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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS ADIRLEY MACHADO ALVES DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (DE ACESSO) À MORADIA POUSO ALEGRE MG 2017

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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

ADIRLEY MACHADO ALVES

DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO

PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE EFETIVIDADE DO

DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (DE ACESSO) À

MORADIA

POUSO ALEGRE – MG

2017

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ADIRLEY MACHADO ALVES

DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO

PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE EFETIVIDADE DO

DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (DE ACESSO) À

MORADIA

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Direito com área de

Concentração em Constitucionalismo e

Democracia, na linha de pesquisa nº 01:

Efetividade dos Direitos Fundamentais

Sociais, como requisito parcial para a

obtenção de título de mestre em Direito pela

Faculdade de Direito do Sul de Minas.

Orientador: Prof. Dr. Elias Kallas Filho.

FDSM – MG

2017

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ADIRLEY MACHADO ALVES

DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE

EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (DE ACESSO) À MORADIA

FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

Data da aprovação ___/___/___

Banca Examinadora

_____________________________

Prof. Dr. Elias Kallas Filho

Orientador

Faculdade de Direito do Sul de Minas

_____________________________

Prof. Dr. Lucas das Silva Tasquetto

Universidade Federal do ABC

_____________________________

Prof. Dr. Cícero Kruppp da Luz

Faculdade de Direito do Sul de Minas

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À minha esposa, que sempre esteve ao meu lado,

aos meus pais, exemplo de vida e força, e

aos meus filhos, que tiveram de suportar a minha ausência,

todos contribuíram para que meu sonho se tornasse realidade.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Ellias Kallas Filho, orientador do meu trabalho, pelos ensinamentos,

dedicação e paciência, sempre atento e aplicado na minha formação profissional.

Ao Prof. Dr. José Carlos da Silva Oliveira, incentivador do meu trabalho de pós-

graduação na Faculdade de Direito do Sul de Minas, pelo apoio, atenção e amizade.

Ao Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo, pelo estímulo e importantes

sugestões.

A todo o corpo docente do mestrado do PPGD da Faculdade de Direito do Sul de

Minas, cujas lições contribuíram para a minha formação acadêmica.

Aos colaboradores da Biblioteca Clovis Salgado, da Faculdade de Direito do Sul de

Minas, pelo apoio e colaboração.

À Deus, por me conceder saúde e fé.

À minha família, por ter compreendido os momentos em que não pude estar

presente, por me apoiar e acreditar no meu sucesso.

Aos estimados colegas e amigos do mestrado, pelo companheirismo e amizade.

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RESUMO ALVES, Adirley Machado. Da Propriedade ao Acesso: contributo para Políticas Públicas de Efetividade do Direito Fundamental Social (de Acesso) à Moradia. 2017. 112f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, 2017. O direito à moradia é induvidosamente reconhecido como um direito fundamental social. Ocorre que a plena efetividade desse direito pode ser comprometida por uma compreensão que vincula o direito à moradia e o direito de propriedade. Além de cara, a propriedade valoriza um direito à casa própria, por representar um poder do homem sobre as coisas, ao mesmo tempo em que dá ao direito à moradia a característica de mercadoria. Mas Jeremy Rifkin mostra que a propriedade está dando lugar ao acesso, de modo que os bens estão passando a ser acessados/emprestados ao invés de adquiridos no mercado, permitindo que um maior número de pessoas tenha contato direto com os bens. O custo para a aquisição, além de alto, inviabiliza a substituição dos bens, por isso, a propriedade é uma instituição lenta demais para se amoldar à nova realidade dessa cultura veloz, de inovações e atualizações contínuas, dando a ideia de que ela é um problema, considerando que, sob o argumento da reserva do possível, as questões referentes às limitações de recursos públicos têm prevalecido quando o assunto é a efetividade desse direito fundamental social, tornando impossível assegurar que toda população tenha acesso à moradia digna. Portanto, esses argumentos viabilizam uma discussão sobre questões especificamente referentes à efetividade do direito à moradia, capaz, inclusive, de sugerir o investimento num instrumento diferente da propriedade, necessário para o desenvolvimento de políticas públicas de acesso à moradia. Palavras-chave: Direito fundamental social à moradia – efetividade – propriedade – acesso – políticas públicas.

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ABSTRACT ALVES, Adirley Machado. From Property to Access: A Contribution to Public Policies for Effectiveness of Fundamental Social Right (of Access) to Housing. 2017. 112f. Dissertation (Masterof Laws). Faculdade de Direito do Sul de Minas. Postgraduate Program in Law, Pouso Alegre, 2017. The right to housing is undoubtedly recognized as a fundamental social right. The issue is that the full effectiveness of this right can be compromised when associating the right to housing to the right to property. In addition to being expensive, the property values the right to own housing, for representing man’s power over things, while constituting the right to housing as a product. Nevertheless, Jeremy Rifkin shows that property is giving place to access, so that goods have started to be accessed/loaned instead of purchased in the market, allowing a higher number of people to have direct contact with goods. The cost for purchase, in addition to being expensive, makes the replacement of goods impossible, for this reason, property is a too slow institution to be adjusted to the new reality of this fast culture, of innovations and continued updates, giving the impression it is a problem, considering that, on the pretext of possible reserve, issues referring to limited public resources have prevailed when it comes to the effectiveness of this fundamental social right, excluding the possibility to assure the access to a decent housing for the entire population. Therefore, these arguments enable a discussion on issues specifically related to the effectiveness of right to housing, also suggesting an investment in an instrument other than property, needed to develop policies for public access to housing. Key-words: Fundamental social right to housing – effectiveness – property – access - public policies.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 8

1. O DIREITO À MORADIA: FUNDAMENTOS E EFETIVIDADE........................... 12

1.1. O conteúdo do direito fundamental social à moradia........................................ 13

1.2. A moradia como bem indispensável à dignidade da pessoa humana.............. 21

1.3. A efetividade do direito à moradia..................................................................... 25

2. A PROPRIEDADE: DO PERÍODO MEDIEVAL AO ACESSO NO ESTADO

CONTEMPORÂNEO................................................................................................ 37

2.1. A descontinuidade do conceito da propriedade: do período medieval ao Estado

Liberal....................................................................................................................... 38

2.2. A mudança do papel da propriedade e a eficácia dos direitos fundamentais

sociais....................................................................................................................... 47

2.3. A propriedade na era do acesso....................................................................... 55

3. DIREITO (DE ACESSO) À MORADIA E POLÍTICAS PÚBLICAS...................... 67

3.1. Políticas públicas: relevância jurídica das ações de governo........................... 67

3. 2. Direito ao desenvolvimento e acesso à moradia: planejamento e política

pública...................................................................................................................... 75

3.3. Orçamento como instrumento de efetividade do direito fundamental social à

moradia..................................................................................................................... 78

3.4. Políticas públicas habitacionais baseadas na propriedade............................... 84

3.5. Políticas públicas para a promoção do direito fundamental social (de acesso) à

moradia..................................................................................................................... 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 101

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 105

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INTRODUÇÃO

O direito fundamental social à moradia está entre os bens que compõem o

mínimo existencial e por isso contribui para a concretização da dignidade da pessoa

humana. Apesar dessa carga valorativa, esse direito enfrenta o problema da

efetividade, considerando que as atuais políticas públicas condicionam o seu

exercício à existência da propriedade.

O compromisso deste trabalho é discutir a possibilidade de maior efetividade

do direito fundamental social à moradia a partir do acesso, em consonância com as

ideias desenvolvidas pelo autor Jeremy Rifkin, afastando-se da compreensão de que

a moradia se dá apenas por meio da propriedade, no intuito de, modestamente,

oferecer um contributo para as políticas públicas, complementares aos atuais

programas, de modo a permitir que um maior número maior de famílias possa ser

beneficiado.

O problema central é analisar se a efetividade do direito fundamental social

(de acesso) à moradia pode ser buscada por meios que não estejam

necessariamente vinculados ao instituto da propriedade e sim a partir da ideia de

acesso, com a conseqüente descrição do impacto sobre a constituição de políticas

públicas mais eficientes e viáveis à efetividade desse direito.

O trabalho partirá da hipótese de que os estudos e os debates sobre direito à

moradia ainda se atrelam essencialmente ao direito de propriedade; que o direito de

propriedade passou a ter um novo significado; que a limitação dos recursos públicos

é capaz de comprometer a efetividade do direito à moradia e, por isso, o acesso

pode ser uma forma positiva e capaz de dar uma solução a esse problema, além do

fato de que políticas públicas mais viáveis e eficientes podem ser desenvolvidas em

consonância com essas ideias, de modo a permitir que um número maior de

pessoas tenha acesso à moradia.

A moradia é uma necessidade essencial para todo e qualquer ser humano,

cuja adequação está relacionada a aspectos materiais e imateriais, fazendo desse

direito um bem extrapatrimonial, ligado à personalidade, além de servir como

fomento e garantia à dignidade da pessoa humana. O direito à moradia integra

parâmetros mínimos para uma vida saudável, por estar entre os direitos que

garantem o mínimo existencial, ou seja, é um dos elementos que compõe o conjunto

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de prestações materiais necessárias a garantir uma vida digna a cada pessoa, sem

as quais o homem não sobrevive, uma vez que morar faz parte da existência

humana.

É um direito que se constitui não apenas na faculdade de ocupar um espaço,

mas de fazê-lo em conformidade com as condições que tornam esse espaço um

local de moradia. Por essa razão, a moradia não pode representar, pura e

simplesmente, o direito a um abrigo, a uma edificação. Deve ser oferecida em

dimensões de higiene e conforto adequados, capaz de preservar a intimidade

pessoal e a privacidade familiar, visando a proteção da segurança e privacidade,

além do acesso a equipamentos públicos, às facilidades de circulação, ao

saneamento básico, água, energia elétrica, coleta de lixo, entre outros serviços

públicos essenciais. A moradia representa o direito a um teto, por isso é um valor

capaz de elevar qualidade de vida e alcançar a dignidade.

A moradia é um direito fundamental social, cuja prestação é promovida por

parte do Estado e tem como objeto possibilitar melhores condições de vida aos mais

fracos. Além de estar expressamente previsto na Constituição Federal, por força da

Emenda Constitucional n° 26/2000, é um direito com dupla concepção, uma de

significado negativo, em que ninguém pode ser privado de uma moradia, e a outra,

positivo, já que todo cidadão tem direito a obter uma moradia digna e adequada,

revelando sua natureza prestacional e de eficácia imediata, ou seja, a sua realização

conta com a participação do Estado, ao mesmo tempo em que não

dependentemente da atuação do legislador.

Assim, ao Estado é imposto o dever de desenvolver políticas públicas

necessárias à implementação desse direito, em que são coordenadas ações

públicas e privadas, em consonância com o planejamento e a previsão

orçamentária, revelando que a prestação positiva do Estado é necessária a

efetividade dos direitos sociais.

Ocorre que a implementação e o respeito do direito à moradia é um dos

maiores problemas que desafiam a realidade social brasileira, estando espalhado

por todo o Brasil, cujo fator determinante é a escassez de recursos financeiros. Um

levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro mostra que em 2013 houve um

déficit habitacional que atingiu 5,846 milhões de famílias1. A má administração e os

1 Disponível em <http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/596-nota-tecnica-

deficit-habitacional-2013normalizadarevisada/file>, acesso em 24/06/2016.

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grandes dispêndios financeiros a serem suportados pelos cofres públicos tornam as

políticas públicas insuficientes, consequentemente pouquíssimas famílias são

beneficiadas pelos programas sociais do governo, implicando num desrespeito

constante ao direito fundamental social à moradia previsto expressamente na

Constituição.

As políticas públicas necessárias à efetividade do direito à moradia, na

maioria das vezes, são desenvolvidas em consonância com o direito de propriedade.

E, diante da preocupação de que a propriedade deve cumprir sua função social,

continua-se impondo a compreensão de que o direito à moradia e o direito de

propriedade devem coexistir.

Ocorre que o conteúdo do direito à moradia se mostra destacado do instituto

da propriedade e manter um vínculo estável entre esses dois direitos impede que um

número maior de famílias tenha acesso à moradia, já que a propriedade representa

um alto custo para os cofres públicos, inviabilizando, inclusive, o investimento em

infraestrutura e na prestação dos serviços públicos essenciais ao homem, os quais,

de certa forma, possuem uma íntima relação com o direito social à moradia.

Jeremy Rifkin, mais precisamente em seu livro “A era do acesso”, mostra que

a propriedade teve seu papel alterado no decorrer dos anos. Se durante a Idade

Moderna, período em que vigorou o Estado Liberal, a propriedade e o mercado

foram sinônimos, atualmente ela se tornou um problema, por estar inserida num

cenário em que tudo se torna quase que imediatamente desatualizado, por força da

velocidade com que as inovações tecnologias são produzidas, além do fato de que a

propriedade é muito cara, por isso é lenta. Diante destas circunstâncias, atualmente

as pessoas deixam para trás o interesse de serem donas dos bens e, por isso,

empresas e consumidores, ao invés de trocar bens no mercado, valorizam o acesso.

Por essa razão, a propriedade, apesar de não ser extinta, passa a ter uma

probabilidade bem menor de ser trocada, fazendo com que os mercados passassem

a ceder lugar às redes e a noção de propriedade começasse a ser substituída

rapidamente pelo acesso, como conseqüência do novo capitalismo. Na economia

em rede, tanto a propriedade física quanto a intelectual começam a ser

acessadas/emprestadas ao invés de trocadas/ adquiridas, já que é mediante o

empréstimo, por um período certo de tempo, que mais pessoas têm acesso aos

bens, e não por meio da propriedade.

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A partir da ideia proposta pelo autor mencionado acima, o presente trabalho

tem como objetivo geral discutir a possibilidade da plena efetividade do direito

fundamental social à moradia a partir do acesso, considerando que a propriedade,

além de cara, está comprometida, ao mesmo, em que se sugeri a criação de

políticas públicas alternativas de acesso à moradia, em consequência da criação de

expectativa e de novos olhares à implementação desse direito.

Para tanto, serão analisados os fundamentos do direito social à moradia,

reconhecido na legislação internacional, então recepcionada pela ordem jurídica

brasileira. Previsto expressamente na Constituição Federal, a efetividade desse

direito é um assunto a ser compreendido, principalmente por ele estar entre aqueles

direitos reconhecidos como fundamentais, carregando consigo o valor de um bem

indispensável à garantia da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que

deve ser estudado a partir desse princípio, por ter em seu significado a existência de

padrões mínimos.

Além disso, será feito um estudo sobre o instituto da propriedade, que teve

diferentes significados no decorrer da história, em consonância com a evolução do

capitalismo, começando pelo período medieval, passando pelo Estado Liberal até

chegar aos tempos atuais, em que, a partir da sua função social, a propriedade

começou a exercer um papel importante para a eficácia dos direitos fundamentais

sociais, ao mesmo tempo em que ela deixa de ser o bem mais importante para a

economia capitalista, quando as pessoas não têm mais o interesse de adquirir e

começam a emprestar os bens no mercado, valorizando o acesso.

Por fim, após uma breve compreensão sobre o significado de políticas

públicas e a sua relevância jurídica, será feita uma análise nos institutos do

planejamento e do orçamento, instrumentos importante para a garantia do direito ao

desenvolvimento, e, consequentemente, à efetividade do direito fundamental social à

moradia, sem que se perca de vista que a limitação de recursos públicos, sob o

argumento da reserva do possível, não deve servir de justificativa à inércia do

Estado, impondo-se, portanto, a necessidade de se pensar em políticas públicas

alternativas a serem desenvolvidas a partir da ideia de acesso e não da propriedade,

conforme se verá. Como método para a realização desse trabalho foi utilizada a

pesquisa bibliográfica, além da análise crítica da doutrina e da legislação pertinentes

ao tema.

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1. O DIREITO À MORADIA: FUNDAMENTOS E EFETIVIDADE

A proposta deste capítulo se limita a compreender o significado e a extensão

do conteúdo do direito social à moradia, situando-o no contexto dos direitos

fundamentais, hoje expressamente consagrado pela ordem jurídica constitucional

brasileira, em consonância com a compreensão de que esse direito representa um

suporte para a concretização da dignidade da pessoa humana, estando entre os

bens que compõem o mínimo existencial, e por isso entendido como um bem

extrapatrimonial, devendo ser assegurado de forma adequada. Nesse estudo

também será abordada a compreensão da moradia como um bem entre aqueles que

compõem a personalidade humana, representado, por isso, um direito subjetivo

público, possibilitando ao seu titular a plena exigência perante o Poder Público, tanto

na sua função de defesa, quanto na função prestacional, já que o direito à moradia

possui dupla concepção.

Também serão analisadas as questões relacionadas à eficácia e efetividade

do direito fundamental social à moradia, principalmente nas relações com o poder

público, tidas como um dos problemas mais emblemáticos no ambiente jurídico

atual, por envolver discussões relacionadas às normas programáticas, limitação de

competências outorgadas a cada um dos poderes que compõe a ordem

constitucional e questões envolvendo a limitação do orçamento público. Ainda que o

direito fundamental social à moradia seja compreendido como um bem entre aqueles

que compõem o mínimo existencial, devendo, portanto, ser reconhecido em respeito

ao princípio da dignidade da pessoa humana, vigora no ordenamento o problema da

sua eficácia e efetividade.

A realidade brasileira demonstra que grande parcela da população,

principalmente aquela que se encontra em condições de miserabilidade, vivencia

uma exclusão social cada vez mais intensa, e, consequentemente, não tem acesso

à moradia, ao mesmo tempo em que o Estado permanece inerte ou tentando

justificar a sua omissão, fato que desperta a necessidade deste estudo, que, de

forma modesta, tem a pretensão de indicar possíveis caminhos a serem seguidos

por parte do Estado, capaz de desenvolver políticas públicas necessárias à garantia

do acesso à moradia digna e de forma desvinculada do direito de propriedade, com

o intuito de assegurar a efetividade desse direito fundamental social.

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1.1. O conteúdo do direito fundamental social à moradia

Por meio da Emenda Constitucional n° 26, de 14 de fevereiro de 2000, o

direito à moradia foi incluído expressamente no rol dos direitos fundamentais sociais

previstos no artigo 6° da Constituição Federal2, não obstante o fato de que a ordem

jurídica já reconhecia e protegia a moradia no plano constitucional, ainda que de

forma implícita. Antes da emenda, o texto do artigo 183 da Constituição Federal3, ao

prever a usucapião, já promovia o direito à moradia, ao condicionar o exercício do

direito da propriedade urbana à necessidade do cumprimento de sua função social,

o que também ocorre com relação à propriedade rural, cuja previsão consta no

artigo 191 do mesmo diploma4. Referidos dispositivos constitucionais buscam, no

instituto da função social da propriedade, proteger e assegurar a moradia às classes

menos favorecidas economicamente, principalmente porque asseguram a aquisição

da propriedade pela usucapião, desde que o possuidor não seja proprietário de outro

imóvel urbano ou rural, o que, em outras palavras, significa dizer que aquele que, no

exercício da posse por um período certo de tempo, usa o imóvel especificamente

para a sua moradia adquirir-lhe-á a propriedade5.

Além desses dois dispositivos, antes da Emenda Constitucional 26, a

Constituição Federal também contemplava a moradia no IX do artigo 236, cuja

previsão estabelece a competência administrativa comum dos entes da federação a

promover programas de construção de moradias e melhorias das condições

habitacionais, e no inciso XX do artigo 217, ao outorgar à União a competência

administrativa para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive

2 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,

o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 3 “Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados,

por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.” 4 “Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco

anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.” 5 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas

implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 128. 6 “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:... IX -

promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;” 7 “Art. 21. Compete à União:...XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive

habitação, saneamento básico e transportes urbanos;”

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habitação, o que significa tratar-se de um assunto a ser tutelado pelo Estado, assim

como as políticas agrícolas, cujo planejamento e execução deve levar em conta a

habitação em favor do trabalhador rural, de acordo com a previsão do inciso VIII do

artigo 1878. Já a partir da previsão no inciso IV do artigo 7°9 do mesmo diploma

legal, a moradia está entre os direitos que compõem as necessidades básicas da

pessoa humana. Finalmente e não menos importante, numa dimensão funcional de

defesa, tem-se a previsão do inciso XI do artigo 5°10, em que é assegurado o direito

à moradia contra interferências indevidas, e a do inciso X11, que assegura a proteção

da intimidade e da privacidade, direitos que possuem uma íntima relação com a

moradia.

Constata-se que a proteção constitucional do direito à moradia não demanda

uma previsão expressa e específica, sendo que a Emenda Constitucional n° 26/2000

veio apenas situar esse direito entre aqueles ditos sociais, reforçando a ideia de que

a proteção e promoção do acesso à moradia digna a todos é um dever imposto ao

Estado e aos particulares, principalmente pelo fato de que a República Federativa do

Brasil está fundada na dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que a

meta da ordem jurídica brasileira é de construir uma sociedade justa, livre e

solidária12, de acordo com a previsão do artigo 1°13 e 3°14, respectivamente, da

Constituição.

8 “Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva

do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:... VIII - a habitação para o trabalhador rural.” 9 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua

condição social:... IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;” 10

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:... XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;” 11

“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” 12

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 86. 13

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:... III - a dignidade da pessoa humana;” 14

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

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15

A dignidade da pessoa humana é o alicerce da ordem jurídica, e, portanto,

este princípio alcança todas as áreas do direito, representando a tutela integral da

pessoa humana. A partir desta compreensão, existem autores que defendem que a

moradia é tida como um direito humano fundamental, conforme será analisado de

forma mais profunda no próximo item, por tratar-se de um direito imprescindível à

satisfação das necessidades existenciais básicas do ser humano para que haja uma

vida digna. Aliás, a própria dignidade da pessoa humana clama pela satisfação das

necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade e por isso é

fundamento necessário ao reconhecimento da existência de direitos fundamentais,

inclusive para aqueles não expressamente positivados, mas destinados à promoção

da dignidade15. Por isso, de acordo com a Constituição, a moradia, expressamente

prevista entre os direitos sociais, também compõe o universo dos direitos

fundamentais, por estar fundada no princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, não há que se perder de vista a íntima conexão que esse direito social

possui com a dignidade da pessoa humana, por conter em seu significado a

existência de padrões mínimos indispensáveis para uma vida saudável, no sentido

de um completo bem-estar físico, mental e social16. Isso quer dizer que a moradia

não pode significar apenas um teto, ou um mero espaço físico, sendo o seu conceito

mais amplo e complexo do que a mera casa própria, representando um dos fatores

determinantes à qualidade de vida da pessoa humana. A moradia, portanto, significa

a observância das necessidades humanas, como por exemplo, a proteção contra

chuva, vento, calor, frio, a preservação da intimidade, ao mesmo tempo em que

deve estar inserida num ambiente servido de infra-estrutura, serviços públicos,

educação, lazer, cultura, entre outras necessidades, representando em seu conceito

a faculdade de ocupar uma habitação em dimensões adequadas, exercida de forma

digna, em condições de higiene e conforto, visando a preservação da intimidade

pessoal e da privacidade familiar17

15

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 97. 16

Idem. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 700. 17

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 318/319.

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16

Ainda sobre a proteção constitucional do direito à moradia, a previsão do § 2°

do artigo 5° da Constituição18 já garantia uma proteção jurídica desse direito sob

uma condição material19, pelo fato de o Brasil ser signatário dos principais tratados

internacionais em matéria de direitos humanos, sendo que alguns deles contemplam

expressamente esse direito.

Foi na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, cujo

conteúdo o Brasil é signatário, em seu artigo XXV20, que o direito à moradia foi

reconhecido pela primeira vez. De acordo com a previsão constante no § 3° do

artigo 5° da Constituição21, somada àquela do § 1°22 do mesmo artigo, os tratados

definidores de direitos e garantias fundamentais, assim que ratificados pelo Brasil,

recebem o status de norma constitucional, irradiando efeitos imediatos na ordem

jurídica internacional e interna, dispensando, por isso, a edição de decretos de

execução, já que possuem aplicação imediata, vigorando a sistemática da

incorporação automática no caso de tratados de direitos humanos, de acordo com a

concepção monista23, uma vez que não parece razoável exigir, após todo o processo

solene e especial de aprovação do tratado nos termos da previsão do § 3° citado

acima, condicionar a incorporação dos direitos humanos no âmbito interno somente

após a edição de um decreto do Presidente da República.

A moradia também é tutelada pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos, de 1966, em seu artigo 17, §1°24; pela Convenção Americana sobre

18

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:...§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 19

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 693. 20

“XXV- todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”. 21

“§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” 22

“§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 23

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 14ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 158. 24

“§ 1º Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação.”

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17

Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969, que em seu artigo

1125, sob o fundamento da dignidade da pessoa humana, reconhece a necessidade

do respeito aos valores inerentes à existência humana. Mas foi no Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, em seu no

artigo 11, § 1°26, que a expressão “moradia adequada”, ao ser tutelada, foi prevista

de forma expressa, significando uma referência mais qualificada desse direito, ao

invés dos textos internacionais que até então se utilizavam da expressão

“habitação”.

