a literatura e a sociedade

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194 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8 A literatura e a sociedade c ada vez mais perto do século XXI, é natural que ocorram tentativas de balanço do sécu- lo em que vamos vivendo e que, por outro lado, se procure vislumbrar aquilo que, de nossa época, passará para aquela que se aproxima. É uma recorrência de todas as épocas: buscar a continuidade entre elas por inter- médio de sínteses históricas que estabele- çam o domínio da memória sobre a fugacidade e apontem para a perenidade. O tempo passa mas algo fica e este algo é a matéria da memória histórica que busca resgatá-lo para um presente que sempre é feito de passado e cujas marcas e imagens são inscrições para uma futura busca de decifração. Por isso, a continuidade entre as épocas nunca é feita de diacronias absolutas: as rupturas que, em geral, apontam para o fu- turo fazem parte, mesmo no passado, da- quelas inscrições que só o futuro virá deci- frar. Mas não há passado sem uma inter- venção do presente, e se o futuro do que passou é o nosso presente é porque a me- mória histórica, ela mesma, recusa o puro diacronismo e se afirma como presença sincrônica. Sendo assim, somente aquelas sínteses que envolvem o presente situado do intér- prete (para utilizar uma expressão já anti- ga de sabor sartriano) podem oferecer in- teresse: as demais são, em geral, jeremiadas, quando se referem ao passa- do, ou, no outro pólo temporal, vagos exer- cícios de futurologia. Nesse sentido, quando se procura hoje dizer o que foi este século XX que vamos terminando – e o que ele foi é o resultado tanto daquilo que o precedeu quanto das projeções para os anos vindouros – me- lhor via, talvez, seja esboçar, a partir de um tema singular, o modo pelo qual este tema não apenas é apreendido pelo pre- sente do intérprete mas como esta apreen- são é antes o resultado de um movimento, cujas razões históricas e sociais são ele- mentos definidores quer da linguagem da época, quer da própria metalinguagem com que o esboço é proposto, do que de uma volição pessoal do intérprete. Desse modo, se tomarmos como fulcro JOÃO ALEXANDRE BARBOSA é professor aposentado da FFLCH-USP e autor, entre outros, de A Biblioteca Imaginária (Ateliê Editorial).

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Artigo de JOÃO ALEXANDREBARBOSA. R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R Ç O / M A I O 1 9 9 8

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  • 194 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R O / M A I O 1 9 9 8

    A literaturae a sociedade

    cada vez mais perto do sculo XXI, naturalque ocorram tentativas de balano do scu-lo em que vamos vivendo e que, por outrolado, se procure vislumbrar aquilo que, denossa poca, passar para aquela que seaproxima.

    uma recorrncia de todas as pocas:

    buscar a continuidade entre elas por inter-

    mdio de snteses histricas que estabele-

    am o domnio da memria sobre a

    fugacidade e apontem para a perenidade.

    O tempo passa mas algo fica e este algo

    a matria da memria histrica que busca

    resgat-lo para um presente que sempre

    feito de passado e cujas marcas e imagens

    so inscries para uma futura busca de

    decifrao.

    Por isso, a continuidade entre as pocas

    nunca feita de diacronias absolutas: as

    rupturas que, em geral, apontam para o fu-

    turo fazem parte, mesmo no passado, da-

    quelas inscries que s o futuro vir deci-

    frar. Mas no h passado sem uma inter-

    veno do presente, e se o futuro do que

    passou o nosso presente porque a me-

    mria histrica, ela mesma, recusa o puro

    diacronismo e se afirma como presena

    sincrnica.

    Sendo assim, somente aquelas snteses

    que envolvem o presente situado do intr-

    prete (para utilizar uma expresso j anti-

    ga de sabor sartriano) podem oferecer in-

    teresse: as demais so, em geral,

    jeremiadas, quando se referem ao passa-

    do, ou, no outro plo temporal, vagos exer-

    ccios de futurologia.

    Nesse sentido, quando se procura hoje

    dizer o que foi este sculo XX que vamos

    terminando e o que ele foi o resultado

    tanto daquilo que o precedeu quanto das

    projees para os anos vindouros me-

    lhor via, talvez, seja esboar, a partir de

    um tema singular, o modo pelo qual este

    tema no apenas apreendido pelo pre-

    sente do intrprete mas como esta apreen-

    so antes o resultado de um movimento,

    cujas razes histricas e sociais so ele-

    mentos definidores quer da linguagem da

    poca, quer da prpria metalinguagem com

    que o esboo proposto, do que de uma

    volio pessoal do intrprete.

    Desse modo, se tomarmos como fulcro

    JOO ALEXANDREBARBOSA professor aposentadoda FFLCH-USP e autor,entre outros, deA Biblioteca Imaginria(Ateli Editorial).

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R O / M A I O 1 9 9 8 195

    de meditao o largo tema das relaes en-

    tre literatura e sociedade, e no de uma apro-

    ximao particularizada a uma ou outra,

    veremos que, para incio de conversa, seria

    impossvel marcar o teor dessas relaes sem

    que fosse levada em conta a prpria trans-

    formao conceitual que sofreram os dois

    termos em decorrncia do modo pelo qual

    quer literatura, quer sociedade passaram a

    designar aspectos diversos da realidade.

