da engenharia ao direito: seus distintos caminhos entre a ciência e a arte

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1 UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE DIREITO – NITERÓI CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO SDB – ANTROPOLOGIA DO DIREITO TRABALHO FINAL DA DISCIPLINA Da Engenharia ao Direito: Seus Distintos Caminhos entre a Ciência e a Arte Jimes Vasco Milanez Professor: Roberto Kant de Lima Niterói Dezembro de 2011

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Page 1: Da Engenharia ao Direito: Seus Distintos Caminhos entre a Ciência e a Arte

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UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO – NITERÓI

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

SDB – ANTROPOLOGIA DO DIREITO

TRABALHO FINAL DA DISCIPLINA

Da Engenharia ao Direito:

Seus Distintos Caminhos

entre a Ciência e a Arte

Jimes Vasco Milanez

Professor: Roberto Kant de Lima

Niterói

Dezembro de 2011

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SUMÁRIO

1. Introdução 3

2. Um Curso de Engenharia 5

3. Um Curso de Direito 8

4. Contrastes e Conclusões 10

5. Bibliografia 11

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1. Introdução

Em 2010, após quatro anos de formado como Engenheiro Eletricista pela Universidade

Estadual de Campinas, Unicamp, decidi prestar novo vestibular, para o curso de Direito, na

Universidade Federal Fluminense, UFF. Trabalhava à época no Rio de Janeiro e no exercício de

minha profissão sentia-me alheio às grandes questões de nosso país, aos problemas sociais,

econômicos, políticos; era um mero observador aflito dos conflitos de interesses entre as forças

dominantes resultando quase sempre em prejuízo para as massas. Diante de um sentimento de

impotência e de baixa eficácia de ações pontuais, via no Direito um caminho para chegar mais

próximo às demandas mais urgentes da sociedade, através de um ideal de promoção de justiça.

O lento despertar a partir do profundo sono do senso comum, que dá a todos a ilusão de

compreensão da realidade complexa externa à sua própria especialidade, acelerara-se com o

interesse pelo exercício de cidadania mais efetiva, de maior busca pela informação e participação

nas questões de ordem pública, entrando em rota de colisão com as verdades midiáticas

conformadoras que mantinham meus colegas de profissão em um mundo que já não era mais o meu.

A queda de muitas reificações acerca de fatos sociais, vistos antes como “naturais”, causando ainda

uma releitura da atuação de variadas instituições, como governo, empresas, imprensa e justiça,

causou-me um desencanto, uma sensação de vazio por julgar falsa minha compreensão prévia. O

Direito desempenharia assim uma segunda função: oferecer-me uma nova visão de mundo.

Com as disciplinas introdutórias do novo curso, que promovem uma discussão crítica do

Direito, pude tomar contato com os dilemas internos ao campo, como as dicotomias em sua

finalidade entre a segurança e a justiça, suas discrepâncias entre o Dever Ser e o Ser, os limites do

acesso à justiça, sua aplicação dogmática de normas contraditórias ou mantenedoras do status quo,

seu aprendizado manualizado e orientado aos argumentos de autoridade, que derrubaram algumas

ilusões de leigo. A visão zetética oferecida pelas ciências sociais responde em parte à minha sede de

compreensão, mas ao mesmo tempo apresenta-me os limites daquela pretensão transformadora pelo

Direito, ao relatar o descasamento entre a prática jurídica e sua “ciência” teórica, doutrinária. Qual

justiça afinal se almeja? Quais os limites culturais que impedem sua concretização?

Por ocasião da presente disciplina de Antropologia do Direito, sobretudo a partir dos textos

motivadores de Bárbara Lupetti (2010) e Roberto Kant de Lima (1997), sobre a pesquisa empírica

no Direito e a Antropologia da própria academia, respectivamente, surgiu-me a ideia de relacionar a

experiência atual na área do Direito com aquela prévia na Engenharia. Ambas em tese transitam

entre a ciência e a arte, entre o conhecimento da realidade e a pretensão de moldá-la, porém com

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diferentes visões acerca de seu relacionamento com outros sistemas de conhecimento, seus

diferentes pontos de partida. Assim, no contexto da disciplina, também são relevantes aqui as

colaborações teóricas aportadas pelos textos de Thomas Kuhn (1979), sobre a função do dogma na

investigação científica, e Clifford Geertz (2002), com as discussões sobre a necessidade de um ir e

vir hermenêutico entre Antropologia e Direito, restabelecendo a conexão entre fatos e leis.