O tema também foi abordado pela Declaração sobre Assentamentos

Humanos de Vancouver, de 1976, um programa das Nações Unidas para

Assentamentos Humanos, cuja preocupação é a eliminação dos obstáculos ao

direito à moradia27; a Agenda 21, de 1992, produzida pela Conferência das Nações

Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que, em seu capítulo 7, tratou

da preocupação sobre o desenvolvimento sustentável dos assentamentos

humanos28, dentre outros documentos internacionais, cujo conteúdo, não menos

importante, não se vai aqui tratar em razão da delimitação deste trabalho, mas faz

necessária a referência à Agenda Habitat I e II, de 1996, fruto da Conferência das

Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, que, ao prever metas universais

para uma moradia a todos em um nível mais seguro, saudável, habitável, equitativo,

sustentável e produtivo, destaca a necessidade dela ser adequada a todos como um

dos principais temas de discussão relacionados à moradia29.

25

“1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.” 26

“Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medida apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.” 27

ONU-HABITAT: programa das nações unidas para assentamentos humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/onu-habitat/>. Acesso em: 21 de julho de 2016. 28

Conferência das nações unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Capítulo 7: Promoção do desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-global/item/637>. Acesso em: 21 de julho de 2016. 29

Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/moradia-adequada/declaracoes/declaracao-de-istambul-sobre-assentamentos-humanos>. Acesso em 21 de julho de 2016.

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18

Após a análise sobre a previsão constitucional do direito à moradia, é

necessário compreender algumas questões sobre o conteúdo desse direito,

principalmente pelo fato de que o legislador constitucional poupou qualquer adjetivo

ao confeccionar a norma, somado ao fato de que o conceito desse direito deve ser

compreendido a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme já

afirmado anteriormente. Não há como negar que a falta de previsão expressa de

adjetivos ao direito à moradia simboliza um acerto do legislador constitucional, pois,

de outro modo, a adjetivação seria capaz de reduzir excessivamente o objeto do

direito à moradia, além do fato de que o exercício desse direito dependeria de

regulamentação por parte do legislador infraconstitucional, pondo a previsão

constitucional sob o risco de se tornar letra morta30.

O conceito do direito à moradia não está intimamente ligado ao direito de

propriedade, no entanto a propriedade pode servir de moradia ao seu titular, ou

ainda, a moradia é um pressuposto para a sua aquisição no caso da usucapião, ou

serve como indicativo à observância da função social da propriedade, o que significa

que o direito à moradia pode assumir uma posição preferencial em relação ao direito

de propriedade. Além disso, a moradia foi reconhecida inicialmente na Constituição

Federal a partir da dignidade da pessoa humana e classificada como um direito

social, ao contrário da propriedade, que está classificada como um direito

fundamental de primeira geração31.

Nesse mesmo sentido, no âmbito internacional o direito à moradia também

possui como diretriz a dignidade da pessoa humana, conforme é possível perceber a

partir do Comentário Geral nº 4 elaborado pela Comissão da ONU para Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, que identificou os elementos básicos a serem

atendidos em termos de direito à moradia32, cujo conteúdo deve ser levado em conta

30

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 698. 31

PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo entre direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRSP, 2009, p. 181. 32 Segurança da posse: a moradia não é adequada se os seus ocupantes não têm um grau de

segurança de posse que garanta a proteção legal contra despejos forçados, perseguição e outras

ameaças; Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura: a moradia não é adequada, se os seus ocupantes não têm água potável, saneamento básico, energia para cozinhar,

aquecimento, iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de lixo; Economicidade: a moradia não é adequada, se o seu custo ameaça ou compromete o exercício de outros direitos

humanos dos ocupantes; Habitabilidade: a moradia não é adequada se não garantir a segurança

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19

pelo órgão estatal responsável a estabelecer os contornos do direito à moradia e dos

meios para sua implementação, sem perder de vista a previsão das normas

internacionais, cujo Brasil é signatário, muito menos os preceitos estabelecidos pela

própria Constituição, a fim de que seja assegurada uma vida com dignidade. Diante

deste raciocínio, o direito à moradia, protegido e compreendido a partir do princípio

da dignidade da pessoa humana, constitui um direito essencial ao ser humano, ao

mesmo tempo em que serve como elemento fundamental para o reconhecimento da

própria dignidade da pessoa, por isso a moradia está intimamente relacionada a

outros direitos33, conforme se verá logo abaixo.

Seguindo este elenco de diretrizes estabelecido pela Comissão de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais da ONU e em respeito ao valor da dignidade da

pessoa humana, chancelada pela ordem constitucional brasileira, o direito à moradia

abrange um complexo de posições jurídicas e assume dupla concepção, uma

negativa e a outra positiva, ou seja, representa o exercício do direito de defesa e de

prestação, vinculando as entidades estatais e também os particulares34. Por isso,

apesar de haver posições contrárias a esse entendimento, o direito à moradia pode

exercer de forma simultânea uma função defensiva e prestacional, significando dizer

que o texto da Constituição Federal que prevê o direito à moradia possui mais de

uma norma, representando um feixe de posições juridicamente protegidas.

No que tange sobre a concepção de significado negativo, o direito à moradia

tem como conteúdo deveres de abstenção erga omnes35, representando a defesa

contra toda e qualquer agressão praticada por terceiros ou pelo próprio Estado,

como no caso de invasão de domicílio, penhora, despejos arbitrários, dentre outros

exemplos. Nessa função, tanto o Estado, assim como os particulares, tem o dever

jurídico de respeitar e de não violar a moradia. Em relação à concepção positiva,

física e estrutural proporcionando um espaço adequado, bem como proteção contra o frio, umidade,

calor, chuva, vento, outras ameaças à saúde; Acessibilidade: a moradia não é adequada se as

necessidades específicas dos grupos desfavorecidos e marginalizados não são levados em conta; Localização: a moradia não é adequada se for isolada de oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais ou, se localizados em áreas poluídas ou

perigosas; Adequação cultural: a moradia não é adequada se não respeitar e levar em conta a expressão da identidade cultural (UNITED NATIONS, 1991).” 33

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.135. 34

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 168 e 169 35

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 40.

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20

também chamada de direito à prestação, tem como fundamento garantir a posição

prevista no ordenamento em favor do titular do direito. No caso da moradia, o titular

desse direito pode exigir do Poder Público a estruturação de órgãos, a edição de

normas, o desenvolvimento de políticas públicas, a destinação de recursos

econômicos, a prestação de serviço público, entre outras ações, as quais são

necessárias à implementação desse direito36, sem deixar de lado o conteúdo da

norma que impõe a garantia de uma moradia compatível com as exigências de uma

vida digna, tratando-se, portanto, de uma tarefa imposta ao Poder Público, cuja

função é exercê-la positivamente, de modo a promover o referido direito.

A compreensão do conteúdo do direito à moradia também impõe um estudo

sobre a eficácia da norma constitucional que regulamenta esse direito, cuja análise

mais aprofundada se dará em um item específico, mas convém aqui adiantar que,

com relação à concepção negativa desse direito, a previsão constante no § 1° do

artigo 5° da Constituição assegura que a sua eficácia independe de concretização

legislativa, tratando-se de uma situação prontamente desfrutável, apesar de não ser

possível sustentar que se trata de um direito absoluto37. Por outro lado, em relação à

dimensão positiva, há entendimento de que o direito à moradia está enquadrado na

categoria de norma constitucional programática, mas, ainda que exista essa

compreensão, esse direito não perde a sua fundamentalidade, além do fato de que

ele representa um leque de possibilidades38, conforme destacado acima.

Ainda sobre a dimensão positiva, convém lembrar que o Poder Público editou

um conjunto de leis infraconstitucionais visando a promoção de políticas públicas

habitacionais e a proteção do direito à moradia, entre as quais se destacam, a título

de exemplo, a Lei 6.766/79, que, além de estabelecer diretrizes para o parcelamento

urbano, assegura a proteção da moradia e a segurança da posse dos adquirentes

de boa-fé, quando impõe ao Poder Público o dever de assumir a regularização

fundiária; a Lei 8.245/91, que, ao dispor sobre a locação de imóveis urbanos, possui

regras específicas aplicáveis à moradia, as quais asseguram o exercício da posse

direta e o direito de morar num imóvel em condições de habitabilidade; a Lei

10.257/01, denominada Estatuto da Cidade, que estabelece diretrizes gerais da

36

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 725. 37

Ibidem, p. 715 e 716. 38

Ibidem, p. 723 e 724.

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21

política urbana, possibilitando, inclusive, a intervenção do Estado na propriedade

privada, quando esta não cumpre a sua função social; a Medida Provisória 2.220/01,

que dispõe sobre a concessão de uso especial para fins de moradia sobre imóveis

públicos; a Lei 11.481/07, que trata da regularização fundiária de interesse social em

imóveis da União; o Código Civil, que regulamenta a usucapião, cujo instituto

assegura o exercício do direito de moradia; a Lei 11.124/05, que dispõe sobre o

Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, além de criar o Fundo Nacional

de Habitação de Interesse Social – FNHIS e instituir o Conselho Gestor do FNHIS; e,

por fim, a Lei 13.105/15, que instituiu o procedimento administrativo para o

reconhecimento do direito de propriedade por intermédio da usucapião.

1.2. A moradia como bem indispensável à dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca e individual

reconhecida a cada um, que se faz merecedor do respeito e consideração por parte

do Estado e de toda sociedade, além de representar um complexo de direitos e

obrigações que protege a pessoa contra todo ato degradante e desumano, ao

mesmo tempo em que assegura condições existenciais mínimas para uma vida

saudável, cujo exercício exige o respeito em favor dos demais seres39. É na

dignidade da pessoa humana que reside o principal fundamento do conceito material

dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que a efetividade dos direitos

fundamentais sociais, econômicos e culturais representam a concretização da

dignidade da pessoa humana40.

Os direitos sociais são os frutos da segunda fase de reivindicação de direitos,

quando a sociedade era marcada por uma intensa desigualdade material, pobreza e

exclusão social, como conseqüência do liberalismo e da industrialização41. Referido

movimento representou uma reivindicação da atuação estatal, a fim de garantir um

mínimo necessário e imprescindível para cada pessoa humana, inaugurando um

novo paradigma: o Estado Social, tendo a Constituição Mexicana de 1917 e a

39

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 70 e 71. 40

Idem. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 693 e 694. 41

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 64 e 65.

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22

Constituição de Weimar, na Alemanha, em 1919, como documentos precursores42.

Os direitos sociais, entre os quais se destaca o direito à moradia, representam uma

concretização do princípio da igualdade43, entendida no seu sentido material, já que

eles possibilitam a manutenção de melhores condições de vida, inclusive aos mais

necessitados, ao mesmo tempo em que servem como pressuposto para o gozo dos

direitos individuais, dando oportunidade para a concretização da igualdade material.

Mas foi num terceiro movimento, conseqüência do segundo pós-guerra, que o

ser humano foi elevado ao valor mais importante em uma ordem jurídica nacional e

internacional, cujo caminho escolhido foi a Constitucionalização, tendo a Declaração

Universal dos Direitos do Homem, de 1948, seguida do Pacto Internacional de

Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, ambos de 196644, como os primeiros documentos a expressar o referido

valor, cuja previsão, inclusive, assegura a proteção do direito à moradia em seu

texto.

Esse movimento fez com que a dignidade da pessoa humana passasse a ter

proteção constitucional, inclusive com previsão expressa, como no caso do inciso III

do artigo 1°45 e inciso III do artigo 3°46, ambos da Constituição de 1988, em que o

homem é reconhecido como o valor mais importante na ordem jurídica brasileira. É

dentro desta compreensão que os direitos fundamentais ganham destaque, tendo

em vista que são essenciais e indispensáveis à satisfação e proteção humana, pois

se tratam de situações jurídicas sem as quais o homem não se realiza, não vive em

sociedade e, talvez, sequer sobrevive47. Desse modo, diante da previsão

constitucional que protege a dignidade da pessoa humana e os direitos

fundamentais, a partir da Constituição Federal de 1988, foi instituído o Estado

Democrático de Direito48.

42

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 578. 43

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 162 e 287. 44

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 66 e 67. 45

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:... III - a dignidade da pessoa humana;” 46

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:... III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;” 47

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 180. 48

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 37.

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23

Essa positivação representa o compromisso do ordenamento em assegurar a

promoção jurídica dos direitos nele previstos, tendo em vista que os direitos do

homem se desenvolvem sob a sombra das concepções jusnaturalistas, tidas como

direitos naturais, cujos valores são reconhecidos desde o início da existência

humana, mas somente ganham proteção jurídica a partir do momento em que são

reconhecidos e integrados na ordem jurídica pela Constituição49. Desse modo,

apesar de posições divergentes, há que se reconhecer aos direitos sociais,

econômicos e culturais a qualidade de direito fundamental, quando eles representam

a exigência e a concretização da dignidade da pessoa humana, conforme citado no

item anterior, pois a conexão entre pobreza, exclusão social e direitos sociais existe

em respeito e proteção à dignidade da pessoa humana50.

De acordo com essa corrente doutrinária, a que este trabalho se filia, o direito

social à moradia também é entendido como um direito fundamental, já que se

identifica uma relação íntima e indissociável entre esse direito e a dignidade da

pessoa humana, quando ele representa uma necessidade essencial ao ser

humano51. Uma moradia adequada significa exercer uma vida digna, uma vez que

deve ser assegurado um lugar para proteger a si próprio e sua família, para gozar da

intimidade e privacidade, para viver com saúde e bem estar, como exercício da

dignidade. Para viver dignamente e com o objetivo de desenvolver livremente sua

personalidade, todo ser humano necessita de uma moradia adequada.

Dentro de um universo que envolve os direitos essenciais à pessoa humana,

a moradia adequada possui uma relação de interdependência com outros bens

juridicamente protegidos, como a vida, saúde, integridade física e moral, intimidade,

liberdade, entre outros. Por essa razão ela passa a ser reconhecida como um bem

extrapatrimonial, já que ela é capaz de assegurar a integridade física, psíquica e

moral da pessoa, ou seja, o respeito a esses interesses se dá por meio do exercício

do direito à moradia adequada52.

49

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro. 13ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 31. 50

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 694 e 695. 51

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 44. 52

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 155 a 160.

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24

O cidadão deve ter acesso a uma morada que assegure o atendimento de

suas necessidades básicas, como ir à escola, ao trabalho ou ao posto de saúde,

além do fornecimento de serviço público adequado, como energia, água, esgoto ou

coleta de lixo, num mínimo de segurança e em um lugar adequado e com uma

edificação estável. O direito à moradia também se manifesta ao assegurar o

sossego, a privacidade e a intimidade, sendo que a morada deve representar um

recinto de paz e tranquilidade, além do fato de que o lar é o local onde cada ser

humano pode atuar de forma mais livre, exteriorizando suas atividades mais

pessoais e intimas53.

Desse modo, assegurar um espaço adequado para um lar familiar por si só

não basta, ele deve vir acompanhado de outras ações, como garantia de acesso a

bens. Daí a conclusão de que a mera produção de unidades habitacionais não é a

solução para o problema social da habitação, já que devem ser respeitados outros

bens e direitos essenciais ao homem, os quais estão intimamente relacionados à

moradia, em respeito à dignidade da pessoa humana, tornando claro que o direito à

moradia é muito mais amplo e complexo do que o de casa própria.

Também existe uma compreensão de que o direito à moradia não recai sobre

o objeto, mas sobre o bem moradia, consequentemente esse direito não tem

natureza apenas de um direito fundamental social, mas também uma íntima relação

com os bens que compõem a personalidade do indivíduo, tornando-se inerente a

cada ser humano por mais esse motivo54. A personalidade é um complexo de

características interiores do indivíduo, capaz de revelar seus atributos materiais e

morais, cujo universo é composto por outros bens subdivididos, como a vida, a

liberdade, a honra, a intimidade, o segredo, entre outros, que juntos formam o bem

maior, que é a personalidade55. Nesse sentido, a personalidade é o primeiro bem da

pessoa, cuja origem decorre da própria existência, composta por um conjunto de

caracteres a ela inerentes e que envolve outros bens, os quais apóiam os direitos e

deveres dela decorrentes.

53

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 204 a 206. 54

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 117 e 118. 55

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 145.

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25

Os bens que compõem a personalidade compreendem aqueles considerados

essenciais à pessoa humana, por isso, qualquer lesão que atinja a dignidade

também representa danos à personalidade56. Desta forma, os bens da

personalidade humana são identificados a partir da essência humana. Além disso, o

exercício da personalidade representa o exercício do direito subjetivo57, considerado

como um poder de manifestação da vontade e, ao mesmo tempo, implica no dever

jurídico de respeito por parte do outro.

Certos direitos humanos estão entre aqueles inerentes ao exercício da

personalidade, como é o caso do direito à moradia, tratando-se de um direito da

essência do indivíduo, e, portanto, emanado da personalidade humana58. Mas é

válido ressaltar que a tutela da pessoa humana sob a denominação de direito da

personalidade é algo recente, cuja ocupação se deu após a Constitucionalização,

citada acima, fenômeno que ganhou força a partir do século XX, representando a

eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, quando a

personalidade foi considerada um valor constituído em si mesmo, cujos preceitos

estão embasados no texto constitucional59, e, portanto, capaz de alcançar todos os

setores da ordem jurídica, já que o homem foi elevado um valor supremo,

representando uma nova compreensão do direito, ao contrário da visão que dividia o

direito em dois ramos distintos e independentes: o público e o privado60, superando

o problema da proteção do patrimônio e da circulação de riquezas em detrimento do

valor humano.

1.3. A efetividade do direito à moradia

A doutrina levanta uma discussão sobre a distinção conceitual entre eficácia e

efetividade das normas constitucionais, em que a primeira, também chamada de

56

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 10. ed. 1ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 153. 57

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol. I. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 130. 58

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.152. 59

FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 90 a 93. 60

BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: público/privado. In: Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução: Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007, p. 115 a 137.

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26

eficácia jurídica, significa que toda norma constitucional tem a capacidade de

produzir efeitos no universo jurídico, ao contrário da segunda, denominada pela

doutrina como eficácia social, cujo conceito representa a concretização do conteúdo

da norma, em que os efeitos efetivamente se produzem61.

A compreensão das questões relacionadas à efetividade dos direitos

fundamentais sociais e, em particular, do direito à moradia, remete o leitor à

necessária compreensão do conteúdo da norma prevista no § 1º do artigo 5º da

Constituição Federal62, cujo alcance e significado a doutrina ainda não se assentou

pacificamente, tratando-se de um dos temas mais polêmicos do direito

constitucional63. Essa norma abrange todos os direitos fundamentais de forma

irrestrita, tanto que o próprio constituinte não dispôs o contrário, cujo conteúdo, em

harmonia com a previsão do § 2º do mesmo artigo64, significa uma aplicabilidade

imediata de todas as normas de direitos fundamentais previstas em qualquer parte

do texto constitucional, somadas àquelas previstas nos tratados internacionais, de

modo a inexistir a necessidade da intermediação do legislador infraconstitucional,

pois, do contrário, isso significaria um esvaziamento da fundamentalidade da norma

constitucional.

No entanto, convém destacar que existe entendimento contrário sobre esse

tema, por afirmar que algumas normas da Constituição, entre elas, a previsão do §

1º do artigo 5°, são de eficácia limitada e por isso não têm condições de gerar efeitos

sem a intervenção do legislador65. Convém ressaltar que essa compreensão

divergente da doutrina decorre da concepção proporcionada pelo constitucionalismo

de índole liberal, quando afirma que todas as normas de direitos sociais são

detentoras de conteúdo programático e por isso representam meras diretrizes

61

BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 66. 62

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:... § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 63

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 707. 64

“§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 65

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 708 e 709.

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27

políticas e sem força vinculante, cuja efetividade estaria a depender da iniciativa do

legislador ordinário66.

As normas programáticas surgem como conseqüência do primeiro pós-

guerra, quando os holofotes se voltaram para uma justiça social, cujo conteúdo

representa indicadores para os fins a serem alcançadas no âmbito social e por isso

se limitam a estabelecer determinados princípios ou programas de ação a serem

desenvolvidas por parte do Estado, ou seja, são linhas diretoras a orientar o poder

público67, como conseqüência da inauguração do Estado Social, conforme já citado

no item anterior. De acordo com esses autores, as normas constitucionais

programáticas devem ser compreendidas como um conjunto de regras que

estabelecem comportamentos a serem cumpridos por parte do Estado e do

indivíduo, por disporem sobre a realização da justiça social, cabendo ao Estado

realizá-las68.

No plano da eficácia e da efetivada, a norma constitucional que protege o

direito fundamental social à moradia deve ser analisada na sua dupla função

(positiva e negativa), sem perder de vista que se trata de um direito que possui

identidade com o direito subjetivo público, conforme estudado anteriormente. Apesar

da divergência sobre a efetividade das normas programática, há entendimento de

que os direitos fundamentais sociais são de pronta exigibilidade por parte de seu

titular, cuja realização se dá de forma positiva e negativa69.

Em sua concepção negativa/ defensiva, o direito à moradia significa um direito

subjetivo a uma proteção contra toda e qualquer agressão por parte do Estado ou de

terceiros. Neste caso, não há questionamentos por parte da doutrina no que tange

sobre a efetividade do referido direito, interpretado em consonância com a previsão

constante no § 1º do artigo 5º da Constituição, tendo ele aplicabilidade imediata e

plena efetividade, com dispensa à atuação do legislador70. E não poderia ser de

66

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 102. 67

BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 76. 68

MELLO, Celso Antonio Bandeira. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 214. 69

BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 73. 70

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 713.

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28

outra forma, já que, em sua função negativa, o titular do referido direito apenas exige

o respeito e a omissão do terceiro, destinatário da norma, principalmente pelo fato

de que os direitos de defesa, como um todo, representam um direito subjetivo

individual e por isso a norma constitucional assegura ao particular um poder a ser

exercido imediatamente, cujo desfrute não depende de qualquer conduta por parte

de outrem, a não ser a sua abstenção71.

No entanto, convém lembrar que o direito à moradia, na sua função de

defesa, não pode ser considerado um direito absoluto, completamente isento de

qualquer tipo de restrição72, sendo possível, por exemplo, que o Poder Público, nas

relações públicas, promova desapropriações ou exija a desocupação de área de

preservação ambiental, nos termos previstos em lei, a fim de atender o interesse

social, ou ainda, nas relações privadas, é possível que o indivíduo seja compelido a

desocupar o imóvel, por meio das ações de reintegração de posse intentadas pelos

seus titulares contra invasores que a utilizam para a sua morada, por exemplo.

Desse modo, nas relações onde estão em jogo direitos fundamentais de

titulares diversos é possível o surgimento de colisão entre eles, impondo-se uma

restrição de direitos, cuja análise mais aprofundada não se dará neste trabalho em

razão da pesquisa proposta, mas não se pode perder de vista o dever de proteção

que deve vigorar sobre todos os direitos fundamentais, principalmente por estarem

sob os olhos do princípio da dignidade da pessoa humana73.

No que tange sobre a sua função prestacional, o problema da compreensão

sobre a eficácia e efetividade do direito à moradia gera maior dificuldade, pois neste

caso a moradia representa um direito de exigir uma prestação material por seu titular

em face do Poder Público, de modo que este garanta uma moradia adequada, e,

portanto, de acordo com os padrões dignos, conforme analisado no item anterior. A

partir de então, questiona-se se o Poder Público pode ser compelido a oferecer

moradia digna àqueles impossibilitados de acessá-la74. Segundo o entendimento da

71

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 209. 72

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 716. 73

Ibidem, p. 717 e 718. 74

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.).

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29

doutrina defensiva da idéia de que as normas de direitos sociais possuem conteúdo

programático, em sua dimensão prestacional, a efetividade do direito a moradia

depende do legislador ordinário para sua concretização, significando dizer que o

indivíduo não tem acesso imediato a uma prestação efetiva, em consequência de

que inexiste um direito subjetivo do indivíduo75.

Apesar de parte da doutrina defender esse posicionamento, cujo conteúdo o

presente trabalho não comunga, não há como negar a eficácia imediata dos direitos

sociais fundamentais, mesmo que eles estejam entre as normas tidas como

programáticas76, principalmente porque o direito nelas previsto gozam de

fundamentalidade. Assim, tais normas são diretamente aplicáveis, podendo ser

extraídos os efeitos que dela se esperam independentemente da intermediação do

legislador ordinário, representando um reconhecimento do direito subjetivo do titular

do direito fundamental social77. Nesse raciocínio, a eficácia do direito fundamental

social à moradia, compreendido em sua dupla dimensão, representa um dever do

Estado em empreender esforços e se fazer presente para a proteção e promoção do

referido direito, da mesma forma como deve ocorrer no caso dos demais direitos

sociais compreendidos como fundamentais.

