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DA BEIRA DO RIO PARA A BEIRA DA ESTRADA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL DO CAMPESINATO NA AMAZÔNIA ORIENTAL Rafael Benevides de Sousa Universidade Federal Fluminense - UFF Jacob Binsztok Universidade Federal Fluminense - UFF Resumo O trabalho tem como objetivo investigar a transição do sistema fluvial para o rodoviário, e suas implicações ao campesinato na Amazônica Oriental. No texto busca-se compreender o campesinato nesta parte da Amazônia, apresentando um histórico da passagem do sistema rio- várzea-floresta para o estrada-terra-firme-subsolo. Por último, elaboramos algumas considerações sobre o campesinato contemporâneo no interior da fronteira amazônica. Palavras-chave: Amazônia. Campesinato. Rio-estrada. Introdução O espaço amazônico tem atravessado desde o século XVII por diversos ciclos econômicos que tem culminado em rearranjos socioespaciais distintos. Desde a chegada dos portugueses, passando pelas medidas politicas do Marquês de Pombal, o período áureo da borracha até as transformações decorrentes a partir da década de 1950, a Amazônia se tornou uma lugar de características diversas, não apenas biológicas, mas, sobretudo humana e de interesses políticos, sociais e econômicos. Nas últimas décadas a Amazônia tem sido alvo de investidas do capital cada vez mais forte, seja a partir das construções de estradas, seja na edificação de hidrelétricas, seja em qualquer outro projeto de ordem politico e econômico. Isto tem gerado consequências negativas a toda diversidade biológica, cultural e social da região, que é traduzida no embate entre um modo de vida tradicional e outro proporcionado pelo capitalismo cada vez mais selvagem. Neste sentido, o objetivo desse ensaio é tecer uma breve discussão acerca da transição do sistema fluvial para o sistema terrestre, e as transformações socioespaciais do campesinato no cenário da Amazônia Oriental. Entende-se que é quando ocorre essa passagem do rio para a estrada que a pressão sobre a floresta se intensifica, constituindo os latifúndios, e gerando uma classe camponesa empobrecida, envolvida nas diferentes formas de permanência e luta pela posse da terra. Para esta compreensão buscou-se referencias que possibilite maior entendimento sobre este processo na Amazônia e sobre as interfaces do campesinato contemporâneo. Entre

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DA BEIRA DO RIO PARA A BEIRA DA ESTRADA:

MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL DO CAMPESINATO NA AMAZÔNIA ORIENTAL

Rafael Benevides de Sousa

Universidade Federal Fluminense - UFF

Jacob Binsztok Universidade Federal Fluminense - UFF

Resumo O trabalho tem como objetivo investigar a transição do sistema fluvial para o rodoviário, e suas implicações ao campesinato na Amazônica Oriental. No texto busca-se compreender o campesinato nesta parte da Amazônia, apresentando um histórico da passagem do sistema rio-várzea-floresta para o estrada-terra-firme-subsolo. Por último, elaboramos algumas considerações sobre o campesinato contemporâneo no interior da fronteira amazônica. Palavras-chave: Amazônia. Campesinato. Rio-estrada.

Introdução O espaço amazônico tem atravessado desde o século XVII por diversos ciclos

econômicos que tem culminado em rearranjos socioespaciais distintos. Desde a chegada

dos portugueses, passando pelas medidas politicas do Marquês de Pombal, o período

áureo da borracha até as transformações decorrentes a partir da década de 1950, a

Amazônia se tornou uma lugar de características diversas, não apenas biológicas, mas,

sobretudo humana e de interesses políticos, sociais e econômicos.

Nas últimas décadas a Amazônia tem sido alvo de investidas do capital cada vez mais

forte, seja a partir das construções de estradas, seja na edificação de hidrelétricas, seja

em qualquer outro projeto de ordem politico e econômico. Isto tem gerado

consequências negativas a toda diversidade biológica, cultural e social da região, que é

traduzida no embate entre um modo de vida tradicional e outro proporcionado pelo

capitalismo cada vez mais selvagem.

