processo, pode-se entender como as filiações

políticas e pessoais do pensador galês influenciaram na construção de suas

propostas teóricas. Para fazer uso de um termo caro ao próprio Williams, é

necessário entender a formação na qual ele estava inserido e qual o seu projeto.

Acima foi dito que Raymond Williams experimentou uma cultura política

durante os anos 1930 até o início dos anos 1940. Esse período foi o mais áureo,

digamos assim, dessa cultura de esquerda, que estava materializada no Partido

Comunista da Grã-Bretanha. O partido comunista era basicamente formado por

intelectuais proeminentes, estando presente nas mais renomadas e tradicionais

universidades britânicas, como Oxford, Cambridge e na London School of

Economics. Os Left Book Club, que nos anos 1930 alcançaram a incrível marca de

60 mil filiados, e a frente popular contra o fascismo, que teve como momento alto o

apoio às forças republicanas na Guerra Civil Espanhola, são os maiores exemplos

da força política desse partido (CEVASCO, 2016, p. 81).

79

É importante dimensionar o Partido Comunista justamente na relação com o

Partido Trabalhista britânico: embora tivesse certa afluência em um segmento da

esquerda, particularmente a intelectualidade, o Partido Comunista nunca teve o

alcance do Partido Trabalhista na Inglaterra, esse sim um partido de massas.

De acordo com o próprio Williams (2014, p. 191; 2013, p. 82), o Partido

Comunista se comportava como o setor mais militante do movimento trabalhista, isto

é, não havia característica que o diferenciasse claramente das principais diretrizes

do movimento trabalhista. O partido se envolvia em algumas disputas locais com o

Partido Trabalhista, dominava alguns sindicatos, mas nunca chegou a ser de fato um

partido amplo. O apego às políticas locais por um lado atraíam Williams, mas por

outro exercia um limite, pois faltavam visões mais amplas de sociedade.

De todo modo, o Partido Comunista exercia certa atração para autores de

esquerda, e foi durante muito tempo o ponto de convergência do pensamento

marxista britânico – pelo menos até 1956. Alguns eventos encerraram essa

representatividade.

Primeiro, há a perda de credibilidade do partido comunista da União Soviética.

Williams relata (2013, p. 78) que o evento decisivo para a perda de preponderância

da esquerda, para ele, foi a greve dos trabalhadores da construção civil por

melhores salários na República Democrática Alemã, em 1953. Essa mobilização,

que rapidamente se transformou em um levante contra o governo instituído, por

liberdade e democracia, foi violentamente sufocada pela URSS.

Contudo, a crise que minou de vez a importância da União Soviética para a

esquerda marxista ocorreu em 1956. Nesse ano, o mundo conheceu uma série de

atrocidades praticadas por Stálin com os dissidentes do regime comunista e a União

Soviética invadiu a Hungria, em 1956, reprimindo uma mobilização popular contra o

domínio socialista. A partir de então o cenário mudou: a relação umbilical do

pensamento marxista com o mundo soviético foi rompida, de modo que se envolver

com o marxismo não significava mais uma adesão automática ao Partido Comunista

Soviético (CEVASCO, 2016, p. 82-83).

Do ponto de vista interno, há também um esgotamento das opções políticas

para a esquerda. A Inglaterra passava por um momento em que perdia a posição de

principal potência capitalista para os EUA. Acontecimentos como a derrota política

na crise do canal de Suez, onde a Inglaterra – além de sofrer pressão interna por

estar realizando mais uma demonstração de imperialismo – teve o apoio negado por

80

parte dos EUA, forçando a retirada das tropas britânicas, evidenciam uma perda de

relevância. Isso criava uma espécie de ressentimento nacional, que se expressava

como nostalgia do período de maior poder e domínio (CEVASCO, 2016, p. 84).

Esse contexto era particularmente sensível para a esquerda, porque abria

espaço para o estabelecimento de uma política cada vez mais imediatista. O Partido

Trabalhista britânico, outrora engajado em uma luta socialista, deixou

paulatinamente essa posição em direção a uma postura de centro, pragmática

(CEVASCO, 2016, p.84).

Na verdade, toda a análise do cenário interno da esquerda passa pela

compreensão do significado e da dimensão do Partido Trabalhista. Raymond

Williams reconhece isso e, em 1965, escreveu um artigo intitulado A esquerda

britânica, que se dedicou justamente a analisar o Partido Trabalhista, ponderar o

alcance de suas políticas e projetar perspectivas para uma esquerda revolucionária.

O ponto central em torno do Partido Trabalhista britânico é que ele foi se

afastando de uma política socialista de esquerda para se transformar em um partido

da ordem. Raymond Williams alertava para o fato de que a perspectiva do poder

institucional silenciava debates políticos necessários e levava a um fortalecimento

dos elementos mais numerosos do partido – aqueles que aceitavam como dado o

sistema econômico e político e se propunham apenas a buscar pequenas reformas

(WILLIAMS, 2014, p. 192).

Conforme Williams (2014, p. 192-194), essa característica trazia algumas

vantagens: proporcionava coesão interna ao partido – que foi capaz de sobreviver a

sucessivas crises internas nascidas de suas próprias contradições – e deixava

sempre aberta a possibilidade de incluir o socialismo na agenda política, pois uma

parcela importante do movimento trabalhista estava sempre ao lado do Partido

Trabalhista, historicamente com capilaridade social. A pergunta que Williams se fazia

era por qual razão, apesar desses pontos positivos, o Partido Trabalhista não se

mostrava uma opção viável rumo ao socialismo.

A resposta passa pela posição da maioria dos dirigentes sindicais, que no

mais das vezes optavam por pequenas reformas e pelo poder que a fração

parlamentar tem, que em situações de tensão conduziam o partido por dentro das

políticas capitalistas. Para além disso, havia ainda uma questão ideológica: a coesão

do movimento trabalhista britânico também se devia ao apego a certos valores pré-

81

políticos, no caso uma crítica moral ao capitalismo – a reivindicação da humanidade

contra as transformações capitalistas.

Diante disso, Williams considerou que as possibilidades para uma esquerda

socialista estavam esgotadas pelas vias do Partido Trabalhista, que, como foi dito,

ocupava posição central no campo progressista britânico. Conforme exposto acima,

também o campo internacional da esquerda estava em crise, pela perda de

centralidade da União Soviética. Estavam dadas as condições históricas para o

surgimento de outro movimento dentro da esquerda. As palavras de Williams são

suficientemente claras para merecerem uma citação:

Ora, as duas tradições que haviam fracassado, eu continuei a defini-las da seguinte maneira. Por um lado, o stalinismo. Por outro lado,essa inevitabilidade do gradualismo, que se poderia chamarsucintamente de fabianismo. Nem stalinismo, nem o fabianismo, quenos anos 1930 pareciam as duas maiores alternativas da tradiçãopolítica socialista, ofereceram-nos por muito tempo seja um sistemaintelectual aceitável, seja um modo viável de ação política. Portanto,deveria ser encontrada uma tradição inovadora (WILLIAMS, 2014, p.100).

Essa nova posição política começou a ser gestada na Campanha pelo

Desarmamento Nuclear (CND, na sigla em inglês), iniciada nos fins dos anos 1950.

Consistia em um movimento de oposição à produção de armas atômicas. A primeira

marcha ocorreu em abril de 1958, no Reino Unido: 15 mil pessoas se manifestaram

em frente ao centro de pesquisas Aldermaston contra os testes nucleares,

pressionando a Grã-Bretanha a suspensão desses testes e à saída da OTAN

(Organização do Tratado do Atlântico Norte). A CND foi um movimento de massa,

incluiu vastos setores da classe média, além dos intelectuais de esquerda. A posição

da CND incluía ainda uma reavaliação da política internacional e uma reorganização

das prioridades nacionais (CEVASCO, 2016, p. 86).

A CND foi importante por reunir os descontentes políticos naquele momento.

Uma vez reunidos, puderam perfilar algumas questões políticas centrais, para além

das pautas mais imediatas. Portanto, o que se chama de Nova Esquerda foi esse

“conjunto de respostas contra a bomba, contra o imperialismo e contra o comunismo

autoritário”; uma esquerda que se queria distinta, “ao mesmo tempo libertária e

democrática, contra o capitalismo e contra o imperialismo” (WILLIAMS, 2014, p. 92).

Ela, tendo nascido a partir de pensadores fundados na crítica moral ao capitalismo,

82

deveria ser capaz de atacar o fabianismo que acomete o Partido Trabalhista e o

dogmatismo geral da tradição marxista (WILLIAMS, 2014, p. 204).

Com as opções para atuação na política tradicional esgotadas, a Nova

Esquerda empenhou-se mais fortemente no âmbito da cultura, justamente porque

tratou-se de um momento de mudança, no mundo todo, do estatuto da cultura, que

adentrou a vida cotidiana das pessoas por intermédio dos meios de comunicação de

massa. A Nova Esquerda inseriu os pensadores britânicos na tradição do marxismo

ocidental, que buscava explicar o funcionamento do capitalismo não a partir do

âmbito econômico, mas do cultural. Esse movimento estimulou a cena cultural

britânica e se transformou em uma referência para o pensamento de esquerda

ocidental (CEVASCO, 2016, p. 88).

Raymond Williams é uma figura central nisso que se pode chamar de Nova

Esquerda Britânica. Por sua trajetória, pelo seu envolvimento político e pela

contribuição teórica que deu ao movimento, uma das mais ricas do marxismo

ocidental, a obra de Williams ajudou a colocar a cena britânica em outro patamar,

rompendo o provincianismo que a caracterizava.

3.8 Construção de uma nova área de conhecimento

A busca por uma posição de esquerda autônoma e socialista, no quadro da

cultura britânica, contribui para o fortalecimento de uma ala mais radical da

esquerda, possibilitando o advento de um novo tipo de pensamento. Condensados

em torno da questão cultural, preocupados com a nova dinâmica social estabelecida

no pós-guerra – isto é, o impacto do capitalismo nas relações culturais, o que a

Escola de Frankfurt chamou de indústria da cultura –, os pensadores da Nova

Esquerda lograram construir um corpo teórico denso para análise dos meios de

comunicação de massa e da relação entre a arte e a sociedade, que se

convencionou chamar de Estudos Culturais.

Os Estudos Culturais podem ser definidos como um espaço interdisciplinar de

investigação, que busca analisar os modos de produção e reprodução de

significados nas sociedades industriais desenvolvidas. Comumente, três são os

livros indicados para situar o início desse campo de estudos: The Uses of Literacy,

83

1957, de Richard Hoggart; Culture and Society, 1958, de Raymond Williams; e The

Making of The English of Working Class, 1961, de Edward P. Thompson4.

Os Estudos Culturais não formavam, neste momento, uma disciplina

acadêmica nos moldes tradicionais – esse campo de estudo nasceu da insatisfação

com outras disciplinas, criando um espaço no qual diferentes disciplinas (Inglês ou

Literatura Inglesa, História e Sociologia), cada qual com sua contribuição, atuaram.

Isso torna difícil localizar o elemento definidor dos Estudos Culturais, pois ao passo

que outras disciplinas materializavam claramente seu espaço institucional com

currículos, publicações, carreiras, etc., os Estudos Culturais só possuíram durante

muito tempo um centro, o Center for Contemporary Culturais Studies (ligado à

Universidade de Birmingham), e um periódico, os Working Papers.

Em termos de objetos de estudo, sabe-se o foco privilegiado que os Estudos

Culturais dão às culturas populares (além da ênfase também aos meios de

comunicação de massa e, posteriormente, às temáticas identitárias). Isso configura

uma variedade muito grande de objetos de estudo, fruto da tentativa de aliar os

produtos culturais às relações de poder.

Aqui é importante atentar para o sentido do termo “cultural” no nome do

grupo. Cultura não tem sentido estético, de adentrar a esfera do sensível, e nem

humanístico, como movimento intelectual voltando para o reconhecimento das

capacidades humanas; cultura tem um direcionamento político, e um direcionamento

muito específico: entendida como um conjunto de práticas de representação

conflituosas ligadas aos processos de construção e reconstrução de grupos

(STOREY, 1996, p. 2).

É por isso que, embora os Estudos Culturais não possam ser reduzidos ao

estudo das culturas populares, o estatuto dessas no projeto do grupo é muito

importante e não pode ser negligenciado. Se os Estudos Culturais são a

investigação das formas históricas de consciência e subjetividade – o que desloca o

texto em si como objeto de estudo, que passa a ser só um meio –, as culturas

populares, em suas diversas expressões, são o modo de adentrar tais formas de

consciência (STOREY, 1996, p.2).

Tal foco, no entanto, só foi possível com uma guinada teórica, e aqui reside a

importância de Raymond Williams para o grupo, pois a transformação da ideia de4 Edward Palmer Thompson (1914 – 2014) foi um historiador inglês de orientação

marxista, contemporâneo de Raymond Williams e fundador dos Estudos Culturaisbritânicos.

84

cultura operada nos livros Culture and Society e The Long Revolution tornou

possível o desenvolvimento dos Estudos Culturais. Resumidamente, passou-se de

uma concepção estética para uma noção antropológica de cultura, dentro da qual a

cultura deixa de designar apenas as grandes obras de arte e passa a se referir a

uma gama de representações e práticas comuns a um dado grupo – abarcando,

dessa forma, a alta literatura, a literatura de folhetim das camadas populares e os

meios de comunicação de massa. A corrente que subjaz essa reorientação

conceitual é o marxismo. Não que todos os intelectuais englobados no Estudos

Culturais fossem marxistas, mas o marco teórico a partir do qual esse campo se

desenvolveu foi o marxismo. A influência se faz sentir na concepção de que os

significados da cultura devem ser analisados na relação com a estrutura social e

com as contingências históricas e na assunção das sociedades industrias

avançadas como desiguais em termos de etnia, gênero, raça e classe – a cultura é o

lugar onde essa discussão se dá, ou seja, onde ocorre a luta pelos significados, o

que a torna ideológica (STOREY, 1996, p. 3).

Portanto, política – no sentido mais amplo do termo – e cultura se uniram nos

Estudos Culturais, se configurando em um projeto marcado por um forte discurso de

engajamento social. O objetivo não era apenas moldar um intelectual orgânico nos

termos gramscianos, mas pensar como o trabalho intelectual pode intervir nos

problemas locais. Ao situar o desenvolvimento inicial dos Estudos Culturais nos

livros fundadores – ao invés de três, alguns autores, como Green e Sparks,

consideram apenas dois, excluindo o de Thompson – pode-se perceber como

mudança no conceito de cultura foi indispensável para o surgimento do grupo, mas

há um contexto por trás que ajuda a explicar, para além das questões teóricas, o

próprio locus social do movimento (STOREY, 1996, p. 5).

A perda de prestígio da crítica literária tradicional em favor da abordagem dos

estudos culturais não se deu apenas porque os primeiros concediam atenção

somente para a alta literatura – os pensadores dos Estudos Culturais também

focavam na relação das grandes obras literárias com a estrutura social. O sentido

principal dessa divergência foi, mais uma vez, a dimensão política:

A tradição dominante era anti-democrática; os Estudos Culturais,profundamente democráticos. E a democracia aparece numareversão de termos. Os sinais de “elite” e “popular” foram trocados –temos aqui as mesmas e fundamentais noções de cultura outra vez.Os Estudos Culturais tomaram todo o projeto da crítica literária, mas

85

se diferenciaram dos seus pais pelo populismo. Isso deu aos EstudosCulturais um lugar de intensa marginalidade (que nem a sociologiaocupou): o espaço intelectual era amplamente dominado pelos “pais”da tradição (SPARKS, 1996, p. 15, tradução nossa, grifos do autor).

Portanto, o impulso formador dos Estudos Culturais está na relação política

com as disciplinas já estabelecidas, particularmente o Inglês. Por meio disso, pode-

se entender o famigerado populismo dos Estudos Culturais, a sua posição marginal

na academia e seu apego à cultura popular como objeto prioritário de análise.

Também as questões teóricas – demonstração da força e complexidade das

diferenças culturais, a noção de cultura comum, a visão de que os meios de

comunicação e educação eram antidemocráticos e o debate sobre a perda de força

da Inglaterra no cenário internacional – também podem ser mais bem

compreendidas. Porque o que começou a caracterizar esses elementos não foi um

projeto conceitual – por exemplo, a noção de um culturalismo –, mas uma dinâmica

política conectada ao surgimento de uma nova esquerda.

No entendimento de Green (1996, p. 51-52), questões políticas prementes –

ademais já discutidas, como a crise soviética e do Partido Trabalhista britânico –

possibilitaram a formação de uma nova agenda, e no topo dela estava a recusa da

neutralidade acadêmica – encarnada principalmente por Williams, Thompson e

Wright Mills. Havia, portanto, um vínculo entre a atuação na esfera da cultura e as

novas formas de política, nas quais a circularidade midiática de imagens e

linguagens tanto era uma representação negativa de certos grupos e classes para

eles mesmo como também espaço de recusa, de valores não compartilhados, do

político como espaço de conflito, em suma.

Desse modo, pode-se dizer que

Nesses dois sentidos – acadêmico e político –, os Estudos Culturaispodem ser vistos como “impuros”: como consequência, nãoreivindicou e nem lhe foi concedido um status disciplinar. Suaapresentação acadêmica sempre foi desconfortável. Justamente porisso, em nenhum caso, os assuntos relacionados poderiam serfacilmente encaixados em um corpo estável de trabalho (GREEN,1996, p. 55, tradução nossa, grifos do autor).

Apesar dessas questões, ou exatamente por causa delas, os Estudos

Culturais cresceram e se expandiram. Mas a partir dos anos 1980, o CCCS deixa de

ser o principal ponto de discussão e disseminação dos Estudos Culturais – o que

86

significou, em outros termos, uma migração da Grã-Bretanha para outras partes do

mundo, como América do Norte e Austrália, onde conheceram uma rápida

institucionalização.

Nesse novo contexto, há uma mudança de interesse dos Estudos Culturais,

que deixaram de lado as relações gerais entre poder, história e política e passaram a

analisar o que se convencionou chamar de novas identidades sociais (raça, gênero

e orientação sexual) –, e como essas se constituem e se recompõem frente a um

contexto de declínio da solidariedade tradicional. Também é marcante nesse

momento a redução dos Estudos Culturais, agora sim, a questões de texto e

textualidade.

Em uma palestra de 1986, Williams (2011a, p. 174-176) identificou e criticou

esse processo. Para ele, a recorrência em tratar o advento dos Estudos Culturais

por meio de “textos” fundadores denunciava o estreitamento de visão que

acompanhou o empastelamento desse campo de estudos nas universidades. A

crítica ficou por conta da perda de força do projeto original do grupo, que passava

pela constituição de uma educação democrática. Mas Williams não propõe um

simples retorno, porque se todo projeto depende e só se compreende por meio de

uma formação, o pensador galês sabe que as condições históricas para isso não

estão mais dadas.

A tendência para tratar o movimento inicial dos Estudos Culturais em torno

simplesmente de textos está no horizonte da mudança de paradigma teórico que a

década de 1960 assistiu: o estruturalismo, entendido seja como ênfase nas

estruturas sociais e nos seus dispositivos de reprodução seja como primado da

linguagem e do simbólico. Essa mudança está também na base da perda

substantiva de importância do marxismo no projeto dos Estudos Culturais.

Essa configuração veio acompanhada das recentes identidades coletivas

(gênero, raça, orientação sexual e etnia) e de novos sujeitos, para os quais tanto o

marxismo quanto a sua concomitante noção de classe social pareciam não dar mais

conta. A crítica de Williams acima exposta se compreende de maneira mais clara a

partir dessa constatação, pois o predomínio do estruturalismo na atividade

intelectual dos países de língua inglesa pode ser visto como um depuramento

enviesado da teoria, que se distancia da política.

É A carreira intelectual de Raymond Williams está inegavelmente atrelada aos

Estudos Culturais, pela influência que seu pensamento teve para a constituição

87

dessa área de investigação, mas é neste ponto que se pode ir além da já gasta tese

de que ele é um dos nomes fundadores, e entender que, após isso, os dois (Williams

e Estudos Culturais) tomam rumos distintos, para não dizer contraditórios.

Rivetti (2017) salienta que Williams e Estudos Culturais, a partir dos anos

1960, se afastaram paulatinamente, com o marxismo sendo o nó górdio da questão.

Como foi dito, os Estudos Culturais passaram a ter o estruturalismo e correntes afins

como principal aporte teórico. O marxismo, presente no momento inicial, foi deixado

de lado por supostamente não atender mais as necessidades deste campo de

estudo. Em Williams, ao contrário, essa presença se tornou cada vez mais forte, a

ponto de sua identificação como autor marxista ter aumentado – e se solidificado –

com o passar do tempo.

O desdobramento do pensamento de Williams, de Cultura e Sociedade e The

Long Revolution a Marxismo e Literatura e O Campo e a Cidade, é marcado por um

aprofundamento da visão marxista, que se percebe na incorporação de conceitos

essenciais como capitalismo e classes sociais. A relação de Williams com o

marxismo não se inicia na década de 1970 (data de muito antes), além de sempre

ter sido tensa. Portanto, esse desenvolvimento deve ser entendido mais como um

novo encontro, por intermédio de pensadores (Goldmann, Gramsci, Lukács, Sartre,

Escola de Frankfurt, Althusser) mais afinados às suas posições, e menos como uma

descoberta inicial (RIVETTI, 2017).

É por isso que Raymond Williams está aquém ou além dos Estudos Culturais

tais como conhecidos hoje: isto é, a sua identificação com essa área de estudos

deve ser sempre parcial. As divergências de desenvolvimento, ainda que tardias,

são suficientes para sustentar tal visão. Isso ganha relevo ainda maior para este

trabalho, pois é no momento de maturidade de seu pensamento que Williams

assenta as bases para análise social do fenômeno literário.

88

4 OS PRINCIPAIS POSTULADOS TEÓRICOS

Neste capítulo, discutem-se as bases teóricas dos estudos de Antonio

Candido e Raymond Williams sobre literatura e mundo social e quais os principais

resultados dessas orientações para as análises literárias.

4.1 Antonio Candido

O pensamento de Antonio Candido tem uma indiscutível influência no meio

intelectual brasileiro. Vindo de uma geração de estudiosos que foram os precursores

do ensino mais sistemático das Ciências Sociais no Brasil (isto é, estava ligado ao

intuito da USP de formar intelectuais com perfil mais especializado, por meio de uma

orientação acadêmica sistemática, como Gilda de Melo e Souza, José Arthur

Giannotti e Ruy Fausto, diferente da formação bacharelesca em medicina e direito

que marcou o pensamento brasileiro até então), Candido distinguiu-se desde cedo

pelo seu estilo ensaístico de escrita e pelo interesse dispensado à análise da vida

cultural brasileira.

Nesse último quesito, ganha particular relevo em suas preocupações os

vínculos que podem ser estabelecidos entre composição literária e mundo social.

Nesse sentido, então, a literatura aparecia para Antonio Candido como uma chave

para compreensão de uma sociedade, configurando-se como objeto preferido de

suas análises, o que o colocava em oposição a contemporâneos seus que

privilegiavam as questões e problemas econômicos para seus estudos. Foi por meio

da análise reversa entre sociedade e literatura que Candido construiu sua imagem

como pensador.

Sua produção intelectual, no entanto, teve diretrizes teóricas distintas.

Podemos dividir seu trajeto teórico em três fases, como se depreende das palavras

do próprio autor:

Numa primeira etapa, vista de hoje, percebe-se que eu estavapreocupado sobretudo com a busca de condicionamentos; para sermais exato, a busca de causas. Assim, no nível da “explicação”, asobras literárias me interessavam na medida em que estavam ligadas

89

a determinado sistema de condicionantes do meio, e na medida emque influíam umas sobre as outras sobretudo na dimensão do tempo.Como estão vendo, no fundo uma visão positivista de cultura, queera também do marxismo reinante por aqui. No meu tempo de moço,pode-se dizer que o marxismo era extremamente positivista, e nósaprendíamos em livros de divulgação ou polêmico, como o Anti-Duhring, o resumo do Capital feito por Gabriel Deville, A História doSocialismo e das Lutas Sociais, de Max Beer, O Tratado deMaterialismo Histórico, de Bukharin. Resultava uma visãoesquemática, aliás, corrente no tempo do stalinismo, que se podiaaproximar de uma visão positivista. O livro de Bukharin, que tevegrande influência na minha geração, era bastante mecanicista. Sesomarmos a isto a formação “positivista” que tive na Faculdade (nãono sentido de Augusto Comte, mas no da tradição universitáriafrancesa de cientificismo da Filosofia), entende-se o porquê dessapreocupação com a causalidade e os condicionamentos. Ela apareceno meu primeiro livro, que foi minha tese: Introdução ao MétodoCrítico de Sílvio Romero (1945), onde formulei mais ou menospontos de partida teóricos. Uma segunda fase, até certo pontoantitética, se desenvolveu por outras influências. De um lado, aAntropologia Social Inglesa (Malinowski, Radcliffe-Brown); de outro,as ideias críticas de T. S. Eliot e o “new criticismo” americano. Eu mepreocupava então com o problema da funcionalidade, isto é, nãoapenas com a sequência temporal dos eventos ou das obras ou oseu encadeamento; não com o seu condicionamento, mas com apertinência dos traços de determinado sistema. Isso se reflete naminha tese sociológica Os Parceiros do Rio Bonito (1954) e emFormação da Literatura Brasileira, publicado em 1959. Neste, nota-seo desejo de ver um sentido diacrônico combinado ao respeito pelavisão sincrônica. Finalmente, distingo uma terceira fase, maisrecente, onde a preocupação teórica se subordina ao interesse pelaestruturação. Não pela estrutura propriamente dita, mas pelaestruturação, isto é, o processo por meio do qual o que eracondicionante se torna elemento interno pertinente. A preocupaçãonão é mais tanto o condicionamento quanto o próprio sistema. Não osistema isolado, tomado em si, mas na medida em que é umafórmula através da qual o externo se torna interno. O interesse pelafuncionalidade leva ao interesse pela estrutura, num sentido diferentedos estruturalistas, pois o que se indaga é como a estrutura seestrutura. Talvez tenha aí alguma influência de Lukács, que li emtraduções italianas no começo do decênio de 50. Mas posso dizerque não estava consciente dela quando pela primeira vez formuleiem público aquela preocupação. Foi no II Congresso de Crítica eHistória Literária, realizado em Assis (SP), 1961. Como não ficoubem registrada nos Anais, publiquei uma formulação correta e maiscompleta no livro Literatura e Sociedade, de 1965.Cronologicamente, eu diria que a primeira etapa corresponde aodecênio de 40; a segunda ao decênio de 50 e a terceira ao decêniode 60 (CANDIDO, 1974, p. 10-11).

Nota-se que as duas primeiras fases correspondem a um período de

acentuada ambiguidade institucional, isto é, Candido atuava como assistente da

90

cadeira de Sociologia II, entre 1942 e 1958, e produtor de conhecimento na área de

literatura desde 1941. A partir da década de 1960 ele se vinculou às Letras,

solucionou essa questão – mais acadêmica que intelectual –, redirecionando seu

projeto teórico, passando, então, a focar especificamente nas obras e nos fatores

sociais que atuam sobre ela.

Sabemos que Antonio Candido dividiu-se entre a docência nas Ciências

Sociais e a crítica literária desde o início da década de 1940. Esse elemento é

importante porque relembra o quão precoce foi a fama intelectual de Antonio

Candido, inaugurada pelo empreendimento editorial Clima, compartilhado com

alguns colegas da USP (JACKSON, 2007, p. 126).

No entanto, o reconhecimento como intelectual público não garantia uma

estabilidade dentro da universidade. Na verdade, o sistema de cátedra vigente na

USP gerava insegurança nos assistentes e auxiliares de ensino, subordinados aos

“chefes” das cadeiras, e dos quais dependiam das possibilidades de prosseguimento

na carreira. As relações pessoais eram assim muito importantes (JACKSON, 2007,

p. 125).

Isso explica, em parte porque Antonio Candido não conseguiu espaço no

âmbito das Ciências Sociais para desenvolver seu projeto intelectual – voltado para

análises da cultura – com clareza e vigor. Defendeu a tese de doutoramento Os

Parceiros do Rio Bonito na sociologia em 1954, enquanto alguns colegas realizaram

isso antes, como Florestan Fernandes que defendeu sua tese em 1951 – vale

ressaltar que Florestan finalizou a graduação depois de Antonio Candido.

Também deve entrar em conta que a sua tese sofreu críticas da banca por ser

demasiadamente “antropológica” – o pano de fundo dessa advertência era o padrão

científico que Florestan já vinha implantando na sociologia. E vale ressaltar, por fim,

que só em 1959, quando estava vinculado às Letras na Faculdade de Assis,

consegue defender Formação da Literatura Brasileira, embora estivesse sendo

produzida ao mesmo tempo que os Parceiros.

Denota-se, por meio desses elementos, que no decorrer da década de 1950

as possibilidades profissionais para Candido no âmbito das Ciências Sociais foram

cada vez mais se estreitando.

É neste contexto que se dá a transferência de Antonio Candido para a

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Pontes (1998, p. 193) revela que

Candido se sentiu ofendido quando alguns colegas lhe ofereceram a disciplina de

91

sociologia da educação e, assim, apressaram sua saída da sociologia. É significativo

perceber que o próprio Candido se sentiu expelido do quadro institucional e

acadêmico da sociologia na época.

Esse contexto lhe impulsionou a formar uma área de atuação própria, na

tentativa de sedimentar perante os pares a sua condição de intelectual na

universidade. Por meio disso, é possível compreender a marcante tentativa, que

atravessa seu projeto teórico, de se distanciar da sociologia.