Não bastasse isso, a defesa da eficácia imediata dos direitos fundamentais

sociais tem propiciado o surgimento de outras discussões, entre as quais se

destaca, por exemplo, a questão ligada à separação dos poderes. Alguns defendem

que a atuação do Poder Público para garantir a efetividade de um direito depende de

previsão orçamentária, sendo esta subordina à iniciativa parlamentar, que tem o

dever de promover a aprovação da previsão dos recursos públicos. Aliás, esse

argumento tem servido como justificativa por parte do poder executivo inoperante,

que afirma a falta de previsão orçamentária no caso de não ser assegurada a

implementação de direitos fundamentais sociais78.

Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 722. 75

BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 76-77. 76

MELLO, Celso Antonio Bandeira. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 236. 77

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 268. 78

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008.

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30

Outra discussão relacionada à inefetividade dos direitos fundamentais sociais

diz respeito à inércia do Poder Público em razão da ausência de recursos

financeiros. Neste caso, o Poder Público justifica a sua inércia com base no princípio

da reserva do possível, ou seja, a atuação do Estado na efetividade dos direitos

fundamentais sociais está condicionada à disponibilidade de recursos financeiros.

A teoria que explica o princípio da reserva do possível teve origem na

Alemanha, a partir dos anos 197079, quando seu Tribunal Constitucional Federal

julgou o paradigmático caso numerus clausus, que versava sobre o direito de acesso

ao ensino superior.

Essa teoria se difundiu por diversos países, inclusive no Brasil, passando a

ser aplicada como uma justificativa às limitações da efetividade dos direitos sociais,

inclusive àqueles com índole fundamental, no entanto num sentido diferente do

original, ao utilizar como argumento central e exclusivo as questões relacionadas à

disponibilidade de recursos financeiros. O Estado justifica sua omissão ao não

atendimento de uma pretensão subjetiva em razão da escassez de recurso

público,80 traduzindo uma ideia de que os direitos sociais só existem na medida em

que há recurso financeiro81.

Condicionar a efetividade dos direitos fundamentais, inclusive à moradia, ao

princípio da reserva do possível traz a tona uma nova discussão, principalmente pelo

fato de que não se pode negar, de forma absoluta, o direito subjetivo à prestação

estatal82, além do fato de que essa justificativa não está de acordo com a

principiologia da Constituição, que reconhece a natureza fundamental desse direito,

sob pena de esvaziar, por completo, a sua efetividade e fundamentalidade.

Diante deste impasse, como critério crucial para a solução das questões

relacionadas à efetividade dos direitos fundamentais sociais, a doutrina se utiliza do

princípio da dignidade da pessoa humana, já analisado anteriormente, que, além de

exercer uma função demarcatória, estabelece um padrão mínimo, cujo método

79

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner.Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 80

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 194. 81

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 481. 82

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 728.

Page 32: DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO PARA … · 2017-10-03 · Concentração em Constitucionalismo e Democracia, ... Orçamento como instrumento de efetividade do direito fundamental

31

institui a teoria do mínimo existencial, o qual reconhece em seu núcleo a eficácia

imediata dos direitos fundamentais sociais, desde que integrem o mínimo necessário

a uma existência digna do indivíduo, sem perder de vista o fato de que a sua

implementação não está subordinada à iniciativa do legislador infraconstitucional83.

O mínimo existencial está contido na ideia de liberdade, igualdade, do devido

processo legal, da livre iniciativa, entre outros princípios constitucionais, além

daqueles previstos na Declaração dos Direitos humanos, por isso sua expressão

dispensa um conteúdo específico e abrange qualquer direito na sua dimensão

essencial, além de deter um conceito imensurável, por possuir aspectos de

qualidade, ao invés de quantidade, tratando-se de um instituto sem um conteúdo

preciso, mas com condição mínima de vida, sem a qual inexiste a possibilidade de

sobrevivência84.

Foi na Alemanha que as condições materiais necessárias à garantia de uma

vida com o mínimo de dignidade teve a primeira elaboração dogmática. O Tribunal

Federal Administrativo Alemão reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente

a um auxílio material a ser prestado por parte do Estado, tendo sido utilizado como

argumento a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à vida, ou seja, ao

cidadão foi reconhecido o direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos

para a existência digna85. Além disso, o Tribunal Constitucional Federal Alemão, por

meio da decisão BVerfGE 78, 104, também reconheceu a natureza de direito

fundamental à garantia das condições mínimas, de modo que, aos necessitados

deve ser prestada a assistência em virtude das precárias condições físicas e

mentais a que se encontram, por não possuírem condições de prover sua própria

subsistência, representando uma obrigação essencial de um Estado Social.86

A doutrina alemã entende que a garantia do mínimo existencial integra a

essência do princípio do Estado Social de Direito e por isso abrange mais do que a

garantia da mera sobrevivência física, situando-se para além do limite da pobreza

83

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 104. 84

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 29 e 30. 85

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 86

SCHWABE, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Organização e introdução: Leonardo Martins. Tradução: Beatriz Hennig; Leonardo Martins; Mariana Bigelli de Carvalho; Tereza Maria de Castro; Vivianne Geraldes Ferreira. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 827 – 829.

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32

absoluta, uma vez que lá esse direito tem seu conteúdo fundado no princípio do

Estado Social e no princípio da igualdade, de modo a representar um mínimo

existencial sociocultural, ao mesmo tempo em que também protege o direito à vida e

a dignidade da pessoa humana, compreendido como mínimo existencial fisiológico87.

Isso quer dizer que o mínimo existencial é uma exigência da democracia, quando a

questão representa a busca pela realização da justiça social, uma vez que a

democracia é um regime que assegura a igualdade e liberdade de todos os cidadãos

em respeito à dignidade de cada um, ao mesmo tempo em que representa uma

garantia dos direitos básicos de toda pessoa, garante condições mínimas de vida

para o necessitado e visa a limitação do arbítrio do Estado, como instrumento de

efetivação das liberdades88.

No Brasil tem prevalecido o entendimento de que o direito às condições

mínimas de existência humana digna tem como fundamento o respeito às condições

para o exercício da liberdade, como medida necessária à luta contra a miséria e à

pobreza absoluta, em respeito à garantia de condições materiais de existência,

envolvendo o problema da felicidade, já que ela representa a garantia de uma boa

qualidade de vida89. Por outro lado, a doutrina e jurisprudência alemã afirmam que o

conceito do mínimo existencial não pode ser confundido pura e simplesmente com o

mínimo de sobrevivência, ou seja, não se restringe às condições para uma

sobrevivência física apenas, tendo em seu conceito o significado do mínimo

existencial sociocultural90, conforme já citado acima. Apesar dessa divergência de

posicionamentos, é incontroverso o entendimento de que o objeto e conteúdo do

mínimo existencial devem ser compreendidos como direito fundamental, devendo

guardar sintonia com o conteúdo do direito à vida e à dignidade da pessoa

humana91.

87

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 88

SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e justiça social. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, n. 12, dez./jan./fev. p. 1-28, 2008, p. 9. 89

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 30 e 31. 90

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 91

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008.

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33

Em razão do seu conteúdo, o mínimo existencial independe de previsão

constitucional expressa, uma vez que está compreendido em diversos princípios

protegidos constitucionalmente, como por exemplo, o principio da igualdade, que

além de assegurar uma proteção contra a pobreza absoluta, informa a liberdade, o

princípio da dignidade da pessoa humana, entre outros ligados aos direitos

fundamentais92, e que são estendidos aos direitos sociais, quando estes adquirem a

qualidade de direito fundamental, por representarem uma parcela mínima sem a

qual o homem não sobrevive, além do que os direitos sociais não retiram do mínimo

existencial a sua condição de direito fundamental autônomo93.

Compreendido a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, o direito

a condições mínimas está entre os direitos humanos ou direitos naturais, possuindo

característica pré-constitucional, por ser inerente à própria existência humana, além

de se tratar de um direito subjetivo público capaz de condicionar a ordem jurídica e

com validade erga omnes94. Além disso, esse direito possui status negativo,

representado uma proteção negativa do cidadão contra a intervenção do Estado e

de terceiros, no mesmo instante em que assegura positivamente prestações

estatais, o qual deve atuar por meio do executivo, legislativo e do judiciário,

representando também um status positivo.

Segundo alguns autores, o direito ao mínimo existencial não se confunde com

os direitos puramente sociais, os quais levam em conta as considerações sobre

justiça, representando prestações estatais entregues para a proteção dos direitos

econômicos e sociais, necessárias ao aperfeiçoamento do Estado Social de Direito,

marcado pelo fornecimento de serviços públicos inessenciais a partir do princípio da

reserva do possível, já que não são obrigatórios95. De outra parte, o conteúdo do

direito ao mínimo existencial não é o mesmo em cada um dos direitos sociais que

adquirem a qualidade de direito fundamental, principalmente porque aquele não

possui um núcleo fechado de posições, o que representa uma necessidade de

92

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 32 93

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 94

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 33. 95

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 40 e 41.

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34

contextualização no caso de proteção positiva ou negativa do direito fundamental

social, a luz das necessidades de cada pessoa e do seu núcleo familiar96.

Assim, não há como resolver o problema da efetividade do direito à moradia

pela lógica do tudo ou nada. Não há como negar que o desenvolvimento social,

econômico e cultural da comunidade jurídica deve ser levado em conta, mas a

ausência de recursos financeiros, compreendida sob a lógica da reserva do possível,

não pode servir de argumento para sustentar a supressão de direitos fundamentais

sociais97, inclusive do direito à moradia, por não estar acordo com a principiologia da

Constituição, conforme já analisado anteriormente, sob pena de esvaziar, por

completo, a efetividade e a fundamentalidade desse direito social.

Feita essas considerações, percebe-se que ao Poder Público é imposta a

tarefa de atuar de forma positiva para a realização do direito à moradia, no intuito de

assegurar a sua efetividade compatível com a dignidade da pessoa humana, por

tratar-se de um direito fundamental. É imprescindível que haja um constante

reconhecimento da efetivação dos direitos fundamentais sociais por parte do Estado,

entre os quais está o direito à moradia, ainda que em um nível mínimo, mesmo em

se tratando de meta indispensável à orem constitucional, como é tido por alguns,

uma vez que eles estão atrelados à existência digna98, o que significa dizer que a

efetividade do direito fundamental social à moradia representa uma permanente

otimização por parte do Poder Público e de toda a sociedade, em concretização do

princípio da dignidade da pessoa humana.

A moradia, reconhecida como um direito subjetivo à prestação, ao mesmo

tempo em que é compreendida sob o mínimo existencial, depende de um processo

democrático para sua realização, sem que se perca de vista o respeito à separação

e interdependência dos poderes99, por isso, exige-se um trabalho a ser desenvolvido

pelo legislativo, pela administração pública e pelo judiciário, por representar um

dever do Estado em agir com o intuito de proteger e de viabilizar a implementação

96

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 97

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 102. 98

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 732. 99

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 42.

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35

dos direitos fundamentais sociais, ainda que eles estejam compreendidos no interior

de uma norma programática, conforme defendem alguns autores, pois, do contrário,

o desvio de qualquer um dos poderes no cumprimento das diretrizes lançadas pelo

comando constitucional implicaria em uma inconstitucionalidade100. Além disso, não

se pode perder de vista que os direitos fundamentais independem de lei ordinária

que o garanta, já que se vinculam à própria organização do Estado, podendo a lei

ordinária explicitar ou aprofundar o discurso sobre os direitos fundamentais, mas não

os criar101, principalmente porque o mínimo existencial não possui um rol fechado de

posições subjetivas negativas e positivas em seu elenco de elementos nucleares,

conforme já citado, estando vedado ao legislador ordinário estabelecer valores fixos

e padronizados para determinadas prestações destinadas à implementação do

mínimo existencial102.

Convém lembrar que, a partir dos anos 1990, a temática das políticas públicas

ganhou espaço no universo jurídico brasileiro, inspirada na realização dos direitos

sociais, a partir da previsão contida na Constituição de 1988, período marcado pela

compreensão de que a democracia política deve ser completada pela democracia

econômica e social103. Apesar de parecer redundante a expressão políticas públicas,

toda política tende a ser pública, pois representa a realização social104, por essa

razão, a efetividade do direito fundamental social à moradia deve se dar, num

primeiro momento, por meio de políticas públicas, cujo significado representa um

programa de ação do governo com o intuito de coordenar os meios à disposição do

Estado, além das atividades privadas, para a realização dos objetivos socialmente

relevantes e politicamente definidos105. A efetividade dos direitos de cunho

prestacional, a partir de uma estruturação, depende da atuação comissiva do

Estado, da indicação de recursos financeiros e da definição de um procedimento,

representando uma vinculação entre proteção e promoção do direito fundamental

100

BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 76. 101

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 44. 102

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 103

BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 25. 104

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 100. 105

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997, p. 91.

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36

social à moradia e políticas públicas, cuja compreensão se dará mais adiante, num

capítulo próprio.

Além da atuação do executivo, por meio de políticas públicas, também são

necessárias medidas legislativas, como por exemplo, a promulgação do Estatuto das

Cidades106, além do reconhecimento por parte do poder judiciário, em observância

ao dever de respeito e aplicação imediata dos direitos fundamentais ao caso

concreto, considerando que é dever do judiciário zelar pela efetividade dos direitos

fundamentais107.

Por último, há que se destacar que a moradia não se confunde com o direito

de propriedade, pois, apesar do fato de que esta pode servir como instrumento de

efetividade daquele direito, a moradia é um direito fundamental social autônomo,

com proteção e objeto próprio, revestido da mesma complexidade atrelada aos

direitos fundamentais na sua dimensão negativa e positiva108. Diante deste

argumento, partir-se-á, no próximo capítulo, para uma análise sobre o instituto da

propriedade e da sua relação com a idéia de acesso, com vista à efetividade do

acesso à moradia.

106

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 724. 107

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 107. 108

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 344.

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37

2. A PROPRIEDADE: DO PERÍODO MEDIEVAL AO ACESSO NO

ESTADO CONTEMPORÂNEO

A propriedade é um bem que sempre existiu, cujo tratamento se deu de

acordo com as circunstâncias sócio-econômicas de cada momento histórico, mas, a

partir da conveniência social vigente, sempre evidenciou um poder do homem sobre

as coisas109. Seu conceito reflete a imagem de uma sociedade, como consequência

de certos valores historicamente consolidados e autonomamente interpretados, sem

deixar de lado que se trata de um instituto com conceitos diferentes, já que, para os

economistas, trata-se de renda da coisa ou riqueza, enquanto que, para os juristas,

é um poder sobre a coisa110.

A história da propriedade e das relações sobre as coisas é marcada por uma

descontinuidade, já que ela é concebida como uma mentalidade, não se resumindo

a uma forma e conceito únicos, tratando-se de um conjunto de convicções que foram

mudando no decorrer da história111. Não há como negar o elemento histórico na

análise jurídica desse instituto, já que se trata de uma circunstância inerente ao

próprio direito, o que permite constatar que as condições econômicas e políticas

serviram como fatores determinantes à origem e ao desenvolvimento da

propriedade, dentro de uma contínua luta de classes112.

A partir da ideia de que a propriedade decorre do natural domínio do homem

sobre os bens, ela significa um poder moral e jurídico e passou a ser utilizada para

transformar a coisa comum em privada, para atender interesses individuais, fruto das

necessidades econômicas113. Ocorre que, mais tarde, inspirada na conveniência e

na circunstância sócio-econômica, a propriedade caminha para a teoria social, que

contribuiu para a denominada função social, que alterou alguns aspectos

relacionados ao uso da propriedade114, conforme se verá logo abaixo.

109

BESSONE, Darcy. A propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 432. 110

GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 25. 111

Ibidem, p. 38. 112

FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 816. 113

Ibidem, p. 819. 114

Ibidem, p. 826.

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38

2.1 A descontinuidade do conceito da propriedade: do período medieval ao Estado

Liberal

O período medieval ficou marcado pelos fortes laços de dependência do

homem comum ao senhor feudal, como forma de organização da sociedade. O

senhor feudal formava sua clientela ao fazer a concessão de terras, para o plantio,

aos seus subalternos, a fim de que estes, conhecidos como vassalos, tirassem dela

o seu sustento, e em contrapartida, estes prestavam serviços, inclusive militares, ao

seu senhor, já que nesse tempo inexistia um poder público forte, garantidor de

segurança e de oportunidades aos seus cidadãos115. A terra, portanto, passa a ser

um elemento real de relação pessoal entre o senhor feudal e seus vassalos, apesar

desse modelo não afastar outras formas jurídicas de propriedade que também

existiram no período medieval, como a propriedade eclesiástica, municipais, entre

outras.

Nesse período, a regulação da propriedade se refere a um estatuto da coisa e

não do sujeito, pois o fundamento desse instituto se dava a partir da compreensão

de que o domínio não recai do sujeito sobre a coisa, mas nasce da coisa, permitindo

explicar a legitimidade de mais de um proprietário sobre a mesma coisa,

considerando que o senhor feudal era o dono das terras e seus vassalos os

legitimados a trabalhar nela, ao contrário do período moderno116. Tudo isso, sem

perder de vista que o período feudal ficou marcado pela ausência de liberdade das

pessoas, principalmente pelo fato de que a produção de riquezas era baseada no

trabalho forçado, conseqüência dessa própria relação de dependência entre o

senhor e o vassalo.

Como um elemento fundamental para a organização da sociedade, a terra

também era essencial à estrutura econômica no período medieval, por se tratar de

um elemento necessário ao cultivo, ainda que restrito à subsistência, fazendo com

que essa compreensão ditasse o regime da propriedade, em que havia um vínculo

jurídico entre os que a possuíam e não cultivavam, e os que trabalhavam nela e não

eram donos, de modo que estas duas posições, a plena propriedade e o direito real

de coisa alheia, permitiram identificar duas classes distintas de proprietários do

115

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 23 a 25. 116

GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 42.

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39

mesmo bem117, ofuscando a linha divisória entre o exercício e a titularidade, já que o

ordenamento oferecia ao sujeito que cultiva a terra, ainda que em nome do seu

senhor, uma investidura de juridicidade118.

Trata-se de um desvio de atenção do ordenamento jurídico, que, a partir da

titularidade, legitima o exercício, sinalizando uma experiência sobre o domínio direto

e o domínio útil, com contornos anti-individualistas, em que é impossível conceber a

propriedade como relação pura, por isso o conceito de propriedade no período

medieval nada tem a compartilhar com a propriedade moderna, conforme se verá

logo abaixo, sendo aquela fracionável, admitindo a legitimidade de mais de um

proprietário sobre a mesma coisa, já que, para aquele período, a titularidade do

domínio dependia da existência do poder sobre a coisa, não importando se pequeno

ou grande, mas autônomo e imediato119.

A partir do século XVI, principalmente na França, começa a surgir a

necessidade de se modificar o sistema, no intuito de incrementar a produção, já que

as relações de troca começaram a se generalizar e a ocupar o centro econômico,

período em que a produção se volta para o mercado, e não mais para o consumo

restrito à subsistência, tornando-se fonte de produção de riquezas, fato que

representou uma necessidade sistemática de apropriação de terras, as quais

deveriam ser utilizadas de forma autônoma, plena e exclusiva, como medida

necessária ao processo de produção, ao mesmo tempo em que se tornou livre a

escolha do trabalho e a circulação de bens120.

A sistematização da produção agrícola, o crescimento das cidades e do

comércio marcaram o período de crescimento político e econômico da burguesia,

tempo em que significou o surgimento de um novo homem. Tratava-se de um

homem que não existia anteriormente, por ser ambicioso e livre do senhor, dando

origem a uma nova ideologia, diferente à da ordem feudal, pois suas relações se

baseavam na compra e venda, e não nas relações de vassalagem, no mesmo

117

GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 118

GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 44. 119

Ibidem, p. 58. 120

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 27.

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40

instante em que a terra, uma importância socioeconômica fundamental, passou a

servir aos plenos poderes do proprietário, agora atribuído a um só indivíduo121.

O período medieval ficou marcado pela ausência de um poder central, já que

as relações eram intituladas por vários núcleos sociais, compostos pelos senhores e

seus vassalos, permitindo um pluralismo jurídico, cujas fontes de direito eram as

mais diversas possíveis, simbolizando uma insegurança jurídica constante, gerando

reflexos de instabilidade, inclusive nas atividades econômicas. Com o

desenvolvimento do comércio, a relação entre poder econômico e poder político

precisaram ser redefinidas, por isso os comerciantes foram os principais

propagadores da pretensão de libertação dos laços com o senhor feudal e da

formação da centralização da ordem jurídica, momento em que a burguesia, que

vivenciava um período de expansão, se aliasse a essa ideia, de formação de um

poder centralizado, única forma encontrada para garantir a paz social,

representando a necessidade de um Estado, que se inaugurou como absolutista,

mas que, mais tarde, foi convertido pela burguesia a seu favor, após a afirmação de

que o povo é titular da soberania e que não há poder político acima dos cidadãos122.

Esse processo culminou em um Estado moderno liberal, momento em que o poder

político passou a ser limitado juridicamente, quando surge uma visão individualista

da sociedade, marcando a construção de um discurso para a propriedade e seu

proprietário123.

O instituto da propriedade moderna fundou-se em dois grandes movimentos,

ou seja, o Renascimento e o Iluminismo, os quais também proporcionaram uma

profunda alteração no plano político, ao permitirem a formação dos Estados,

inicialmente absolutistas e depois liberais, além de contribuírem para o progressivo

desenvolvimento hegemônico da ideologia burguesa, impulsionando a mentalidade

individualista da modernidade, fazendo com que a doutrina utilizasse o fim do

feudalismo e a Revolução Francesa como marcos iniciais da era moderna124.

Na modernidade, o conceito jurídico da propriedade também passou por um

processo de renovação, que ocorreu entre o século XIV e XIX, cujo tempo não

abalou o seu conteúdo, ainda que mínimo, fundado no absolutismo e na

121

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 29 a 32. 122

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 20. 123

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33 124

Ibidem, p. 19 e 20.

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41

exclusividade. O domínio era indiscutível e permitia a compreensão de que o seu

sujeito era o principal personagem, já que nessa época a propriedade significava o

sujeito em ação, como corolário da abstração, da liberdade e da igualdade formais,

uma das características marcantes na proteção jurídica dos institutos na época125.

No período em que o mercado de troca de bens se intensificava, o indivíduo

passa a ser o ponto de partida para a construção política moderna e por isso a

sociedade começa a ser vista com indivíduos isolados, principalmente porque a

orientação econômica impõe a necessidade de membros livres e iguais. O exercício

da troca pressupõe ampla liberdade, ao mesmo tempo em que o indivíduo tem o seu

direito subjetivo à inviolabilidade reconhecido contra terceiros e o próprio Estado,

representando uma limitação do poder estatal, ao mesmo tempo em que todos eram

tidos como iguais, portanto, poderiam ser titulares de direitos126.

A partir da compreensão de que a liberdade é a força que move o indivíduo e

representa um instrumento de luta contra o regime absolutista, cuja compreensão

mais aprofundada não se fará em razão do objeto deste trabalho, o Estado de

Direito Liberal, símbolo do reconhecimento dos direitos do homem, mostra-se como

de direito por fazer do respeito um corpo mínimo de direitos e garantias

individuais127, remete aos princípios da divisão de poderes, do primado da lei, do

caráter abstrato e geral da lei, da divisão entre esfera pública e privada,

considerando que, neste período, o direito se volta ao reconhecimento e à garantia

dos interesses econômicos e morais do indivíduo, momento em que os homens são

descobertos como indivíduos livres e iguais128. O cidadão não depende mais de uma

ligação orgânica, mas de si mesmo, o que representa uma valorização da autonomia

da vontade, quando o contrato e o patrimônio se tornaram atributos do sujeito,

dando origem à proteção do direito subjetivo129.

Num ambiente favorável ao mercado, em que o ideal do individuo competitivo

e empreendedor passa pela ideia de acesso aos bens, sua manutenção e

possibilidade de troca, a titularidade começa a ser regulamentada pelo direito,

125

GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 82 e 83. 126

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 49 e 53. 127

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 26. 128

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 43. 129

LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 540.

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42

quando ele reconhece ao sujeito a possibilidade de ser proprietário. No Estado

Liberal, a propriedade passa a ser um fator de realização humana, já que, por meio

da troca de bens, o cidadão pode alcançar sua autonomia e sobrevivência,

tornando-se ela uma força motriz para o exercício da liberdade130.

Com o fim do feudalismo, surge um novo modelo de propriedade, de feição

liberal e individualista, ao mesmo tempo em que houve a construção de um sentido

de livre acesso e circulação. Por isso, a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão, de 1789, conceituou a propriedade como um direito inviolável e sagrado,

da qual ninguém pode ser privado, salvo em caso de necessidade pública

comprovada, nos termos da previsão do seu artigo 17131. Defendeu-se a ideia sobre

a construção de um direito de propriedade que garantisse a exclusividade dos

poderes do proprietário, de modo a afastar a interferência de terceiros, cujo conceito

estava em consonância com os interesses da burguesia, representando o fim do

modelo dualista apresentado pelo período medieval132.

