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D AO A DERMATOLOGIA _____________________________________________________________________________ Nelson Guimarães Proença Memórias — Volume 3

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D AO A

DERMATOLOGIA _____________________________________________________________________________

Nelson Guimarães Proença

Memórias — Volume 3

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Copyright © 2016 — Nelson Guimarães Proença

Direitos desta Edição reservados ao Autor

FICHA CATALOGRÁFICA Anos Setenta – Do D ao A DERMATOLOGIA / Nelson Guimarães Proença / Campos do Jordão / 2016 Categoria : Memória Distribuição Gratuita

PREFÁCIO Honrado pelo convite para prefaciar esta obra tive grande prazer em percorrer suas paginas

que revelam a trajetória profissional de Nelson Proença tendo como pano de fundo a

Dermatologia paulista.

Conheci Nelson quando, ainda residente, comecei a frequentar com Raymundo Martins de

Castro o Hospital Adhemar de Barros para realização de trabalho multicêntrico sobre a

terapêutica do Fogo Selvagem pelos corticosteroides. Lembro- me vivamente como me

impressionou a figura de Nelson pela sua personalidade, conhecimentos médicos e pela

dedicação incomum ao trabalho. Destacava-se sobremodo sua energia e entusiasmo com o

trabalho que realizava em um hospital que albergava centenas de enfermos.

Por esse tempo Nelson exercia clinica geral como medico de família na zona norte da cidade,

mas já revelava profundo interesse pela Dermatologia.

O livro é um retrato absolutamente fiel à personalidade de Nelson revelando suas

inquietudes que sempre o moveram e ainda o movem na busca de caminhos para

aperfeiçoamento das suas excepcionais aptidões profissionais, sempre atento aos problemas

sociais, aos problemas da Medicina e dos médicos em geral, além dos problemas da

especialidade abraçada.

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Quando o conheci no Hospital Adhemar de Barros além de toda sua rotina como médico de

família, como abnegado medico do setor publico neste hospital Nelson já iniciava suas

pesquisas cientificas que posteriormente desembocaram no seu doutorado que acabou por

levá-lo à carreira acadêmica. Como narra, seus pendores acadêmicos já haviam sido

observados pelo professor João Aguiar Pupo que após conceder a Nelson estagio no Hospital

das Clinicas da FMUSP convidou-o para ingressar no corpo docente da instituição.

No livro nos conta como saiu do Hospital das Clínicas por ocasião da chegada do Prof.

Sampaio a cátedra de dermatologia da FMUSP.

Volta a instituição para aperfeiçoar-se em histopatologia e novamente tenho oportunidade

de com ele conviver observando sempre a mesma energia e seriedade em seu trabalho .

Posteriormente Nelson juntamente com o prof. Sampaio funda a Secção de São Paulo da

Sociedade Brasileira de Dermatologia onde trabalhou em diversas diretorias sendo inclusive

presidente. Tive o prazer de acompanha-lo nestas diretorias novamente familiarizando-me

com sua enorme capacidade de trabalho e liderança que o levaria, anos mais tarde, a

presidência da Associação Brasileira de Medicina.

Não conhecia, até ler o livro, sua atividade no Hospital Padre Bento, onde enfrentou novos

desafios trabalhando com hanseníase em crianças em época de recursos terapêuticos

escassos e grandes preconceitos contra a enfermidade. Foi Nelson que associadamente ao

Prof. Sampaio publicou o primeiro trabalho cientifico significativo confirmatório das

observações de Cheskin quanto a alta eficácia da talidomida nas reações lepróticas fato que

relata modestamente no livro.

Após incursão na política partidária como vereador na Câmara Municipal de São Paulo com

destacada atuação acaba por optar pela Dermatologia abandonando as atividades politico-

partidárias para sorte da Medicina. Sempre acompanhei as atividades cientificas de Nelson

através da sua profícua atuação nas Reuniões e Congressos da especialidade tendo tido

inclusive o privilégio de coparticipar de algumas de suas publicações.

Finalmente a culminância da vida dermatológica de Nelson é atingida quando assume a

Clínica Dermatológica da Faculdade de Ciências Medicas da Santa Casa de São Paulo.

Partindo de condições mínimas humanas e materiais, Nelson consegue como nos relata no

livro, colaboradores voluntários de primeira grandeza, dotando a Dermatologia de

instalações modernas e adequadas e levando este serviço ao nível dos melhores

departamentos de dermatologia do país atingindo na plenitude seus objetivos assistenciais,

didáticos e de pesquisa.

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Discorri mais sobre o autor do que sobre a obra, mas ambos são elementos indissociáveis.

Nelson domina a escrita que é precisa, concisa e de leitura agradável e ao contar sua história

profissional nos informa e nos diverte, pois é leitura leve pontuada de episódios pitorescos.

Trata-se de leitura informativa quanto à Dermatologia de São Paulo, descreve uma trajetória

profissional continuamente ascendente, mas com muito trabalho e dedicação coroada pela

titularidade acadêmica em uma das grandes instituições de ensino medico de São Paulo e do

Brasil.

Enfim Nelson é, sem dúvida, um exemplo sólido para os médicos e a leitura de sua

caminhada profissional enriquece a todos.

Evandro Rivitti

Sumário _____________________________________________________________________________

PARTE XI – DERMATOLOGIA, HOSPITAL DAS CLÍNICAS

O xadrez e a Dermatologia

O caso é de Dermatologia, o que fazer?

Doc Sam

Sampaio, Cátedra à vista

Guerra e Paz

Depois da tempestade, a bonança

PARTE XII — FOGO SELVAGEM

Uma ponte, do HC ao Fogo Selvagem

Fogo Selvagem

João Paulo Botelho Vieira, um abnegado

Fogo Selvagem, o meu começo

Sabendo ver, um prêmio

Doença versus Corticoide

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PARTE XIII – SANATÓRIO PADRE BENTO

Um dermatologista para Padre Bento

Lepra: duas páginas, três mil anos

A lepra em São Paulo

Sanatório Padre Bento, Pavilhão de Menores

Menores primeiro, Maiores depois

Talidomida, a droga maldita

Talidomida e lepra, assim começou

Lazer em Padre Bento? Capotão, a arma secreta

Despedida do Sanatório Padre Bento

Lepra não, Hanseníase!

PARTE XIV - ACADEMIA

Botucatu 1966

Carreira Universitária, quando começou?

Campinas: vem que tem futuro

Medicina ou Política?

O futuro? A Carreira Universitária

Computador, um gigante imponente

Lições de vida, para não esquecer

Esforço reconhecido, esforço premiado

Afins se encontram

Só Clínica, não, também Patologia

Quatro mosqueteiros

Livre Docência

PARTE XV – SANTA CASA

Séculos de benemerência

Emilio Athié

Emoção do reencontro

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Recomeçar como?

Compondo a equipe

E houve mais alguém: Irmã Francisca

Medicina Integral, sempre!

Renovação Médica

Santa Casa em dificuldade: vamos entender

Dr Christiano, conheci um benemérito

Agregar é preciso

Crescendo e amadurecendo

Missão cumprida

Epílogo: Professor Emérito HOSPITAL DAS

CLÍNICAS

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O XADREZ E A DERMATOLOGIA

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Fui razoável jogador de xadrez e o pratiquei desde a adolescência até a idade adulta jovem, somente parei quando se aproximava o fim de meu Curso de Medicina. Aprendi a jogar contando com bom Professor, em minha própria casa. Foi meu irmão Helio, com cinco anos de idade a mais do que eu. Hélio era jogador de primeira linha, foi Campeão Universitário Brasileiro, lá pelos idos de 1949. Com ele aprendi muitos dos segredos do esporte.

Esporte, sim. O xadrez é mais do que um jogo, é mesmo um esporte, não de atividade física, mas sim intelectual. Quando se fala em jogo logo se pensa nos que são ditos “de azar”, como são os de cartas ou as roletas. Nestes é impossível prever o que vai acontecer, a surpresa faz parte do jogo, pode ser boa ou frustrante, não há previsões possíveis de serem feitas.

Bem ao contrário, no jogo de xadrez são dezesseis as peças que ocupam sessenta e quatro espaços, sendo os movimentos destas peças feitos segundo regras pré-determinadas e aceitas. Para o jogador de xadrez tudo é passível de previsão, sejam as melhores alternativas para que faça seus lances, seja para analisar as que estão à disposição de seu adversário. Não é jogo de azar, é um embate entre adversários que exige estudo e estratégia, movimentos de ataque e de defesa, tudo sintetizado em determinado movimento de determinada peça.

No xadrez o acaso não tem lugar. Ou você estuda, compreende e planeja o que fazer, levando também em consideração os possíveis movimentos do adversário, ou você não faz nada disto e será um perdedor habitual.

Ao iniciar minha prática na Medicina me veio à mente a imagem do jogo de xadrez. Era preciso conhecer bem o corpo humano, figuradamente seria o nosso “tabuleiro de trabalho”. As peças seriam, evidentemente, os órgãos e os sistemas orgânicos, espalhados por todo o corpo. As regras do jogo resultariam das funções fisiológicas, manter a funcionalidade do conjunto era o objetivo a ser alcançado.

O adversário? O temível Doutor Patológico, perverso, capaz de dissimular suas intenções de mil formas diferentes, de utilizar artimanhas para nos iludir, de mudar a todo instante sua estratégia, colocando-nos em xeque. Sempre buscando por em risco a vitalidade e a sobrevivência do corpo humano. Poderoso adversário, dissimulado em suas intenções, assumindo diferentes aparências clínicas, contando com um exército subterrâneo de microrganismos para combater sob suas ordens.

Para enfrentar tão poderoso e dissimulado adversário é preciso estudar em profundidade, aproveitar o conhecimento já acumulado por todos os jogadores que nos precederam e que, certamente, estariam conosco, do mesmo lado da mesa. Era preciso assimilar aquilo que se chama a “Experiência Médica”.

Perscrutar o corpo humano sadio e enfermo, compreender como se desenvolvem suas funções na vida cotidiana e como reage diante de variadas agressões a que fica exposto, compreender e classificar o quadro clínico que se apresenta diante de si, esta a tarefa permanente do Médico. Só então ele pode fazer o “lance” correto, isto é, administrar a medicação adequada e recomendar os cuidados apropriados, visando obter a recuperação do paciente, sendo esta a vitória final.

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Na ocasião em que conheci de perto a Dermatologia senti como que um despertar, dentro de mim, da antiga vocação de jogador de xadrez, que estava adormecida.

Diante do paciente que consulta é sempre necessário conduzir o exame clínico e a investigação diagnóstica, analisar as informações obtidas, com segurança, para estar seguro ao orientar o tratamento, sabendo o que se pode esperar. Na Dermatologia iria ter diante de mim toda a pele do paciente para ser examinada, vista e tocada, submetida a biópsia ou a testes, quando necessários. Ainda mais, contava com o Laboratório e Exames de Imagem, quando a suspeita era de participação sistêmica. Tudo isto dava segurança para decidir sobre a conduta a ser tomada.

O caminho estava escolhido. Primeiro seria preciso estudar para conhecer toda a experiência já acumulada. Depois, estando diante do paciente, saber ouví-lo, depois fazer o exame meticuloso da pele. Também saber escolher, entre a vastidão de exames laboratoriais disponíveis, quais os que realmente poderiam contribuir para complementar o estudo do caso. Só então classificar corretamente o processo mórbido e escolher a melhor alternativa terapêutica.

Tão logo conheci o jogo de xadrez, estudei muito para ser um razoável jogador. Tão logo conheci de perto a Dermatologia, procedi do mesmo modo. Estudei e aprendi a classificar, também a estabelecer a estratégia correta, movimentando as peças à disposição, buscando a vitória em cada embate.

Passei os quase sessenta últimos anos de minha vida aceitando o permanente desafio que me faz o Doutor Patológico. Felizmente, contra ele levei a melhor, quase sempre. Para minha satisfação e para alegria de meus pacientes.

Vamos recordar, nas crônicas que seguem, alguns passos desta longa caminhada.

O CASO É DE DERMATOLOGIA, O QUE FAZER?

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Médico de Família é consultado sobre tudo, doenças que pertencem a todas as áreas de especialidade, inclusive à Dermatologia. Nos primeiros meses de atendimento em meu consultório de Clínica Geral, no bairro da Água Fria — isto no final dos anos cinquenta — muitos dos pacientes atendidos tinham alguma afecção de pele, pediam que fosse tratada. Ainda bem que não era só este o motivo da consulta, tinham também outras queixas e estas, sim, estas eu tratava. A relacionada à pele “era deixada para depois”.

Tratar a pele? Não tinha como atender ao desejo do paciente. Justificava-se minha deficiência nessa área, para explicar o motivo vamos voltar um pouco no tempo, aos anos em que ainda era estudante na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Minha turma, formada em 1956, foi pioneira de uma importante inovação curricular, a criação do Sexto Ano em regime de Internato. Foi então que surgiu a figura do Doutorando Interno, foi nossa a primeira experiência feita no Brasil, criando o Internato obrigatório.

Naquele ano inaugural ocorreu uma superposição de horários entre o Internato e algumas Disciplinas que pertenciam ao Currículo do Sexto Ano, dentre estas a Dermatologia. Como resolver esta questão? O Professor João de Aguiar Pupo, Titular da Disciplina e também

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Diretor da Faculdade de Medicina, foi compreensivo e “aliviou” nossa carga horária. Ministrou um curso apenas formal, para constar, fomos todos aprovados sem necessidade de aprendermos Dermatologia.

E agora, como explicar que um Médico de Família, clinicando em bairro, era absolutamente incapaz de tratar as mais simples doenças de pele? Eu me sentia insatisfeito por não saber diagnosticar e tratar mesmo as simples micoses de pele, ou as mais banais manifestações de alergia cutânea. Sobre formulações de preparados de uso externo — predominantes na época — nada entendia. Os corticoides estavam sendo introduzidos, ainda eram poucos, para uso na pele começava a ser empregado o creme de hidrocortisona. Era só até aí que chegava a orientação por mim dada ao paciente.

Em agosto de 1958 decidi aumentar meus conhecimentos nessa área e procurei o Professor Aguiar Pupo, solicitei um estágio de quatro meses em sua Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas. Assumi o compromisso de ser frequente e pontual, de me dedicar ao estudo da especialidade, aproveitando bem a oportunidade que me estava sendo dada. O Professor me recebeu de braços abertos, depois de algumas semanas me explicou porque manifestara tão entusiástica receptividade. Estávamos em agosto de 1958 e, antes de mim, o último estagiário da Clínica havia sido o Doutor Norberto Belliboni, formado em 1949! Incrível, quase dez anos haviam se passado desde então e eu era o primeiro a manifestar interesse pela especialidade!

O estágio seria de primeiro de setembro a 31 de dezembro, quatro meses ao todo. Cumpri o prometido, fui frequente e pontual, chegava cedo e acompanhava o atendimento no Ambulatório e nas Enfermarias. Era o último médico que se retirava da Clínica, já quase ao meio dia. No Ambulatório acompanhava o atendimento feito por dermatologistas renomados de São Paulo: Domingos Alves Ribeiro, Guilherme Villela Curban, José Moacyr de Alcântara Madeira, José Augusto Soares, Luiz Baptista, Norberto Belliboni. Um dos assistentes do professor Pupo, Sebastião Sampaio, estava nos Estados Unidos cumprindo estágio na Mayo Clinic, na época eu ainda não o conhecia.

Para acompanhar o atendimento no Ambulatório deveria permanecer em silêncio e em pé, ao lado da mesa do médico consultante. Nada de perguntas ou de pedir esclarecimentos, isto iria atrapalhar muito, seria inoportuno. Deveria anotar o que estivesse vendo, anotar também as medicações prescritas, minhas dúvidas poderiam ser esclarecidas mais tarde, lendo os textos dos tratados. Para aprender existem os livros, eu deveria consultá-los.

Eram estas as “regras do jogo” e eu as aceitei. Qual o tratado recomendado? O do Professor Darier, do Hospital Saint Louis de Paris. Poderia escolher, eram duas as opções: o tratado maior, o “Dariezão”, com vários volumes, ou o menor, o “Dariezinho”, em um só volume, com novecentas páginas. Foi este que comprei e passei a estudar, todas as noites, após encerrar o dia de trabalho em meu consultório, no bairro da Agua Fria. Não foi fácil, só era possível começar o estudo lá pelas nove da noite, mesmo assim havia sempre a possibilidade de ser interrompido por algum chamado noturno. O “Dariezinho” não foi apenas lido e estudado. Foi inteiramente passado para fichas, formei um arquivo que me permitia fazer uma consulta rápida, ficava mais fácil tendo as fichas em mãos. Percorri o “Darier” página por página, da primeira à última, buscando sempre encontrar e registrar a informação essencial, podia assim fixar melhor os assuntos, na memória. Ler, estudar e fichar todo o “Darier” — quem diria — um dia me trouxe inesperado problema. Foi em uma manhã em que se discutia um caso difícil na Reunião Semanal da

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Dermatologia, vinha sendo acompanhado por um dos médicos da Clínica, ele pedia sugestões. Todos opinaram e não se chegava a um consenso. Tive a ousadia de pedir para opinar e sugeri o diagnóstico que me parecia mais correto. O diagnóstico estava no “Darier”, na página tal, buscou-se o livro na Biblioteca e lá estava, na página indicada, a foto que confirmava a minha sugestão. Em decorrência do episódio o que restou foi a animosidade desse Colega, ficou para o resto de sua vida.

Na véspera do Natal estava se encerrando meu estágio, fui à Diretoria da Faculdade agradecer ao Professor Aguiar Pupo. No dia 31 de dezembro de 1958 eu estava atendendo em meu consultório, eis que lá aparece o motorista da Faculdade. Carro à porta e ordem de me levar à presença do Diretor. Meia hora após o Professor Aguiar Pupo me convidou – mais do que convidou, me intimou – para aceitar o cargo de Médico Auxiliar de Ensino da Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas.

Diante de mim abria-se, inesperadamente, uma nova perspectiva profissional.

DOC SAM

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Dois de janeiro de 1959 foi meu primeiro dia de trabalho na Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo no Terceiro Andar do Edifício Central (Ufa!). Em mãos, o Certificado que me classificava na qualidade de Assistente Extranumerário. Tudo isso aí. Que reponsabilidade para um médico de bairro que fazia Clínica Geral, era um mundo novo que se abria e o futuro agora iria depender de meu desempenho.

Lá para o final de fevereiro voltou ao Brasil - e ao trabalho na Dermatologia – o Doutor Sampaio, foi só então que o conheci: Doutor Sebastião de Almeida Prado Sampaio. Retornava após longo estágio cumprido na Mayo Clinic, Estados Unidos, onde havia convivido com alguns dos maiores Mestres da Dermatologia Mundial. Como ele mesmo nos contou, lá se nome foi simplificado, era apenas “Sam”, o “Doc Sam”. Não era a primeira vez que estagiava na Mayo Clinic, já estava bem ambientado, era integralmente aceito e prestigiado por todos. Neste mais recente e longo estágio acumulara conhecimento e modernizara a prática, estava atualizadíssimo.

No retorno a São Paulo estava pronto para ensaiar voos mais altos. Era mesmo bem alto o voo para o qual se preparava, nada menos do que chegar à posição de Professor Titular da Dermatologia. Seu projeto era substituir o Professor João de Aguiar Pupo no comando da Disciplina e da Clínica, pois o Professor estava na iminência de atingir a idade compulsória de aposentadoria, o que ocorreria no ano seguinte, 1960.

Algumas mudanças importantes já haviam sido feitas na Clínica pelo Professor Pupo, preparando o terreno para o futuro Concurso. Mudanças que eu, um novato, não percebera o significado. O Professor Luiz Marino Bechelli fora recomendado ao Professor Zeferino Vaz, Reitor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, tornou-se Titular da Disciplina de Dermatologia. O Professor Domingos Ribeiro, que era o substituto natural do Professor Pupo, solicitou aposentadoria. O Doutor José Moacyr de Alcântara Madeira, o terceiro na hierarquia, foi nomeado Diretor do Departamento Estadual de Profilaxia da Lepra, por este motivo solicitara exoneração da Clínica. O Doutor Luiz Baptista, por motivos que eu nunca soube, também fora exonerado. Da equipe que eu conhecera no ano anterior, só

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permaneciam os Doutores Guilherme Villela Curban, José Augusto Soares e Norberto Belliboni.

Foi justamente a vaga do Doutor Luiz Baptista que ficou para mim, mas na ocasião não fui o único nomeado. Também o foi o Doutor Argemiro Rodrigues de Souza, este tinha uns vinte e tantos anos a mais de idade e de experiência, do que eu. Argemiro trouxe para a Clínica larga experiência, acumulada em seus anos de atividade no Departamento de Profilaxia da Lepra. Apesar da diferença de idade logo nos tornamos bons amigos.

Tantas modificações no Quadro Docente eram compreensíveis, embora eu não as tenha compreendido, a princípio. Foram feitas justamente em razão da iminente aposentadoria do Professor Pupo e de sua substituição à frente da Clínica de Dermatologia, foi quando fiquei sabendo que sua preferência já estava definida, era pelo Doutor Sampaio. Por esta razão o Professor Pupo se empenhara tanto para conseguir o estágio que Sampaio havia cumprido nos Estados Unidos, na Mayo Clínic.

Conheci o Doutor Sampaio nos últimos dias de fevereiro de 1959, na ocasião em que retornou dos Estados Unidos. Ele fora designado para ser Adjunto na Chefia da Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas, já era o Primeiro Substituto do Professor Pupo.

O dinamismo do Doutor Sampaio trouxe grande impulso à atividade diária da Clínica, isto acabou por envolver a todos nós em uma atividade trepidante. Sua chegada tudo mudou, o estágio antes tranquilo e o ambiente morno, que eu havia vivenciado no ano anterior, foi substituído por uma atividade intensa, da qual participávamos todos nós. Uma mudança e tanto! A mim isto causava satisfação, redobrei meu esforço buscando melhorar meu desempenho, o novo cenário estava bem de acordo com minha maneira de ser e com meu desejo de progredir.

Quando tudo parecia correr tão bem, ocorreram imprevistos. A vida é assim, tem percalços inesperados, nem sempre os caminhos estão livres para avançarmos, como pensávamos.

Conto a seguir.

SAMPAIO, CÁTEDRA À VISTA

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Doutor Sebastião Sampaio voltou ao Brasil em ritmo de Cátedra. Melhor dizendo, em ritmo de preparação para a Cátedra. Já era o Substituto do Professor Aguiar Pupo, em seus eventuais e temporários afastamentos, mas agora a escalada era maior, exigia muito mais esforço e organização. Estávamos em princípios de 1959, o Concurso para Cátedra estava previsto para o final de 1960.