Assim, a passagem por Assis, muitas vezes negligenciada, foi muito

importante na trajetória de Antonio Candido: auxiliou no processo de transformação

da sua identidade profissional, garantindo-lhe a reputação acadêmica necessária

para legitimar o seu estatuto de professor e pesquisador na área das Letras. Por

outro lado, Assis ainda servia de refúgio para que pudesse aprofundar seus estudos

na mesma área (RAMASSOTE, 2010a, p. 117).

Em Assis se dá, por exemplo, a publicação de Formação da Literatura

Brasileira, que pode ser lida como marco simbólico desse movimento de

reconversão profissional. Essa obra legitima sua transferência para o campo das

Letras e ao mesmo tempo o notabiliza como intérprete do processo de formação da

sociedade brasileira, vista sob a perspectiva literária (JACKSON, 2007, p. 127).

Em 1961, encerrou-se a passagem de Antonio Candido por Assis. De volta à

USP, para atuar na recém-criada disciplina de Teoria Literária e Literatura

Comparada, Candido (TLLC) deu maior vazão e amplitude ao seu projeto teórico,

gestado e elaborado com maior acuidade nos últimos tempos na Faculdade de Assis

– o estudo científico da literatura, apoiado num método próprio focado no

entendimento dos seus recursos internos.

Embora nos três anos iniciais do curso de Teoria Literária e Literatura

Comparada tenha se encarregado sozinho das disciplinas oferecidas para a

graduação, Antonio Candido, por outro lado, e a exemplo do que realizou Florestan

Fernandes na cadeira de Sociologia I, preocupou-se em formar em torno de si uma

equipe capaz de dar prosseguimento ao projeto que vinha sendo desenvolvido na

área de Letras da USP. Foi nesse sentido que ocorreu a contratação de Roberto

Schwarz e Walnice Nogueira Galvão – que assumiram as atividades de docência na

graduação nos dois anos em que Candido se ausentou.

O critério para seleção de novos professores era ter sido aluno de Candido e

ter desempenho intelectual reconhecido, comprovado na participação nos cursos

92

oferecidos, e padrão de excelência crítica para figuras oriundas de outras

instituições. A estratégia rendeu frutos, pois já em meados da década de 1960 o

departamento de TLLC reunia as condições que propiciaram a continuidade das

suas atividades acadêmicas em alto nível, destacando-se, além da expansão do

corpo docente, a formação de um grupo de discípulos dispostos a levar o projeto

adiante e pesquisas nas áreas temáticas designadas pelas disciplinas do curso

(RAMASSOTE, 2006, p. 71-72).

O deslocamento disciplinar não excluiu Antonio Candido do contexto

intelectual no qual estava inserido como sociólogo desde a década de 1940. Longe

de suprimir sua figura, a nova condição possibilitou a legitimação de um projeto

teórico que ambicionava reunir análise estética e sociologia. Em outros termos: por

intermédio do estudo da cultura Candido explorou a formação e a modernização da

sociedade brasileira (JACKSON, 2007, p. 128).

A guinada teórica e analítica de Antonio Candido deve ser entendida também

à luz das transformações que estavam ocorrendo nos estudos literários. Como

sustenta Pontes (1998, p. 101), já a partir da década de 1940, o campo da literatura

experimentou uma mudança no sentido de incorporar as contribuições da academia,

buscando superar a prática corrente até então baseada no impressionismo e no

amadorismo. Essa transformação significava um diálogo maior com as ciências

sociais. Candido, portanto, exerceu papel central neste processo.

De acordo com Jackson (2009, p. 273-274), a “crítica de vertentes” praticada

por Antonio Candido e seus discípulos apoiava-se em duas frentes: o estudo dos

condicionantes sociais ou psíquicos envolvidos na estruturação do texto literário e no

esclarecimento das lógicas envolvidas na organização formal do texto. Essa seria

uma orientação geral que preside Formação da Literatura Brasileira e que se

desdobrou nos escritos posteriores de Candido, chegando a ser mesmo o aspecto

central das pesquisas realizadas na cadeira de Teoria Literária e Literatura

Comparada.

Percebe-se na formulação acima a concepção de que há certa precedência

da segunda fase sobre a terceira. Embora isso seja plausível, é digno de nota, por

outro lado, que a terceira fase é o momento no qual o programa teórico-

metodológico do autor está mais bem delineado. Com efeito, depois da década de

1960, não houve mais corte epistemológico no pensamento crítico de Antonio

Candido, que continuou centrando suas atenções aos fatores genéticos do texto e

93

mantendo o interesse pela estruturação (RIBEIRO JUNIOR, 1984, p. 60). Portanto,

para as preocupações deste trabalho, as formulações a respeito da relação arte e

sociedade, tais como expostas em Literatura e Sociedade5, editado pela primeira vez

em 1965, são de suma importância. Nossa discussão incidirá sobre essa obra.

Em Literatura e Sociedade, obra de maturidade do projeto teórico de Antonio

Candido, encontram-se as suas principais concepções a respeito dos processos

sociais envolvidos na construção de uma obra literária e, também, uma série de

indicações metodológicas que sugerem o modo mais satisfatório de tomar os

elementos sociais em uma análise literária. Selecionamos os artigos que tocam

diretamente nessas questões e, deles, vamos extrair os pontos fundamentais para

debatê-las.

4.1.1 A identificação dos elementos externos (sociais) e a restrição de seu alcance explicativo

Antonio Candido sempre procurou arrogar para si uma postura equidistante

tanto de um formalismo mais restrito, apartado de qualquer elemento externo à obra,

quanto de um sociologismo reducionista, que incorria não raramente no equívoco de

5 Um dos ensaios mais importantes de Literatura e Sociedade, Crítica e Sociologia, foiapresentado no II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, realizado em julho de1961 em Assis. Informação que serve para aquilatar a importância da passagem pelaFaculdade de Assis para a maturação do seu projeto intelectual.

Figura 3 – Capa do livro Literatura e Sociedae

Fonte: Candido (2006)

94

tratar a arte como reflexo da sociedade. O pensador uspiano localizava esses polos

extremos de discussão e, a partir deles, pontuava a necessidade de se conjugar os

elementos internos e externos para uma análise literária.

No prefácio escrito ao livro Literatura e Sociedade no ano de 1972, o autor já

salientava a ideia central de que “só através do estudo formal é possível apreender

convenientemente os aspectos sociais”. Esse postulado é presidido, no entanto, pela

noção de “forma orgânica”, relativa à cada obra e que se constitui pela correlação

dinâmica dos seus elementos, exprimindo-se pela “coerência” (CANDIDO, 2006, p.

10).

Já aqui se manifesta uma concepção basilar em Antonio Candido. Para o

pensador, a obra é um todo em si mesma, apesar de ser formada por vários

elementos distintos. Como localizá-los, distingui-los e pesá-los com relação ao papel

e/ou à função que desempenha para constituição da obra é a tarefa do analista.

Antes, porém, de adentrar a questão de como identificar e analisar os

elementos sociais pertinentes à obra de arte, é necessário conhecer quais são os

aspectos sociais que envolvem o processo artístico como um todo, isto é, como

Antonio Candido percebe o horizonte mais extenso de fatores sociais que exercem

influência sobre a produção artística.

É este o objetivo explícito do ensaio A literatura e a vida social, que busca

“focalizar os aspectos sociais que envolvem a vida artística e literária nos seus

diferentes momentos”. Candido considera que o campo de estudos da sociologia da

arte e da literatura permaneceram deficientes por causa da ausência de um sistema

coerente de referência – um conjunto de formulações e conceitos bem delimitados –,

que permitiria, primordialmente, circunscrever objetivamente o campo de análise.

Essa notável precariedade resultou “em relações difíceis no terreno do método”

(CANDIDO, 2006, p. 27).

O argumento de Candido é o de tentar reestabelecer esse quadro de

referência, que, na verdade, se processa no ato de depurar a atividade crítica (a sua

atividade crítica, tal como estabelecida nos anos recentes) do que considera o

“arbítrio” da sociologia. Assim, o primeiro passo foi o de fazer a sociologia passar

como uma disciplina auxiliar no que tange ao entendimento do fenômeno artístico –

a sociologia não explica o fenômeno artístico, apenas traz alguns aspectos à luz. O

autor considera que para uma série de fatos, a análise sociológica é ineficaz e só

95

desorienta a interpretação; só para uma outra parte ela pode ser tomada como

indispensável (CANDIDO, 2006, p. 28).

Antonio Candido já nesta altura pontua, embora não desenvolva, que a

sociologia só é necessária para um grupo específico de fatos, para outros é

dispensável. O domínio no qual o recurso à sociologia, tal como concebida por ele, é

tido como necessário, é governado por uma questão chave: a de saber qual a

influência efetiva que o meio social exerce sobre a obra de arte. De acordo com

Candido, interessam à sociologia os tipos de relações e os fatos estruturais ligados à

vida artística, seja como causa ou consequência (CANDIDO, 2006, p. 29-31).

O ponto inicial do trabalho, nessa perspectiva, é o de investigar as influências

concretas exercidas pelos chamados fatores socioculturais, que, embora sejam

difíceis de discernir na variedade e na quantidade, podem ser resumidos em três

âmbitos: aqueles relacionados à estrutura social, aqueles que se ligam aos valores e

ideologias e os que dizem respeito às técnicas de comunicação. O grau de influência

de cada grupo depende do aspecto analisado no processo criativo (CANDIDO, 2006,

p. 31).

A estrutura social se manifesta na posição social do artista e na configuração

de grupos receptores, os valores e ideologias dão forma e conteúdo às obras, e as

técnicas de comunicação se expressam na feitura e transmissão delas. Tem-se a

produção artística dividida em quatro momentos: o artista orientando-se pelos

padrões de sua época, escolhendo certos temas, utilizando determinadas formas e,

por fim, a síntese que daí resulta age sobre o meio (CANDIDO, 2006, p. 31).

Ao esboço do processo sociológico de produção artística – que, para o autor,

congrega a estrutura social, os valores e a ideologia das obras e suas técnicas de

comunicação –, segue-se imediatamente a advertência de restrição desse esquema,

o qual, na visão do pensador uspiano, não alcança o processo como um todo, mas

apenas uma de suas faces: o âmbito social da arte. Candido (2006) busca destacar

a noção da arte como uma comunicação expressiva, que revela realidades

profundamente radicadas no artista e não se esgota na transmissão de noções e

conceitos. Já nesse momento percebe-se que Candido (2006) pretende delimitar os

aspectos sociais à esfera da sociologia e os formais ao âmbito da crítica, cindindo

rigidamente as duas áreas.

Por ser vista como uma eminente ameaça à atividade crítica (voltamos a

salientar, a sua atividade crítica tal como construída a partir da saída da sociologia),

96

Candido (2006, p.28-32) sente a necessidade de assinalar que há um espaço não

alcançado pela sociologia: nele, residem os elementos de caráter idiossincrático,

referentes às faculdades do artista, e que se manifestam no aspecto intuitivo e

expressivo da arte. Esses elementos, pode-se dizer, são do domínio da crítica e não

são bem tratados se postos sob a égide da sociologia.

Feita a ressalva, o autor segue o delineamento dos condicionantes sociais do

processo de produção artística, que se resumem em três momentos e se traduzem

como autor, obra, público. Tais elementos agem uns sobres os outros: a atividade

dos artistas estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os

recursos da comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam os públicos

(CANDIDO, 2006, p. 32-34).

No que concerne à estrutura social, é interessante investigar como ela atribui

um papel específico ao criador de arte e como define sua posição na escala social, o

que se relaciona não apenas com artistas individualmente, mas à formação de um

grupo deles. Dentro dessa perspectiva, deve-se indicar o aparecimento individual do

artista na sociedade como posição e papel configurados, as condições em que se

diferenciam os grupos de artistas e, por fim, como tais grupos se apresentam nas

sociedades estratificadas (CANDIDO, 2006, p. 34).

As relações entre o artista e o grupo se pautam por esta circunstância e são

assim esquematizadas pelo autor: inicialmente, surge a necessidade de um ator

específico tomar para si a tarefa de criar ou apresentar a obra; posteriormente, este

ator é ou não reconhecido como criador da sociedade; e, finalmente, ele utiliza a

obra como canal para transmissão de suas aspirações individuais (CANDIDO, 2006,

p. 35).

Se a arte necessita de um agente individual disposto a realizar a obra, cabe

indagar, de acordo com Candido, qual a necessidade social de reconhecer a

identidade e a posição do artista, ou, em outros termos, de delimitar a existência de

um artista definido enquanto tal. Na visão do autor, responder a essa questão é um

modo de lançar luz sobre os imperativos sociais que influenciam diretamente na

necessidade social da arte (CANDIDO, 2006, p.36).

Uma vez que determinados atores passam a ser reconhecidos como artistas,

cria-se a possibilidade de eles se associarem entre si, associação esta que pode se

dar através de uma consciência comum ou por meio de um conjunto determinado de

técnicas. Essa possibilidade é, para Candido, o pressuposto de qualquer arte,

97

porque abrange fórmulas e modos de fazer que, uma vez assentados, estão

passíveis de serem conservados e transmitidos. A criação de uma circularidade de

elementos específicos da prática artística – com destaque para as obras – é, na

visão do autor, condição necessária para a configuração da dimensão artística (nos

seus termos, para a formação de um “sistema”) (CANDIDO, 2006, p.38-39).

Candido, dessa forma, concebe a diferenciação da atividade artística em si

como a ação da sociedade, distinguindo dentro do seu meio um grupo específico

possuidor dos “segredos técnicos” necessários para realizar, em um dado setor, as

atividades de todos. Para ele, nas sociedades atuais – altamente estratificadas e

estruturalmente mais complexas –, é possível notar a influência das camadas sociais

sobre a distribuição e o caráter dos grupos de artistas e intelectuais, os quais

tendem a diferenciar-se funcionalmente de acordo com o tipo de hierarquia social

(CANDIDO, 2006, p. 39).

Já a obra, segundo elemento da tríade, depende diretamente do artista e das

condições sociais que determinam sua posição. No entanto, quanto a ela o mais

importante é focar a ação exercida pelos valores sociais, ideologias e sistemas de

comunicação, que nela se transfiguram em conteúdo e forma, que vêm unidos um

ao outro. Mas, uma vez admitida a separação, é possível sustentar que os valores e

as ideologias concorrem para o conteúdo, ao passo que as modalidades de

comunicação influem em maior grau sobre a forma (CANDIDO, 2006, p. 40).

O terceiro e último ponto dessa cadeia é o receptor da arte. A configuração de

um público se dá à medida que as sociedades se diferenciam e crescem

demograficamente. Em uma sociedade pouco diferenciada, os receptores estão em

contato direto com o criador de arte. Com a paulatina complexificação das

sociedades, o artista se distingue do público, que não constitui um grupo, mas um

conjunto disforme e não estruturado de pessoas (CANDIDO, 2006, p. 44).

Para o autor, na sociedade contemporânea existem vários desses

agrupamentos não estruturados de pessoas correspondentes aos vários públicos

das artes. Eles crescem e se diferenciam em relação direta com a estrutura social,

mas possuem como denominador comum apenas o interesse estético (CANDIDO,

2006, p. 45).

Dessa maneira, a partir de uma síntese das três esferas identificadas por

Candido (2006), é possível afirmar que elas estão interrelacionadas, participando de

um jogo permanente. De acordo com o pensador da USP, o público dá sentido e

98

realidade à obra, e sem a obra o autor não se realiza; o público é, desse modo, o

fator de ligação entre o autor e a sua própria obra. A obra, por sua vez, relaciona o

autor ao público, pois este se debruça primeiro sobre a obra e só depois cria

interesse pelo produtor da arte. Finalizando o esquema, o autor, por seu turno,

intermedia a obra e o público, pois se constitui no agente que desencadeia todo o

processo (CANDIDO, 2006, p. 48).

É válido assinalar que embora a perspicácia sociológica desse processo seja

percebida por Candido, ele só o faz de maneira restritiva, ao afirmar que essa

relação social é secundária para o entendimento da obra de arte e que a sociologia

– a quem caberia explicar esta relação – não alcança a dimensão estética. Nesse

ponto, percebe-se uma dinâmica quase vertical em Literatura e Sociedade: é

reconhecida a existência de determinados fenômenos sociais e a (relativa)

importância da sociologia, mas sempre restringindo seu alcance e seu potencial

explicativo para a arte.

Assim, o que chama positivamente à atenção é a acuidade de Candido em

perceber a existência objetiva desses processos, que, com efeito, influem no

processo artístico. Em outras palavras, é possível afirmar que Candido reconhece

uma série de elementos capazes de condicionar a vida artística. Estes podem ser

entendidos tanto como constrangimentos, no sentido de impor limites à prática

artística, quanto como impulsos, no sentido de criar a “necessidade social” de

produção de uma obra.

Contudo, é válido assinalar que a consideração dos fenômenos sociais só é

operada restritivamente, pois Candido aponta que estes não são capazes de

oferecer explicação para o fenômeno artístico. Por mais extensos que sejam, o autor

considera que os fatores sociológicos não têm a capacidade de explicar a vida

literária. Em suma: junto com a depuração da sociologia da atividade crítica vem

também a depuração dos processos estéticos dos processos sociais, que passam a

ser, por definição, externos à obra.

Em O Escritor e o Público, ensaio de caráter histórico mais acentuado,

Candido (2006) analisa os fatores atuantes na construção de uma vida literária no

Brasil, salientando a integração da literatura e da política sob o signo do

nacionalismo, mas também focalizando os aspectos entre público e escritor que

possibilitaram tardiamente a construção de um circuito de produção relativamente

independente.

99

Dentro do último quesito, o autor retoma algumas discussões a respeito dos

fatores sociais que envolvem o processo criativo. Estes se subdividem em dois: os

internos e os externos. Os primeiros, e os mais importantes, não se subordinam a

quaisquer critérios explicativos: estão rodeando as “zonas indefiníveis da criação” e

sobre eles pesa o “mistério”. Os segundos se correlacionam a uma perspectiva

sociológica e são necessários para compreender correntes, períodos, constantes

estéticas. Os fatores externos, contudo, do ângulo explicativo, isto é, nos dizeres de

Candido, como ferramenta para a “sondagem profunda” de obras e autores, são

secundários. Interessante notar o reforço da concepção dual, relação externo e

interno, sobre os estudos literários, sintetizados nas fórmulas: sociologia – fatores

sociais – externos à obra; crítica – fatores “ocultos” – internos à obra (CANDIDO,

2006, p. 83).

Os elementos externos são aqueles ligados primeiramente ao escritor como

alguém que desempenha um papel social e que ocupa uma posição relativa a seu

grupo. Ao passo que a configuração clara de um grupo profissional depende das

condições de existência que seu membro encontra na sociedade, a posição social

do escritor como tal deriva do conceito social que os grupos elaboram em relação a

ele, isto é, está ligada a um reconhecimento coletivo da sua atividade (CANDIDO,

2006, p. 84-85).

Além disso, os fatores externos estão ligados também ao público, configurado

pela existência e natureza dos meios de comunicação, pela formação de uma

opinião literária e pela diferenciação de setores mais restritos que tendem a conduzir

o gosto (as elites). Para a formatação desses elementos, concorrem o grau de

educação, os hábitos e costumes intelectuais e os instrumentos de divulgação –

jornal, revista, livro, etc. (CANDIDO, 2006, p. 87).

Por fim, tem-se a obra, cujas forma e matéria dependem da relação entre os

elementos da personalidade do autor e sua congruência com o meio social, e, em

última instância, de uma consciência de grupo, isto é, da noção criada pelos

escritores de comporem um segmento específico da sociedade (CANDIDO, 2006, p.

84-85).

Estes três elementos organizados conformam a literatura como fenômeno da

civilização, existindo quando se encontram as condições propícias para tal em seu

entorno. Vista desse modo, a literatura é entendida como uma forma de

conhecimento, como instrumento de comunicação de um sistema social, mas não

100

ainda como arte propriamente (RIBEIRO JUNIOR, 1984, p. 62). Mesmo a obra, que

com relevância maior nesse esquema, pois Candido (2006, p.84) define a literatura

como “um sistema vivo de obras, agindo umas sobres as outras e sobre os leitores;

e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-

a”, ainda não é tomada pelo aspecto artístico. Pois, de acordo com o autor quando

relacionada junto ao público e ao escritor, formando um triângulo de ação recíproca,

passando a trabalhar com elemento de junção entre os dois, iluminando um e outro,

a obra desempenha uma função de formatação de um sistema. Traduzindo: ela

ganha um estatuto sociológico. E este nível, na visão do autor, não comporta o que

ele define como a obra literária no seu nível estético.

As apreciações de ordem estética estão contidas em um ensaio analisado

mais adiante. Elas surgem em outra série de ensaios, definidos pelo próprio autor

como “mais empenhados teoricamente” (CANDIDO, 2006, p. 9). É esse o caso de

“Estímulos da criação literária”, no qual o autor se dedica a discutir as diferenças das

atividades literárias nas sociedades “primitivas” e nas sociedades “civilizadas”.

Embora a temática pareça distante, as concepções do autor sobre estes elementos

deixam entrever sua visão estética.

Nesse ensaio, Candido parte da noção básica de que no homem convivem o

mágico e o lógico, e, nessa perspectiva, as mentalidades, “primitiva” ou “moderna”,

assentam-se sobre uma mesma base. Desse modo, as culturas são relativas e as

diferenças entre elas não são de caráter ontológico, mas concernentes às condições

sociais e culturais específicas (CANDIDO, 2006, p.53).

O autor, então, localiza uma espécie de contradição no que tange às formas

orais da literatura: o crítico e o filósofo, inclinados para a análise formal, não

conseguem captar a atuação que ela tem sobre a comunidade, sobre o tecido social,

criando falso senso de autonomia. O sociólogo, por sua vez, manipula com maior

acuidade os elementos do sistema social e cultural, mas costuma ignorar o caráter

estético da literatura oral. Eis a oposição identificada por Candido: a competência de

um se ausenta no outro. É por isso que, na sua visão, se faz necessário atentar para

a “integridade estética” e distinguir o que ele define como função total, social e

ideológica de todo tipo de literatura – escrita ou oral (CANDIDO, 2006, p. 54-55).

Dessa forma, a função total se origina da constituição de um sistema

simbólico e carrega uma visão do mundo fazendo uso de determinados instrumentos

expressivos. Além disso, traduz representações ao mesmo tempo sociais e coletivas,

101

firmando-se no patrimônio geral de uma comunidade (CANDIDO, 2006, p. 55). Essa

é a função mais geral dentre as três e se refere à possibilidade de a obra literária

alcançar uma dimensão maior que aquela do seu contexto social e histórico. Com

efeito, a função total relaciona-se com a ideia de um “excesso die significação”, ou

seja, a capacidade de um objeto artístico de sobrelevar-se do período em que foi

produzido e atingir uma dimensão temporal mais larga (MARTINS, 2004, p. 64).

Sendo assim, é a função mais ampla e a que toca o nível estético, pois, de

acordo com Candido (2006), as características mais importantes de uma literatura,

ou de uma obra específica, dependem da sua intemporalidade e universalidade, isto

é, da capacidade de se desvincular dos aspectos que a amarram a um tempo e

lugar determinados – de um contexto social imediato, por assim dizer. Essa

capacidade depende diretamente da função total que a obra pode vir a exercer.

Já a segunda função, a social, pode ser definida como a “razão de ser

sociológica”, e ela compreende o papel que a obra exerce na conformação de

relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais de um grupo

e na conservação ou transformação de uma dada ordem social. Para o autor, a

função social independe da vontade ou da consciência de produtores e receptores

de literatura, pois é processada pelo próprio caráter da obra, pela sua inserção em

um dado conjunto de valores culturais e pela sua expressividade e comunicação

(CANDIDO, 2006, p. 55-56).

Essa função estaria um nível abaixo da função total e é capaz de comportar

todos os elementos externos, aqueles passíveis de serem apreendidos pela

sociologia, tais como as condições sociais de produção de uma obra, o contexto

histórico de um dado período ou gênero da literatura, a posição social do escritor, a

função política de uma determinada obra, etc. Inclusive, o triângulo autor-obra-

público, concebido pelo autor como condição para que a literatura se conforme como

fenômeno da civilização, também estaria englobado pela função social.

Interessante ainda é notar que Candido considera que essa função predomina

mais, sempre a nível explicativo, nas literaturas dos grupos primitivos e/ou iletrados,

porque estas se integram diretamente ao patrimônio da comunidade, ao passo que a

literatura erudita moderna é direcionada para o consumo individual e voltada para a

singularidade dos diversos grupos (CANDIDO, 2006, p.56).

Assim, o que se depreende dessa consideração é que, para o autor, o

processo ocorrido nas sociedades desenvolvidas, de progressiva diferenciação e

102

especificação da esfera artística, culminou com sua autonomização e em um

distanciamento absoluto da estética em relação ao âmbito social.

Que a estética se autonomizou, talvez seja um ponto pacífico. O problemático

é estabelecer que a função social, capaz de abarcar um amplo espectro de

processos sociais, pouco se percebe na literatura das sociedades modernas e que a

ela corresponde quase mecanicamente à sociologia. Ora, dentro dessa perspectiva,

a autonomização da estética como campo diferenciado de práticas implicaria

também um estranho processo de diferenciação epistemológica, dado que a

sociologia não é capaz de explicá-la. Em suma: a esfera estética se configuraria

empiricamente como um campo distinto e, analiticamente, só seria trabalhada de

modo satisfatório pela crítica e por mais nenhuma outra disciplina.

Por fim, tem-se a função ideológica, a mais cônscia e voluntariosa de todas.

Assim, o autor a define:

O artista quer atingir um fim; o leitor quer que ele mostre um certoaspecto da realidade. Esse lado voluntário da criação e da recepçãoda obra concorre para uma função específica, menos importante queas outras duas e frequentemente englobada nelas, e que se podechamar de função ideológica – tomando o termo num sentido amplode um desígnio consciente, que pode ser formulado como ideia, masque muitas vezes é uma ilusão do autor, desmentida pela estruturaobjetiva do que escreveu (CANDIDO, 2006).

Quando tomadas em conjunto, em uma análise simultânea, as três funções

permitem compreender de maneira satisfatória a obra literária, tanto a dos povos

iletrados, expressada oralmente, quanto a dos grupos modernos, representada sob

a forma de uma literatura erudita escrita. Na primeira, a função social ganha

destaque, ao passo que na segunda é a função total que predomina (CANDIDO,

2006, p. 57).

Candido (2006, p.63) considera que a arte, e a literatura aí inclusa, é uma

transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, capaz de

organizar as coisas, os seres e os sentimentos de modo arbitrário. Para o autor, há a

combinação de elementos ligados à realidade social ou natural e de elementos

manipulados meramente pela técnica, o que implica um grau significativo de

gratuidade.

Dito de doutro modo, a criação literária se relaciona a determinadas

necessidades de representação do mundo, às vezes como abertura a uma prática

condicionada socialmente. Mas isso só se efetiva devido a uma redução ao gratuito

103

que dá acesso a um mundo ilusório. Embora essas definições abarquem qualquer

tipo de arte, tanto a “primitiva” como a “civilizada”, na primeira, os elementos

pragmáticos – isto é, não gratuitos, ligados às necessidades sociais – têm maior

influência (CANDIDO, 2006, p. 63-65).

Isso ocorre porque as distinções relativas à ordem social e cultural como um

todo estabelecem formas diferentes de arte e literatura no primitivo e no civilizado

(CANDIDO, 2006, p. 79). Da perspectiva da acomodação ao meio físico para a

sobrevivência do grupo, a literatura surge como algo que apenas a análise

sociológica é capaz de apreender de modo satisfatório, pois tem a capacidade de

demonstrar que, nas sociedades primitivas, o que se denomina sentimento estético

está ligado ao meios de vida e à organização social (CANDIDO, 2006, p. 65)

As diferenças entre os dois tipos de literatura estão assim resumidas: dadas

as características rudimentares de sua organização social, a literatura dos povos

primitivos repousa mais diretamente sobre os estímulos da vida social, sobretudo

aqueles ligados às necessidades de sobrevivência do grupo, enquanto que, nas

literaturas eruditas, esses elementos estão camuflados e só se revelam depois de

filtrados e desfigurados por uma série de outros fatores (CANDIDO, 2006, p. 73).

Toda essa construção a respeito do que diferencia as artes primitiva e

moderna é para, ao fim, concluir que as formas eruditas de literatura, próprias das

sociedades modernas, reclamam a análise estética e dispensam o estudo

sociológico; na proporção inversa, as formas orais, típicas das sociedades primitivas,

dispensam a visada estética e requerem o ponto de vista sociológico (CANDIDO,

2006, p. 69). Dessa maneira, o autor, apesar de adentrar o debate por um caminho

insólito, culmina novamente na visão restritiva para com a sociologia (especialmente

com o tipo de sociologia que ele escolhe para dialogar) e com a tentativa de

consolidação da sua atividade crítica.

A concepção subjacente é a da arte moderna como um tipo de prática

autossuficiente, com uma lógica de funcionamento própria, independente e que só

se deixa capturar por uma análise de qualquer tipo – e principalmente a sociológica

– em um aspecto restrito. Numa palavra só, isso significa autonomizar a esfera

estética para fora do mundo social – e de outras influências também.

O pensador uspiano, entretanto, reconhece as manifestações artísticas como

próprias da vida social, não havendo sociedade que não as expresse como fatores

necessários à sobrevivência. Desse modo, introduzem impulsos de expressão, de

104

comunicação e de integração que adquirem uma dimensão significativa, no mesmo

patamar de fenômenos econômicos, políticos e religiosos, pois se integram naquilo

que se pode denominar de sociedade (CANDIDO, 2006, p. 79-80).