Na modernidade, o ser humano é reconhecido como indivíduo que é

proprietário de sua própria pessoa e tem capacidade de agir independentemente dos

outros. A liberdade confunde-se com a propriedade, já que ser proprietário é exercer

a liberdade, por isso, identifica-se a intima relação entre autonomia privada e direito

de propriedade, já que ambas são expressões da liberdade133, pretendendo-se que

a propriedade seja compreendida como complemento necessário à personalidade e

à liberdade134. Isso quer dizer que a liberdade, igualdade e a titularidade passam a

ser o centro da ordem jurídica, instituída frente às necessidades de certeza, quando

foi utilizado o modelo da técnica romana, diante da aceitação de sua razoabilidade e

da submissão política, representando o fenômeno da codificação, cujos textos são

dotados de autoridade. Criou-se um direito neutro e universal, quando previu, no

âmbito civil, uma regulamentação do exercício das liberdades individuais e da ordem

130

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 56. 131

“Artigo 17 Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.” 132

BESSONE, Darcy. A propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 430. 133

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 91. 134

BESSONE, Darcy. A propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 432.

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43

econômica e social, deixando para as Constituições o exercício da liberdade no

âmbito político e a regulação da ordem estatal135.

A regulamentação jurídica acompanhou a evolução econômica136, por isso,

em 1804, o Código Civil de Napoleão foi a primeira codificação de índole

individualista e liberal que reconheceu a autonomia da vontade individual e alterou o

regime jurídico da propriedade, conhecida como propriedade moderna, cujas regras

valorizaram a esfera patrimonial dos sujeitos137, por descrever os poderes do

proprietário e os enquadrar como direito subjetivo, separando-o do direito público,

nos termos da previsão do seu artigo 544138, fortemente influenciado pelo direito

romano139. Os romanos possuíam um ordenamento jurídico único e consolidado,

período em que já qualificavam a propriedade individualista, apesar desse conceito

não ser idêntico àquele adotado na modernidade, já que naquela época ele exigia a

qualidade de cidadão romano como pressuposto para o seu exercício, sendo que,

mais tarde, foi estendido ao estrangeiro, apesar de o conceito de propriedade no

direito romano ser unitário, como aquele adotado no período moderno140. Os

romanos foram os criadores do direito de propriedade privada, um vez que, nos

primórdios, ela foi coletiva, transformando-se, paulatinamente, em individual, apesar

desse estudo ainda ser um ponto obscuro na história do direito141.

A partir do Código de Napoleão, a propriedade é compreendida como um

direito absoluto, exclusivo e perpétuo, e seu titular a exercerá da maneira que

melhor lhe convir, podendo, inclusive, torná-la improdutiva, apesar do seu exercício

poder sofrer limitações por parte da lei, sem que isso, no entanto, lhe retire a

135

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 62 e 69. 136

GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 137

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 71. 138

“Artigo 544 A propriedade é o direito de fruir e de dispor dos bens materiais da maneira mais absoluta, contanto que deles não se faça um uso proibido pelas leis e pelos regulamentos.” 139

GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 12. 140

GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 141

FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 816.

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44

essência, pois o proprietário conserva consigo o poder de dar a destinação142, sem

que se perca de vista que se trata de um conceito unitário, ou seja, sobre a mesma

coisa não deve haver mais de um proprietário. A partir dessa concepção clássica da

propriedade, chancelada pelo Código de Napoleão, extrai-se dois aspectos distintos

do conceito de propriedade, ou seja, o jurídico, que regula uma relação externa ao

assegurar o direito exclusivo do proprietário sobre a coisa, e o econômico, que

reconhece a relação interna que existe entre o proprietário e o bem143.

O Brasil também viveu uma passagem do período pré-moderno para o

moderno, cheio de particularidades, principalmente porque naquela época, a partir

de 1.500, o Brasil vivenciava um processo de colonização e de expansão comercial,

em consonância com as mudanças econômicas, culturais e políticas de Portugal, por

isso estava subordinado à legislação daquele país. Após o seu descobrimento,

houve uma aliança entre a burguesia mercantil, a coroa e a nobreza portuguesa,

representando um misto de concepções feudais e mercantis, em que as terras

brasileiras foram doadas pela coroa às pessoas privilegiadas, por meio do sistema

das sesmarias, às quais eram facultadas manter arrendatários e meeiros, cujo foco

principal consistia em assegurar a ocupação do território e produção da cana de

açúcar, período marcado pela mão de obra escrava, sem perder de vista a premissa

jurídica da supremacia proprietária da coroa144.

Com a independência em 1822, o sistema das sesmarias foi revogado e a

propriedade se viu sem um regime jurídico próprio. Nessa mesma época foi

outorgada Constituição Imperial, em 1824, reconhecida como a primeira constituição

do Brasil, cujo artigo 179 previa a garantia da inviolabilidade dos direitos civil e

políticos dos cidadãos brasileiros, tendo como base a liberdade, a segurança e a

propriedade145, e na previsão do inciso XXII do mesmo artigo, a propriedade foi

142

GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 939. 143

FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 820. 144

FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, 2005, p. 106. 145

“Artigo 179 A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.”

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45

eleita uma garantia em toda sua plenitude146, cujo período ficou marcado por um

paradoxo, já que a produção agrícola dependia do trabalho escravo, representando

uma herança do sistema feudal147, até 1850, quando a Inglaterra proibiu o tráfico de

escravos nos mares atlânticos.

Em 1850 foi promulgada a Lei 601, conhecida como Lei de Terras, que

inaugurou um regime jurídico da propriedade, ao indicar a compra e venda como o

único modo de aquisição das terras devolutas, acabando com a aquisição por meio

da posse148 e sujeitando o infrator dessa norma a penalidades severas149, além de

estabelecer ao governo o dever de extremar o domínio público do particular150, entre

outras previsões. Desse modo, tem-se que a Lei de Terras inaugurou o termo

proprietário, ainda que fosse o particular ou o Estado, e definiu o conceito de

propriedade no seu modo individual, enquanto poder do sujeito sobre o bem,

buscando deixar para trás os traços do antigo regime, em consonância com a ordem

econômica, uma vez que já se reconhecia que o conceito da propriedade deveria

estar vinculado a sua exploração econômica151.

Mais tarde, em 1916, foi promulgado o Código Civil , que adotou o modelo

francês, e que, nos termos do artigo 524152, centrou-se no individualismo e no

aspecto patrimonial do ser humano153, em que não se defini a propriedade, mas se

estipulam os poderes do proprietário. Desse modo, numa ordem jurídica

individualista, formalmente livre e igualitária, a propriedade privada passou a ocupar

146

“XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.” 147

FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, 2005, p. 107. 148

“Artigo 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.” 149

“Artigo 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da satisfação do damno causado. Esta pena, porém, não terá logar nos actos possessorios entre heréos confinantes.” 150

“Artigo 10. O Governo proverá o modo pratico de extremar o dominio publico do particular, segundo as regras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução ás autoridades que julgar mais convenientes, ou a commissarios especiaes, os quaes procederão administrativamente, fazendo decidir por arbitros as questões e duvidas de facto, e dando de suas proprias decisões recurso para o Presidente da Provincia, do qual o haverá tambem para o Governo.” 151

FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, p. 97-112, 2005, p.110. 152

“Art. 524 A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.” 153

TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 2.

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46

o centro da ordem social, ao mesmo tempo em que a ordem social passou a girar

em torno da propriedade privada.

Em razão do reconhecimento do caráter privado do processo de produção e

de consumo, a propriedade recebe um novo tratamento jurídico e se transforma em

um princípio norteador de toda a organização social da modernidade, quando ela

representa uma relação jurídica e uma situação subjetiva, no mesmo instante em

que simboliza um instrumento garantidor da organização e do funcionamento de

todo o sistema154. A propriedade representou um poder atribuído ao titular, como

afirmação da subjetividade, excluindo a participação de qualquer um, ao mesmo

tempo em que o exercício desse poder estava sujeito aos limites e obrigações

impostos pela lei, os quais integravam esse direito155, sem que isso, no entanto,

desnature os poderes do proprietário e o reconhecimento de que a propriedade era

um bem absoluto, estando a relação entre o proprietário e o bem apropriado

protegido contra toda e qualquer interferência, num período em que a sua

concepção individualista correspondia à estrutura econômica do capitalismo156.

O conceito da propriedade tem em seu núcleo o reconhecimento de que se

trata de um direito abstrato do proprietário, cujo modelo se manteve forte na ordem

jurídica moderna157, em decorrência do primado do Estado Liberal de Direito,

período em que a lei era abstrata e geral. Naquela época a sociedade era informada

pelo domínio econômico e o indivíduo era tido como força motriz da vida em

sociedade, devendo ser um sujeito livre, cuja garantia é a proibição de interferências

alheias, e isso só era possível por intermédio da propriedade, do contrato e da

responsabilidade civil, institutos fundamentais do direito privado, tidos como básicos

para a afirmação da subjetividade, sob pena de inexistir a garantia da liberdade. É

nesse contexto que a abstração ganha o seu papel, pois ela permite que o sujeito

possa exercitar e efetivar os poderes que lhes são atribuídos pelo direito, já que na

ordem jurídica liberal tudo é neutro158. Portanto, o sujeito de direito é aquele que é

154

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 85. 155

PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 224. 156

GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 157

GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 73. 158

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 112.

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proprietário, homem livre e igual, e como a lei não se refere ao homem concreto,

mas abstrato, significa que todos os homens são reconhecidos como sujeitos de

direito, representando uma eficácia geral e uniforme da lei, diferente da ordem

estabelecida pelo sistema feudal, sem perder de vista que no período moderno a

sociedade se estruturou em torno do mercado, que impôs uma necessária

independência do indivíduo em garantia da autonomia econômica, cujas bases estão

fundadas na circulação de riquezas, tornando-se imprescindível o reconhecimento

da propriedade privada.

No entanto, diante da excessiva abstração do modelo apresentado durante a

modernidade, o homem se insurge de forma concreta, reivindicando suas

necessidades efetivas, em razão da realidade social, o que irá influenciar o

tratamento jurídico dado à propriedade privada, dando início à principiologia da

função social e da dignidade da pessoa humana, conforme se verá no próximo item.

2.2 A mudança do papel da propriedade e a eficácia dos direitos fundamentais

sociais

Manifestar a liberdade é, ao mesmo tempo, expressar a personalidade, o que

justifica a conclusão de que o conteúdo do conceito de propriedade nasce junto com

a noção moderna de liberdade, uma vez que o ter passa a ser fundamento da

subjetividade, e por isso tem capacidade de definir o ser, ainda que o exercício do

domínio se dê no campo abstrato159. Durante o Estado Liberal o conceito de

propriedade se liga à abstração do sujeito de direito, e, consequentemente, na

abstração do exercício dos poderes do proprietário.

O período liberal é marcado pelo recuo do Estado, então tido como mero

garantidor da segurança política, social e jurídica das relações de troca,

naturalmente regidas pelo direito privado, e do desenvolvimento da economia

capitalista, dando azo a um cenário marcado por acumulo de capital, controle

monopolístico do mercado e dificuldade de acesso às riquezas, já que o indivíduo

não sofria limites nas relações jurídicas patrimoniais160 e os direitos fundamentais

159

FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, 2005, p. 102. 160

TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 32.

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48

visavam proteger o indivíduo contra a ingerência do Poder Público na esfera

pessoal161.

Ocorre que esta concepção garantiu um déficit no plano econômico e social,

que implicou, mais tarde, numa ruptura ao seu próprio modelo, quando houve um

reconhecimento de que a propriedade deve ser exercida funcionalmente em razão

dos interesses da coletividade, no mesmo instante em que a igualdade formal passa

a proporcionar a desigualdade material162.

Desde então o Estado começa a atuar no processo econômico e na

estruturação da sociedade, quando a esfera econômica passou a ser moldada em

função das exigências sociais, em consequência das pressões exercidas pela

sociedade sobre o Estado, cujos primeiros sinais apareceram no ambiente jurídico a

partir das Constituições do México, de 1917, e de Weimar, de 1919.

Nesse novo período o legislador passou a intervir nas relações privadas,

limitando a autonomia da vontade dos sujeitos de direitos e visando a proteção dos

interesses coletivos, impulsionando a Constituição para o centro do Direito Privado,

haja vista o reconhecimento de sua força normativa, em especial, de seus princípios,

garantindo o reconhecimento da unidade de todo o ordenamento163, ao mesmo

tempo em que passou a assegurar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações

entre particulares.

Esse fenômeno ficou conhecido pela doutrina como repersonalização, ou

despatrimonialização do direito privado, e implicou em um grande impacto,

especialmente no Direito Civil, cujo conjunto de normas regulamenta as relações

privadas, dando azo a noção de um direito civil constitucional. Desde então, o

Código Civil não mais se encontra no vértice das relações jurídicas, cujo lugar foi

ocupado pela Constituição, que passou a irradiar seus princípios fundamentais sobre

toda a ordem jurídica, garantindo a unidade de todo o ordenamento164.

161

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Org.) Direitos humanos: teoria geral dos direitos humanos (coleção doutrinas essenciais). Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 394. 162

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 137. 163

SARMENTO, Daniel. A normatividade da Constituição e a constitucionalização do Direito Privado. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, vol. 6, n° 23, ano 2003, p. 272. 164

TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 1-7.

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49

Aplicar a Constituição diretamente nas relações jurídicas significa reconhecer

que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas deixa de ter

um efeito vertical, ou seja, do Estado para o cidadão, para ter um efeito horizontal,

em que a norma constitucional passa a ter eficácia direta, inclusive nas relações

privadas. Neste sentido, a normativa constitucional deve ser considerada como regra

hermenêutica, de comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações

entre situações subjetivas, em atendimento aos novos valores165.

No Brasil, foi a paritr de 1988 que a Constituição passou a ser tida como centro

do sistema jurídico166, reconhecida como símbolo da horizontalização dos direitos

fundamentais, momento em que passou a prevalecer a supremacia da Constituição

e a valorização da força normativa dos princípios e dos valores que lhes são

subjacentes167. A força normativa da Constituição irradia suas disposições por todo o

sistema jurídico, independentemente da área do direito, em consonância com a

compreensao de que o direito é uno, regulando relações entre particulares ou entre

estes e o poder público. Assim, se o ordenamento jurídico é único, a solução das

controvérsias deve se dar à luz do ordenamento como um todo, a partir de seus

princípios fundamentais, então tidos como base168.

Em seu texto, mais especificamente no Título II, a Constituição Federal elenca

os direitos e garantias fundamentais, imediatamente após ter enunciado os

princípios e objetivos fundamentais da República Brasileira, entre os quais está

previsto o princípio da dignidade da pessoa humana, tido como principal direito

fundamental constitucionalmente garantido, estando no ápice do ordenamento169, ao

lado da cidania, o que representa um encontro entre o princípio do Estado

Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, sendo estes elementos básicos

para a realização da democracia170.

165

PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 12. 166

BARROSO, Luís Roberto. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da supremacia do interesse público. In. SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. 2ª Tiragem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. XI do prefácio. 167

SARLET, Ingo Wolfgang. Neoconstitucionalismo e influência dos direitos fundamentais no direito privado: algumas notas sobre a evolução brasileira. Disponível em <http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Sarlet-civilistica.com-a.-1.n.1.2012.pdf>. Acesso em: 02/03/2016. 168

PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 5. 169

TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tombo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 48. 170

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição Brasileira de 1988. In PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Org.) Direitos humanos: teoria

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50

Reconhecido como fundamento da República, conforme consta no artigo 1º

da Constituição, e como núcleo básico e informador de todo o ordenamento segundo

a melhor doutrina, a dignidade da pessoa humana norteia o aplicador do direito, pois

ela representa uma conquista da razão ético-jurídica em reação à história formada

pelo racismo, discriminação, escravidão, entre outras atrocidades que marcaram a

experiência humana. A sua definição implica na compreensão de todas as violações

que foram praticadas contra o ser humano, para que se possa, contra elas, lutar171.

A dignidade surge com o indivíduo, por isso o ser humano é digno porque é.

Mas não é só. Ele também vive em sociedade, o que implica num acréscimo de

dignidade, quando seus pensamentos e comportamentos merecem o respeito dos

outros. Mas tal fato dá origem a novos problemas, ou seja, o exercício da dignidade

pode implicar na violação da dignidade de outrem, por isso o conceito de dignidade

compreende uma qualidade social como limite à possibilidade de garantia, em que a

dignidade só é garantia ilimitada quando não ferir a dignidade de outrem172.

A eficácia imediata das normas constitucionais nas relações individuais

permite aferir a constitucionalidade da norma infraconstitucional, segundo essa nova

perspectiva, quando dignidade da pessoa humana é imposta, inclusive nas relações

jurídicas patrimoniais, o que quer dizer que será inconstitucional um diploma legal

que privilegie uma visão patrimonialista em detrimento do ser humano173. Não há

como negar que as relações entre particulares são marcadas pelo exercício do

poder econômico e social, capaz de implicar numa situação de desequilíbrio de

poder, por isso, é necessário reconhecer a efetividade e aplicação imediata dos

direitos fundamentais, implementada por meio da atuação do Poder Judiciário, se

necessário for, de modo a solucionar controvérsias174.

Seguindo esse raciocínio, a pretensão dos códigos individualistas em unificar

o direito de propriedade, em consonância com a concepção de que a propriedade

deveria ser um direito unitário, começou a ser negada, como consequência das

geral dos direitos humanos (coleção doutrinas essenciais). Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p 316. 171

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 48. 172

Ibidem, p. 50. 173

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2. ed., 2003, p. 370. 174

PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 14.

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51

ocorrências na ordem econômica e social175. O direito se volta para o resgate dos

excluídos e essa marca incide no instituto da propriedade, que passa a ter uma

relevante função no mundo jurídico e econômico, pois, se antes ela representava a

medida da autonomia da vontade e o exercício da liberdade, por assegurar ao

proprietário o exercício de seus poderes da forma que lhe convier, agora ela passa a

ser compreendida em favor dos desprivilegiados e dos não proprietários, que

também merecem o seu reconhecimento, ganhando um novo significado a partir da

função social176.

A função social, ao ingressar no direito privado, representou um

redimensionamento do direito de propriedade, não se tratando de mero limite aos

poderes do proprietário177, ou ao exercício desse direito, de não exercer em prejuízo

de outrem, mas representa uma alteração na própria substância do direito de

propriedade, quando impôs ao proprietário o dever de exercê-la em benefício de

outrem. Ela representa uma fonte de imposição de comportamentos positivos, com

reflexos em vários institutos, como na propriedade, que deve ser exercida de modo a

realizar o interesse social, em oposição individualismo jurídico178. Apesar de ser um

dos temas mais complexos179, havendo várias discussões sobre sua performance, o

que importa para este trabalho é destacar a idéia de que a funcionalização do direito

de propriedade representou a ruptura do discurso da propriedade moderna.

A função social remete a uma análise concreta em que se insere cada

situação proprietária, na medida em que enfrenta a abstração do conceito deste

instituto, já que seu objetivo é garantir a melhor utilização social da propriedade,

revelando o marco que representa a ruptura do conceito de propriedade entre o

período liberal e o social, quando o instituto é readaptado às novas exigências

sociais180. O termo função se refere à maneira concreta de um instituto operar, e no

caso de ser social, o exercício dos poderes da propriedade não é protegido pura e

175

GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 940. 176

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.141. 177

PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 226. 178

GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 385. 179

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 145. 180

FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 828.

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52

simplesmente para a satisfação dos interesses do particular, mas de toda a

comunidade e para certo fim, em abandono à concepção romana181.

A função social possui um conteúdo vago, representando um principio

geral182, que somado à compreensão de que o direito de propriedade não é mais

individualístico ou autorreferente, serve de inspiração à atividade do executivo, do

legislador e do juiz, tendo como medida e orientação os valores eleitos por uma

comunidade, permitindo, inclusive, a oportuna adequação do seu conceito às

modificações sociais183, uma vez que só o proprietário pode executar uma certa

tarefa social, sem se perder de vista que no Brasil essa definição deve se dar a partir

de parâmetros constitucionais, nos termos das previsões dos artigos 1° e 5° da

Constituição Federal, em proteção às situações existenciais184.

Dentro desse raciocínio, o sujeito de direito também deixa de ser abstração,

porque é o real portador dos interesses em jogo, por isso, a partir desta concepção,

impõe-se a necessidade em saber a concreta posição do sujeito nas relações, de

modo a permitir a verificação da função social da propriedade. No caso da

propriedade funcionalizada, a satisfação dos interesses de toda a comunidade

impõe a percepção de que o direito do outro também está presente, por isso, a

figura do proprietário é importante, mas não menos importante também é o não-

proprietário, o que representa uma garantia a todos de acesso aos bens185, já que a

dignidade da pessoa humana e a pretensão em reduzir as desigualdades sociais

exigem a proteção dos excluídos, considerando que a propriedade, entendida de

forma isolada, transforma o seu senhor em soberano186. Por isso, o não-proprietário

passa a ser não apenas um sujeito passivo universal, titular de um dever de

abstenção, mas também um sujeito de direito, pronto para exigir do proprietário o

cumprimento da função social da propriedade e com acesso aos bens.

Cumpre lembrar que o acesso aos bens enfrenta resistência, em

conseqüência do problema da distribuição, porque uma grande parte da população

181

GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 96 – 100. 182

PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 228. 183

GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 97. 184

TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 322 e 325. 185

FACHIN, Luiz Edson. Estatuto do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 56. 186

LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./ mar. 1999, p. 106.

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53

não pode usufruir riquezas e bens produzidos187, além do fato de que o acesso à

propriedade depende do mecanismo do mercado, que é regido pela lei da oferta e

da procura. Por isso, quem não tem o que ofertar, não tem acesso, ou melhor, o

indivíduo tem acesso à propriedade desde que pague o preço proposto, tornando

claro que concepção tradicional ainda tem prevalecido nas relações jurídicas, em

que a propriedade tem a função primordial de excluir os demais do uso e gozo de

uma coisa188. Desse modo, incumbe ao legislador possibilitar o exercício do acesso

aos bens189, cuja técnica é reconstruir o direito civil, inaugurando instrumentos

jurídicos aptos a dar conta dessa função social promovente190.

Para que haja a funcionalização da propriedade é importante que se leve em

conta a qualidade, quantidade e destinação dos bens, cuja análise deve ser feita de

acordo a sua situação e função, o que quer dizer que o exercício dos poderes do

proprietário passa a ser variável, não prevalecendo a utilização do modelo abstrato

de usar, fruir e gozar, conforme definição tradicional do direito de propriedade191,

envolvendo uma análise circunstancial e concreta para a realização da função

social. A função social leva em conta a relação que existe entre os poderes de

destinação do proprietário, a conformação do bem e o plano de utilização da

propriedade, além do que a atual concepção de propriedade é mais ampla do que o

tradicional domínio sobre as coisas corpóreas contidas no Código Civil, a qual foi

chancelada pela ordem constitucional atual192. Isso quer dizer que para cada bem há

um regime particular, permitindo reconhecer que não há que se falar mais em

propriedade, mas em propriedades, simbolizando uma crise da noção unitária de

propriedade, em consequência da concretude buscada na operacionalização da

função social da propriedade, abandona-se a ideia de que a propriedade é uma

relação imediata do proprietário com o bem, decorrente do liberalismo do sujeito, de

modo que o Estado passa a ser reconhecido como um distribuidor de riquezas193.

187

LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 86. 188

Ibidem, p. 99. 189

Ibidem, p. 100-101. 190

Ibidem, p. 116. 191

GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 96. 192

LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./ mar. 1999, p. 107. 193

TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 322 e 323.

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54

Entre crise e ruptura ao direito de propriedade, a Constituição Federal trata a

propriedade em consonância com a função social, tornando lícito o interesse

individual, desde que realizado o interesse social194. A partir da Constituição de

1946, mais precisamente em seu artigo 147195, houve a primeira preocupação196 em

condicionar o uso da propriedade ao bem estar social, a par da garantia do direito de

propriedade197. Foi no bojo da Constituição de 1964 que a Lei 4.504/64 foi editada,

conhecida como Estatuto da Terra, tido como instrumento jurídico apto a garantir a

reforma agrária no Brasil, cuja operacionalização foi obstacularizada por fatores

externos. Já a Constituição de 1967, além do reconhecimento do direito de

propriedade, como já vinha ocorrendo nas constituições anteriores, a justiça social

também passou a ser uma garantia constitucional, com base no princípio da função

social da propriedade198, fato que se repetiu na Emenda Constitucional de 1969199.