A primeira coisa a fazer, que seria definir o tema da Tese para o Concurso, já estava resolvida. O tema havia sido escolhido, seria sobre a Blastomicose Sul Americana, enfermidade que foi depois renomeada como Paracoccidioidomicose. Por feliz coincidência acabava de ser sintetizada nova droga, a Anfotericina B, os ensaios iniciais feitos em laboratório mostraram excelente atividade antiparasitária, inibindo o crescimento do Paracoccidioides brasiliensis. Tudo se encaixava, doentes não faltavam, muitos deles em estado grave, precisavam de uma medicação heroica.

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A proximidade do Concurso exigia decisões e estas foram rapidamente tomadas. Os pacientes que viessem a ser internados iriam necessitar de uma equipe básica de apoio, foi então criada, pelo Conselho do Hospital das Clínicas, a Residência Médica em Dermatologia. Duas vagas foram introduzidas e os nomes foram logo encontrados, eram duas jovens médicas recém formadas, que confirmaram depois as expectativas nelas depositadas. Cumpriram rigorosa e eficientemente suas obrigações: foram as Doutoras Açucena Raphael e Neuza Dillon. Aquela formada pela própria Faculdade da USP, esta última vinda de Belém do Pará, indicada pelo Professor Domingos Silva. Deram o máximo de si mesmas, foram as pessoas certas para executar o trabalho que lhes foi confiado.

Apoio Laboratorial? Sem problemas. À frente do Departamento de Microbiologia da Faculdade estava o Professor Carlos da Silva Lacaz, assumira recentemente, era jovem e dinâmico, totalmente entregue ao trabalho e à pesquisa. Ainda mais, no Departamento de Anatomia Patológica também havia ocorrido renovação, alguns jovens e talentosos Professores estavam em evidência, dentre eles o Professor Thales de Brito. Ambos os Departamentos se prontificaram a Integrar o grupo de pesquisa do Doutor Sampaio.

O Professor Lacaz considerou importante ter na equipe alguém com sólida formação em Doenças Tropicais, sabia da pessoa certa, ela estava disponível: era o Doutor Raymundo Martins Castro, com excelente Currículo, formado pela Faculdade de Medicina da USP e que havia feito Residência Médica na Clínica de Doenças Infecciosas e Tropicais, sob o comando do Professor João Alves Meira. Depois de concluída a Residência ele fora para a Alemanha, com Bolsa de Estudos, ali ficara em torno de dois anos. Acabava de regressar ao Brasil, a decisão de convidá-lo para a equipe mostrou-se inteiramente acertada. O Doutor Sampaio já tinha então sua equipe básica montada, tinha tudo o que era necessário para dar apoio à preparação da tese.

Mas o atendimento Clínico nas Enfermarias e no Ambulatório, a atividade Docente, voltada para as turmas da Faculdade, com quem mais poderia contar? Já lá estavam os Doutores Curban, Soares e Belliboni, mas era preciso um quadro maior.Foi convidado o Doutor Argemiro Rodrigues de Souza, experimentado dermatologista que, ao aceitar o convite feito, enriqueceu a Clínica. Ainda mais, foi trazido também o Doutor Estevam de Almeida Neto,

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que pertencia ao quadro do Departamento de Profilaxia da Lepra, onde já trabalhava há pouco mais de dez anos. E pretendeu-se também trazer o Doutor Vinício de Arruda Zamith, este era colega do Doutor Sampaio, ambos formados na Turma de 1943. Zamith trabalhava na Santa Casa de São Paulo.

Como trazer também o Doutor Zamith? Havia surgido um imprevisto, sua vaga acabava de ser preenchida.

Preenchida por quem? Por mim!

Eu estava sobrando e não sabia.

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GUERRA E PAZ

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Meu contrato foi assinado com a Faculdade de Medicina em 26 de janeiro de 1959, o cargo era de Médico Auxiliar de Ensino da Clínica Dermatológica e Sifiligráfica do Hospital das Clínicas. Na Faculdade, seria Assistente Extranumerário da Cadeira de Dermatologia, este contrato foi assinado pelo Diretor de Faculdade, Professor João Alves Meira. Eu ficaria sob o comando do Professor João de Aguiar Pupo, a vigência do contrato seria de três anos.

A princípio — mais precisamente nos dois primeiros meses — tudo correu em boa paz, até que se deu o retorno, à Clínica, do Doutor Sebastião de Almeida Prado Sampaio. Ele voltava dos Estados Unidos, onde estagiara na mundialmente conhecida Mayo Clinic, seu retorno foi no final de fevereiro. O Professor Pupo havia me convocado dias antes a sua sala e, nessa ocasião, informara que ele seria o Professor Adjunto da Clínica, eu passaria a ficar sob seu comando.

Apresentei-me ao Professor Sampaio e me coloquei a sua disposição. Nesse primeiro contato não me senti em situação confortável, achei-o frio e distante, pareceu-me pouco interessado em desenhar meu futuro na Dermatologia. Esta primeira impressão foi confirmada nos dias e semanas que se seguiram, meu desconforto aumentou, tinha uma vaga sensação de insegurança. O que estaria para acontecer?

Por mais que me desdobrasse, por mais que cumprisse minhas obrigações, por mais que fosse até mesmo além do que me era exigido, não havia sequer uma única manifestação de sua parte, que pudesse significar interesse e confiança em meu trabalho. Nas reuniões da Clínica, nas visitas às Enfermarias, eu era constantemente contraditado e isto me desconcertava, não sabia o que dizer ou o que fazer.

Já chegado o mês de abril entendi que era melhor passar tudo a limpo. Comecei por procurá-lo, oferecendo-me para colaborar na preparação de sua Tese de Cátedra, no que fosse preciso e necessário. Ouviu-me em silêncio, disse-me que iria pensar em alguma coisa, no dia seguinte me chamou a sua presença. Comunicou que havia, sim, encontrado uma atividade que se fazia necessária, tratava-se das fotografias em preto-e-branco guardadas no prédio da Faculdade. Fiquei então sabendo que o fotógrafo oficial tinha seu ateliê acima do Quinto Andar do prédio, já no sótão.

Era realmente fantástica a coleção acumulada desde 1946, estando as fotos guardadas em caixas e mais caixas de papelão, não catalogadas, impossível encontrar alguma em especial, que fosse necessária. O trabalho para colocar tudo aquilo em ordem, devidamente catalogadas as fotos e organizado o arquivo, era gigantesco. Decorrida a primeira semana eu conseguira por em ordem algo em torno de três centenas de fotos, mesmo tendo ali permanecido por todo o período da manhã. Claro que estava afastado da atividade hospitalar e, pelos meus cálculos, isto iria se prolongar por tempo indeterminado: meses, anos?

Aos poucos o cenário foi se tornando mais e mais claro. O Professor Sampaio havia encontrado uma maneira discreta de responder a minha pergunta: ”— Em que posso colaborar?”. Aos poucos deixava explícito que eu não estava previsto para figurar em sua equipe, que eu era desnecessário. Claro, claro, mesmo que nenhuma palavra tenha sido dita, meus dias na Clínica de Dermatologia estavam contados, era evidente que mais adiante eu seria dispensado.

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Compreendi perfeitamente o que se passava, embora as intenções não estivessem expressas em palavras, mas sim em atitudes. Bem, cada um é livre para escolher o que mais lhe convém, tinha o Professor Sampaio todo o direito de não me incluir em seus planos futuros.

Resolvi então procurá-lo para fazer uma proposta que me parecia muito razoável. Ele me desobrigaria do trabalho com o arquivo de fotos e permitiria meu imediato retorno à Clínica. Em contrapartida, além de contar com minha cooperação, no trabalho cotidiano, contaria também com meu cargo, que lhe seria entregue no momento apropriado, isto é, no dia em que assumisse a Cátedra.

Foi nessa ocasião que o Professor Sampaio explicou o “porque” de suas restrições a meu nome. Ao retornar ao Brasil fora logo informado que “o médico novo” mantinha consultório privado na Zona Norte da Capital, no bairro da Agua Fria, ali praticava a Clínica Geral, como Médico de Família. Professor Sampaio considerava isto incompatível com a prática da especialidade, sobretudo em se tratando de uma Clínica Dermatológica Universitária. Disse-me que estaria disposto a rever sua posição, caso eu me dispusesse a fechar esse consultório, passando a praticar apenas a Dermatologia. Expliquei que era impraticável atendê-lo, pois era casado e já tinha três filhos, estando o quarto a caminho. Minha família dependia totalmente dos rendimentos de meu consultório.

Estando ambas as posições esclarecidas constatamos que não haveria possibilidade de encontrarmos uma convergência. Solicitei que fosse permitido meu retorno à Clínica e reafirmei, em contrapartida, eu lhe entregaria meu cargo quando ele assumisse a Cátedra. Assunto resolvido!

A partir desse dia vigorou o armistício, a paz foi restabelecida e fiquei plenamente integrado na Clínica de Dermatologia. Em dezembro do ano seguinte o Concurso foi realizado, o Professor Sebastião Sampaio foi vitorioso e eu cumpri o prometido, entregando meu pedido de demissão.

Encerrou-se assim meu primeiro período de convívio com a Dermatologia. O que viria depois?

DEPOIS DA TEMPESTADE, A BONANÇA

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Um bom ambiente de trabalho é indispensável para sentir o chão firme, colocando ao alcance os projetos pessoais. Foi assim a partir de meados de 1959, quando o Professor Sampaio passou a se dedicar inteiramente ao preparo de sua Tese para o Concurso de Cátedra, que iria se realizar no ano seguinte. Foi assim também para mim, que mantive minha condição de Assistente da Clínica, pelo menos temporariamente. Continuava a ser o primeiro a chegar, às sete da manhã, e o último a sair, já após o meio dia.

Manhãs de trabalho extremamente produtivas, ou junto aos pacientes, ou na Biblioteca, estudando nos Tratados de Dermatologia os casos atendidos. Nessa ocasião convivi muito de perto com Doutor Argemiro Rodrigues de Souza e, apesar de ele ter vinte e tantos anos de idade a mais do que eu, logo manifestamos mútua simpatia e entre nós surgiu duradoura amizade. Esta persistiu para sempre e, inclusive, gerou minha primeira comunicação

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científica. Fomos autores de trabalho publicado nos Anais Brasileiros de Dermatologia, em setembro de 1959. Minha primeira publicação científica, nada de importante, apenas registrava um caso raro de “Sarna norueguesa”. Ficava melhor o título em inglês, “A case of Norwegian Scabies”.

Tomei gosto pela coisa. Nos meses seguintes publiquei outros três trabalhos, como Autor ou como Co-autor. Foi um período altamente produtivo, de avanço do conhecimento da especialidade, de muito estudo e de muita prática. Ao praticar a especialidade sentia, cada vez mais, que fizera a escolha certa, era na Dermatologia que estava o meu futuro.

Houve um acontecimento, nesse período, que merece destaque por ter posteriormente influenciado a minha presença, na especialidade. Foi o retorno a São Paulo do Colega Raymundo Martins Castro, voltando de um longo estágio feito na Alemanha, em Serviço de Moléstias Infecciosas. Conforme ele próprio me relatou na época, ao voltar ficara colocado diante de um dilema difícil de resolver, tinha de decidir sobre seu próprio futuro. Isto porque estava colocado entre dois distintos polos de atividade profissional.

De um lado, fizera sua Residência Médica na Clínica de Moléstias Infecciosas e Tropicais, que nós chamávamos a MI, no Hospital das Clínicas de São Paulo, na qual era Titular o Professor João Alves Meira. Nessa ocasião havia se aproximado do Departamento de Microbiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o qual tinha à frente o Professor Carlos da Silva Lacaz.

De outro lado o pai de Raymundo, o Doutor Abílio Martins Castro, era consagrado dermatologista, da Capital, igualmente seu irmão, Abilio Filho, estava em destaque na prática dermatológica. Havia, portanto, um forte apelo para que Raymundo decidisse pela especialidade, continuando a tradição familiar.

A escolha do tema para a Tese do Professor Sebastião Sampaio — “Tratamento da Blastomicose Sul Americana com Anfotericina B” — facilitou a decisão de Raymundo. Como havia necessidade de um bom entrosamento entre a Dermatologia e a Microbiologia, entre o Professor Sampaio e o Professor Lacaz, a ponte poderia ser feita por Raymundo. Foi exatamente isto o que aconteceu, ele foi nomeado Assistente da Faculdade e teve seu tempo de trabalho dividido entre a Clínica e o Laboratório de Pesquisas, isto é, entre a Dermatologia e a Microbiologia. Solução perfeita!

Havia um senão. Raymundo tinha formação em Moléstias Infecciosas e Tropicais, mas não em Dermatologia. Foi aí que inesperadamente eu entrei, vou explicar como passei a fazer parte do cenário.

Quando cursei o Quarto Ano da Faculdade, depois também o Quinto Ano, solicitei e fui aceito para fazer estágio, como estudante, na MI. Fui destacado para o grupo do Doutor Vicente Amato Neto, no qual o Médico Residente era exatamente Raymundo Martins Castro. Mantivemos, nós três, estreita colaboração por dois anos, eles foram meus Mestres na prática clínica. Entre nós três surgiu sólida relação de amizade, que perdurou depois por toda a vida.

Veja-se como é o destino! Como ele nos reserva situações inesperadas e curiosas!

Quando Raymundo foi destacado para a Clínica de Dermatologia, ainda não tinha formação na especialidade. Teria de acompanhar de perto, em tempo integral, o atendimento em Ambulatório e nas Enfermarias, sob a orientação de algum Colega mais experimentado. Para minha enorme surpresa, escolheu-me para ser seu orientador, com o que concordou o Professor Sampaio.

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Nos meses que se seguiram mantivemos estreito e produtivo convívio. Uma situação bastante curiosa, em que nossas posições haviam ficado invertidas: o Instrutor de ontem era o Estagiário de hoje, o Estagiário de ontem era o Instrutor de hoje.

Deu certo na prática clínica e deu certo no convívio humano. Para sempre!

HOSPITAL DO PÊNFIGO FOLIÁCEO

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UMA PONTE, DO HC AO FOGO SELVAGEM

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Ao terminar o mês de agosto de 1959 eu completaria meu primeiro ano de Dermatologia. Quatro meses como Estagiário da Clínica Dermatológica, no Hospital das Clínicas, o HC, oito meses como Assistente Extranumerário da Disciplina de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a FMUSP.

Passar tantos meses vendo e apalpando cada centímetro quadrado de pele; procurando classificar corretamente aquilo que via; compreendendo o significado da distribuição das lesões na superfície cutânea; estabelecendo o nexo entre o que se passava na pele e também nos demais órgãos e sistemas do corpo; tudo contribuía para se chegar a um diagnóstico tão exato quanto possível e, consequentemente, para indicar a conduta mais acertada.

Mais ainda, se não bastasse o exame clínico, tinha à disposição a mais completa facilidade para obter material que seria enviado ao Laboratório. Raspando e coletando escamas de pele ou de unhas, também os cabelos, no caso de suspeita de micoses; ou então coletando o pus para identificação de bactérias, quando se tratava de infecções cutâneas; procedendo a biópsia, nos tumores cutâneos e nos casos difíceis de interpretar; pesquisando a sensibilidade da pele, em casos de lepra; tudo estava ao alcance, era só praticar o procedimento correto que lá vinha o diagnóstico do caso.

Uma acurácia diagnóstica como esta eu não havia encontrado em nenhuma outra especialidade médica. Naquele mês de setembro eu já decidira continuar a praticar a Dermatologia, apesar de estar vivendo um momento de intranquilidade. Explico melhor.

O começo na Dermatologia havia sido muito promissor, na ocasião em que o Professor João Aguiar Pupo me convidou para ser seu Assistente. O desdobramento se tornou desfavorável quando retornou dos Estados Unidos o Doutor Sebastião de Almeida Prado Sampaio, que se preparava para substituí-lo, na Disciplina da Faculdade e na Clínica do HC. Doutor Sampaio não me conhecia e em sua equipe não havia lugar para um desconhecido, isto é, para mim.

Aceitando esta realidade, que eu não poderia modificar, informei-o que iria devolver a ele o cargo que ocupava, tão logo fosse vitorioso em seu Concurso de Cátedra, o que iria acontecer no final do ano seguinte, 1960. Um acordo de cavalheiros, um gentleman’s agreement, que funcionou bem.

E agora, como prosseguir, onde prosseguir?

Foi por volta do mês de maio de 1960 que surgiu uma resposta a esta pergunta. Em Sessão do Departamento de Dermatologia da Associação Paulista de Medicina esteve presente um médico que trabalhava no Hospital do Fogo Selvagem, o Doutor Mario Fonzari, comentou comigo que havia uma vaga para médico no Hospital, estava difícil encontrar quem a aceitasse.

A doença tinha nome assustador, o aspecto dos pacientes e seu sofrimento eram mais assustadores ainda. Os raros candidatos que chegavam a visitar o Hospital desistiam imediatamente, isto vinha acontecendo há meses e meses. Além do mais, o Hospital Adhemar de Barros — era este realmente seu nome — ficava no Bairro do Mandaqui, no extremo Norte da Capital, longe do Centro da Cidade. É bem verdade que uma tradicional Estrada de Ferro, a da Cantareira, passava em sua porta e tinha estação ao lado. Mas

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médicos não gostavam de andar de trem, isto era popular demais, preferiam ir com seus carros. A distância era um obstáculo, desestimulante para os que até lá iam procurando conhecer melhor o possível emprego.

Havendo vaga, por que não eu, que estava procurando algo assim?

O que para outros era empecilho, para mim foi uma facilidade, um fator que pesou em minha decisão. Morava e tinha meu consultório privado no Bairro da Agua Fria, ao lado do Mandaqui, distando apenas dois quilômetros do Hospital, para mim o acesso era fácil. Desde que havia iniciado minha vida profissional, ali no bairro, em época em que eu sequer tinha recursos para comprar um carro, quantas vezes havia atendido a chamados para consultar doentes acamados e lá ia eu caminhando, indo e voltando, da Agua Fria ao Mandaqui. Estava acostumado, a distância não era problema.

Ser nomeado foi fácil. O Hospital do Pênfigo Foliáceo estava administrativamente subordinado ao Departamento de Profilaxia da Lepra, da Secretaria de Estado da Saúde, seu Diretor era o Doutor José Moacyr de Alcântara Madeira. Eu já o conhecia bem, acompanhara seu atendimento ambulatorial, durante meu Estágio no HC, no ano anterior. Mantínhamos desde então cordial relação, isto facilitou a aceitação de meu nome e minha nomeação.

Em 20 de junho de 1960 iniciei meu trabalho, no Hospital.

Hospital Adhemar de Barros, assim era chamado na Secretaria da Saúde.

Hospital do Pênfigo Foliáceo, diziam os dermatologistas.

Hospital do Fogo Selvagem, este o nome que o povo lhe dera.

FOGO SELVAGEM

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Oficialmente era o Hospital Adhemar de Barros, para nós dermatologistas era o Hospital do Pênfigo Foliáceo, para o povo simplesmente o Hospital do Fogo Selvagem.

Foi um dos melhores hospitais que conheci, ao longo de toda a minha vida e, diga-se, conheci muitos e muitos hospitais. O Hospital do Pênfigo se destacava, não pela sofisticação ou por equipamento especializado, mas por ter sido construído para um fim específico e, para tanto, ter todo o seu planejamento feito para compatibilizar os fins com os meios.

Vejamos primeiro um pouco da sua história.

Na primeira metade do Século XX a ocorrência de “Fogo Selvagem” no Estado de São Paulo havia aumentado vertiginosamente. A razão foi ter havido progressiva extensão das fronteiras agrícolas, em busca de novas terras para o plantio de cafezais. Elas se estenderam para cima da Região de Ribeirão Preto, em direção a Minas Gerais; pela Ferrovia Noroeste em direção a Rio Preto, indo mais adiante, até Jales e Santa Fé, já na fronteira com Mato Grosso; também avançaram pelas Estradas de Ferro, Sorocabana e Paulista, atingindo as barrancas do Rio Paraná.

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Em todas as novas regiões agrícolas as matas foram devastadas e, na medida em que isto ocorria, multiplicavam-se mais e mais os casos de Pênfigo Foliáceo. A doença cobria o paciente de bolhas e ele parecia de ter caído em um tanque de água fervente, “ficando queimado” da cabeça aos pés. Era esse o aspecto adquirido por aqueles que adentravam as matas e passavam a viver ali. Nada mais apropriado do que o nome dado pelo próprio povo, ainda no Século XIX: “Fogo Selvagem”. A doença não era comum, mas também não era nenhuma raridade, muitos casos eram encaminhados para o Hospital.

Era uma doença grave e que levava o paciente ao leito, sendo difícil manuseá-lo, pois onde se tocasse a superfície cutânea a pele se desprendia e deixava exposta uma área secretante, em tudo igual a uma queimadura de segundo grau. Além do aspecto dermatológico dramático, estava também presente um quadro clínico alarmante, com o paciente acamado emagrecendo progressivamente, sujeito a repetidas infecções. Casos sempre graves, em época em que não dispúnhamos de antibióticos e de corticosteroides.

É verdade que havia formas mais frustras, compatíveis com a atividade cotidiana, as quais podiam sofrer lenta recuperação, espontânea. Eram em menor número estes mais afortunados, a maioria dos pacientes apresentava agravamento progressivo, muitos faleciam em estado de caquexia. Quase sempre a morte era motivada por ocorrência de uma infecção terminal.

Naquele início do Século XX constantemente surgiam novos casos, em todo o Interior de São Paulo, não havendo condições de serem internados em suas cidades de origem. Eram então encaminhados para a Santa Casa de São Paulo, sendo aqui recebidos pelo Professor Adolpho Carlos Lindenberg, Chefe da Sexta Medicina de Homens, onde funcionava a Dermatologia. Apesar da boa vontade da Instituição, o fato é que a demanda crescente chocou-se com a limitação de leitos disponíveis, surgindo a necessidade de encontrar uma solução de exceção. E com caráter de urgência.

Uma série de circunstâncias favoráveis confluíram e favoreceram a proposta de construção de um novo hospital. Primeiro, o fato do Interventor do Estado ser médico, era o Doutor Adhemar de Barros, este foi bastante sensível ao apelo da Santa Casa.

Segundo, já havia sido decidida a construção de um Parque Hospitalar para a internação de pacientes com Tuberculose Pulmonar e fora escolhida uma área grande, no extremo Norte da cidade, no bairro do Mandaqui, proximidades da Serra da Cantareira. Naquela época, como não existiam medicações específicas para a tuberculose, procurava-se oferecer ao paciente internação hospitalar e cura climática. Tudo já estava lá, no Mandaqui, a cobertura financeira, a maquinaria, o pessoal necessário.