Contudo, o caráter artístico mais importante, dentro dessa perspectiva

sociológica tomada, é a capacidade de realização individual, que está entre uma

ampla margem criadora e a possibilidade de inscrever o produto no patrimônio do

grupo. Na visão do autor, nas sociedades primitivas, esse nexo é mais claro; nas

modernas sociedades, por outro lado, a produção da arte e da literatura se dá

através de “representações estilizadas”, produção essa que só é coletiva na origem,

porque se processa por uma série de elemento mediadores (CANDIDO, 2006, p.

80).

4.1.2 Equacionando elementos internos e externos

A questão que se coloca, então, é como analisar esta passagem de uma

produção criativa, coletiva e social, para um nível estilizado, individual e envolto por

elementos ocultos que não se percebem à primeira vista. Se Candido considera que

o ponto de vista sociológico é, no máximo, útil como ferramenta elucidativa, deve-se

buscar, em seu pensamento, como se deve proceder à análise estética. Responder

a essa colocação é tornar claro o método crítico do autor.

É dessa matéria que se ocupa detidamente o ensaio Crítica e Sociologia.

Assim, o autor, inicialmente, põe ênfase às polarizações dos debates na área, que,

segundo sua visão, variam de uma análise estética “pura” até um sociologismo

redutor, para reclamar para si uma postura equilibrada. Sustenta também que deve

se buscar “um ponto de vista objetivo que não desfigure a análise de um lado e nem

de outro” (CANDIDO, 2006, p. 13)6.

6 Esta proposição deve ser entendida também dentro do quadro específico da crítica culturalbrasileira e em relação a nomes como os de Álvaro Lins e Afrânio Coutinho. Os doisrepresentavam, nesse cenário, modos distintos de se fazer análise literária: o primeiro, comum método chamado “impressionista”, com influência da crítica psicológica, que se guiavapela intuição pessoal do crítico; o segundo postulava uma crítica estritamente formalista, deforte apego aos elementos estéticos, que deveria decifrar a “verdade” das estruturasinternas da obra. Candido figura como uma terceira via nesse quadro, porque aglutina asvias da análise (textual), do julgamento (de valor, baseado no gosto) e da interpretação (comorientação histórica e sociológica) (AMORIM, 2011).

105

A questão, portanto, não é avaliar a obra por ela exprimir ou não certa faceta

da realidade, tampouco atentar apenas para os elementos formais que ela carrega.

A proposta do autor, então, é tratar essas duas visões como complementares, como

se as duas dimensões, aparentemente opostas, tivessem agora de se ajustar uma à

outra. Isso fica explícito no seguinte postulado, que pontua a necessidade de unir os

dois níveis de análise: “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar

nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender fundindo texto e

contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2006, grifo nosso).

E completa: “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não

como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo

papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2006,

p. 14, grifos do autor). Apesar de postular o equilíbrio das análises, se observa que a

ênfase aqui é claramente no polo interno. É esse que será analisado em minúcia, e

o externo será verificado e ponderado nos termos da influência que exerce sobre

este polo interno.

Candido não deixa de assinalar de onde parte sua perspectiva: considera que

a análise estética tem primazia sobre qualquer outro tipo de consideração na

investigação das associações entre a obra e o meio social. Ou seja, se pudéssemos

definir níveis de prioridade epistemológica para análise da literatura, a estética

ocuparia o primeiro nível e o restante das áreas de conhecimento, níveis

secundários, cuja pertinência ou não será estabelecida a posteriori pelo crítico

(CANDIDO, 2006, p.13).

Assim, o autor uspiano completa sua argumentação: a sociologia é uma

disciplina científica e não tem orientação estética própria da crítica. Portanto, a

sociologia deve dar tratamento externo aos fatores externos. À crítica cabe

investigar como isso se processa internamente. Portanto, temos o corte

epistemológico que baseia a visão de Candido (2006): a sociologia trata dos fatores

externos; a crítica, dos internos.

Estabelecido em que ponto deve se centrar a análise, a problemática

fundamental passa a ser analisar a “intimidade das obras”, investigando, entre os

fatores sociais, aqueles que atuam na organização interna, de maneira a constituir

uma “estrutura peculiar” (CANDIDO, 2006, p. 14).

Ao tomar o fator social, então, deve-se averiguar se ele fornece apenas

“matéria” (ambientação, costumes, valores, traços do grupo), elementos que apenas

106

possibilitam a criação da obra, ou se ele é um elemento que influi na configuração

do produto cultural como obra de arte; em outras palavras, deve-se investigar se o

fator social apenas permite a realização do fator estético ou se é determinante para

ele (CANDIDO, 2006, p. 14-15).

Primeiro, é possível perceber como há uma visão não reducionista, mas

claramente seletiva dos fatores sociais. À ampla gama de fatores sociais que eram

levados em conta nas análises mais corriqueiras da sociologia (largamente

influenciadas pelo marxismo), Candido (2006) impõe uma bem delimitada restrição:

a pertinência dos fatores externos é a influência que ele exerce para a organização

interna. Como sustentou Ribeiro Junior (1984, p. 60): “segundo Antônio Cândido,

são decisivos, para a análise literária, os fatores sociais, no seu papel de formadores

de estrutura”.

Nota-se também que termos como externo, interno, constituição interna, entre

outros, são corriqueiros dentro do léxico do autor. De modo que, traduzindo a

fórmula fator externo com atuação para a organização interna, é possível perceber

que os elementos externos só são pertinentes se ajudarem a construir o valor

estético da obra, aquilo que ela tem de mais genuíno como arte – exatamente aquilo

de que se ocupa, na visão do autor, a crítica. O fator externo só é importante para a

crítica se for motivo fundamental do estético. A fórmula, então, pode ser sintetizada

como importa fator externo o que tem causalidade interna. É a isso que se chama

visão seletiva.

Em suas palavras:

A análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamentea procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e significado daobra, unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se podedizer [...] que tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atuasobre a outra (CANDIDO, 2006, p. 15)

Para o autor, assim, quando se empreende uma análise dessa natureza, o

elemento social está sendo considerado não exteriormente, como algo que permite

identificar no conteúdo de uma obra a expressão de determinada época ou

sociedade, nem como enquadramento, que permite circunscrevê-la historicamente,

mas como motivo mesmo da construção artística – ou seja, estudado no nível

explicativo e não ilustrativo (CANDIDO, 2006, p. 16-17).

107

Dessa forma, a interpretação estética passa a incorporar o fator social como

fator de arte:

Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: oexterno se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para serapenas crítica. O elemento social se torna um dos muitos queinterferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos,linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estruturaconstitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, poistudo se transforma, para a crítica, em fermento orgânico de queresultou a diversidade coesa do todo (CANDIDO, 2006, p. 17, grifodo autor).

É desse modo que o ângulo sociológico, na visão do pensador, ganha maior

validade, mas nem por isso pode ser fixado com prioridade entre os estudos

literários, porque uma crítica para ser “integral”, deve abandonar a parcialidade

sociológica, psicológica ou linguística, para lançar mão livremente de qualquer

quadro teórico capaz de orientar a interpretação (CANDIDO, 2006).

Candido concebe a obra como uma realidade superior, coesa e coerente em

si. Nessa perspectiva, os diversos recursos teóricos, se não tomados com a devida

prudência, podem aparecer como prejudiciais à análise, por fazê-la recair

demasiadamente sob um certo aspecto e esquecer que a “precedência lógica e

empírica pertence ao todo, embora apreendido por uma referência constante às

partes” (CANDIDO, 2006, p.18).

O autor ainda admite o postulado geral de que a arte, para se formar e se

caracterizar, necessita do “entrelaçamento de vários fatores sociais”, isto é, “não se

trata de afirmar ou negar uma dimensão evidente do fato literário; e sim, de

averiguar, do ângulo específico da crítica, se ela é decisiva ou apenas aproveitável

para entender as obras particulares” (CANDIDO, 2006, p .21-22).

Apesar disso, faz, outra vez, funcionar o rigor seletivo de seu método e

sustenta que, para determinar se eles “interferem diretamente nas características

essenciais de determinada obra” (CANDIDO, 2006, p.21), é preciso de um salto

grande, pois os elementos focalizados pelos estudos sociológicos e históricos são

secundários para o crítico – este, sim, responsável pela dimensão estética de uma

obra.

Todo esse rigor restritivo de Candido para com a sociologia só é entendido se

tivermos em mente que ele não poupou esforços para implantar, na universidade, a

sua cadeira de teoria literária e para sedimentar seu projeto dentro do campo

108

intelectual brasileiro. Isso significa dizer que o projeto teórico desenhado pelo autor é

também um projeto institucional, que tem como objetivo primeiro delimitar o lugar

universitário do crítico e de seu pensamento (WAIZBORT, 2007, p. 103).

E esse elemento nos leva a uma nova questão: a institucionalização de uma

nova área de conhecimento, nesse caso, os estudos literários, com todos os

instrumentos que isso implica – cátedras, assistentes, boletins, cursos, livros,

bibliotecas, alunos, assistentes, financiamentos, congressos, revistas, etc. – exige,

em consequência disso, a definição do lugar dessa área, ou seja, seus objetos e

métodos de estudo, seu caráter científico ou não, etc. Em suma, a necessidade que

se impõe no momento desta tarefa é a de conceder certa identidade epistemológica,

mas também acadêmica, à área de conhecimento que quer se estabelecer como tal

(WAIZBORT, 2007, p. 105-106). É nesse momento nesse as questões materiais e

objetivas do novo espaço institucional começam a refluir posturas teóricas.

É a partir disso que se pode entender a concepção de Candido,

incessantemente reiterada, de que a crítica não pode se confundir com a sociologia,

mas também não é apenas uma análise puramente estética, pois, a depender das

necessidades suscitadas pelo objeto, pode-se lançar mão de conhecimentos de

outra ordem.

Esse postulado da autonomização da atividade do crítico frente à tarefa do

sociólogo alude a um movimento estratégico e significativo para se compreender a

posição do autor, no sentido de tentar definir a si mesmo e a área à qual se dedica

de modo favorável. A questão que se interpõe é: quem disse que a sociologia

concebida como “instrumento de visão de mundo”, não necessariamente debruçada

sobre um “trabalho sistemático de pesquisa e análise da realidade”, não é

sociologia? (WAIZBORT, 2007, p. 112-116).

Considerada de modo amplo – como atitude hermenêutica –, a crítica de

Candido, na qual a sociologia é tratada apenas como um “ponto de vista”, poderia

perfeitamente vir a ser concebida como simplesmente sociologia. O trabalho de

Antonio Candido só deixa de ser sociologia se confrontado com uma determinada

concepção de sociologia, o que significa dizer que as áreas só ganham identidade

quando contrapostas uma com a outra (WAIZBORT, 2007, p. 114-115).

Desse modo, percebe-se como Antonio Candido elege uma concepção

cientificista de sociologia, isto é, ele projeta uma sociologia da cultura que não

abarcaria o julgamento estético das obras – como se o social não adentrasse a

109

forma, como se estivesse desvinculado dela. O fato de o autor escolher justamente a

noção cientificista de sociologia é indicativo, pois só em comparação com ela pôde

diferenciar a si e o seu lugar. Em outros termos, essa concepção é estratégica para

que o autor possa deslocar sua posição da “sociologia” para a “crítica” (WAIZBORT,

2007, p.112-115).

Esses postulados (mesmo que muitas vezes informados por interesses

departamentais) trazem algumas implicações teóricas importantes. Porque, junto

com a depuração da sociologia – e de outras disciplinas – da atividade crítica, vem

também a depuração dos fatores sociais – e também históricos, psicológicos, etc. –

da concepção de forma, o que permite, ao fim, estabelecer a ideia da obra como

algo relativamente autônomo, quase jogando-a para fora do campo epistemológico

da sociologia e da história.

Pelo seu vezo interdisciplinar – uma crítica que “impura”, que lança mão de

um tipo específico de consideração sobre elementos sociais –, fica claro porque

essa concepção não pôde se solidificar academicamente dentro das Ciências

Sociais: tais características não atendiam à necessidade de especialização e

diferenciação do campo científico-sociológico naquele momento. Se dentro da

disputa interna das ciências sociais Antonio Candido teve seu projeto preterido, por

outro lado, do ponto de vista da influência no campo da cultura no Brasil, ele se

tornou predominante.

4.2 Raymond Williams

O pensamento de Raymond Williams tem inegável importância para a

sociologia, a comunicação e para os estudos literários. É bem verdade que os

estudos culturais, ao alcançarem a América de Norte, tiveram um refluxo teórico

intenso, distanciando-se do marxismo e aproximando-se do debate sobre as novas

categorias sociais (raça, gênero, orientação sexual). Nesse percurso, fica exposto

que os estudos culturais se descolaram da influência de Williams, pensador

socialista em profundo diálogo com o marxismo.

Esse processo de “popularização” dos estudos culturais caminhou

paralelamente à sua institucionalização nas academias e foi marcado por uma

apropriação pouco politizada das contribuições iniciais britânicas – ponto no qual se

entende o afastamento do marxismo, pensamento crítico e engajado. Isso, contudo,

110

não impede o reconhecimento de Raymond Williams como um fundador da

disciplina e a penetração do seu pensamento nas diversas áreas acadêmicas. O

interesse, nas duas últimas décadas, pela obra do pensador do galês é crescente,

inclusive no Brasil, onde temos um número cada vez maior de publicações com o

intuito de discutir seu legado.

Como a obra de Raymond Williams é vasta e atende a interesses das mais

diversas áreas, faz-se necessário, para os propósitos deste trabalho, indicar o foco

principal da análise. É indispensável, assim, traçar um panorama sobre a produção

intelectual do pensador galês, apontando as fases de sua carreira intelectual e quais

obras as compõem.

A carreira intelectual de Raymond Williams, segundo Blackwell (1997, p. 34),

divide-se em quatro seções: obras de estudo e crítica do romance britânico e da

dramaturgia britânica e continental, nas quais, a partir desse critério, Williams centra

a maior parte de sua produção; um segundo grupo pode ser dedicado aos trabalhos

artísticos, nos quais se encaixam seus romances e suas peças de teatro; outro bloco

é formado pelos livros dedicados à análise do desenvolvimento cultural e política da

sociedade britânica; por fim, tem-se um grupo de trabalhos gerais e teóricos, no qual

se destacam os termos da crítica cultural marxista.

Dessa forma, fazem parte da primeira parte os livros: Drama from Ibsen to

Brecht (1968), Drama in performance (1954), The english novel from Dickens to

Lawrence (1970), Orwell (1971) e The country and the city (1973); compõem a

segunda seção: Border country (1960), Sound generation (1964), Loyaltes (1984) –

romances – e Koba (fim dos anos 1950) – teatro; na terceira parte incluem-se os

livros Culture and society (1958), The long revolution (1961), Communications (1962)

e May Day manifesto (1968); por fim, a última parte é composta de Marxism and

literature (1977) e Culture (1981).

Já de acordo com Cevasco (2001, p. 182), a obra de Raymond Williams pode

ser dividida em três frentes: a primeira seria de cunho engajado ou político, com

ênfase no processo de transformação social e na derrota do capitalismo; a segunda

teria a marca eminentemente crítica, na qual o foco principal é a literatura, mas não

apenas ela; e a terceira teria natureza marcadamente teórica.

Assim, nos moldes propostos pela autora, compõem a primeira seção: The

long revolution, Towards 2000 (1983) e alguns artigos da coletânea Resources of

hope (1989), a saber: The challenge of the new social movements e Redefining

111

socialist democracy; na segunda categoria estariam incluídos Reading and criticism

(1950), Drama from Ibsen to Eliot (1952), Moderny tragedy (1966), The english novel

from Dickens to Lawrence, The country and the city e mais algumas análises

publicadas em Writing in society (1983), além dos ensaios sobre o modernismo de

The politics of modernism (2007). Ainda teríamos, dentro do grupo crítico, destaque

para duas subclasses: a da história das ideias, composta por Culture and society,

Orwell e Cobbett, este último de 1983, e análises não literárias, tais como Preface to

film, (1954), Communications e television, (1975); por fim, a última parte congregaria

Keywords (1976), Marxism and literature, The sociology of culture e os primeiros

ensaios de Problems in materialism and culture, de 1972.

A partir de Araújo Sá (2011, p. 40), outra classificação pode ser feita.

Identificam-se não quatro, mas apenas três fases na produção intelectual de

Raymond Williams: a primeira delas tem como foco a categoria de experiência para

análise da literatura e do drama; na segunda fase, percebe-se o desenvolvimento de

uma análise geral da cultura a partir da literatura, estabelecendo um diálogo com F.

R. Leavis e com a tradição britânica cultural materialista britânica; por fim, a última

fase é centrada na construção de uma teoria materialista da cultura. São obras que

compõem a primeira fase: Reading and criticism, Drama from Ibsen to Eliot, Preface

to film e Drama in performance; os livros representativos da segunda fase são

Culture and society e The long revolution; agrupam-se no terceiro e último momento

basicamente dois livros, Marxism and literature e Culture.

É possível observar que as três categorizações não necessariamente se

contradizem, chegando, em alguns pontos, a entrarem em acordo. Cada uma delas

pode ser útil a depender dos aspectos a serem salientados na trajetória de Raymond

Williams ou dos objetivos propostos nos trabalhos que delas lançarem mão. A

primeira, de Blackwell (1997), tem a vantagem de incluir dentro das subdivisões os

trabalhos artísticos de Williams, ao passo que a segunda dedica uma seção apenas

as obras de caráter político, além de abarcar os livros de ensaios publicados

postumamente.

A última categorização, contudo, não se apoia em definições gerais sobre as

obras, tais como “análise do romance britânico”, “desenvolvimento cultural britânico”

ou “obras críticas”, mas no principal pilar teórico dos livros. Por isso, vemos as fases

serem definidas como experiência, análise geral da cultura e teoria materialista da

cultura. Para os propósitos desta parte do nosso trabalho, que visa especialmente

112

discutir os sentidos da proposta teórica de Raymond Williams, a classificação de

Araújo Sá (2011) é mais fecunda.

Nosso debate, desse modo, se centrará na terceira fase do pensamento de

Williams, momento no qual ele solidifica as bases da sua teoria materialista da

cultura, que é denominado, neste trabalho, de maturidade intelectual. Além disso,

há, sem dúvidas, referências aos trabalhos das outras fases, mas estas devem

entrar como elementos que facilitam o entendimento da proposta de Williams –

principalmente para perceber o desenvolvimento de suas principais ideias e

conceitos. Orbitam, portanto, a sua produção intelectual madura, exposta em livros

como Marxismo e Literatura, Cultura e em ensaios, como Base e superestrutura na

teoria marxista, nos quais a relação com o marxismo é mais intensa.

4.2.1 A influência da tradição idealista britânica e o marxismo das obras iniciais

Antes de entrar nos termos mais precisos da interlocução de Raymond

Williams e no marxismo, que toma maior parte desta seção, é necessário ter em

mente que existe uma outra influência muito forte sobre o pensamento do autor

galês: a tradição de crítica literária britânica. Grande parte do esforço intelectual do

autor localiza-se na tentativa de ir além das tradições idealista e marxista ortodoxa.

Tendo recebido larga influência das duas correntes, a tentativa de superá-las revela-

se também em um esforço para integrá-las. Portanto, é necessário perceber qual a

crítica que Williams faz a cada uma e o que ele conserva delas no seu pensamento.

Apesar de Williams ter percebido certa cultura de esquerda quando chegou à

Universidade de Cambridge nos anos 1930, a verdade é que, já nessa época, o

debate sobre cultura era dominado pelo pensamento de Leavis, um autor

eminentemente conservador, que fazia da crítica um instrumento de proteção dos

elevados valores humanos contra os supostos males trazidos pelo progresso da

civilização.

Leavis e seus seguidores escoavam suas produções na revista Scrutiny (a

publicação se iniciou em 1932; até 1953 Leavis foi editor). Ao criticar a sociedade

britânica em plena expansão, principalmente no que tange à mudança de valores

trazida com os progressos tecnológicos da modernidade, o periódico conseguiu

ocupar um espaço privilegiado na intelectualidade britânica. Vale ressaltar que o

espaço era para a crítica literária, possivelmente a área de onde nascem os estudos

113

culturais – com isso, é possível dimensionar, pelo menos em parte, a influência que

exerceu sobre Williams.

Mesmo que a crítica à sociedade realizada pela Scrutiny fosse feita de

maneira enviesada, pois Leavis concebia o mundo como dividido entre as esfera da

cultura e da civilização, colocando a literatura em um estado fora da sociedade,

deve-se reconhecer que o leavisanismo conseguia descrever satisfatoriamente

como as experiências humanas se concretizavam na literatura, sendo “forte

exatamente no que o marxismo era fraco” (CEVASCO, 2016, p. 122). Desse modo,

Williams retém muito dessa perspectiva de tentar perceber como arte e a cultura

estão permeadas de experiências humanas reais, porém, trabalhando no polo

oposto: concebendo as obras literárias inscritas no mundo real.

No pós-guerra, além de Leavis, outro pensador, também advindo da crítica

literária, tinha grande proeminência no debate sobre cultura: o poeta T. S. Eliot. De

acordo com o autor, a cultura era algo cujo crescimento se dava de maneira

espontânea, não sendo necessário, desse modo, estimular seu crescimento, mas

apenas protegê-la e conservá-la. Fica claro que os temas presentes, rejeição à

mudança e visão negativa sobre o progresso, estão inscritos na tradição britânica,

só que de modo atualizado (CEVASCO, 2001, p. 131-134).

No entanto, Eliot cunhou a noção de cultura como um modo de vida total (ou

whole way of life), que Raymond Williams considerava importante. Por isso, Williams

também entrou em diálogo com o pensamento de Eliot, atacando-o e corrigindo-o

onde considerava pertinente: primeiro, argumentando contra a ideia de cultura como

um âmbito especializado; e segundo, ao criticar a proposição de que se deve

difundir apenas um tipo de cultura. Esse grande debate com a tradição (que Williams

quer debater e criticar) está presente em Cultura e Sociedade (CEVASCO, 2001)

Em suma, de acordo com Robinson (1991, p.80), Raymond Williams toma de

empréstimo de pensadores idealistas, como Eliot, Leavis e mesmo Richards (um dos

fundadores do New Criticism Britânico e mentor de Leavis), a concepção de cultura

como um modo de vida total, melhor expressa no próprio Eliot, que, apesar de tratar

com desdém as culturas de massa e popular, teve o mérito de reconhecer que não

apenas a arte é cultura.

No que tange ao marxismo, a discussão é mais longa. Isso porque a relação

de Williams com a herança marxista nem sempre foi intensa ao longo de sua obra,

embora seu interesse em construir um novo olhar sobre a cultura permanecesse.

114

Sabe-se que, no início de sua carreira intelectual, apesar de o marxismo estar

presente como referencial, a reformulação teórica dessa tradição de pensamento

ainda não ocupava o centro das suas atenções – o que só viria acontecer na fase

final de sua carreira. Esse movimento algumas vezes já foi chamado de progressiva

radicalização da obra de Williams, na qual o “reformismo” das obras iniciais seria

contrastado com a visão marxista mais consistente da fase final (ALCALÁ, 2010, p.

67).

O certo é que, em maior ou menor grau, a relação com o marxismo sempre

existiu. Algumas questões marcantes da fase madura já existiam inicialmente, como

a intenção de rediscutir a noção de uma esfera cultural dependente de uma

dimensão real e prática do mundo já estavam presente em Cultura e Sociedade, por

exemplo (CEVASCO, 2001, p. 137).

Essa dependência da esfera cultural era oriunda do modelo base e

superestrutura, tal como usado pela tradição marxista britânica dos anos 1930, a

única que Williams tinha acesso até esse momento. Para o autor, esse modelo

criava limitações à análise da cultura no mundo da vida prática. Por isso, em Cultura

e Sociedade, Williams pesa a mão exatamente nos pontos fracos do marxismo: a

incapacidade de conceber a centralidade da cultura nas sociedades avançadas e em

explicar satisfatoriamente as manifestações artísticas na sociedade (CEVASCO,

2001, p. 139-141).

Fica claro, pelo exposto até aqui, que a concepção de cultura de Raymond

Williams não encontrava amparo nem na tradição literária britânica, de cunho

idealista, e nem no marxismo vulgar da Grã-Bretanha de então. De modos diversos,

as duas correntes chegavam ao mesmo resultado prático: concebiam a cultura como

algo fora da sociedade, como uma dimensão contrária ao âmbito de produção

material da vida. À cultura, cabem os elementos “espirituais”: obras de arte, valores,

sentimentos; ao mundo real, os elementos materiais: alimentos, riqueza,

ferramentas, etc.

Dessa forma, Williams buscava reivindicar para a cultura e a arte o estatuto

de atividades materiais. Ao postulá-las como práticas sociais materiais, Williams

também reposicionaria o lugar da cultura para o entendimento do mundo social: ao

invés de apartada e/ou dependente de outras dimensões mais importantes – em

uma palavra, secundária –, a cultura adquiriria imensa importância para

compreensão da organização social e das relações entre grupos e classes. Entender

115

como, ao longo de sua obra, Williams ajusta seu argumento em direção à

centralidade e à materialidade da cultura, é compreender, de uma só vez, sua crítica

ao idealismo, sua relação com o marxismo e a construção de sua própria teoria

materialista da cultura.

O argumento inicial está localizado na ideia de totalidade social, do livro The

Long Revolution: para Raymond Williams, e, de acordo com isso, não faz sentido

relacionar a cultura e a arte com a sociedade: estas fazem parte da sociedade e,

portanto, nela estão inseridas como qualquer outra atividade, tais como a política, o

comércio, etc. Desse modo, o autor galês dilui a necessidade de tralhar com os

polos opostos “arte” e “sociedade”: se a primeira é uma prática inscrita na última,

basta estudar as interrelações entre todas as atividades sociais (AZEVEDO, 2014, p.

174).

Raymond Williams estava lançando mão do conceito de totalidade como uma

a alternativa às noções herdadas do idealismo e do materialismo para análise da

cultura: através dele, o pensador galês esperava não incorrer no risco de separar a

sociedade em duas esferas contrapostas. O problema é que, no mesmo gesto de

postular a materialidade da cultura, Williams a colocou no mesmo patamar de

importância de outras atividades do ponto de vista da causação histórica, ao dizer

que não deve existir concessão de prioridade a nenhuma área da sociedade ao

estudar suas inter-relações (AZEVEDO, 2014, p. 175).

Isto é, o que Williams estava sustentando, a essa altura, era que a cultura

tinha o mesmo peso que a economia ou a política para direcionar os rumos da

sociedade – era como se, espremido entre duas tradições, Williams tivesse forçado

demais seu argumento para dar ênfase a sua visão, incorrendo no erro de inflar em

demasia a influência histórica da cultura - ou, no caminho inverso, de diminuir a de

outras áreas:

Williams assinala, no bojo de um debate sobre as relações entre artee sociedade, a ambiguidade e heterogeneidade das mudanças, asquais podem ser examinadas por meio do estudo das inter-relaçõesentre atividades particulares, e não necessariamente através dahipótese de centralidade de uma área à qual todas as outrasestariam subordinadas. […] a causação histórica não é propriamentenegada, mas fica sugerido que a atribuição de prioridade a certosistema real significa necessariamente a escolha por abstrair essesistema, ignorando suas inter-relações. Uma coisa, contudo, nãoconduz obrigatoriamente à outra: afirmar a ideia de totalidade nãoimplica negar, em qualquer sentido, a noção de ordenamento causal(AZEVEDO, 2011, p. 176)

116

A mesma ênfase continua no livro subsequente de Raymond Williams,

Communicantions, no qual o autor sustenta uma equivalência entre cultura e política

na formação da sociedade. As dificuldades teóricas encontradas nos primeiros livros

do autor residem no fato de que a totalidade estava ancorada na noção de

experiência: se experimentamos/vivenciamos as estruturas sociais de maneira

unificada, é porque, de fato, elas assim o são (AZEVEDO, 2011, p. 178-179).

Os livros iniciais de Raymond Williams (Cultura e Sociedade, The Long

Revolution e Communications) têm, no entanto, o mérito de lançar as bases do que

viria, futuramente, a ser chamado de materialismo cultural e que tem como

fundamento a noção que as estruturas econômicas, políticas e simbólicas são

inseparáveis – elemento que dá o tom o de continuidade à carreira intelectual do

pensador galês (AZEVEDO, 2011, p. 179).

Dessa maneira, o autor só consegue ajustar os termos de seu pensamento

um pouco mais tarde, naquilo que, neste trabalho, chamou-se de fase madura da

sua produção intelectual. Em Marxismo e Literatura, Williams deixa de lado o foco no

conceito de experiência, porque ele próprio oferecia limites à percepção da

totalidade social, e passa a trabalhar com a ideia de que os processos sociais têm a

mesma especificidade: por serem todos materiais, são comuns uns aos outros. Ao

realizar essa operação, o pensador galês deixou de lado a exigência da equivalência

histórica causal entre as diferentes estruturas sociais e passou a focar no processo

social como indivisível. Em outras palavras: não há mais a negação de que existem

assimetrias causais, apenas a afirmação de que os elementos sociais estão unidos

no processo social (AZEVEDO, 2014, p. 180-181).

Essa nova abordagem teórica também permitiu o avançar das proposições

em outra direção: no reconhecimento de que existem diferenças temporais na

formação e no desenvolvimento das estruturas. Assim, Raymond Williams conseguiu

o máximo de refinamento de sua proposta teórica, que pode ser resumida da

seguinte forma: “os procedimentos econômicos e políticos organizam a vida social.