    A pergunta pelo lugar que ocupam lite-

    ratura e sociedade no conjunto das refle-

    xes que possam ser feitas em fins do scu-

    lo XX envolve, por isso, no somente a

    questo mais ampla da prpria representa-

    o da realidade, o que significa dizer

    modos de representao por onde as

    vinculaes entre literatura e sociedade so

    extremadas, mas ainda a prpria qualidade

    ou intensidade com que se d tal represen-

    tao. (Lembre-se, entre parnteses, que o

    rastreamento desse tema j foi abordado,

    de modo magistral, no livro Mimesis, de

    Erich Auerbach, publicado em 1942, e cujo

    subttulo expressamente a representa-

    o da realidade na literatura ocidental.)

    J O O A L E X A N D R E B A R B O S A

    do fim do sculo

    um tema aglutinador: desde os incios

    das reflexes poticas, desde, pelo menos,

    Plato e Aristteles, a questo da represen-

    tao a contraparte terica da prpria ope-

    rao potica. E no poderia ser de outra

    forma uma vez que, se instaurando no es-

    pao ficcional, mas traduzindo elementos

    obtidos nas relaes sociais, o potico tem

    a sua singularidade em operar intensamen-

    te nos intervalos entre a experincia e a

    representao da experincia pelos deslo-

    camentos possveis da linguagem.

    Experincia, representao e lingua-

    gem: termos sem os quais no seria poss-

    vel hoje, em fins do sculo, pensar tudo

    aquilo que foi realizado em nome da litera-

    tura e do potico ou das sociedades que

    viabilizaram as suas articulaes. E isso

    porque, sobretudo, no se trata mais de falar

    em adequao entre literatura e sociedade

    como resultado de suas relaes mas de

    incluir, como elemento fundamental de ca-

    racterizao, quer da literatura, quer da

    sociedade, os momentos de inadequao

    atravs dos quais o potico se expande na

    criao de um espao e de um tempo capa-

  • 196 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R O / M A I O 1 9 9 8

    zes de romper com os estreitos limites de

    uma diacronia evolutiva de causa e efeito.

    As conseqncias disso para as refle-

    xes que preenchem os estudos literrios

    so evidentes, indo desde as anlises parti-

    cularizadas das obras, em que os estmulos

    sociais so pensados na mais ampla

    integrao estrutural que define a compo-

    sio literria, at as leituras de histria

    literria no mais pensadas como etapas de

    uma evoluo unilateral mas como cortes

    sincrnicos operados numa ampla

    diacronia.

    Por outro lado, as conseqncias referi-

    das esto aliceradas numa aguda sensibi-

    lidade para aquilo que um crtico fora de

    moda e de extrao eliotiana, Lionel

    Trilling, chamou de sentido do passado,

    isto , uma certa intuio de que, mesmo

    nas obras as mais contemporneas, esta-

    mos sempre lendo, ao lado das realizaes

    formais que somente a contemporaneidade

    sabe decifrar, um substrato histrico que

    permite que a obra transcenda a sua prpria

    existncia temporal. Mas uma transcen-

    dncia paradoxal porque ela se firma, como

    j foi dito, numa presena sincrnica

    articuladora de diacronias.

    Numa direo semelhante, a leitura das

    obras do passado, uma vez que se tenha

    escapado aos perigos do arqueologismo e

    do anacronismo as duas principais ame-

    aas que sempre rondam a leitura histrica

    , somente se completa medida que so

    preenchidos ou recuperados aqueles acrs-

    cimos de significante, para usar uma ex-

    presso do crtico Frank Kermode, no en-

    saio The Classic, atravs dos quais a obra

    se transforma em nossa contempornea.

    Acrscimos de significante, e no ape-

    nas de significados, que permitem leitura

    presente um sentido de continuidade para

    alm do tempo de realizao da obra, desde

    que, entre o espao e o tempo da obra e sua

    atualizao pelo leitor futuro, esteja a ex-

    perincia de outras obras e de outras leitu-

    ras elementos isomrficos de outras rea-

    lidades sociais.

    Por isso, possvel dizer que a leitura

    atual de um clssico como o D. Quixote a

    leitura da obra de Cervantes acrescentada por

    aquilo que, por exemplo, um Americo Castro

    leu na obra, mais a experincia de leituras

    diversificadas do leitor singular do Quixote,

    acrescidas das diferentes relaes sociais e

    histricas que identificam este leitor.

    Assim, toda a experincia histrica ou

    social do leitor contemporneo, mais a lei-

    tura pontual de uma j extensssima biblio-

    grafia cervantina, faz a diferena entre a

    sua percepo de Alonso Quijano e a da-

    quele leitor que, ainda prximo das mara-

    vilhas das novelas de cavalaria, lia

    Cervantes no sculo XVII. ( claro que,

    mesmo num parntese, no possvel dei-

    xar de mencionar, como ecos de uma crti-

    ca contempornea de leituras de Cervantes,

    o memorvel texto de Borges, Pierre

    Menard, Autor del Quijote, de Ficciones,

    ou mesmo o no menos notvel Magias

    Parciales del Quijote, de Otras In-

    quisiciones.)

    Mas essa insistncia nas categorias de

    leitura e de leitor que vai dominando as

    minhas reflexes no pode e no deve ser

    escamoteada: pelo contrrio, ela

    reveladora de uma atitude com relao ao

    texto literrio que encontra o seu respaldo

    nas prprias transformaes que vm so-

    frendo os modos de articulao entre expe-

    rincia, representao e linguagem que so,

    por sua vez, os vetores principais das rela-

    es entre literatura e sociedade.

    Na verdade, na leitura de uma obra h

    sempre uma pergunta de base tripartite que,

    embora no explicitada e nem sempre nes-

    ta ordem, corresponde quelas articulaes:

    que tipo de experincia se representa na

    obra por meio de tal ou qual linguagem?