Terceiro, ao lado do Parque Hospitalar do Mandaqui havia restado uma grande área que não iria ser ocupada. Ali mesmo, contígua, por que não construir nela mais um hospital?

Com condições tão favoráveis, faltava agora encontrar um médico, preferentemente um dermatologista, com larga experiência no tratamento da doença. Este médico existia e se colocou à disposição do Governador Adhemar de Barros. Por feliz coincidência, já se conheciam desde os tempos de Faculdade, ambos haviam cursado a Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Seu nome: Doutor João Paulo Botelho Vieira.

Tudo combinou bem, construção iniciada e logo concluída, já em 1939.

Com a inauguração do Hospital Adhemar de Barros — o Hospital do Fogo Selvagem do Mandaqui — teve início uma nova era, com novas perspectivas, para os doentes de tão grave moléstia.

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JOÃO PAULO BOTELHO VIEIRA, UM ABNEGADO

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Na década dos anos trinta convergiram vários argumentos de peso, todos indicando a necessidade de ser construído um hospital especificamente destinado à internação dos pacientes com Pênfigo Foliáceo, o temido “Fogo Selvagem”.

A base econômica do Estado era o café, nas fazendas os colonos adoeciam e não encontravam o atendimento adequado. O aumento progressivo de novos casos de Pênfigo, em todas as regiões do Estado; a vinda destes pacientes para São Paulo, em procura da Santa Casa da Capital; a internação prolongada, com o consequente bloqueio dos leitos disponíveis; a necessidade de cuidados especiais para o manejo dos doentes, requerendo instalações apropriadas que não existiam na Santa Casa; tudo isto se somava, pelo lado do problema.

De quem se poderia esperar a solução? Bem, o Interventor do Estado de São Paulo era Adhemar de Barros, médico, por força de sua formação profissional era sensível ao problema. Por feliz coincidência, para os lados da Zona Norte da Capital, já nas proximidades da Serra da Cantareira, havia sido iniciada a construção de um grande Parque Hospitalar destinado à internação de tuberculosos. Iria ocupar uma grande área, no bairro da Mandaqui, mas tinha tal dimensão que poderia ser dividido e parte ser destinada a um eventual Hospital do Pênfigo.

Muito bem, decisão tomada, hora de fazer. Quem iria coordenar o projeto? Um projeto que não pretendia apenas alojar pacientes, mas oferecer a eles uma real perspectiva de cura? Um nome foi lembrado e logo se impôs, foi aprovado: João Paulo Botelho Vieira. Um dermatologista que havia feito sua especialização na Europa e voltara ao Brasil, atendia na Santa Casa e era dedicado ao atendimento dos pacientes de Pênfigo, ali internados. Foi ele quem contribuiu para planejar o Projeto do Hospital do Pênfigo, acompanhou sua construção, ao fim desta assumiu a Diretoria.

Hospital totalmente planejado para a finalidade a que se destinava. Enfermarias amplas, com capacidade para seis leitos. Espaço entre as camas também bastante funcional, permitindo fácil manejo das macas que diariamente eram levadas e trazidas, tendo como destino as salas de banho. Banheiros amplos, divididos em boxes, cada qual com sua banheira.

Só os que trabalhavam com doentes de Pênfigo sabiam dos cuidados que eram necessários, compreendiam como este planejamento era importante. O paciente de Pênfigo tem pele extremamente frágil, que facilmente se desprende dos planos mais profundos. Quando manejamos o paciente, por exemplo, para levá-lo ao banho, a pele desliza com facilidade e se destaca, fica em nossas mãos. Como os pacientes permaneciam acamados as vinte e quatro do dia, as secreções eliminadas através da pele faziam com que a ela ficassem aderidos os pijamas, as camisolas, os lençóis. Impossível tentar remover tudo isso sem que toda a pele fosse arrancada, junto com as vestes. Um drama que se renovava todas as manhãs. Como evitá-lo?

Uma maca era posta ao lado do leito e, para o paciente ser sobre ela colocado, era necessária a cooperação de pelo menos duas pessoas da enfermagem. Era suspenso envolvido em seu lençol, sem nenhuma tentativa de separar os panos da pele. Levado na

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maca simplesmente embrulhado, era mergulhado na banheira, assim mesmo. A água estava aquecida a nível tépido, era tolerável pelo corpo ao qual faltavam largos pedaços de pele. Dentro da banheira os panos, umedecidos, iam se desprendendo de modo natural, sem sofrimento. Os pacientes adoravam os banhos mornos, davam a ele extrema sensação de alívio e de bem estar. Quantos pacientes eram assim banhados? Duas centenas de internados passavam por isto diariamente, metade deles na ala de homens, a outra metade na de mulheres. Um esforço diário que exigia amplas instalações, no hospital, além de uma dedicada equipe de apoio.

O êxito de um trabalho tão penoso exigia vocação e dedicação, ambas existiam na equipe de Enfermagem que ali trabalhava. Mérito também de quem comandava, do Diretor, que sabia escolher as pessoas e sabia conduzir o barco. Mérito do Doutor João Paulo Botelho Vieira, idealizador do Projeto nos anos trinta, Diretor nomeado em 1939, Comandante-Chefe de um exército de abnegados por trinta anos, até a ocasião em que se aposentou.

É justo que seu nome seja sempre destacado, quando se fala no Hospital do Fogo Selvagem.

FOGO SELVAGEM, MEU COMEÇO

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Chego bastante cedo, pouco depois das sete da manhã, era meu primeiro dia de trabalho no Hospital. Recebo o consultório que me foi destinado, fico sabendo que cada médico tem uma sala só para si, para uso próprio. Não só para o exame clínico dos pacientes internados, mas também como armário de uso individual, para guardar vestuário e instrumental. Ainda mais, uma estante para guardar livros e revistas médicas. Um luxo.

Tomo posse do local e, logo após as oito horas, batem à porta. Abro e vejo um enfermeiro devidamente uniformizado, avental imaculadamente branco, homem de altura média, enxuto de carnes, de meia idade, mantém-se empertigado e se apresenta:

“— Enfermeiro Cláudio, responsável pela Ala Masculina.”

O Diretor do Hospital, Doutor João Paulo Botelho Vieira, já havia me informado que a Ala dos Homens iria ficar sob meus cuidados, a Ala das Mulheres já era tradicionalmente atendida pelo Doutor Mario Fonzari.

“— Muito bem Cláudio, vamos lá iniciar a visita”.

Ele pareceu surpreso, informou que os pacientes internados que necessitavam uma revisão, poderiam ser trazidos a minha sala. Pelo menos, era este o hábito, no Hospital.

“— O Doutor pretende apenas conhecer a Ala de Homens, ou estas visitas serão habituais?”

“— Esta é a minha maneira de trabalhar, pretendo visitar os internados todas as manhãs, logo no início do horário de trabalho. Irei não só às Enfermarias, mas também às Salas de Curativos e aos Banhos”.

Visitar diariamente os internados, conversar com todos, perguntando como se sentiam, examinar com mais cuidado os que tinham queixa clínica, tudo contribuiu para que rapidamente se estabelecesse a boa relação Médico-Paciente.

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Visitar as Salas de Banhos causou profunda impressão. Elas haviam sido bem planejadas, eram amplas e com boxes individuais, cada boxe com banheira que permitia um bom manejo dos pacientes. Uma situação especial era a dos internados que se encontravam em estado mais grave, com acometimento generalizado. Sua pele estava constantemente umedecida por secreções e estas, ao dessecarem, formavam crostas que a faziam aderir aos camisolões, ou aos pijamas, que usavam. Para estes pacientes mais graves retirar a roupa para entrar no banho era um momento muito doloroso: junto com as vestes vinha também a epiderme aderida, em consequência ocorriam sangramentos, muita dor era habitual.

A solução era levar uma maca até o leito e colocar sobre ela o paciente, embrulhado em seus lençóis. Era assim mesmo levado para a Sala de Banhos e mergulhado na banheira, já cheia com água aquecida. O paciente aguardava que os panos, bem umedecidos, fossem se desprendendo da pele, ele mesmo os separava, cuidadosamente, facilitando sua remoção.

Causava emoção ver seu alívio enquanto permanecia na água tépida, já livre de vestes e lençóis. Caso fosse deixado, certamente ali permaneceria com prazer, pelo restante do dia.

E quanto ao tratamento?

O quinino fora introduzido ainda nos anos trinta, para o tratamento da malária e, nos anos quarenta, foram surgindo seus derivados sintéticos: a metoquina, depois a cloroquina, depois ainda a hidroxicloroquina. A metoquina foi a primeira a ser ensaiada no tratamento do Pênfigo Foliáceo e, embora os resultados não fossem brilhantes, em muitos casos produzia resultados bastante razoáveis, foi introduzida na rotina e prescrita para todos os internados. Os resultados surgiam lentamente, levavam meses e mesmo anos para que se chegasse a um estado aceitável, satisfatório. De qualquer forma, era só com ela, a metoquina, que podíamos contar.

Meses após ser iniciada a metoquina a pele ia se tornando mais aderente, menos frágil, ao mesmo tempo em que ia assumindo coloração amarelada, um amarelo escuro que nada agradava aos pacientes. Os brancos se tornavam pardos, os morenos claros viravam morenos muito escuros, mas o que fazer, era só o que havia para tratar a doença, era preciso resignação.

Após longo tempo os doentes, já melhorados, não mais permaneciam acamados, mas ainda não tinham condições de receber alta definitiva. Persistiam muitas lesões residuais que impediam sua reinserção familiar e social, lesões estas que estavam localizadas ou no couro cabeludo, ou no centro da face, ou na parte mediana do tórax anterior e posterior, ocasionalmente nos membros. Melhorados estavam, mas não curados. Além disso persistia a cor terrosa, escura, causava má impressão. Para onde ir? Mesmo para os que eram casados, ao internarem, podia haver problemas, pois após anos de separação muitos lares haviam sido desfeitos.

A solução foi desenvolver a chamada “Laborterapia”, experiência já conduzida com sucesso nos Hospitais de Lepra da Secretária de Estado da Saúde. Era uma oportunidade que se oferecia aos que ainda precisavam permanecer internados, em tratamento, mas que já tinham recuperado sua capacidade de desenvolver alguma atividade laboral. A Laborterapia permitia aproveitar pacientes já melhorados, homens e mulheres, como porteiros, jardineiros, auxiliares de enfermagem, escriturários, pessoal de limpeza e de lavanderia, enfim um pouco por toda parte. E recebiam um pró-labore, com isto iam vivendo.

Heroicos, aqueles tempos! Abnegados eram os médicos e a enfermagem. Resignados eram os pacientes. Todos enfrentando, junto, as dificuldades impostas por uma doença de difícil cura, com recursos medicamentosos limitados.

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Foi na década dos anos cinquenta que começaram a ser empregados corticosteroides no tratamento do Pênfigo Foliáceo. A partir desse momento um largo caminho se abriu, permitindo uma mais rápida recuperação dos pacientes. Tudo mudou.

SABENDO VER, UM PRÊMIO

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Recebo um Ofício: “— A Comissão Científica do Colégio Ibero-Latino-Americano de Dermatologia, CILAD, atribuiu aos Doutores Nelson Guimarães Proença, Raymundo Martins Castro, Evandro Rivitti e Luís Florêncio Salles-Gomes o Premio Anual que é concedido ao melhor trabalho científico publicado em 1972, em sua Revista I.L.A. : Erupção Variceliforme de Kaposi por Herpesvirus hominis em doentes de Pênfigo Foliáceo Sul-Americano — Vol 14 (4) : 443, 1972). Ficam conferidos aos autores os respectivos diplomas”.

Ufa! Nenhum de nós estava em Lisboa, por ocasião do Congresso em que isto aconteceu, a comunicação foi feita por correspondência e nos apanhou de surpresa.

Esta história começa muito antes, foi em 1960, logo após eu ter iniciado meu trabalho no Hospital do Pênfigo Foliáceo, em São Paulo. É interessante recordar como foi.

Em uma manhã de agosto, menos de trinta dias após iniciar meu trabalho, apresenta-se em minha sala de consultas o Enfermeiro Cláudio, informa que um paciente internado na semana anterior estava com “reação de pus”.

“— Reação de pus? O que é isto? Vamos ver.”

Lá fomos e Cláudio vai me informando que isto acontece uma vez ou outra, atingindo pacientes que são de internação recente: “ — Interessante, só dá uma vez no mesmo doente”, ele me informa.

Examino o paciente e constato que realmente está com a face coberta de vesículas de conteúdo claro, amarelado, estas se estendem também para o pescoço, mas já em menor número, tornam-se esparsas no tórax.

Penso em voz alta: “— O conteúdo é menos espesso do que o pus, as vesículas permanecem íntegras, só se rompem quando são friccionadas, isto tudo é diferente das infecções bacterianas, das chamadas piodermites. Não, Claudio, isto deve ser outra coisa”.

Recordo-me então de um caso visto no Hospital das Clínicas, na Enfermaria de Pediatria, algum tempo antes. Tratava-se de criança com idade em torno de um ano, portadora da forma de eczema denominada dermatite atópica; ela estava coberta de vesículas semelhantes às que eu via agora. Naquela criança os mais experientes haviam feito o diagnóstico de “Erupção Variceliforme por Herpesvirtus hominis”, afecção descrita pelo Professor Kaposi, em Viena, na segunda metade do Século Dezenove. Sim, o meu penfigoso deveria estar com esta infecção.

Decidi procurar o Instituto Adolpho Lutz, precioso Centro de Apoio para o diagnóstico e o acompanhamento de doenças infecciosas, seu prédio fora construído na Avenida Dr Arnaldo, ao lado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Seus laboratórios eram perfeitamente equipados, contavam com cientistas de alto nível, dando suporte a tudo o que dizia respeito às doenças infecciosas e contagiosas.

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Procurei o Instituto Adolfo Lutz e, na Seção de Vírus, conversei com o responsável, Professor Luis Florêncio Salles-Gomes. Orientou-me sobre como coletar e acondicionar materiais para exames, da pele e do sangue, também como fazer sua preservação e seu transporte. A satisfação causada pelo diagnóstico correto, a recompensa, veio na semana seguinte, o resultado confirmou que se tratava do vírus do Herpes Simples. Foi esta a primeira observação mundial da ocorrência da “Erupção Variceliforme de Kaposi”, em doentes com Pênfigo Foliáceo.

Nos meses que se seguiram, ao final de 1960 e início de 1961, diagnostiquei mais quatro casos, todos devidamente comprovados com o apoio do laboratório. Isto permitiu uma publicação, feita como “Nota Prévia”, na Revista Paulista de Medicina, em julho de 1961.

Ao ser afastado do Hospital do Pênfigo, entre o final de 1961 e o início de 1969, este trabalho ficou interrompido. Somente após ter a ele retornado foi possível dar continuidade ao estudo, coletando mais oito casos e avançando a casuística para o total de treze doentes. Esta pesquisa foi utilizada para minha Tese de Doutorado, defendida na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, em 1970.

Continuamos nesta linha de pesquisa e conseguimos chegar a dezenove pacientes com Pênfigo Foliáceo, afetados pela infecção herpética. Foi a descrição desta casuística que enviamos para publicação na Revista CILAD.

Esta a história que queríamos relembrar. Teve interessante desfecho e nos gratificou com uma boa surpresa, nosso trabalho foi premiado.

CORTICOIDES versus DOENÇA

RESULTADO BOM, CONSEQUÊNCIA INESPERADA

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“É uma doença consumptiva, depauperante, o doente entra em caquexia”. O diagnóstico de Fogo Selvagem era sempre acompanhado das mais pessimistas previsões. E na maior parte dos casos, quando a doença generalizava e se estendia para toda a superfície do corpo, esse pessimismo era confirmado.

Lá pelos idos dos anos quarenta foi introduzida para tratamento do pênfigo foliáceo a metoquina, um antimalárico do grupo da cloroquina, com resultados pelo menos razoáveis. Diminuiu a mortalidade, o paciente pôde deixar o leito e passar a se movimentar e, após vários anos, alguns puderam receber alta hospitalar, sendo transferidos para o Ambulatório. Todos os internados foram assim tratados, naqueles anos, o curso era sempre muito prolongado e o resultado incerto, não ocorriam curas completas, ficavam sequelas. Mas muitos pacientes sobreviviam e se reintegravam, ainda que parcialmente, à vida social.

Por volta dos anos quarenta foi sintetizado o hormônio estimulador da glândula suprarrenal, o qual os americanos denominaram “Adrenal Cortical Trophic Hormone”, o ACTH. Sua ação foi muito interessante em doenças inflamatórias até então consideradas incuráveis, o que estimulou a procura de sintéticos que fossem tanto ou mais potentes, mais seguros e menos causadores de efeitos colaterais desfavoráveis. No início da década dos anos cinquenta ficaram disponíveis a cortisona, comercialmente chamada de Cortone, logo a seguir a prednisona e a prednisolona, depois a triancinolona e a dexametasona.

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Os corticosteroides causaram uma revolução na prática médica, na terapêutica! Esta revolução chegou ao Hospital do Pênfigo Foliáceo — o Hospital do Fogo Selvagem — mais para o fim dos anos cinquenta. Foi nessa ocasião, logo após terem sido feitos os primeiros ensaios terapêuticos com estas novas drogas, que fui nomeado e assumi meu cargo, no Hospital.

Recorde-se que as dosagens contidas nos comprimidos de corticoides vinham diminuindo, passaram de vinte miligramas de cortisona para cinco de prednisona, depois somente para meio miligrama, de dexametasona. Foi esta última a medicação introduzida em nosso Hospital, dois ou três anos antes de minha chegada, sendo relativamente benéficos os resultados obtidos com apenas dois comprimidos diários. Com esta dosagem o paciente deixava de ser um acamado permanente, já ia caminhando para a Sala de Banhos, começava a cuidar melhor de si mesmo. Sobrevivia, embora ainda com muitas lesões resistentes, estas criavam uma limitação para sua atividade diária. As internações se prolongavam por tempo indeterminado, imprevisível.

Em junho de 1960, ao iniciar minha atividade como médico contratado, perguntei se já havia sido tentado um aumento da dosagem diária, isto deveria permitir um mais rápido e adequado controle da doença. Não, isto ainda não fora tentado e a justificativa era difícil de aceitar: a quantidade total de comprimidos de dexametasona enviada pela Secretaria da Saúde a cada seis meses tinha de ser equitativamente distribuída por todos os internados. Consequência: a dosagem diária ficava limitada àqueles dois comprimidos, por paciente. Um obstáculo de ordem administrativa, a Secretaria de Estado da Saúde era parcimoniosa nas compras!

É sempre prudente que médicos novos, que iniciam suas atividades, procurem não se chocar com situações e conceitos pré-estabelecidos. É preciso que decorra certo tempo até que ele, tendo formado suas próprias convicções, possa se armar com argumentos para fazer algo de novo. Esta experiência de vida eu ainda não tinha, naquela época, quando convencido de que algo de novo precisava ser feito, era precipitado, intempestivo, logo tomava iniciativas independente de autorização superior.

Haviam sido publicados, em revistas científicas, os primeiros trabalhos que demonstravam a excelente ação de corticoides no tratamento de outra doença bolhosa grave, o Pênfigo Vulgar. Trabalhos convincentes mostravam a possibilidade de se obter o controle completo desta moléstia quando se iniciava o tratamento com altas doses de prednisona: em torno de cinquenta miligramas ao dia, o que equivalia a dez comprimidos. Caso se optasse pela dexametasona, estes trabalhos destacavam que a equivalência terapêutica se dava entre cinco miligramas de prednisona e meia miligrama de dexametasona. Isso mesmo, assim estavam dosados os comprimidos disponíveis, cinco miligramas os de prednisona e meio miligrama os de dexametasona, mas eram absolutamente equivalentes.

Levando em conta a experiência já comprovada no tratamento do pênfigo vulgar, eu precisaria administrar dez comprimidos de dexametasona por dia, no início do tratamento. Ocorre que a Ala de Homens, sob meus cuidados, recebia algo em torno de duzentos e cinquenta comprimidos por dia, que precisavam ser distribuídos entre os cento e vinte e cinco internados. Média de dois comprimidos por paciente.

Já estávamos chegando ao final do ano de 1960 quando tomei uma resolução ousada. Reduzi a dose diária, para todos os internados na Ala Masculina, a apenas um comprimido diário de meio miligrama, de dexametasona. Foi assim que fiquei com uma sobra de mais de cem comprimidos, todos os dias, tornando possível um novo ensaio terapêutico.

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Selecionei dez pacientes graves, dentre os mais recentemente internados, sendo cinco da Ala Masculina e cinco da Feminina, em todos iniciei o tratamento com dez comprimidos diários de dexametasona, o que equivalia ao total de cinco miligramas ao dia. O resultado não se fez esperar, foi rápida a recuperação completa dos pacientes, após poucas semanas. Foi possível iniciar a redução da dosagem diária, chegando às doses de manutenção.

Muitos efeitos colaterais ocorreram, é verdade, como o ganho de peso, as retenções hídricas com edemas, a hipertensão arterial, os diabetes que descompensaram. Mas os pacientes estavam totalmente recuperados, do fogo selvagem! Ao chegar à dose diária de manutenção puderam receber alta e tiveram reinserção social e familiar, retornavam depois ao Ambulatório para serem acompanhados.

Para o médico, o sucesso da conduta proposta, um resultado tão brilhante, trouxe a sensação de bem estar, de missão cumprida com êxito, de realização profissional. O mesmo ocorreu com o grupo de doentes tratados. Mas aconteceram inesperadas consequências.

Pelo lado dos pacientes internados e não incluídos no grupo de estudo, uma quase rebelião. Por que não eles? Indignados, exigiam que fossem igualmente tratados, que a administração do Hospital obtivesse, junto à Secretaria da Saúde, significativo aumento da quantidade de dexametasona. As dificuldades próprias da burocracia do Serviço Público retardavam o atendimento a este pedido.

Gente moça ainda não aprendeu a ler as entrelinhas, o que está subentendido, isto demanda tempo e experiência. Há desdobramentos não previstos quando se propõe algo de novo, que a seu entender tem de ser feito. Por vezes, a gente moça fica envolvida por um ambiente desfavorável, em seu trabalho, o que dificulta e até mesmo impede a sua continuidade. Foi isto que aconteceu comigo, havia avançado em poucos meses muito mais do que o conjunto havia conseguido fazer, nos anos anteriores. Isto causa ressentimentos.

Não entro em detalhes, mas subitamente o ambiente se tornou desfavorável, por volta de março de 1962 fui colocado à disposição da Diretoria do Departamento de Profilaxia da Lepra, pois era a ela que nosso Hospital do Pênfigo Foliáceo estava subordinado.