Já a cultura é o campo por meio do qual essa organização se expressa no concreto,

na forma de um modo de vida real” (AZEVEDO, 2014, p. 183).

A confecção dessas premissas teóricas é de extrema importância, pois é o

ponto no qual Williams busca equalizar as duas tradições de pensamento que lhe

influenciaram. Ao reestabelecer a primazia de certas práticas sociais (como as

117

sociais e as políticas) sobre o processo de desenvolvimento histórico, o autor

encaixa seu pensamento nos postulados mais básicos do marxismo; e, ao recolocar

a experiência como o maneira pela qual, através de certos padrões, experimentando

essa complexa conjunção de fatores políticos e sociais, ele preservou o que

considerava importante da tradição idealista.

É demasiado importante frisar: com essas propostas, Williams não tem receio

em salientar que existem fatores causais que operam sobre as forças artísticas –

não ao modo do marxismo vulgar, para o qual a economia quase que prescreve as

manifestações de arte de uma época, mas no sentido de que todas as forças

materiais (e a cultura aí inclusa) pressionam, em um certo sentido, as formas de arte

de um tempo – ao mesmo tempo que resguarda a autonomia da atividade artística –,

porque ela agora não depende mecanicamente de outras dimensões da sociedade.

Grande parte do debate que dominou a sociologia da arte por longo tempo

girou em torno, justamente, da necessidade de equilibrar o idealismo e o

materialismo: reduzir demasiadamente a atividade artística, de modo que seja vista

apenas como epifenômeno de outras áreas mais importantes, nem inflar a

autonomia da arte a um ponto em que ela se desconecte do mundo social:

Ao escolher como campos centrais do livro o marxismo e a literatura,Raymond Williams nos apresenta duas grandes tradições a partir dasquais desenvolve sua teoria da cultura, opondo-se, na primeira, àrigidez de certos modelos que não davam conta das complexidadesda sociedade e, na segunda, ao seu idealismo exacerbado(GLASER, 2008, p. 77).

Para entender os termos mais profundos dessa proposição, o materialismo

cultural, faz-se necessário analisar, detalhadamente, como ela se constrói em

Marxismo e Literatura. Nesse movimento, poderemos responder a algumas

perguntas: como conceber a cultura como força material produtiva? Qual a crítica de

Raymond Williams ao modelo base e superestrutura da teoria marxista e qual sua

relação com os pensadores do marxismo ocidental? Quais conceitos, em

contrapartida, são utilizados pelo autor galês?

Figura 4 – Capa do livro Marxismo e Literatura

118

4.2.2 A materialidade da cultura em Marxismo e Literatura

O primeiro movimento teórico de Raymond Williams é retirar a ênfase da

noção base e superestrutura e focar em outra premissa marxista, a de que o ser

social determina a consciência. A passagem inicial de Marxismo e Literatura é

idêntica a do ensaio Base e superestrutura na teoria marxista:

Qualquer abordagem moderna de uma teoria marxista da culturadeve começar pelo exame da proposição de uma infra-estruturadeterminante e de uma superestrutura determinada. De um ponto devista rigorosamente teórico, não será este, talvez, o ponto de partidaque escolheríamos. Seria preferível, sob muitos aspectos, sepudéssemos começar com uma proposição que originalmente eratambém importante e também autêntica: a proposição de que o sersocial determina a consciência. As duas proposições não se negamnecessariamente nem se contradizem. Mas a de infra-estrutura, comseu elemento figurativo e com sua sugestão de uma relação espacialfixa e definida, constitui, pelo menos em certas mãos, uma versãomuito especializada e por vezes inaceitáveis da outra proposição.Mas na transição de Marx para o marxismo, e no desenvolvimento dacorrente principal do próprio marxismo, a proposição da infra-estrutura determinante e da superestrutura determinada foiconsiderada, comumente, como sendo a chave da análise culturalmarxista (WILLIAMS, 1979, p. 78).7

7 Essa citação também pode ser encontrada em WILLIAMS, 2014, p. 43.

Fonte: Williams (1979)

119

Pelas palavras de Williams (1979), percebe-se que ele critica, é claro, a

centralidade do modelo base e superestrutura para a análise da cultura dentro da

tradição marxista, mas também os sentidos e os usos desses termos – isto é, ao que

certa tradição marxista quer referir-se quando os utiliza. Por isso, o primeiro passo

de Williams foi discutir os significados que esses termos possuem – alterando-os,

quando possível, e substituindo-os, quando necessário.

Williams (1979, p.82) assinala que os usos dessas palavras por Marx tinham

sentidos metafóricos, não assertivos. Mas, na “transição de Marx para o marxismo”,

as palavras foram trabalhadas como se tivessem significados extremamente

delimitados com a função de descrever áreas observáveis do mundo social. Se,

portanto, inicialmente, em Marx, as palavras foram utilizadas para enfatizar uma

relação, posteriormente, elas passaram a significar ou categorias fechadas ou áreas

fechadas de atividades. Contradição maior, na visão do autor, justamente porque

Marx queria argumentar, não a favor, mas contra a separação da sociedade.

A superestrutura teve, comumente, três sentidos: o de formas jurídicas e

políticas que expressam relações de produção reais e existentes, o de formas de

consciência que expressam uma determinada visão de classe do mundo e, por

último, um processo no qual os homens se tornam conscientes de um conflito

econômico e tentam solucioná-lo. Respectivamente, cada um desses sentidos

coloca o foco em: instituições, formas de consciência, práticas culturais e políticas.

Assim, o que o autor questiona não é o simples reconhecimento do fato de, no

mundo real, essas áreas estarem interligadas (muitos autores, pelo menos em seus

preceitos teóricos, o fazem), mas a questão de que o conceito, quando usado, é

aplicado separadamente a uma dessas áreas (WILLIAMS, 1979, p. 81).

No caso da base, Williams (1979) nota que o termo passou a ser tomado

quase como um objeto material – uma percepção reduzida de uma existência

material – e revestida de propriedades muito gerais e uniformes. Para o pensador

galês, só quando se compreender que a base é, na verdade, um processo dinâmico

e contraditório é que será possível se livrar das noções de área ou categoria; para

ele, “não é a base e a superestrutura que necessitam de estudo, mas os processos

reais específicos e indissolúveis” (WILLIAMS, 1979, p. 85-86).

Após criticar os sentidos dos termos base e superestrutura, o próximo passo

foi reavaliar a noção de determinação também cara ao marxismo e que preconiza as

relações materiais e/ou econômicas de uma sociedade impostas sobre as formas

120

culturais, direcionando sua forma e seu conteúdo. Essa proposição é o ponto de

apoio das análises marxistas para a cultura. É por causa dela que o marxismo é

comumente acusado de não reconhecer a especificidade da cultura ou da arte, que

passa a ter existência secundária e dependente de um fator econômico com força

primordial.

Segundo Williams (1979), dado que o marxismo tem como premissa teórica a

noção de que as condições objetivas (isto é, aquela dimensão de onde parte a

determinação) são o resultado das ações dos homens, a verdadeira polarização se

dá entre uma objetividade histórica, entendida como as condições acessíveis aos

homens numa certa época, e uma objetividade abstrata, na qual o processo histórico

adquire um sentido absoluto e os homens não podem controlá-lo – o determinismo

abstrato é, ele próprio, um fruto de um momento histórico, no qual a força da

sociedade capitalista fez com que as pessoas sentissem que não tinham controle

sobre o processo histórico (WILLIAMS, 1979, p. 89-90).

Se, então, a sociedade e o processo histórico não podem ser desvinculados

dos indivíduos e das vontades destes, o conceito de determinação ganha outro

sentido: não apenas o de estabelecer limites, mas também o de exercer pressões:

isto é, determinar que algo seja feito, estar disposto fazê-lo – como um ato de

vontade individual. Essas são as determinações positivas – sentidas como algo

individual, mas sempre sociais –, que mantém relações complexas com as

determinações negativas, os limites para as ações (WILLIAMS, 1979, p. 91).

Portanto, de acordo com Williams (1979), a sociedade não pode ser vista

como algo inerte, que tem apenas a característica de tolher a ação dos homens, ela

é um processo constitutivo dessas ações, pois se expressa em formações políticas,

econômicas e culturais internalizadas pelas pessoas. Feita a ressignificação do

termo, o autor o liga à sua noção de totalidade: essa determinação – positiva, que

impele a algo ou impulsiona ação – não está em uma área específica da sociedade,

abstraída e isolada, mas no todo do processo social (WILLIAMS, 1979, p. 91).

A internalização de impulsos sociais, expressos em formas culturais, é um

ponto fundamental da discussão, pois é o modo como Williams (1979) soluciona a

questão de como a arte é um fenômeno eminentemente social, uma prática social no

seu dizer, abrindo o caminho para análises das obras de forma coletiva: ao analisar

a arte, estamos analisando toda uma experiência social que é compartilhada pelos

membros grupo.

121

Uma vez redefinido o sentido de determinação, Williams (1979) embarca no

desafio de discutir o termo forças produtivas: quando se evoca essa expressão

dentro do marxismo, ao que se quer remeter? Primeiro, de acordo com o pensador

galês, é necessário atentar para o fato de que o capitalismo é um tipo histórico

particular de produção, isto é, um capítulo de uma história geral da produção, mas o

problema se estabelece porque se utilizam os termos que caracterizam a produção

capitalista para também indicar o que é o processo geral de produção. A discussão

torna-se mais pertinente se atentarmos que Marx, em grande parte de sua obra,

argumentava justamente contra as pretensões de universalidade do modo capitalista

de produção (WILLIAMS, 1979, p. 93).

Como consequência dessa discussão, Raymond Williams tenta definir, do

modo mais geral possível, as forças produtivas, dissociando-as das forças

produtivas capitalistas:

O que é, então, uma “força produtiva”? É qualquer um dos, e todosos meios de produção e reprodução da vida real. Pode ser um tipoparticular de produção agrícola ou industrial, mas esse tipo já é certomodo de cooperação social e a aplicação e desenvolvimento de certocorpo de conhecimento social. A produção dessa cooperação socialespecífica, ou desse conhecimento social específico, é realizadapelas forças produtivas. Em todas as nossas necessidades, nomundo, produzimos não só a satisfação de nossas necessidades,mas também novas necessidades e novas definições dasnecessidades. Fundamentalmente, nesse processo históricohumano, produzimos a nós mesmos e nossas sociedades, sendodentro dessas formas em desenvolvimento e variáveis que a“produção material”, em si mesma variável tanto em modo comoâmbito, é realizada (WILLIAMS, 1979, p. 94).

Williams (1979) sustenta que, se a produção, nas sociedades capitalistas,

indica apenas a produção de mercadorias, então, outros termos, cuja função é

provocar confusão, são utilizados para as outras formas de produção. E conclui:

O que se suprime com mais frequência é a produção material de“política”. Não obstante, qualquer classe dominante dedica uma partesignificativa da produção material ao estabelecimento de uma ordempolítica. A ordem social e política que mantém o mercado capitalista,como as lutas sociais e políticas que o criaram, é necessariamenteuma produção material. Dos castelos, palácios e igrejas até asprisões, oficinas e escolas; das armas de guerra até uma imprensacontrolada: qualquer classe dominante de várias maneiras, massempre materialmente, produz uma ordem social e política. Taisatividades não são nunca superestruturais. São a produção materialnecessária dentro da qual só um modo aparentemente auto-subsistente de produção pode ser realizada (WILLIAMS, 1979, p. 96,grifos do autor).

122

Essa é uma das passagens mais conhecidas de Marxismo e literatura,

possivelmente porque ela indique o que é, ou onde estaria, a materialidade de uma

atividade (a política), comumente realocada para superestrutura e, por conseguinte,

não material. Raymond Williams lidou com críticas a essa passagem em A Política e

as Letras, uma série de entrevistas conduzidas por Perry Anderson, Anthony Barnett

e Francis Mulhern, à época (entre 1977 e 1978) membros do comitê editorial da New

Left Review.

Nessa série, os entrevistadores acusam Williams de criar uma circularidade

na definição dos elementos da ordem social: são todos iguais porque são todos

materiais. Argumentam ainda que existem formas de matéria mais materiais do que

outras, afirmando que fábricas e maquinários são mais necessários à economia

capitalista industrial do que tribunais ou prisões e que armamentos de guerra e

imprensa controlada dependem de um processo industrial primário. A crítica também

se estende à falta de reconhecimento do peso qualitativo de certas atividades, como

a industrial, que, nesse sentido, teria mais força para interromper o pleno

funcionamento da economia capitalista do que outras atividades (WILLIAMS, 2013,

p. 358-361).

Williams (2013) reconhece, sem considerar uma concessão, que existem

formas de produção material que precedem outras: produção de alimentos e

abrigos, por exemplo. Mas a questão está em uma correção histórica: a centralidade

desse tipo de produção é relativa à sociedade descrita por Marx, que atacava

diretamente a dificuldade em satisfazer as necessidades humanas mais básicas no

capitalismo. Nas sociedades avançadas, esse tipo de produção ocupa uma parte

muito menor da economia; e quando se move para além desse âmbito, entram em

uma ordem que é política e cultural (WILLIAMS, 2013, p.359-360).

A explanação de Williams (2013) se torna mais clara quando ele argumenta

que a hierarquia das produções, isto é, a definição de que tipo de produção tem

preferência e mais peso qualitativo, não acontece em uma esfera à parte, onde se

imagina o que é importante para vida, e depois passa à execução, mas ocorre

dentro de uma certa ordem cultural, um espaço de disputa a respeito do que é mais

necessário para uma sociedade. Desse modo, deve-se observar como as

sociedades organizam a sua produção, e, nelas, o que tem mais peso: a título de

exemplo, uma greve no setor de informações e de entretenimento nos EUA tem o

123

poder de provocar um caos social, pois esse setor ocupa uma posição fulcral

naquela ordem social (WILLIAMS, 2013, p. 361-362).

Possivelmente é este trecho da entrevista da New Left Review a qual

Azevedo (2014, p. 182) se refere quando afirma que a formulação tardia de Williams

(a de Marxismo e Literatura) sofreu críticas de circularidade. De acordo com

Azevedo (2014), a acusação é injusta porque não se pode polarizar as posições

marxistas entre o reconhecimento de que diferentes estruturas têm mais peso causal

e a equivalência de eficácia causal, típica dos trabalhos iniciais de Williams.

Isso, por outro lado, também indica a necessidade de sempre relacionar a

teoria de Raymond Williams com a leitura histórica. Entre a formulação de Marxismo

e Literatura e as respostas de A Política e as Letras, o ponto principal foi a correção

histórica: entre aquilo que Marx analisou (sociedade de seu tempo) e o que próprio

Williams tinha em mente quando formulou seus pressupostos (do modo como

expostos em Marxismo e Literatura), o pensador galês dizia insurgir-se contra a ideia

de que a produção industrial é foco da sociedade britânica (WILLIAMS, 2013, p.

361).

Vê-se, desse modo, que Raymond Williams não está centrado na discussão

do que é superestrutural. Dito de outro modo, o interesse dele não é colocar a

cultura na “infraestrutura” da sociedade, mas se pautar pela premissa de que o ser

social determina a consciência, o que coloca as contradições essenciais da

sociedade não mais entre o que uma esfera social prescreve a outra, mas entre as

relações de produção (como vimos, a cultura também ganha o estatuto de força

produtiva) e as relações sociais, as formas de consciência de um tempo (GLASER,

2008, p. 121).

Esse é o recuso utilizado por Raymond Williams para fugir de uma prática

bastante comum no marxismo ao analisar obras de arte: a de comparar, seja o

conteúdo ou seja a forma da obra, a uma realidade social correspondente. Isso

levou muitas vezes ao erro de acusar uma obra de não retratar adequadamente o

mundo social ao qual pertence, não raramente por algum tipo de desvio ideológico –

o que acarretou a criação de um controverso sistema de valor dentro do

materialismo: as obras boas seriam aquelas que conseguiriam retratar fielmente a

sociedade.

Essa postura, de procurar nas obras de arte algo que espelhe o mundo social,

é chamada de teoria do reflexo e, para Raymond Williams, ela foi uma consequência

124

do modelo teórico base e superestrutura. A análise e o julgamento das noções de

reflexo e mediação nascem da discussão central da metáfora base e superestrutura,

porque, para Williams, as primeiras são decorrentes da segunda: conceitos práticos

que se prestaram a operacionalizar os postulados marxistas. Isso levou o pensador

galês a ingressar numa longa jornada de revisão do marxismo.

Para o autor, a teoria do reflexo depende da tendência a se conceber as

esferas sociais (infra e superestrutura) como objetos. Assim, a infraestrutura poderia

ser estudada antecipada e separadamente por meio do conhecimento científico, e

seus reflexos julgados de acordo com um paralelismo, ou não, com a realidade

previamente estabelecida. A teoria do reflexo foi refinada e passou a conceber a

realidade não como objeto, mas como um processo regido por leis. O pensador

galês considera que dessa maneira é uma teoria insatisfatória, pois tende a

objetificar o processo e seus reflexos por meio da adequação a essas leis

(WILLIAMS, 1979, p. 99).

A teoria do reflexo encontrou uma concorrente no marxismo, que não mais

pregava a necessidade de encontrar realidades refletidas na arte, e sim colocar a

ênfase na intersecção entre as diferentes esferas – sociedade e arte, infra e

superestrutura –, a teoria da mediação. A partir dessa perspectiva, o conteúdo

original do mundo social é mediado até encontrar sua expressão em formas

artísticas. Nesse sentido, as realidades sociais estariam projetadas ou disfarçadas

nas obras – acompanhada do conceito de ideologia, esta perspectiva buscou muitas

vezes “desmascarar” o social por trás da arte (WILLIAMS, 1979, p. 101).

Outra versão da teoria da mediação veio com a Escola de Frankfurt, para a

qual as mediações envolvidas não poderiam ser tratadas apenas em termos de

disfarces de uma realidade, pois todas as relações ativas entre os tipos de ser e

consciência são inevitavelmente mediadas. Desse modo, a mediação não estaria em

algum ponto entre a obra e a sociedade, mas no objeto mesmo, dado que ela não é

algo separável das relações, mas, pelo contrário, constituinte desse processo

(WILLIAMS, 1979, p. 101).

A contribuição da Escola de Frankfurt pode ser vista como a primeira grande

mudança, na teoria do reflexo, dentro da tradição marxista. Os pensadores do

125

instituto (não só Adorno8 e Horkheimer9, mas também Marcuse10) consideravam a

cultura como uma esfera relativamente autônoma, embora tenham enfatizado que,

no contexto capitalista avançado, a cultura (dessa vez, cultura de massa ou

comercial) pudesse estar associada à lógica de produção de mercadorias, perdendo,

assim, a capacidade crítica e a autonomia. Contudo, o ponto central aqui é o

reconhecimento da complexa relação dialética da cultura na era burguesa – uma

cultura que ao mesmo tempo nega e afirma o desejo humano de emancipação

(ROBINSON, 1991, p. 71-72).

No entanto, os teóricos de Frankfurt ainda estão presos numa visão dualista

da sociedade, entre cultura e economia. A recorrente separação entre o simbólico e

o econômico perpetua a suposição de que existe uma esfera primária e outra

secundária na sociedade (ROBINSON, 1991, p. 75). É precisamente essa a crítica

de Williams:

É difícil ter certeza do quanto se pode ganhar substituindo a metáforada “mediação” pela metáfora do “reflexo”. De um lado, ela vai alémda passividade da teoria do reflexo; indica alguma forma de processoativo. Por outro lado, em quase todos os casos, perpetua umdualismo básico. A arte não reflete a realidade social, asuperestrutura não reflete a base, diretamente: a cultura é umamediação da sociedade. Mas é praticamente impossível manter ametáfora da “mediação” (Vermittlung) sem certo senso de áreasseparadas e preexistentes, ou ordens de realidade, entre as quais oprocesso de mediação ocorre, quer de maneira independente, querdeterminado pelas suas naturezas anteriores (WILLIAMS, 1979, p.102, grifos do autor).

Sabe-se que Williams (1979) sustenta a inseparabilidade do processo social,

ou das áreas que o compõem, e a materialidade da linguagem e da cultura. As

teorias dualistas tendem a interpretar a produção e a reprodução como se elas se

referissem, respectivamente, ao processo primário da economia e ao processo8 Theodor Adorno (1903 – 1969) foi um filósofo alemão de orientação marxista. Fundou a

chamada Escola de Frankfur ao lado de Horkheimer. Suas maiores contribuiçõespassam pelo debate sobre a sociedade de consumo e pela construção do conceito deindústria cultural.

9 Max Horkheimer (1895 – 1973) foi um filósofo alemão responsável pela fundação daEscola de Frankfurt. Fundamentou a noção de uma teoria crítica, que parte de uma visãototalizante das relações sociais, e se opõe ao ideal científico típico da Modernidade, arazão instrumental.

10 Herbert Marcuse (1898 – 1979) alemão, filósofo e também membro da Escola deFrankfurt. Ganhou notoriedade por aliar marxismo e psicanálise, sustentando que ocapitalismo é responsável pela repressão e domesticação dos impulsos vitais dos sereshumanos.

126

dependente dos símbolos, impedindo, assim, uma visão total da sociedade

(WILLIAMS, 1979, p. 102-103).

Toda esse percurso de revisionismo teórico marxista – também um esforço

para superar a crítica literária leavisiana –, principalmente no que tange à crítica do

modelo base e superestrutura, no conjunto de definições incluído nele e na natureza

da noção de determinação, teve como ponto de partida o encontro o pensamento de

Georg Lukács e Lucien Goldmann, uma versão do marxismo mais facilmente

adaptável aos seus interesses (ALCALÁ, 2010, p. 69). É importante saber, então,

quais as contribuições de Lukács e Goldmann e se e como Williams avança em

relação a elas.

De acordo com Robinson (1991), Lukács se posicionou contra a ortodoxia

dentro do marxismo, além de enfatizar as noções de totalidade e dialética. A

totalidade, concepção tomada de empréstimo de Hegel, busca dar a primazia ao

todo em detrimento das partes, resistindo à abstração da cultura e da economia

como esferas distintas do mundo social. Do ponto de vista das análises, Lukács

argumenta que o conteúdo dos textos deve ser estudado, mas esse conteúdo deve

ser localizado dentro de toda uma gama de experiência social. Assim, os elementos

intrínsecos ao texto (o que o trabalho diz) devem estar integrados aos elementos

extrínsecos (como o trabalho está embutido na realidade social) (ROBINSON, 1991,

p. 75-76).

Para explicar como os elementos intrínsecos e extrínsecos se conectam ao

texto, Lukács constrói a teoria da tipificação: os textos culturais têm sua origem na

experiência, mas os artistas tentam simbolicamente representar os “tipos” ou

“universais” existentes nos fenômenos particulares e reveladores do todo. A teoria da

tipificação sugere que o artista é capaz de criar “tipos” que possuem validade

universal, mas que são historicamente específicos, por meio dos quais os indivíduos

podem perceber o todo ou totalidade social – a boa arte, nesse direcionamento,

apresentaria imagens que integrassem os fenômenos individual e universal em um

estado de unidade e completude (ROBINSON, 1991, p. 76).

Não é difícil perceber o que atraiu Williams para essa perspectiva: tanto a

ênfase na questão da totalidade do processo social quanto o foco na experiência do

artista, ao mesmo tempo individual e social e ponto de partida para ele retirar da

alçada do idealismo a criação artística. No entanto, na visão de Williams, Lukács

ainda parece resguardar o dualismo das teorias do reflexo e da mediação: a visão

127

de que a arte deve representar a totalidade pressupõe a distinção entre uma

realidade sócia e uma forma cultural já conhecida e abstraída. Essa concepção

parece sugerir que o processo social material deve ser analisado como uma

formação estática, o que só pode ser sustentado se as ações humanas e os

processos sociais forem concebidos como objetos (ROBINSON, 1991, p. 77).

São esses os termos da crítica de Williams (1979, p.106): a premissa de que

existe uma realidade reconhecível, a partir da qual se extrai uma tipificação que

posteriormente poderá ser verificada no estudo das obras. Para o pensador galês,

isso ainda retém noções dualistas de análise.

No caso de Goldmann, segundo Robinson (1991), a ênfase também recai em

um forte senso de totalidade social como ponto de partida da análise cultural. O

diferencial da contribuição do sociólogo francês fica por conta da construção de uma

teoria da correspondência (ou da homologia), na qual as obras individuais

simbolizam (ou expressam) a visão de mundo de um determinado grupo social. Essa

visão de mundo constitui o todo da vida social e intelectual de um grupo e nasce da

vida econômica e social desse grupo, fazendo com que elementos aparentemente

desconexos – autor, texto e classe social – sejam vistos de modo unitário, através do

reconhecimento das homologias existentes entre eles. O estruturalismo genético de

Goldman estabelece, desse modo, a correspondência entre ordem social, ideologia

e formas culturais (ROBINSON, 1991, p. 78).

As limitações da teoria de Goldmann residem, primeiro, no fato dele analisar

textos que corroboram sua premissa, ignorando outros que poderiam contradizê-la –

tornando-a, na prática, seletiva. Segundo, na tentativa de traçar a correspondência

entre textos culturais e ordem social, essa ordem cultural é dada em uma forma

estruturada e abstrata, tendendo a ignorar as práticas e processos ativos que

compõem a ordem social. Assim, a teoria de Goldmann depende de uma história

conhecida, estruturas conhecidas e produtos já conhecidos (ROBINSON, 1991, p.

79).

Mesmo reconhecendo que não são exatamente a mesma coisa, Williams

(1979, p.108) aponta que as teorias da correspondência ou da homologia podem ser

variantes sofisticadas da teoria do reflexo, porque um dado fenômeno cultural só

ganha sentido quando é considerado uma forma de um processo ou estrutura social

geral. Portanto, nessa perspectiva, a obra de arte é uma estrutura social

128

formalizada, isto é, arte e estrutura não são processos, mas objetos já acabados e

definidos.

É importante observar, em termos mais precisos, a crítica de Williams (1979):

a teoria da homologia não busca a análise de um “processo imediatamente

observável”; se apoia em um estudo histórico já concluído e em um estudo da

estrutura social, na qual uma forma geral se tornou evidente – a partir disso, casos

específicos dessa forma geral podem ser descobertos (não no conteúdo, mas na

forma) e correlacionados à forma geral (WILLIAMS, 1979, p. 108).

Nesse momento, há um ponto chave da discussão, porque Williams não está

apenas atacando a permanência do dualismo herdado do modelo base e

superestrutura, mas expondo uma de suas preocupações centrais: a necessidade de

focar, não em elementos já acabados e conhecidos, mas em processo imediatos e

palpáveis, isto é, analisar algo que esteja próximo da experiência real das pessoas.

É nesse sentido que deve ser entendida a crítica de que as teorias da

correspondência ou da homologia dependem de uma história, estrutura ou produtos

conhecidos.

Williams (1979), então, expõe a insuficiência dessas teorias para tratar

elementos imediatos e processuais. Para que fazer uma análise de fenômenos já

conhecidos? Apenas para provar a característica social da arte? Não que essa

relação entre arte e sociedade tenha sido sempre autoevidente (tanto o debate geral

no campo de estudos artísticos quanto o debate contextual de Raymond Williams

com o idealismo britânico estavam atravessados por essa questão), mas as teorias

da homologia propõem análises que são, na prática, limitadas: e quando as

evidências históricas e artísticas disponíveis não confirmarem a correlação que é

dada como premissa? Caminha por aqui a crítica à seletividade, porque a tendência

a negligenciar os fenômenos que se negam é grande.

Desse modo, a revisão teórica de Raymond Williams o levou não só a

desconstruir os sentidos arraigados do modelo base e superestrutura, mas também

a mostrar como todas as inovações teóricas subsequentes (teorias do reflexo ou da

mediação, teorias formalistas ou superestruturalistas da correspondência ou da

homologia) não conseguem explicar satisfatoriamente a prática artística

contemporânea. E, nesse ponto, o autor deixa claro por qual caminho vai seguir sua

própria inovação teórica.

129

Para Raymond Williams (1979), a análise dos processos e das relações

sociais envolve muito mais do que a manipulação das formas fixas, isto é, dos

elementos acabados da estrutura social. Ao fazer isso, Williams quer explorar as

áreas ou ignoradas ou subvalorizadas pelas metáforas da totalidade dominantes no

pensamento do século XX, tais como estrutura, código ou sistema. Essas zonas não

exploradas são aquelas preenchidas pelos sentimentos e pela experiência, por

exemplo (RIQUELME; PARDO, 2014, p. 176).

A inovação teórica de Raymond Williams – o conceito de estrutura de

sentimentos – aborda a tendência do pensamento cultural em transformar os fatos

da experiência social em produtos reificados da observação impessoal: aquilo que

ainda estamos vivendo é transformado em uma totalidade já acabada. Desse modo,

o conceito de estrutura de sentimentos visa justamente a uma reconstrução

totalizante e experiencial – isto é, não reificada – dos significados e valores são

vividos como uma realidade histórica particular que os organiza. Além disso, não são

reduzidos a sistemas formalizados de crenças: a distribuição é caracteristicamente

afetiva e manifestada em formas vividas de experiência individual e transindividual

(ALCALÁ, 2010, p. 75). De acordo com as palavras do pensador galês:

Se o social é sempre passado, no sentido de que é sempre formado,temos na verdade de encontrar outros termos para a experiênciainegável do presente: não só o presente temporal, a realização desteinstante, mas o presente específico de ser, o alienavelmente físico,dentro do que podemos realmente discernir e reconhecerinstituições, formações, posições, mas nem sempre como produtosfixos, definidores (WILLIAMS, 1979, p. 130).