    Se num texto realista-naturalista a res-

    posta pode ser tramada a partir das relaes

    mais ou menos evidentes entre experincia

    e representao, atravs de uma linguagem

    que busca o seu prprio desaparecimento

    enquanto linguagem, no limite desejando-

    se enquanto transparncia para a revelao

    da prpria experincia, como est, por

    exemplo, em Gustave Flaubert, para quem

    o ideal seria escrever uma obra sem assun-

    to, que se sustentasse pela fora do estilo,

    ou simplesmente desconhecendo outra fun-

    o para a linguagem que no fosse a emi-

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    nentemente representativa ou referencial,

    como est em mile Zola, em textos poste-

    riores, digamos os simbolistas e seus su-

    cessores, a densidade de linguagem difi-

    culta a apreenso das relaes entre expe-

    rincia e representao, na medida em que

    acrescenta quelas a necessidade de uma,

    por assim dizer, conscincia de leitura da

    literatura em que a experincia e sua repre-

    sentao parecem advir de uma realidade

    de segundo grau, produto j da fico po-

    tica. E esta conscincia, que, talvez, no

    seja mais do que uma intensificao da-

    quela conscincia literria de origens ro-

    mnticas, sobretudo anglo-germnicas,

    dominante em grande parte da literatura

    ps-simbolista: uma conscincia que se, por

    um lado, aponta para uma crise da repre-

    sentao, por outro, especifica a condio

    da literatura enquanto literatura e, como

    decorrncia, do leitor enquanto leitor. Des-

    se modo, a experincia que se representa

    tambm, ou sobretudo, uma experincia de

    leitura.

    Num outro contexto, Gatan Picon sou-

    be registrar o problema, escrevendo:

    O movimento potico que, partindo do

    Simbolismo do fim do sculo, conduz, atra-

    vs de mltiplas transformaes, ao movi-

    mento surrealista, uma conscincia antes

    de ser uma criao. Nunca tantos escritos

    tericos acompanharam o movimento da

    criao. A poesia contempornea uma

    poesia reflexiva, crtica, uma poesia de

    cultura, ligada meditao e leitura de

    obras anteriores (1).

    Mas foi, certamente, Paul Valry, um

    dos herdeiros diretos do Simbolismo, que,

    em texto de 1938, intitulado Existence du

    Symbolisme, soube estabelecer a articu-

    lao precisa entre essa qualidade do estilo

    da nova poesia, para usar os termos de

    Picon, e suas relaes com o pblico. Re-

    ferindo-se aos simbolistas diz ele:

    Ils oprent ainsi une sorte de rvolution

    dans lordre des valeurs, puisquils

    substituent progressivement la notion des

    oeuvres qui sollicitent le public, qui le

    prennent par ses habitudes ou par ses cts

    faibles, celle des oeuvres qui crent leur

    public. Loin dcrire pour satisfaire un

    dsir ou un besoin prexistant, ils crivent

    avec lespoir de crer ce dsir et ce besoin;

    et ils ne se refusent rien qui puisse rebuter

    ou choquer cent lecteurs, sils estiment par

    l conqurir un seul de qualit suprieure.

    Cest l dire quils exigent une sorte de

    collaboration active des esprits, nouveaut

    trs remarquable, et trait essentiel de notre

    Symbolisme. Peut-tre ne serait-il

    impossible ni faux, de dduire de lattitude

    de renoncement et de ngation que jai

    dgage tout lheure, dabord ce

    changement dont je parle et qui consista

    prendre pour partenaire de lcrivain, pour

    lecteur, lindividu choisi par leffort

    intellectuel dont il est capable; et ensuite,

    cette consquence seconde, que lon peut

    dsormais offrir ce lecteur laborieux et

    raffin, des textes o ne manquent ni les

    difficults, ni les effets insolites, ni les essais

    prosodiques et mme graphiques quune

    tte hardie et inventive peut proposer de

    produire. La voie nouvelle est ouverte aux

    inventeurs. Par l, le Symbolisme se

    dcouvre comme une poque dinventions;

    et le raisonnement trs simple que je viens

    desquisser devant vous nous conduit,

    partir dune considration trangre

    lesthtique, mais vritablement thique,

    jusquau principe mme de son activit

    technique, qui est la libre recherche,

    laventure absolue dans lordre de la

    cration artistique aux risques et prils de

    ceux qui sy livrent (2).

    V-se como Paul Valry capaz de apre-

    ender a grande mudana nas relaes entre

    literatura e sociedade, desencadeada pelo que

    chama de revoluo dos simbolistas.