Mas foi na Constituição de 1988 que a propriedade e a função social da

propriedade receberam um reconhecimento ainda maior, conforme consta nos

incisos XXII200 e XXIII201 do artigo 5°, além da previsão do artigo 170202, em que a

propriedade privada e a função social da propriedade foram elevadas a princípios da

ordem econômica. Não bastante isso, a Constituição também trata, de forma

separada, a função social da propriedade urbana, a partir do artigo 182203, e da rural,

194

LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./ mar. 1999, p.106. 195

“Artigo 147 O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.” 196

TEPEDINO, Gustavo. SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, n. 6, p. 101-119, jun. 2005, p. 102-103. 197

“Artigo 141 ...§ 16 É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interêsse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, com a exceção prevista no § 1º do art. 147. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.” 198

“Artigo 157 A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: ..... III - função social da propriedade;” 199

“Artigo 160 A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: .... III - função social da propriedade;” 200

“XXII - a propriedade atenderá a sua função social;” 201

“XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;” 202

“Artigo 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:... II - propriedade privada; III - função social da propriedade;” 203

“Artigo 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. ... § 2º A propriedade urbana

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conforme o artigo 186204, além de prever a desapropriação do imóvel rural que não

esteja cumprindo sua função social, nos termos da previsão do artigo 184205.

Além dos artigos que prevêem expressamente a função social, existem

aqueles que, a partir da proteção à pessoa humana, evidenciam o intuito de

ressaltar o uso solidário da propriedade, cujo conteúdo promove a alteração do

conceito tradicional da propriedade, nos termos da previsão do artigo 1°, em que os

valores existenciais da pessoa humana são privilegiados. Some-se a essa previsão

aquela constante no artigo 3º, que estabelece os objetivos fundamentais da

República; nos artigos 5º, 6º e 7°, que prevêem os direitos fundamentais e sociais;

no artigo 170, que estabelece uma ordem econômica fundada na valorização do

trabalho humano e na livre iniciativa, visando a garantia da existência digna, nos

termos da justiça social; e no artigo 193, que impõe uma ordem social baseada no

trabalho, cujo objetivo é o bem-estar e a justiça social.

A função social é um elemento que compõe a definição do direito de

propriedade, não se tratando, pura e simplesmente, de uma técnica jurídica limitativa

do exercício dos poderes do proprietário, por isso, afirma-se que não há propriedade

sem função social206. Trata-se de um modelo aberto e plural, cuja compreensão

deve ocorrer a partir da dignidade da pessoa humana e da igualdade com terceiros

não proprietários, em consonância com a repersonalização do direito civil,

considerando que a Constituição define apenas uma moldura, com um conteúdo

mínimo207. Desse modo, o proprietário que não faz cumprir a função social não

merece a tutela atribuída ao proprietário que atente esse interesse.

2.3 A propriedade na era do acesso

cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” 204

“Artigo 186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” 205

“Artigo 184 Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.” 206

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 184. 207

TEPEDINO, Gustavo. SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, n. 6, p. 101-119, jun. 2005, p. 103.

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O papel da propriedade sofreu mutações durante a existência humana, as

quais trouxeram grandes implicações para toda a sociedade, conforme estudado no

item anterior. O desenvolvimento da visão iluminista no século XVIII inspirou a

transição do regime da propriedade privada da Idade Média para a Idade Moderna, a

partir de quando passou a existir uma diferenciação na concepção entre os

interesses dos indivíduos e da coletividade humana, ao mesmo tempo em que

houve o desenvolvimento do mercado capitalista208.

Assentada como princípio organizador da sociedade, o exercício da

propriedade privada era a prova da existência e da realização humana durante a

Idade Moderna, tornando-se um sinal visível do triunfo pessoal de cada homem no

mundo, em consonância com as ideias desenvolvidas por John Locke, filósofo

político iluminista do século XVII, cuja teoria se encaixava perfeitamente à economia

de mercado no final da Idade Média209. A propriedade privada se tornou um

instrumento garantidor da felicidade humana, porém o seu exercício implicou numa

total exclusão do direito de qualquer outro indivíduo, quando se consolidou um

conceito do que era “meu e seu”210. A título de exemplo, cite-se o automóvel. No

período em que a propriedade está em ascensão, ele representa a prova do sucesso

pessoal, ao permitir o ingresso do indivíduo no mundo adulto, além de ser uma

declaração de que alguém existe e que deve ser levado a sério, tornando-se uma

extensão do seu proprietário e como gostaria que os outros o percebessem.

A personalidade do indivíduo está sempre presente no objeto possuído, por

isso a propriedade se torna a extensão da personalidade, significando mais do que

uma forma de satisfazer as necessidades, por representar uma extensão da

liberdade pessoal, uma espécie de autonomia pessoal211, considerando que os

filósofos iluministas e juristas do século XVIII e XIX diziam que a liberdade era

definida em termos negativos, como um direito de excluir os outros212. Na Idade

Moderna, a economia capitalista, fundada na ideia de troca de bens no mercado,

208

RIFKIN, Jeremy. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 118. 209

Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 78. 210

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 66. 211

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 106. 212

Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 130.

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ganhou força, no mesmo instante em que propriedade e mercado passaram a ter

uma íntima relação, já que propriedade significava o direito exclusivo de possuir,

usar e dispor no mercado. Consequentemente, se a propriedade é extensão da

personalidade, o capitalismo leva cada aspecto da vida humana para a área

econômica, devendo ser negociado como bem213. Enquanto isso, ao Estado cabia

apenas a função primária de proteger o exercício dos direitos de propriedade privada

de seus cidadãos, de modo a permitir o livre acúmulo de bens e o comércio214.

Com o passar dos anos, o termo mercado passou a significar um processo

abstrato de vender coisas, cujo processo vem se intensificando de forma fervorosa e

gradativa, fazendo com que o mundo ficasse atento ao processo de vender e

comprar no mercado, cujos efeitos atingiram todo o mundo, não sendo possível

imaginar outra maneira de estruturar os negócios humanos215. Mais tarde, ocorreu o

desenvolvimento do capitalismo industrial e os bens, antes fabricados em casa e

comercializados em pequenos mercados, mediante trocas, passaram a ser

produzidos em fábricas de forma gradual e em uma escala cada vez maior. Para que

isso ocorresse, foi necessário que pessoas, que trabalhavam nas fábricas, usassem

seus salários para comparar os itens fabricados, momento em que suas casas foram

transformadas, de um local de produção para um local de consumo, cujo incentivo,

fundado nas forças econômicas, era a máxima de que propriedade determinava o

status do cidadão, impulsionando toda sociedade para um mar de propriedade

privada, ao mesmo tempo em que a preocupação, cada vez maior, era saber como

produzir com maior rapidez.

Durante a modernidade, que perdurou aproximadamente entre o século XVIII

até o final da Segunda Guerra Mundial, a propriedade privada foi a base para a

estrutura das relações humanas e para a ascensão do racionalismo, do positivismo

científico, do materialismo, da ideologia e do progresso, no mesmo instante em que

a ordem social era impulsionada pelo o desenvolvimento capitalista.

O mercado definia as relações humanas, no entanto, as bases da vida

moderna começaram a se desintegrar, porque os trabalhadores chegaram à

conclusão de que não estavam exercendo os ganhos materiais prometidos pelos

213

RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 14. 214

Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 119. 215

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 3.

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pensadores iluministas, dando azo ao surgimento de ideias do Estado do bem estar

social. Desse modo, com o intuito de conciliar a classe burguesa, a classe

trabalhadora e os pobres, a propriedade privada deveria ser redistribuída na forma

de benefícios sociais do governo216, momento em que se inaugurou um Estado

Social, conforme já estudo anteriormente. Na Europa, a concepção social passou a

ser repensada após a Segunda Guerra Mundial, fato que implicou em uma releitura

do direito de propriedade, quando as políticas dos governos estimulavam a

preferência por apartamentos ao invés de casas, de locação ao invés de

propriedade, ao mesmo tempo em que as habitações públicas passaram a ser muito

frequentes, já que o intuito era de harmonizar o direito de propriedade com os

direitos humanos217.

Não bastasse isso, as estruturas da base moderna também foram abaladas

pelas relações econômicas vigentes à época, as quais foram responsáveis por

impulsionar o homem a repensar os vínculos e os limites que definiriam as relações

humanas no século XXI, trazendo implicações ao fundamento que deu origem às

relações de propriedade privada. Dentre os fatores que impulsionaram essas

inovações , está o surgimento da nova tecnologia de comunicação global, que impôs

uma reavaliação as questões de espaço e de tempo218, já que o mercado passou a

se abarrotar de bens, em razão da queda na demanda de consumo, pois já não

havia nada mais a comprar219, além da grande velocidade em que as inovações

tecnológicas estavam ocorrendo, somada ao intenso ritmo das atividades

econômicas, implicando, inclusive, no surgiu de um novo tipo de ser humano.

Esses fatores, que impulsionaram as mudanças nas bases modernas,

também contribuíram para o surgimento da nova tecnologia de racionalização do

trabalho, economizadora de mão-de-obra, que, inclusive, provocou uma grande

onda de desemprego, sem perder de vista que a renda do assalariado era pequena,

o que também contribuiu para o enfraquecimento da demanda do consumo e,

portanto, do próprio capitalismo220.

216

RIFKIN, Jeremy. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 133. 217

Ibidem, p. 137. 218

Ibidem, p. 143. 219

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 86. 220

Idem. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. Tradução: Ruth Gabriela Bahr. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 24.

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Com o intuito de manter ativa as atividades econômicas, já no século XX,

também conhecido como período do pós-modernismo, surge a preocupação com

uma técnica suficiente para a captação e manutenção da atenção do consumidor,

como um cliente fiel e a longo prazo.221 O capitalismo passou por um longo processo

de mudança, prestes a superar o capitalismo industrial, abrindo caminho para o

capitalismo cultural, quando o acesso se torna o bem mais relevante que a

propriedade222.

Nessa época surge uma nova matriz de comunicação, energia e transporte,

chamada de Internet das Coisas, a qual é baseada em uma nova infraestrutura

pública, em que conecta tudo e todos numa rede global, movida por um novo

paradigma econômico, diferente daquele que se instalou no período moderno223.

Trata-se de uma arquitetura aberta, distributiva e colaborativa, capaz de gerar uma

economia de escala, com alta eficiência e produtividade, a um custo marginal zero,

possibilitando uma produção e distribuição de bens e serviços, que, ao mesmo

tempo, está gerando uma nova visão da natureza humana.

A era do acesso do novo capitalismo eleva o tempo como elemento mais

importante que o espaço e isso traz grandes implicações aos fundamentos que

compõe o instituto da propriedade. Os mercados passaram a ceder lugar às redes,

consequentemente, a noção de propriedade passa a ser substituída pelo acesso224.

Isso está acontecendo porque empresas e consumidores estão abandonando a vida

econômica moderna, fundada na troca de bens no mercado, fazendo com que a

propriedade, apesar de não desaparecer, deixe de ser trocada, dando lugar ao

acesso, que se consolidará por meio de redes, em que os clientes e servidores, ao

invés dos compradores e vendedores, passem a ser os donos da vez.

Os mercados dão lugar às redes a partir do instante em que ficar à frente da

concorrência significa competir consigo mesmo, gerando a impressão de que o

conceito de propriedade está fora do lugar, pois não convém assumir a propriedade

de uma tecnologia ou de um bem quando ele está desatualizado antes mesmo de

221

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 68. 222

Ibidem, p. 117. 223

RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 84. 224

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 4.

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ser pago225. Sob o fundamento de que a economia de mercado é lenta de mais226,

na economia de rede, o acesso por certo período é uma alternativa mais

interessante do que a compra e a propriedade.

As redes operam com princípios muito diferentes, já que cada indivíduo

renuncia parte de sua autonomia em troca de benefícios, como compartilhamento de

recursos, riscos, entre outros, por isso cada participante depende do outro para sua

expansão, como forma de aperfeiçoar os benefícios, onde vigora a reciprocidade a

confiança, ao invés de tirar vantagens, deixando claro que a vulnerabilidade é uma

característica e não uma fraqueza227. Trata-se de uma característica muito peculiar,

que surgiu para suprir as deficiências do capitalismo tradicional, como o aumento

dos custos, o reduzido ciclo de vida dos produtos, a preferência dos consumidores, a

concorrência e o lucro reduzido, além do fato de que, num regime a base de

mercado, a negociação comercial é um evento antagônico, em que ambas as partes

pretendem ganhar à custa da outra.

A propriedade é uma instituição muito lenta e cara para se amoldar à

velocidade a que a cultura atual é vivenciada. Ela tem suporte na ideia de que

possuir um ativo é valioso, porém a velocidade com que as inovações tecnológicas

vem ocorrendo, somada ao ritmo intenso em que as atividades econômicas tem se

desenvolvido, tornam a propriedade um problema, já que as inovações e as

atualizações contínuas impõe aos produtos um ciclo de vida cada vez mais breve,

fazendo com que tudo se torne imediatamente desatualizado228.

Essa mudança trouxe grandes alterações às concepções de diversos bens

que integram a vida econômica, por isso, nos dias de hoje, as empresas estão, cada

vez mais, se adaptando à transição da propriedade para o acesso, de forma a

contribuir com a eliminação dos bens materiais, como no caso do capital físico, por

exemplo. Trata-se de um bem que antes era tido como um dos elementos mais

importantes de uma vida industrial e que hoje começa a ser reconhecido como um

item marginal, ou seja, como mera despesa necessária operacional, ao invés de um

225

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 18. 226

Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 167. 227

Ibidem, p. 170. 228

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5.

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ativo, já que, ao invés de ser um bem próprio, passa a ser emprestado. Nesta

mesma concepção, as empresas também estão vendendo seus imóveis, reduzindo

seus estoques, alugando equipamento, terceirizando atividades, fazendo com que

quase tudo o que é necessário para suas atividades seja emprestado. Tudo isso

porque o sucesso comercial, na economia do acesso, depende menos de trocas

individuais e mais do estabelecimento de relações comerciais a longo prazo, por

meio de redes.

Na era do acesso é possível perceber que os ativos físicos das empresas

também estão encolhendo. Os escritórios, espaço privados estão cedendo lugar ao

espaço social, onde existem equipes que trabalham juntas, compartilhando

informações, conhecimento e experiências, ao contrário da posse do espaço privado

e da capacidade de excluir os outros, que vigorou na era industrial. Outro exemplo

são os estoques, constituídos por depósitos gigantes para estocar materiais, agora

estão sendo substituídos por simples pedidos, os quais são feitos diretamente para o

fabricante, permitindo a economia na manutenção dos estoques de linhas de

produtos229. A fábrica da Toyota, montadora de carros japonesa, já adotou a

produção sem estoque, também conhecida como produção enxuta, em que os

corredores da fábrica não estão com estoques de várias semanas de produção,

como uma medida necessária para a contensão de custos, permitindo que a

produção ocorra de acordo com o consumo230.

O mesmo está acontecendo com as ferramentas, máquinas, equipamentos e

com a própria fábrica, bens que oferecem a infra-estrutura e a capacidade para a

produção, em que, numa economia de acesso, abandona-se a ideia de que ter

posse e controlar o capital são atitudes essenciais para atender a necessidade do

mercado, já que a propriedade é um peso que afeta a capacidade da empresa de se

mover com agilidade nos negócios. Por isso, o capital físico está sendo acessado e

não possuído, mediante o pagamento de uma mensalidade, por meio de contratos

que estabelecem um vínculo de médio a longo prazo, como leasing, por exemplo, ao

mesmo tempo em que o arrendador é responsável pela instalação, conservação e

229

RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. Tradução: Ruth Gabriela Bahr. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 106. 230

Ibidem, p. 102-103.

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manutenção do bem, ficando as empresas dispensadas de comprar equipamentos

caros e de montar extensas estruturas231.

Está ocorrendo a terceirização da propriedade, praticada pelas empresas que

estão alienando os ativos não relacionados as suas missões centrais, ou seja, estão

substituindo a propriedade interna e as operações pelos acesso aos recursos e

processos necessários, os quais são oferecidos por fornecedores externos,

permitindo que as empresas se concentrem mais no que fazer para ganhar dinheiro,

dando aos outros a oportunidade de exercer funções de suporte, como faz a

empresa Nike, que vende conceitos232. Para garantir a redução dos custos

imobiliários, introduziu-se a ideia do “escritório virtual” e da “hotelaria”, em que os

funcionários são equipados com escritórios móveis, com laptop, telefone celular e

são enviados para casa, sendo que, quando precisão de um escritório para reunião

com os clientes, contatam redes de hotelarias e reservam uma sala233.

O comércio eletrônico, composto por lojas virtuais, que tem pouco ou nenhum

estoque físico, também está ganhando cada vez mais espaço na nova era, ao

mesmo tempo em que vem causando uma ameaça às lojas de varejo. Os imóveis

comerciais, regulados pelo direito de propriedade, que antes foram a peça chave

para um comércio saudável, já que a localização garantia o sucesso comercial,

passaram a ser um obstáculo na busca do lucro.

Na economia de rede, as transações de compra e venda estão dando lugar às

alianças estratégicas, em que há um conjunto de recursos e acordos para a divisão

de ganhos, abrindo o caminho para a criação de grandes redes de fornecedores e

usuários. Para que isso aconteça, um grande número de empresas empresta

gratuitamente seus produtos na esperança de manter um relacionamento de serviço

a longo prazo com seus clientes, como o exemplo do telefone celular, em que o

aparelho é cedido ao consumidor a custos módicos ou zero, em troca de um

contrato, de médio a longo prazo, de prestação de serviço de telefonia e internet,

cujas mensalidades são de responsabilidade do consumidor. O relacionamento entre

o cliente e o fornecedor é contínuo e ininterrupto durante a vigência do contrato, já

que o tempo e a atenção se tornaram a posse mais valiosa, ao contrário da Era

231

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 34. 232

Ibidem, p. 39. 233

RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. Tradução: Ruth Gabriela Bahr. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 163.

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Industrial, cujo propósito era vender bens e prestar serviços gratuitos, como forma

de incentivar a compra. Os consumidores também estão mudando de propriedade

para o acesso, principalmente em se tratando de bens mais caros, como automóveis

e casas. O compartilhamento de veículos é algo que já se popularizou ao redor do

mundo, em que pessoas pagam uma pequena taxa de adesão para ter acesso aos

automóveis quando precisam234.

Muitas pessoas preferem viver em certos locais, devido às conveniências e

aos serviços que são oferecidos, e tudo isso a um custo reduzido, como as moradias

em condomínios, por exemplo, em que a propriedade é eliminada de forma sutil,

quando os residentes têm menos direitos sobre sua própria propriedade, por haver

restrições ao uso, ao tipo de móveis que compõe o lar, aos horários, aos limites de

convidados, em troca de acesso à área de lazer, jogos, segurança, academia de

ginástica, zelador e a uma arquitetura moderna, capaz de oferecer um estilo de vida.

Ou ainda, como as casas de férias, que ao invés de serem compradas, são apenas

acessadas, por meio do contrato de locação de temporada, afinal de contas, quanto

mais posse, mais escravos da própria posse, já que ela traz consigo a noção de

obrigação e compromisso235.

A era do acesso é regida por novos pressupostos de negócio bens diferentes

do mercado tradicional, em que tudo é emprestado e acessado por um período de

tempo, mediante um controle de redes de fornecedores. Isso certamente mudará a

noção de como o poder econômico será exercido nos próximos anos e na forma de

como se governará, uma vez que todo o ordenamento jurídico e político são

estruturados nas relações de propriedade e de mercado. A própria percepção da

natureza humana poderá se fundar em outra visão, já que houve um tempo em que

a propriedade foi a medida do próprio ser, conforme analisado anteriormente.

A ideia de organização estável, em que há uma estrutura fixa com regras

preestabelecidas, começa a se desintegrar numa economia baseada em redes, já

que esta faz uso da revolução digital das comunicações para se conectar ao mundo,

e num comércio eletrônico os empreendimentos precisam ser mais mutáveis. O novo

comércio ocorre no ciberespaço, um ambiente eletrônico infinitamente amplo e

distante do mercado delimitado geograficamente, também conhecido como rede

234

RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 235

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 105.

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eletrônica global, ou simplesmente Internet, em que todos os computadores estão

conectados236. Ao contrário disso, na economia de mercado, cujas operações são

lineares, isoladas e contínuas, vendedores e compradores se unem brevemente

para promover a troca de bens e depois já se separam, enquanto que na economia

do acesso as atividades comerciais permitem uma atividade contínua, cuja medida

valoriza o tempo da produtividade e o custo comercial237.

Essa mudança na estrutura econômica decorre de uma transformação que

está se processando na natureza do sistema capitalista, que, de produção industrial,

passa à produção cultural, onde há um hipercapitalismo que comercializa o acesso a

experiências culturais, como viagens, turismo, parques temáticos, centros de

entretenimento, moda, bem estar, culinária, música, jogos profissionais, filmes,

mundos virtuais, entre outros. A partir do início do século XX, a produção cultural

vem se tornando cada vez mais importante na atividade econômica, em que a

atividade e o bem estar humano é trazida para o ambiente comercial, ao mesmo

tempo em que é garantido o acesso a vários recursos e experiências culturais,

alimentando a existência humana e tornando o homem um ser importante, ao

contrário da produção industrial, cujo cerne da atividade é voltado para a produção

de bens, tornando a propriedade essencial à sobrevivência física e ao sucesso238.

A evolução do capitalismo cultural vem acompanhada por um novo tipo de ser

humano, que está entre os jovens da nova geração, capaz de se adaptar às

mudanças facilmente, integrado a um mundo mais teatral do que ideológico, cujos

olhos estão mais voltadas para o esporte e o lazer do que para o trabalho. Para essa

nova geração, a propriedade é importante, mas estar conectado é ainda mais, já que

é desta maneira que os jovens se veem como agentes autônomos, ao mesmo tempo

em que a liberdade pessoal é exercida por intermédio da garantia de ser incluído em

redes de relações múltiplas e não no exercício da posse e na capacidade de excluir

o outro, também conhecida como a geração “ponto-com”, apesar de não haver um

236

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 14. 237

Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 167. 238

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 7.

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desenvolvimento uniforme entre os jovens, já que ainda há uma grande maioria que

é vítima no mundo da escassez, representando uma defasagem de gerações239.

As profundas mudanças que o sistema capitalista vem passando são

responsáveis por desmantelar as tradições institucionais e reinventar novas formas

institucionais, por meio de redes, em que a propriedade continua a existir, porém

menos sujeita à troca, pois aproveitar o acesso em menos tempo é mais importante

do que comprar e ter a posse a longo prazo240. No capitalismo cultural, reconhecido

como uma nova era do capitalismo, o acesso se torna mais importante que a

propriedade, considerando que esta é importante no mundo em que a vida

econômica se funda no processamento, na manufatura e na distribuição de bens

materiais241.

Na modernidade, o conceito de propriedade significou a busca pela

autonomia e mobilidade, porém imobilizou o exercício da liberdade, por ter

representado o direito de excluir os outros242. Já na nova era, a busca pela auto

realização e a transformação pessoal são uma constante, ao mesmo tempo em que

a propriedade deve estar a serviço do indivíduo, de modo a permiti-lo viver uma vida

humana plena, em consonância com a inclusão e o acesso243. A liberdade não deve

ser pensada em seu sentido negativo, de excluir o outro, mas como medida de

acesso ao outro, por intermédio de redes e não pela posse de propriedades no

mercado, representando uma otimização da própria vida244. Por isso a propriedade

deve permanecer com o produtor e ser utilizada por uma ou mais partes, já que a

liberdade consiste em relacionamentos compartilhados e não isolados245.

Como se viu acima, a propriedade foi um dos pilares que sustentou a

existência e a realização humana durante a Idade Moderna, quando ela simbolizou

uma extensão da personalidade, ao permitir o pleno exercício da autonomia e

liberdade pessoal, representando a garantia da felicidade humana, apesar dessa

239

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 10-11. 240

Ibidem, p. 47. 241

Ibidem, p. 111. 242

RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 261. 243

idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 197. 244

Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 245

Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 175.

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66

concepção ter se fundado num individualismo profundo, garantindo que o seu

exercício implicasse numa total exclusão do outro indivíduo, cuja concepção se

encaixava perfeitamente às ideias de mercado daquele mesmo período, permitindo

o reconhecimento de uma íntima relação entre propriedade e mercado.

Porém, no período contemporâneo, com a inauguração do Estado Social, em

razão da preocupação sobre a efetividade dos direitos individuais e,

consequentemente, o fim da exclusão social, os fundamentos que deram origem às

relações de propriedade privada tiveram que ser repensados, no mesmo instante em

que as bases do capitalismo começaram a passar por um processo de mudança. A

propriedade, que antes era tida como um instrumento de realização humana e de

exclusão, passou a ser reconhecida como um instrumento a serviço do pleno

exercício da liberdade e sem a exclusão do outro, cuja utilização deve se dar de

forma plena e compartilhada, de modo a conciliar os interesses das diferentes

classes.