Sabe-se que essa ênfase, na experiência e na própria noção de cultura como

uma totalidade, Williams herdou do idealismo britânico, mas como a totalidade de

Eliot era vazia – exatamente porque a ela faltava um sentido de determinação que

pudesse responder como a cultura é organizada e estruturada, como a cultura muda

e qual é o papel da agência nessa mudança –, o pensador galês elabora o conceito

de estrutura de sentimento. Assim, a estrutura de sentimento serve como princípio

organizador do “modo de vida total”. Ela descreve, em um nível muito geral, um

padrão de experiência social tal como vivido (ROBINSON, 1991, p. 81).

O conceito quer captar tudo de firme que o termo estrutura pode sugerir e

todas as áreas delicadas e menos tangíveis que a noção de experiência pode

abarcar, indicando um modo particular de vida como resultado de todos os

elementos da organização social (WILLIAMS, 1961, p. 48), tornando clara a intenção

130

experiencial de designar um modo de vida prático e a noção totalizante, porque

resultou, não de uma, mas de todas as formas de determinação social (econômica,

política, cultural).

Para Robinson (1991, p. 81-82), a estrutura de sentimentos descreve

vagamente as expressões formais e informais do mundo social e material. Essas

expressões são estruturadas no sentido de serem formalmente mantidas e

sistematicamente articuladas – são estruturas de significação. Mas elas também são

ativamente sentidas e vividas. Como consequência, a estrutura de sentimentos se

refere, ao mesmo tempo, à organização formal da cultura e à maneira pela qual ela

é vivida e sentida.

Portanto, pode-se sustentar que a noção de uma estrutura de sentimentos faz

parte da tentativa de Williams (1979) de integrar as tradições idealista e materialista

para análise cultural: do lado idealista, percebe-se a influência na ênfase que ele dá

ao papel que as forças expressivas e os sentimentos têm na definição do significado

de experiência. Aqui, fica clara a herança que Williams tem do Romantismo, com a

celebração do poder expressivo e criativo dos seres humanos. No entanto, qualquer

traço elitista é rapidamente afastado, pois o crítico galês nega qualquer privilégio ao

artista talentoso ao afirmar que a comunicação cultural é representativa de uma

criatividade humana geral e compartilhada. Por fim, Williams ainda argumenta que a

cultura não pode ser entendida isoladamente – ela faz parte de uma ordem material

e social (ROBINSON, 1991, p. 82-83).

Portanto, a formulação de uma estrutura de sentimentos representa uma

tentativa de congregar as noções objetivista e subjetivista de cultura – a cultura, de

uma só vez, expressa e ilumina ideias e pensamentos de sujeitos sociais, mas

também se articula com estruturas sociais objetivas (ROBINSON, 1991). Essa

intenção integrativa já estava presente nas primeiras caracterizações do conceito,

que remetem às obras Preface to Film e The Long Revolution. Nelas, Raymond

Williams já salientava que a experiência de viver no mundo é inseparável de um todo

complexo e é a partir dessa totalidade que o artista cria suas obras.

Nessas obras, o pensador galês estava tentando se contrapor às visões

dominantes que definiam a prática criativa, que se encontravam fundadas nas

oposições sujeito/objeto e arte/realidade. Estas constituíam uma falsa descrição,

dado que a própria atividade humana, da maneira como Williams a tenta definir,

rechaça essa dualidade, porque consciência e realidade fazem parte uma da outra

131

no processo geral de organização de um modo de vida. Assim, o ato de criar

relaciona-se com a totalidade da experiência sensorial com objetivo de ligá-lo à vida

social, e a comunicação humana é um processo total, sem oposições ou dualismos

(RIQUELME; PARDO, 2014, p. 177-179).

No entanto, essas formulações iniciais foram duramente criticadas, inclusive

por colegas seus, a exemplo de E. P. Thompsom, para quem a vertente idealista era

muito mais forte na proposição integrativa de Raymond Williams, notada, sobretudo,

na propensão a definir a cultura como um todo abrangente. Para Thompson,

considerar a cultura como um modo de vida total é ignorar os confrontos e as lutas

entre modos de vida opostos. Nessa perspectiva, Williams não daria conta do fato

de que a cultura é estruturada em relações de dominação e subordinação, e a

estrutura de sentimentos, assim como outras teorias idealistas, encobria essa

questão (ROBINSON, 1991, p. 86).

Essa crítica levou Williams a rever suas formulações iniciais por meio de uma

outra contribuição teórica fundamental: a noção gramsciana de hegemonia, que

abriu o conceito de estrutura de sentimentos para uma dimensão ausente nos

primeiros trabalhos – a de determinação como estabelecimento de limites e o

exercício de pressões, conforme posto em Marxismo e Literatura, o que, por sua

vez, implica um senso de poder constituído (ROBINSON, 1991).

De fato, a vantagem da noção de hegemonia em relação à de totalidade é

que a primeira não ignora a específica intencionalidade de classe de uma formação

social. A ideia de totalidade oferecia o ganho de fundamentar uma explicação sem

prefigurações ou determinismo abstratos, mas corria o risco empobrecer o que o

modelo base e a superestrutura melhor evidenciavam: a intenção social, o caráter de

classe uma dada sociedade (ALCALÁ, 2010, p. 71).

A lógica da hegemonia pressupõe uma totalidade na qual os fatos da

dominação de classe são afirmados não em um senso especializado e abstrato, mas

de uma maneira complexa e multifacetada, até o ponto de constituir o senso comum

da maior parte das pessoas. Na derivação gramsciana, a hegemonia deve ser

diferenciada de domínio, que se refere ao controle político em dada formação social.

A hegemonia indica uma efetiva penetração de classe e uma específica distribuição

de poder através do tecido social, que não é restrito a nenhuma esfera especializada

(ALCALÁ, 2010, p. 72).

132

Assim, de acordo com Williams (1979), o conceito de hegemonia avança em

relação ao de ideologia. Este último indica um sistema relativamente formal e

articulado de significados, valores e crenças, compreendido nos termos de uma

visão de mundo. Mas, para o autor, o que importa não é apenas o sistema

consciente de ideias e crenças, mas todo o processo social vivido, organizado por

significados específicos e dominantes. Para tanto, a ideia de hegemonia parece

atender bem aos propósitos, pois não reduz a consciência ao sistema formal de

significados e valores: na verdade, enxerga as relações de subordinação e

dominação como consciência prática, como resultado da saturação de todo o

processo de vida, não só de atividade social manifesta, mas de toda a gama de

identidade e relações vividas, a tal ponto que as pressões e limites do que, em

última instância, é o sistema político, econômico e cultural, percebido apenas como

pressões e limites da experiência e do bom senso (WILLIAMS, 1979, 112-113).

Assim, o conceito de estrutura de sentimento é uma forma de alcançar esse

nível saturado da vida, na qual se manifesta a consciência prática, que é:

quase sempre diferente da consciência oficial, e isso não é apenasuma questão de liberdade relativa ou controle. A consciência práticaé aquilo que está sendo realmente vivido, e não apenas aquilo queacreditamos estar sendo vivido. Não obstante, a alternativa real asformas fixas recebidas e produzidas não é o silêncio: não a ausência,o inconsciente, que a cultura burguesa mitificou. É um tipo desentimento e pensamento que é realmente social e material, mas emfases embriônicas, antes de se tornar uma troca plenamentearticulada e definida. Suas relações com o que já está articulado edefinido são, então, excepcionalmente complexas (WILLIAMS, 1979,p. 133).

Esse conceito de estrutura de sentimentos, alimentado pela concepção de

hegemonia, se distingue do conceito anterior de “cultura como processo social

completo” ou “cultura como modo de vida total” pela noção de poder nele incluído,

que lhe deu uma orientação particular e um senso histórico claro (ALCALÁ, 2010, p.

72).

Percebe-se também que apropriação de Raymond Williams do conceito de

hegemonia significou um meio de fugir das dificuldades oferecidas pelas teorias do

reflexo, da mediação, tipificação e homologia, que tentaram construir uma ponte sob

o fosso existente entre a base e a superestrutura, mas que continuaram a teorizar a

cultura como uma atividade secundária da produção material e a construir uma

133

dualidade abstrata entre uma realidade social conhecida e um fenômeno em

particular (ROBINSON, 1991, p. 89)

Segundo o próprio Williams (1979, p.133), ao buscar apreender um qualidade

particular da experiência social e das relações sociais, distinta de outras qualidades

sociais, e cujas relações com instituições e formações são abertas, dependendo de

questões históricas específicas, o que se ganha é que as modificações qualitativas

específicas não são consideradas como epifenômenos das instituições, formações e

crenças ou simplesmente evidências secundárias de novas relações econômicas

entre e dentro das classes. Assim, a estrutura de sentimentos pode ser definida

como uma hipótese cultural:

derivada na prática de tentativas de compreender esses elementos esuas ligações, numa geração ou período, e que deve sempreretornar, interativamente, a essa evidência. É inicialmente menossimples do que as hipóteses mais formalmente estruturadas dosocial, mas é mais adequada a gama prática da evidência cultural:historicamente certa, mas ainda mais (e é o que tem maiorimportância) em nosso atual processo cultural. A hipótese temrelevância especial para a arte e literatura, onde o verdadeiroconteúdo social está num número significativo de casos desse tipopresente e afetivo, que não podem ser reduzidos sem perda esistemas de crença, instituições, ou relações gerais explicitas,embora possa incluir todas essas como vividas e experimentadas(WILLIAMS, 1979, p.135).

O motivo pelo qual o conceito tem como objeto privilegiado de estudo a arte e

a literatura é que nelas existem características que ainda não foram formalizadas,

permitindo acesso qualitativo aos padrões de experiência de um certo período. Nas

palavras de Filmer (2009, p. 390), a literatura é o agente de descoberta da

linguagem, e esta, por sua vez, autoriza a literatura tanto a articular a experiência

geral quanto a expressar a particularidade do escrever crítico, autoral e reflexivo.

Desse modo, a manipulação específica da linguagem, na literatura, é o modo como

o escritor reflete sobre a experiência e como ele teste a comunidade social a qual

pertence.

De acordo com Williams (1977), a presença desses elementos não cobertos

por sistemas formais é a verdadeira fonte das categorias especializadas do

“estético”, “das artes” e da “literatura imaginativa” (WILLIAMS, 1977, p. 135), que, no

entanto, devem ser reconectados, por meio de uma compreensão materialista, com

sua dimensão social a partir da experiência, que é sempre social e coletiva.

134

É necessário pontuar que, dentro das questões centrais de Marxismo e

Literatura, estava a necessidade de interrogar, problematizar e revogar, se preciso,

os conceitos de literatura e crítica tal como hegemonicamente constituídos no

discurso especializado. No caso da literatura, os efeitos dela geraram uma área

compartimentalizada de escrita, isolada de correlação com a realidade social. No

caso da crítica, o perigo estava na dissolução das reais condições de produção de

um texto em particular, fazendo com o que o julgamento de um tipo especializado,

chamado literário, seja uma ameaça a qualquer envolvimento com a historicidade da

qual o texto participa (ALCALÁ, 2010, p. 75).

Desse modo, para Raymond Williams, a literatura (e também a arte) é uma

atividade especializada, uma maneira muito peculiar de divisão do trabalho na

sociedade burguesa, normalmente voltada para a produção de mercadorias. A

literatura tem, portanto, um lócus histórico. Paralelamente a essa divisão,

desenvolveu-se a atividade crítica, que, ao focar no texto e nas características

particulares dele, tende justamente a negar a dimensão social que eles possuem –

como uma tentativa de diferenciá-lo do mundo ordinário das mercadorias.

Um dado importante de ser trazido para a discussão é que, mesmo que a

noção de estrutura de sentimentos seja voltada para a arte e literatura, nem toda

arte se vincula à estrutura de sentimentos do seu tempo. A maior parte da produção

artística de um período se relaciona com formações sociais já manifestas, que, para

o pensador galês, podem ser dominantes ou residuais. A estrutura de sentimentos

está correlacionada às formações emergentes (WILLIAMS, 1977, p. 138).

Nessa altura, faz-se necessário esclarecer o que é o dominante, o residual e

o emergente e qual a importância deles para discussão proposta. Grande parte da

contribuição teórica de Raymond Williams passa pela feitura desses conceitos.

Também reside um capítulo importante do debate com Gramsci, pois Williams põe a

serviço do seu interesse (superar os dualismos) o conceito de hegemonia, mas

também o torna flexível para as relações de dominação em uma sociedade.

Para o pensador galês, em qualquer sociedade e em qualquer período, existe

um sistema central de práticas e valores que se pode chamar de dominante e eficaz.

Esses significados e valores não são meramente abstratos, mas são organizados e

vividos – e é por isso que a hegemonia não pode ser vista apenas como mera

opinião e manipulação: define-se, de fato, como um conjunto de práticas e

135

expectativas. Mas a hegemonia não é algo inerte: ao contrário, suas estruturas

internas são muito complexas e devem ser renovadas, recriadas e defendidas a todo

momento. Por esse mesmo motivo, podem ser constantemente desafiadas e, em

alguns aspectos, modificadas. Ou seja, o processo da cultura dominante está

continuamente se adaptando (WILLIAMS, 2011b, p. 52-54).

O residual, por sua vez, abarca um conjunto de experiências, significados e

valores que não podem ser verificados no presente, isto é, foram formados no

passados, e não podem ser expressos nos termos da cultura dominante – são, por

isso, vividos e praticados como resíduos de formações sociais anteriores. Já o

emergente engloba os novos significados e valores, as novas práticas, novos

sentidos e experiências que estão sendo continuamente recriados (WILLIAMS,

2011b), sinalizando, portanto, o surgimento de uma nova realidade social e/ou uma

nova fase da cultura dominante (ALCALÁ, 2010, p. 73).

Entende-se, assim, que as estruturas de sentimentos são voltadas para

captar os valores e significados emergentes em uma sociedade, que, segundo

Williams (1977, p. 138), são experiências sociais em solução, isto é, dispersas,

pouco ou nada sistematizadas, no tecido social. É nesse sentido que Cevasco

(2001) aponta que o conceito busca captar a emergência do novo:

A estrutura de sentimento é então uma resposta a mudançasdeterminadas na organização social, é a articulação do emergente,do que escapa à força acachapante da hegemonia, que certamentetrabalha sobre o emergente nos processos de incorporação, atravésdos quais transforma muitas de suas articulações para manter acentralidade de sua dominação (CEVASCO, 2001, p. 157-158).

Essa atenção ao emergente e ao novo torna Raymond Williams comumente

classificado como um autor que construiu um aparato teórico voltado para a análise

dos processos de mudança social. As estruturas de sentimento, assim, “são geradas

através da interação imaginativa e das práticas culturais e sociais de produção e

resposta – que são, em essência, práticas sociais de comunicação reflexiva de

experiência que estão na raiz da estabilidade e da mudança das sociedades

humanas” (FILMER, 2009, p. 373).

Toda a empreitada teórica de Raymond Williams, o esforço em criticar e fazer

dialogar a tradição idealista e a corrente materialista, pode ser sintetizada no termo

materialismo cultural, que tem como maior força a reivindicação da materialidade da

cultura, pensada como prática, se não equivalente em termos causais históricos,

136

pelo menos igualmente produtora (de significados), e inter-relacionada com outras

atividades sociais.

Ora, se o postulado da materialidade faz com que a cultura não possa mais

ser concebida em termos de reflexo ou expressão de fatores sociais mais básicos e

que os processos de significação sejam realizados por si, por meio da materialidade

da linguagem, observa-se, aqui, um importante avanço teórico: o pensamento de

Williams está esvaziado de qualquer sentido de mediação ou formalização.

Isso implica em dizer que Raymond Williams atenua “a ênfase dada à

cristalização formal propriamente dita […], o que mais lhe interessa é a intensidade

com que as relações sociais, as convenções, etc., são trabalhadas” (GLASER, 2010,

p. 171). Ou seja, é de menor importância, para Williams, como fatores sociais são

transpostos para a dimensão estética – sua teoria não buscar explicar como o social

é filtrado até alcançar a categoria de elemento formal. Não só porque isso mantém o

dualismo, mas porque responde pouco sobre os processos de dominação, aquilo

que o autor galês só conseguiu reestabelecer no final da carreira intelectual.

Portanto, ele prefere focar como a arte materializa certas relações sociais de

dominação e subordinação de um dado contexto histórico.

Esse fator é de profunda importância, pois inaugura um novo momento para a

sociologia da literatura: retira a necessidade de, através da análise materialista,

tentar provar ao outro polo da discussão, as correntes idealistas, como, quando e

em que medida a obra simboliza o social. Essa questão Williams resolve antes, no

momento no qual recupera os termos da proposição de que o ser social determina a

consciência: todo o processo de formação de consciência é eminentemente

fundamentado na práxis humana – o maior exemplo disso é a linguagem. Isso faz

com que, por necessidade, qualquer definição da experiência humana tenha de

englobar também a dimensão social. Assim, a criação artística e a produção cultural

são, desde a origem, atos humanos e sociais.

Dessa forma, o pensamento de Williams representa, assim, um novo

momento das teorias sociais sobre arte, pois extrapola o campo da crítica e se

espraia para diversas outras áreas, como a comunicação e a linguística. Do ponto

de vista das análises cultural e artística, o materialismo cultural pode ser definido

como uma sociologia da cultura, tal como pensada por ele próprio.

137

5 O EXERCÍCIO ANALÍTICO

Neste capítulo, discute-se como Antonio Candido e Raymond Williams

analisam obras literárias. O objetivo é refazer o percurso crítico, expresso em obras

seminais de ambos os autores, para trazer à luz o modo como a literatura e o mundo

social são discutidos.

5.1 As análises de Antonio Candido

Em Literatura e Sociedade, Candido (2006) sustentou que a análise literária

deve se focar na lógica da organização formal do texto, que tem primazia sobre

outras partes e outras influências extratextuais. O analista deve passar a investigar

qual o elemento (social, histórico, psicológico) principal dessa lógica interna,

estabelecendo uma dialética que, nas suas palavras, vai do texto ao contexto e vice-

versa. Essa dialética pressupõe a existência de elementos mediadores entre a obra

e o meio social e é isso que o analista deve destrinchar – como a arte foi capaz de

filtrar o externo para transformá-lo em interno.

Uma vez expostas as bases teóricas que orientam a atividade crítica de

Candido (2006), conforme o capítulo anterior, faz-se necessário investigar como o

autor mobiliza o seu método para estudar obras e autores específicos, isto é, como

se processa sua análise. Nesse sentido, serão úteis aos propósitos deste trabalho

os estudos realizados pelo autor durante a década de 1970, um dos pontos altos da

sua liderança no departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da

Universidade de São Paulo.

No período de 1958 a 1960, Antonio Candido atuou como docente no curso

de Letras, na Faculdade de Assis, no interior de São Paulo. Algumas vezes

negligenciada em sua importância, a passagem pela Faculdade de Assis ajudou

Candido a sedimentar sua identidade como professor e pesquisador do campo das

Letras, propiciou a maturação do seu projeto crítico e legou a ele a plataforma de

ensino que mais à frente iria implementar na USP (RAMASSOTE, 2010a, p. 106).

Em 1959, quando estava lecionando em Assis, Antonio Candido e outro grupo

de professores propuseram a criação da disciplina Teoria Literária para integrar o

currículo do curso de Letras da Universidade de São Paulo, o que acabou

138

ocorrendo. Do ponto de vista geral, pode-se entender a criação dessa disciplina

como uma maneira de alocar institucionalmente Candido no curso de Letras da USP,

pois ele não podia atuar em outras “cátedras”, porque elas já estavam

completamente preenchidas (RAMASSOTE, 2006, p. 55)

Ao assumir a direção do curso, Antonio Candido imediatamente mudou o seu

nome para Teoria Literária e Literatura Comparada, por considerá-lo mais adequado

aos parâmetros que queria implantar. O período que vai de 1961 a 1965 pode ser

considerado um período de formação, no qual Candido assenta as bases do curso e

organiza as disciplinas e seus conteúdos, fortemente influenciado pela experiência

em Assis (RAMASSOTE, 2006, p. 55-56).

Depois de passar um período de dois anos fora do país, Candido retorna ao

país em 1965 e inicia a pós-graduação do curso de Teoria Literária e Literatura

Comparada (TLLC). As transformações operadas, nessa época, marcam a

consolidação dessa área de estudos, que, a partir de então, ganha suas

características mais importantes e que se conservarão pelos anos seguintes

(RAMASSOTE, 2006, p. 73).

Em 1968, devido ao aumento da perseguição operada pelo regime militar,

Antonio Candido resolveu ir para fora do Brasil outra vez. Estabeleceu-se nos

Estados Unidos, onde lecionou, na Universidade de Yale, um curso sobre o romance

naturalista. Ao retornar, retomou suas atividades na USP e ministrou um curso sobre

a política em Ricardo III, de Shakespeare – o tema se distancia um pouco das suas

preocupações, mas insere-se dentro da efervescência política do regime militar

(RAMASSOTE, 2006, p. 75).

Em 1968 foram deflagradas algumas mudanças no ensino superior, que

extinguiram o sistema de cátedras e redefiniram a estrutura organizacional da

universidade, que, desde então, reformulou-se em torno da reitoria e dos respectivos

departamentos e coordenações de curso. Com isso, a pós-graduação passou a

funcionar através do sistema de créditos, com disciplinas de duração semestral.

Essa reforma está no bojo do recrudescimento da vigilância no regime militar

brasileiro (1964 – 1985), que perseguiu e censurou opositores, e teve como um dos

objetivos centrais o maior controle na escolha dos dirigentes universitários, o que

reduziu, juntamente com a unidade de gestão financeira, a autonomia das

universidades.

139

Essas transformações trazidas pela reforma no ensino superior possibilitaram

o aumento do corpo docente da área. Novos profissionais, como Alexandre Barbosa

e Teresa Pires Vara, foram contratados. Esses pesquisadores eram orientandos de

Antonio Candido e tinham o aval dele para assumir os encargos dos cursos de

graduação e pós-graduação (RAMASSOTE, 2006, p. 78). Esse movimento se

ampliou e se concretizou na década de 1970, marcada pelo advento de uma nova

leva de professores de renome, como Marlyse Meyer, João Luiz Lafetá e Ligia

Chiappini. Esses docentes (e outros) deram um novo vigor ao departamento de

TLLC, o que proporcionou maior visibilidade à área e conferiu projeção intelectual

aos seus líderes.

Muitos dos cursos da grande área das ciências humanas da USP foram

atacados com cassações e aposentadorias compulsórias. Isso, no entanto, não se

passou com o departamento de TLLC. O único nome do corpo docente afetado foi

Roberto Schwarz, que, embora não tenha perdido o cargo, preferiu se exilar na

França, com receio da perseguição política da ditadura militar (RAMASSOTE, 2006,

p. 81). Dessa forma, o prestígio de Antonio Candido, a visibilidade alcançada pela

área de TLLC dentro da USP e a origem social de seus membros (a maioria das

classes médias paulistanas) explicam, em parte, porque o departamento foi menos

atingido pela perseguição política do regime militar.

Durante esse último período (a década de 1970), Antonio Candido realizou

dois de seus mais renomados ensaios, dedicados a analisar algumas obras-chave

da literatura brasileira. O primeiro deles é Dialética da Malandragem11, que se

debruça sobre o romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio

de Almeida; o segundo, intitulado De Cortiço a Cortiço, analisa o livro O Cortiço, de

Aluísio de Azevedo12.

Esses ensaios, junto com outros de mesmo teor, foram reunidos em um

mesmo volume pela primeira vez apenas em 1993, no livro O Discurso e a Cidade

11 Publicado exatamente no ano de 1970, no nº 8 da Revista do Instituto de EstudosBrasileiros.12 Esse estudo foi finalizado em 1973, mas algumas de suas partes foram utilizadas em doisoutros trabalhos: "Literatura-Sociologia: A análise de O Cortiço de Aluízio Azevedo", Práticade Interpretação Textual, Série Letras e Artes, Caderno nº 28, Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, 1976; e "A Passagem do Dois ao Três (Contribuição para oestudo das mediações na análise literária)", Revista de História, n° 100, São Paulo, 1974(data correspondente à seriação em atraso; na verdade, 1976). A versão final, tal como aconhecemos, só foi publicada em 1991, pela revista Novos Estudos, do CEBRAP (CentroBrasileiro de Análise e Planejamento).

140

(1993). Essa obra é de suma importância, porque o programa delineado em

Formação da Literatura Brasileira (2006) e trabalhado de modo mais contido nos

principais ensaios de Literatura e Sociedade (1995), encontra aqui sua realização

máxima, cujo destaque para a ideia de “crítica integradora” se encontra logo no

prefácio do livro e, posteriormente, diluída em suas análises (WAIZBORT, 2007, p.

91).

A seção do livro na qual foram situados os dois referidos ensaios é homônima

ao título da obra e reúne, não por acaso, um livro realista e outros três naturalistas –

todos, portanto, dedicados, de algum modo, a reproduzir a realidade. A ideia de

aglutinar em uma só parte os textos com lastro social e histórico mais nítido e com

uma clara intenção realista faz parte da estratégia de Antonio Candido. Como o seu

objetivo é salientar a autonomia estética da obra em detrimento do mundo histórico-

social, a seleção de livros realistas vai lhe servir para mostrar que o valor da obra

reside mais no modo que ela organiza os diferentes elementos de maneira lógica e

menos na proximidade com o meio social.

Dessa forma, atravessando o seu interesse de demarcar a fronteira rígida que

separa a autonomia da obra e as influências histórico-sociais, mas sempre

investigando obras que tem um claro cunho social, as análises realizadas em O

Discurso e a Cidade (principalmente as duas aqui indicadas) estão marcadas pela

necessidade de mostrar quando e como a obra literária se constitui a partir de

materiais extraliterários.

Fonte: Candido (2010)

Figura 5 – Capa do livro O discurso e a cidade

141

5.1.1 Do contexto para o texto: como as obras incorporam elementos sociais em Dialética da Malandragem e em De Cortiço a Cortiço

Antes de iniciar suas próprias considerações sobre as Memórias de um

Sargento de Milícias, Antonio Candido precisava dialogar, mesmo que minimamente,

com a fortuna crítica existente sobre a obra. Era necessário identificar as

classificações que já envolviam o romance de Manuel Antônio de Almeida e, no

mesmo passo, apontar suas insuficiências. Só a partir disso, passa a apresentar e

argumentar em prol de sua própria perspectiva.

Logo no início do ensaio Dialética da Malandragem, Candido (2010) discute

as contribuições de José Veríssimo, Mário de Andrade e Darcy Damasceno a

respeito da obra de Almeida. O pensador uspiano ataca basicamente dois pontos: a

caracterização do livro como romance de costumes e a designação de Leonardo,

personagem central da trama, como anti-herói pícaro. Sobre esses dois pontos (o

primeiro mais ligado à questão da influência social e o segundo alinhado às

influências estéticas) se erguerá a crítica de Candido.

Vejamos como isso se processa. Sobre a influência picaresca, Antonio

Candido aponta algumas diferenças: como o fato de o romance brasileiro ser

narrado em terceira pessoa – ao passo que os romances pícaros o são em primeira

pessoa – e a constatação de que o herói brasileiro é um personagem entre outros e

não o instituidor do mundo fictício. Além disso, Leonardo (o personagem principal da

obra de Almeida) não tem uma origem humilde, o que acarreta diferenças decisivas:

ele não precisa lutar pela sua sobrevivência e nem viver ao acaso, como é comum

aos personagens pícaros (CANDIDO, 2010, p. 19-21).

Ainda é importante salientar, segundo o autor, que, nos romances pícaros,

domina o senso do espaço físico e social, pois a ambientação acompanha a

peregrinação do personagem central, que atravessa vários lugares e camadas

sociais, ao passo que, nesse sentido, o livro de Manuel Antônio de Almeida é mais

“fixo”, tanto em termos de localidade espacial quanto de estrato social (CANDIDO,

2010, p. 21).

Depois de afastar a semelhança com o romance pícaro, Antonio Candido

pôde realizar a sua própria classificação: Leonardo seria o primeiro grande malandro

do romance brasileiro, oriundo de uma tradição em certa medida folclórica,

correspondente ao clima cômico e popular da época. À semelhança do pícaro, o

malandro também seria um exemplar do aventureiro comum às histórias folclóricas,

142

com a diferença de que predomina uma certa gratuidade do truque e da trapaça,

característica dos personagens astuciosos das histórias populares (CANDIDO, 2010,

p. 22-23).

Essa releitura da influência estética – embora não seja o ponto alto do ensaio

– não tem nada de gratuita. Pelo contrário: faz parte do projeto intelectual maior de

Antonio Candido forjar a existência de uma tradição literária brasileira. Se sabe que

esse era um interesse recorrente de Candido (2013), que atravessa, por exemplo,

sua obra seminal Formação da Literatura Brasileira, na qual sustenta que, no Brasil,

houve uma paulatina rotinização de autores e obras até se constituir o que ele

chamou de sistema literário. Dessa maneira, ao classificar Leonardo como

malandro, Antonio Candido busca construir o que seria o ponto inicial de uma

tradição literária propriamente brasileira.

Sobre a questão de Memórias serem um romance de costumes, retrato do

Rio de Janeiro da época, Antonio Candido afirma que uma consideração dessa

natureza só pode ser sustentada se for provado que o livro reflete o período joanino

no Brasil e, principalmente e na esteira de seu método analítico, que ele deve a esse

fator externo “sua característica e seu valor” (CANDIDO, 2010, p. 27).