    Na primeira parte do texto, a tnica

    precisamente o modo pelo qual os simbo-

    listas criaram antes um pblico do que para

    um pblico, conferindo s experincias li-

    terrias o teor de uma necessidade, ou cri-

    ao de uma necessidade, que passa, ento,

    a ser exigida pelo leitor, bem na senda da-

    quelas teorias das trocas mercadolgicas

    elaboradas pela economia poltica de ori-

    1 Cf. Le Style de la NouvellePosie, Histoire desLittratures, II, Encyclopdiede la Pliade, Paris, NRF, 1957,p. 212.

    2 Cf. Existence duSymbolisme, in Paul Valry,Ouevres, Paris, NRF, Biblio-thque de la Pliade, 1957,pp. 691-2. Eis uma traduodo texto: Operam, assim,uma espcie de revoluo naordem dos valores, j quesubstituem progressivamentea noo das obras que solici-tam o pblico, que o tomampor seus hbitos ou por seuspontos fracos, por aquela dasobras que criam seu pblico.Longe de escrever para satis-fazer um desejo ou uma ne-cessidade preexistentes, es-crevem com a esperana decriar esse desejo e essa ne-cessidade; e nada recusamque possa repugnar ou cho-car cem leitores se calcula-rem que, desse modo, con-quistaro um nico de quali-dade superior.Isso significa que exigem umaespcie de colaborao ativados espritos, novidade mui-to importante e trao essen-cial de nosso Simbolismo.Talvez no fosse impossvelou falso deduzir da atitude derenncia e de negao, queesclareci h pouco, primeiroessa mudana sobre a qualestou falando e que consistiuem tomar como parceiro doescritor, como leitor, o indiv-duo escolhido pelo esforointelectual de que capaz; e,em seguida, esta outra con-seqncia: de hoje em dian-te, podem ser oferecidos aesse leitor laborioso e refina-do textos em que no faltamnem dificuldades, nem os efei-tos inslitos, nem os ensaiosprosdicos, e at grficos, queuma cabea ousada e inventi-va pode se propor a produ-zir. O novo caminho estaberto aos inventores. Nes-te, o Simbolismo descobre-se como uma poca de in-venes; e o raciocnio bemsimples que acabo de esbo-ar diante de vocs nos leva,a partir de uma consideraoalheia esttica, mas verda-deiramente tica, at o pr-prio princpio de sua ativida-de tcnica, que a livre pro-cura, a aventura absoluta naordem da criao artstica dosriscos e perigos daqueles quea ela se entregam (in PaulValry, Variedades, organiza-o e introduo de Joo Ale-xandre Barbosa, traduo deMaiza Martins de Siqueira, SoPaulo, Iluminuras, 1991).

  • 198 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R O / M A I O 1 9 9 8

    gem marxista; na segunda parte, o argu-

    mento central gira em torno da interao

    entre autor e leitor, em que este ltimo as-

    sume uma posio de grande atividade na

    circulao da obra: o leitor no mais ape-

    nas como recipiente da obra produzida pelo

    autor mas um parceiro do escritor, como

    diz Valry. E, por isso, capaz de seguir, e

    mesmo solicitar, as inovaes inventivas e

    mesmo caprichosas das cabeas mais ou-

    sadas. Uma tica da leitura, portanto, que

    no despreza o estgio tcnico, como lem-

    bra o prprio Valry nas ltimas frases do

    texto.

    Este ensaio de Valry foi escrito s vs-

    peras da Segunda Guerra Mundial quando

    as realizaes do Simbolismo j se haviam

    transformado em moeda corrente da litera-

    tura e das artes, e a revoluo, por ele ano-

    tada no incio do texto, havia sido respon-

    svel por todas aquelas pesquisas que, en-

    tre as ltimas dcadas do sculo XIX e as

    primeiras do XX, seriam a base dos vrios

    movimentos de vanguarda (Expres-

    sionismo, Cubismo, Futurismo, Dadasmo,

    etc.), via aberta das invenes, como tam-

    bm anota Valry, que puseram em xeque

    os esquemas naturalistas e positivistas com

    que a crtica de ento buscava estabelecer

    as relaes entre literatura, sociedade e

    histria.

    Mas entre a existncia do Simbolismo,

    tal como ele foi pensado e praticado entre

    os anos 70 e 90 do sculo XIX e os incios

    da Segunda Guerra Mundial, a sociedade

    j se defrontara com o primeiro conflito de

    mbito mundial, a Grande Guerra de 1914-

    18, a partir da qual, mais precisamente no

    ensaio com que abre o primeiro volume de

    Varit, de 1924, La Crise de lEsprit,

    que de 1919, podia Valry registrar a

    sensibilidade para o grande desastre a que

    havia chegado a civilizao europia, es-

    crevendo de modo lapidar:

    Nous autres, civilisations, nous savons

    maintenant que nous sommes mortelles.

    Nous avions entendu parler de mondes

    disparus tout entiers, dempires couls

    pic avec tous leurs hommes et tous leurs

    engins; descendus au fond inexplorable des

    sicles avec leurs dieux et leurs lois, les

    acadmies et leurs sciences pures et

    appliques, avec leurs grammaires, leurs

    dictionnaires, leurs classiques, leurs

    romantiques et leurs symbolistes, leurs cri-

    tiques et les critiques de leurs critiques.

    Nous savions bien que toute la terre

    apparente est faite de cendres, que la cendre

    signifie quelque chose. Nous apercevions

    travers lpaisseur de lhistoire, les

    fantmes dimmenses navires qui furent

    chargs de richesse et desprit. Nous ne

    pouvions pas les compter. Mais ces

    naufrages, aprs tout, ntaient pas notre

    affaire.

    lam, Ninive, Babylone taient de

    beaux noms vagues, et la ruine totale de

    ces mondes avait aussi peu de signification

    pour nous que leur existence mme. Mais

    France, Angleterre, Russie ce seraient

    aussi de beaux noms. Lusitania aussi est un

    beau nom. Et nous voyons maintenant que

    labime de lhistoire est assez grand pour

    tout le monde. Nous sentons quune

    civilisation a la mme fragilit quune vie.

    Les circonstances qui enverraient les

    ouvres de Keats et celles de Baudelaire

    rejoindre les oeuvres de Mnandre ne sont

    plus du tout inconcevables: elles sont dans

    les journaux (3).