Fui então transferido para o Hospital Padre Bento, em Guarulhos, uma mudança enorme, agora teria de me dedicar ao atendimento de pacientes com lepra.

Um pouco para meu consolo eu soube, depois, que os doentes internados no Hospital do Pênfigo Foliáceo tiveram suas dosagens diárias de corticoides aumentadas, não como eu propunha, mas pelo menos de dois para três comprimidos diários. Foi algo de bom, já haviam melhorado, os resultados.

Fiquei feliz, por eles.

SANATÓRIO PADRE BENTO

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UM DERMATOLOGISTA PARA PADRE BENTO

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“— Você tem boa formação em Dermatologia e é disso que estamos precisando, em nossos hospitais de lepra”.

Quem falava, simpaticamente, era o Doutor José Moacyr de Alcântara Madeira, Diretor do Departamento de Profilaxia da Lepra, da Secretaria de Estado da Saúde.

“— Vou encaminhar Você para o Sanatório Padre Bento, lá estamos sem dermatologista, pode começar já na segunda feira.”

Após dois anos de Hospital das Clínicas, mais ano e meio de Hospital do Pênfigo Foliáceo, dermatologista eu era, mas formação em Leprologia, nada. Seria a pessoa certa?

”— Não precisa se preocupar. Em pouco tempo Você estará familiarizado com a matéria e precisamos de Você lá. Temos Cirurgião Geral, Ortopedista, Ginecologista e Obstetra, etcetera, etcetera, mas nenhum dermatologista. É a pessoa certa”.

Não tinha alternativa, era pegar ou largar, confirmei que me apresentaria no dia determinado, a segunda feira seguinte. Onde fica, mesmo, o Hospital?

“— Em Guarulhos, no Bairro de Gopouva, este é vizinho a Vila Galvão, fácil encontrar”. Bem, o Município de Guarulhos era na divisa da Zona Norte da Capital e nesta eu já morava, meu bairro era a Agua Fria. Menos mal. Olhando o mapa da cidade, parecia não ser tão distante.

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Poderia alcançá-lo indo pela Via Dutra, mas o trajeto encompridava e a Dutra era congestionada. Por aqui, nada animador.

A alternativa era ir “por dentro”. Olhando o mapa fui vendo e anotando os bairros que se sucediam, as vias principais para transitar, seria uma economia de distância e de tempo. Da Agua Fria para o Tucuruvi, percorrendo então sua principal avenida, de início ao fim, chegando à Estrada do Guapira. A partir do morro do Tucuruvi a Estrada se estendia mais para o Norte, passando por bairros novos, ainda em desenvolvimento, indo terminar uns quatro quilômetros depois, no Jaçanã. Aqui havia uma longa e larga via, a Avenida Luiz Stamatis, que avançava em direção a Vila Galvão; bordejava este bairro, de um lado, e o Parque Edu Chaves, de outro. Seguia em direção a Gopouva, este sim o objetivo a ser alcançado.

Na Avenida Gopouva um longo e alto muro indicava que havíamos chegado ao Sanatório Padre Bento. Completava-se então a jornada que, com trânsito livre, durava não mais do que uns trinta minutos. Sem dúvida era o caminho mais curto e mais rápido, melhor do que ir e voltar pela Via Dutra. Nos anos que se seguiram tornou-se um hábito utilizar este percurso, indo e vindo, da residência ao hospital.

A Portaria era ampla. Faço minha identificação e tenho acesso à área interior. Vejo à esquerda da entrada edificações usadas pela administração, à direita um hospital de boa aparência, parecendo bem cuidado e conservado. Percebo também, com espanto, que a área ocupada pelo Sanatório se estende até onde a vista alcança, em direção ao fundo. “— Como é enorme!”, exclamo, naquele primeiro contato com o Sanatório Padre Bento.

Fui conduzido à presença do Diretor do Hospital, Doutor André Cano Garcia, já me aguardava e a ele entreguei o ofício que trazia. Desde nosso primeiro contato houve mutua simpatia, foi de bom augúrio e este bom relacionamento prevaleceu depois, por todo o tempo em que trabalhamos junto.

Explicou-me como estava distribuída a atividade médica, no Sanatório. O Hospital que acabara de ver logo à entrada era Policlínico, porém exclusivamente destinado ao atendimento de leprosos encaminhados pelos Postos de Saúde de toda a Região Metropolitana, ou de outros hospitais gerais. Em casos de parto, ou de um quadro abdominal agudo, ou de uma pneumonia, estes pacientes, quando tinham algum tipo de intercorrência, eram encaminhados ao Sanatório, pois não eram aceitos na rede hospitalar existente. Caso ficassem internados no Hospital Policlínico, não era para o tratamento da lepra, mas sim das intercorrências que apresentassem. O hospital era bem equipado, a equipe médica era boa, o nível de atendimento de bom padrão, estava a altura das exigências.

O mesmo não se podia dizer da parte relacionada ao tratamento da lepra. Há anos que lá não trabalhava um único leprologista. O setor que mais se ressentia desta falta era o Pavilhão de Menores, o qual ocupava um edifício construído nos fundos do Sanatório, afastado de todo o restante. O distanciamento era proposital, fora planejado para manter afastados adultos e menores. No Sanatório estavam todos confinados, os adultos e os menores, permaneciam por anos e anos, a distância evitava a promiscuidade.

Doutor André me colocou em seu carro, levando-me para a área do fundo, fui conhecer o Pavilhão de Menores. A partir daquele instante ele entregou em minhas mãos o futuro de quatrocentas e cinquenta crianças e adolescentes, com uma única recomendação:

“— Cuide bem deles”.

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LEPRA: DUAS PÁGINAS, TRÊS MIL ANOS

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Até ser designado para trabalhar no Sanatório Padre Bento nunca havia passado, por minha cabeça, que um dia eu estaria trabalhando com doentes de lepra. Já havia visto certo número de casos, não muitos, durante meus dois anos de Clínica Dermatológica, no Hospital das Clínicas. Quase sempre eram casos novos, ainda não diagnosticados, nossa participação era só essa mesma, a de fazer o diagnóstico. Tão logo isto acontecia o paciente era encaminhado para tratamento em uma das unidades do Departamento de Profilaxia da Lepra. Conclusão: eu não tinha qualquer experiência no acompanhamento destes pacientes.

Agora “estava” leprologista por nomeação, assumia minhas funções em importante Sanatório, precisava me esforçar para suprir a falta de formação, nesta área. Paciência! Vi que era preciso voltar a estudar e a progredir, rapidamente, para estar à altura do novo desafio.

Estudei os Capítulos sobre Lepra em todos os livros que estavam a minha disposição, acabei não só por aprender o necessário, mas também me interessei por recolher informações sobre como a doença estivera presente, ao longo da História da Humanidade. Logo ficou claro, para mim, que a lepra se torna importante endemia em determinado lugar e em determinada época, para depois aí entrar em declínio, ficando reduzida a uma mínima ocorrência.

As referências mais antigas são encontradas no Velho Testamento, quando acomete o povo judeu, durante o Êxodo do Egito e a chegada ao Oriente Médio, mais precisamente à Palestina. A frequência com que é citada na Bíblia mostra a importância que adquiriu, sugerindo que o povo judeu era virgem de contato com o bacilo causador, portanto sem defesas imunológicas, estando suscetível à infecção bacteriana.

Uma segunda época assinalada pela História corresponde a das Cruzadas, quando contingentes de cruzados europeus, de diferentes países, são enviados à Palestina para recuperar Jerusalém. Não havendo lepra na Europa as populações eram suscetíveis, daí porque muitos cruzados voltam a seus países após ter contraído a doença. Destaque-se um hábito então surgido na Europa, o de construir em cidades novas os “lazaretos”. Como a lepra também era denominada “Doença de São Lázaro”, os pacientes eram “lázaros”, ou “lazarentos”, compreende-se que o lugar onde eram recolhidos fossem denominados “lazaretos”. Eram numerosíssimos os doentes, em toda a Europa, pois o bacilo havia encontrado populações ainda virgens de contato anterior. À medida que os Séculos foram passando e a resistência natural foi aumentando, ficou progressivamente reduzido o número de casos novos na Europa, tornando-se a doença uma raridade.

Na segunda metade do Século XIX os casos europeus remanescentes eram diagnosticados somente na Península Escandinávica, foi em doentes que ai residiam que Armauer Hansen encontrou o bacilo e o descreveu minuciosamente.

E no Brasil, por onde começou?

Os registros são claros. Nos anos seiscentos e setecentos os doentes identificados no Reino de Portugal eram degredados para o Brasil, desembarcados no Litoral do Espírito Santo e subiam a Serra, sendo encaminhados para as Minas Gerais. Repete-se então o que já foi referido antes, pessoas de uma área desprovida de lepra entram em contato com pacientes contaminantes, surge então a doença nas cidades que compõem a região das Minas Gerais.

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A propósito, suspeita-se que Aleijadinho, autor das maravilhosas esculturas de São João Del Rey, possivelmente tinha uma grave forma de lepra tuberculoide, que praticamente destruiu seus nervos periféricos.

A epidemia se alastrou pelo Brasil. Na época em que fui designado para trabalhar no Sanatório Padre Bento, São Paulo era o Estado líder no número de casos, dois pacientes para cada mil habitantes. No total eram em torno de cinquenta mil, os doentes.

A partir da introdução e utilização de medicamentos específicos, na metade do Século XX, no final dos anos quarenta e início dos anos cinquenta, a endemia entrou em declínio em São Paulo. Neste início de Século XXI não temos mais do que um caso por dois mil habitantes.

Este é um relato singelo sobre a Lepra na História da Humanidade, um resumo, mas creio que não deixa de ser interessante.

A LEPRA EM SÃO PAULO

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Qual era situação dos doentes de lepra no início do século XX, em São Paulo?

Ao contar agora alguns episódios irei transmitir informações que me foram dadas pelos próprios doentes, por isto corro o risco de não estar sendo preciso. Os fatos que desejo narrar estão baseados em depoimentos esparsos — melhor dizendo, em conversas ocasionais — que me foram feitos por eles, ao tempo em que trabalhei no Sanatório Padre Bento. São episódios vividos e narrados por pessoas que foram protagonistas, merecem ser relembrados.

Vamos voltar ao início do Século passado. A liderança da Dermatologia em São Paulo era exercida por Adolpho Carlos Lindenberg, fundador da Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo, em 1907, também Diretor da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, onde era Titular da Cadeira de Dermatologia. Em torno de sua liderança estavam agrupados os dermatologistas da Capital.

Todos? Não, havia um que se mantinha independente, o Doutor João de Aguiar Pupo, Professor também, mas que não participava da Clínica de Dermatologia da Santa Casa. Estava ligado ao Departamento de Profilaxia da Lepra da Secretaria Estadual de Saúde e neste campo era a figura central, em torno de seu trabalho agrupava médicos jovens que, mais tarde, tornaram-se renomados leprologistas.

Por volta de 1927, talvez 1928, as estatísticas colocavam São Paulo em desagradável posição de destaque, era o Estado da Federação com maior prevalência de lepra. Estaria ocorrendo, em São Paulo, uma epidemia? Nada disso, os muitos novos diagnósticos eram apenas o resultado esperado de um maior treinamento do pessoal médico e paramédico. Com estrutura de apoio melhor organizada, os dados disponíveis se tornavam mais confiáveis. Tudo mostrava uma prevalência bem maior do que se acreditava, já atingira algo em torno de dois casos para cada mil habitantes. O total de doentes do Estado deveria estar acima de quinze mil. Que fazer?

Não havia tratamento eficaz, procurava-se atenuar o comprometimento orgânico, com medidas paliativas. A cura era excepcional e espontânea, quando ocorria era em doentes que mais tarde foram classificados como tendo a forma tuberculóide, mas a maioria dos

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pacientes era formada por casos incuráveis, os que depois foram classificados como lepromatosos. Prevalência alta, impossibilidade de cura, foi então que a Secretaria da Saúde decidiu pelo afastamento dos pacientes do convívio social, pela segregação, por sua internação compulsória.

Internação não era o termo correto a ser usado. Os doentes seriam asilados! Não seriam internados em hospitais, mas sim recolhidos definitivamente nos Asilos-Colônias, lá permaneceriam para sempre, separados das comunidades de origem, pelo restante de suas vidas.

Foram quatro os Asilos-Colônias construídos no Estado de São Paulo, rotulados como “Sanatórios”: Padre Bento, em Guarulhos; Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes; Pirapitinguí, em Sorocaba; Aimorés, em Bauru. A área que cada qual ocupava era enorme, assim tinha de ser, pois ali os pacientes iriam viver e podiam então praticar a agropecuária. Os Sanatórios eram mini cidades, existiam ruas e casas de pequeno porte, setor de comércio e de serviços, praças de esporte, neles se encontrava todo o necessário para uma vida normal, porém segregada. Os pacientes ali deveriam permanecer, nos Asilos-Colônias, até que ocorresse a cura, somente então poderiam voltar a seu ambiente familiar e social.

Ao serem asilados estes pacientes diriam: “— Até logo?”.

Não, na verdade era um: “— Até nunca!”.

Não existindo cura comprovada e permanecendo asilados, deixariam para trás suas famílias que iriam se tornar páginas viradas, de suas vidas. Inclusive, com o correr do tempo, muitos novos casais chegaram a se formar, intramuros, entre asilados.

No início dos anos trinta foi iniciado o período de internação compulsória dos doentes de lepra. Ninguém estaria completamente tolhido em sua liberdade, ao contrário, todos seriam livres para escolherem uma atividade que iriam executar durante o dia, teriam cinema e inclusive festas, à noite. Mas esta liberdade tinha um limite, ela estava confinada dentro dos muros dos Sanatórios, isto é, dos Asilos-Colônias.

Era compulsória a internação, no Asilo-Colônia. É verdade que uns tantos aceitaram de imediato esta nova condição de vida, pois com ela só tinham a ganhar, eram os que já tinham sido marginalizados por suas próprias famílias e pela Sociedade. Viviam em barracões e sobreviviam da caridade pública, para eles foi notável a mudança, certamente para melhor.

Para muitos o asilo não foi voluntário. Conto dois casos que me foram diretamente narrados pelos protagonistas, estes eu conheci quando comecei a trabalhar em Padre Bento.

Primeiro, a história de C.

No ano de 1933 ela tinha dezoito anos e era funcionária de uma Farmácia da Rua Líbero Badaró, no Centro da Cidade de São Paulo. Certa manhã apareceu um cliente para fazer alguma compra e, ao ser por ela atendido, manifestou inesperado e inexplicável interesse. Olhou-a bem, na face, depois pediu para olhar seus braços, deixou-a confusa. Pagou o que comprou e se retirou. À tarde voltou, agora acompanhado de um carro de Polícia e de um veículo “que mais parecia um carro de defunto”. Foi informada que estava obrigada a acompanhá-los até um hospital, para exames. Contou-me que sua internação foi compulsória e abrupta no Sanatório Padre Bento, isto provocou trauma emocional que levou muito tempo para ser superado. Quando a conheci, trinta anos depois, ainda trabalhava no

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Sanatório, mas havia feito um Curso de Enfermagem e era funcionária contratada. Por sinal, era uma pessoa afável, esclarecida, excelente enfermeira.

Agora, a história do Parque Edu Chaves.

Por volta de 1930 não era ainda um bairro, era uma gleba de terra encravada entre o Jaçanã, no extremo Norte da Capital, e a Vila Galvão, esta já no Município vizinho de Guarulhos. Uma gleba desprovida de qualquer Serviço Público, invadida há muitos anos por mais de uma centena de doentes de lepra, que moravam em casebres e barracões.

Conheci sobreviventes daquela época no período em que trabalhei no Sanatório Padre Bento. Por seu intermédio fiquei sabendo de muitas histórias relacionadas ao Edu Chaves. Por exemplo, soube que saiam montados em mulas e que subiam a Estrada do Guapira, em direção ao Tucuruvi e a outros bairros vizinhos, levando uma longa vara atravessada no colo. Nas extremidades da vara estavam fixadas canecas e, a medida que o animal caminhava, sempre pelo centro da via pública, a vara era estendida aos que estavam nas calçadas. Os passantes depositavam suas moedas nas canecas, era habitual que assim procedessem, tomados por sentimentos de piedade e de caridade. Ao fim do dia os pedintes voltavam com suas mulas ao acampamento e distribuíam fraternalmente o produto da coleta diária.

Tendo sido construído o Sanatório Padre Bento as autoridades de Saúde foram ao acampamento do Parque Edu Chaves, ofereceram transporte para que todos, levando suas coisas pessoais, para ele mudassem. Poucos aceitaram a oferta, a maioria preferiu permanecer vivendo ali mesmo, no acampamento. Não houve argumento capaz de mudar esta decisão.

Em dada noite, quando todos já dormiam, notou-se estranha movimentação em torno dos barracos, mas foi somente ao amanhecer que se percebeu o que estava ocorrendo. Havia se desenvolvido uma verdadeira operação militar durante a noite, com a presença da Força Pública do Estado, esta realizou um cerco completo do qual ninguém conseguiu escapar. Os mais resistentes foram subjugados e levados à força para os muitos caminhões estacionados em volta do acampamento. Estando tudo embarcado — as pessoas e também alguns de seus pertences — o acampamento foi totalmente incendiado, em poucas horas deixou de existir.

Estas histórias estavam vivas na memória dos pacientes, mas delas não há registro oficial. O que ficou foram relatos como estes, que me foram narrados já passadas três décadas depois de terem ocorrido.

PAVILHÃO DE MENORES

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No início do Século XX era deplorável a situação dos doentes de lepra, no Brasil. Sem nenhuma possibilidade de cura, socialmente estigmatizados desde o Velho Testamento, rejeitados pela Sociedade e pelos próprios familiares, sua situação era de extrema penúria. Isto também ocorria no Estado de São Paulo.

Nos anos 20 havia despontou na Dermatologia Paulista um jovem promissor, o médico João de Aguiar Pupo, estudioso, competente, dedicado ao trabalho, resolvera se dedicar ao campo da Leprologia. Para tornar sua ação eficiente, a primeira coisa a fazer foi definir qual seria a política pública a ser conduzida pelo Governo do Estado. Teve a iniciativa de propor

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uma Política Pública que ao menos oferecesse a possibilidade, senão de resolver o problema da doença, ao menos de amenizar a deplorável situação dos doentes.

Foi então que o Departamento de Profilaxia da Lepra, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, decidiu pela construção de Asilos-Colônia, distribuídos pelo território do Estado. Para os pacientes da Capital e municípios do entorno foi reservada uma grande área, no vizinho município de Guarulhos, ali foi construído o Sanatório Padre Bento. Ao iniciar suas atividades, recebendo pacientes da Capital e dos municípios adjacentes, surgiu importante problema: que fazer com as crianças doentes, com os adolescentes? Colocá-las junto aos adultos? Decididamente não, necessitavam um pavilhão próprio, a alguma distância dos adultos. Este prédio foi construído em Padre Bento e ficou conhecido como o Pavilhão de Menores do Departamento de Profilaxia da Lepra, passou a receber crianças e adolescentes de todo o Estado de São Paulo.

À frente de toda a atividade estava o Professor Pupo e, agregador como era, conseguiu atrair jovens médicos para a especialidade, a eles procurando dar condições adequadas de trabalho. Entre outros, trouxe para o Departamento o jovem Lauro Souza Lima, médico a quem confiou o Pavilhão de Menores. Não poderia ter feito escolha mais feliz.

Não conheci pessoalmente o Doutor Lauro, mas a obra que deixou, esta sim, eu conheci muito bem. Sua dedicação ao que fazia era de tal ordem que construiu sua residência ao lado do Sanatório Padre Bento, no mesmo bairro de Gopoúva, podia assim estar sempre próximo de seus abrigados. Por tudo que dele eu vim a saber, tenho convicção que seu maior propósito de vida foi oferecer uma melhor condição futura para as muitas crianças e muitos adolescentes que estavam sob sua responsabilidade. É justo que se reverencie sempre a sua memória.

Quando me apresentei à Diretoria do Sanatório Padre Bento, em meados de 1962, já há anos o Doutor Lauro havia falecido. No intervalo de tempo decorrido entre a sua morte e a minha chegada, nenhum médico se fixou no Pavilhão de Menores, os ali asilados eram esporadicamente visitados, mas sem que houvesse continuidade no atendimento médico.

No mesmo dia em que cheguei fui designado para assumir a responsabilidade por esse atendimento.

Fiquei surpreso com a designação para assumir tal responsabilidade, pois até então não havia me dedicado à Leprologia, não sabia sequer que existia um Pavilhão de Menores. Da surpresa passei à preocupação, quando soube que ficariam sob minha responsabilidade quatrocentos e cinquenta menores! Destes, o menorzinho tinha três anos de idade, a maioria dos demais era composta por adolescentes. Quase meio milhar!

Minhas preocupações começaram a diminuir quando fui apresentado à equipe de Enfermagem que iria me apoiar. Uma Irmandade Religiosa de origem italiana, denominada Sodalício Stella Maris, tinha como proposta se dedicar aos pacientes de lepra, espalhados pelo mundo. Com a concordância das autoridades de Saúde do Estado de São Paulo, um grupo de freiras italianas foi para cá mandado, foram designadas para atender no Sanatório Padre Bento. Durante vários anos este grupo colaborou com Doutor Lauro Souza Lima e, agora, as Irmãs iriam ser minhas colaboradoras.

O grupo era comandado por Irmã Gilda e Irmã Lina. Esta era pessoa enérgica, vigorosa, determinada, consciente de suas responsabilidades. Nos meses e anos que se seguiram a Irmã Lina trouxe absoluta segurança para a realização do trabalho cotidiano, nas revisões de pacientes — diariamente feitas — nas visitas às Enfermarias, no relacionamento com as crianças internadas. Jamais vi antes, nem depois, mãe com tantos filhos, quatrocentos e

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cinquenta! Uma máquina de trabalhar e de produzir, também um poço de compreensão e de doçura, para amar tantas crianças. Amava mesmo — e era amada — por todos os que viviam no Pavilhão. Em pouco tempo de trabalho e convívio ficamos amigos, isto durou para sempre. Tínhamos completa comunhão de valores, de identificação na responsabilidade pelos deveres, de conteúdo humano na relação entre o Médico (e a Enfermeira) e seus Pacientes. Irmã Lina fez parte de minha vida, naquela época e, cinquenta anos depois, dela recordo com um pungente sentimento de saudades.