Nesse mesmo instante, o capitalismo também passou por uma fase de

grande mudança, em que o mercado de troca de bens deu lugar às redes, cuja

técnica visa a captação e manutenção da atenção do consumidor, como medida

necessária a garantir um cliente fiel e a longo prazo, fazendo com que o acesso se

tornasse um bem mais relevante do que a propriedade. Diante dessa evolução,

constata-se que a técnica inaugurada pelo novo capitalismo pode ser utilizada como

instrumento a serviço das políticas públicas de efetividade do direito à moradia, que,

ao invés da propriedade, utilizaria do acesso.

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67

3. DIREITO (DE ACESSO) À MORADIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

Apesar de ser um instituto que não possui inspiração jurídica, as Políticas

Públicas ganharam relevância para o direito a partir do momento em que passaram

a servir de instrumento capaz de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais

sociais, como o direito à moradia, em consonância com a previsão constitucional.

Compreendida de acordo com o dever prestacional imposto ao Estado e em

consonância com o direito ao desenvolvimento, as Políticas Públicas são fortemente

influenciadas pela questão econômica, principalmente pelo fato de que os recursos

públicos são finitos. Em razão deste fator, a atuação do Poder Público deve se dar

de forma planejada, sem que isso represente uma violação à lei, ou que a

efetividade do direito fundamental social à moradia esteja condicionada ao princípio

da reserva do possível.

Após uma breve exposição conceitual dos institutos referidos acima, o

presente capítulo se propõe a expor a insustentabilidade dos programas promovidos

pelo Poder Público, que condiciona a efetividade do direito fundamental social à

moradia ao exercício da propriedade. Apesar do argumento sobre a limitação dos

recursos financeiros, a moradia deve ser assegurada de forma ampla e não

funcionar como instrumento de especulação imobiliária. Assim, o objetivo é propor

uma discussão sobre a busca da efetividade do direito fundamental social à moradia

por intermédio do acesso, de modo que um número maior de pessoas tenha acesso

a esse direito, em consonância com o método utilizado nas relações do mercado

contemporâneas, conforme estudado no item anterior.

3.1. Políticas públicas: relevância jurídica das ações de governo

Política pública é um tema complexo, cujo conceito é constituído no universo

da ciência política, não possuindo inspiração jurídica, já que é fundamentado em um

tema de caráter dinâmico e funcional, e não na norma e no ordenamento, não

obstante, nos últimos anos, com a inauguração do Estado Social, política pública

passou a ser uma categoria de interesse para o direito246.

246

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98,1997, p. 89.

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68

O tema ganhou relevância jurídica a partir do momento em que a democracia

passou a se vincular à realização dos direitos fundamentais, em consonância com o

paradigma estabelecido pelo Estado Democrático de Direito, onde os valores e

princípios fundamentais transitam para a esfera política247, considerando que o

Estado tomou para si a tarefa de tutela e realização dos direitos fundamentais e do

pleno desenvolvimento da pessoa248.

Política pública é a coordenação e a escolha dos meios à disposição do

Estado, visando a harmonia das atividades estatais e privadas, cuja finalidade é a

realização dos objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados249. O

conceito que aqui se utiliza não diz respeito à política partidária, mas em um sentido

mais amplo, como uma atividade de conhecimento e organização do poder250. É um

conceito abrangente, que compreende as atividades desenvolvidas por parte do

Estado, como a prestação de serviços, o desenvolvimento de atividades executivas,

a atuação normativa, reguladora e de fomento em diversas áreas, no intuito de

atingir os fins definidos como valiosos pela sociedade. O estudo sobre política

pública apresenta um mundo cheio de particularidades, o que inviabiliza uma análise

teórica única e aprofundada de todas as atividades que a compõe251.

Nesse sentido, alguns autores buscam um conceito jurídico desse instituto,

mas as tentativas dessa proposição são infrutíferas, já que se trata de uma noção

interdisciplinar, apesar do fato de a conceituação não ser um problema central e sim

o estabelecimento de uma metodologia de análise jurídica, de modo a permitir um

diálogo multidisciplinar, onde está envolvida a Ciência Política, a Ciência da

Administração Pública e a Economia252.

A análise jurídica das políticas públicas exige uma compreensão da realidade

do Estado, que é constituído por instituições jurídicas, criadas a partir do Direito,

conforme é possível concluir a partir do estudo sobre o princípio da legalidade.

247

PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 38. 248

PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 54. 249

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p.91. 250

Ibidem, p. 242. 251

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 112. 252

BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 226.

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69

Durante o período que vigorou o Estado Liberal, surgiu a doutrina jurídica do Estado

(tecnicização do direito público), complementar à doutrina sociológica (que

compreende o Estado como forma de organização social), decorrente da concepção

do Estado de direito, por se tratar de um órgão de produção jurídica253. No Estado

Liberal houve uma limitação do poder, como medida necessária à garantia do

exercício das liberdades individuais, ao mesmo tempo em que as instituições do

poder e a repartição tradicional de atribuições entre o legislativo e o executivo se

constituíram a partir da autoridade do Estado, e não no sentido prestacional e de

gestão, como ocorre nos dias de hoje.

Mais tarde, com a evolução do Estado Social, a compreensão do Estado

como uma forma mais complexa de organização social volta a ter prestígio e o

direito passa a ser apenas um elemento constitutivo254. O que ocorreu, na verdade,

foi que o paradigma que vigorou durante o período liberal do século XIX, baseado na

norma geral e abstrata, típico de um Estado moderno, deu lugar a uma sucessão de

modelos de Estado, caracterizado por diferentes graus e modos de intervenção

sobre as esferas privadas, por intermédio de técnicas que vão sendo criadas e

modificadas ao longo do tempo, permitindo a inauguração do Estado Social de

direito, formado por diretrizes gerais em favor das ações individuais e das

organizações, bem como para o próprio Estado, não se restringindo a mera

intervenção do Estado na atividade privada255.

No Estado Social houve o reconhecimento dos direitos sociais, também

conhecidos por parte da doutrina como direitos-meio, conforme já abordado

anteriormente, cuja principal função foi garantir às pessoas condições de exercício

dos direitos individuais, ao mesmo tempo em que a dignidade da pessoa humana

ganhou conteúdo jurídico, na medida em que novos direitos (individuais e sociais)

foram sendo agregados aos direitos fundamentais256, sem que se perdesse de vista

que os pilares dessa visão jurídica foram as constituições257, quando se atribuiu a

253

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 56 e 22. 254

Ibidem, p. 57. 255

BUCCI, Maria Paula Dallari. Política Pública e direito administrativo. In: Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 247. 256

Idem. Buscando um conceito de Políticas Públicas para a Concretização dos Direitos Humanos. In: Direitos Humanos e Políticas Públicas. BUCCI, Maria Paula Dallari. et. al. São Paulo: Polis, 2001, p. 8. 257

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 580-581.

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70

elas uma papel muito mais destacado no ordenamento jurídico, como a Constituição

do México, de 1917, e a de Weimar, de 1919, que instituíram direitos de caráter

prestacional, os quais impõe atuações positivas do Poder Público e não

abstenções258.

Além disso, com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve uma profunda

alteração qualitativa das funções do Estado, que passou a irradiar sobre o conteúdo

social da noção de cidadania, impondo um modo de agir dos governos, o qual se

daria por meio de políticas públicas, em defesa de direitos dos grupos sociais no

âmbito da saúde, seguridade social, habitação, entre outros259. Diante de inúmeras

promessas decorrentes da evolução dos modelos de Estado, surgiu a necessidade

de buscar a concretização das premissas teóricas apresentadas pelo

constitucionalismo inaugurado no segundo pós-guerra, discutindo a eficácia jurídica

dos princípios constitucionais, as possibilidades de controle das omissões

inconstitucionais, além de outros estudos que almejavam a compreensão e

interpretação da legislação ordinária a partir da Constituição. Esse movimento a

doutrina denominou de neoconstitucionalismo, ou constitucionalismo

contemporâneo260.

Apesar de ser um tema multidisciplinar, a análise sobre políticas públicas a

partir do direito pretende impor uma compreensão jurídica das estruturas e dos

processos de tomadas de decisões por parte do governo, oferecendo,

consequentemente, formas próprias que possam garantir o seu controle, uma

compreensão teórica do papel do direito na estruturação e dinâmica das políticas

públicas e modelos jurídicos para a construção de novos arranjos261, considerando

que a atuação do Poder Público ganhou um grande destaque no cenário jurídico.

Além disso, a noção de política pública oferece um ganho para a reflexão jurídica, ao

permitir a busca de uma linha de racionalidade que está num plano ideal típico, uma

vez que a aplicação da norma deixa de se fazer com base apenas no seu próprio

texto ou em decisões dos tribunais, fato que permite um trabalho mais prospectivo

258

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 62-63. 259

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p. 90. 260

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 3. 261

BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca.(Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 247-248.

Page 72: DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO PARA … · 2017-10-03 · Concentração em Constitucionalismo e Democracia, ... Orçamento como instrumento de efetividade do direito fundamental

71

do Direito, de modo que a atenção também se volte para a formação das normas

jurídicas262, sem que se perca de vista que o modelo de políticas públicas não exclui

o da legalidade263. As políticas públicas devem ser analisadas como arranjos

conformados pelo direito, embora não redutíveis a ele, tratando-se equívoco

compreender os direitos sociais, de base constitucional, como sinônimo às políticas

públicas destinadas a implementá-los264.

A partir deste estudo, não se pode perder de vista que o constitucionalismo

opera-se a partir de algumas características, entre as quais, destaca-se a

normatividade da Constituição, cujo processo levou essa a norma fundamental de

um documento político, composto por baixa imperatividade, a uma norma jurídica

suprema, dotada de a imperatividade; e a superioridade e centralidade da

Constituição no ordenamento jurídico, em que os demais ramos do direito devem ser

interpretados a partir dela265, inclusive o agir administrativo, que sofre limites

decorrentes de regras e princípios constitucionais266.

Some-se a essas características o fato de o texto constitucional prever

expressamente a incorporação explícita de valores, como o respeito à dignidade da

pessoa humana e aos direitos fundamentais, além de também estabelecer opções

políticas, como a preocupação em reduzir as desigualdades sociais ou prestação de

serviços de educação267. Os direitos fundamentais têm status diferenciado no âmbito

do sistema constitucional, tanto que se fala em centralidade dos direitos

fundamentais, em consequência da centralidade do homem e da sua dignidade,

permitindo a conclusão de que o Estado e o Direito existem para proteger e

promover os direitos fundamentais268. Por estarem expressamente previstas no texto

262

BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca.(Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 247-250. 263

Idem. Política Pública e direito administrativo. In: Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 255. 264

Idem. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca.(Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 247-254. 265

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. N. 240 abr./jun. p. 1-42, 2005, p.12/13. 266

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, p. 70. 267

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 4. 268

Idem. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e

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72

constitucional, estas normas gozam do status de norma jurídica dotada de

superioridade hierárquica, inclusive sobre as iniciativas do Poder Público, de forma a

neutralizar qualquer tipo de discricionariedade.

Constatou-se que Política Pública é um instrumento capaz de assegurar a

eficácia das normas constitucionais, justificando, inclusive, um estudo sobre o

controle das políticas públicas, cuja compreensão mais aprofundada não se dará

neste estudo em razão da delimitação do seu objeto. A atividade administrativa sofre

uma influência dos direitos fundamentais e do princípio democrático, reconhecidos

como pilares constitutivos e legitimadores da ordem constitucional269.

No Brasil, foi a partir da Constituição de 1988 que os profissionais do direito

passaram a se preocupar com a efetividade das promessas constitucionais e por

isso buscam um método para a sua realização de modo compatível com os deveres,

demandas sociais e limitações econômicas, permitindo a compreensão de que

políticas públicas encerram essa fórmula270, já que elas são instrumentos de ação

dos governos. Os direitos sociais são concretizados a partir das prestações positivas

do Estado, as quais, segundo a doutrina, se dão por intermédio de políticas

públicas271, em que as ações públicas e privadas são coordenadas para a realização

dos direitos dos cidadãos, considerando que os direitos sociais podem ser

realizados se forem impostas obrigações positivas272. É natural que as atividades do

legislativo e do judiciário se concentrem na aplicação da Constituição, porém o

legislador depende de atos de execução, enquanto que o judiciário produz efeitos,

na maioria das vezes, em casos pontuais. Dessa maneira, compete à Administração

Pública efetivar os comandos contidos na ordem jurídica, por intermédio de ações e

programas.

A consagração das cláusulas pétreas por parte da Constituição Federal, nos

termos da previsão constante no seu artigo 60, § 4°, inciso IV, impõe ao Poder

Público um núcleo mínimo de decisões que devem ser observadas, inclusive pelo

“reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 115. 269

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, p. 71. 270

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 116-117. 271

Idem. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 11. 272

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.21.

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73

fato de que a promoção dos direitos fundamentais é uma condição indispensável ao

funcionamento do processo de deliberação democrática273. Não se pode deixar de

lado que o funcionamento do sistema de participação democrática, onde são

definidos valores e opções políticas, depende necessariamente do respeito aos

direitos fundamentais, indispensável ao exercício da cidadania274, cuja compreensão

mais aprofundada não se dará neste trabalho por fugir do seu objeto proposto.

O poder público está subordinado à Constituição275, como decorrência do

Estado de Direito, o que impõe pensar que o exercício do poder político encontra

limites na norma jurídica, sem que isso represente uma invasão sobre o espaço

próprio da deliberação majoritária, inclusive pelo fato de se impor o respeito à

promoção dos direitos fundamentais276. Todos os indivíduos são livres e iguais,

portanto, o desrespeito aos direitos fundamentais impede que os indivíduos tenham

condições de exercer sua liberdade de participação no processo político democrático

de forma consciente e, de um modo geral, ter acesso às condições básicas de

existência humana277, ante a centralidade do homem e seus direitos no contexto do

Estado e do Direito.

Não há que se deixar de lado que toda ação estatal envolve gasto de dinheiro

público e os recursos são limitados, o que impõe uma conduta por parte da

Administração Pública de escolher, por intermédio de uma deliberação político-

majoritária, onde o dinheiro será investido, desde que obedecida a prioridade

imposta pela Constituição, e por isso, nesse caso, a norma constitucional deve

vincular o ato da deliberação política278, em consonância com o Estado de Direito,

em que o exercício do poder político está subordinado às regras jurídicas279.

A própria Constituição traz em seu texto algumas regras sobre políticas

públicas, cuja norma traz em seu texto as expressões programas ou planos, como

273

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 13 274

Ibidem, p. 8. 275

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O controle judicial dos atos administrativos. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro. N. 152. abr./ jun. p. 1-15, 1983, p. 10 e 13. 276

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 115. 277

Ibidem, p. 120. 278

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 12. 279

CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003, p. 91.

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74

no caso do §1º e 2º do artigo 165280, que define o orçamento público como

instrumento de fixação das diretrizes, objetivos e metas; e do artigo174, que impõe

ao Estado o dever de fiscalização, incentivo e planejamento do desenvolvimento281.

Além disso, as políticas públicas também podem ser estabelecidas por meio de leis

criadas pelo Poder Legislativo, a serem cumpridas pelo Poder Executivo, onde se

estabelecem os objetivos da política, as metas temporais, os instrumentos e outras

condições, ou ainda, por normas infralegais, como decretos, portarias ou resoluções

editadas por parte do Poder Executivo282, considerando que cabe a este poder

elaborar as respostas às questões em matéria de políticas públicas, quando estas

não se encontram na lei283.

Política Pública encerra um modelo mais adequado para a República

Federativa do Brasil, como um Estado Social democrático de direito, que, a partir do

texto constitucional, deve atuar na ordem econômica e social, regular as relações e

promover o desenvolvimento, no intuito de garantir a efetividade dos direitos

fundamentais284. Política pública é um instituto composto por múltiplos sentidos, cuja

compreensão não será enfrentada neste trabalho por estar alheia ao seu objeto, já

que sua matriz conceitual é encontrada na Ciência Política, apesar da incontroversa

280

“Art. 165 ... § 1º A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada. § 2º A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.” 281

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.§ 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.§ 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.§ 3º O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.§ 4º As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei. 282

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p.95. 283

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 126. 284

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 102.

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75

compreensão de que ela é instrumento de ação dos governos, fazendo com que a

função de governar seja o seu fundamento imediato285.

3.2. Direito ao desenvolvimento e acesso à moradia: planejamento e política pública

A efetividade do direito fundamental social à moradia depende diretamente de

políticas públicas, por tratar-se de um direito fundamental social, de conteúdo

prestacional, e representar uma necessidade básica do ser humano, conforme

estudado anteriormente. A busca por novas alternativas para resolver os problemas

sociais deve se desenvolver em consonância com a dignidade da pessoa humana, a

igualdade e a justiça.

Para uma compreensão mais completa, é pertinente articular os argumentos

que fundamentam o direito à moradia digna com aqueles que explicam o direito ao

desenvolvimento, por serem temas que tem em comum o objetivo de realizar a vida

humana de cada indivíduo de forma plena e digna, bem como a realização da justiça

social, conforme previsões constantes nos artigos 1º, 3º e 170 da Constituição

Federal.

O desenvolvimento representava uma preocupação voltada apenas para o

crescimento econômico, até que começaram a surgir movimentos voltados à

proteção dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que os conteúdos valorativos

passaram a ser incorporados ao texto jurídico, permitindo a criação das garantias

constitucionais, momento em que o direito deixou de ser compreendido como uma

operação lógico-formal.

A partir desse momento, o desenvolvimento também começou a tratar sobre

os problemas sociais, políticos, entre outros, e passou a ser debatido no interior do

direito, quando valores, como no caso da dignidade da pessoa humana, foram

identificados no interior do sistema jurídico286. Além de econômicos, o tema

desenvolvimento também passou a ter fins sociais, elegendo, entre suas metas, a

redução da pobreza, a emancipação dos direitos das mulheres, a proteção das

minorias, o exercício da liberdade, o acesso à justiça e à segurança jurídica, de

285

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p. 91. 286

RODRIGUEZ, José Rodrigo. O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro. São Paulo: Saraiva, 2009, apresentação, p. 16.

Page 77: DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO PARA … · 2017-10-03 · Concentração em Constitucionalismo e Democracia, ... Orçamento como instrumento de efetividade do direito fundamental

76

modo a servir toda população e não apenas à elite econômica, como ocorria no seu

conceito original287.

Previsto na Declaração da Organização das Nações Unidas, de 1986, em seu

artigo 1º288, o desenvolvimento é um estado de realização comum das pessoas, a

que os indivíduos e a sociedade aspiram, conforme consta nos artigos

constitucionais citados acima, simbolizando o melhor caminho para tornar mais

plena a liberdade e a existência digna, ao mesmo tempo em que elimina as

privações materiais e a ausência de acesso aos direitos sociais289. Não se

restringindo ao crescimento econômico, apesar deste fator poder ajudar, o

desenvolvimento, medido pela dignidade de existência, conta com a intervenção do

Estado, responsável pela criação de serviços, como os de educação, de saúde,

entre outros, e a distribuição de acesso, como condição de exercício de uma vida

mais saudável. Desse modo, o acesso ao direito fundamental social à moradia é um

dos fatores que permite avaliar a realização do direito ao desenvolvimento, e,

consequentemente, o exercício de uma vida digna.

Para que seja assegurado o direito ao desenvolvimento, é essencial que haja

planejamento, compreendido como um processo que visa maximizar as decisões

políticas, fixando diretrizes, considerando que este coordena, racionaliza e dá

unidade aos fins de atuação estatal. Trata-se de uma técnica instrumental e

operativa de intervenção do Estado, que indica o caminho a ser seguido para as

ações futuras de implementação dos fundamentos e objetivos da República

Federativa do Brasil290, ao mesmo tempo em que são estabelecidos os objetivos e

quantificadas as metas, a serem desenvolvidas de acordo a ideologia constitucional,

sofrendo incidência de normas jurídicas e controle jurisdicional.

As políticas públicas compreendem um conjunto heterogêneo de medidas, e,

no caso de política habitacional ou de moradia, isso significa a elaboração de leis

287

TRUBEK, David. M..A coruja e o gatinho: há futuro para o “direito e desenvolvimento”? O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro. RODRIGUEZ, José Rodrigo. (Org.) Tradução: Pedro Maia Soares. Revisão técnica: José Rodrigo Rodriguez. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 221. 288

“Art. 1° O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.” 289

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p.106 e 108. 290

BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 116-117.

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77

programáticas, como as leis orçamentárias, à definição de planos diretores das

cidades, o zoneamento, o estabelecimento de área de preservação ambiental, além

da edição de leis, regulamentos e atos administrativos de execução material,

significando dizer que o sucesso de políticas públicas também depende de

planejamento291.

O planejamento de qualquer política deve ser desenvolvido de acordo com os

demais planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, a

ser instituído mediante lei e apreciado pelo Congresso Nacional, por isso essa

atividade de planejamento está submetida ao princípio da legalidade292, ou seja, o

seu exercício deve se dar de acordo com a previsão constante nos artigos 48, inciso

IV293 e 58, §2º, inciso VI294 da Constituição Federal. Além disso, cabe à União

elaborar e executar planos de ordenação do território e de desenvolvimento

econômico e social, e instituir diretrizes de desenvolvimento urbano, inclusive de

habitação, conforme consta no inciso IX e XX do artigo 21295 do mesmo diploma

legal. Em consonância com esse raciocínio, merece destaque a previsão do artigo

174 caput e seu §1º296, da Constituição Federal, ao prever o planejamento

econômico como uma atividade determinante para o Poder Público, a ser aprovado

mediante lei editada pelo Congresso Nacional. Não se pode perder de vista que

essa atividade também é papel a ser desenvolvido pelos municípios, que devem

assegurar o desenvolvimento da cidade sustentável, a fim de evitar ocupações

desordenadas, portanto, em perfeita conexão ao direito à moradia, conforme consta

291

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 110. 292

BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 106. 293

“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: ... IV - planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento;...” 294

“Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.... § 2º Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:... VI - apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer....” 295

“Art. 21. Compete à União:... IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;... XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;...” 296

“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento....”

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78

no artigo 30, inciso VIII297 do mesmo diploma, justificando a edição de planos

diretores, leis de uso e ocupação do solo, códigos de posturas e de obras, legislação

ambiental.

Além de possuir um conteúdo técnico, o planejamento também é fruto de um

processo político, apesar de ser um instituto que caiu em desuso298, por falta de

vontade política, já que não há legislação que estabeleça diretrizes e bases para o

planejamento de um desenvolvimento equilibrado, que compatibilize os planos

nacionais e regionais de desenvolvimento, conforme determinação constante no §1º

do artigo 174 da Constituição, citado acima. Além disso, há uma desconexão entre

Planos Nacionais e orçamento público299, cujo tema não se vai aprofundar por

extrapolar os limites deste trabalho, mas que também contribui para uma crise na

função estatal de planejamento, refletindo no campo do direito à moradia digna.

Sem planejamento não existem políticas públicas eficientes, cabe ao cidadão,

que na maioria das vezes tem baixa renda, resolver sua própria necessidade,

construindo moradias nos espaços que sobram, a beira de córregos, encostas ou

em áreas de preservação ambiental. É necessário seguir as diretrizes estabelecidas

pela Constituição, a fim de garantir um processo de desenvolvimento que elimine a

pobreza, redistribua as riquezas e oportunidades, reduza as desigualdades e

ofereça as condições mínimas para uma vida digna.

A moradia é um direito fundamental de acesso a unidades habitacionais

seguras e salubres, situadas em áreas com infraestrutura segura, capaz de oferecer

saneamento, mobilidade, transporte coletivo, serviços urbanos e sociais, cuja

implementação depende de um planejamento estratégico a ser desenvolvido pelo

Poder Público.

3.3. Orçamento como instrumento de efetividade do direito fundamental social à

moradia

297

“Art. 30. Compete aos Municípios:... VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;...” 298

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 130-131. 299

BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 134.

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79

Além do planejamento, a questão econômica também é um fator importante

para a efetividade do direito fundamental social à moradia, já que a promoção de

políticas públicas, além do planejamento também depende de um adequado suporte

financeiro, de modo que, sem orçamento o planejamento não sai do papel e

orçamento sem plano também se torna letra morta.

O orçamento público é uma disciplina prevista na Constituição, cujas regras e

princípios tratam sobre receitas e despesas públicas, compondo aquilo que alguns

chamam de Constituição Orçamentária, de acordo com as previsões constantes nos

artigos 165 a 169; 70 a 75; 31 e 99 da Constituição Federal300. O orçamento público

não tem caráter vinculativo, sendo tratado como lei programática, por representar

projeção de receita e gasto público, em que a lei apenas autoriza e não obriga o

Poder Público a promover os gastos nela previstos301.

Sob a ótica de norma meramente instrumental, a Constituição Orçamentária

prevê regras sobre receitas e despesas, as quais não têm o condão de impor uma

ação administrativa, muito menos é capaz de assegurar um resultado, porém é uma

ferramenta necessária à atuação estatal, considerando que as decisões

fundamentais decorrentes das políticas públicas devem passar pelo orçamento302.