Neste sentido, o objetivo desse ensaio é tecer uma breve discussão acerca da transição

do sistema fluvial para o sistema terrestre, e as transformações socioespaciais do

campesinato no cenário da Amazônia Oriental. Entende-se que é quando ocorre essa

passagem do rio para a estrada que a pressão sobre a floresta se intensifica, constituindo

os latifúndios, e gerando uma classe camponesa empobrecida, envolvida nas diferentes

formas de permanência e luta pela posse da terra.

Para esta compreensão buscou-se referencias que possibilite maior entendimento sobre

este processo na Amazônia e sobre as interfaces do campesinato contemporâneo. Entre

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os trabalhos consultados estão Velho (1979), Martins (1980), Oliveira (1991), Hébette

(2004), Gonçalves (2008) entre outros.

No trabalho procura-se primeiramente fazer um entendimento sobre o campesinato;

posteriormente tece-se uma discussão acerca da passagem do sistema rio-várzea-floresta

para o sistema estrada-terra firme-subsolo, e de como o campesinato amazônico

acompanha este movimento; por ultimo pretende-se apresentar algumas sinuosidades da

economia camponesa na sociedade capitalista contemporânea.

A dinâmica da produção do espaço e o campesinato amazônico

Pensar o campesinato na Amazônia e, por conseguinte a agricultura camponesa exige

um olhar atento às transformações territoriais ocorridas nesta região e a forma como

estas impactaram a organização social, o modo de vida e a identidade das populações

(indígenas, caboclas, campesinas) ali existentes. Está realidade conflituosa tem exposto

este campesinato a situações ora de desterritorialização ora de reterritorialização,

compreendidos como processos que se complementam e atuam diretamente na

recriação, na diversidade camponesa, e na emergência de multiterritórios.

Em meio a esta dinâmica territorial ocorrida na Amazônia, Hébette (2004) destaca à

metamorfose do camponês1 face aos fenômenos sóciodemográficos ocorridos na região,

ao mesmo tempo em que salienta que paralelamente a expansão do capitalismo,

vislumbra-se a construção da territorialização camponesa, seja em áreas de fronteira

agrícola ou em áreas do extrativismo tradicional.

Moreira e Hébette (2009, p. 188) em estudo realizado com o campesinato do Baixo

Amazonas e do Baixo Xingu paraense, afiançam que existem nestas regiões “vários

campesinatos históricos distribuídos em espaços e tempos diferenciados, como se

constituíssem uma amostra representativa da diversidade campesina amazônica”.

Assim, compreende-se que há na Amazônia um campesinato diversificado, que se

metamorfoseia de acordo com a realidade de cada mesorregião ou microrregião

amazônica.

Dada a essa diversidade, a relação entre o camponês e o mercado se dará também de

forma distinta, de acordo com a especificidade de cada região amazônica. Mediante a

isto, entende-se o camponês não como um ser isolado no mundo, mas como um modo

de vida e uma classe social que se reproduz na contramão ou articulado ao capital.

Uma das facetas do capitalismo no campo é a territorialização do capital que libera o

camponês da sua relação com a terra, tornando-o “livre”, ou seja, uma mercadoria,

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desagregando seu modo de vida e a sua produção. No entanto, estudos nos apontam que

essa sujeição do camponês diante das corporações capitalistas não se tornou universal,

pois ainda é possível verificarmos comunidades rurais que vivenciam a experiência da

autonomia2 sobre seus territórios.

Para alguns autores a existência do campesinato pode ser explicada com base no

desenvolvimento contraditório capitalista3. Os meandros deste processo contraditório e

suas implicações para a sustentação do campesinato na Amazônia é tarefa que precisa

ser melhor discutida, permitindo-nos mergulhar nas particularidades e diversidades do

campesinato amazônico. O quadro clássico do capitalismo nos mostra o capital se expandindo à custa da expropriação e da proletarização dos trabalhadores do campo, uma coisa produzindo necessariamente a outra. [...]. O capital se expande no campo, expulsa, mas não proletariza necessariamente o trabalhador. É que uma parte dos expropriados ocupa novos territórios, reconquista a autonomia do trabalho, prática uma traição às leis do capital (MARTINS, 1980, p. 17).