Havia muito a ser feito para preencher a lacuna deixada por Lauro Souza Lima. Era preciso rever e avaliar todos aqueles pacientes, no menor tempo possível. Consegui verdadeira façanha, esta avaliação foi feita já nos primeiros dois meses. A revisão e o ajuste da medicação específica acelerou a recuperação dos internados, ficaram negativos seus exames laboratoriais, prenunciando a possibilidade de alta. Resultados bons, excelentes mesmo, compensadores do bom planejamento do atendimento médico, também da dedicação da Enfermagem, com Irmã Lina no comando.

Em vários momentos destas crônicas fiz referência à falta de tratamentos específicos, isto aconteceu até 1948. Nesse ano foi conseguido fundamental avanço terapêutico, foi introduzida a sulfona injetável, que recebeu o nome de Promin. No Brasil ela foi denominada Promanid. Altamente eficaz, a medicação mudou completamente o prognóstico da lepra, então sim, tornou-se possível o tratamento efetivo e a recuperação dos pacientes. Quando assumi o Pavilhão de Menores, em 1962, o uso do Promanid já era rotina no Departamento de Profilaxia da Lepra, bons resultados já eram uma realidade.

Consegui ter desempenho à altura das expectativas. As altas levaram ao progressivo esvaziamento do Pavilhão de Menores, foram elas a minha melhor recompensa, foi correspondida a dedicação com que me empenhei no trabalho, no Sanatório Padre Bento.

MENORES PRIMEIRO, MAIORES DEPOIS

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Pavilhão de Menores, quatrocentas e cinquenta crianças e adolescentes sob minha responsabilidade, um desafio e tanto. Já por alguns anos o Pavilhão estava sem seu criador, o Doutor Lauro Souza Lima, muitos novos casos haviam sido internados após seu falecimento e lá estavam à espera de um leprologista.

Ao assumir a responsabilidade pelo Pavilhão, cada um dos internados precisava ser por mim cuidadosamente revisto e classificado. Lepra lepromatosa? Lepra tuberculoide? Ou Lepra indeterminada? Ainda mais, era preciso submeter todos eles à coleta de material para ver a presença do bacilo, do Mycobacterium leprae. O organismo estaria moderadamente infectado ou seriam infecções maciças?

Revisar e tratar aquela pequena multidão de seres foi realmente um grande desafio. Principalmente para mim, dermatologista que havia sido transformado em leprologista da noite para o dia, pela primeira vez iria cuidar de doentes de lepra. Para aumentar a dificuldade eu não poderia contar com a experiência de Colegas mais experimentados, estes então não existiam no Sanatório, eu estava inteiramente só para atender os quatrocentos e cinquenta menores.

Desafio aceito e mãos à obra, cada caso foi estudado detalhadamente, houve muito trabalho mas os resultados não tardaram a aparecer. Destaque-se: para que a tarefa fosse levada a

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bom termo houve a cooperação da Irmã Lina, uma excepcional coordenadora do Setor de Enfermagem. E também a colaboração dos funcionários, pois conseguimos transformar os que estavam à nossa disposição em um grupo motivado, uma equipe atuante e bem treinada, que muito colaborou para que atingíssemos o objetivo pretendido. Os bons resultados que obtivemos devem ser creditados a todos eles, foi importante fazer com que cada qual sentisse o peso de sua contribuição, de seu trabalho, de sua parcela de responsabilidade, para que se chegasse a esse bom resultado.

Em poucos meses toda aquela população de menores estava incrivelmente melhor, logo foi iniciada sua devolução às respectivas famílias. Antes mesmo de se completarem os primeiros doze meses desse trabalho, ainda naquele ano de 1963, já havíamos reduzido drasticamente o número de internados. Algo em torno da metade deles fora reintegrada à Sociedade.

Em consequência passei a ter muitas horas livres e que precisavam ser melhor aproveitadas. Procurei o Diretor, Doutor André Cano Garcia, coloquei-me à sua disposição, fui então designado para atender também no Hospital Policlínico, ali não havia dermatologista.

Convém fazer aqui um parêntesis para descrever melhor o cenário.

O Sanatório Padre Bento ocupava enorme área, de muitos hectares, dentro dele foram construídos muitos prédios e residências. Longe da Portaria, ao fundo da gleba, estava o Pavilhão de Menores. Ao contrário, junto à Portaria, estava construído e funcionava um bom Hospital Policlínico, reservado para atender e internar exclusivamente doentes de lepra que apresentassem alguma intercorrência clínica ou cirúrgica. Uma ótima equipe médica fora montada, os Cirurgiões eram Gladstone Freire e Plinio Storti, o Clínico era Linneu Maia, o Neurologista Wilson Brotto, na Ortopedia estava o Doutor Getulio Elias, o casal Herculano e Beatriz na Ginecologia e Obstetrícia, e ainda mais Anestesista, Oftalmologista, etc. Um grupo humano altamente capacitado, equipe de muito bom nível, com alto índice de resolução da demanda existente. Naquele tempo o Serviço Público tinha o mérito de recrutar bons profissionais, conscientes da importância de sua participação. O Diretor determinou que ficassem sob minha responsabilidade as Enfermarias em que estavam internados doentes com reação leprótica. Eram muitos estes doentes, vinham da Capital e dos Municípios vizinhos, tinham a forma lepromatosa da doença, aquela que não tratada evolui para pior, de modo progressivo. Pelo menos assim era, até o advento do Promin — uma sulfona de uso endovenoso — que no Brasil chamou-se Promanid. Esta foi uma medicação específica de grande eficácia sobre o Mycobacterium leprae, o que mudou totalmente o prognóstico da doença. Foi introduzida no Brasil nos anos cinquenta, a partir de então a lepra se tornara curável.

Mas surgiu um problema que interferiu, muito, com o tratamento. Quando os pacientes da variedade dita lepromatosa iniciavam o Promanid frequentemente tinham uma intensa reação, que foi denominada reação leprótica. Surgia febre elevada, absoluta falta de apetite, emagrecimento progressivo, dores pelo corpo todo, envolvimento dos diferentes sistemas orgânicos. A pele era muito comprometida, apresentava uma erupção muito intensa, com nódulos vermelhos, dolorosos, que por vezes se tornavam ulcerosos. Um quadro triste para se ver e após meses, ou anos, de sofrimento, a morte era frequente, em decorrência da falência renal..

Ainda nos anos cinquenta os corticosteroides foram introduzidos para o tratamento da reação leprótica, logo se tornaram a medicação de escolha, para esta circunstância. Controlavam sim as reações, mas não impediam as recidivas, estas eram frequentes e ocorriam tão logo eles fossem suspensos. Em novas recidivas, a dosagem tinha de ser maior

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e mantida por mais tempo, o que acarretava o surgimento dos indesejados efeitos secundários.

Muita reação, muito corticosteroide, a ameaça passou a ser dupla, vinha da doença e vinha do tratamento. Ambas causando mal ao paciente, os sintomas se estendiam aos órgãos internos, particularmente aos rins, que eram os órgãos mais vulneráveis. Surtos repetidos, agressão aos rins, insuficiência da função renal, uremia e morte. Esta foi a evolução de vários pacientes que acompanhei, no Hospital Policlínico do Sanatório Padre Bento.

Em um cenário sombrio e aparentemente sem perspectiva de mudança imediata, surgiu algo novo, imprevisto, capaz de reverter rapidamente esta sucessão de eventos desfavoráveis, permitindo a recuperação dos doentes. Tratava-se de uma medicação nova, capaz de produzir melhora tão rápida que — falando figuradamente — era como se os pacientes tivessem recebido um toque de fada.

O nome da fada?

Talidomida, vamos a seguir falar dela.

TALIDOMIDA, A DROGA MALDITA

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A História da Humanidade é pontilhada de momentos trágicos, quando muitas vidas foram perdidas em consequência de causas naturais, por exemplo, quando ocorreram grandes epidemias. Basta recordar a peste bubônica e o cólera, que em certas épocas se propagaram pela Europa, fazendo milhões de vítimas. Outro exemplo, recente, é o da Síndrome da Imunodeficiência Humana, a AIDS, produzida pelo HIV. Tragédias naturais que, melhor estudadas e conhecidas, levam à adoção de medidas preventivas capazes de reduzir seu impacto sobre a Sociedade Humana.

São excepcionais as tragédias em maior escala, provocadas pelo próprio exercício da Medicina, mas que podem ocorrem quando ela, em busca do Bem, produz o Mal. Destaco um exemplo, por todos lembrado, em qualquer parte do mundo. Foi a tragédia produzida pela introdução da talidomida, na metade do Século XX, mais precisamente nos anos de 1961 e 1962.

Nessa época eu praticava a Medicina como Médico de Família, na Zona Norte de São Paulo, no bairro da Água Fria. Tinha também emprego público, trabalhei a princípio no Hospital Adhemar de Barros, mais conhecido como “Hospital do Fogo Selvagem”, depois no Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, este dedicado aos leprosos.

Em 1960 a talidomida foi introduzida na prática médica com uma indicação específica: seria a droga de escolha para tratar os enjoos que ocorrem na gestação. Enjoos são frequentes e desconfortáveis, tornam desagradável o primeiro trimestre da gravidez, em significativo número de pacientes exigem alguma medicação apropriada. Foi então que entrou em cena a talidomida. Com seu uso a supressão dos enjoos era quase imediata, a todas as gestantes beneficiava de modo uniforme, eram incríveis a rapidez e a certeza da ação. Resolvia-se assim um problema tão antigo quanto a espécie humana, seu uso terapêutico rapidamente se ampliou em todos os Países do Ocidente, foi comemorada como um êxito da Pesquisa Farmacêutica. Seu prestígio foi parar nas alturas, em questão de meses.

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A surpresa estava reservada para o pós-parto, quando os bebês gerados pelas gestantes que tomaram talidomida passaram a apresentar inúmeras malformações congênitas. Não tardou a se concluir que a única responsável por isto era a própria droga, quando utilizada no primeiro trimestre da gravidez.

Recordo-me de duas gestantes que pertenciam a famílias que eu atendia habitualmente, as duas haviam recebido a talidomida no início da gestação. Com a divulgação dos primeiros casos de malformação fetal a ansiedade e o sofrimento emocional que apresentaram, enquanto aguardavam o momento de seus partos, foi comovente. Ao final, em uma das gravidezes a criança nasceu perfeita, mas na outra estavam presentes as malformações. Felicidade de um lado, desespero do outro.

Talidomida teve seu uso suspenso e proibido em todo o mundo, passou a ser chamada “a droga maldita”.

Mas o mundo dá muitas e muitas voltas, eis que surge um outro lado desta história.

Para conhecer este outro lado, vamos mudar o cenário, vamos para Tel Aviv, no Estado de Israel. Aquela é uma região endêmica de lepra, é significativo o número de doentes. Havendo tantos doentes, é frequente a ocorrência de episódios agudos, reacionais, com febre, dores, erupção intensa na pele, envolvimento de outros sistemas, tudo isto configurando a devastadora “reação leprótica”. Destaque-se que, durante o episódio reacional, as dores dificultam o sono, podendo ser necessário prescrever algum sonífero.

Em Tel Aviv os pacientes com reação leprótica estavam aos cuidados do Dr Sheskin. A narração que segue foi por ele mesmo feita, tendo como interlocutor o Professor Sebastião Sampaio, em 1963, ocasião em que se encontraram em um “Meeting” da Academia Americana de Dermatologia. O Professor Sampaio reproduziu para mim o que ouviu, mais ou menos com as palavras que se seguem.

Com a palavra o Doutor Sheskin. “Meus pacientes com reação leprótica tinham dificuldade para adormecer, as dores nevrálgicas eram muito intensas. No hospital em que eu trabalhava estávamos com falta de medicação sonífera apropriada, precisei ir ao almoxarifado a procura de algum medicamento, encontrei somente disponíveis alguns frascos de talidomida. Já era uma medicação proibida, os frascos estavam ali esquecidos. Decidi: meus pacientes eram homens, por que não aproveitar a ação sedativa da talidomida, para ajudá-los a dormir? Não tendo escolha prescrevi a talidomida e, nos dias seguintes, tive enorme surpresa. Os pacientes tinham melhorado muito da reação leprótica, agora eram eles que me pediam para continuar com sua prescrição. De fato, logo após o início de seu uso todos os sintomas reacionais haviam desaparecido, isto justificava um ensaio bem programado e cuidadosamente executado. Fiz este ensaio e o resultado não foi apenas bom, foi milagroso. Um problema que frequentemente levava à prostração, emagrecimento, fraqueza e morte, estava resolvido. Foi fantástico!”.

São esses os dois lados da mesma moeda. A droga maldita para as gestantes era a droga salvadora para os leprosos gravemente reacionais.

Eu acompanhara a ascensão e a queda da talidomida apenas à distância, afinal o problema ocorria em gestantes e a responsabilidade e as preocupações eram de seus Obstetras. Desde 1963, porém, os pacientes reacionais internados no Sanatório Padre Bento estavam sob meus cuidados, muitos deles em estado crítico, principalmente em razão do envolvimento dos rins e da consequente insuficiência renal progressiva. Frequentemente iam à óbito, deveria continuar aceitando a morte como inevitável?

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Eu estava no centro dos acontecimentos e havia passado da condição de espectador para a de protagonista.

O que aconteceu então? Conto a seguir.

TALIDOMIDA E LEPRA, ASSIM COMEÇOU

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“— Preciso falar com você, pode vir ao Hospital?”

Na ponta da linha estava o Professor Sampaio e o convite era para ir à Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas, na manhã seguinte. Tinha um assunto que julgava importante e sobre o qual gostaria de conversar, comigo. Não me adiantou mais nada, o que seria?

Assunto importante ou interessante? Não recordo bem qual a palavra usada, de qualquer modo era um convite inusitado. Desde que eu entregara a ele meu cargo, no início de 1961, nunca havia sido convidado para qualquer tipo de conversa. Apenas tínhamos encontros casuais, em reuniões de especialistas, também em Congressos da Sociedade Brasileira de Dermatologia, mas a distância entre nós sempre fora mantida. Estávamos agora em 1964, o que poderia ser?

Na manhã seguinte recebeu-me em sua sala e expôs do que se tratava. Havia retornado de um “Meeting” da Academia Americana de Dermatologia onde encontrara o Doutor Sheskin, seu antigo conhecido. Este lhe contou que estava morando e clinicando no Estado de Israel e que uma de suas atribuições era trabalhar no hospital de doentes de lepra. E mais, contou-lhe sobre uma experiência terapêutica muito positiva e que tinha acontecido por puro acaso. Explicou que estavam a seus cuidados os pacientes com a forma fortemente bacilar da doença e que apresentavam frequentemente as temidas reações lepróticas. Como as dores e o desconforto provocados pelas reações dificultavam o sono dos pacientes, estes precisavam de alguma medicação para descansar melhor, à noite. Em certa ocasião a farmácia do hospital em que trabalhava ficou desprovida de medicação sonífera adequada, somente havia um estoque de talidomida guardado, sem poder ser utilizado.

Talidomida já fora proibida, em todo o mundo, como consequência do desastre que resultou de seu uso em gestantes, das malformações fetais que produziu. Estoques existentes em farmácias de hospitais foram destruidos ou ficaram guardados em algum canto, porém sem uso. Isto também ocorrera no hospital em que trabalhava o Doutor Sheskin, em Israel, talidomida estava em um fundo de armário. Foi então que pensou: se era o único medicamento disponível no momento e, sendo seus pacientes homens, por que não prescrevê-la? Assim fez. Logo ocorreu um fato totalmente imprevisto, a partir do segundo ou do terceiro dia de uso os pacientes informavam que tinha ocorrido importante melhora da reação leprótica!

“ — Um milagre!” Foi o que disse o Doutor Sheskin ao Professor Sampaio.

Talidomida havia demonstrado ser medicação salvadora de vidas. Sheskin teria dado continuidade a suas observações mas, lamentavelmente, o estoque de que dispunha tinha se esgotado. “— Sampaio, que tal ser conduzida igual experimentação, no Brasil, sob sua orientação?”.

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De volta a São Paulo, contou-me o Professor Sampaio que o assunto não lhe saia da cabeça. Por que não tentar? Consultou o Setor farmacêutico do Hospital das Clínicas, também a Secretaria de Estado da Saúde, foi informado que havia, sim, um apreciável estoque de talidomida, armazenado e sem uso.

Conversou com Doutor Newton Andreucci, Diretor do Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional e conseguiu sua autorização para a liberação da quantidade necessária de talidomida, especificamente para a experimentação em reação leprótica. Conseguida a droga, surgiu um novo problema, era em consequência dele que estávamos conversando. Onde encontrar os pacientes? Certamente não em sua enfermaria do Hospital das Clínicas, ali eles eram raros, no momento só havia um internado. Foi então que soube que os pacientes atendidos no Departamento de Profilaxia da Lepra eram internados no Sanatório Padre Bento, onde ficavam sob meus cuidados. Era aqui que eu entrava na história.

Passamos á prática e organizamos o Protocolo de Pesquisa. Cumprimos as exigências então existentes, estaria assim garantida a validade do que fizéssemos. Tudo feito dentro das normas, obtivemos a aprovação das autoridades de Saúde. O resto ficou por minha conta.

Cumpri o Protocolo e tratei sete pacientes, no início de 1965. Os resultados confirmaram as observações do Doutor Sheskin e superaram as minhas próprias expectativas. Levei os resultados ao Professor Sampaio, foi então que ele acertou com o Doutor Sheskin que seria feita a divulgação simultânea dos trabalhos. Ambos seriam encaminhados para publicação e isto efetivamente aconteceu, ainda naquele ano 1965, sendo o trabalho de Israel publicado em “Clinical, Pharmacological and Therapeutic” (1965) e, o nosso, na Revista Paulista de Medicina (janeiro de 1966).

Estas publicações tiveram duas importantes consequências.

A primeira é que foram seguidas de muitas outras, feitas no mundo todo, sempre confirmando nossos resultados, o que reverteu radicalmente a temível evolução da doença. Não tardou para que fosse feita a liberação oficial da talidomida para esta finalidade, para seu emprego especificamente em doentes de lepra, quando estes apresentassem surtos de reação leprótica.

A outra consequência foi sobre meu futuro, na Dermatologia. Modificou-se de modo total minha relação pessoal com o Professor Sampaio, esta foi a primeira das muitas vezes em que voltamos a trabalhar, em conjunto. Desde então mantivemos relação de respeito recíproco e, depois, de verdadeira amizade.

LAZER EM PADRE BENTO? CAPOTÃO, A ARMA SECRETA

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“— Gooooooool”.

Bola na rede e alegria para a torcida, pequena e barulhenta.

Conto toda a história.

Ao chegar ao Sanatório, em 1962, assumi o comando do Pavilhão de Menores, foram quatrocentas e cinquenta as crianças e adolescentes que ficaram sob minha responsabilidade. Trabalho duro, intenso nos primeiros meses, tudo logo ficou em boa

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ordem, os tratamentos evoluíram bem, foram muitas as altas dadas. Diminuindo o trabalho de um lado, logo aumentou de outro, pois assumi o controle das enfermarias em que eram internados os pacientes com a temível reação leprótica. Também aqui as coisas correram bem, graças à introdução da talidomida, droga que rapidamente controlava os sintomas dos pacientes e permitia sua alta hospitalar.

Estando tudo tão bem organizado foi possível redistribuir minhas vinte horas semanais de trabalho. Passei a dar plantão, primeiro às quartas feiras, depois passei para o sábado, completava minha carga horária em duas manhãs, durante a semana.

O que vou contar agora aconteceu a partir de meados de 1965, quando as exigências de meu trabalho no Sanatório Padre Bento haviam diminuído bastante. Aos sábados, após visitar as enfermarias e prescrever para os internados, tinha de permanecer no hospital e ali pernoitar até o domingo pela manhã, a espera de alguma possível emergência. Tornava-se longa a tarde de sábado, tediosa, pois tinha de esperar por essas possíveis emergências, elas nem sempre ocorriam.

Como preencher estas tardes? Havia um modo de passar o tempo sem ficar entediado, tratava-se de ir para o campo de futebol do Sanatório e assistir as partidas que ali eram realizadas. Sentar à beira do campo, assistir os jogos disputados pelo “Time da Casa”, isso mesmo, assistir em “nosso” campo, o “nosso” time! Neste ponto, preciso explicar melhor.

Quando aquela enorme gleba de terra, em Guarulhos, localizada no bairro de Gopouva, foi transformada em asilo-colônia para receber os doentes de lepra, edificou-se ali uma verdadeira cidade. A internação era compulsória e a permanência prolongada, talvez para sempre, era preciso oferecer aos internados uma condição de vida que amenizasse a dor causada por sua separação, dos familiares. Por esta razão foram construídos, por exemplo, um teatro, uma igreja, um campo de futebol, aproveitava-se assim a extensa área que separava o Hospital Policlínico, à entrada do Sanatório, do Pavilhão de Menores, lá para o fundo.

O campo de futebol era excelente e com dimensões oficiais. Bem cuidado, foi sempre utilizado por equipes de futebol formadas por pacientes internados e por funcionários. Na ocasião em que comecei a acompanhar os jogos aos sábados, o tratamento com Promanid já esvaziara o Sanatório, eram poucos os internados. Para manter o time completo fora preciso buscar reforços, convidando moradores da vizinhança para dele fazerem parte. Com estes reforços, foi mantido o “Time da Casa”.

Juntei-me ao grupo de funcionários que gostavam do futebol e assistiam aos jogos, aos sábados. Torcíamos e comentávamos as jogadas. Do lado de fora do campo cada um de nós sabia perfeitamente o que e o como fazer, como chegar à área do adversário, como marcar os gols. No futebol, sempre foi fácil dar palpites. Um dia exagerei nos meus supostos conhecimentos sobre o lado técnico do futebol, contei a eles da ocasião em que fui Diretor de Futebol da Associação Atlética, ao tempo de estudante da Faculdade de Medicina. Devo ter falado com entusiasmo das vitórias nas disputas da Mac-Med, durante as competições que fazíamos com os estudantes de Engenharia do Mackenzie.

Devo ter impressionado a todos, acreditaram em mim, houve um desdobramento inesperado: recebi convite formal para assumir o papel de coordenador técnico da equipe do Sanatório, da “nossa equipe”. Mais do que um convite, foi uma intimação, uma imposição. Eis-me de repente com a postura de técnico, precisando chegar meia hora antes do jogo, sempre a tempo de escalar o time e de dar algumas instruções.

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Nosso time não tinha nada de especial, mas também não era totalmente ruim. Recordo-me de alguns bons jogadores, do Alemão na lateral direita, um ex-paciente que era enfermeiro no Sanatório; do funcionário Floriano no meio de campo, um bom armador; também do Washington, ou melhor, do Capotão, um morador do bairro que era nosso zagueiro central. Este último merece um maior comentário, vou contar mais adiante.