    A representao dessa sensibilidade

    para um mundo destroado, cujos fragmen-

    tos dinamitaram a paz e o conforto da belle

    poque europia, seria a tarefa ingrata para

    aqueles escritores que, embora nascidos ou

    formados sob a gide da crise de represen-

    tao percebida, mas tambm cultuada,

    pelos simbolistas, no mais se sentiam con-

    fortveis ou pacificados e que, portanto, se

    defrontavam com uma dupla tarefa: a de

    representar, mas incluindo na representa-

    o a crtica de sua prpria crise.

    E os caminhos escolhidos por cada um

    sero os mais diversos: desde o desvio sim-

    bolista de um T. S. Eliot, na composio de

    um poema em mosaico, como The Waste

    Land, em que as aluses a literaturas dos

    mais diferentes lugares e pocas so passa-

    das pelo tom menor da herana simbolista

    de um Laforgue ou de um Corbire, sem

    3 Cf. La Crise de lEsprit, PaulValry, Varit , Paris ,Gallimard, 1924, pp. 11-2. Eisuma traduo: Ns outras,civilizaes, sabemos agoraque somos mortais.Tnhamos ouvido falar demundos inteiramente desapa-recidos, de imprios que fo-ram a pique com todos osseus homens e todos os seusengenhos; descidos ao fundodo inexplorvel dos sculoscom os seus deuses e suasleis, suas academias e suascincias puras e aplicadas, comsuas gramticas, seus dicion-rios, seus clssicos, seus ro-mnticos e seus simbolistas,seus crticos e os crticos deseus crticos. Sabamos aindaque toda a terra aparente feita de cinzas, que a cinzasignifica alguma coisa. Perce-bamos, atravs da espessurada histria, os fantasmas deimensos navios que foram car-regados de riqueza e de esp-rito. No podamos cont-los.Mas estes naufrgios, de qual-quer modo, no nos diziamrespeito.Elam, Ninive, Babilnia eramgrandes nomes vagos, e aruna total desses mundos ti-nha to pouca significaopara ns quanto sua prpriaexistncia. Mas Frana, Ingla-terra, Rssia eram tambmgrandes nomes. Lusitania tam-bm um grande nome. Evemos agora que o abismo dahistria bastante grande paratodo o mundo. Sentimos queuma civilizao tem a mesmafragilidade que uma vida. Ascircunstncias que cercavam asobras de Keats e as deBaudelaire juntando-se sobras de Menandro no soabsolutamente inconcebveis:elas esto nos jornais dirios.

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R O / M A I O 1 9 9 8 199

    esquecer o tom elevado, mas irnico, de

    um Baudelaire, que vem literalmente cita-

    do no ltimo verso da primeira estrofe, tudo

    estaqueado por sobre os seus prprios frag-

    mentos, como est dito num dos ltimos

    versos do poema, at a utilizao de um

    alemo solene e de cadncias goethianas,

    como est no Thomas Mann de A Monta-

    nha Mgica ou, sobretudo, do Doutor

    Fausto, ou ainda na admirvel prosa, de

    longos e remansosos pargrafos, do

    Hermann Broch de A Morte de Virglio, ou

    a prosa cida e de reduo de um Kafka,

    conferindo a seu alemo os sombrios

    desvos de uma experincia judaica das

    circunstncias particulares de uma Europa

    Central, no entanto marginalizada pelos

    avanos guerreiros dos capitalismos das

    grandes potncias de uma outra Europa.

    Ou mesmo o caso notvel de um James

    Joyce, dando um sentido pico aos destro-

    os do Imprio Britnico a partir de uma

    leitura irlandesa daquele imprio, mas con-

    vocando para aquela leitura a tradio mais

    nobre da herana cultural europia, estabe-

    lecendo uma dependncia, quase sem pre-

    cedentes na histria literria, entre experi-

    ncia, representao e linguagem de tal

    maneira que nas pginas do Ullysses o lei-

    tor encontre o mximo de interveno na

    linguagem e uma representao da realida-

    de to intensa que seria difcil, ou mesmo

    impossvel, marcar onde comea uma e

    termina a outra, na medida em que a expe-

    rincia pessoal e coletiva , sobretudo, uma

    experincia de leitura desde a cultura grega

    at os livros de fico popular (os penny-

    books) da gria londrina dos caminhos e

    descaminhos dos Blooms.

    Estas e muitas outras obras apontam para

    aquilo que o crtico norte americano R. P.

    Blackmur, em ensaio de 1948, chamava de

    a burden for critics que traduziramos apro-

    ximadamente por um fardo para os crti-

    cos, isto , segundo o crtico, como passar

    da grande tnica conferida representao

    de uma sociedade que , j por si mesma,

    um fardo para a experincia dos autores,

    para a apreenso daquilo que o prprio

    ato de criao literria, ou seja, a instaura-

    o de um espao ficcional por intermdio

    da linguagem que, por sua vez, responde

    beleza e ao mais completo sentido da obra

    literria. Esta parecia ao ento new critic, e

    apenas encerrada h trs anos a Segunda

    Guerra Mundial, o trabalho crtico essenci-

    al: um ato performativo capaz de revelar a

    bela complexidade da literatura. Diz ele:

    The beauty of literature is that it is exigent

    in the mind and will not only stand still but

    indeed never comes fully into its life of

    symbolic action until criticism has taken

    up the burden of bringing it into

    performance and finding its relation to the

    momentum of the whole enterprise (4).

    claro que esta tarefa no inveno

    da experincia moderna ou contempornea

    da literatura: em todas as pocas, os leito-

    res ou espectadores foram chamados a in-

    tervir na realizao plena das obras, e as

    observaes de Blackmur se referem pre-

    cisamente intensidade das intervenes

    que a crtica chamada a exercer. Mas a

    questo est em como se h de pensar numa

    interveno, ou numa performance, para

    usar a terminologia de Blackmur, que con-

    serve a tenso entre o teor de representao

    a essncia do fardo e seu modo de arti-

    culao potica. Mais ainda quando se vive

    uma poca em que a prpria viabilidade da

    representao entra em crise por fora das

    transformaes histricas e sociais que ter-

    minaram por caracterizar a nossa como uma

    era de suspeita, para utilizar os termos de

    um ensaio famoso de Nathalie Sarraute (5).