Essa passagem, aparentemente despretensiosa, deixa entrever bastante da

atividade crítica de Antonio Candido e do modo como ele aprecia os elementos

sociais. A ideia básica é a de que a classificação do romance depende do tipo de

influência que o elemento social exerce (nesse caso, a designação genérica de

“costumes”). E que tipo de influência seria essa? Aquele que concorre para a

qualidade artística da obra.

Expressa como está, essa noção deixa entrever o seguinte: pode-se até

interpretar o livro como romance documentário, mas se o fator social em foco não

está atuando diretamente para a realização do valor estético (que é interno e

autônomo), deve ser preterido na análise. Ou seja, não importa, para análise de

Candido, qualquer influência externa geral que atuou limitando ou direcionando o

trabalho artístico, só aquela absorvida internamente pela obra.

Esse é o lastro para leitura crítica de Antonio Candido sobre Memórias.

Assim, o autor não nega que a obra de Manuel Antônio de Almeida passa ao leitor a

impressão do Rio de Janeiro do início do século XIX, mas sustenta que essa

impressão se deve menos a elementos sociais dispersos no romance e mais ao

modo como ele organiza esses e outros tantos elementos. Na tentativa de fugir do

143

que considerava um sociologismo reducionista, Candido se afasta dos processos

sociais que possam ter influenciado desde longe a obra (isto é, daqueles processos

que, por mais que tenham atuado, não se transformaram em material estético

visível) e adensa uma leitura internalista, que quer apenas mostrar como a obra

filtrou algo externo a ela.

Vejamos como isso se constrói. Antonio Candido começa por pontuar o que,

na obra, se distancia da realidade. Em primeiro lugar, a obra seria restrita do ponto

de vista espacial: a ação se desenvolve nas áreas centrais do Rio de Janeiro e

raramente foge disso. Em segundo, o estrato social dos personagens seria restrito

ao das pessoas livres, o que se poderia chamar de pequena burguesia. Não há a

presença nem de reis ou de pessoas do seu séquito e nem, na outra ponta, outro

segmento muito importante, o dos escravos. Por tudo isso, a obra não pode ser tida

como documento de época (CANDIDO, 2010, p. 27-28).

Se o conteúdo histórico-social presente na obra não é forte o suficiente para

que ela seja classificada como documento de época (lembre-se: o diálogo de

Antonio Candido é com uma tradição de análise que toma a obra como um reflexo

da realidade; é dela que Antonio Candido quer se diferenciar), de onde vem a

sensação de que a obra, ainda assim, transmite o ambiente do Rio de Janeiro do

início do século XX?

Desse modo, o conceito que o pensador uspiano elabora para isolar e

enfatizar a autonomia da obra literária na conjunção dos elementos sociais é o da

formalização ou redução estrutural dos dados externos (CANDIDO, 2010, p. 28).

Como que para alertar o seu leitor sobre o que o espera, Candido (2010, p.9) já

tinha anunciado o conceito de redução estrutural na introdução do livro, que, àquela

altura, foi definido genericamente como o processo de transformar a realidade do

mundo em componente da estrutura literária.Em outro momento, quando discutia a

influência picaresca, Candido (2010, p.25) havia também utilizado a expressão

reduzir, sugerindo que os personagens, tipos e situações que moveram a história –

ainda que baseados em relatos orais – foram, por necessidade, generalizados, se

distanciando do elemento imediato.

Entretanto, apenas nesse ponto do ensaio (quando discute o mode da

influência histórica e social sobre as Memórias), a intenção do autor se torna mais

clara: a armadura conceitual da redução é, em última instância, um mecanismo para

enfatizar o processo de criação e feitura da obra por parte do escritor.

144

Assim, Antonio Candido identifica alguns níveis no estudo de Memórias: em

primeiro, os fatos narrados, envolvendo os personagens; em segundo, os hábitos e

costumes descritos; e, por fim, os juízos feitos pelo narrador e por outros

personagens. Para o autor, esses elementos só ganham força quando o escritor os

organiza satisfatoriamente. Desse modo, o exemplo da capoeira é significativo não

porque é um costume da época, mas porque se tornou, por meio do trabalho do

escritor, parte constitutiva da ação do romance. Ocorre, dessa maneira, o que ele

entende por sentimento de realidade (CANDIDO, 2010, p. 28-30).

Portanto, na visão de Antonio Candido, o sentimento de realidade

proporcionado pelo romance não vem diretamente do conteúdo histórico-social do

Rio de Janeiro joanino, mas de uma intuição do destino das pessoas nessa

sociedade, de modo que o real só adquire vigor quando entrelaçado aos atos dos

personagens e às situações. Esse é o primeiro estrato universalizante do livro, no

qual se localizam arquétipos válidos para um amplo ciclo de cultura. O segundo

estrato universalizador é mais restrito: forma o sistema de referência do livro, se

revela nas relações humanas trabalhadas e pode ser definido como a dialética da

ordem e da desordem (CANDIDO, 2010, p. 31).

Pode-se afirmar que Antonio Candido considera essa camada inferior como a

mais importante para compreender a força estética do livro, porque ela é

responsável por estruturar a obra. Em suma, a dialética da ordem e da desordem

não é um dado social ou externo. Ela é o próprio processo de redução estrutural ou

formalização estética e, portanto, atua decisivamente na organização interna da

obra.

Esse, então, é o ponto central do ensaio. É possível notar que Antonio

Candido flutua entre as concepções sobre Memórias, ora negando-as de fato, ora

relativizando sua força explicativa, para, enfim, culminar nesta ideia. A dialética da

ordem e da desordem deve ser vista menos como um dado social factual e mais

como um critério de subordinação dos informes presentes no livro; precisa ser

reconhecida e tratada como um filtro do que vai da sociedade para a obra, ou,

parafraseando o próprio pensador uspiano, do que vai do contexto para o texto.

Antonio Candido (Id, p. 39) é excessivamente didático ao explicar a dialética

da ordem e da desordem, chegando ao ponto de usar uma figura para esclarecer

sua argumentação.

Figura 6 - Esquema da dialética da ordem e da desordem

145

De acordo com Candido (2010), OD é a dialética da ordem e da desordem.

AB é plano do mundo real e AB’ é o plano fictício. OD é o princípio de generalização:

organiza os elementos de AB (mundo histórico social) para que tenham organicidade

em AB’ (o universo ficcional).

Ora, se bem analisado, essa explicação revela o caráter da proposta

metodológica de Antonio Candido, que se encerra numa espécie de teoria da

mediação. O pensador da USP anunciou conceitualmente que busca enxergar como

os fatos sociais ou externos se transmudam em internos, por intermédio do conceito

de redução estrutural. Analiticamente, essa transmutação é orientada pelo princípio

de generalização nomeado de dialética da ordem e da desordem. Assim, é possível

construir um outro quadro explicativo, que ajude entender e a interpretar melhor o

esquema visual proposto por Candido (2010):

Fonte: Candido (2010).

Figura 7 - Esquema conceitual: teoria da mediação de Antonio Candido

146

Temos, aqui, o mundo social, no qual se localizam todos os dados externos.

Não só diferenciados em dados sociais, psicológicos, etc. (conforme a discussão em

Literatura e Sociedade, Candido faz essa distinção), mas também em termos de

dados externos com influência geral e dados externos capazes de atuar

internamente, isto é, com repercussão interna diretamente visível.

Desse modo, o princípio de generalização conduz o processo de redução

estrutural que, por sua vez, media a relação do mundo social com o universo

ficcional, lugar da autonomia estética. Uma vez concluído o processo de

formalização, observam-se os dados internalizados, aqueles constituintes da parte

interna da obra. O exercício de Candido, assim, é, por consequência, orientar uma

leitura de Memórias capaz de comprovar isso.

O autor, então, constata, no plano do livro, uma ordem comunicando-se com

uma desordem, correspondente à relação entre ordem e desordem na sociedade

brasileira do século XIX. A respeito disso, o autor nota que há uma linha central,

formada pelo personagem Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, abaixo da qual está o

ilícito e acima o lícito. Além disso, conclui que há, no plano da obra, um hemisfério

da ordem e um hemisfério da desordem, funcionando como polos de atração para

Leonardo; a narrativa se desenvolve ora pendendo para um lado, ora para outro, e

se encerra com Leonardo sendo absolvido pela primeira esfera (CANDIDO, 2010, p.

32).

Isso também poderia ser verificado na estrutura da obra, pois, quando

eliminou os escravos, Manuel Antônio de Almeida também teria eliminado o trabalho;

e quando excluiu as classes dirigentes também teria subtraído hierarquias de mando

(CANDIDO, 2010, p. 39); de modo que a sensação é a de um mundo desoprimido,

onde não existe subordinação hierárquica nem necessidade de trabalho. Isso daria

ao livro o seu caráter especial: a inexistência de julgamentos morais, a aceitação

dos homens e das coisas tais como são, o que acaba por resultar em certa

equivalência entre a ordem e a desordem – entre o bem e o mal, por assim dizer

(CANDIDO, 2010, p. 34).

Fonte: do autor.

147

Assim, Antonio Candido (2010) pôde concluir que a impressão de realidade

que o romance passa ou sua classificação como romance social são oriundos não

do conteúdo histórico social, mas do modo pelo qual esse conteúdo está organizado

na organizado na obra. Também pôde, desse modo, postular a autonomia da obra: o

universo ficcional de Memórias, embora pressuponha o elemento externo localizado

pelo autor, não depende dele, sendo oriundo mais dos elementos mediadores – que

são, por sua vez, ocultos.

Outro ensaio no qual Antonio Candido põe em prática seu método de análise

literária é intitulado De Cortiço a Cortiço, no qual o romance O Cortiço, de Aluísio de

Azevedo, aparece como foco central da discussão. Mais uma vez veremos os

princípios norteadores da sua crítica, embora perceba-se, desde já, uma distinção

com a análises de Memórias, já que estas não tinham um correlato direto nas letras

europeias.

Perseguindo o problema da “filiação de textos e de fidelidade a contextos”

(CANDIDO, 2010, p. 107), o pensador uspiano a focaliza a relação do romance de

Aluísio de Azevedo com o livro L’Assomoir, de Émile Zola. Antonio Candido (2010)

tenta alcançar uma postura distante tanto da noção de que uma obra é formada

principalmente pela influência de outras obras quanto da ideia tipicamente

naturalista de que o texto é uma cópia direta da realidade. A questão é sopesar tanto

a herança estética quanto as influências sociais.

De modo semelhante ao ensaio Dialética da Malandragem, Candido

reestabelece o que seria o princípio da generalização, responsável por filtrar e

organizar os elementos sociais na obra literária. Este seria um ditado popular

corrente no Rio de Janeiro do fim século XIX, conhecido como a língua do pê: “Para

português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para

trabalhar”.

Um dos movimentos mais importantes do ensaio é a localização desse ditado

popular e sua posterior restauração como categoria explicativa. Antonio Candido

(2010) utiliza o dito para adentrar o complexo de relações do Brasil do século XIX e

como forma também de elucidar o romance.

De acordo com Antonio Candido, o que resulta desse adágio é uma

equiparação dos três elementos (português, negro e burro), o que consagra, no

plano sonoro, a confusão econômica e social visada pelo enunciado. Como

consequência, aquilo que é próprio aos homens se prolonga aos animais e o que é

148

inerente a estes também se aplica aos primeiros – pano para o burro e para o

homem, pão para o homem e também para o burro, e assim por diante (CANDIDO,

2010, p. 112).

Na visão do autor, a operação do dito não consiste em um nivelamento

positivo do animal ao homem, mas de uma pejorativa equiparação do homem ao

animal, na qual o homem não é tomado em sua completude, mas apenas enquanto

trabalhador. Candido (2010, p.112) conclui, então, que a confusão levada a cabo

pelo ditado não é “ontológica, mas sociológica”, porque objetiva assentar uma

relação de trabalho na qual o homem pode ser confundido com o animal e tratado

desse modo.

Ainda de acordo com o pensador uspiano, essa máxima serve como chave

para adentrar as relações humanas da obra de Aluísio de Azevedo, não apenas pelo

sentido sociológico nele encerrado, mas também porque contempla uma ilusão do

brasileiro livre da época, que é o seu emissor e que no enfoque do romance se

manifesta ora com lucidez ora com ofuscação (CANDIDO, 2010, p. 112).

O brasileiro livre da época seria um tipo “com tendência mais ou menos

acentuado para o ócio, favorecido pelo regime de escravidão” e, por causa disso,

enxergava o trabalho manual como ultrajante. O português seria alvo do dito raivoso

por trabalhar muito e, por isso, poderia ser igualado ao escravo e ao burro, mas

também porque o trabalho era uma forma de ascensão social. Tanto que João

Romão, figura central da narrativa e dono do cortiço, que ascende socialmente

através do ascetismo e de formas duras de exploração, encarna, na visão do

romancista, a detestável exploração do nacional pelo estrangeiro – percebida pela

inexistência, no plano do livro, do sentimento de injustiça social e de exploração de

classe e pela forte presença do nacionalismo e da xenofobia (CANDIDO, 2010, p.

113-114).

O que está por trás do dito é uma “gíria ideológica de classe”, de gente

“cônscia de ser branca, brasileira e livre” e que tem como objetivo central bradar de

modo estridente os “débeis privilégios” angariados numa nação em que as posições

ainda eram recentes e relativas e, ao mesmo tempo, se diferenciar tanto do negro

escravo quanto do branco português (CANDIDO, 2010, p. 115).

O desenvolvimento dessa máxima, no plano do livro, atenta para que, na

verdade, “o português não é português, o negro não é negro e o burro não é burro”;

a tríade se revela na noção de que o primeiro é o explorador capitalista, o segundo é

149

o trabalhador reduzido a escravo e o terceiro é o homem rebaixado ao nível do

animal (CANDIDO, 2010, p. 116).

O dito dos pês, que dá a feição de cunho social ao livro, é animado por uma

dinâmica particular de desenvolvimento da narrativa. Antonio Candido nota que, se o

cortiço francês de L’Assommoir é vertical e apartado da natureza, o brasileiro é

horizontal e convive com bichos e árvores, com a natureza, enfim. Isso leva Aluísio

de Azevedo a tratá-lo como realidade orgânica e um tipo de continuação do mundo

natural (CANDIDO, 2010, p. 116-117).

Mas o desenvolvimento do cortiço vai sendo paulatinamente controlado, na

proporção em que aumenta a sede do lucro de João Romão, agindo, no universo do

livro, como força racional. Dito de outro modo, é como se o cortiço, inicialmente,

fosse governado pelas leis natural e biológica, mas a ação de João Romão vai aos

poucos podando esse movimento espontâneo e pondo em seu lugar um padrão

mais mecânico de crescimento (CANDIDO, 2010, p. 117).

Os dois movimentos estão sempre presentes na obra, mas a narrativa

caminha lentamente do primeiro para o segundo, sugerindo que a atuação

capitalista paulatinamente abarca e conduz a dinâmica das relações locais. Desse

modo, Candido (2010, p.117) conclui que a obra é governada por uma dialética do

espontâneo e do dirigido, que sintetizaria o movimento do desenvolvimento natural

para o racional.

Para Candido (2010), isso fica claro após um incêndio acometer o cortiço e

ele ser reconstruído por João Romão com mais espaço para as casas e com um

maior alinhamento, além do estabelecimento de horário para entrar e sair. No plano

da obra, percebe-se que o novo cortiço é descrito por uma imagem mecânica, ao

passo que o primeiro era trabalhado com imagens orgânicas. A passagem do

espontâneo ao dirigido revela, desse modo, o processo de acumulação capitalista,

que disciplina à medida que se autodisciplina, enquanto o sistema metafórico passa

do orgânico da natureza para o mecânico do mundo urbano (CANDIDO, 2010, p.

117-118).

São muitas as semelhanças com Dialética da Malandragem, desde a

localização de uma dinâmica social, passando pela reconstrução de um princípio

regente da mediação e organização dos elementos externos na obra até a

similaridade de recorte social dos dois escritores (Manuel Antônio de Almeida e

150

Aluísio de Azevedo), que trabalharam, ainda que de modos diversos, a visão das

classes médias em seus romances.

No entanto, para os objetivos deste trabalho, um ponto não pode passar

despercebido. As diferenças nos cortiços brasileiro e francês, apontadas por Antonio

Candido quando descreve o que seria a dialética do espontâneo e do dirigido, só

são entendidas, porque, anteriormente, o pensador uspiano já havia diferenciado os

contextos sociais do Brasil e da França e como eles solicitavam tratamentos

estéticos diversos.

No início do ensaio, Candido (2010, p.109) aborda claramente que o mundo

ficcional sofre a “solicitação da realidade natural e social imediata”. Com isso, o

autor quis justificar as distinções entre os romances de Azevedo e Zola –

obviamente, romances naturalistas feitos em lugares distintos vão se alimentar de

materiais distintos.

Quais as diferenças apontadas por Candido? Para o autor, na sociedade

francesa a diferenciação é mais acentuada e, por isso, há maior influência na

especialização do trabalho literário, que é levado a tratar cada temática de modo

compartimentado; no Brasil, ao contrário, tem-se um meio social pouco desenvolvido

e pouco especializado, de modo que os elementos estão muito mais dispersos e,

como tais, podem ser tratados. É desses aspectos que provêm a singularidade do

romance de Aluísio de Azevedo: a coexistência do explorado e do explorador,

elemento central da trama, só se torna possível pela “natureza elementar da

acumulação num país que economicamente ainda era semicolonial” (CANDIDO,

2010, p. 109-110).

Antonio Candido se aproxima de reconhecer a influência externa (e não

apenas interna) de um fator social. Isso significaria maior equilíbrio ao seu programa

intelectual, que deixaria de desprezar a influência geral de determinados fatores

externos. É necessário ressaltar, por outro lado, que De Cortiço a Cortiço foi escrito

em uma outra atmosfera intelectual, por isso a sensível mudança de ênfase. De

acordo com Merquior (1970, p.130),

por volta de 1960, na sua luta em duas frentes – contra o formalismoe o sociologismo – o crítico acentuava a conversão do elementoexterno em interno; hoje, porém, reagindo contra a maré doformalismo “estruturalista”, prefere salientar ambos os pólos daanálise, valorizando os determinismos sociais.

151

Essa mudança é percebida de maneira gradual. Em Literatura e Sociedade, a

ênfase era excessivamente na passagem do externo para o interno. Em Dialética da

Malandragem, observa-se a ênfase em um princípio que contrapesa os dois polos.

Em De Cortiço a Cortiço, além disso, o reconhecimento das exigências históricas e

sociais de um determinado contexto.

Contudo, a prioridade analítica de Candido (2010) recai sempre sobre o texto

literário, com autonomia quase absoluta, encerrado em si, embora acomodando

influências externas quando estas obedecerem à lógica do texto:

Embora filha do mundo, a obra é um mundo, e que convém antes detudo pesquisar nela mesma as razões que a sustêm como tal. A suarazão é a disposição dos núcleos de significado, formando umacombinação sui generis, que se for determinada pela análise podeser traduzida num enunciado exemplar. Este procura indicar afórmula segundo a qual a realidade do mundo ou do espírito foireordenada, transformada, desfigurada ou até posta de lado, paradar nascimento ao outro mundo (CANDIDO, 2010, p. 107).

Esta é a base epistemológica do ensaio e o destaque pelo qual a razão da

obra literária é, na prática analítica de Antonio Candido, a busca pela função dos

chamados dados externos. É como se o pensador uspiano estivesse a todo

momento investigando se existe e qual a função dos fatores sociais, sendo isso o

importante na análise.

Essa orientação denota, por outro lado, a dificuldade de Antonio Candido em

conceber a consistência de uma obra literária como oriunda do seu contexto social e

histórico – qualquer consideração dessa ordem é prontamente rejeitada como

agressão à autonomia estética.

Ao contrário, em Candido, a “estabilidade estética […] é antes efeito de uma

concepção mais tributária de uma visão tradicional do que estava disposto a admitir”

(LIMA, 1992, p. 159). Essas palavras, dirigidas à Formação da Literatura Brasileira,

são elucidativas também para o caso dos ensaios de O Discurso e a Cidade.

A dificuldade provém do fato de que Antonio Candido teve uma formação

humanística muito sólida, adquirida por intermédio de sua família. De modo mais

direto, isso se trata de um capital cultural incorporado13 no pensador uspiano. Essa

dificuldade talvez teria sido vencida se Candido se abrisse ao debate teórico, que o

teria levado a esbarrar nestas questões e enfrentá-las – mas, como se sabe, se

13 Ver Bourdieu (1998).

152

envolver em longas discussões teóricas nunca foi o interesse de Candido. Não que o

pensador não tenha tentado superar os dualismos análise social/análise estética,

externo/interno, mas o crítico acaba esbarrando nas suas próprias limitações. Assim,

cabe, então, esclarecer qual o artifício utilizado pelo autor para reestabelecer a

conexão da obra com o mundo social.

É nessa altura que deve se reabilitar a ideia de Antonio Candido de “ato

crítico”, que se refere ao empenho da personalidade na tarefa analítica. O método,

por definição, é algo exterior. Por isso, não pode se impor por si mesmo. Ele fica

disponível em um “estoque de variáveis” a partir do qual o crítico selecionará aquele

que julgar necessário para analisar o objeto artístico (LIMA, 1992, p. 157).

Desse modo, para “trazer a dinamicidade sócio-histórica à própria forma” é

necessário “conceber a crítica como atividade dirigida por valores” (LIMA, 1992, p.

157, grifo do autor). Em outras palavras, a leitura social e histórica é instaurada não

pela necessidade inerente à tarefa de analisar e criticar (não como uma prerrogativa

de método), mas pelo ato genuíno do crítico, que redescobre sua legitimidade.

Isto já foi reconhecido até mesmo em Roberto Schwarz, discípulo de Antonio

Candido. Ao notar que a “apreensão e descrição da forma literária” é acompanhada

por uma descrição das “realidades históricas pertinentes”, o crítico assinala que não

há resposta geral para a pergunta “quais são as realidades históricas pertinentes?”,

e que esse elemento sempre vai depender de um “achado crítico” do analista

(SCHWARZ, 2014, p. 34).

Muito elucidativo, neste ponto, é a metáfora utilizada por Lima: ele diz que a

crítica, definida como atividade dirigida por valores e envolta em uma cadeia de

decisões, implica que o analista não pode ser confundido com um caçador orientado

pelos rastros deixados pela caça. Ao crítico e ao historiador só cabe a analogia se

for levado em consideração que um e outro não apenas seguem os rastros

deixados, mas que, assim procedendo, também deixam outros rastros. São estes

que indicam aos outros porque tal caminho foi traçado. Em suma: os rastros

deixados na atividade crítica denunciam os valores do analista (LIMA, 1992, p.158).

No caso de Dialética da Malandragem, os rastros são percebidos quando

Antonio Candido sustenta que o “universo sem culpabilidade e mesmo sem

repressão” das Memórias e do qual decorre a “ideia de simetria ou equivalência” do

bem e do mal, do polo positivo e do negativo, em uma “sociedade meio caótica”

153

(CANDIDO, 2010, p. 40-42), correspondem à dinâmica própria da realidade

brasileira.

Ainda para Candido (2010), o Brasil é um lugar onde os grupos e indivíduos

nunca tiveram o interesse pela ordem, a não ser de modo rarefeito e distante, e

onde a liberdade surge como “capricho”. Resulta disso um espaço no qual reinam as

“formas espontâneas de sociabilidade” e no qual os choques entre norma e conduta

são brandos e amenos (CANDIDO, 2010, p. 44).

O que Candido faz, então, é alçar a dialética da ordem e da desordem a um

traço cultural tipicamente brasileiro. Se não é possível responsabilizar Antonio

Candido pela invenção do mito do brasileiro arredio a regras e normas, é possível

pelo menos sustentar que há, nesse ponto, uma visão aquiescente do tipo de

sociabilidade gestada nos trópicos.

No caso de De Cortiço a Cortiço, os rastros ficam claros quando Antonio

Candido afirma que Aluísio de Azevedo, ao interpretar a mistura de raças e a sua

convivência como promiscuidade da habitação coletiva, faz o próprio cortiço se

transmudar em um “Brasil em miniatura”, no qual brancos, negros e mulatos eram

igualmente explorados pelo português branco, ávido pelo lucro (CANDIDO, 2010, p.

119).

Isso também acarreta uma diferença central entre L’Assommoir e O Cortiço:

enquanto a obra de Emile Zola representa apenas um estrato, o modo de vida do

operário, o romance de Aluísio de Azevedo simboliza todo um país. Com o despudor

qualificativo que caracteriza sua crítica, Antonio Candido chega a qualificar como

“excelente” a fórmula estética criada pelo romancista brasileiro, porque graças a ela

o livro logrou maior alcance, pois “o coletivo exprime a generalidade do social”

(CANDIDO, 2010, p. 119).

É válido assinalar que, ao creditar a representatividade do livro de Aluísio de

Azevedo para pensar o Brasil com o fato de ele trabalhar a mistura e o choque das

raças, Antonio Candido está se vinculando à matriz de pensamento modernista, que

consagra, no plano intelectual brasileiro, a ideia de que a peculiaridade da

constituição social brasileira provém do resultado cultural da miscelânea de três

raças – branco, negro, índio.

Em suma, para a questão levantada de como é restabelecida a dimensão

histórico-social da obra literária, é possível afirmar que o mundo sem culpa e sem

pecado, de Memórias, e a mistura de raças no mesmo espaço, de O Cortiço, nos

154

quais Antonio Candido alça a categorias de alegorias do Brasil, são valores que

denunciam o autor. Isso significa que a limitação de seu programa teórico-

metodológico é vencida por sua própria personalidade e por seus próprios valores e

ideias.

5.2 As análises de Raymond Williams

No capítulo sobre a produção intelectual dos dois autores em deste trabalho,

vimos como Raymond Williams armou teoricamente sua discussão sobre cultura:

para ele, esta última tem uma dimensão também material na sociedade, produzindo

ideias e valores capazes de organizar a experiência social dos diferentes grupos.

Nesse ponto, a arte e literatura tem papéis decisivos, pois elas trabalham com ideias

e valores ainda não sedimentados, podendo muitas vezes serem indicativas de

mudanças sociais. Contudo, para compreender mais profundamente sua visão sobre

literatura e sociedade, faz-se necessário estudar uma obra de caráter crítico

acentuado, sendo útil, assim, o trabalho dele realizado durante a década de 1970.

Sabe-se que Raymond Williams saiu do País de Gales, no início da década

de 1930, para cursar Inglês em Cambridge e que seus estudos foram interrompidos

por ocasião da Segunda Guerra Mundial, que eclodiu no fim do mesmo decênio.

Williams só conseguiu completar seu curso em 1946, após retornar da guerra.

Durante os quinze anos seguintes, o pensador galês se dedicou a um projeto de

alfabetização de adultos.

Essa experiência na periferia do pensamento acadêmico foi importante para

os estudos sobre os significados do termo cultura – do que foi desenvolvido, na

visão de Williams (2011c), como resposta às transformações trazidas pela

Revolução Industrial – reunidos no influente Cultura e Sociedade, lançado em 1958.

Essa obra deu novo destaque ao pensamento de Raymond Williams e foi sua porta

de entrada para o retorno a Cambridge, em 1961. O pensador galês iniciou como

pesquisador do Jesus College e depois se tornou professor de teatro da

universidade (1973-1984).

Paralelamente a Cultura e Sociedade, Williams trabalhou também em uma

obra cujo objetivo era analisar o capitalismo industrial na relação com as novas

formas de comunicação (imprensa, publicidade, etc.): The Long Revolution (1961).

Esse livro coloca como questão central, nas sociedades avançadas, a disputa pelo

155

controle do sistema de comunicações. A ênfase no debate em torno dos meios de

comunicação permaneceu durante a década de 1960. É possível pontuar, na

publicação de Communications (1961), a participação em debates televisionados e

os artigos enviados para a Revista da BBC – que, mais à frente, foram compilados

no livro Televisão: tecnologia e forma cultural (1974).

No entanto, já no fim da década de 1960, Williams retomou a publicação de

obras críticas com foco na arte e na literatura especificamente. Foi o caso de

Moderny tragedy (1966) e de Drama from Ibsen to Brecht (1968) para a análise do

teatro. No início da década de 1970, o autor publicou também obras voltadas para

análise do romance inglês: The english novel: from Dickens to Lawrence (1970) e O

campo e a cidade (1973).

De acordo com Rivetti (2015, p. 100-101), O campo e a cidade pode ser

interpretado como um desenvolvimento de The english novel: as duas obras

analisam os mesmos temas e autores, inclusive fazendo uso de citações iguais. A

diferença fica por conta do foco: ao passo que em The english novel a discussão

recai sobre a mudança nas formas e nas convenções literárias por meio da análise

de obras e autores particulares, O campo e a cidade debate o quadro ideológico

mais geral dessas mudanças.

De fato, O campo e a cidade aborda a interpretação da história realizada por

autores e autoras ao longo do tempo acerca dessas duas formas de vida, insistindo

que a posição social dessas pessoas era um fator determinante da visão histórica

deles. Williams estava perseguindo uma de suas preocupações centrais: a dimensão

prática e material da consciência e das formas culturais.

Conforme recorda Sarlo (2001, p. 13), as décadas de 1960 e 1970 foram

marcadas pelas teorias discursivistas e estruturalistas, com ênfase na crítica do

sujeito e marcadas pela desvalorização da experiência. Raymond Williams, portanto,

estava na contramão das correntes acadêmicas até então em voga. Em O campo e

a cidade, Williams estreitou suas relações com o marxismo (com subcorrentes

específicas do marxismo, a saber: o marxismo de Gramsci) e assentou as bases

para a formulação do que, poucos anos mais tarde, seria chamado de materialismo

cultural.