Por outro lado, o planejamento não pode ser reduzido a orçamento, ou seja, o

planejamento tem por objetivo fixar diretrizes, em que são traçados os caminho a

serem seguidos pelo Estado para a implementação dos objetivos da República, ao

contrário do orçamento, em que é feita uma projeção financeira de modo a viabilizar

a atuação estatal. Em outras palavras, a concretização dos programas

constitucionais de desenvolvimento não pode ser condicionada à simples alegação

de inexistirem recursos financeiros, apesar de não ser o posicionamento adotado por

muitos, inclusive em algumas decisões judiciais, que buscam, no princípio da

reserva do possível, uma justificativa à inércia do Poder Público que deve

desenvolver políticas públicas de efetividade dos direitos fundamentais sociais,

como no caso do direito à moradia. Segundo os seguidores desse princípio, a

300

BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 103. 301

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 120. 302

BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 104.

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80

atuação do Estado para a efetividade dos direitos fundamentais sociais está

condicionada à disponibilidade de recursos financeiros303.

A teoria que explica o princípio da reserva do possível teve origem na

Alemanha, a partir dos anos 1970304, quando seu Tribunal Constitucional Federal

julgou o paradigmático caso numerus clausus, que versava sobre o direito de acesso

ao ensino superior. A questão envolvia uma análise sobre a constitucionalidade da

Lei Universitária de Hamburg e da Lei de Admissão às Universidades Bávaras,

criadas para regulamentar a admissão nos cursos superiores de medicina nas

universidades de Hamburg e da Baviera, quando foram estabelecidos limites de

admissão (numerus clausus), tendo em vista o exaurimento da capacidade de

ensino dos cursos de medicina.

Na época, foi questionada a constitucionalidade dessa norma perante aquele

tribunal, sob o argumento de que ela ofenderia a previsão do artigo 12, inciso I da

Lei Federal Alemã, cuja previsão garantia que “Todos os alemães têm o direito de

livremente escolher profissão, local de trabalho e de formação profissional. O

exercício profissional pode ser regulamentado por lei ou com base em uma lei”, a

qual deve ser interpretada a partir do princípio da igualdade e do Estado Social. O

argumento se fundava no direito à ampla liberdade profissional, cuja extensão

compreendia o direito de escolher uma profissão, o local de trabalho e o local de

formação profissional. Por isso, a limitação ao acesso à universidade representaria

uma ofensa ao direito de liberdade profissional previsto naquele ordenamento, já

que a limitação à escolha do local de formação significaria uma influência na escolha

da própria profissão.

Mas de acordo com aquele Tribunal, a partir da decisão BVerfGE 33, 303,

seria possível restringir o acesso aos cursos de medicina, considerando que os

direitos sociais de participação em benefícios estatais se encontram sob a reserva

do possível, em que deve ser estabelecido um limite àquilo que o indivíduo pode

exigir da coletividade, por isso, não seria possível conceder ao indivíduo tudo o que

ele pretende, já que há pleitos que não são razoáveis ou sensatos de se exigir. Para

303

MÂNICA. Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do Poder Judiciário na implementação de Políticas Públicas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 25, fevereiro/março/abril, 2011, p. 11-12. 304

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008.

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81

aquele Tribunal, a possibilidade de restrição deve ser estabelecida por lei, desde

que condicionada aos limites estritamente necessários, após a utilização de toda a

capacidade de ensino existente, além do fato de que a escolha e a distribuição das

vagas devem ocorrer segundo critérios racionais, com igualdade de chance para

todos os candidatos qualificados para o curso superior.

De acordo com os argumentos citados acima, fica claro que a teoria da

reserva do possível, utilizada como limite à efetivação dos direitos sociais na

Alemanha, não tinha em seu significado inicial a marca da disponibilidade financeira.

Ao contrário, a análise incidia-se na sensatez da conduta do cidadão em exigir do

Estado e da sociedade a efetividade de um direito social, cabendo à sociedade

analisar a razoabilidade ou não da pretensão, já que a pretensão subjetiva ilimitada

à custa da coletividade é incompatível com a ideia do Estado Social, servindo como

limite à participação do indivíduo nos benefícios estatais305.

No Brasil, essa teoria foi adotada num sentido diferente do original, cuja

utilização foi inaugurada na paradigmática decisão proferida na ADPF n. 45, ao

expressar que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais depende de

um vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, não

sendo razoável exigir do Poder Público a imediata efetivação do comando contido na

Constituição quando há a incapacidade econômica-financeira306, apesar de a

cláusula da reserva do possível não poder ser invocada com a finalidade, pura e

simplesmente, de exonerar o Estado do dever de cumprir suas obrigações

constitucionais.

Diante dessa compreensão, criou-se a teoria da reserva do financeiramente

possível, de modo que os recursos públicos se tornaram um limite absoluto à

efetividade dos direitos fundamentais sociais, parecendo ser uma tentativa de

vincular o direito à economia307, ou impondo uma idéia de que os direitos sociais só

305

SCHWABE, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Organização e introdução: Leonardo Martins. Tradução: Beatriz Hennig; Leonardo Martins; Mariana Bigelli de Carvalho; Tereza Maria de Castro; Vivianne Geraldes Ferreira. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 656 – 667. 306

STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso Antonio Bandeira de Mello, j. 29.04.04. Disponível em: ˂http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm˃. Acesso em 22 de maio de 2017. 307

MÂNICA. Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do Poder Judiciário na implementação de Políticas Públicas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 25, fevereiro/março/abril, 2011, p. 13.

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82

existem na medida em que existe recurso financeiro308. O princípio da reserva do

possível começou a funcionar como algo assustador e ao mesmo tempo

desconhecido, pois passou a impedir a efetividade dos direitos sociais em razão da

ausência de recursos financeiros309.

Condicionar o reconhecimento do direito social à moradia a partir da reserva

do possível não está de acordo com a principiologia da Constituição, principalmente

por ele se tratar de um direito fundamental, pois, do contrário, estar-se-á esvaziando,

por completo, a eficácia desse direito fundamental social, de modo a abrir espaço

para uma discussão, principalmente pelo fato de que não se pode negar de forma

absoluta o direito subjetivo à prestação estatal310.

Apesar desta compreensão, não há como negar que a efetividade do

planejamento depende diretamente da existência de recursos financeiros, em outras

palavras, sem recursos financeiros o plano não sai do papel, conforme citado acima.

Como instrumento para a administração, o orçamento possibilita a redistribuição de

renda e maior efetividade do planejamento, desde que as diretrizes do governo

estejam voltadas para a sua realização material, e isso só é possível no caso de

subordinação da lei orçamentária às leis que veiculam todos os programas de

governo311.

Como agente normativo, de acordo com a previsão do §4° do artigo 165312 e

do §1° do artigo 174313, ambos da Constituição Federal, compete ao Estado elaborar

planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição em

consonância com o plano plurianual, como imperativo da racionalização da utilização

de recursos escassos, no intuito de obter melhores resultados no seu

308

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 481. 309

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 237. 310

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 728. 311

BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 108. 312

“Art. 165 … § 4º Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional.” 313

“Art. 174 ... § 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.”

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83

aproveitamento, de acordo com a preocupação do constituinte que previu a

integração entre planejamento e orçamento314.

Nesse contexto, sobre a ação estatal de planejamento, o sistema

orçamentário se desdobra em três instrumentos sob a forma de lei, ou seja, o plano

plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual, conforme

previsões constantes nos artigos 165, 166 e 167 da Constituição Federal.

O plano plurianual apresenta as diretrizes, objetivos e metas globais da ação

do governo a longo prazo, ao estabelecer um plano de trabalho com vigência

intergovernamental, no intuito de garantir a continuidade de diversos programas, nos

termos da previsão do § 1º do artigo 165315 da Constituição Federal. Cumpre

asseverar que nenhum investimento, cuja execução ultrapasse um exercício

financeiro, poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, conforme

consta no § 1º do artigo 167316 do mesmo diploma, além do fato que todos os

programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição devem se

compatibilizar com o plano plurianual, nos termos da previsão constante no § 4º do

artigo 165317 da Constituição.

Dentro desta concepção de planejamento, o plano plurianual deve ser

detalhado e dividido em metas para cada ano, cuja efetividade se dá por intermédio

da lei de diretrizes orçamentárias, onde estão definidas as metas e prioridades da

atuação governamental, além de possuir orientações para a elaboração da lei

orçamentária anual, conforme consta na previsão do § 2º do artigo 165318 da

Constituição.

314

BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 135. 315

“Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:... § 1º A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.” 316

“Art. 167. São vedados:... § 1º Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade.” 317

“Art. 165.... § 4º Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional.” 318

“Art. 165.... § 2º A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.”

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84

Por último, tem-se a lei orçamentária anual, elaborada de acordo com a lei de

diretrizes orçamentárias, onde estão previstas as receitas e fixadas as despesas de

cada ano de governo, nos termos do § 5º do artigo 165319 da Constituição Federal. A

meta da Constituição é promover o bem-estar do homem, por isso cabe ao Estado

garantir e preservar a dignidade da pessoa humana a partir das metas e objetivos

fundamentais estabelecidos pela Constituição.

Desse modo, o orçamento, entendido como conseqüência do planejamento, é

instrumento de efetividade dos direitos fundamentais e por isso não deve ser

utilizado como argumento de escusa para o não atendimento desses direitos, já que

ele possibilita a redistribuição de renda e uma maior efetividade do planejamento.

Por essa razão, os recursos financeiros, por serem limitados, devem ser aplicados

prioritariamente no atendimento aos fins considerados essenciais pela

Constituição320.

3.4. Políticas públicas habitacionais baseadas na propriedade

Com base na propriedade, a legislação atual oferece alguns instrumentos de

efetivação do direito fundamental social à moradia, apesar da sua concretização

ainda estar muito aquém da demanda. O primeiro deles foi a criação da Companhia

de Habitação – COHAB, empresa de economia mista, constituída sob o controle

acionário dos governos estatuais e municipais, tendo os fundos subsidiados pelo

Poder Público como principal fonte de recursos.

A partir da Lei Federal nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, foram criadas

orientação normativa e de assistência técnica direta do Serviço Federal de

Habitação e Urbanismo – Serfhau, as quais serviram de parâmetros para a

constituição das COHABs, dentre elas, a COHAB Minas - Companhia de Habitação

do Estado de Minas Gerais, instituída pelo Governo do Estado de Minas Gerais

como sociedade de economia mista, cujo objeto era de combater o déficit

319

“Art. 165.... § 5º A lei orçamentária anual compreenderá: I - o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; II - o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto; III - o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público.” 320

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 241-242.

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85

habitacional por meio de construção de casas, nos termos da Lei Estadual nº Lei nº

3.403, de 02 de julho de 1965.

A iniciativa dessa lei foi inspirada na migração da população da zona rural

para as cidades, que ocorreu a partir dos anos de 1960, em busca de melhores

condições de vida. Por isso, o objetivo da COHAB Minas foi de responder ao grande

desafio de reduzir, gradualmente, o déficit habitacional em Minas Gerais, inclusive

pelo fato da maior parte da população, agora urbana, viver com uma renda inferior a

três salários mínimos mensais. Como suporte financeiro para a execução das obras,

o Governo do Estado utiliza até os dias atuais fundos instituídos por ele, mediante lei

e, em contra partida, as moradias são vendidas aos cidadãos por um preço

reduzido, mediante contrato de mútuo, com prazo para pagamento muito longo,

cujas taxas praticadas são muito baixas. Além disso, é possível que a COHAB Minas

firme parcerias com as prefeituras conveniadas, em que o município oferece o

terreno urbanizado e a Companhia promove a construção e fiscalização das obras,

além de subsidiar o custo do investimento321.

A Lei Federal 4.380/64, além de utilizar a propriedade como fundamento,

instituiu o Sistema Financeiro da Habitação – SFH, cujo objetivo era, não apenas

garantir a efetividade do direito à moradia, mas implementar políticas de

desenvolvimento urbano, abrir oportunidades de emprego, mobilizar escritórios de

engenharia e planejamento, dar trabalho para a construção civil e à indústria da

construção, que até então estavam paralisadas na economia brasileira.

O tempo revelou a inabilidade desse sistema por não atingir a meta de

garantir a efetividade do direito fundamental social à moradia digna em relação à

população mais pobre, perfeitamente visível em razão da precariedade em que vive

essa gente, de modo que o déficit habitacional não foi eliminado, principalmente pela

incompatibilidade entre a proposta social e as condições econômicas do país322. Por

outro lado, é indiscutível o sucesso do SFH em relação à mobilização da economia e

à geração de empregos, em consonância com o progresso do capitalismo,

estimulando, inclusive, o aparecimento de grandes empresas imobiliárias323.

321

BRASIL. COHAB MINAS – Companhia de habitação do Estado de Minas Gerais. História. Disponível em: ˂http://www.cohab.mg.gov.br/cohab/historia/˃. Acesso em: 20/02/2017. 322

BUCCI, Maria Paula Dallari. Cooperativas de habitação no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 61-62. 323

Ibidem, p. 63-64.

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86

Outra fonte normativa criada para a efetividade do direito à moradia e que

elege a propriedade como um mecanismo essencial para o cumprimento de sua

finalidade, é a Lei Federal nº 11.124/05, que, além de instituir o Sistema Nacional de

Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de

Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Os recursos desse

fundo devem ser gastos com aquisição, construção, conclusão, melhoria, reforma

em áreas urbanas e rurais324, ou ainda, aquisição de materiais para construção,

ampliação e reforma de moradias325, além do fato de que, nos programas de

habitação de interesse social beneficiados com recursos do FNHIS, será assegurada

assistência técnica gratuita nas áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia,

respeitadas as disponibilidades orçamentárias e financeiras do referido fundo326.

Esta lei também traz outros benefícios, como garantia de atendimento às

famílias de menor renda327, ou seja, os subsídios financeiros, suportados pelo

FNHIS, também são destinados a complementar a capacidade de pagamento das

famílias beneficiárias328; isenção ou redução de impostos municipais, distritais,

estaduais ou federais incidentes sobre o empreendimento no processo

construtivo329; entre outros benefícios, destinados a reduzir ou cobrir o custo de

construção ou aquisição de moradias330.

A lei contempla a possibilidade de locação social e arrendamento de unidades

habitacionais, como fins de aplicação dos recursos do Fundo Nacional de Habitação

de Interesse Social331, no entanto, o objetivo central da Lei Federal nº 11.124/05 é

garantir a efetividade do direito à moradia digna por intermédio da propriedade, o

que, de fato, encarece as despesas públicas, inviabilizando o desenvolvimento de

políticas públicas satisfatórias à efetividade do direito à moradia digna, considerando

que os recursos financeiros são finitos, conforme abordado anteriormente.

Por último, cumpre destacar o Programa Minha Casa Minha Vida, instituído

pela Lei Federal nº 11.977, de 07 de julho de 2009, a qual já sofreu algumas

alterações por parte das Leis nº 12.249, de 2010, nº 12.424, de 2011, nº 12.693, de

324

Inciso I do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 325

Inciso V do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 326

§ 3º do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 327

Art. 22 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 328

Inciso I do Art. 23 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 329

Inciso III do Art. 23 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 330

Inciso IV do Art. 23 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 331

Inciso I do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005.

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2012, nº 12.722, de 2012, nº 13.043, de 2014, nº 13.097, de 2015, nº 13.161, de

2015, nº 13.173, de 2015 e nº 13.274, de 2016.

O Programa Minha Casa Minha Vida conta com instrumentos, como recursos

financeiros orçamentários, isenção total ou parcial do seguro, gratuidade ou redução

das custas cartorárias para o registro imobiliário e a instituição de um fundo

garantidor que oferece a cobertura de até 36 parcelas no caso de perda temporária

de emprego ou renda, conforme consta na lei o regulamenta. Por essa razão, pode

ser um programa muito caros aos cofres públicos, capaz de se tornar ineficiente ao

atendimento de todos aqueles que precisam ter acesso à moradia digna.

A finalidade desse programa é criar mecanismos de incentivo à produção e

aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e

produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até

R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais)332, de modo que, para a

implantação desse programa, a União concederá subvenção econômica ao

beneficiário pessoa física no ato da contratação de financiamento habitacional333, a

fim de permitir a aquisição, produção e requalificação do imóvel residencial

urbano334. Além disso, no caso de prioridade no atendimento, compete aos Estados,

Distrito Federal e Municípios providenciar a doação de terrenos localizados em área

urbana consolidada para implantação de empreendimentos vinculados ao

programa335, além de promover medidas de desoneração tributária para as

construções destinadas à habitação de interesse social336.

Esse programa também tem a finalidade de subsidiar a produção ou reforma

de imóveis para agricultores familiares e trabalhadores rurais, por intermédio de

operações de repasse de recursos do orçamento geral da União ou de

financiamento habitacional com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de

Serviço - FGTS, desde 14 de abril de 2009337, em que também poderá ser

concedida subvenção econômica no ato da contratação do financiamento338.

De acordo com essa lei, a União participará no Fundo Garantidor da

Habitação Popular, cuja finalidade é garantir o pagamento aos agentes financeiros

332

Art. 1° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 333

Inciso I do Art. 2° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 334

Inciso I do Art. 6° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 335

Inciso I do § 1º do Art. 3° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 336

Inciso II do § 1º do Art. 3° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 337

Art. 11° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 338

Art. 13° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009.

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de prestação mensal de financiamento habitacional, no âmbito do Sistema

Financeiro da Habitação, devida pelo mutuário final em caso de desemprego ou

redução temporária da capacidade de pagamento339, além de assumir o saldo

devedor do financiamento imobiliário, em caso de morte e invalidez permanente, e

as despesas de recuperação relativas a danos físicos causado no imóvel do

mutuário340.

Com o objetivo de dar efetividade ao direito fundamental social à moradia

digna, a lei que instituiu o Programa Minha Casa Minha Vida também tem suas

bases fixadas no direito de propriedade, além de estabelecer linhas de crédito à

população mais carente, taxa de juros e demais custos reduzidos e subvenções

financeiras custeados pelo Poder Público, conforme consta na lei que o

regulamenta, o que inviabiliza a universalização do direito à moradia digna,

considerando estes custos ficam a cargo do Estado, que não possui recursos

financeiros ilimitados.

3.5. Políticas públicas para a promoção do direito fundamental social (de acesso) à

moradia

Apesar de a legislação e os programas de governo ainda valorizarem o direito

de propriedade como forma de garantir a efetividade do direito fundamental social à

moradia, a Lei nº 10.188, de 12/02/2001, instituiu o Programa de Arrendamento

Residencial. De acordo com essa lei, fica instituído o Programa de Arrendamento

Residencial para atendimento da necessidade de moradia da população de baixa

renda, sob a forma de arrendamento residencial341.

Essa lei, além atribuir à Caixa Econômica Federal a tarefa de promover a

aquisição de moradias, institui um fundo próprio342, a fim de que sejam adquiridos

imóveis para arrendamento residencial, nos termos do Programa nela previsto343,

cujos arrendatários são as pessoas físicas habilitadas mediante um processo

339

Inciso I do Art. 20° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 340

Inciso II do Art. 20° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 341

Art. 1° da Lei 10.188/2001. 342

Art. 2° da Lei 10.188/2001. 343

Art. 6º da Lei 10.188/2001.

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seletivo promovido pela Caixa Econômica Federal, de acordo com os requisitos

estabelecidos pelo Ministério das Cidades344.

Ao arrendatário selecionado compete promover o pagamento do crédito

proveniente da operação de arrendamento de acordo com os critérios definidos pela

Caixa Econômica Federal345, a partir das diretrizes estabelecidas pelo Ministério das

Cidades346. Desse modo, havendo inadimplemento no arrendamento, findo o prazo

da notificação ou interpelação e não havendo o pagamento dos encargos em atraso,

fica configurado o esbulho possessório que autoriza o arrendador a propor a

competente ação de reintegração de posse347.

A Lei 10.188/01 representa um rompimento com os programas sociais

tradicionais promovidos pelo Poder Público, por se utilizar do acesso como

instrumento para a efetividade do direito fundamental social à moradia. No entanto

ela não abandonou a propriedade, possuindo raízes fortes neste instituto, quando

permite ao arrendatário a opção de compra, ao invés de arrendamento, do imóvel

objeto do contrato348, mesmo quando não há um prévio contrato de arrendamento349,

considerando que as alienações dos imóveis também devem ser promovidas

diretamente pela Caixa Econômica Federal350.

Sobre o tema, merece registro o fato de que na Constituição, desde sua

redação original, sempre esteve prevista, dentre os direitos e garantias individuais, a

proteção da propriedade, conforme consta no caput do artigo 5°351 e seu inciso

XXII352, assim como ocorreu no caso da proteção da casa como asilo inviolável do

indivíduo, previsão constante no inciso XI353 do artigo 5° da Constituição, cuja norma

representa a proteção apenas do domicílio e não da moradia propriamente dita354.

344

Parágrafo único do Art. 6º da Lei 10.188/2001. 345

Art. 4º da Lei 10.188/2001. 346

Art. 5º da Lei 10.188/2001. 347

Art. 9º da Lei 10.188/2001. 348

Art. 1° da Lei 10.188/2001. 349

§ 3° do Art. 1° da Lei 10.188/2001. 350

§ 7° do Art. 2° da Lei 10.188/2001. 351

“Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:...” 352

“XXII - é garantido o direito de propriedade;” 353

“XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;” 354

BUCCI, Maria Paula Dallari. Cooperativas de habitação no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 185.

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90

Somente com a Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, que

alterou o artigo 6°355 da Constituição, é que a moradia passou a ter proteção

expressa, cuja leitura deve estar em consonância com a previsão constante no

inciso IX356 do artigo 23 do mesmo diploma, que atribui à União, Estados, Distrito

Federal e Municípios o poder dever de desenvolver programas de construção de

moradias dentro dos padrões de habitabilidade.

No entanto, mesmo após essa emenda constitucional, a moradia ainda é

tratada como um direito de propriedade de uma casa, de um apartamento ou

domínio sobre um bem imóvel, numa visão individualista e capitalista, com o intuito

de estimular a indústria da construção civil e de associá-la ao sistema financeiro357.

Tornar unidades habitacionais como mercadorias é algo atraente e acessível no

mercado, o que, na maioria das vezes, permite que somente a classe superior seja

servida, beneficiando apenas os menos necessitados, que possuem acesso a

recursos financeiros.

A previsão de recursos orçamentários para as políticas habitacionais nem

sempre se reverte para as camadas mais pobres da população em termos de justiça

distributiva, servido apenas de fomento ao crescimento econômico, o nível de

emprego de mão de obra de baixa qualificação, as atividades de construção civil, o

comércio de insumos, sem garantir a universalização do direito à moradia ou a

redução do déficit habitacional.

Além da norma infraconstitucional citada acima, existem no Brasil outras

normas que oferecem instrumentos necessários para a promoção do direito

fundamental social à moradia e que se utilizam o acesso como instrumento, ao invés

da propriedade, como no caso do Estatuto da Cidade, instituídos pela Lei 10.257, de

10 de julho de 2001, que, ao prever o desenvolvimento de programas e projetos

habitacionais de interesse social, permite ao Poder Público contratar a concessão de

355

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 356

“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:...IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;” 357

SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 157.

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91

direito real de uso de imóveis públicos358, reconhecido como um instrumento jurídico

e político359.

Esse é um mecanismo de política pública criado pelo Decreto – Lei 271, de 28

de fevereiro de 1967, cujo objetivo principal foi a regularização fundiária de interesse

social, mas que, indiretamente, trata-se de um instrumento utilizável nos programas

habitacionais. Seu funcionamento se dá quando, por meio de um contrato, a

Administração transfere o uso do terreno público, por tempo determinado ou

indeterminado, de forma gratuita ou onerosa, para os fins previstos em lei, como

para moradia360, por exemplo, ou seja, trata-se de um instrumento que se utiliza do

acesso, e não da propriedade, para garantir a efetividade do direito à moradia.

A partir da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, apesar de depender de

autorização legislativa, a concessão de direito real de imóvel no âmbito de

programas habitacionais dispensa a licitação361. Mas, mesmo que expressamente

previsto, esse instrumento é pouco utilizado por parte da Administração Pública.

Além desse tipo de contrato, a concessão de uso especial para fins de

mordia, prevista na Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001, cuja

redação foi parcialmente alterada pela Lei 13.465/17, ao regulamentar a previsão do

§1º362 do artigo 183 da Constituição Federal, promove a regularização fundiária, ao

mesmo tempo em que serve de instrumento útil à efetividade do direito fundamental

social à moradia.

358

“Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:... § 2

o Nos casos de

programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, a concessão de direito real de uso de imóveis públicos poderá ser contratada coletivamente.” 359

“Art. 4o...V – institutos jurídicos e políticos:... g) concessão de direito real de uso;”

360 “Art. 7

o É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares remunerada ou

gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas.” 361

“Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:I - quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência, dispensada esta nos seguintes casos:... f) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública;” 362

“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.”