    Embora pensado e escrito sob o fogo

    cruzado das propostas radicais do Nouveau

    Roman, o ensaio tinha o mrito de ampliar

    o seu alcance para uma reflexo mais abran-

    gente, acrescentando elementos essenciais

    para uma reflexo acerca da tarefa da crti-

    ca diante de uma literatura que parecia ca-

    minhar para a sua prpria destruio, como

    vigorosamente afirmava Maurice Blanchot,

    em artigo publicado nos anos 60, na

    Nouvelle Revue Franaise em que se per-

    guntava pelo destino da literatura (O va

    la littrature? La littrature va envers elle-

    mme, cest--dire, envers sa destruction).

    Era o mesmo Blanchot que, numa de

    4 Cf. A Burden for Critics, inLectures in Criticism, The JohnsHopkins University, Intro-duction by HuntingtonCairns, New York, PantheonBooks (Bollingen Series XVI),1949. Eis uma traduo dotexto: A beleza da literatura que ela exigente na men-te e no somente permane-ce esttica mas, de fato, nun-ca realiza completamente suavida de ao simblica atque a crtica assuma o fardode perform-la e encontrarsuas relaes com o momen-to de todo o conjunto.

    5 Nathalie Sarraute, Lre duSoupon, Essais sur le Roman,Paris, Gallimard, 1956.

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    suas colaboraes para a mesma Nouvelle

    Revue Franaise, de maio de 1960, chama-

    va a ateno para a singularidade anti-ret-

    rica da obra de Albert Camus, exercendo-

    se, como pensava o crtico, no sentido de

    um desvio para a simplicidade, ttulo de

    sua crnica, em que os traos de estilo eram,

    por assim dizer, rasurados pelo peso con-

    cedido representao agnica de um

    mundo despedaado pela tenso entre o

    indivduo e as circunstncias absurdas da

    histria e da sociedade.

    Todas essas reflexes realizadas nos

    anos 50 e 60 que, de certa forma, se junta-

    vam quelas dos anos 40 e 50 do New

    Criticism, desguam nos vrios textos que

    vo compor a Nouvelle Critique francesa,

    cujo principal trao seria precisamente fa-

    zer convergir a anlise particularizada das

    obras, pelo uso de uma lente, por assim

    dizer, de aproximao lingstica, e uma

    leitura das estruturas mticas, sociais e his-

    tricas da representao literria.

    Mais do que uma convergncia: uma

    leitura da obra literria em que se buscava

    manter a tenso entre aquele fardo da repre-

    sentao descrito por Blackmur e a prpria

    composio literria. O que significava apon-

    tar para uma percepo dos elementos soci-

    ais e histricos que configuram a obra em

    seus momentos de formalizao, quer dizer,

    enquanto integradores de uma morfologia

    atravs da qual a obra definida.

    Por isso, no plano das teorizaes sobre

    a histria literria, o principal alvo dos

    nouveaux critiques Gustave Lanson, cuja

    Histoire de la Littrature Franaise havia

    sido publicada em 1894, cujas edies su-

    cessivas fizeram dela o paradigma, por

    excelncia, da crtica histrica em que se

    articulavam as heranas naturalistas e

    positivistas do sculo XIX e um certo

    humanismo crtico, de laivos impres-

    sionistas, embora fazendo a defesa do rigor

    histrico e da objetividade filolgica. So-

    bre essa articulao, sob a qual ele via pas-

    sar de contrabando (o termo dele mesmo)

    uma ideologia conservadora de domnio do

    saber, Roland Barthes escreveu o polmi-

    co texto Sur Racine, buscando libertar o

    grande poeta trgico das interpretaes

    cristalizadas dos vrios e sucessivos natu-

    ralismos crticos capazes de falar de sua

    obra sem, em nenhum momento, repensar

    a sua significao, para a literatura france-

    sa, enquanto poeta e no apenas enquanto

    monumento daquela literatura que, por sua

    vez, operara a cristalizao de certas ideo-

    logias dominantes no sculo XVII francs.

    Na verdade, um ano antes da publica-

    o da Histoire, em 1893, Gustave Lanson

    publicara um ensaio sobre Mallarm atra-

    vs do qual possvel ver como ele estava

    aprisionado ao paradigma crtico de seu

    tempo, aquele cujas linhas mestras eram

    ainda as do naturalismo e do positivismo

    que privilegiavam a referencialidade.

    A acusao de ininteligibilidade que faz

    obra de Mallarm, como se ler em segui-

    da, respondia prevalncia, naquela poe-

    sia, do princpio de construo sobre o da

    representao que, por ento, problema-

    tizava as abordagens crtica e histrico-li-

    terria fundadas naquelas linhas. Eis um

    trecho substancial do ensaio:

    Ele [Mallarm] d por objetivo da arte

    realizar o irreal, exprimir o inexprimvel,

    comunicar o incomunicvel. Seja; admito

    esta ambio; de fato, no existe sem isso

    grande poesia, nem arte elevada. Mas a

    impossibilidade manifesta-se quando se

    olham os meios que ele pretende empregar.