Na concepção de Martins (1980), ao mesmo tempo em que o capitalismo entra no

campo expropriando e proletarizando o camponês, também gera novos territórios

camponeses. Assim, mesmo expulsos de sua terra, o homem do campo sai em busca de

terra em outro lugar, onde possa se reproduzir como camponês, agindo contrariamente

as perspectivas do capital.

Para Oliveira (1991) o processo capitalista de produção origina o desenvolvimento

desigual e combinado, que no campo se alterna entre a territorialização do capital

(quando o proprietário da terra e a indústria se tornam os mesmos sujeitos) e a

monopolização do território (quando a agricultura camponesa está subordinada ao

mercado capitalista). Tais processos geram relações sociais que se materializam de

formas antagônicas no campo, formando assim territórios distintos, sendo quase sempre

marcados por conflitos territoriais.

As relações estabelecidas dentro do território camponês têm como eixo central a

família, o trabalho e a terra (MARQUES, 2004). Esses elementos tornam-se a unidade

gerenciadora das relações que compõe a vida camponesa. Assim, os integrantes do

grupo apresentam perspectivas coletivas, buscando viver de forma solidária uns com os

outros, e lutando por projetos comuns a toda comunidade.

Na propriedade camponesa, o camponês se territorializa com base no trabalho familiar e

na forma simples de produção, que é voltada para a sobrevivência do grupo familiar em

detrimento a comercialização e do grande capital. Assim, o camponês ao se

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territorializar, constrói territórios muito específicos, que se apresenta através dos

elementos materiais e imateriais que constituem a produção e a vida camponesa. A partir dos acontecimentos dos séculos XX e XXI é que as comunidades camponesas demonstram uma real habilidade para se ajustar a novas condições e também uma grande flexibilidade para encontrar novas formas de se adaptar e ganhar a vida. Em alguns lugares, há comunidades de camponeses que hoje vivem principalmente do turismo. Há lugares onde as comunidades camponesas ganham a vida com novos métodos de produção e, em outros, os camponeses ganham a vida por meio da combinação do trabalho camponês e do trabalho não-camponês (SHANIN, 2008, p. 24 – 25).

Destaca-se em Shanin (2008) a diversidade do campesinato anunciada no final do

século XX e início do XXI. Com isso, percebe-se que não existe um campesinato

uniforme, estático, mas um campesinato que se diferencia, tal diferença se dá entre

paises, regiões e lugares. Esta diversidade resulta do contexto histórico na qual

formação territorial da unidade camponesa está inserida.

A formação do campesinato na Amazônia está atrelada a dois sistemas de ocupação

implantados na região em momentos diferentes, constituindo uma diferenciação

camponesa na região, construída historicamente por atores sociais distintos (indígenas,

nordestinos, sulistas, caboclos, ribeirinhos, entre outros).

A produção do espaço amazônico dar-se no século XVII, com formação da tríade:

drogas do sertão – aldeamento – fortificações. Este tripé baseado numa ideologia

geopolítica, religiosa e econômica, propiciou o surgimento de vilas e cidades às

margens dos rios da região, formando os primeiros núcleos rurais e urbanos

(TAVARES, 2011).

Esta estrutura socioespacial sofre algumas alterações a partir do século XVIII, quando a

Coroa portuguesa estabelece algumas medidas, afim de legitimar seu domínio na região. A partir de 1750, no entanto, no governo do primeiro-ministro Marques de Pombal, tem inicio uma nova fase na adequação da Amazônia ao domínio colonial português. Dessa vez o caráter mercantil se torna mais evidente com a criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (GONÇALVES, 2008, p.82).