Da mesma forma que o fez Roberto Kant de Lima (1997), também cabe aqui questionar as

pretensões generalizantes do relato do outro lado, uma vez que se trata de uma das experiências

possíveis de como é feito um engenheiro no Brasil. No entanto, frente aos amplos contatos, durante

meu exercício profissional, com outros engenheiros recém-formados em diferentes instituições

brasileiras, em que pude identificar mais semelhanças que diferenças, creio que minha formação,

em uma instituição reputada como uma das melhores do país, a Universidade Estadual de

Campinas, seja representativa da espécie acadêmica. Há de se ressaltar a possibilidade de

interferências externas entre as culturas locais, das cidades e das instituições, na comparação entre

as experiências na Engenharia e no Direito; para a unidade de análise escolhida, estas porém devem

permanecer restritas a uma modulação dos detalhes, não afetando o cerne do estudo.

Nestas breves linhas não há nenhuma pretensão de esgotar as possibilidades do assunto,

extremamente extenso e com diversas unidades de análise possíveis, mas apenas de apresentar um

breve relato de contrastes experimentados entre dois campos, com possível proveito para a

Antropologia do Direito. O foco está sobretudo na vivência interdisciplinar dos respectivos cursos

aplicados e seu diálogo com as ciências subjacentes, partindo de um olhar crítico sobre a

Engenharia para uma melhor compreensão também do campo jurídico, em cujo meio se desenvolve

o presente estudo. Além disso, trata-se de uma tentativa de compreender e “exorcizar” a experiência

prévia, vivenciada antes de qualquer conhecimento antropológico, de forma reificada, a partir da

nova fase de busca de autoconhecimento.

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2. Um Curso de Engenharia

O curso em questão é o de Engenharia Elétrica, da Faculdade de Engenharia Elétrica e

Computação da Unicamp, cumprido entre os anos de 2001 e 2006. A Unicamp é uma universidade

com vários campi, no entanto seu principal e maior campus se situa no distrito de Barão Geraldo, na

cidade de Campinas, congregando a maioria esmagadora de cursos, nas áreas de ciências naturais,

humanas, tecnologias e saúde; curiosamente um dos cursos que não possui é o de Direito, entre

outros de ciências humanas aplicadas também ausentes. Por outro lado, as escolas de Engenharia

representam grande parte dos alunos de graduação e pós-graduação, subdivididos nas áreas de

Elétrica, Computação, Mecânica, Mecatrônica, Civil, Química e Alimentos.

Seu currículo de Engenharia Elétrica consiste inicialmente de uma série de disciplinas

propedêuticas, sobretudo abordando Cálculo e Física básica, ou seja, o ferramental matemático que

funciona como a linguagem das ciências exatas e o conteúdo científico consolidado sobre o qual é

erguido o conhecimento aplicado da própria especialidade. São acompanhadas por disciplinas

teóricas gerais já adaptadas aos interesses da engenharia (circuitos elétricos, circuitos lógicos, teoria

eletromagnética, modelagem de sistemas dinâmicos, teoria de controle, estrutura dos materiais,

etc.), seguidas finalmente por disciplinas aplicadas das suas diversas especialidades (máquinas

elétricas, sistemas de energia, eletrônica, comunicações, etc.), além de laboratórios que visam

tipicamente a comprovação empírica e a aplicação prática dos conhecimentos obtidos.

Complementarmente, são estudadas matérias introdutórias sobre outras engenharias,

sobretudo computação e mecânica, que visam facilitar as futuras interações inevitáveis com

profissionais dessas áreas, além de outras disciplinas de finalidade apenas instrumental, como

noções de Economia, Contabilidade, Direito e Meio-Ambiente, tipicamente com o rótulo “para

engenharia”. No entanto não há, em geral, uma abordagem crítica à profissão e sua função social,

nem ao próprio curso, cuja organização é vista pelos estudantes como “natural”, sem maiores

reflexões que não sejam aquelas que o confronte com as “demandas do mercado”. Seu papel é

reificado dentro de uma ordem socio-econômica que parece superior, com o triunfo da evolução

tecnológica a moldar a sociedade, não esta àquela. Este no entanto não é o foco do presente

trabalho, de modo que retornamos a seguir às relações entre a engenharia e as ciências subjacentes

(sobretudo a física), como se dá seu aprendizado e sua aplicação.