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De acordo essa norma, aquele que possui como sua, por cinco anos

ininterruptos e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel

público situado em área com características e finalidade urbana, cujo destino é a sua

moradia ou a de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de

moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou

concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural, conforme consta

em seu artigo 1º363.

Nos termos da previsão constitucional citada acima, esse instituto tem por

objetivo a regularização fundiária e o desenvolvimento de uma política de

desenvolvimento urbano, ao mesmo tempo em que, também de forma indireta,

garante o exercício do direito à moradia, que se dá por intermédio do acesso e não

da propriedade. Ocorre que essa medida provisória restringiu o uso deste

instrumento àqueles que exerceram a posse até 22 de dezembro de 2016. Esse

instrumento é muito próximo à usucapião especial, prevista no artigo 183 da

Constituição Federal e regulamentada pelo Estatuto da Cidade364, que, apesar de

ser instrumento que permite o exercício do direito à moradia e não tem nenhum

termo final estabelecido pela lei, tem suas bases constituídas no instituto da

propriedade e não pode ser exercida contra o Estado.

A concessão de uso especial para fins de mordia é um instrumento importante

para a garantia da efetividade do direito fundamental social à moradia, mas sofreu

restrição no seu exercício por força da própria lei infraconstitucional que a

regulamentou, em razão da limitação do tempo, por assegurar o direito à concessão

de uso especial para fins de moradia apenas àqueles que exerceram a posse até 22

de dezembro de 2016, conforme mencionado acima.

363

“Art. 1º Aquele que, até 22 de dezembro de 2016, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área com características e finalidade urbana, e que o utilize para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.” 364

“Art. 9o Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta

metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”

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93

Tanto a concessão do direito real de uso, quanto a concessão de uso especial

para fins de moradia são hipóteses de direito real de habitação criadas pela lei365 e

que colaboram com a compreensão de que o exercício do direito à moradia pode se

dar de forma autônoma e por meio do acesso, independentemente do

reconhecimento da propriedade, apesar de serem instrumentos de utilização

inexpressiva por parte do Poder Público, que tem o dever de desenvolver políticas

públicas satisfatórias e eficientes à efetividade do direito social à moradia digna, sem

perder de vista que os recursos públicos são finitos.

As Políticas Públicas atuais e a própria legislação traçam um caminho para a

efetividade do direito à moradia a partir do exercício da propriedade. Isso porque, na

Idade Moderna, a propriedade foi compreendida como um princípio organizador da

sociedade e o seu exercício simbolizava a existência e a realização humana, como

forma de repúdio ao regime vigente na Idade Média366. A propriedade privada

passou a ser uma garantia do exercício da felicidade humana, apesar dela também

ter implicado numa total exclusão do direito de qualquer outro indivíduo, ante a sua

concepção individualista, quando consolidou o conceito do que era “meu e seu”367.

Desde então, o objeto possuído passou a ser compreendido como uma

extensão da personalidade do indivíduo, como no caso da propriedade, por isso ela

passou a significar mais do que uma forma de satisfazer as necessidades,

representando uma extensão do exercício da própria liberdade e da autonomia

pessoal368, já que a liberdade era definida, em termos negativos, como um direito de

excluir os outros369.

No fim da Idade Média e início da Idade Moderna, quando a atividade de

mercância passou a se desenvolver, houve uma perfeita sintonia entre propriedade

e mercado, já que o exercício da propriedade representava o direito exclusivo de

possuir, usar e dispor no mercado370. Constata-se que o capitalismo leva cada

365

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 302. 366

RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 79. 367

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 66. 368

Ibidem, p. 105. 369

RIFKIN, Jeremy. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 130. 370

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 67.

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94

aspecto da vida humana para a área econômica, devendo ele ser negociado como

bem, como no caso da propriedade, que era tida como extensão da

personalidade371. A partir da era moderna, a propriedade privada foi a base para a

estrutura das relações humanas, do positivismo, do materialismo, da ideologia e do

progresso, ao mesmo tempo em que a ordem social era impulsionada pelo

desenvolvimento capitalista.

Ocorre que, com o novo capitalismo, a propriedade se tornou um problema, já

que, por ser muito cara, e, portanto, lenta, as pessoas deixam para trás o interesse

de serem donas dos bens, fazendo com que empresas e consumidores, ao invés de

trocar bens no mercado, passassem a valorizar o acesso, principalmente por

estarem inseridas num cenário em que tudo se torna quase que imediatamente

desatualizado, por força da velocidade com que as inovações tecnologias

começaram a ser produzidas372. Apesar de não ser extinta, a propriedade passa a

ter uma probabilidade bem menor de ser trocada no mercado, fazendo com que este

cedesse lugar às redes. Na economia de rede a propriedade começa a ser

acessada/emprestada ao invés de trocada/ adquirida, consequentemente, mais

pessoas têm acesso aos bens, impondo uma compreensão de que a propriedade

deixa de ser importante e começa a ser substituída rapidamente pelo acesso.

No âmbito jurídico, porém, num período em que se busca a efetividade dos

direitos fundamentais sociais, o ordenamento atual ainda sofre com os resquícios da

concepção da propriedade que vigorou durante a Idade Moderna, principalmente

pelo fato de que ela é a característica definidora do sistema capitalista, e por isso

ainda é muito forte, possuindo, portanto, capacidade de influenciar a ordem

jurídica373.

Este estudo permite o entendimento de que a propriedade não deve ser

compreendida como uma extensão da personalidade e que a concretização dos

direitos fundamentais sociais e o respeito à existência humana devem se dar por

intermédio do acesso, em consonância com a evolução dos conceitos e valores

aplicados às relações de mercado, inclusive, diferente do que é sustentado pelas

atuais políticas públicas habitacionais e pela própria legislação,.

371

RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 14. 372

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5. 373

RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 261.

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95

No mercado contemporâneo já vigora a compreensão de que a propriedade

pode até ser um problema, ante a velocidade com que as inovações tecnológicas

vêm ocorrendo, somada ao ritmo intenso em que as atividades econômicas tem se

desenvolvido, em que as inovações e as atualizações contínuas tornam o ciclo de

vida dos produtos cada vez mais breve, fazendo com que tudo se torne

imediatamente desatualizado374.

Diante desta concepção, inaugura-se a era do acesso, fruto de um novo

capitalismo, regido por novos pressupostos de negócio bem diferentes do mercado

tradicional, em que tudo é emprestado e acessado por um período de tempo,

mediante um controle de redes de fornecedores, o que, certamente, mudará a noção

de como o poder econômico será exercido nos próximos anos, com condições de

trazer reflexos, inclusive, para a forma de se governar, já que todo o ordenamento

jurídico e político é estruturado a partir das relações de propriedade e de mercado,

conforma já analisado anteriormente.

Se na modernidade o conceito de propriedade significou a busca pela

autonomia e mobilidade, ao mesmo tempo em que isso representou o direito de

excluir os outros375, a era do acesso reconhece a propriedade como instrumento que

permite ao indivíduo uma vida humana plena, em consonância com a inclusão e com

o acesso, de modo a permitir a busca pela autorrealização e transformação

pessoal376.

Essa nova concepção permite que o exercício da liberdade não seja pensado

em um sentido negativo, de excluir o outro, mas como medida de acesso ao outro,

por intermédio de redes e não pela propriedade, representando uma otimização da

própria vida e uma universalização do acesso377. De acordo com essa concepção, a

propriedade deve permanecer com o produtor e ser utilizada por um número maior

de pessoas, já que a liberdade consiste em relacionamentos compartilhados e não

isolados378.

374

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5. 375

Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 261. 376

Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 197. 377

Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 378

Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 175.

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96

No decorrer da história, a propriedade foi compreendida como um instrumento

garantidor da existência e da realização humana, ao simbolizar uma extensão da

personalidade, quando permitiu o pleno exercício da autonomia, da liberdade

pessoal e da felicidade humana, cujas bases estavam assentadas num

individualismo profundo, pois seu exercício implicava numa total exclusão do outro

indivíduo, em consonância com a ideia de mercado.

Com a inauguração do Estado Social, surge a preocupação em dar

efetividade aos direitos individuais e sociais, como garantia do fim da exclusão

social, impondo uma alteração nos fundamentos que deram origem às relações de

propriedade privada, no mesmo instante em que, coincidentemente, as bases do

capitalismo começaram a passar por um processo de mudança. Assim, a

propriedade passa a servir de instrumento de realização humana e de garantia do

pleno exercício da liberdade e da inclusão, de modo que o seu exercício deve se dar

de forma plena e compartilhada, conciliando os interesses das diferentes classes,

desde que atendida a sua função social379.

Se no capitalismo o mercado de troca de bens deu lugar às redes, cuja

técnica visa a captação e manutenção da atenção do maior número de

consumidores fiéis e a longo prazo, de modo que o acesso é o bem mais relevante

do que a propriedade, essa mesma técnica deve servir de instrumento para as

políticas públicas de efetivação do direito à moradia. Por intermédio do acesso, ao

invés da propriedade, o Poder Público pode garantir a efetividade do direito

fundamental social à moradia, de modo que todos os cidadãos, sem exceção,

possam exercê-lo de forma digna.

Nesse caso, a propriedade dos imóveis deve permanecer sob a exclusividade

do Estado e seria mediante a cessão de uso, usufruto, arrendamento residencial,

entre outras possibilidades, que o Poder Público asseguraria ao cidadão o acesso

ao direito fundamental social à moradia. Esse raciocínio está em consonância com

as ideias desenvolvidas por Jeremy Rifkin, cujos estudos demonstram que a

propriedade está sendo substituída rapidamente pelo acesso, apesar dela não

desaparecer. Segundo o autor, a propriedade continuará existindo, porém com uma

probabilidade bem menor de ser trocada no mercado, dando lugar ao acesso entre

379

PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo entre direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRSP, 2009, p. 56 e 58.

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servidores e clientes por intermédio de redes, pois isso ela passa a ter mais

probabilidade de ser acessada do que trocada, e isso permite que um número maior

de pessoas tenha um contato direto com os bens, satisfazendo seus desejos, já que

o custo para a sua aquisição é alto380, como é o caso, por exemplo, da terceirização

da propriedade381, muito comum nos dias de hoje.

Para a promoção do direito fundamental social (de acesso) à moradia o

Estado não financiaria a aquisição da propriedade da casa própria, como ocorre nas

atuais políticas públicas, inclusive no caso específico da Lei nº 10.188/01, que,

apesar de instituir o Programa de Arrendamento Residencial, tem fortes raízes no

instituto da propriedade, ao possibilitar a aquisição da propriedade mediante

financiamento oferecido com subsidio do governo. O Poder Público passaria a

assegurar o acesso à propriedade estatal, cabendo ao cidadão pagar um aluguel

social, por exemplo, somado ao dever de assegurar a conservação do referido bem,

ou seja, o bem deve ser acessado para garantir a efetividade do direito à moradia e,

em contra partida, ao usuário incumbe o deve pagar uma mensalidade, cujo valor

deve variar a partir de zero, a depender da condição econômica de cada família, por

meio de contratos que estabeleçam um vínculo por um período certo, exigindo uma

reavaliação de tempos em tempos, em consonância com as ideias de acesso que

surgiram com o novo capitalismo382.

Do ponto de vista financeiro, os atuais programas sociais de financiamento da

casa própria representam um grande custo para o Poder Público, que arca com a

maior parte do valor do programa, por oferecer uma isenção nos pagamentos em

caso de perda temporária de emprego por parte do beneficiário, por doar o terreno

onde é feita a construção das moradias, por garantir desoneração tributária e uma

subvenção econômica aos beneficiários, além de assegurar a quitação do contrato

de financiamento em caso de morte ou invalidez permanente do beneficiário, entre

outros benefícios, conforme consta atual na legislação que regulamenta os

programas de aquisição da casa própria. Há que se destacar, ainda, que esse tipo

de programa é criado de tempos em tempos, de modo a dar oportunidade ao Estado

380

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 3-4. 381

Ibidem, p. 39. 382

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 34.

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constituir novos fundos de recurso, uma vez que são finitos, não sendo capaz,

portanto, de beneficiar uma parcela considerável da população. Some-se a isso o

fato de que os auaís programas de acesso à moradia têm suas bases calcadas na

propriedade e esta é uma instituição muito lenta e cara, por se basear na ideia de

que possuir um ativo é valioso, tornando-se um problema383.

Também convém destacar que os programas sociais de financiamento da

casa própria representam uma forma de as famílias constituírem patrimônio para si e

suas gerações futuras. Havendo a morte de um dos mutuantes, além do

financiamento ser automaticamente quitado, em cumprimento ao contrato de seguro

constituído previamente, o bem passa a ser objeto de inventário e partilha em

benefício dos herdeiros, que poderão disponibilizá-lo da forma como convir,

representando, por isso, uma oportunidade de lucro para as gerações futuras.

As atuais políticas públicas são desenvolvidas a partir da propriedade, de

modo a garantir a aquisição da casa própria, permitindo, indiretamente, a efetivação

do direito fundamental social à moradia a uma parcela da população, ao mesmo

tempo em que representa um custo para o Estado.

Em consonância com a concepção positiva, cabe ao Estado garantir o acesso

ao direito fundamental social à moradia, porém não se pode perder de vista que os

recursos financeiros são limitados. Esses argumentos deixam claro que as atuais

políticas públicas de efetividade dos direitos fundamentais sociais não são capazes

de garantir a toda população o acesso à moradia.

Caso os programas sociais voltados à efetividade do direito à moradia se

dessem por intermédio do acesso, com os mesmos recursos, o Estado seria capaz

de adquirir os imóveis para si, devendo ceder apenas o exercício da posse àqueles

que não têm condições de adquirir a casa própria, e não ficar investido recursos

públicos na compra, cessão ou doação de imóveis à população a custos módicos,

ou senão zero.

A busca pela auto realização e a transformação pessoal é algo muito presente

na era do acesso e a propriedade deve servir de instrumento para o exercício da

383

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5.

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vida humana plena384, que se dará por intermédio de redes, representando uma

otimização da própria vida385. Assim, a propriedade deve permanecer com o

produtor, mas ser utilizada por uma ou mais pessoas386.

Este estudo permite compreender que a garantia de acesso à moradia por

intermédio dos imóveis de propriedade exclusiva do Estado deve se dar em

atendimento às necessidades do beneficiário, cujo uso, porém, deve ser temporário

e não perpétuo. O cidadão deve estar autorizado a morar no imóvel público por um

período certo de tempo, mediante um contrato, por exemplo, desde que atendidos

os requisitos preestabelecidos no programa a ser elaborado pelo Poder Público, com

a possibilidade, inclusive, de haver uma renovação, após uma reavaliação daqueles

requisitos a que todos os beneficiários estarão submetidos.

Além dos atuais necessitados, esse programa também poderia atender as

famílias futuras, após uma prévia avaliação, em obediência aos mesmos requisitos,

já que ele não representaria um direito adquirido dos cidadãos que já fazem uso do

benefício, muito menos das suas futuras gerações, por se tratar de uso temporário

de bem público. Em contrapartida, caberia ao beneficiário do programa pagar um

aluguel, mesmo que mediante um valor simbólico.

Esse estudo é capaz de oferecer alternativas ao Poder Público, a fim de que

este possa criar programas capazes de garantir aos cidadãos o acesso à moradia

mediante uma cessão do exercício da posse sobre os imóveis, que devem pertencer

sob a propriedade exclusiva do Estado.

Os atuais programas do governo garantem aos cidadãos a aquisição da casa

própria a custos módicos, já que a maior parte do preço da conta é paga pelo

Estado. No intuito de oferecer um contributo ao Poder Público, que tem o dever de

desenvolver uma política pública capaz de garantir a efetividade do direito

fundamental social à moradia, o Estado não deve mais financiar a aquisição da casa

própria. As Políticas Públicas baseadas no acesso representariam um gasto

consciente dos recursos públicos, que também passariam a ser direcionados para a

garantia de uma infraestrutura de qualidade, mediante a prestação dos serviços de

384

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 197. 385

Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 386

Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 175.

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saneamento básico, coleta de lixo, fornecimentos de água, transporte, construção de

hospitais e escolas, entre outros, já que esses bens guardam uma intima relação

com o direito social à moradia, considerando que os recursos públicos são finitos e o

Estado tem o dever constitucional de assegurar a efetividade dos direitos

fundamentais sociais.

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101

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito social à moradia, expressamente consagrado pela ordem jurídica

constitucional brasileira, possui em seu significado a natureza de direito

fundamental, já que está entre os bens que compõem o mínimo existencial, por isso,

é reconhecido como um suporte para a concretização da dignidade da pessoa

humana.

Trata-se de um direito imprescindível à proteção e à satisfação das

necessidades existenciais básicas do ser humano, sem o qual não haverá uma vida

digna, ou seja, existe uma íntima conexão entre a dignidade da pessoa humana e o

direito social à moradia, tendo em vista que este direito carrega consigo o significado

da existência de padrões mínimos necessários a uma vida saudável, ante a

necessidade da preservação da intimidade, da privacidade, da saúde, do sossego,

do bem estar, entre outros, não significando apenas o exercício do direito a um teto.

É um direito extrapatrimonial, por possuir relação de interdependência com

outros bens, como a vida, a saúde, a integridade física e moral, a intimidade, a

liberdade, entre outros. Por isso o direito à moradia é capaz de assegurar o respeito

à integridade física, psíquica e moral da pessoa. Ele está entre os bens que

compõem a personalidade humana, entendida como um complexo de características

interiores e, por isso, inerente a cada ser humano. Ou seja, trata-se de um direito

subjetivo público, capaz de permitir ao seu titular o reconhecimento da sua plena

exigência em face do Poder Público, tanto na sua função de defesa, quanto na

função prestacional, de acordo com a sua dupla concepção.

Desse modo, não há como negar a eficácia imediata do direito fundamental

social à moradia, em consonância com a previsão do §1º do artigo 5º da

Constituição Federal, sob pena de se esvaziar a fundamentalidade desse direito,

apesar de a ausência de recursos financeiros interferir na plena concretização desse

direito. A solução desse impasse deve se dar a partir do princípio da dignidade da

pessoa humana, que, ao estabelecer padrões mínimos a serem garantidos aos

cidadãos, em consonância com a teoria do mínimo existencial, impõe o respeito e a

plena efetividade dos direitos fundamentais, entre os quais, o direto à moradia, não

devendo este ser tratado como uma norma programática, como acreditam alguns.

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Mas não há como resolver o problema da efetividade do direito à moradia

pela lógica do tudo ou nada, já que, além da limitação de recursos financeiros, os

direitos fundamentais não possuem um núcleo fechado de posições, necessitando

de uma contextualização, a luz da necessidade de cada pessoa. Esse argumento,

porém, não legitima a omissão do Estado, que, ao justificar a sua inércia com base

no princípio da reserva do possível, garante a inefetividade do direito fundamental

social à moradia.

Sob os olhos do princípio da dignidade da pessoa humana, incumbe ao

Estado desenvolver políticas públicas satisfatórias, de modo a assegurar a

efetividade do direito fundamental social à moradia, inclusive em razão da natureza

prestacional deste direito, em que são coordenados os meios à disposição do

Estado para a realização dos objetivos sociais. Ocorre, porém, que, atualmente, a

maioria dos programas do governo se baseia na propriedade como instrumento para

a efetividade do direito fundamental social à moradia.

A propriedade recebeu tratamento de acordo com as circunstâncias sócio-

econômicas de cada época, cujo conceito refletiu os valores e autonomias

consolidados no decorrer da história, principalmente pelo fato de que as condições

econômicas e políticas serviram como fatores determinantes à origem e ao

desenvolvimento desse instituto.

Se no período feudal a terra serviu de elemento de relação pessoal entre o

senhor feudal e seus vassalos, permitindo explicar a legitimidade de mais de um

proprietário sobre a mesma coisa, com a evolução da produção, intensificação das

relações de troca e desenvolvimento do mercado, as propriedades passaram a

servir aos plenos poderes do proprietário, a partir de uma visão individualista, num

período em que os homens são descobertos como indivíduos livres e iguais. Em

consonância com o desenvolvimento econômico e o capitalismo, a propriedade

representava um elemento de realização humana, já que por meio dela o indivíduo

podia exercer sua liberdade e autonomia, significando um poder do sujeito sobre o

bem.

Com a inauguração do Estado Social, inspirada na conveniência e na

circunstância sócio-econômica, a propriedade passa a ter uma função social, em

consonância com os ditames do principio da dignidade da pessoa humana, em

comunhão com a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações

privadas, cujos fundamentos alteraram alguns aspectos relacionados ao uso da

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propriedade, que agora também deve ser exercida em favor dos desprivilegiados e

dos não proprietários, de modo a reduzir as desigualdades e permitir que todos

tenham acesso.

A evolução do capitalismo também contribuiu para a modificação do

tratamento dado à propriedade, por se tratar de um instituto de grande relevância

para o capitalismo. Por essa razão, no novo capitalismo a propriedade deixou de ser

o bem mais importante, uma vez que as relações de empréstimo de bens por um

período certo de tempo passou a ser mais interessante, do que trocá-los no

mercado. Trata-se de uma estratégia decorrente da percepção de que a propriedade

é um instituto muito caro e, portanto, lento, principalmente em razão do acelerado

ritmo das grandes inovações tecnologias, as quais tornam os bens imediatamente

desatualizados.

Instaurou-se uma economia de redes, onde é possível assegurar que um

número maior de usuários tenha acesso aos bens, totalmente condizente com a

nova era, em que a busca pela autorrealização e a transformação pessoal é uma

constante. Por isso, a propriedade deve estar à disposição do cidadão, ao mesmo

tempo em que a liberdade não deve ser pensada de modo a excluir o outro, por isso

o exercício da propriedade passa a ocorrer num relacionamento compartilhado,

aliás, em consonância com a função social que lhe foi imposta.

E é seguindo essa evolução de conceitos, em consonância com o respeito

aos direitos fundamentais, que as políticas públicas devem ser desenvolvidas, de

modo a assegurar a plena efetividade do direito fundamental social à moradia.

Reconhecidas como instrumento a disposição do Estado, que tem de garantir o

cumprimento do seu dever prestacional, em consonância com o direito ao

desenvolvimento, as políticas públicas devem ser implementadas sem que se perca

de vista os fatores econômicos, já que os recursos públicos são finitos. Por esse

motivo, a atuação do Poder Público deve se dar de forma planejada, sem que isso

represente uma negativa à efetividade do direito fundamental social à moradia, o

qual não deve estar condicionado ao princípio da reserva do possível.

Baseado na ideia de acesso, este trabalho propôs o desenvolvimento de

políticas públicas alternativas de efetividade do direito fundamental social (de

acesso) à moradia, que não devem estar fundamentadas pura e exclusivamente na

propriedade, tida como cara e lenta, inclusive com o repúdio ao argumento de que a

ausência de recursos públicos justifica a inércia do Estado.

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104

A realidade brasileira demonstra que grande parcela da população,

principalmente aquela que se encontra em condições de miserabilidade, vivencia

uma exclusão social cada vez mais intensa, e, consequentemente, não tem acesso

à moradia, ao mesmo tempo em que o Estado permanece inerte ou tentando

justificar a sua omissão, fato que desperta a necessidade deste estudo

A moradia ainda é muitas vezes tratada como um direito à propriedade de

uma casa ou de um apartamento, ou o domínio sobre um bem imóvel, numa visão

individualista e capitalista. E esse significado, associado ao sistema financeiro, está

presente nas atuais políticas públicas, as quais são desenvolvidas no intuito de, na

maioria das vezes, estimular a indústria da construção civil, de modo a identificar as

unidades habitacionais como mercadorias, já que é um negócio atraente e acessível

no regime de mercado, ao invés de garantir a efetividade da moradia digna como

objetivo principal.

As políticas públicas atuais têm servido mais para fomentar o crescimento

econômico, o nível de emprego de mão de obra de baixa qualificação, as atividades

de construção civil, o comércio de insumos, do que garantir a universalização do

direito à moradia ou a redução do déficit habitacional. Por arcar com a maior parte

do preço e pelo fato de a moradia ser compreendida como sinônimo de propriedade,

os atuais programas sociais de financiamento da casa própria representam um

grande custo para o Poder Público, fato que impede que um número maior de

pessoas exerça seu direito fundamental social à moradia.

A era do acesso reconhece a propriedade como instrumento que permite ao

indivíduo uma vida humana plena, em consonância com a inclusão e com o acesso,

já que viabiliza a busca pela autorrealização e transformação pessoal, cujos

fundamentos comungam as ideias do Estado Social, o qual destaca a preocupação

em dar efetividade aos direitos individuais e sociais, de modo a garantir o fim da

exclusão social, sem que se perca de vista que os recursos públicos são finitos.

A concretização do direito fundamental social à moradia pode se dar por meio

do acesso, por isso, pretende-se com este estudo oferecer um contributo para as

atuais políticas públicas habitacionais, de modo a disponibilizar uma alternativa ao

Poder Público, que deve desenvolver políticas públicas satisfatórias à efetividade do

direito à moradia digna.

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