No governo pombalino foram implementados vários projetos na Amazônia. A partir da

leitura de Gonçalves (2008), inferimos que foi introduzido na Amazônia no século

XVIII, um modelo de desenvolvimento que modificaria a sociedade até então

estabelecida na região. Entre as medidas postas em práticas está, a concessão de cartas

de datas de sesmarias, introdução de mão-de-obra escrava, estímulo a produção

agrícola, entre outras medidas. Vislumbra-se a partir de então na região, o começo de

uma produção agrícola, estabelecendo o processo de ocupação do espaço amazônico.

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Para Gonçalves (2008, p. 82), “ao longo das várzeas emerge um sistema, que combina o

extrativismo da floresta, a pesca e a agricultura, articulado, por meio dos regatões, com

as vilas e cidades”. Desse modo, a Amazônia seguiu esta tendência, com um sistema

agroflorestal, que fomentou o comércio nesse período, tendo início a partir das margens

dos rios, que deram origem aos primeiros núcleos de ocupação.

É em meio a esta dinâmica que se formará o campesinato amazônico, que se

estabelecem primeiramente as margens de rios e pequenos riachos d’água, constituindo

os primeiros núcleos rurais. Esses indivíduos tenderam a penetrar para o interior buscando terra livre longe dos rios principais onde se concentrava a maior parte das atividades tradicionais. Isso constituiu um fato novo e muito importante na ocupação da Amazônia, que imperceptivelmente enunciava uma nova era. O seu padrão de ocupação consistia em indivíduos ou pequenos grupos de homens penetrarem na floresta, buscando um local favorável para se estabelecerem. Após uma busca que podia levar bastante tempo e exigir muito esforço, em geral escolhiam um lugar próximo a um riacho (igarapé) ou lagoa. Seria em geral num terreno que contivesse barro, considerado bom para a produção agrícola e para a criação de porcos, além de ser bom material de construção (VELHO, 1979, p. 201).

Partindo desta perspectiva, ratifica-se que a formação espacial do território camponês na

Amazônia esteve primeiramente conectada aos rios, principalmente ao longo do Rio

Amazonas e nas proximidades da cidade de Belém. Nesse momento nasceram varias

comunidades rurais e freguesias, que estimularam uma produção agrícola, que por meio

do sistema de roças, produziam arroz, feijão, milho, farinha de mandioca e o cultivo de

frutas como banana.

Podemos inferir em Castro (2006) que o foi através do processo de ocupação das terras

às margens dos rios, que se originou uma agricultura camponesa na Amazônia, em uma

produção diversificada, que se caracterizava tanto para a sustentação familiar, como

para o mercado de Belém, de onde era comercializado para o exterior.

Velho (1979) ao estudar o campesinato na fronteira amazônica, nos chama atenção para

duas denominações significativas: centro e beira. O centro era onde estavam localizados os campos camponeses. Era também definido no contexto de uma oposição à beira dos rios. A beira era compreendida como sendo o lugar onde se situavam os povoados maiores e mais antigos, o que se poderia referir como civilização. Em contraste, o centro ligava-se à ideia de centro da mata, mais próximo e em contato com a natureza incontrolada (VELHO, 1979, p. 203).

E prossegue, A oposição centro-beira sintetiza uma serie de outras oposições através da qual a fronteira camponesa definia a sua identidade ligada a uma expansão continental em contaste com uma expansão anterior predominantemente fluvial. A analogia entre litoral numa escala reduzida como o tradicional

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dualismo brasileiro entre litoral e sertão e com a oposição turneriana entre Leste e Oeste é clara, sendo sobretudo em relação a essa ultima, não só em termos formais, mas na própria concepção do camponês de fronteira de si mesmo e da sua atividade (VELHO, 1979, p. 204).

Essas definições opostas apresentadas por Velho (1970), faz parte de uma Amazônia

anterior à expansão da fronteira, antes da abertura da Belém-Brasília. Com a construção

das rodovias na região, muitos povoados novos surgiram, dando uma nova interpretação

ao cenário amazônico, visto através de uma nova denominação: beira da estrada.