Nos termos ilustrativos colocados por um professor meu no preâmbulo de sua “apostila”, a

disciplina em questão (sistemas de computação digital, salvo engano, porém o mesmo conceito é

válido para outras disciplinas do curso, não apenas as aplicadas) visava fornecer respostas prontas

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para perguntas que os estudantes jamais formularam. Uma bela e sucinta definição para um ensino

dogmático, em que alunos de perfil “zetético” são vistos como um incômodo, por questionar a

origem de fórmulas, de teorias, de métodos e soluções de problemas já resolvidos por antecessores,

em que o olhar deve se dirigir para a frente, para a inovação, não para o passado. Em outras

palavras, como também colocado por Kuhn (1979):

“Exceto nas introduções ocasionais, que os estudantes raramente leem, os leigos não fazem grande esforço para descrever o tipo de problemas que o profissional será chamado a resolver ou discutir, a diversidade de técnicas que a experiência pôs à disposição para a sua resolução. Pelo contrário, esses livros apresentam, desde o começo, soluções concretas de problemas que a profissão aceita como paradigmas, e então pede-se aos estudantes, quer usando um lápis e papel quer servindo-se dum laboratório, que resolvam por si mesmo problemas modelados à semelhança, na substância e no método, dos que o livro lhes deu a conhecer. […] Embora o desenvolvimento científico seja particularmente produtivo em novidades que se sucedem, a educação científica continua a ser uma iniciação relativamente dogmática a uma tradição preestabelecida de resolver problemas, para a qual o estudante não é convidado e não está preparado para apreciar.” (KUHN, 1979)

Apesar do ensino fortemente dogmático, com uso onipresente de manuais, não se atribui ao

conhecimento assim adquirido uma validade autônoma, com base em meros argumentos de

autoridade; sua fonte, mesmo se tácita, em leis identificadas por ciências naturais exatas é tomada

como argumento racional para aceitar sua validade interna, pois se presume que em cada etapa

desde os primórdios até o estado presente tenha sido observado um rigor científico. A mesma lógica

de aquisição de conhecimento é extrapolada para a aceitação do desenvolvimento pretérito de

tecnologias básicas, já testadas e funcionais, cujas demonstração teórica e discussão exaustivas e

minuciosas são vistas como desnecessárias para os propósitos profissionais especializados.

Ao reconhecer uma das vantagens do dogmatismo científico, Kuhn afirma ainda que “a

natureza é demasiado complexa para ser explorada ao acaso mesmo de maneira aproximada. Tem

que existir algo que diga ao cientista onde procurar e por que procurar”. Tal raciocínio é

exemplificado cabalmente na célebre frase de Isaac Newton, em carta a Robert Hooke: “Se vi mais

longe foi porque me apoiei sobre o ombro de gigantes”. A despeito de periódicas revoluções e

substituições de paradigma na ciência, o trabalho usual é construir sobre o que já está feito. Na

técnica o mesmo pode ser dito entre invenções e inovações; o leigo tende a admirar sobretudo as

invenções revolucionárias, enquanto a maior parte da engenharia se desenvolve evolutivamente, não

sem idas e vindas, com experimentações, ramificações, sucessos e fracassos.

Não há assim qualquer cisão entre a Engenharia e a Física como campos antagônicos de

conhecimento: se a engenharia não respeitar as leis da física, suas criações não possuirão sequer

existência, à parte de possíveis simulações e ficções. As criações artificiais da engenharia são

sempre referenciadas em leis naturais, que são “canalizadas” para produzir os efeitos desejados pelo

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homem. O Dever Ser não ignora os limites impostos pelo Ser, a arte de sua técnica é o

prolongamento da ciência para atender a desígnios com origem em questões econômicas ou sociais.

Não há liberdade criativa absoluta pois não há descasamento entre forma e conteúdo; não se briga

com os fatos, aperfeiçoa-se a teoria e as técnicas quando insuficientes.

“Leis do dever ser” estabelecidas a priori e fora da engenharia precisam assim ser sempre

enquadradas por leis naturais mínimas que lhes deem sustentação, ou seja, implementadas na

medida do possível, a partir da substância dada pela realidade conhecida; a artificialidade requer a

observância de certas regras de factibilidade. Não confundir no entanto a prática da engenharia com

o marketing feito em torno da tecnologia, este sim tendente a borrar as fronteiras entre o Dever Ser

e o Ser, entre o desejado e o factual. Também não significa que as criações tecnológicas não

produzam interações com outros sistemas ignorados pela modelagem de engenharia, causando

efeitos colaterais sob a ótica de outras leis naturais e humanas, sobretudo quando há distanciamento

excessivo ou abrupto em relação a um curso espontâneo.