Por conta desses fatores e por conjugar a análise histórica de duas formas de

vida com a leitura de poemas e romances representativos do pensamento inglês, O

campo e a cidade aparece como a obra na qual, por necessidade, Raymond

156

Williams vai discutir os temas prementes deste trabalho: os modos pelos quais os

fatores sociais influem na literatura e como pode se processar uma análise que

resguarde uma relativa autonomia do fenômeno artístico.

5.2.1 As imagens do campo e da cidade na história da literatura inglesa

Raymond Williams, no início de O campo e a cidade, assinala a problemática

sobre a qual se debruçará durante todo o livro: o fato de que sobre essas duas

formas de comunidade humana se formaram o que ele denomina de atitudes

emocionais poderosas no decurso de tempo. Ao passo que o campo passou a ser

visto como o lugar de formas simples de vida, ao qual são agregadas características

como simplicidade e inocência, a cidade se vinculou às ideias de realizações, de

saberes, comunicações etc., relacionando-se a adjetivos negativos, como barulho,

interesses, mundanidade (WILLIAMS, 2011d, p. 11).

Embora o interesse de Raymond Williams seja o de discutir relações gerais

entre campo e cidade, a análise é realizada com base em exemplos extraídos da

literatura inglesa. No entanto, o autor galês considera representativa essa literatura,

visto que a Inglaterra experimentou muito cedo, e de modo muito intenso, a

Figura 8 – Capa do livro O campo e a cidade

Fonte: Williams (2011d)

157

Revolução Industrial, resultado de um capitalismo agrário que já vinha, desde muito

antes, corroendo o que se denomina de campesinato tradicional. Esses são eventos

que, portanto, alteraram profundamente as relações entre campo e cidade. Apesar

da Revolução Industrial e outros acontecimentos históricos terem transformado

mutuamente campo e cidade, o autor nota que, ao longo do tempo, as atitudes

inglesas para com esses dois lugares permaneceram praticamente as mesmas

(WILLIAMS, 2011d, p. 12-13).

O leitor atento notará que Raymond Williams, ao apontar para essa questão,

começa a delinear sua visão sobre os fatores sociais e literários. Em primeiro lugar,

o autor galês trabalha com fenômenos históricos gerais e de amplo alcance

histórico, e não com fenômenos que se encerram em um determinado contexto. Em

segundo, ele também destaca que, apesar de os eventos históricos indicarem

transformações, a literatura permaneceu com a mesma atitude durante longo

período, o que, se bem visto, significa a relativa autonomia que o fenômeno literário

guarda em relação aos fatos históricos.

A título de ilustração, Raymond Williams elenca como diversos escritores se

referem a um processo de transformação rural, para os quais o campo estaria

perdendo algo de sua característica principal e, portanto, morrendo. Assim, George

Sturt se refere a uma mudança ocorrida em um momento anterior ao seu, mas

coincidente com o período no qual Thomas Hardy produziu suas obras. Hardy, por

sua vez, também era visto como um escritor que trabalhava as transformações

ocorridas no campo em uma época anterior a sua. Essa época, no entanto, coincide

cronologicamente com o tempo em que Richard Jefferies viveu e escreveu. E assim,

de modo sucessivo, o momento em que o campo ainda não havia sido afetado por

mudanças drásticas é jogado permanentemente para trás (WILLIAMS, 2011d, p. 22-

26).

Com certa dose de ironia, Raymond Williams nota, nesse movimento –

batizado por ele de escada rolante –, uma digressão histórica incessante e que, ao

cabo, levará até o estágio inicial da humanidade de acordo com a teologia cristã: o

Éden. Portanto, o problema colocado em questão é algo maior do que a história –

isto é, não se trata de checar a veracidade histórica dos escritos. Para Williams, o

problema é de perspectiva histórica (WILLIAMS, 2011d, p. 25-27), o que pode ser

entendido como a posição ocupada pelos autores na sociedade em um determinado

momento histórico e que faz com que eles tenham certa percepção social.

158

É importante frisar que Raymond Williams identifica não a continuidade de

uma mesma imagem ao longo do tempo, mas a insistência de uma atitude ou

maneira de lidar com o campo e a vida rural. Na realidade, o significado que a

imagem dessa comunidade vai adquirir no decurso histórico é variável, isto é, o

sentido de “vida campestre” ou “Velha Inglaterra” se altera conforme muda a época e

o momento – isso significa que, em cada momento, são mobilizados valores e

relações distintos.

Desse modo, é possível falar de uma mesma atitude em períodos histórico-

sociais diferentes. Esses períodos históricos são, no entanto, trabalhados dentro dos

marcos formais e convencionais da literatura em cada momento. Por isso, o

pensador galês afirma que, ao lado do problema de perspectiva e fatos históricos,

existem também questões de perspectivas e fatos propriamente literários, porque o

que é dito não é dito sempre “em uma mesma modalidade discurso”, variando de

poemas a peças de teatro e romances (WILLIAMS, 2011d, p. 27).

O modo como cada momento histórico organiza e localiza socialmente os

atores sociais (autoras e autores de literatura) é um fato objetivo com impacto direto

sobre os fatos literários, baseados nas percepções, perspectivas e impressões de

cada ator social, formando, assim, uma realidade histórica particular. Essas

realidades históricas influenciam ideias e sentimentos gerais de um dado momento,

capazes de orientar o modo como os atores sociais vão perceber cada período

histórico (ou a atitude deles para cada momento histórico). Desse modo, Raymond

Williams pressupõe uma dialética entre realidades históricas e ideias gerais, a partir

da qual a veracidade histórica será medida não em termos de uma construção de

eventos feita a priori, mas a partir da experiência e da perspectiva dos atores

sociais.

Cada modo de se posicionar em um dado momento histórico é apreendido

por meio da noção de estrutura de sentimentos, que busca compreender justamente

como a experiência do que é vivido numa realidade histórica particular limita,

direciona e impulsiona atitudes. Ou seja, é uma noção usada para apreender

alternativas históricas de realização e posicionamento dos atores sociais. Conforme

Sarlo (2001, p.18),

a “estrutura de sentimento” é um horizonte de possibilidadesimaginárias (expostas tanto sob a modalidade de ideias, como deformas literárias e experiências sociais); as mudanças na literatura

159

ocorrem quando essas ‘estruturas de sentimentos’ já não podemmais abarcar as novidades sociais e nem estão em condições deformulá-las dentro do elenco de convenções conhecidas. A “estruturade sentimento” é um campo de possibilidades, um limite a essecampo e um conjunto de linhas de deslocamento para fora (grifos daautora).

Raymond Williams se propõe, então, a analisar cada movimento de

retrospecção da escada rolante, buscando evidenciar as relações sociais que são

ativadas por escritoras e escritores no momento em que constroem suas atitudes

para com o campo e a cidade. Assim, os pontos centrais dessa análise serão

revistos e discutidos.

O debate se inicia com o bucolismo neoclássico da Inglaterra e a sua

tendência, identificada por Williams, de idealizar o mundo rural. No bucolismo

clássico (de Teócrito, Hesíodo ou Virgílio), embora, algumas vezes, seja possível

notar o surgimento do tom de idealização da vida campestre, está presente uma

tensão entre tipos determinados de experiências: entre verão e inverno, entre cantar

e viajar, entre deleite e perda. Desse modo, o que a tradição bucólica renascentista

fez foi retirar essas tensões centrais e deixar apenas as imagens de um mundo

agradável. É a seletividade da tradição operada pela tradição bucólica (WILLIAMS,

2011d, p. 29-37).

Portanto, o que o pensador galês assinala é um processo de transformação

do sentido original do termo bucólico, antes com a dimensão descritiva

supervalorizada, tornando-se uma forma literária com ênfase na observação (da

perspectiva não do trabalhador, mas do turista ou do cientista) da beleza natural do

mundo rural. Assim, pouco a pouco, o bucolismo se transformou na descrição

idealizada da vida rural e de suas relações sociais e econômicas (WILLIAMS, 2011d,

p. 40-50).

Esse é o caso dos poemas dedicados a exaltar mansões senhoriais da

Inglaterra rural do século XVII. Raymond Williams analisa os poemas To Penhurst,

de Ben Jonson, e To Saxham, de Thomas Carew, e pontua que neles a vida do

homem rural é celebrada em oposição à vida da corte e da cidade. A celebração é

dada em termos de alguns valores próprios de uma “Idade do ouro”: a ausência de

orgulho, de ganância e mesquinhez seriam marcas das mansões de nomes

homônimos aos poemas, não só por oposição à cidade, mas também em relação a

outras casas do mundo rural (WILLIAMS, 2011d, p. 53-55).

160

A intenção dos poemas era, então, exaltar as mansões e o comportamento

caridoso dos seus senhores a um tal ponto que os valores morais se sobrepunham a

toda uma ordem social. Raymond Williams enfatiza que essa operação só é possível

porque os autores, como hóspedes das casas, identificavam-se com a posição

social dos seus donos. Desse modo, por meio de uma operação mitificadora em

torno de uma abundância natural da terra, os poetas obliteraram o trabalho da

paisagem e produziram escritos com descrições da vida rural e elogios sociais da

aristocracia de então (WILLIAMS, 2011d, p. 59-62).

Raymond Williams pontua que essa referência ao passado está dentro dos

marcos de uma estrutura de sentimentos, cujo ponto central não é a explicação e a

análise histórica, mas um modo de reagir às mudanças, que tem “causas sociais

mais concretas e mais interessantes”. Assim, o que é mais importante, nesses

poemas, nos quais a idealização de valores feudais vem à tona, é que eles

coincidem temporalmente com outro momento: o advento da agricultura capitalista

na Inglaterra. Desse modo, a operação realizada pelos poemas é de mobilizar os

ideais aristocráticos como crítica ao capitalismo, então nascente, provocando uma

crise de valores (WILLIAMS, 2011d, p. 65-66).

Essa questão elucida bem o tratamento dado por Raymond Williams aos

fenômenos sociais e literários. O que o pensador galês realiza nessa discussão, se

bem percebido, é mostrar como fatores sociais atuam diretamente como causas

externas das transformações na literatura. Os textos literários são quase respostas a

um dado contexto ou fenômeno sócio-histórico.

Williams não se preocupa em mostrar como um autor ou obra filtraram para

dentro das fronteiras estéticas um dado elemento do mundo social, nem busca

analisar a função interna dessas causas externas – nesse sentido, nota-se que o

elemento social não é específico, mas um processo social geral, o capitalismo. O

que o pensador galês quer é mostrar como esses elementos sociais atuam desde

fora exercendo pressões sob a atividade artística.

Raymond Williams pontua o quão forte é esse tipo de atitude para com a

mudança, sustentando que ela permaneceu por muito tempo na Inglaterra. Na sua

visão, essa espécie de radicalismo retrospectivo é constantemente mobilizada como

crítica ao capitalismo atual, em um movimento que envolve opor sentimentos

humanitários aos supostos valores da ordem capitalista (ambição, egoísmo etc.).

Desse modo, ele observa que uma crítica social importante é deslocada para o

161

passado e esvaziada, porque os valores sociais por ela mobilizados se transformam

em posturas reacionárias, porque acorrem hierarquias sociais e estabilidades morais

de uma ordem anterior (WILLIAMS, 2011d, p. 66).

Raymond Williams é duro em relação a essa crítica ancorada em valores

passados. Para o autor, ela é frágil, porque para se opor ao capitalismo procede a

um apagamento das contradições sociais da época exaltada: a agricultura do

período era tão bruta como a de qualquer outra ordem social, antecessora ou

sucessora; baseava-se na exploração das terras e também das pessoas, tidas

igualmente como propriedades e amarradas a essas relações pelas leis e costumes

da época (WILLIAMS, 2011d, p. 68-69).

Para destrinchar essa questão, Raymond Williams analisa a estrutura social

da época e o papel das classes intermediárias do campesinato inglês, as que se

situavam entre o senhor feudal e o servo ou entre o grande proprietário e o

trabalhador despossuído de terra. Era essa classe que mais sofria com as

mudanças e estava sendo pressionada pelos grandes proprietários de terra. Os

escritores, em sua maioria, identificavam-se com essas classes. Desse modo,

produziam críticas morais ao capitalismo, pois socialmente eram também

proprietários (embora de pequenas porções de terra) – isto é, atacavam a ganância

e o interesse excessivos e não o fator social preponderante, a propriedade

(WILLIAMS, 2011d, p. 72-80).

Na literatura sobre a vida rural, a idealização de um passado feliz convive

também com a noção de inocência e pureza do mundo rural, contrapostas à vida

citadina. Na visão de Raymond Williams, tal antagonismo só pode se sustentar

porque houve um processo de separação ideológica da exploração entre o mundo

rural e o das cidades. O interesse do autor galês é mostrar como campo e cidade,

na verdade, se relacionam por meio do processo social geral denominado

capitalismo; assim, para o autor, o que não se percebe é que a cidade se alimenta

daquilo produzido pelo campo, e que, acima da rede de exploração do mundo rural

(aquela vocalizada pela tradição bucólica), há a exploração do campo como um todo

pela cidade como um todo. Portanto, conclui:

Se o que se via na cidade não podia ser aprovado, por tornarevidente a sordidez das relações decisivas que regiam a vida daspessoas, o remédio não era jamais a moralidade da vida simples edos pensamentos nobres trazida por um visitante, nem uma conversavazia sobre campos verdejantes. Era uma mudança das relações

162

sociais e da moralidade essencial. E era precisamente nesse pontoque a ficção “cidade e campo” era útil: para promover comparaçõessuperficiais e evitar comparações reais (WILLIAMS, 2011d, p. 94).

A partir de alguns eventos históricos, como a Guerra Civil, a Commonwealth e

a Restauração, que alteraram socialmente a Inglaterra, Raymond Williams nota uma

mudança do ideal de contemplação do mundo rural para o ideal de virtude produtiva.

O autor galês faz uma comparação entre os poemas Upon appleton house, de

Andrew Marvell, e Epistle to Burlington, de Alexander Pope, para mostrar como, no

primeiro, começa a ocorrer uma legitimação da propriedade fundiária conseguida

através do esforço e, no segundo, há uma pregação moral em prol do uso da casa

para o investimento produtivo, uma ética de melhoramento das terras (WILLIAMS,

2011d, p. 95-103).

A ética do melhoramento do poema de Pope deve ser entendida no horizonte

do aprofundamento das transformações da estrutura fundiária da Inglaterra, que

continuava a assistir ao desaparecimento das pequenas propriedades e o

crescimento das grandes porções de terra, cada vez mais voltadas para o aumento

progressivo do cultivo. Nessa época, a propriedade deixou de ser considerada

apenas herança e passou a ser vista como uma oportunidade de investimento.

Assim, uma ideologia do melhoramento ganhou força e começou a orientar as

relações sociais entre proprietários, arrendatários e trabalhadores (WILLIAMS,

2011d, p. 104-105).

Estes fatores históricos influenciam uma outra via, contribuem para o

recrudescimento de outras formas literárias – isto é, toda uma forma coletiva de

produzir pensamentos nasce como resposta a um momento histórico.

Assim, Williams pontua que houve uma afluência para a forma literária do

romance, que tematizou o impacto desse novo momento na vida das pessoas. É o

caso de Clarissa (1748), de Samuel Richardson, e Tom Jones (1749), de Henry

Fielding, que dramatizam a tensão pela escolha entre vantagem econômica e certos

valores sociais no espaço privados das famílias. A força dos livros, na visão do

pensador galês, encontra clara limitação, pois não criticam a sociedade ou a

estrutura social, mas uma abstração chamada o mundo; ou, no caso de Daniel

Defoe, em A tour though of england and wales (1927), a questão entre fortuna

163

material e necessidade se resolve por meio de uma revelação feliz no fim da trama

(WILLIAMS, 2011d, p. 106-112).

Mas é na poesia que essas pressões sócio-históricas são retrabalhadas de

modo mais significativo. Raymond Williams assinala que há uma mudança de tom:

se antes era predominante a imagem do arrendatário feliz, construído por meio do

eu idealizado da tradição bucólica, agora percebem-se elementos como perda,

mudança e pesar. Esse sentimento melancólico convive com elogios da ordem

social. Por isso, a nova postura frente às mudanças é essencialmente ambígua, que

exalta e censura a dinâmica da vida rural, além de caminhar de um contraste claro e

consciente entre os homens humildes do mundo rural e ambição da corte e da

cidade – The seasons (1730), de James Thomson – até um contraste ético entre

campo e cidade, no qual as virtudes do campo estão transpostas para o passado –

The deserted village (1770), de Oliver Goldsmith (WILLIAMS, 2011d, p. 115-133).

Essa postura é ambígua porque o próprio capitalismo é ambíguo: ao mesmo

tempo em que estimula o crescimento econômico, distribui de modo desigual a

riqueza, por exemplo. Assim, o contraste entre elementos opostos é uma

característica dessa nova ordem social. Essa ambiguidade, com origem dentro

dessa nova ordem, deu vez ao que Raymond Williams denominou de estrutura

romântica de sentimentos, cuja operação consiste em afirmar a natureza em

oposição à indústria; e é responsável por isolar comunidade e humanidade na noção

de cultura, concebida também em oposição a relações sociais concretas

(WILLIAMS, 2011d, p. 135-141).

Dessa forma, o que Raymond Williams (2011d) procura analisar é justamente

o que está por trás dessa estrutura de sentimentos que recorrentemente desloca

para o passado a existência de uma sociedade rural mais afortunada e que vê no

presente a existência de uma vida campestre destruída – como se percebe, por

exemplo, na melancolia do poema The village (1783), de George Crabbe. Para o

pensador galês, a fonte dessa postura se encontra em uma leitura estreita da

história da Inglaterra, segundo a qual o evento dos cercamentos das terras por

ordem do Parlamento é identificado como o principal vetor de destruição da vida

rural estável.

Os ataques de Raymond Williams se dirigem a essa perspectiva que

identificava o advento do industrialismo urbano, e não o capitalismo, como causa

das transformações no mundo rural. O autor galês não quer diminuir a importância

164

da campanha dos cercamentos, mas enfatizar que ela não se desconecta de outros

eventos, dando destaque para a mudança nas relações de propriedade, que, desde

muito antes, vinham apontando para a concentração de terras nas mãos de uns

poucos (WILLIAMS, 2011d, p. 165-166).

Os cercamentos não introduziram novidades na estrutura rural inglesa, mas

foram importantes na medida em que completaram as pressões econômicas sobre

os pequenos proprietários ao abolir as últimas aldeias onde vigorava o sistema de

campo aberto e de direitos comuns. Fazem parte, assim, de um movimento que

corresponde à consolidação de um sistema capitalista, que realizou confiscos

legalizados com vistas a beneficiar os grandes proprietários; desse modo, já no fim

do século XVIII, era possível falar em uma sociedade capitalista organizada

(WILLIAMS, 2011d, p. 167-169).

Dos deslocamentos realizados por Raymond Williams (2011) ao longo do

livro, esse talvez seja o mais importante e represente a culminância do seu

argumento. O pensador galês esvazia de peso histórico a questão dos cercamentos

como causa isolada e põe ênfase no sistema capitalista, porque, a seu ver, esse

fator explicar melhor as transformações do mundo rural inglês. Pôr em destaque o

que chamou de capitalismo é, na verdade, enfatizar mais um fio condutor, uma linha

histórica, e menos um evento.

O que Raymond Williams quer mostrar é que tanto os cercamentos quanto o

industrialismo urbano não são constantes históricas isoladas – se ligam a outros

processos encadeados de modo a dar explicações mais satisfatórias aos

desenvolvimentos da literatura inglesa. O reposicionamento realizado por Williams é

tão mais importante porque é a partir dele que a análise e a crítica de obras e

autores são realizados – é, inclusive, a base para ponderar o peso relativo de certos

escritores para a literatura inglesa, elemento que fica mais claro na discussão sobre

Thomas Hardy, que veremos mais à frente.

Dito de outro modo, a reconstrução histórica com peso em um processo social

geral serve para Raymond Williams mostrar que “a contraposição ‘Inglaterra rural do

passado’ versus ‘Inglaterra urbana do presente’ carece de sentido, posto que aquilo

que se via – e celebrava – como passado rural já era o campo alterado pelo

capitalismo” (RIVETTI, 2015, p. 106). Williams já não havia poupado críticas aos

poemas da mansão senhorial, que tematizavam a transição do mundo rural para o

burguês, ao afirmar que eles praticavam a idealização de uma ordem social tão cruel

165

como qualquer outra. Mas é a partir da identificação do nascimento dessa estrutura

de sentimentos romântica que a crítica ganha mais força, pois é possível mostrar o

quão ideológica é a perspectiva que associa a destruição do campo a um único fator

histórico – o advento do industrialismo urbano.

Essa perspectiva, como já foi dito, só pode ser compreendida na relação com

a experiência dos atores sociais – no caso, os escritores. Williams (2011) compara

as perspectivas de três escritores sobre a mesma localidade (Farnham, ao sul de

Londres). São eles: William Cobbett, Jane Austen e Gilbert White. O primeiro deles,

Cobbett, introduziu nos romances a figura do trabalhador, identificando-se com ele e

tematizando uma nova interação entre as classes. Para Williams (2011), isso

respondia às necessidades impostas por um momento de maturidade do

capitalismo, que pedia o nascimento de uma oposição sistemática a ele (WILLIAMS,

2011d, p. 183-190).

Já a escritora Jane Austen, por outro lado, analisa, em seus romances,

condutas pessoais, buscando elucidar os padrões orientadores do comportamento

humano em certas situações. Austen desenha algumas situações – o recebimento

de uma herança, por exemplo – e tenta mostrar como elas impulsionam a ação dos

personagens. Já nessa altura, Raymond Williams opera a primeira releitura da

tradição, afirmando que Austen, por concluir em suas obras que moralidade e classe

social não necessariamente coincidem, está menos para Fielding e Richardson e

mais para Coleridge, Eliot e Arnold (WILLIAMS, 2011d, p. 191-197).

Por fim, em Gilbert White, aponta Raymond Williams, os comentários não são

de ordem social. Ele faz uma descrição do campo com ênfase nos elementos físicos.

Esse é o ponto principal de diferenciação: ao passo que os dois primeiros (Cobbett e

Austen), cada a um a seu modo, discutem e analisam pessoas ou contextos sociais,

White descreve uma ordem física e natural, abrindo a possibilidade de a natureza

ser afastada do homem (WILLIAMS, 2011d, p. 198-200). Era o nascimento da

chamada técnica do paisagismo.

Essa observação distanciada do mundo rural, reduzido à sua estrutura física e

natural, só é possível porque quem descreve de modo idealizado e distante um lugar

não trabalha nele – “raramente uma terra em que se trabalha é uma paisagem”

(WILLIAMS, 2011d, p. 201). O autor identifica o surgimento de outro tipo de homem,

completamente distanciado do mundo do trabalho rural; um sujeito que é apenas um

observador e é consciente disso. Isso implica ser consciente de que se é, antes de

166

tudo, um proprietário, classe a quem é dada o privilégio de enxergar toda uma

estrutura social como apenas um mundo físico e natural.

A construção dessas paisagens, isto é, a reorganização física do mundo rural

que é coetânea à reorganização produtiva do campo provocada pelo capitalismo, é a

concretização da ideologia da mansão senhorial, dos poemas de Johnson sobre

Penshurst: uma imagem do mundo rural onde não existe trabalho, trabalhador ou

qualquer elemento ligado à produção, apenas descrição de elementos naturais –

florestas e matas, águas e rios, etc. (WILLIAMS, 2011d, p. 208).

Essa separação e esse distanciamento chegam ao ápice com a “linguagem

verde”: o sentimento egocêntrico de perda. De acordo com Raymond Williams,

poetas como William Wordsworth e John Clare introduziram a figura do observador

solitário e sedimentaram a postura de isolamento e solidão como veículos da

natureza e da comunidade, em oposição à busca fria por prosperidade da sociedade

dita normal. Esses dois poetas configuraram uma espécie de repercussão subjetiva

das transformações da natureza – isto é, os efeitos internos dos cercamentos e das

transformações fundiárias rurais (WILLIAMS, 2011d, p. 213-240).

Paralelamente às transformações no campo e às imagens sobre ele que eram

construídas por poetas e romancistas, a cidade – no caso Londres, o exemplo mais

significativo – também se transformava e se expandia, mas com mais rapidez. A

cidade foi retrabalhada por William Blake como o lugar da multidão, do ruído e da

rapidez, porém, foi com Charles Dickens que foi trabalhada com profundidade. De

acordo com Raymond Williams, Dickens conseguiu alcançar o foco da questão da

vida na cidade: a coexistência da variação e da aleatoriedade dentro de um sistema

determinante geral – que direciona de modo comum situações e destinos

(WILLIAMS, 2011d, p. 241-261).

Para Raymond Williams, Dickens traz um modo de descrever a cidade com

foco na movimentação acelerada e aparentemente fortuita de pessoas, mas faz isso

se coadunar com conexões e relacionamentos profundos, que só se desenham

paulatinamente à medida em que a ação se desenrola, e que, no entanto, são

camuflados pela caracterização do barulho, da pressa e da multiplicidade. Dickens

utiliza imagens sombrias, como, por exemplo, de uma nuvem escura que paira sobre

a cidade, para simbolizar as consequências humanas de uma ordem social. Na

167

visão do pensador galês, Dickens é quem melhor consegue apreender a dinâmica

social de transformação e mobilidade constantes de Londres.

Como faz durante toda a obra, Raymond Williams credita essa realização à

dimensão prática de um autor em um dado contexto histórico. Assim, Williams

salienta que os artifícios formais, os mecanismos de caracterização e o tipo de

narrativa empregados por Dickens têm sua origem justamente no modo de viver e

perceber a cidade de Londres. Para o pensador galês, a experiência do autor na

cidade e seus recursos ficcionais são o reverso um do outro: “a experiência da

cidade é o método da ficção; o método da ficção é a experiência da cidade. O

importante é que a visão […] é a forma da escritura” (WILLIAMS, 2011, p. 262).

Um dos pontos altos das análises de O campo e a cidade é a discussão sobre

o romance realizada por Raymond Williams em torno da noção de comunidade

cognoscível. Para o autor, todo romance se constitui como uma comunidade

cognoscível na medida em que o autor da obra busca mostrar pessoas e

relacionamentos de maneira cognoscível e comunicável. Como o foco de Williams é

a experiência que materializa pensamentos, ele aponta que os sujeitos que

observam (os autores) também são cognoscíveis, portanto, deve-se atentar não

apenas para a realidade da comunidade rural, mas também a posição de quem

escreve em relação a ela (WILLIAMS, 2011, p. 278-279).

Desse modo, Raymond Williams passa a analisar como Jane Austen, George

Eliot e Thomas Hardy trabalham em seus romances as transformações no campo.

Sobre Austen, Williams pontua que a romancista descreve relacionamentos

interpessoais face a face, cotejados com avaliações morais sobre as escolhas dos

personagens, de um modo muito restrito: basicamente, a ação se passa entre

proprietários; os outros grupos de pessoas, trabalhadores, por exemplo, são

completamente invisibilizados. Ser retratado em um romance de Austen, então,

significa fazer parte uma classe específica (WILLIAMS, 2011d, p. 279-280).

George Eliot é sucessora de Austen no que concerne à continuidade das

avaliações morais, mas essa semelhança convive com uma distinção fundamental:

Eliot inclui, em seus romances, pessoas de outros estratos sociais, trazendo para as

análises das condutas individuais as questões socioeconômicas. Mas Eliot encontra

suas limitações; no fundo, um problema no modo de retratar as classes

trabalhadoras: a descrição dos personagens rurais de classes baixas nunca é

realizada plenamente, pois a autora não consegue transcender sua própria posição

168

na comunidade que quer observar – de acordo com Williams, os personagens

populares não são mais que “elementos de uma paisagem” (WILLIAMS, 2011d, p.

283).

A solução para o impasse, assim, é o que podemos chamar de

condescendência narrativa, essencialmente um problema de linguagem: como sabe

que os personagens retratados são diferentes do público ao qual destina seus

romances, Eliot se propõe a torná-los cognoscíveis emprestando sua própria

consciência a esses personagens – culminando na ideia estereotipada de que os

personagens rurais são simples, têm fala exótica, mas são agradáveis e honestos.

Os romances de Eliot ainda encontram dificuldades para trazer soluções sociais

para os problemas levantados na narrativa, resumindo-se ao desfecho de uma ação

individual isolada de retorno ao passado rural, passado idealizado de valores morais,

no qual apenas algumas classes, as mais abastadas, têm importância. (WILLIAMS,

2011d, p. 284-302).

Essas questões ganham novo tratamento com Thomas Hardy. Para Raymond

Williams, Hardy alcança uma abordagem mais satisfatória dessas temáticas, mas,

para sustentar isso, o pensador galês teve, primeiro, que retirar as classificações

usuais feitas pela tradição inglesa de Hardy e de sua obra. Williams salienta que

Hardy não veio de um mundo rural distante, mas de um local onde vivia intensas

transformações sociais; essas transformações, na ficção de Hardy, são tematizadas

como a experiência da mudança e a dificuldade da escolha. Esses elementos, na

visão do pensador galês, constituem uma realidade ainda viva, concernente a todos,

e, portanto, observar Hardy como escritor regionalista, cronista da vida rural, é algo

equivocado (WILLIAMS, 2011d, p. 327-328).