Ainda neste contexto, Gonçalves (2008) nos chama atenção para dois sistemas de

ocupação distintos na Amazônia, o primeiro denominado de rio-várzea-floresta que

predominou na região até 1960, e o segundo estrada-terra firme-subsolo, que ocorre até

os dias atuais.

Em linhas gerais o sistema rio-várzea-floresta possuía uma dinâmica territorial pautada

na exploração da floresta em pé, tendo o extrativismo da borracha e da castanha como

base econômica e os rios como meio de locomoção. Já o sistema estrada-terra firme-

subsolo constitui uma complexa expansão da fronteira para o interior da floresta, na

qual o valor da natureza está na terra (pecuária e agricultura) e no subsolo (minério),

tendo a estrada como um meio de ligação da Amazônia com o restante do país.

Neste sentido, é a partir da década de 1950 que ocorrerá uma maior valorização da

estrada na Amazônia, principalmente após a abertura da Belém-Brasília. Com a construção da Belém-Brasília, inicia-se uma maior mobilidade populacional para a Amazônia em busca de terras devolutas, sendo a mesma responsável pelo surgimento de dezenas de vilas, povoados e cidades, o que agravou a problemática da luta pela terra (TAVARES, 2011, p. 166).

Neste sentido, a Amazônia Oriental começa a vivenciar uma nova dinâmica

socioespacial. Se “até a década de 1960 foi em torno dos rios que se organizou a vida

das populações amazônicas” (GONÇALVES, 2008, p.79), tendo como base da

economia regional o extrativismo, tendo uma exploração dos recursos da floresta em pé,

após esta década a região entraria em uma nova geopolítica. Isto mudaria a vida do

campesinato tradicional, e o surgimento de um novo campesinato que resultou do

processo migratório, principalmente de famílias nordestinas que se estabeleceram ao

longo das rodovias. No final dos anos 50, todavia, exatamente no Maranhão ocidental e no sul do Pará, ocorreu uma mudança importante: a chegada da estrada Belém-Brasília. Nos anos seguintes outras estradas ligadas à Belém-Brasília foram também abertas. Tudo isso abriu oportunidades inesperadas para os camponeses comercializarem a sua produção (VELHO, 1979, p. 197).

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Com a abertura da rodovia Belém-Brasília, outras estradas também foram construídas

para o acesso a esta rodovia, e assim uma maior mobilidade de pessoas e mercadorias

foi possível na região. Assim, a partir da década de 1960, instala-se no Estado do Pará

um novo meio de deslocamento, tendo a estrada como o eixo de circulação e integração

econômica, político, social e territorial.

A rodovia Belém-Brasília é fruto do projeto de integração da Amazônia no governo do

presidente Juscelino Kubitschek. Após esta estrada muitas outras foram planejadas e

construídas, como a Transamazônica, Cuiabá-Santarém, entre outras.

Em estudos realizados em comunidades rurais no nordeste paraense, Sousa e Macedo

(2011) nos chamam atenção para a transição do rio para a estrada, após a abertura da PA

140. A abertura da rodovia PA-140, na segunda metade do século XX, pôs em curso mudanças à dinâmica sócio-espacial, tanto do Cravo como de São Judas, que se evidenciaram mais nitidamente no limiar do século XX. À medida que o contato com a cidade de Belém se intensificou, verificaram-se alterações significativas na relação sociedade-natureza, particularmente com relação ao rio Bujaru (afluente do rio Guamá), que até então era utilizado como principal meio de transporte de pessoas e de mercadorias. Num primeiro momento, transfere-se para a estrada apenas o transporte de pessoas e, em menor proporção, o transporte de mercadorias (farinha de mandioca, milho, feijão de corda, frutas e outros) que permanece, até fins da década de 1980, alternando-se entre o rio e rodovia. De forma efetiva, a suplantação do transporte fluvial pelo transporte rodoviário ocorreu apenas em meados da década de 1990 (SOUSA & MACEDO, 2011, p. 4).