Ganhar ou perder não tinha a menor importância, mas quem entra em campo para jogar futebol não pode ouvir falar em perder, só quer ganhar. Competir, disputar, é assim mesmo: é para ganhar, não para perder.

Pois bem, em muitos jogos equilibrados tentávamos e tentávamos, mas eram poucos os gols marcados. Foi então que percebi que tínhamos um trunfo em nossas mãos, que não estava sendo bem aproveitado. Caso isto acontecesse, poderia ser a chave da vitória, de muitas vitórias.

É aqui voltamos ao Capotão. Moço ainda, alto e corpulento, era bastante forte e tinha um chute poderoso, isto o transformava em nosso preferencial batedor de faltas. Ocorrendo falta a nosso favor, na proximidade da área adversária, lá ia o Capotão ajeitar a bola no gramado, estudar a posição da barreira, escolher o melhor efeito a ser dado para ela descrever um semicírculo a enganar o goleiro. Muito bem pensado, mas sempre mal executado. Gol a nosso favor, nas cobranças de falta feitas pelo Capotão? Nunca, ou quase nunca. O tiro era poderoso, mas a bola insistia em não fazer a curva desejada, passava por cima ou pelo lado das traves, dificilmente ia para dentro da rede. Força não bastava, era preciso ter estilo no momento de dar o efeito, esta habilidade o Capotão não tinha. Muitas faltas eram perdidas.

Problema para o técnico. O que fazer? Foi então que incorporei o espírito de Maquiavel e encontrei uma possibilidade. Uma orientação maquiavélica, sim, e que deu certo.

Chamo o Capotão para lhe dar as instruções.

“— Não tente ajeitar a bola para entrar no ângulo, você não está conseguindo. Você vai chutar em linha reta, em direção ao gol, sei que a bola vai bater na barreira. É isto mesmo que eu quero, deixe o resto comigo”.

No sábado seguinte, diante de adversário forte, convoquei dois enfermeiros, um veículo e seu motorista, todos me ajudarem a levar para o campo macas e equipamentos para socorro de emergência, inclusive torpedos de oxigênio. Enviei um dos enfermeiros para comentar com os jogadores adversários, de modo casual, que não se preocupassem , tínhamos tudo preparado para atender uma emergência.

“— Que emergência?”

“— Na hora da falta, é claro”.

Nosso enfermeiro se retirou, deixando os adversários sem entender o sentido da advertência.

Jogo iniciado, equilibrado, difícil chegar ao gol adversário. Finalmente houve uma falta perto da área e lá foi o Capotão ajeitar a bola. Formou-se a barreira, era uma jogada de rotina. Eu me mantinha um pouco distante dos enfermeiros e dos equipamentos de socorro, precisei gritar alto para ser ouvido:

“— Enfermeiros, a postos”.

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O tiro partiu direto ao gol, com a barreira interposta, a bola seguiu com a força de um torpedo. Um jogador adversário que estava na barreira foi atingido, recebeu o impacto no peito e caiu ao chão. Respirava com dificuldade, parecia que iria desmaiar. Todo o aparato de emergência foi posto em ação, enfermeiros, macas, oxigênio, houve um corre-corre para o local em que estava caído. Jogo parado, recuperou-se o jogador após alguns minutos e, já estando tudo normalizado, o jogo foi reiniciado.

Pouco depois há nova falta próxima à área, uma nova oportunidade, repete-se a cena. Capotão ajeita a bola, a barreira é formada, o juiz apita para a cobrança. Só que, agora, todos os jogadores da barreira praticamente se jogam ao chão, a bola passa limpinha, em linha reta, termina sua trajetória dentro da rede.

Gol para nós!

Nada foi feito com maldade, era apenas uma arma que precisava ser corretamente usada, logo se tornou conhecida. Foi repetida em certas ocasiões, sem exageros, somente recorremos a ela em partidas muito difíceis. Nestas ocasiões a recomendação era um pouco diversa. Durante todo o primeiro tempo Capotão podia continuar tentando aprimorar suas batidas de falta, dando o efeito que desejasse, talvez com mais prática conseguisse um dia marcar o gol que tanto desejava. Podia perder gols, à vontade.

Mas quando o jogo já se aproximava de seu final e ainda não estávamos à frente, a ordem berrada de fora do campo continuou a ser a mesma:

“— Capotão, tiro direto! Enfermeiros, a postos!”

DESPEDIDA DE PADRE BENTO

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Quarto ano de atendimento no Sanatório Padre Bento, estávamos agora no início de 1966.

O Pavilhão de Menores, que havia ficado sob minha responsabilidade, estava em boa ordem. A maioria dos internados recebera alta hospitalar, o trabalho era pouco, um dia por semana bastava.

No Hospital Policlínico, existente no próprio Sanatório, a situação não era diferente, tudo corria bem na Enfermaria que estava a mim confiada. A maioria dos pacientes internados apresentava reações lepróticas e estas, por mais graves que fossem, respondiam bem ao tratamento com talidomida. Em poucos dias podiam voltar para suas casas.

Na ocasião ocorreu mudança na Diretoria do Sanatório, foi nomeado o Doutor Paulo de Almeida Machado, só o conheci no dia em que assumiu o cargo. Causou-me boa impressão sua postura circunspecta, pessoa pouco falante, preocupada em dar solução aos grandes e aos pequenos problemas do dia-a-dia. Exigente no desempenho das funções próprias de cada cargo funcional, era um perfeccionista, esperava eficiência da equipe que comandava.

Quem conhecia o Serviço Público sabia o quanto tais exigências conflitavam com a realidade, o desejo de fazer o melhor possível, de “por a casa em ordem”, esbarrava em uma máquina emperrada, era capaz de gerar conflito. Foi o que aconteceu logo nos primeiros meses da nova administração, funcionários colocaram contra o Diretor as Associações representativas dos pacientes. Eram Associações importantes na época e aqui cabe relembrar, ainda que de

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modo sumário, um pouco de sua origem e de sua história. Para recordar é preciso voltar aos anos Quarenta. Foi nessa época que começou a se destacar uma figura, a princípio pouco conhecida, mas que logo veio a ganhar notoriedade. Tratava-se de uma jovem artista, conhecida como dona Conceição, constava que uma amiga sua, íntima, dos tempos de sua vida artística, havia sido diagnosticada como doente de lepra e internada em um dos Sanatórios existentes. Dona Conceição a visitava com frequência, ficou impressionada com a vida de segregação social, com a marginalização em que viviam os milhares de pacientes de lepra distribuídos pelos quatro Sanatórios do Estado de São Paulo.

Por esta época Dona Conceição era casadase com um médico urologista, da Santa Casa de São Paulo, bastante conhecido, o Doutor Santamaria. Portanto, Conceição Santamaria era seu nome. Ela se mostrou disposta a contribuir para oferecer uma melhor condição de vida aos doentes, daí ter incentivado a formação de Associações compostas pelos internados. O sucesso de sua iniciativa e a competência de sua liderança a tornaram uma espécie de “madrinha” dos doentes e de suas Associações, era assim que a chamavam. Criou-se em torno de si um clima de confiança que a levou a se candidatar e a conquistar uma Cadeira na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Eleita, passou a ser conhecida por seu verdadeiro nome, tornou-se a conhecida e atuante Deputada Conceição da Costa Neves.

As Associações por ela incentivadas, nos Sanatórios, passaram a ser parceiras das atividades cotidianas, foram aceitas como interlocutoras legítimas da população asilada. Ganharam destaque, acumularam forças, a partir de então nenhuma Administração, quer do Departamento de Profilaxia da Lepra, quer de seus Sanatórios, deixou de levá-los em conta.

Feito este sintético histórico, vamos voltar ao ano de 1966.

Na Diretoria do Sanatório Padre Bento havia assumido o Doutor Paulo de Almeida Machado. Como registramos acima, tão logo chegou e teve conhecimento de alguns problemas existentes, adotou medidas para corrigir e melhorar o atendimento, em todos os seus setores. Certamente não levou em conta que nem tudo que é feito para melhorar é bem recebido, às vezes contraria interesses de pessoas ou de grupos. Foi isto o que ocorreu, desenvolveu-se um forte movimento de resistência às medidas que implantara, ou que pretendia implantar. Pessoalmente o apoiei, daí ter sido considerado “inimigo”, pela Associação dos doentes.

Contra mim começou a ser repetido, como argumento: “— Ele nos usa como animais de experiência”. A frase era a consequência da experimentação da talidomida, feita no ano anterior, que fora bem sucedida e que teve repercussão nacional e internacional, quando os resultados favoráveis foram publicados. Tornou-se a medicação de escolha para tratamento dos estados reacionais da lepra lepromatosa. Mesmo assim o argumento era usado: “— Ele usa a droga maldita”.

Em determinada manhã, ao chegar ao Sanatório Padre Bento, vejo os muros externos e mesmo alguns internos, cobertos de frases pedindo o nosso afastamento, o de Paulo de Almeida Machado e o meu. A movimentação da Associação dos pacientes havia chegado ao auge, fui envolvido por não apoiar a luta contra o Diretor. Estava criada para mim uma situação emocionalmente inaceitável. Não discuti, não argumentei, de imediato solicitei minha transferência.

Nos anos que se seguiram tive a melhor manifestação de respeito e reconhecimento pelo trabalho realizado, no Sanatório Padre Bento. Mais de meia centena de pacientes que eu ali atendia, frequentemente, passaram a me consultar em meu consultório privado. Tornaram-

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se meus clientes e eu os acompanhei, por largo tempo. Foi a mais clara demonstração de confiança, que eu poderia desejar.

Para constar: o Doutor Paulo Almeida Machado foi escolhido, dez anos depois, para ser o Ministro da Saúde do Brasil, onde teve destacado desempenho.

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LEPRA NÃO, HANSENÍASE !

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Nos primeiros dias de 1970 recebo um telefonema do Professor Abrahão Rotberg, disse apenas que gostaria de trocar ideias comigo a respeito de um assunto que não lhe saia da cabeça. Explicaria melhor quando eu atendesse a seu convite e fosse a sua procura. Um pedido do Professor Rotberg era para mim uma ordem, tinha por ele estima e admiração. E tinha também uma dívida, que jamais poderia pagar, pois me oferecera uma oportunidade profissional em um momento difícil de minha vida. Isto havia acontecido vários anos antes, no início de 1965, quando ele era o Professor Titular de Dermatologia da Escola Paulista de Medicina, havia substituído ali o Professor Nicolau Rossetti.

Recordando. Meu início na especialidade fora promissor, entre 1959 e 1960, na época em que fui convidado pelo Professor Aguiar Pupo para com ele trabalhar na Disciplina de Dermatologia do Hospital das Clínicas. Foi um período excelente, de formação especializada, interrompido quando o Professor Sebastião Sampaio assumiu a Cátedra, eu não era de sua equipe e não fazia parte de seu plano de trabalho.

Fiquei fora da vida acadêmica durante quase três anos, até que decidi procurar o Professor Rotberg, pedindo a ele que me aceitasse como Voluntário da Dermatologia, na Escola Paulista de Medicina. Estávamos então no final de 1964. Fui aceito e passei a atender no Ambulatório, comparecendo diariamente e trabalhando com responsabilidade. Por dois anos colaborei com ele, só interrompi esta colaboração quando fui chamado a assumir, de modo efetivo, meu mandato de Vereador na Câmara Municipal de São Paulo. Iniciava-se então o ano de 1967.

Ao voltar agora ao telefonema do Professor Rotberg, que abriu esta crônica, é preciso destacar que, no final de 1969, havia sido eleito para Presidir o Departamento de Dermatologia da Associação Paulista de Medicina. Em razão desse mandato havia organizado o Programa a ser cumprido pelo Departamento no ano seguinte e agendado, para janeiro, um “Curso de Atualização em Leprologia”, em parceria com a Secretaria da Saúde. Foi ao saber do Curso que estava em organização que o Professor Rotberg me pediu que o procurasse.

Na ocasião ele dirigia o Instituto de Saúde, um Centro de Pesquisa instalado exatamente à frente do Hospital das Clínicas e, também exatamente, atrás do Instituto Adolpho Lutz. Localização oportuna, havia sido intencional, o que se pretendia era caracterizar toda a área como o Núcleo principal do apoio ao desenvolvimento da pesquisa científica, em Medicina Humana. Apenas para constar, ao lado do Instituto de Saúde já estava reservada outra área, para a qual se projetava a construção do Instituto do Coração, o INCOR.

O Professor Rotberg fez uma breve exposição, destacou sua dedicação ao estudo da lepra, desde os tempos em que fez sua Tese de Doutorado. Acompanhara a evolução das pesquisas terapêuticas, vira ser introduzido a primeira sulfona, o Promin, a qual modificou radicalmente a evolução da doença. Pois bem, entendia agora que o controle da endemia estava em nossas mãos, para tanto bastaria tratar todos os doentes, não podíamos deixar escapar nenhum. E escapavam, alguns pacientes? Escapavam sim, doentes de lepra escapavam e não eram alguns, eram muitos, todos aqueles que temiam o já inexistente confinamento compulsório. Temiam ser afastados de suas famílias e de seu meio social, por isto se escondiam, não se tratavam. A solução? Compreender a motivação desses doentes e criar para eles um novo caminho, tratando não a lepra, mas sim a “hanseníase” que tinham.

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No entender do Professor Rotberg a solução era essa. Era preciso fazer sumir da linguagem médica as palavras lepra e leproso, precisavam ser substituídas por “hanseníase” e” hanseniano”. A abordagem me pareceu correta, eu mesmo conhecera e tivera a meus cuidados doentes que haviam se ocultado e que só me procuraram quando a doença estava bastante avançada. Estes que se esquivavam, quantas pessoas poderiam ter contaminado?

Sua proposta era muito simples. Pediria ao Governador do Estado de São Paulo, Doutor Roberto de Abreu Sodré, que assinasse um Decreto proibindo que a área da Saúde empregasse qualquer palavra relacionada com o termo lepra, fazendo sua substituição pelo termo “hanseníase”. Doravante iríamos ter “Doença de Hansen”, “Mal de Hansen”, “hanseníase”, “hansenianos”, “Bacilo de Hansen”, assim passaria a ser. A parte que me tocava era dar a “meu” Curso, já programado, não o título de “Lepra”, mas sim o título apropriado, seria então o ”I Curso de Dermatologia Sanitária”. Uma parceria entre a Divisão de Hansenologia e Dermatologia Sanitária da Secretaria da Saúde e o Departamento de Dermatologia da Associação Paulista de Medicinas.

Foi em nosso Curso que, pela primeira vez em todo o mundo, foi utilizada a nova nomenclatura, a palavra “hanseníase” em substituição à palavra “lepra”.

A partir de São Paulo a ideia se difundiu e mais adiante se tornou Lei Federal, depois ganhou o apoio de países das Américas. Não recebeu, contudo, o apoio dos países de língua inglesa, que se recusaram a abandonar o termo leprosy. Mas em nosso País não houve problema, a proposta de Rotberg foi inteiramente aceita.

Até aconteceu na época um episódio curioso do qual foi protagonista o Doutor Estevam de Almeida Neto, foi ele próprio quem me contou.

Cenário: a Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas, o Serviço do Professor Sebastião Sampaio. Dia do Doutor Estevam atender doentes novos, acompanhado dos Residentes. Um dos pacientes atendidos ocasionara dúvidas e seu caso foi discutido com mais minúcia, para que todos aprendessem os diagnósticos diferenciais. “— Vejam bem este aspecto da lesão, é típico da hanseníase”, insistiu o Doutor Estevam. Ao findar a discussão, o paciente pediu licença para fazer uma pergunta.

“— Doutor, como se chama mesmo a minha doença?”

“— Hanseníase”.

“— Doutor, sou mesmo um azarado. Já tinha lepra e agora vou ter de carregar também essa tal de hanseníase”.

Um caso folclórico, sem dúvida.

MAGISTÉRIO

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BOTUCATU 1966

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A Faculdade Estadual de Medicina de Botucatu começou bem, era promissora, professores de alto nível estavam sendo contratados.

Naquele ano de 1966 a Primeira Turma de alunos iria ter seu Curso de Dermatologia, o Professor Raymundo Martins Castro foi convidado para ser o responsável por sua organização. Organizou uma pequena equipe para o ajudar, ela foi composta por dois

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Residentes do Hospital das Clínicas, Jorge José de Souza Filho, catarinense, e Zani Miranda, mineiro. O terceiro convidado fui eu mesmo. Permanecemos em Botucatu por toda uma semana, foi possível cumprir o compromisso assumido. Mas houve aspectos interessantes, sempre lembrados por nós, é interessante revivê-los.

O Programa Teórico não ofereceu qualquer dificuldade, bastava um bom auditório e um bom aparelho de projeção. Nenhum problema. Mas o Curso Prático, este sim, enfrentou dificuldades. Não existia Ambulatório de Dermatologia que os pacientes já frequentassem, onde poderíamos discutir casos com os estudantes. Também não havia Hospital Universitário, nem mesmo Ambulatórios de Especialidades. Nada! Só podíamos contar com a antiga Santa Casa da cidade e com os pacientes que já estavam internados em suas enfermarias.

Bem cedo chegávamos à Santa Casa e íamos examinar meticulosamente cada paciente internado. Aqui e ali identificávamos uma micose do pé, outra da virilha, uma candidíase bucal, ou genital. Também uma degeneração solar da pele, algum carcinoma basocelular ou carcinoma espinocelular. Ainda alguns eczemas, tanto os de estase por varizes, como também os seborreicos, os de contato. Ao fim da procura tínhamos um pouco da Dermatologia para mostrar, tudo restrito ao que havíamos encontrado naquela limitada população de pacientes que haviam sido internados por outros motivos, que não a pele.

Com dedicação e boa vontade demos um bom Curso de Dermatologia, recebemos ao final o entusiástico aplauso da turma de alunos. Esta presença em Botucatu foi repetida por mais um ano por Raymundo, nesta segunda vez não fiz parte do grupo. Depois dele a Doutora Neuza Dillon foi contratada para ser a Titular, foi bem recebida e bem sucedida, lá permaneceu até a sua aposentadoria.

Minhas recordações daquela semana estão hoje restritas a dois episódios curiosos.

O primeiro deles foi a criação de um “aparelho corta-ronco”, criação nascida de uma necessidade extrema. Vou contar. Nossos dias de trabalho eram exaustivos e ao findarem o maior desejo era dispor de uma cama acolhedora, que concedesse o merecido descanso. Dormíamos em um só quarto, suficientemente grande para abrigar a todos, mas logo na primeira noite tivemos inesperado problema: Zani era um roncador incômodo. Ao adormecer seus roncos impediam que os demais adormecessem, um de nós precisava levantar e o sacudir, para que ele mudasse de posição e parasse de roncar.

A expectativa para a segunda noite não era boa, o que fazer? Foi Jorge quem teve uma ideiagenial, criou um “interruptor de ronco de controle remoto”, passou da ideia à ação. O “equipamento” era uma vassoura de piaçaba com duas cordinhas, ele a amarrou entre sua cama e a de Zani. A piaçaba ficava voltada para seu lado, a ponta oposta ficava próxima ao corpo do roncador. Sempre que necessário o próprio Jorge, meio adormecido e meio acordado, manejava a vassoura e cutucava o Zani, na parte que estivesse ao alcance. Zani dava uns grunhidos sem despertar, como que reclamando, mudava de posição e os roncos cessavam. Graças ao “interruptor de ronco” conseguimos descansar, nas noites seguintes.

O outro episódio que marcou época foi nossa ida à Represa de Jurumirim, no sábado, dia em que o Curso se encerrou. Não era distante de Botucatu, tinha em sua margem famoso restaurante onde eram assados os peixes ali mesmo pescados, fresquíssimos e saborosos. Ao chegar vi, no cardápio, que era oferecida a carne de jacaré. Todos fizeram suas escolhas, pedi ao garçom informações sobre o jacaré, acabei optando por ele. Provoquei uma onda de risos e de brincadeiras, comer carne de jacaré era uma excentricidade, àquela época.

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“— Vai demorar mais do que os peixes, não faz mal?”, perguntou o garçom. Não fazia, todos estavam dispostos a aguardar, ficariam bebericando suas cervejas. Chegaram os peixes, serviram-se, passaram então a aguardar que eu fosse atendido. Ajudados pela demora, tome gozação: “— Carne de jacaré, onde já se viu”.

Finalmente fui servido. Fez-se um silêncio de expectativa, todos risonhos, querendo ver minha reação ao provar o primeiro pedaço. Cumpri o ritual, senti primeiro o aroma, depois coloquei um pedacinho na boca e mastiguei lentamente, como um experimentador. Surpresa, o sabor era inigualável, lembrava a consistência da lagosta, ainda melhor. Para enganar a todos fiz uma careta de desagrado, era o que esperavam, a gargalhada foi estrondosa, as brincadeiras não se interrompiam. Continuei comendo bocado por bocado e fazendo caretas.

De repente, um deles gritou: “— Espere aí, você não para de fazer caretas a cada pedaço, mas também não para de comer, deixa sentir esse gosto.”

Foi o Zani quem pegou um garfo e retirou um pedaço da posta servida, experimentou e gritou: “— Gente, estamos sendo enganados, a carne é maravilhosa!”

Garfos na mão, em um minuto acabaram com o que restava do meu jacaré. O garçom foi chamado, cada qual pediu uma porção, só saímos do restaurante às cinco da tarde. A carne de jacaré acabava de receber sua consagração.

Terminando: Raymundo Martins Castro foi Professor Titular da UNICAMP e da Escola Paulista de Medicina; Jorge José de Souza Filho tornou-se Professor Titular na Faculdade Federal de Medicina de Florianópolis; Zani Miranda emigrou para os Estados Unidos, tornou-se importante pesquisador do “New York Skin Cancer”.

CARREIRA UNIVERSITARIA, QUANDO COMEÇOU?

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Quantas vezes, ao recordarmos o passado, temos alguma dificuldade para encontrar a sequência de fatos e de ocorrências que indicaram o caminho que precisava ser percorrido.

“— Foi naquela ocasião.”

“— Não, você se enganou, foi depois disso”.

Buscando o momento em que efetivamente teve início minha carreira acadêmica, fico recordando e me questionando, em busca da resposta certa. Entre tantas coisas guardadas, procuro e encontro documentos daquela época, que me ajudam a recordar o passado.