    Ele quer desvencilhar-se de formas reais,

    signos expressivos, valores comunicativos:

    em outros termos, quer apreender o

    ininteligvel e transmiti-lo sem o ter con-

    vertido de algum modo em inteligvel.

    esquecer a condio, a misria, se se qui-

    ser, de nossa humanidade, fadada por seus

    pecados aos atos distintos da inteligncia.

    Ns no atingimos diretamente pelo esp-

    rito qualquer realidade, nem sensvel, nem

    espiritual, nem finita, nem infinita. No

    podemos seno usar um desvio, substituir

    as realidades por signos inteligveis, por

    smbolos suscetveis de demonstrao. A

    cincia existe a este preo e a arte no tem

    uma outra lei. Criao da inteligncia, como

    a cincia, no pode ser outra coisa seno

    intelectual e se, s vezes, aspira a dar a

    sensao, a comunicao do ininteligvel,

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 7 ) : 1 9 4 - 2 0 3 , M A R O / M A I O 1 9 9 8 201

    f-lo por intermdio de signos e de relaes

    que exprimem inteligivelmente o carter

    ininteligvel. Aqueles que conhecem Pascal

    sabem bem o que quero dizer. O Sr.

    Mallarm, querendo usar signos intelig-

    veis fazendo abstrao de seu valor de sig-

    nos inteligveis e querendo formar smbo-

    los irreais e infinitos que manifestem dire-

    tamente o eu essencial e o ideal infinito,

    pe-se em contradio com as condies

    prprias da arte (6).

    O que esta inteligibilidade to acirra-

    damente defendida por Lanson que, logo

    em seguida, ele traduzir tambm por cla-

    reza de idias, numa rplica evidente ao

    famoso dito de Mallarm ([...] que se en-

    tenda que a obra literria, fazendo-se com

    palavras, faz-se com idias[...] entre uma

    idia clara e uma idia confusa, a idia

    clara que, mostrando mais, contm mais, e

    que o grau superior da idia), o que esta

    inteligibilidade seno a vitria da represen-

    tao sobre a construo, sem que se passe

    por aqueles estgios decisivos da prpria

    poesis que identifica o texto artstico?

    Esta, de fato, vai ser a grande tarefa da

    crtica e da histria literria que surgem a

    partir dos anos 60: sem desprezar o fardo

    da representao, para o qual est

    convocada toda a obra que pretenda ultra-

    passar a tendncia ao solipsismo dos novos

    tempos, instaurar um espao de reflexo

    capaz de insinuar o modo pelo qual o social

    e o histrico passam a ser percebidos como

    elementos interiorizados pelas tenses

    construtivas do texto artstico.

    Para isso, foram importantes tanto as

    heranas do close reading apreendidas a

    partir das experincias de leitura do New

    Criticism anglo-americano, quanto as an-

    lises estilsticas e filolgicas da Estilstica

    alem ou espanhola, como ainda as novas

    pesquisas do Estruturalismo de origens

    antropolgicas, marcadamente francs, ou

    mesmo a redescoberta das teses formalistas

    e estruturalistas do Formalismo Russo ou

    do Estruturalismo Tcheco. O que, diga-se

    de modo complementar, seria explicitado

    pelas teses avanadas por aqueles tericos

    da crtica e da histria literria que passa-

    ram a pensar na leitura e no leitor como

    ngulos privilegiados de um processo de

    sutura entre forma e histria, tais como eles

    eram discutidos em ensaios da chamada

    Esttica da Recepo e do Efeito.

    claro que estas aproximaes, rei-

    vindicando a qualidade artstica da obra

    literria, muitas vezes parecem, em seus

    piores momentos, fazer inclinar a leitura

    para uma espcie aguda de formalismo, sem

    que as tenses entre formalizao e repre-

    sentao sejam preservadas. Mas so exem-

    plos, por assim dizer, caricaturais a que a

    prpria integridade da obra artstica termi-

    na por oferecer resistncia. E a melhor de-

    monstrao est nas mais recentes leituras

    do chamado Desconstrucionismo por onde

    se pode vislumbrar o peso concedido ao

    esforo desenvolvido por alguns crticos

    tais como Paul de Mann, Miller, Hartmann

    ou Bloom em fazer integrar a uma leitura

    que suspende a procura do sentido os des-

    pojos de uma histria enclausurada nos

    ndices filolgicos dos textos.

    Mais do que uma negao da histria,

    tais leituras (enquanto so marcadas por

    um tempo e uma pacincia que somente o

    verbo ingls peruse parece ser capaz de

    traduzir, significando ler cuidadosamen-

    te) pretendem rasurar a distncia entre o

    leitor e o objeto lido, tornando tambm

    aquele um objeto que se l e sua histria

    pessoal e coletiva no prprio ato de ler o

    objeto. De tal maneira que precisamente

    no seio do movimento de desconstruo

    que se vai encontrar novas maneiras de uma

    defesa da filologia, como est em Paul de

    Mann, por exemplo, que at parece reviver

    os antigos argumentos de Servais Etienne

    no j clssico Dfense de la Philologie (7).