Partindo deste ponto de vista, percebe-se que os núcleos rurais ao longo do tempo foram

perdendo o contato direto com o rio. Contudo, nota-se que apesar de a rodovia PA-140

ter sido construída na década de 1970, apenas na década de 1990 é que os camponeses

se voltam efetivamente para a estrada, ou seja, esta transição rio-estrada aconteceu de

forma gradativa.

No entanto é precisa frisar que grande parte da Amazônia Ocidental ainda experimenta

como meio de circulação os rios, e principalmente na foz do Amazonas, onde se

encontra o arquipélago do Marajó. Outro ponto importante, é que as famílias que

vivenciam a dinâmica dos rios, continuam sobrevivendo do extrativismo e da pesca.

Porém, há uma tendência cada vez maior do capital se adentrar nesses espaços

amazônicos, principalmente na valorização de óleos e essenciais naturais da floresta.

Retornando à Velho (1979), entende-se que quando esse camponês se integra a uma

malha rodoviária, escoando sua produção, ele tende a se desmarginalizar, na medida em

que consegue comercializar a sua produção de forma satisfatória, contudo o camponês

não deixa de estar subordinado ao capital.

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Apesar de alguns autores afirmarem que os camponeses tendem a desaparecer mediante

ao avanço do modo de produção capitalista, tendo que se refugiar ao trabalho

assalariado para prosseguirem a viver. Para Moura (1988, p. 17-18) “é correto falar em

recriação, redefinição e até diversificação do campesinato do que fazer uma afirmação

finalista”. Seguindo este raciocínio, interpreta-se que houve na Amazônia Oriental uma

metamorfose com o campesinato que tinha uma estética de vida ligada ao rio, e passou a

integrar em seu modo de vida uma especificidade com a estrada, com uma integração

maior ao mercado. Mesmo com toda a restruturação do espaço agrário amazônico a

partir da década de 1950, o campesinato não se desestruturou, mas o contrário, tem-se

organizado e enfrentado as corporações capitalistas (mineradoras, pecuária,

agroindústria-soja, dendê, eucalipto) para conquistar a terra ou para se firmar nela.

Apesar do camponês está subordinado ao capital, isso não significa que a sua

sobrevivência esta dependente exclusivamente do mercado. A lógica da produção camponesa sendo diferente da produção capitalista, é possível para o camponês vender o seu produto a preços que para o capitalista representariam um prejuízo. [...]. A sua necessidade de utilizar plenamente a força de trabalho familiar permite, através de uma espécie de ‘sobretrabalho’, que venda barato. Por outro lado, ao não se ‘remunerar’ e a sua família, é também capaz de resistir melhor do que um capitalista a uma situação onde os preços são baixos ou onde não existem compradores para o seu produto, recuando para a subsistência (VELHO, 1979, p. 199).

Neste sentido, percebe-se que a economia camponesa consegue ser mais eficaz, na

medida em que não depende exclusivamente do capital, mas sim do próprio núcleo

familiar. O camponês sendo o proprietário de todos os elementos de sua propriedade, o

seu relacionamento com o capital se dará apenas na venda do fruto do seu trabalho,

chegando ao mercado com a mercadoria pronta, sendo que na confecção dessa

mercadoria não houve uma relação de assalariado, como na indústria, mas uma

produção partindo de uma relação do trabalho familiar, na qual quem participa da

confecção produtiva é o pai, a mãe e os filhos. Quando o trabalhador vende diretamente a sua força de trabalho, essa socialização mediada pela troca o atinge diretamente. A mercadoria que ai nasce é produto do trabalho combinado, social, socializado, de muitos trabalhadores. Quando, porém, o trabalhador é proprietário dos seus instrumentos de trabalho, suas ferramentas, sua terra, esse processo atinge o fruto do seu trabalho, mas não o atinge diretamente. Ele comparece perante a sociedade, perante o mercado, sozinho, dono das coisas que produziu, quando muito, junto com sua família, isolado e isoladamente. [...]. O capital é essa força que procura expropriar o lavrador, ou pelo menos submeter o seu trabalhado, da terra, para que, ao invés do lavrador trabalhar livremente para si mesmo, passe a trabalhar para ele, capital, como acontece com os operários (MARTINS, 1980, p.15).