O início poderia ter sido quando o Professor João Aguiar Pupo me convidou para ser Médico Auxiliar de Ensino da Clínica de Dermatologia e Sifiligrafia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a USP. Foi um início promissor mas não duradouro, pois exerci as funções do cargo somente entre 1º de janeiro de 1959 e 23 de janeiro de 1961. Nesta última data devolvi meu cargo ao Professor Sebastião Sampaio, na ocasião em que ele acabara de completar vitoriosamente seu Concurso de Cátedra. Eu não pertencia a sua equipe e não estava em seus planos de trabalho, pedir demissão era a atitude certa a tomar. Sei que ele ficou grato a mim, não precisou me demitir. Deixei o Hospital das Clínicas depois de lá fazer

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minha formação básica em Dermatologia, por sinal bastante consistente, isto me tornou apto a praticar a especialidade pelo restante de minha vida.

Houve um hiato na trajetória dentro da especialidade, que perdurou por três anos. Nesse período voltei a ser apenas o Médico de Família, consultando em bairro periférico da Zona Norte da Capital, a Agua Fria, onde tinha meu consultório. Ali continuei a ser o Clínico Geral, atendendo até mesmo muitos casos de Dermatologia.

Foi bem depois, já por volta de 1965, que conheci melhor o Professor Abrahão Rotberg, isto aconteceu durante um evento da Sociedade Brasileira de Dermatologia. O Professor era formado na USP, ali defendeu sua Tese de Doutorado e fez concurso para Livre Docência, mas havia se transferido para a Escola Paulista de Medicina, a EPM. Isto se deu após a aposentadoria do Professor Nicolau Rossetti, Mestre de origem italiana que por muitos anos comandou a Cátedra de Dermatologia dessa Escola Médica. O Professor Rotberg assumiu a Cadeira e a Clínica contando apenas com dois Assistentes, Luiz Antonio Defina e Cyro de Aranha Pereira. Não tinha Estagiários, não tinha Residentes e, quando solicitei que me permitisse frequentar a Dermatologia, como Médico Voluntário, recebeu-me de braços abertos. A partir do início de 1965 compareci e atendi, diariamente, no Ambulatório da Dermatologia. A possibilidade de progredir na especialidade se tornou ainda maior quando fui indicado para ser contratado pela EPM, isto aconteceu já no final de 1966. Assumi então o cargo de Médico Contratado, no dia 4 de outubro desse ano. Durou pouco este oportunidade, em 31 de dezembro devolvi o cargo ao Professor, por motivo inteiramente inesperado. Conto como foi.

Estávamos em uma época em que ainda era muito recente a vitória alcançada pelo Movimento Militar de 31 de Março de 1964 que depôs o Presidente João Goulart. O Presidente era agora o Marechal Castelo Branco, a Linha Dura do Exercito tinha mão forte e havia eliminado do Serviço Público os elementos que considerava “mais perigosos”. O Corpo Docente da Escola Paulista de Medicina era extremamente conservador, houve quem fosse em busca de informações sobre minha militância quando estudante de Medicina, tempos de Juventude Comunista, divulgando-as entre os Membros do Conselho. Criou-se um ambiente de certa resistência a minha indicação, mas o episódio acabou sendo superado e assumi o cargo para o qual fora nomeado.

Não me sentia a vontade. Por motivo absolutamente pessoal solicitei pouco depois minha exoneração. Isto ocorreu quando fui convocado para assumir em caráter efetivo o mandato de Vereador, na Câmara Municipal de São Paulo. Tive de decidir, Carreira Universitária ou Carreira Política? Fiquei com o mandato. Consequência: mais uma vez, após dois anos de colaboração com a Dermatologia da Escola Paulista de Medicina, quando eu já pensava estar aberto o caminho que me levaria à Carreira Universitária, por minha própria decisão esta possibilidade foi adiada.

Naquele mesmo ano de 1966, em seu primeiro semestre, a Faculdade Estadual de Medicina de Botucatu, recentemente criada, iria ministrar para sua Primeira Turma o Curso de Dermatologia. Não havendo ainda docentes efetivados em seus cargos, por concurso, os convites eram feitos a Professores de notório saber. Para a Dermatologia foi convidado o Professor Raymundo Martins Castro, este na ocasião dividia seu tempo entre a Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas e o Laboratório de Microbiologia, ambos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Raymundo aceitou o convite e, para acompanhá-lo, reuniu uma pequena equipe. Minha participação fazia parte de seus planos, concordei e o acompanhei. Não foi esta a primeira vez em que iríamos trabalhar junto, pois ao tempo de estudante eu fora Acadêmico

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Voluntário da Clinica de Moléstias Infecciosas e Tropicais, do Hospital das Clínicas, por dois anos. Nessa ocasião meu Chefe imediato era Raymundo, então Residente da Clínica, desde esse tempo ficamos amigos. Raymundo estava em plena ascensão na Carreira Universitária quando me convidou para acompanhá-lo, a Botucatu. Foi o começo de uma série de oportunidades que me ofereceu e que me possibilitaram, bem mais adiante, empreender minha própria caminhada em busca da graduação acadêmica.

Hoje, bem avaliados os acontecimentos daquele tempo, posso dizer que os anos dedicados ao atendimento de rotina no Ambulatório de Dermatologia, do Hospital das Clínicas, também no Ambulatório da Escola Paulista de Medicina, foram o preâmbulo de minha Carreira Universitária. Mas esta só se efetivou graças às oportunidades que me foram oferecidas por Raymundo Martins Castro.

CAMPINAS : VEM QUE TEM FUTURO

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Foram várias as Faculdades de Medicina autorizadas a iniciar seus Cursos, em 1962, que começaram a funcionar, em 1963. Quase todas eram carentes de espaço físico, não tinham prédios próprios, não tinham Laboratórios adequados para o Curso Básico, não tinham Hospital-Escola para o Curso Clínico. Também não tinham Corpo Docente. Começaram a funcionar e foram se organizando: “— Não faz mal, não faz mal, tudo irá se ajeitar”. Para usar uma expressão própria da época, “foi preciso trocar os pneus com o carro andando”.

E realmente as coisas foram acontecendo, tudo sendo resolvido, é preciso destacar o empenho dos Professores convidados. Também importante é dar destaque à dedicação dos alunos das Primeiras Turmas, das várias Faculdades. Foram verdadeiros pioneiros, ajudavam a martelar pregos para fazer bancadas de estudo, carregavam e distribuíam móveis pelos Laboratórios, faziam um pouco de tudo. E estudavam — como estudavam — faziam questão de provar o acerto da criação da “sua” Faculdade. Durante as décadas seguintes diziam com orgulho: “— Fui aluno da Primeira Turma”.

Em Campinas ocorreu o mesmo. Havia sido criada a Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, da qual fazia parte a Faculdade de Medicina. Ambas, Universidade e Faculdade, logo se tornaram conhecidas pela qualidade de sua contribuição acadêmica, era prestigioso delas participar. Para Reitor da UNICAMP foi nomeado o Professor Zeferino Vaz, nome já consagrado por participar da criação, do crescimento e da consolidação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Ao ser indicado para ser o Reitor da UNICAMP, confidenciou a amigos que iria se empenhar para fazer avançar a área de Ciências Exatas, queria que esta se transformasse em uma referência internacional.

Para poder concentrar mais sua atenção na área de Exatas, seria necessário colocar uma liderança forte à frente da Faculdade de Medicina. Esta foi encontrada e designada, o Professor Silvio dos Santos Carvalhal. Vindo da Escola Paulista de

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Medicina, o Professor Carvalhal mudou para Campinas e se dedicou plenamente à consolidação da nova Faculdade.

No que se refere à Dermatologia, o problema de organizar a Disciplina somente surgiu quando a Primeira Turma se aproximava da Quarta Série. Quem convidar, para assumir a Chefia e organizar o Curso? Feitas as consultas necessárias, avaliados os nomes sugeridos, houve concordância em torno do nome de Raymundo Martins Castro, que na ocasião integrava o Corpo Docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Como Professor atendia não só pacientes, fazia pesquisa científica também, pois trabalhava simultaneamente na Clínica de Dermatologia e no Departamento de Microbiologia. Raymundo aceitou assumir a responsabilidade, mas com a condição de não precisar se mudar para Campinas, pois sua vida estava totalmente vinculada à Capital. Propôs-se a ir um dia por semana, o que foi aceito.

Por volta de 1966 a Disciplina começou a funcionar. Eram atendidos pacientes no Ambulatório do Hospital Irmãos Penteado, era este o hospital conveniado com a UNICAMP para ser seu Hospital-Escola. Ao iniciar sua atividade Raymundo contou com a colaboração de um dermatologista residente em Campinas, onde tinha clínica privada, um Colega muito capaz, o Doutor Flamínio Maciel. Foi providencial esta colaboração, pois Flamínio poderia diariamente estar presente no Ambulatório, mesmo na ausência do Titular.

O crescimento da Dermatologia exigia um aumento da equipe. Contratar? Nem pensar, dinheiro não havia. Era preciso encontrar quem aceitasse colaborar, em caráter Voluntário, foi então que Raymundo lembrou de mim, fui convidado. Aceitei, pois tínhamos muita coisa em comum, inclusive uma amizade que vinha dos tempos de Faculdade. A propósito, nos tempos de estudantes praticávamos Atletismo em nossa Associação Atlética, lá ele era um vencedor, eu não passava de figurante. Depois, ainda na condição de estudante, estagiei na MI, a Clínica de Moléstias Infecciosas, onde fiquei sob seu comando, pois ali ele era o Residente. Em 1960 nossas posições se inverteram, foi quando ele finalmente se decidiu pela Dermatologia e me procurou para acelerar seu treinamento. Nesta ocasião eu estava integrado na Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas e ele apenas se iniciava na especialidade.

Com todas as qualidades que tinha Raymundo logo cresceu na Carreira Universitária, defendeu Teses e foi aprovado em Concursos Acadêmicos. Seu currículo já estava consolidado quando foi referendado pelos Professores Sebastião Sampaio e Carlos da Silva Lacaz, seus superiores na USP, para assumir o comando da Dermatologia na UNICAMP.

Estávamos em 1968, foi nesta ocasião que sentiu necessidade de ampliar sua equipe e me convidou para integrá-la. Aceitei. Rebuscando agora meus guardados encontrei o Certificado que me foi conferido: “Instrutor Voluntário da Cadeira de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas, a partir de 13 de março de 1968 até a data de 31 de maio de 1971”.

Foi nessa ocasião — e graças ao apoio de Raymundo — que se tornou real a possibilidade de iniciar minha carreira universitária. Sou grato isto a ele.

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MEDICINA OU POLÍTICA?

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Em 1967 a Sociedade Brasileira de Dermatologia tomou importante decisão, entendeu que era chegada a hora de criar seu Título de Especialista. Estando programada a XXIV Reunião dos Dermato-Sifilógrafos Brasileiros, para Juiz de Fora, entre 26 e 29 de outubro daquele ano, o Primeiro Exame para obtenção do Título foi ali realizado. Foi então aprovada a primeira turma de Dermatologistas Concursados.

Na ocasião foi também decidido que médicos formados há dez anos, ou mais, com reconhecido conhecimento da especialidade, estavam dispensados das provas e também receberiam seus Certificados. Este era meu caso, pois foram avaliados, reconhecidos e valorizados os anos de minha dedicação à Dermatologia, a princípio no Hospital das Clínicas, por dois anos, a seguir na Escola Paulista de Medicina, também por dois anos. Ainda mais, foram considerados os oito anos de serviços prestados à Secretaria de Estado da Saúde, no Hospital do Fogo Selvagem e, depois, no Sanatório Padre Bento. Recebi meu Titulo de Especialista em Dermatologia.

Apesar de estar perfeitamente apto a praticar e a ensinar Dermatologia, ainda não fora possível manter — por incrível que pareça — um consultório privado exclusivamente voltado para a especialidade. Atendia muitos casos de doenças da pele, é verdade, mas no consultório que mantinha no bairro da Agua Fria, na Zona Norte da Capital. Ali era o típico Clínico Geral, aquele que hoje é denominado o Médico de Família. Mas, na época, até este consultório estava em maré baixa, resultado da terrível recessão de 1965 e 1966.

Se de um lado eram grandes as dificuldades para a prática médica, em consultório privado, de outro surgiu um forte apelo para participar da área política. Nessa ocasião, em 1967, fui chamado para assumir o mandato de Vereador, na Câmara Municipal de São Paulo. Claro quer os compromissos daí decorrentes seriam inúmeros e crescentes, além do mais, estavam marcadas eleições para 1968 e a tentativa de buscar a reeleição já estava decidida.

Medicina ou Política?

Há ocasiões em que não somos nós mesmos que decidimos qual o caminho a tomar, são os fatos da vida que nos empurram, para um lado ou para outro. Foi o que ocorreu, naquele ano. As eleições municipais foram realizadas em novembro e já em dezembro, no dia 13, ocorreu a grande reviravolta da Política Nacional. Foi editado o Ato Institucional Número 5 — o tristemente famoso AI-5 — que marcou o predomínio da “Linha Dura” do Exército, foi então que se instalou a verdadeira Ditadura Militar.

Em decorrência do AI-5, no princípio de 1969, um Inquérito Policial Militar foi iniciado em São Paulo e envolveu as lideranças do Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, deste Estado. Lá estava meu nome, ao lado de vários outros, alguns políticos já cassados, como Mario Covas e Chopin Tavares de Lima, outros já presos, como os jovens Deputados Davi Lerer e Hélio Navarro. A partir de então deixavam de existir as mínimas condições para uma prática política independente, para quem estava em oposição ao Poder Militar. Os riscos eram muito grandes, afastei-me da Política antes que fosse dela afastado.

Neste cenário novo, inesperado, conturbado, recebi do Professor Raymundo Martins Castro, ou melhor, do amigo Raymundo, um duplo convite. Pediu-me que o ajudasse na Disciplina de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP, como Assistente Voluntário, para lá teríamos de ir todas as sextas-feiras. A

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proposta foi imediatamente aceita, ela iria me reaproximar da Vida Acadêmica, da Carreira Universitária. O segundo convite representou agradável surpresa e tenho certeza de que, ao fazê-lo, Raymundo pensava no difícil período de vida que eu estava atravessando. Convidou-me para trabalhar em seu consultório, no período da manhã.

O consultório era na Rua Itapeva, bem próximo à Avenida Paulista, uma localização privilegiada, o resultado de uma tendência da época: médicos estavam saindo do Centro da Cidade e indo para a região da Paulista. Raymundo havia se associado a Luiz Carlos Cucé e ambos atendiam em consultório comum, assim permaneceram sempre.

Estavam se multiplicando os Planos de Saúde, uma novidade logo aceita pela população. Em consequência estavam sendo credenciados médicos especialistas, estes assinavam Convênios com os Planos, atendiam os pacientes em seus consultórios privados. Raymundo e Cucé haviam assinado vários destes Convênios e ficaram sobrecarregados, eram tantos os clientes que precisavam de ajuda. Foi aí que entrei, atenderia no período da manhã, poderia também consultar eventuais pacientes meus, particulares. Proposta perfeita, aceita de imediato.

Medicina ou Política?

O conflito pessoal precisava ser decidido e era necessário um árbitro. Esse árbitro existiu e seu nome foi Raymundo, seus convites contribuíram para que a decisão final fosse tomada.

A Medicina ganhou.

FUTURO ? A CARREIRA ACADÊMICA !

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No início de 1969 foi preciso fazer uma grande mudança de rumo.

Os caminhos de atuação política haviam se tornado estreitos para quem estava em Oposição ao Governo Militar. O AI-5 concedera a este um Poder sem limites, discricionário, o Governo estava jogando duro, muito pesado, em cima da Oposição. Cassações de Mandatos, Inquéritos Policial-Militares, prisões, tudo demonstrava claramente a intenção de exercer o Poder de modo absoluto.

Renunciar ao mandato de Vereador? Acabara de ser eleito para a Câmara Municipal da Capital, como os eleitores iriam receber tal decisão? Adotar o silêncio total, como estratégia para escapar do rigor da repressão? Ou, ao contrário, ter uma atitude quixotesca de confronto com o Poder Militar, sabendo de suas desastrosas consequências?

Foram necessárias algumas semanas de consultas a familiares, a amigos, a alguns eleitores, também a uns poucos quadros do MDB que permaneciam em liberdade, só então uma decisão foi tomada. Nesta decisão pesou muito a preocupação com a família, com a esposa Yvonne e com os cinco filhos ainda pequenos, estes formando uma escadinha que ia dos oito aos quinze anos. A decisão foi solicitar uma licença por tempo determinado, permitiria manter a porta entreaberta para rever a situação, mais adiante. Decisão posta em prática, afastei-me da prática política, minha vaga foi ocupada por um representante da Zona Leste da Capital, Manoel Sala. Não voltei.

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Era preciso olhar adiante, a Medicina voltou a ocupar todo o cenário, sua prática representava o único caminho voltado para o futuro. Algumas circunstâncias foram favoráveis a esta definitiva opção.

A primeira foi o convite feito pelo amigo, Professor Raymundo Martins Castro, para trabalhar em seu consultório, na Rua Itapeva. Consultório seu e também de Luiz Carlos Cucé, eram sócios. Ao atendimento no consultório eu dedicaria todas as minha manhãs. A segunda foi meu retorno ao Serviço Público, reassumindo meu cargo de médico da Secretaria de Estado da Saúde, não mais no Sanatório Padre Bento, mas sim no Hospital Adhemar de Barros, o Hospital do Pênfigo Foliáceo. A terceira circunstância resultara de um convite feito, ainda por Raymundo, para integrar a equipe responsável pelo Curso de Dermatologia na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas.

Para tornar desimpedido o caminho a ser percorrido era chegado o momento de encerrar os longos anos de dedicação à Clínica Geral, à Medicina de Família, passando a praticar exclusivamente a especialidade, a Dermatologia. Para tornar isto possível, duas questões precisavam ser resolvidas.

A primeira seria abrir um consultório, para mim e para Yvonne, no Centro do bairro de Santana, onde passaríamos a atender apenas casos de nossas especialidades. A segunda era ingressar na Carreira Universitária, aqui teria de percorrer o caminho que todos percorriam, iniciando pela Tese de Doutorado. Caminho definido, decisões tomadas, tratava-se agora de passar à prática.

Retornei ao Hospital do Pênfigo e encontrei uma situação mais favorável, que permitiria dar

continuidade aos estudos que iniciara — e interrompera — oito anos antes. Os médicos daquele tempo estavam aposentados, exceção do Doutor José Aranha Campos, este fora nomeado Diretor do Hospital. Para minha surpresa, logo que retornei fui por ele convidado para ser o Diretor Substituto.

Material para a Tese de Doutorado? Tinha diante de mim duas alternativas.

A primeira seria a de rever todo o material arquivado no Hospital, mais de três mil casos! Os prontuários eram padronizados, bem documentados, escrupulosamente guardados, um notável acervo científico, único no mundo. Os múltiplos aspectos clínicos, laboratoriais e terapêuticos do pênfigo foliáceo — o fogo selvagem — estavam ali bem registrados, dariam motivo não apenas para uma, mas sim para várias, teses.

A segunda alternativa era retomar meu estudo original, iniciado em 1960, sobre o comportamento do vírus do Herpes simplex quando infecta pacientes com fogo selvagem.

Entendi que seria melhor trabalhar com ambas as possibilidades, deixando que o tempo decidisse qual delas se tornaria a mais adequada para elaborar a Tese de Doutorado.

Tudo foi posto em movimento, no correr daquele ano de 1969. Em seu final tornou-se possível consolidar as decisões tomadas, foi quando encerramos o atendimento em nosso consultório no bairro da Agua Fria e abrimos o novo consultório, agora na Rua Olavo Egídio, no Centro de Santana. Neste Yvonne e eu passamos a atender apenas clientes dentro de nossas especialidades.

Os caminhos que levavam ao futuro estavam pavimentados, tudo iria depender de muito esforço e muita dedicação. Deu certo!

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COMPUTADOR, GIGANTE IMPONENTE!

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Para jogar tênis você só conta consigo mesmo, para jogar futebol é preciso uma equipe completa. Preparar uma Tese de Doutorado não é como jogar tênis, é necessário todo um time de futebol.

Orientador eu já tinha, Raymundo Martins Castro, ele próprio percorrera todas as etapas que compõem a Carreira Acadêmica, estava à frente da Disciplina de Dermatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas. Aguardava a oportunidade de concorrer à Chefia de Dermatologia em uma das Faculdades da Capital, ou na USP ou na Escola Paulista de Medicina.

Raymundo acompanhou a preparação de minha Tese em todas as suas etapas, contribuindo sempre com sugestões valiosas. Para facilitar meu avanço, abriu-me portas e deu acesso a pessoas que poderiam ter um papel relevante, contribuindo para formar a equipe que iria dar suporte às pesquisas que precisavam ser efetuadas.

Uma destas pessoas foi Murilo Marques, Professor de Matemática na Universidade Estadual de Campinas. Naquele ano de 1969, enquanto a Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP funcionava no “Hospital Irmãos Penteado”, este localizado no Centro de Campinas, a Faculdade de Ciências Exatas já estava instalada em uma vasta área do bairro denominado Barão Geraldo, era aqui que estava sendo construído o Campus da Universidade.

O Governador do Estado de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, empenhado em valorizar suas Universidades, tanto a de São Paulo como a de Campinas, resolvera dotá-las de um equipamento moderno que vinha sendo utilizado, com sucesso, em Universidades Norte-Americanas. Algo muito novo, seu nome era Computador.

Raymundo entendia que este equipamento poderia ser útil, até mesmo necessário, para analisar os dados que iriam suportar a preparação de minha Tese. Na época eu estava revendo toda a experiência acumulada no Hospital Adhemar de Barros, o “Hospital do Fogo Selvagem”, ao longo de trinta anos de atendimento. Eram mais de três mil os Prontuários de doentes internados, Raymundo insistiu que um computador facilitaria uma revisão de tal porte.

Fui então conhecer o Professor Murilo Marques, recebeu-me cordialmente em sua sala de trabalho, no Campus de Barão Geraldo. Teve a paciência de me explicar como a “coisa” funcionava. Tratava-se de um sistema denominado “binário”, eu receberia cartões para perfurar e cada uma das variáveis estudadas receberia um número. Por exemplo, sexo masculino seria “1” e sexo feminino seria “2”. Transferidas as variáveis para os cartões, em números, o conjunto era colocado em uma máquina para serem “lidos”, os resultados apareceriam em tabelas, já prontas. Graças ao aparelho, o trabalho de meses seria feito em horas.

“— Fantástico o que pode fazer um computador”, comemorou o Professor Murilo.

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Fui levado para o sala onde o aparelho estava instalado e, realmente, impressionou-me sua imponência. Grande, muito grande, ocupava sozinho grande parte da sala, esta media uns vinte por dez metros. Nas paredes existiam aberturas para colocar os aparelhos de ar condicionado, ao todo uns dez a quinze. Explicou-me o Professor que, posto o Computador para trabalhar, havia grande aquecimento do ambiente. Isto era ruim, tanto para os operadores como para o próprio equipamento, esta a razão da refrigeração, era necessária.