De acordo com Raymond Williams, a discussão central em Hardy diz respeito

ao embate entre tradição e costumes, de um lado, e a educação formal, de outro.

Portanto, ele não vem de uma velha sociedade rural – se insere, ao contrário, no

contexto de uma experiência social ainda ativa. Essa capacidade de colocar em

pauta questões atuais deriva da própria posição social de Hardy: ele não veio de um

lugar onde predominava camponeses, mas sim composto por proprietários,

arrendatários e comerciantes; Hardy também estudou arquitetura e experimentou

um processo de ascensão social, no qual passou a ocupar a classe das pessoas

instruídas, não se tornando necessariamente um proprietário, mas possuindo laços

sociais com essa classe (WILLIAMS, 2011d, p. 330-332).

169

Desse modo, a obra de Hardy é marcada por essa tentativa de descrever e

valorizar uma forma de vida (a do meio rural) com a qual se ligava de maneira

parcial. A problemática central das pressões e das escolhas, inclusive do ponto de

vista dos problemas de linguagem, afinal Hardy também escrevia para um público

que via o campo de maneira estereotipada, é discutida em torno de uma trajetória: a

de quem sai do seu meio, adquire instrução formal e, ao retornar, não se sente mais

parte desse mundo – a chamada volta do nativo, discutida claramente em Jude, the

obscure (1985).

Dessa maneira, são dois os pontos mais importantes a destacar das

avaliações que Raymond Williams faz de Hardy, e que ajudam a entender porque o

pensador galês considera esse romancista tão importante: primeiro, ao trabalhar as

questões desta maneira (os dilemas de uma pessoa que passeia entre dois mundos

e não se vê totalmente ligada a nenhum deles), Hardy mostra a articulação existente

entre campo e cidade. Assim, não há mais a oposição superficial entre mundo

urbano e rural, mas uma discussão em torno de um processo histórico capaz de

colocar a instrução formal como um fator importante para a ascensão social em uma

sociedade de classes; e, segundo, Hardy percebe que essas questões impõem

limitações que não podem ser simplesmente resolvidas pela nostalgia ou pelo apelo

à simplicidade da natureza (WILLIAMS, 2011d, p. 335-337).

Por isso, Thomas Hardy não resolve suas histórias com uma postura reativa,

pois não via o campo como “locus amoenus onde as pessoas, em contato com a

natureza e por meio do trabalho braçal, deteriam em si grandes valores morais”

(MORELLI, 2009, p. 26); isso fez com que se desapegasse do passado e nutrisse

suas expectativas para o futuro. Ora, esse elemento ganha maior densidade porque

vai contra o movimento de se remeter a um passado rural idealizado – Hardy, na

visão de Williams, é grande por isso.

O que é denominado como reposicionamento histórico operado por Raymond

Williams, a saber, o ato enfatizar um processo histórico geral, o capitalismo, e não

um evento isolado, cercamentos, é o ponto gravitacional das análises do pensador

galês em O campo e a cidade. O debate em torno da ficção de Thomas Hardy é, de

algum modo, o corolário da discussão proposta por Williams. Como o

reposicionamento histórico é o critério crítico do pensador galês, a partir do qual ela

valoriza obras e autores, Hardy significa o ponto em que a literatura inglesa produziu

170

um tipo de romance capaz de apreender a totalidade do processo social em

questão.

Como proposta teórico-metodológica, significa pesar autores e obras com

relação a eventos históricos amplos e avaliá-los a partir das ideias e percepções que

constroem sobre esses eventos, julgando, não a fidelidade histórica, mas modos de

perceber a realidade. Isso é a base, por exemplo, para Raymond Williams reler a

tradição da literatura inglesa e colocar Hardy, e não Henry James, como herdeiro

direto de Eliot. E, no fim dessa linha, está D. H. Lawrence.

Como modo de interpretar a dinâmica social da arte e da literatura, percebe-

se que estas são vistas por meio das pressões sociais sofridas constantemente,

além de guardarem relativa autonomia, porque produzem atitudes voltadas para

interferir no mundo social, mas nunca completamente independentes e absolutas.

Mais do que isso, a literatura só é compreendida mediante uma análise paralela às

transformações históricas da sociedade. Não se faz uma análise de uma única obra,

mas de várias obras, no decorrer do transcurso histórico. A partir disso, é possível

julgar seus pontos altos e baixos.

Como visão de sociedade, Raymond Williams demonstra sua ênfase em um

processo social total. A concepção subjacente é a de que a sociedade moderna é

dominada por um extenso processo social, o capitalismo; este, no entanto, localiza

diversos atores sociais em pontos distintos da estrutura social, provocando, assim,

percepções distintas, quando não contraditórias, sobre o mesmo processo. O

objetivo de Williams, nesse livro, é mostrar como, no decorrer do tempo, foram

produzidas as percepções hegemônicas sobre a sociedade inglesa.

A ênfase dada à totalidade do processo social fica mais clara com o

desenvolvimento do argumento do livro. Quando a linha do tempo se aproxima do

nosso tempo histórico, particularmente a partir do início século XX, Raymond

Williams alça a discussão que ele propôs para a Inglaterra a toda sociedade global.

Para o autor, a coexistência de países desenvolvidos, centros de poder político,

cultural e econômico, e de países subdesenvolvidos, basicamente países agrícolas

ou subindustrializados, só ocorre por meio de um inter-relacionamento, no qual os

segundos alimentam os primeiros, e a isso são presos por uma relação de

dependência econômica e pela ideologia do “desenvolvimentismo”, sustentada por

uma falsa ideia etapista de desenvolvimento (que significa basicamente tornar-se

171

industrial). Desse modo, o imperialismo é ele próprio um modelo atualizado de

cidade e campo (WILLIAMS, 2011d, p. 456-464).

Se há a ideia de separação entre campo e cidade, que se tornou mais aguda

com os cercamentos e advento do industrialismo culminam no imperialismo do início

do século XX, é porque o campo e cidade são “realidades históricas em

transformação tanto em si próprias quanto em suas inter-relações” e a comparação

dessas duas realidades históricas é “uma das principais maneiras de adquirirmos

consciência de uma parte central de nossa experiência e das crises de nossa

sociedade” (WILLIAMS, 2011d, p. 471). Williams estabelece claramente sua

insistência no processo histórico amplo e na visão total de sociedade.

O que constata, no começo de sua obra e que serviu de problema inicial, foi a

persistência de certas ideias e imagens sobre campo e cidade; o seu objetivo é fazer

uma reavaliação crítica dessas ideias e imagens, pois a persistência delas caminha

lado a lado com pequenas mudanças, internas ou mesmo inconscientes, com

conteúdos históricos específicos. Assim,

A cada momento histórico é necessário confrontar essas ideias comas realidades históricas, que por vezes se as confirmam, outrasvezes a negam. Contudo, precisamos também, ao ver o processocomo um todo, confrontar as realidades históricas com as ideias, poishá ocasiões em que estas exprimem […] interesses e objetivoshumanos a que não temos como nos referir de outro modo. Oproblema não é apenas a dificuldade ou impossibilidade de encontrartermos mais específicos; a questão é que no campo e na cidade,fisicamente presentes e substanciais, a experiência encontra ummaterial que corporifica os pensamentos (WILLIAMS, 2011d, p. 475).

Ao estabelecer essa relação dialética, na qual se caminha não só de uma

realidade histórica para um conjunto de ideias, mas também deste para uma

realidade histórica, Raymond Williams está afirmando que, certos períodos da

história, e mais a história ampla como um todo, só podem ser compreendidos com

referência à experiência dos atores sociais. Como essas ideias se expressam em

termos de arte e literatura, a base de conexão entre a literatura e o mundo social

não estão em propriedades mediadoras, mas na própria experiência – que é social,

histórica, política e também simbólica.

172

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho, buscou-se pontuar e discutir os elementos

principais da vida e da obra de Antonio Candido e Raymond Williams. Na visão

apresentada neste estudo, as questões trazidas permitem esclarecer as principais

distinções e semelhanças entre os dois autores no que concerne à análise da

relação arte e sociedade.

Todas as aproximações e distanciamentos devem ser tomados dentro do

quadro de referência, formado pelas contribuições das tradições idealista e

materialista para o estudo da arte e da literatura. Certamente não é um debate novo,

mas orientou a produção intelectual quando Candido e Williams escreveram suas

obras e ainda hoje tem relevância, servindo de parâmetro para a área.

Isso se torna mais importante, porque a força das obras de Candido e

Williams aqui analisadas foi extraída do diálogo que buscaram eles estabelecer

entre as duas tradições. Foi por isso que chamamos o tipo de abordagem de ambos

os autores de sintética. Sintetizar, contudo, não significa fazê-lo do mesmo modo.

Observou-se que o trabalho dos dois autores se diferencia em pontos cruciais para a

sociologia da literatura. E isso começa com o modo pelo qual se estruturou a

atividade intelectual nos dois pensadores.

A entrada em um espaço atravessado por relações de poder, como é o caso

das instituições de ensino superior, é governada, em larga medida, por questões

concretas, como a classe social dos indivíduos. Antonio Candido era oriundo das

classes médias paulistanas e tinha exemplos familiares de atuação intelectual

pública. A fácil sociabilidade na USP, a empreitada crítica na revista Clima e em

jornais de circulação diária de São Paulo devem ser interpretados por meio dessas

questões.

Do modo inverso, Raymond Williams, oriundo da zona rural e da classe

trabalhadora, não encontrou espaços de sociabilidade que não fossem as secções

dos partidos políticos de então. Esse fator vem sedimentar a própria herança familiar

de Williams, fortemente ligado à política pela atuação do seu pai no sindicato dos

ferroviários.

Tanto quanto é possível enxergar, essas diferenças de trajetórias repercutem

fortemente nas obras dos autores em questão. Todo o projeto intelectual de

173

Raymond Williams está atravessado pela questão política, no sentido mais amplo do

termo, de profunda transformação das estruturas sociais capitalistas em direção ao

socialismo. Muitos dos seus textos refletem os novos desafios para construção de

uma sociedade igualitária e socialista por meio da cultura.

Já na teoria e na crítica de Antonio Candido, a dimensão política não é tão

forte. Com isso não se quer afirmar que Candido, como intelectual, não se inserisse

no debate público e não entrasse em questões políticas. Sabe-se que o pensador da

USP participou da fundação da União Democrática Socialista, em 1945, e do Partido

dos Trabalhadores, em 1980, além de ter se posicionado contra a opressão ditatorial

durante o Estado Novo e o Regime Militar. A própria revista Clima passou por um

momento de politização, no qual alguns dos seus membros passaram a reivindicar

para si um tipo de socialismo independente.

Apesar de todos esses fatores, o debate político não se transpôs de maneira

aberta para os escritos de Antonio Candido (salvo raríssimas exceções, como o

artigo A verdade da repressão, publicado no periódico Opinião, em 1972). Na

maioria das vezes, a sua produção teórica guardou relativa distância dessas

questões. Isso quer dizer que uma correlação entre a política e a crítica de Candido

não pode ser estabelecida? Sem dúvida, pode. Mas é significativo que tal

movimento exija um grande esforço de exegese, como o realizado por Celso Lafer

(1992, p. 292-294).

O projeto teórico de Antonio Candido é engajado em outra frente. O pensador

uspiano faz parte de uma geração de pensadores de traço modernista, cuja

preocupação central está em entender o processo de formação do Brasil para poder

modernizá-lo. Assim, Candido define o perfil do crítico na periferia do pensamento:

aquele que é ou está empenhado nas questões nacionais. Essa preocupação de

Candido guarda íntima relação com os objetivos da fundação da Universidade São

Paulo, que era a de forjar quadros para retomar da hegemonia política no país, e

isso não é simples coincidência. Tal objetivo só estaria ao alcance de pessoas como

o próprio Candido.

As preocupações iniciais de cada autor se consolidaram de tal forma que se

transformaram em marcas do seu projeto intelectual e tiveram reverberações

importantes, porque esbarraram nos elementos estruturais dos seus respectivos

contextos. No caso de Antonio Candido, a busca pela explicação do processo de

formação do Brasil, por meio das contribuições literárias, culminou na composição

174

de um tipo de avaliação crítica marcadamente interdisciplinar que não foi

comportada pelo espaço institucional das Ciências Sociais. Raymond Williams, por

seu turno, visava explorar a centralidade do termo cultura para a dinâmica das

relações sociais na Inglaterra e, por isso, entrou em confronto direto com a tradição

de crítica britânica, que afastava a literatura das questões sociais.

Nos dois casos, as contendas levaram à construção de um novo espaço

interdisciplinar (Teoria Literária e Literatura Comparada, em Candido, e Estudo

Culturais, em Williams) que apontam para a marginalidade de propostas

interdisciplinares, tanto no Brasil quanto na Inglaterra, até àquela altura.

Focando especificamente as características de cada um desses espaços,

percebemos que eles admitem como objeto de estudo aquilo que, ao mesmo tempo,

eram as preocupações intelectuais originais dos seus autores e estava sendo

negado pelas correntes dominantes dos seus respectivos meios: a literatura, em

Candido, e as novas formas de expressão cultural, notadamente aquelas dos meios

de comunicação de massa, em Williams.

Em nossa perspectiva, esses eventos se processaram como exigências dos

respectivos meios intelectuais – ou da margem que cada meio intelectual concedia

às questões que cada autor pretendia trabalhar. Houve uma justaposição entre as

solicitações do ambiente intelectual dos autores e suas preocupações mais

genuínas, tais como formadas pela influência familiar e pelas experiências de vida

de cada um deles.

Assim, a chave para a compreensão do pensamento de ambos os autores

reside no modo como responderam aos seus contextos sociais e aos desafios a que

foram lançados. No Brasil, é importante dimensionar o peso que o movimento

armado de 1930, paralelo a uma profunda crise econômica, teve na vida cultural

brasileira. Pode-se dizer que, de maneira geral, o interesse pelo Brasil e pelas suas

questões sociais cresceu. Na intelectualidade, esse elemento expressava-se por

meio de uma consciência do país e na denúncia de seus males sociais.

Em diversas ocasiões, Antonio Candido expressou a influência que esta

efervescência política e social teve sobre ele e sua geração. O interesse pelo lado

social dos fenômenos e a preocupação cada vez maior com os estudos sobre o

Brasil levaram-no a optar pelo recém-criado curso de Ciências Sociais. Desse modo,

podemos sustentar que muitos dos traços mais duradouros do pensamento de

175

Candido (o interesse pela cultura brasileira, a crítica como instrumento de

modernização social) são em larga medida estruturados a partir desse contexto.

A atividade intelectual brasileira passaria, posteriormente, por um momento de

afirmação durante a década de 1940, na qual ocorreu uma tentativa de consolidação

do padrão de construção conhecimento inaugurado pela USP. A década de 1950,

marcada pelo advento da sociedade de classes e pelo novo regime democrático e

populista, seria um momento de renovação, no qual o intelectual pôde fazer uso da

autonomia, que a posição social de Candido conferia, para refletir em meio ao novo

contexto.

Durante esse período, nas Ciências Sociais, enquanto Florestan Fernandes

buscava sintonizar a produção brasileira com os padrões científicos internacionais,

Antonio Candido visava refletir sobre o passado brasileiro e as questões projetadas

por ele para o presente. De um lado, com Os parceiros do rio bonito, que, por

motivos já aludidos, não se estabeleceu nas Ciências Sociais, e, já no fim da

década, com Formação da Literatura Brasileira – momentos decisivos.

Mais do que os objetivos a que se propõe ou os resultados alcançados, o que

interessa nessa última obra é que ela abre o espaço intelectual (e mesmo

institucional, se pensarmos no curso de TLLC da USP), no qual a literatura e a crítica

poderiam dialogar com a sociologia e as ciências sociais. Ela confere a Antonio

Candido também a identidade com a qual seria conhecido.

Na Inglaterra, a década de 1930 – período no qual Raymond Williams estava

adentrando a universidade – assistiu ao estabelecimento do estudo da literatura

inglesa como principal área de conhecimento das humanidades. À época, estudar as

obras literárias do cânone inglês era a principal atividade intelectual das

universidades, expressa em um suposto modo de debater as questões mais

fundamentais da vida humana.

O estudo do inglês tinha como projeto a preservação dos valores humanos e

sua posterior difusão por meio da educação. Se bem percebido, a ascensão dessa

disciplina deve-se às necessidades intelectuais e ideológicas do mundo britânico da

primeira metade do século XX. Contra a rápida expansão urbana e industrial, a

experiência da guerra e a perda de força da Inglaterra no cenário mundial,

ofereciam-se os valores humanos superiores.

Grande parte da obra de Williams deve ser compreendida por intermédio do

modo pelo qual ele se posiciona dentro desse debate. O que um contexto com essas

176

características oferece especialmente a um sujeito estranho (aquele que não tem

pertencimento orgânico ao grupo e, portanto, tem uma experiência dual de

aproximação e distanciamento) é a possibilidade de investigar de onde nascem e a

que servem tais visões. Assim, o traço marcante do pensamento de Williams é o ato

de tentar descortinar as disposições encerradas em modos particulares de perceber

a cultura e a literatura.

O estudo da literatura inglesa saturou o panorama intelectual britânico pelo

menos até 1960. Mas dois anos antes, Williams publicou a obra que o lançou como

intelectual público e mudaria o rumo do debate britânico: Cultura e sociedade.

Portanto, mais do que o conteúdo contido na obra, a relevância está nela inverter o

sinal do termo cultura (passa da espiritualidade para a materialidade) e ampliá-lo

para além da produção literária. Ou seja, esgarça o espaço de discussão e insere

um novo modo de consideração da literatura frente ao mundo social.

Em algum momento, depois de abrirem seus próprios espaços de atuação

intelectual, os autores foram chamados a saldar questões teóricas de suas

respectivas posições. As abordagens sintéticas, propostas por ambos, eram novas,

situavam-se às margens das disciplinas e, por isso, suscitavam debates.

Precisavam, assim, ser esclarecidas e defendidas.

No caso de Candido, a obra semifinal Literatura e Sociedade vem consolidar

o espaço aberto por Formação e oferecer respaldo teórico ao curso de Teoria

Literária e Literatura Comparada na USP. Antenado com a voga estruturalista e

formalista, o pensador brasileiro procurou aproximar sua área à Nova Crítica

estadunidense e conectá-la com alguma orientação sociológica, que, de maneira

prática, é a solução teórica da restrição aos fatores sociais. O debate encontrado em

Marxismo e Literatura é o de um Raymond Williams tardio, no qual procura resumir a

transformação de suas concepções nos últimos vinte anos, e passando, sobretudo,

pelo aprofundamento da sua relação com o marxismo. Atando a posição

“culturalista” do início da sua carreira com a tradição marxista, o pensador galês

constrói o que chamou de materialismo cultural.

É necessário notar que a obra em que cada um dos autores mais se dedica a

discussões teóricas estão em momentos distintos de suas respectivas carreiras.

Candido fez de Literatura e Sociedade seu libelo em prol da sua área de estudos,

circunscrevendo o espaço de atuação intelectual. Tanto que os famosos ensaios

sobre Memórias de um sargento de milícias e sobre O Cortiço só vieram depois. Já

177

o Marxismo e Literatura de Williams não está cercado pela necessidade de firmação

em um dado contexto; ao contrário, surge como liquidação teórica de várias obras

críticas renomadas.

Porém, o mais relevante é perceber como essas disposições se diferenciam

teoricamente. A literatura, em Candido, é um evento, que pode ser capturado no

momento em que transpõe para si algo do mundo social – metaforicamente, uma

fotografia do instante em que a obra plasmou em material estético algo do meio

social, sem, no entanto, se reduzir. Em Williams, a literatura é um processo social

que responde às disputas do seu contexto, por isso é a chave para iluminar relações

ideológicas das lutas entre as classes e os grupos sociais. Como desconfia da

categoria estética, Williams historicizou radicalmente a produção cultural, o que, em

última instância, ameaça a concepção usual de literatura como discurso

especializado.

Em suma, constatou-se que, no Brasil, o panorama intelectual do segundo

quarto do século XX levantava o interesse e a preocupação pela dimensão social

dos fenômenos; na Inglaterra, o estudo da literatura era dominado pelo debate a

respeito de questões morais e de elevação espiritual. Para construir seus

respectivos olhares, Candido e Williams tiveram que ser vetores nas direções

contrárias de seus meios intelectuais. O primeiro visou a autonomia da obra literária

frente aos métodos históricos e sociais de análise; o segundo buscou salientar a

dimensão social da cultura.

Desse modo, os espaços institucionais e intelectuais de Antonio Candido e

Raymond Williams, além de se comportarem como objetos de estudo elementos

bem distintos, também caminharam, do ponto de vista epistemológico, em direções

opostas entre si, porque responderam às questões postas por seus respectivos

contextos sociais. Dito de outro modo: ambos autores deram respostas aos desafios

dos seus respectivos ambientes intelectuais. Esses ambientes abriram

possibilidades de relacionar forma literária e mundo social, mas ofereceram caminho

particulares. Em uma comparação entre os dois, isso acarreta diferenças profundas.

Essas distinções também se percebem nas análises de obras literárias

realizadas pelos autores. No caso de Dialética da Malandragem e De Cortiço a

Cortiço, de Antonio Candido, temos uma análise orientada pela redução estrutural

dos dados externos que desemboca, ao fim, na reconstrução do universo ficcional

da obra literária – em um esforço quase didático de mostrar a pertinência dos

178

achados. Esse universo ficcional, denominado por Candido de todo coeso, pode, no

limite, ser alçado a metáfora de uma comunidade, a depender dos valores

mobilizados pelo crítico.

No caso de Raymond Williams, em O campo e a cidade, temos a noção de

estrutura de sentimentos, que tenta reconstruir, por meio da análise de obras,

realidades históricas particulares limitadoras e impulsionadoras de modos de sentir e

perceber. As obras, para Williams, são indicativas das relações sociais de um dado

contexto histórico – e, principalmente, das transformações destes. A partir deste

trabalho, foi possível concluir que os dois autores têm ênfases analíticas distintas.

As análises e críticas de Candido e Williams estão mais próximas do ponto de

vista cronológico – foram escritas e publicadas até a primeira metade da década de

1970. De algum modo, ambos os autores reagem à perda de força do

estruturalismo. Em comparação com Literatura e Sociedade, o pensador uspiano

flutuou com mais desenvoltura sobre a questão dos fatores sociais que circundam a

literatura, chegando a afirmar que o meio social faz “exigências” à obra literária,

talvez o limite da sua sociologia da literatura. Williams acentuou a noção de que, por

meio de uma experiência socialmente localizada, os atores sociais produzem

percepções que estruturam o modo sentir o mundo e, principalmente, de reagir às

mudanças – também o ponto alto de seu programa.

Ao comparar as duas análises, constatamos que o ponto que mais as

distancia é o modo de relacionar a literatura ao mundo histórico. As críticas de

Candido constroem uma ponte com o contexto histórico, mas sem expandi-lo para

frente ou para trás. Assim, as análises de Candido, apesar de bem realizadas, ou

justamente por isso, se resumem a uma especificidade histórica. Já em Williams

todo o esforço só faz sentido porque ele busca analisar as transformações e as

permanências na literatura à luz do transcurso histórico.

Também é importante assinalar que, quando publicou O campo e a cidade,

Williams ainda buscava acertar as contas com a intelligentsia britânica e o modo

como ela concebia o campo e o fenômeno da industrialização. Fez isso por meio da

análise da literatura, o que resultou em um profundo movimento de releitura do

cânone. Já Candido estava inserido no contexto da censura e da perseguição do

regime militar brasileiro. Percebem-se, nas duas análises selecionadas de O

discurso e a cidade, a tentativa de oferecer uma visão positiva sobre a sociedade

brasileira e de seu processo formativo, seja a partir da construção de um mundo

179

avesso a regras, seja a partir da mistura de raças. Tomadas em conjunto, e como

corolário das análises realizadas em Formação, as críticas de Candido ajudam a

conformar o que seria o cânone da literatura brasileira.

De modo geral, todas essas distinções devem ser discutidas no quadro da

sociologia da arte e de sua preocupação central: a necessidade de enraizar a arte

no mundo social. É interessante notar como a posição na qual os autores

adentraram no debate geral sobre os estudos de arte e literatura fizeram com que

eles tivessem percepções e necessidades distintas.

Antonio Candido se inseriu a partir do campo da sociologia e terminou no

campo das Letras e com uma posição teórica de restrição à sociologia e aos fatores

sociais. Williams foi introduzido no debate a partir do campo das Letras, ocupou um

entrelugar na academia (professor de dramaturgia) e nas suas últimas posições

teóricas (Marxismo e Literatura e Cultura) trata abertamente sobre o programa de

uma sociologia da cultura. Esses percursos, de algum modo, indicam por onde

caminharam os interesses de ambos os autores, estruturados a partir da dinâmica

social de seus respectivos lugares, além de sugerir seus limites e alcances.

No caso de Antonio Candido, o ponto central é a sua dificuldade em

reconhecer a sociedade, ou os fatores sociais, como causalidade externa para as

obras literárias. Isso ocorreu quando o pensador formulou a ideia de que só

importam os fatores transformados em internos; os externos não são considerados e

não devem entrar na análise. O tipo de sociologia da literatura construída em torno

desse programa é excessivamente focado em uma leitura internalista, inebriada com

a solução teórica e retórica do “texto ao contexto e vice-versa”.

Por outro lado, do ponto de vista dos compromissos intelectuais e políticos de

Antonio Candido, é válido lembrar que seu programa foi construído e maturado em

um período em que os países subdesenvolvidos estavam marcados por um projeto

muito peculiar de modernização nacional, que pautava a superação da condição de

subalternidade por meio da apreensão da cultura europeia.

Essa consciência do subdesenvolvimento acarretou um tipo de interpretação

da cultura nacional que tinha a cultura dos países centrais como principal parâmetro.

Discutia-se a possibilidade de se formar, aqui, uma tradição literária por meio de

expressões genuínas que reapropriavam o modelo cultural europeu. Com os sinais

de esgotamento desse projeto modernizador, percebido, sobretudo, nos papéis

assumidos pelos países subdesenvolvidos na nova ordem global, o desafio que se

180

coloca é pensar novas formas de diálogo com a cultura eurocêntrica, e,

consequentemente, novas formas de interpretação da cultura local.

A sociologia da cultura no Brasil precisa, assim, de uma alternativa à análise

interna dos fenômenos externos de Antonio Candido e à sociologia dos intelectuais

de orientação bourdieusiana empreendida por Sérgio Miceli, com foco em escritores

e intelectuais da geração do próprio Candido.

É interessante notar ainda que a sociologia como ponto de vista de Antonio

Candido pode ter algo a ensinar a sociologia da arte internacional no que possui de

mais forte: como método crítico capaz de interpretar uma obra à luz dos elementos

que a cercam. A posição periférica, nas relações de produção de conhecimento,

impede, até o momento, maior alcance.

Também sua prosa ensaística pode oferecer algo ao fazer científico e à

produção de conhecimento no contexto atual. O Brasil vive um momento de

profundo anti-intelectualismo e de fortes ataques às instituições formais de saber;

passa também por uma aguda crise econômica, o que repercute no financiamento

público da educação e da pesquisa. Sendo assim, a figura de Candido suscita a

independência intelectual, o comprometimento com o Brasil e oferece uma saída

para a produção de conhecimento (o ensaio), caso as perspectivas mais

pessimistas, do ponto de vista financeiro e cultural, se confirmem.

Pensando em Raymond Williams, a solução teórica dentro do marxismo para

o problema da materialidade da cultura pode, atualmente, parecer paralisante. Não

porque a cultura não tenha a dimensão material identificada por ele, mas porque ela

veio acompanhada de uma noção de hegemonia com pretensões de centralidade no

debate marxista. Centralidade, diga-se, no lugar da metáfora base e superestrutura.

Vivendo em um momento onde há uma intensa produção de cultura com vistas a

preencher as diversas esferas da vida com imagens, signos e símbolos de

mercadorias, não seria razoável restabelecer a noção de infra e superestrutura, pelo

menos como princípio operativo?

Em outra frente, a noção de cultura, inaugurada pelo pensador galês, tinha

como principal ganho, do ponto de vista político, a inclusão de diferentes formas e

expressões culturais e de distintos modos de vida como coabitantes de uma mesma

comunidade. Atualmente, em um contexto histórico onde a discussão sobre o

multiculturalismo está assentada, inclusive do ponto de vista de políticas públicas,

esse conceito de cultura pode parecer gasto.

181

No entanto, talvez o maior legado desse conceito não está no que ele

descreve (seja a cultura como significados comuns a todos os membros de uma

comunidade, seja como um terreno no qual diferentes modos de vida, ainda que

atravessados por relações de poder, coexistem), mas sim no que ele analisa (a ideia

de que as práticas sociais estão todas interconectadas, porque as estruturas sociais

são inseparáveis).

Assim, é a noção de totalidade que deve ser resguardada, como uma forma

de iluminar os caminhos para se refletir sobre um mundo no qual a cultura é vivida,

percebida e estudada cada vez mais de modo fatiado. Ou seja, a totalidade pode ser

uma ferramenta importante, reconstituir a cultura como objeto, interligando os

diversos espaços de produção de cultura.

Por fim, pensamos que trazer esses dois autores para discussão é um modo

de manter vivo seus respectivos legados. E esse legado, a nosso ver, está mais no

papel intelectual exercido por eles, sempre buscando refletir sobre os problemas e

as questões de suas próprias sociedades. Se tivermos em mente que vivemos em

uma sociedade que privilegia o debate teórico descompromissado, é possível

concluir que a obra deles deve continuar ativa.

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