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Em Martins (1980), fica claro a diferença entre o trabalho camponês e o trabalho do

proletariado. Na reprodução camponesa, o indivíduo é dono de sua propriedade e de

seus instrumentos, sendo donos de sua força de trabalho, apresentando-se ao mercado

como um trabalhador livre, diferente do assalariado que vendendo sua força de trabalho,

depara-se preso a um sistema opressor.

Para Oliveira (2007) a criação e a recriação do campesinato resultam do próprio

desenvolvimento do capitalista, desta forma, O estudo da agricultura brasileira deve ser feito levando-se em conta que o processo de desenvolvimento do modo capitalista de produção no território brasileiro é contraditório e combinado. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que esse desenvolvimento avança reproduzindo relações especificamente capitalistas (implantando o trabalho assalariado pela presença no campo do bóia-fria), ele (o capitalismo) produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas de produção (pela presença e aumento do trabalho familiar no campo) ( OLIVEIRA, 2007, p. 73).

Nesta concepção de Oliveira (2007), compreendemos a relação entre o capitalismo e o

campesinato, pois a apesar de os princípios capitalistas sugerirem modificações crucias

na produção camponesa, ele (o capitalismo) não destrói totalmente a produção familiar.

Oliveira (1991) afirma ainda que ao passo que ocorre o avanço da propriedade

capitalista no campo, contraditoriamente, ocorre o avanço a propriedade camponesa.

Neste sentido, a contradição do capital só é possível, em virtude da resistência

camponesa e dos movimentos sociais que cada vez mais vem pressionando o governo

para a liberação de novos assentamentos rurais, e por meio da luta campesina, na qual o

homem consegue adentrar na terra e se reproduzir socialmente.

Ao estudar a organização interna do campesinato, Chayanov (1981) nos aponta, que da

mesma forma que encontramos relações capitalistas no campo, concomitantemente,

encontramos relações não-capitalistas, na qual o campesinato esta inserido. Chayanov

(1981) compreende ainda, que o trabalho na agricultura camponesa se apresenta como

uma forma de manter a sobrevivência da família, sendo através do trabalho na terra que

os camponeses conseguem o próprio sustento, estabelecendo uma relação trabalho -

consumo. O produto do trabalho indivisível de uma família, e por conseguinte a prosperidade da exploração familiar, não aumentam de maneira tão marcante quanto o rendimento de uma unidade econômica capitalista influenciada pelos mesmos fatores, porque o camponês trabalhador, ao perceber o aumento da produtividade do trabalho, inevitavelmente equilibrará os fatores econômicos internos de sua granja, ou seja, com menor auto-exploração de sua capacidade de trabalho. Ele satisfaz melhor as necessidades de sua família, com menor dispêndio de trabalho, e reduz assim a intensidade técnica do conjunto de sua atividade econômica (CHAYANOV, 1981, p. 141).

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A organização da propriedade camponesa na concepção de Chayanov (1981), sempre

busca satisfazer a necessidade da família, sendo, portanto uma integração de produção e

consumo, ou seja, há um balanceamento entre o trabalho e o consumo. Assim, o

trabalho da família será medido mediante a necessidade do grupo familiar, o que

Chayanov vai chamar de “economia doméstica”.

Na Amazônia o modo de vida camponês se insere em uma dinâmica produtiva que se

difere dentro da região, não estando ligada apenas a agricultura tradicional, mas também

a pesca artesanal e a varias formas de extrativismo (MOREIRA & HÉBETE, 2009).

Com isso, percebe-se há uma diferenciação dentro do campesinato, que se expressa de

forma diferente em diversos lugares, mas que continua identificado como tal.