    Por outro lado, se o peso concedido

    representao, sem o necessrio aporte cr-

    tico-filolgico, transforma a reflexo crti-

    co-histrica numa via de mo nica, amo-

    lecendo a tenso entre fazer e dizer, que

    o texto artstico, ele foi, sem dvida, res-

    ponsvel pela incorporao literatura dos

    grandes temas sociais e histricos que vm

    dominando a cena mundial, assim como a

    abertura do cnone literrio para aquelas

    literaturas marginalizadas por aqueles mes-

    6 Cf. Stephane Mallarm, inEssais de Mthode de Critiqueet dHistoi re L ittraire ,Rassembls et prsents parHenri Peyre, Paris, Hachete,1965, p. 474.

    7 Cf. Servais Etienne, Dfensede la Philologie et Autres crits,Paris, La Renaissance du Li-vre, 1965. Trata-se dareedio do livro de 1933,publicado em Lige. Quantoa Paul de Mann, leia-se, porexemplo, o ensaio TheReturn to Philology, hojefazendo parte do volume TheResistence to Theory(Minneapolis, University ofMinnesota Press, 1986).

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    mos temas quando tratados pelas naes

    que concentram o poder poltico e o poder

    do saber.

    Nesse sentido, a renovao do cnone

    da literatura ocidental, com a entrada

    considerao de temas relacionados a g-

    neros e etnias minoritrias, embora ainda

    percebidos, em sua grande maioria, den-

    tro dos parmetros de uma crtica natura-

    lista tardia, s vezes travestida de um

    marxismo requentado, , talvez, o aconte-

    cimento mais relevante da crtica, em suas

    relaes com a sociedade e a histria, de

    fins do sculo.

    Foi o caso, por exemplo, da decisiva

    incorporao literatura mundial das litera-

    turas ibricas da Amrica, sobretudo as de

    lngua espanhola, mas preparando o cami-

    nho para alguns textos em lngua portugue-

    sa do Brasil, no bojo daqueles movimentos

    de libertao que agitaram os pases coloni-

    zados pela Europa entre os anos 50 e 60.

    importante observar que as obras

    agora recolhidas pela abertura do cnone,

    se, em grande parte, respondiam a um vis

    poltico e social, traziam, no obstante, as

    marcas das tenses entre representao e

    formalizao literria, fosse por terem as

    suas origens numa crtica interna aos gran-

    des movimentos literrios da vanguarda

    histrica europia (e foi o caso do

    Surrealismo, tal como ele foi repensado na

    obra de um Octavio Paz, de um Julio

    Cortzar, de um Alejo Carpentier, de um

    Lezama Lima, de um Garca Mrquez ou

    do poeta brasileiro Joo Cabral de Melo

    Neto), fosse por afirmarem a singularidade

    de uma voz que, a partir do continente

    latino-americano, interiorizava a crtica das

    articulaes entre tradio e modernidade,

    um dos grandes topos da crtica histrica

    europia, tal como ocorria na obra de um

    Jorge Lus Borges, na Argentina, ou de um

    Joo Guimares Rosa, no Brasil.

    claro que a tais obras respondiam os

    ensaios crtico-histricos, no apenas sur-

    gindo como decorrncia do teor inventivo

    daquelas, mas, em alguns casos excepcio-

    nais, antecipando o tipo de relaes que

    aquelas obras seriam foradas a manter com

    a complexidade da vida social e de sua es-

    trutura histrica, como foi o caso, para dar

    um s exemplo, que conheo melhor, do

    ensasmo crtico-histrico de Antonio

    Candido no Brasil (8).

    Sendo assim, possvel dizer que a pr-

    pria conceituao de sociedade que inte-

    ressa reflexo sobre a literatura sofre uma

    transformao de base, medida que se

    intensifica a noo fundamental, a que j

    anteriormente acenei, de que no se trata

    mais de investigar relaes de adequao

    entre literatura e sociedade, mas de fazer

    operacional, para a crtica das obras arts-

    ticas, os momentos de inadequao, sobre-

    tudo em pases em que as presses de or-

    dem histrica, poltica e econmica impos-

    sibilitam qualquer leitura de causa e efeito

    na ordem intelectual e artstica.

    Por isso mesmo, ser uma constante

    crtico-histrica, nesses pases, a vinculao

    entre os movimentos de vanguarda e as

    leituras historicizadas do texto literrio,

    manifestando-se atravs de revises e res-

    gates de obras e autores para os quais o

    futuro , ento, determinado por uma esp-

    cie de leitura anacrnica ou, melhor dizen-

    do, sincrnica se referida ao presente situ-

    ado do leitor.

    De qualquer modo, uma leitura

    inexoravelmente histrica. Mas uma hist-

    ria que no elide a poeticidade porque sabe

    que a sua uma natureza, sobretudo,

    discursiva e, portanto, informada por todas

    as ambigidades do discurso. No uma

    histria de datas, fatos e personagens, mas

    aquela que pe sob suspeita, para voltar

    aos termos de Nathalie Sarraute, a prpria

    capacidade de sua representao.

    No caso estrito da literatura, no uma

    histria da potica mas uma potica da his-

    tria em que o analista, o estudioso, o cr-

    tico, ou seja l qual for o seu nome, existe,

    antes de mais nada, num intervalo de ten-

    ses entre a realidade e a linguagem de sua

    representao. A leitura desse intervalo

    uma leitura insegura, instvel, sempre en

    abme: mas que literatura e sociedade que

    valham a pena ser consideradas so total-

    mente seguras, estveis, sem sobressaltos

    abismais? Talvez as totalitrias e dessas no

    quero tratar.

    8 Refiro-me, sobretudo, a For-mao da Literatura Brasileira.Momentos Decisivos, So Pau-lo, Livraria Martins Editora,1959.

    Na pgina

    seguinte, gravura

    de Gustave Drer

    para o livro de

    Cervantes

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