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3. Um Curso de Direito

A faculdade de Direito iniciada em 2010 na UFF apresenta em sua grade curricular uma

grande carga de disciplinas introdutórias externas ao direito propriamente dito, se tomado em seu

sentido tradicional positivista, formal: Sociologia, Antropologia, Economia, Filosofia, História,

Teoria Política, além de outros conteúdos abordados indiretamente. A essas seguem-se disciplinas

básicas, que visam fornecer ao estudante os fundamentos teóricos das diversas ramificações, seus

jargões, institutos e doutrinas majoritárias, e enfim as disciplinas positivas, dogmáticas, que

abordam as leis postas e a jurisprudência, nas variadas matérias reguladas pelo Direito, com a

exigência ainda de um período de prática jurídica e a elaboração de uma monografia para a

conclusão do curso. Nem sempre essa divisão ocorre de tal forma nítida, porém para fins didáticos e

analíticos esta parece ser suficientemente adequada.

O grande espaço oferecido atualmente a disciplinas de ciências humanas já representa uma

nova etapa dos cursos de Direito, que passaram por um processo de abertura ao longo das duas

últimas décadas, com o reconhecimento progressivo do valor das disciplinas críticas, do estudo de

ciências sociais como essencial para a compreensão do fenômeno jurídico. Como colocado por

Bárbara Lupetti (2010), “embora o Direito seja um campo demasiado hermético, a

interdisciplinaridade na pesquisa jurídica vem ganhando espaço”. Da mesma forma, a relevância

crescente de métodos e técnicas empíricos buscam fechar o circuito entre aquele Direito autônomo,

teórico e “manualesco” com a realidade vivenciada no campo:

“Para mim, explicitar as representações práticas dos institutos jurídicos é a melhor forma de compreendê-los, e a Antropologia possibilita isso: analisar, empiricamente, os institutos jurídicos e, com isso, entender suas distintas categorizações para, então, se for o caso, conhecendo-os, transformá-los.” (LUPETTI, 2010)

Tomando o exemplo dado, no entanto, historicamente os contatos entre as áreas, quando

existiam (e apenas no campo), eram restritos a questões pontuais, como colocado por Clifford

Geertz (2002), acerca de relações entre Direito e Antropologia sem maior organicidade:

“A interação de duas profissões tão orientadas para a prática, tão profundamente limitadas a universos específicos e tão fortemente dependentes de técnicas especiais, teve como resultado mais ambivalência e hesitação que acomodação e síntese. E, ao invés de termos uma penetração da sensibilidade jurídica na antropologia, ou da sensibilidade etnográfica no direito, o que vemos é um conjunto limitado de debates estáticos.” (GEERTZ, 2002)

Apesar dos avanços constatados em muitas faculdades, ainda não é assim em todos os cursos

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de Direito, uma vez que muitos continuam presos ao paradigma do saber exclusivamente

dogmático, fundado na inegabilidade dos pontos de partida, na autoridade da lei válida, sem

qualquer compromisso com a realidade social em que se materializa, com sua dimensão empírica.

Assim como na Engenharia, também o aprendizado do Direito se efetua em grande parte via

manuais doutrinários, edificando-se sobre versões consagradas, mas aqui baseadas em argumentos

de autoridade, não sobre conhecimento empírico consolidado como lá.

“O Direito se reproduz através de “doutrinas”, que constituem o pensamento de pessoas autorizadas a trabalhar academicamente determinados assuntos. O saber jurídico não é científico, é dogmático. […] No Direito, o conhecimento advém da interpretação das leis, e as pessoas autorizadas a interpretar as leis são os próprios juristas.” (LUPETTI, 2010)

Uma exegese doutrinária, autorreferenciada, que pasteuriza os fatos sociais com base em

representações ideais, mapeando a realidade complexa em um sistema de verdades jurídicas dado

pelas normas postas, provoca um descolamento do Direito em relação às nuances culturais

mapeadas pelas ciências humanas, sobretudo diante de uma vida social cada vez mais complexa:

“A simplificação dos fatos, a sua redução às capacidades genéricas dos guardiães da lei, é, por si mesmo, um processo inevitável e necessário. O exagero desta simplificação, no entanto, torna os fatos cada vez mais tênues à medida em que crescem a complexidade empírica e o temor a esta complexidade.” (GEERTZ, 2002)

No campo as mudanças também se processam lentamente, com discrepâncias históricas

entre o discurso e a prática, esta conhecida apenas pelos iniciados, ou não, por conta de uma atuação

inconsciente, naturalizada, que não era reinserida no meio acadêmico. Como percebido também no

curso, a crítica acadêmica ainda onipresente à experiência meramente dogmática do Direito ressalta

que esta ainda está longe de ser uma página virada:

“Como estudante do Direito e, ao mesmo tempo, como advogada – ou seja, operadora efetiva no campo – eu estranhava muito a discrepância abissal verificada entre o discurso dogmático e a realidade empírica. […] Entendi que o Direito visa o “dever-ser” e, nesse sentido, se concebe como um ideal que não tem ou não precisa ter qualquer compromisso com a realidade.” (LUPETTI, 2010)

Em vez disso, o Dever Ser tomado como diretriz do mundo jurídico (estipulado fora do

próprio Direito, na Política), deveria ser compreendido sempre a partir dos limites factuais do Ser,

da realidade em que se insere, pois esta é que acaba por dar a forma final do Direito, aplicado:

“Nas ciências sociais, a realidade não se sujeita a coisa alguma. A realidade fala; a realidade se apresenta; e cabe ao pesquisador, apenas, explicitá-la.” (LUPETTI, 2010)

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4. Contrastes e Conclusões

Causa algum estranhamento a quem vem da Engenharia a pretensão de “pureza” e

autorreferência do Direito, como um sistema autônomo e independente, fundado em marcos

teóricos ideais, o que é desmistificado pelos estudos críticos empíricos, como no texto de Lupetti.

Arriscaria a dizer, com base no exposto no presente trabalho, que Direito sem Ciências Sociais seria

algo como Engenharia sem Física, uma técnica descompromissada com seus resultados.

Nesta investigação das relações entre Engenharia e Ciências que possa auxiliar a

compreensão do meio jurídico, cabe um apontamento principal de que no Direito, por analogia, as

leis do Dever Ser emanadas da política precisam ser observadas através do prisma das “leis

factuais” identificadas pelas ciências humanas, para alcance do produto final, a prática do Direito

como aplicação justa da lei ao caso concreto. Ou seja, não apenas através de uma doutrina

redundante acerca do Dever Ser, de wishful thinking, mas sua contextualização frente aos

fenômenos sociais para aferição de sua factibilidade e eficácia. Sobretudo, a ascensão dos princípios

como mandamentos de otimização jurídicos, com difícil fundamentação meramente dogmática,

requer do operador do Direito que encare a realidade, os fatos, para delimitar seu sentido e alcance.

Na Engenharia, a tentativa de se mapear ideais desejáveis, mas não científicos, diretamente

em resultados levou a buscas infrutíferas, fisicamente inviáveis, como a da construção de moto-

perpétuos, capazes de gerar energia para sempre por si só, ou de máquinas térmicas com eficiência

de 100%, máquinas “ideais” que só são viáveis na imaginação. Uma história semelhante se deu com

a Alquimia, que antes do domínio da Química se lançara à busca de uma Pedra Filosofal ou de um

Elixir da Longa Vida, saltando diretamente da pretensão à implementação, sem respaldo do real.

Como a ficção científica ilustra, este é o campo da arte pura, inexequível, não da técnica, ao menos

enquanto o substrato cognitivo ainda não está desenvolvido em grau suficiente.

Do estudo crítico do Direito passei a entender melhor o funcionamento da própria

Engenharia; desta, relida, é possível uma nova compreensão sobre os caminhos para o Direito,

transitando no limiar entre a ciência e a arte, entre a realidade como ela é e como o homem quer que

seja. Retomando a questão fundamental que me trouxe da Engenharia até o Direito, relatada na

introdução, identifico-me muito com a seguinte conclusão de Bárbara Lupetti:

“Enfim, reputo importante descrever que viver entre o Direito e a Antropologia, dois campos aparentemente antagônicos, mas, de fato, complementares, aguçou a minha sensibilidade para os problemas teóricos que limitam o sistema jurídico a exercer, na prática, a sua função: dar às pessoas a solução “justa” que elas buscam para seus problemas.” (LUPETTI, 2010)

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5. Bibliografia

GEERTZ, Clifford. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: GEERTZ,

Clifford. O saber local. 5a edição. Petrópolis: Vozes, 2002.

KANT DE LIMA, Roberto. A antropologia da academia: quando os índios somos nós. Niterói:

Eduff, 1997.

KUHN, Thomas. A função do dogma na investigação científica. In: DEUS, Jorge Dias de

(Org.). A crítica da ciência. 2a edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

LUPETTI, Bárbara. A pesquisa empírica no Direito: obstáculos e contribuições. In: KANT DE

LIMA et al. Conflitos, direitos e moralidades em perspectiva comparada. Volume II. Rio de

Janeiro: Garamond, 2010.