Hébette et al (2004) ressalta que há na Amazônia um campesinato que parte de uma

natureza que consiste muito próximo ao estágio de produção que antecedente ao

capitalismo, na qual as transformações na agricultura camponesa têm se apresentado de

forma muito lenta as mudanças na unidade produtiva. No entanto, é preciso frisar, que o

mesmo camponês de um lugar não é o mesmo em outro, ou seja, não podemos entender

o campesinato amazônico apenas por um entendimento conceitual. A persistência do campesinato no interior de uma sociedade globalmente subordinada ao capital e numa área de influencia progressivamente, penetrante por relações tipicamente capitalistas de produção apóia-se no intercambio espontâneo entre unidades camponesas e em relações mercantis com o comércio local (HÉBETTE et.al., 2004, p. 151).

Em estudos sobre a expansão da fronteira na Amazônia, Hébette et. al (2004), nos

esclarece que as relações na unidade camponesa não tem um principio baseado no

capitalismo moderno, mas basicamente através das redes de vizinhança e com o

comércio local, que se estabelece por meio da reciprocidade e sociabilidade na

comunidade rural. No entanto, estas redes estão cada vez mais sendo apropriadas pelo

capitalismo, sendo denominas de Capital social.

Assim, o entendimento dos meandros da agricultura camponesa, constitui-se a partir da

compreensão da vida do camponês, e da complexa relação entre os elementos que

constitui e gerenciam a unidade territorial na qual se insere, seja no rio, seja na estrada.

Com isso, dada à diversidade do campesinato amazônico (MOREIRA & HÉBETE,

2009), as implicações capitalistas na agricultura camponesa (VELHO, 1979;

MARTINS, 1980; OLIVEIRA, 1991), e a construção de uma economia domestica

baseada no equilíbrio trabalho-consumo (CHAYANOV, 1981), podemos afirmar que o

campesinato tem-se recriado dentro da sociedade capitalista contemporânea.

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Considerações finais

A organização socioespacial da Amazônia oriental no século XXI tem sido estruturada a

partir das estradas. Se no passado os rios tiveram uma grande importância no

deslocamento de mercadorias e de pessoas, hoje nessa parte amazônica a estrada é o

principal meio de condução, principalmente para o restante do Brasil.

Percebeu-se que foi com a abertura da rodovia Belém-Brasília, que se iniciou a

passagem do rio para a estrada, ou seja, é a partir desta rodovia que a Amazônia passa a

enveredar por outro processo logístico. Saindo da beira do rio e indo para a beira da

estrada.

Ao longo do texto viu-se que a transição do rio para a estrada gerou algumas mudanças

na vida camponesa na Amazônia, contudo não alterou por completo, na medida em que

o campesinato continua com o modo de vida próprio, reproduzindo-se socialmente na

contramão do capital.

Notas

1 Neste trabalho entende-se que o camponês é a “personificação da forma de produção simples de mercadorias, na qual o produtor direto detém a propriedade dos meios de produção – (terra, objeto de trabalho e outros meios de trabalho) – e trabalha com estes meios de produção. Esta combinação de elementos faz com que o camponês se apresente no mercado como vendedor dos produtos de seu trabalho, como produtor direto de mercadorias. Como produtor, venderá seus produtos para adquirir outros, qualitativamente diferentes, que possam satisfazer suas necessidades de consumo individual ou produtivo” (SANTOS, 1984, p. 69). 2 O entendimento de autonomia neste trabalho “não significa, de forma alguma, uma espécie de fechamento do lugar com relação ao restante do mundo. Ao contrario, significa a capacidade de controle e gestão de determinados processos políticos, econômicos, culturais e ambientais, de maneira que os sujeitos envolvidos diretamente em cada processo possam definir os planos e projetos em consonância com atores e processos de outros lugares” (SAQUET & SPOSITO, 2008, p. 28). 3 Ver Martins (1980), Moura (1988), Oliveira (1991, 2004), Marques ( 2004, 2008), Bombardi (2004), entre outros.

Referências

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