Passei muitos fins de semana transformando os dados contidos em Prontuários em números, estes foram depois passados para as fichas, elas foram então perfuradas e levadas para o Computador. As mais de três mil fichas foram para a máquina, eu estava presente quando isto aconteceu. Tive a oportunidade de assistir a um belo espetáculo, quando as engrenagens começaram a rodar, vendo as fichas entrarem em uma extremidade e saírem pela outra, “lidas” no percurso. Em menos de uma hora tudo terminou, foram impressos os Relatórios que continham as informações desejadas.

Maravilha da tecnologia humana! Impressionado, comentei o quanto o Computador era necessário para as Instituições de Ensino.

“— É verdade, o obstáculo é seu preço, os complementos, a construção, tudo isto ficou em três milhões de dólares!”, respondeu-me o Professor Murilo.

E continuou: “— Há muita gente trabalhando para ver se é possível produzir equipamentos menores e mais baratos. Parece que é sonhar demais, mas todos nós acreditamos que chegará o dia em que teremos aparelhos do tamanho de uma TV e pelo preço de uma TV”.

Seu entusiasmo era tanto que meu comentário foi encorajador:

“— É bem possível que isto venha a acontecer, com o crescimento da tecnologia moderna talvez não demore muitos anos”.

Aconteceu, foi muito além da mais fantasiosa profecia.

LIÇÕES DE VIDA PARA NÃO ESQUECER

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A escolha do tema para a Tese de Doutorado não foi fácil. A dificuldade não estava na falta de tema, ao contrário, estava na multiplicidade de escolhas, dada a riqueza do material que eu tinha em mãos. Já decidira que seria sobre a doença popularmente chamada “fogo selvagem”, a qual nós, médicos, chamávamos de pênfigo foliáceo. Eu já estudara várias de suas características, todas se prestavam para cumprir os requisitos acadêmicos necessários para preparar a Tese de Doutorado.

A decisão final foi desenvolver um estudo sobre o comportamento da infecção causada pelo Herpesvirus hominis, quando esta ocorria em pacientes com pênfigo foliáceo. Este tema já fora objeto de um estudo inicial, motivo de uma “Nota Prévia”, por mim publicada em revista científica, anos antes. O estudo havia sido interrompido em 1962, quando fui afastado do Hospital do Pênfigo, mas retornando agora ao Hospital, em 1969, poderia retomar esse tema. Decidi que este seria o melhor, para a Tese.

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Em crônica anterior já afirmei que, na carreira universitária, ninguém depende apenas de si mesmo, precisa sempre contar com uma equipe, com um grupo de trabalho, ainda que pequeno, indispensável para dar respaldo científico para a pesquisa em andamento.

Para estudar um vírus era preciso contar com o apoio de um excelente Laboratório de Virologia, felizmente este existia em São Paulo e era de altíssima qualidade. Funcionava como um dos Departamentos do conceituado Instituto Adolfo Lutz, instituição de prestígio internacional mantida pelo Governo do Estado de São Paulo.

O Diretor do Setor de Virologia era o Doutor Luiz Florêncio Salles Gomes que, por feliz coincidência, era primo de Raymundo Martins Castro. Já havia sido meu parceiro na ocasião em que estudamos os primeiros casos, em 1961, publicamos junto a respectiva “Nota Prévia”.

Salles Gomes decidiu organizar um esquema de trabalho ágil e eficiente, que pudesse dar o necessário andamento, toda vez que um novo material fosse por mim levado ao Laboratório. Tudo acertado, tornei-me frequentador assíduo do Instituto Adolfo Lutz, ora para levar material, ora para acompanhar as inoculações, ora para ver os exames sorológicos seriados feitos nos pacientes. Tudo isto foi por mim acompanhado, paciente por paciente, durante muitos meses. Nesse tempo fui efetivamente parceiro e pesquisador, não apenas um solicitador de exames.

Conheci bem a equipe comandada por Salles Gomes. Uma das pessoas que a compunha, responsável pelas etapas que exigiam maior precisão dos procedimentos laboratoriais, era uma técnica de origem húngara, com idade já próxima aos sessenta anos. Falava português com terrível sotaque, por isto mesmo era de pouca conversa, eu só conheci o seu nome por ter ouvido, não recordo como era escrito. Algo como dona Kricka, não sei se era assim que se escrevia, mas a pronúncia me faz pensar que deveria ser mais ou menos isso. Contou-me que havia participado dos protestos e do levante ocorridos na Hungria, em 1956, contra a ocupação russa. Quando a revolta foi derrotada houve uma emigração em massa, húngaros se espalharam pelo mundo todo e muitos vieram para o Brasil.

Ela foi preciosa colaboradora, devo-lhe muito pelo cuidado que teve com a parte técnica de minha Tese. Mas devo também algo mais, era muito sensata e com ela aprendi coisas da vida, houve dois momentos de nosso convívio que merecem ser assinalados. Foram ocasiões em que recebi verdadeiras lições de vida, das quais jamais me esqueci. Conto quais foram.

A primeira foi quando algo não correu bem, por um instante pareceu que iria comprometer nosso trabalho, poria em risco o andamento da Tese, isto gerou em mim uma manifestação pessimista, algo como “— Será que vai dar?”.

Foi então que dela ouvi uma pequena historieta, que reproduzo utilizando suas próprias palavras:

“— Em minha terra nós conhecemos o otimista e o pessimista quando colocamos sobre a mesa o queijo tipo Golda, aquele enorme queijo suíço. Ao vê-lo o otimista vai exclamar, maravilhado: que lindo queijo!”

Continuou:

“— Logo depois chega outro indivíduo, o pessimista, que faz cara de desagrado e comenta: como tem buraco, nesse queijo”.

Completou:

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“— Em cada momento da vida um mesmo fato pode gerar uma dessas duas atitudes, uns veem o lado bom, outros veem os buracos, é então que conhecemos o otimista e o pessimista”.

Exemplar historieta, que se completa com outra que aconteceu no dia em que cheguei ao Laboratório de cara fechada e com o humor em baixa.

”— Doutor, o Senhor já observou que nos dias em que saímos de casa de cara fechada só encontramos gente de cara fechada e que nos ignora?”.

A seguir:

“— E quando saímos de casa bem humorados, sorrindo e dando bom dia para todo mundo, só encontramos gente que sorri e nos deseja um bom dia?”

Não pude deixar de concordar, era isto mesmo. Ela completou:

“— Então o Senhor faça o favor de sair da sala e entrar de novo, sorrindo e dando bom dia”.

Sábia Senhora! Dela recebi estas duas preciosas lições de vida, que me foram muito úteis, para sempre. Quantas vezes eu as repeti para outros, em momentos apropriados, conseguindo melhorar o ânimo e a autoestima, de muitas e muitas pessoas.

ESFORÇO RECONHECIDO, ESFORÇO PREMIADO

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Em 1939 foi inaugurado o Hospital do Pênfigo Foliáceo, no bairro do Mandaqui, Zona Norte da Capital de São Paulo. Fruto do empenho de um idealista, o Doutor João Paulo Botelho Vieira, o qual mantinha ótimo relacionamento com um Colega de seus tempos de Faculdade, o Doutor Adhemar de Barros, naquele ano Interventor Federal do Estado de São Paulo. Isto ajudou!

O novo Hospital era uma instituição modelar, com instalações totalmente voltadas para o adequado tratamento daquela grave e excepcional doença cutânea, conhecida popularmente como “Fogo Selvagem”. Tinha também completo apoio laboratorial, desde a Anatomia Patológica até setores mais especializados do Laboratório Clínico. Ainda mais, o Hospital mantinha estreita relação com outras instituições especializadas do Governo do Estado, incluído aqui o Instituto Adolfo Lutz, um centro de pesquisas altamente qualificado e com prestígio de âmbito internacional.

O Hospital do Pênfigo tinha tudo para oferecer aos pacientes o melhor padrão possível de atendimento, entre aqueles anos de 1939 a 1958, mesmo inexistindo medicação específica. Os esforços dos Corpos Médico e de Enfermagem conseguiam levar à recuperação pelo menos da metade dos pacientes, embora isto ocorresse só após anos de internação. A outra metade não se recuperava, os pacientes entravam em caquexia e não resistiam às infecções secundárias, vindo a falecer.

Desde a minha chegada ao Hospital, em meados do ano de 1961, identifiquei-me com seus propósitos e com os cuidados dispensados aos pacientes, tanto clínicos como emocionais. Eles necessitavam muito destes cuidados por serem grandes sofredores, com enorme dificuldade para resistir e superar uma doença que os acometia da cabeça aos pés e que os espoliava de suas reservas orgânicas, levando-os à caquexia.

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Havia também um desafio que precisava ser aceito, enfrentado e superado, tratava-se de buscar as causas de uma doença tão grave e de origem ainda desconhecida. Havia ali um campo propício para oferecer a solidariedade humana, como também para desenvolver a vocação para a pesquisa científica. No Hospital do Fogo Selvagem o Humano e o Científico convergiam, diariamente.

Das inúmeras possibilidades de pesquisa ali existentes, duas se impuseram sobre as demais, sobre elas já me referi em crônicas anteriores mas vou recordá-las, neste momento.

A documentação contida nos arquivos médicos do Hospital do Pênfigo era muito bem organizada e conservada, permitira revisões que haviam originado vários trabalhos científicos. Esta documentação permitiu rever qual era entre nós a frequência e o significado de uma doença que já havia sido descrita na Europa por dois autores, Senear e Usher, os quais tiveram seus nomes associados à descrição que fizeram: “Pênfigo Eritematoso de Senear-Usher”. Na Europa os casos eram esporádicos, aceitos como uma forma frustra do Pênfigo Foliàceo. Pois bem, ao fazer o estudo dos doentes internados e, também, uma revisão de prontuários, reunimos uma fantástica casuística, quase trezentos casos. O que era raro na Europa era frequente entre nós, poderia ser excelente para uma Tese de Doutorado.

Outra linha de investigação estava representada pela maneira muito peculiar como se apresentava a infecção pelo Herpesvirus hominis nos pacientes com Fogo Selvagem. O quadro clínico era muito agressivo, levava à formação de incontáveis vesículas herpéticas na pele já danificada pelo Pênfigo. Esta erupção era acompanhada de febre e mal estar geral, caracterizando um quadro sistêmico, mas os pacientes se recuperavam após duas semanas. Os pacientes que acompanhamos em tudo eram muito semelhantes ao que já havia sido descrito na Europa, pelo Professor Kaposi, de Viena, ficando registrado na literatura científica como “Erupção Variceliforme de Kaposi”. Um detalhe: no mundo todo estes casos eram raros e ocorriam em pacientes com Dermatite Atópica, já em nosso Hospital era relativamente frequente, o vírus demonstrava uma especial predileção pela pele alterada do paciente com Pênfigo. O estudo desta erupção reunia duas características, a da originalidade, pois não fora ainda descrita, também a da frequência. Um bom título para a Tese seria “Erupção Variceliforme de Kaposi por Herpesvirus hominis em doentes com Pênfigo Foliáceo”.

Ao fazer finalmente a escolha, decidi pela erupção provocada pelo vírus herpético. Em abril de 1971 a Tese foi aprovada com distinção e permitiu obter o Título de Doutor em Medicina, pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, a UNICAMP.

Ambas as pesquisas eram originais e os trabalhos foram enviados, um de cada vez, para publicação em revistas internacionais, sendo editadas pelo Colégio Ibero-Latino Americano de Dermatologia, o C.I.L.A.D.

O trabalho sobre Herpesvirus e Pênfigo foi publicado no Volume XIV (1972) de “Dermatologia Ibero Latino Americana”. O outro, sobre “Pênfigo de Senear-Usher e Fogo Selvagemm”, foi publicado no Volume II (1974) de “Medicina Cutânea Ibero Latino Americana”. Ambas as revistas eram editadas na Espanha.

Os dois trabalhos foram premiados por terem sido considerados os melhores publicadas nos respectivos anos, prêmios concedidos pelo C.I.L.A.D.

Este reconhecimento expresso pela comunidade científica internacional representou um grande estímulo para a continuidade da Carreira Universitária.

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OS AFINS SE ENCONTRAM

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Como nasce uma amizade? Certamente a partir do encontro de um ponto de identificação, é em torno dele que irão ser motivadas as conversas, renovadas a cada reencontro. Com o tempo outros pontos de convergência vão sendo evidenciados, vai aumentando a relação pessoal, há prazer em conviver, conversar, compartilhar.

Quando o conhecimento recíproco leva à descoberta da identidade de valores, de compromissos éticos e morais, comuns a ambos, aqui então a amizade chega ao ponto mais alto. Cada qual irá assumir alguma quota de sacrifício, se necessário, buscando ajudar ao outro. Percorrer este caminho todo pode se dar em curto intervalo de tempo, ou pode demorar anos e anos.

Com Raymundo Martins Castro e Vicente Amato Neto a amizade surgiu logo em meu Primeiro Ano de Faculdade de Medicina. Amato eu conheci no futebol, que praticávamos na Associação Atlética do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Já com Raymundo o primeiro encontro foi na pista de atletismo do Clube Atlético Paulistano, onde nos preparávamos para a competição com o Mackenzie, a MAC MED. Ambos eram bons no esporte, eu não passava de um aprendiz, até que me esforçava, mas sem levar muito jeito.

Ao chegar ao Quarto Ano da Faculdade senti necessidade de iniciar Estágio Voluntário no Hospital das Clínicas, buscando complementar o aprendizado alcançado nas salas de aulas. Escolhi a Clínica de Moléstias Infecciosas e Tropicais, a MI, eles lá estavam: Amato como Médico Contratado e Raymundo como Residente. Após quase dois anos de convívio, entre nós três ficou consolidada uma amizade que perdurou para sempre.

Com o Professor Sebastião Sampaio ocorreu exatamente o oposto. Nosso conhecimento se iniciou de maneira tumultuosa, vou recordar como foi.

Quando o Professor João Aguiar Pupo me convidou para ser Médico Auxiliar de Ensino da Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas, em janeiro de 1959, o Professor Sampaio estava nos Estados Unidos, estagiando na Mayo Clinic. Ao completar o estágio retornou e, para sua surpresa, encontrou-me ocupando a vaga que pretendia destinar a um seu Colega de Turma.

Sampaio estava iniciando sua Tese para o Concurso de Cátedra, esta a razão de estar estruturando uma equipe de apoio. Não me conhecia, não sabia sequer de minha existência, procurou desde logo deixar claro que eu não fazia parte de seus planos. Naquele primeiro semestre de 1960 nossa relação foi difícil e tumultuada, eu estava pagando por algo que não fizera. A paz só retornou quando lhe assegurei que devolveria o cargo, tão logo ele assumisse a Cátedra. Isto efetivamente ocorreu, em janeiro de 1962.

Três anos se passaram até voltarmos a ter contato mais próximo, isto aconteceu quando o Professor Sampaio necessitou fazer uma investigação clínica, seria sobre a utilização da talidomida no tratamento da reação leprótica. Quem estava no Sanatório Padre Bento, cuidando dos pacientes de lepra? Eu mesmo. Programamos e executamos o trabalho, fomos bem sucedidos, melhorou o conceito que ele tinha sobre mim.

Em 1969 fui eleito para a Presidência do Departamento de Dermatologia da Associação Paulista de Medicina, foi uma gestão produtiva e de muitas iniciativas. Uma destas foi a realização do Primeiro Encontro de Dermatologistas do Estado de São Paulo, até então o

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Departamento que eu estava presidindo só abrangia a Dermatologia da Capital. Com o início das atividades de várias Faculdades de Medicina, no Interior do Estado, justificava-se uma ampliação da abrangência do Departamento da APM. Combinamos isto com o Professor Walter de Paula Pimenta, que estava respondendo pela Disciplina de Dermatologia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. A reunião foi um sucesso e, durante o almoço de encerramento, realizado no Parque dos Jequitibás, sugeri que a Sociedade Brasileira de Dermatologia criasse a Seção Regional do Estado de São Paulo. E completei:

“- E se criarmos, Professor Sampaio, o Senhor será o primeiro Presidente”.

Retrucou, em cima:

“- Aceito, se você for o Secretário Geral”.

Compromisso firmado com a concordância de todos os presentes, em dezembro daquele ano surgia a SBD/RESP. Foi a partir de então que nosso convívio se estreitou, tornando-se extremamente profícuo. Surgiu entre nós sólida amizade, que se manteve por quase quarenta anos, até sua morte.

Como sempre fui grato a todos os que contribuíram para que eu avançasse, no campo da Dermatologia, é justo reproduzir os agradecimentos que constaram de minha Tese de Doutorado.

“Ao Professor Doutor João de Aguiar Pupo, decano dos dermatologistas brasileiros, assombroso exemplo de inteligência tão fértil quão longeva, a quem devo meu ingresso na Dermatologia.”

“Ao Professor Doutor Raymundo Martins Castro, mestre e companheiro de muitas jornadas, pelo decisivo estímulo e incansável presença que me serviram de amparo, ao longo da caminhada e que, na presente Tese, foi o sereno e ponderado Orientador.”

“Ao Professor Doutor Sebastião Almeida Prado Sampaio, pela marcante influência exercida em minha formação dermatológica através da Cátedra que, com brilho, dirige na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.”

“Ao Professor Doutor Vicente Amato Neto, pelas oportunas sugestões que vieram elevar o nível da presente Tese.”

SÓ CLÍNICA, NÃO, TAMBÉM PATOLOGIA

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O mecânico responsável por uma máquina operatriz percebe um defeito em seu funcionamento, tenta corrigir utilizando todos os recursos disponíveis, não consegue e ela para. Que fazer? Poderá jogá-la em um depósito de ferro velho e mandar vir outra, para substituí-la. Ou então irá desmontar a máquina, peça por peça, buscando a causa do defeito e aprendendo o porquê do acontecido, cuidando para que isto não se repita, em situações futuras semelhantes.

E o médico comprometido com seu paciente, empenhado em tratá-lo para conservá-lo em vida, alcançado porém pelo desgosto de sua morte, como deve proceder?

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“— Ele tem a obrigação de ir para a Sala de Autópsias para ver de perto as alterações dos órgãos afetados, mais ainda, deve depois acompanhar ao microscópio os preparados histopatológicos, aprendendo sempre, mesmo com as situações adversas”.

Era esta a lição que o Professor Sílvio dos Santos Carvalhal transmitia a todos os que passavam por suas mãos, no Departamento de Clínica Médica da UNICAMP. Era um Professor com formação completa, não só dominando a Clínica como também a Anatomia Patológica. Era muito seguro ao oferecer um diagnóstico e sugerir uma conduta, para os casos que lhe eram apresentados. Acompanhei as suas discussões clínico-patológicas, durante os três anos em que fui Assistente Voluntário na Faculdade. Sua segurança me causava profunda impressão e, por ocasião de minha Defesa de Tese de Doutorado, fiquei grato por ter participado da Banca Examinadora.

O Doutorado era, na época, o primeiro degrau da Carreira Acadêmica, o passo seguinte a ser dado era o Concurso para obter o Título de Livre Docente. Esta possibilidade poderia surgir de um momento para outro, necessário estar preparado para enfrentar e vencer este desafio.

O que significava estar preparado?

Primeiramente, é certo, era preciso aumentar a área de conhecimento da especialidade, dominando não só os aspectos clínicos correspondentes aos diferentes processos mórbidos da pele, mas também os correspondentes achados histopatológicos. Em segundo lugar seria necessário acompanhar as publicações especializadas de maior prestígio, sempre atento ao que era novo. Terceiro, continuar participando de uma Clínica Universitária, pacientemente aguardando que surgisse uma oportunidade para dar o passo almejado.

Em relação ao primeiro ponto, a Anatomia Patológica da Pele, meu conhecimento era quase nulo, restringia-se aos pênfigos e à hanseníase, resultado dos anos trabalhados com pacientes portadores dessas doenças. Foi então que entrou decisivamente, em minha vida, o Professor Sebastião Sampaio. Ele também participara de minha Banca Examinadora, no Doutorado, deixou-me então à vontade para procurá-lo na Clínica de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi o que fiz, no mês de outubro de 1971.

Concedeu-me um Estágio de um ano, não remunerado, deveria me apresentar todas as manhãs e trabalhar das oito às onze horas. Recomendou-me também que comprasse o livro publicado nos Estados Unidos pelo Professor Walter Lever, Histopathology of The Skin, um companheiro indispensável, junto ao microscópio.

Cumpri rigorosamente o que foi determinado, chegava bem cedo à Clínica e ia para a Sala de Histopatologia, começava a examinar as lâminas já as sete horas da manhã. Nesse horário só estávamos eu e uma dedicada e simpática técnica, dona Gertrudes. Procurei sempre permanecer não somente até as onze horas, esticava até o meio-dia, assim meu estágio não era de apenas três, mas sim de cinco horas, diárias.

Ainda mais, aproveitei todas as noites para ler o Lever e fazer fichas resumidas, isto durou alguns meses, organizei um fichário que me acompanhou pelo restante da vida profissional. Sempre contei com este arquivo de fichas, ao lado de meu microscópio.

O esforço valeu. Ao fim de um ano, já em outubro de 1972, encerrei o estágio de Anatomia Patológica da Pele e me senti confiante em meus conhecimentos, no campo da Dermatopatologia. Uma base científica que foi de extrema utilidade, para o restante de minha vida profissional.

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QUATRO MOSQUETEIROS

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Hospital das Clínicas, Terceiro Andar, Dermatologia, chega-se então à Sala de Dermato-Patologia.

Um Laboratório modelar, arquivos muito bem organizados contendo milhares de lâminas de casos já examinados e resolvidos. Uma fonte permanente de material para estudo clínico-patológico, realmente era utilizado com essa finalidade.

Uma extensa e sólida mesa ocupava o centro da sala e metade dela continha os equipamentos necessários para o funcionamento do Laboratório. Todas as colorações específicas necessárias para a dermato-patologia podiam ser ali realizadas, não faltavam os reativos necessários para fazê-las. A qualidade dos preparados estava assegurada pela competência da encarregada, dona Gertrudes, senhora de meia idade cuja dedicação era igualada por sua simpatia.

A outro metade da mesa estava ocupada pela bancada com os microscópios, eram quatro e se distribuíam em forma de quadro, quatro examinadores poderiam trocar opiniões, olhos nos olhos. As bandejas com as lâminas em exame ficavam no centro do quadro , ao alcance de todos. Uma distribuição perfeita, diziam que era inspirada na sala do Professor Walter Lever, nos Estados Unidos.

Para completar o cenário só faltava, mesmo, o Professor Lever? Bem, de certa forma, não faltava não!

Tínhamos alguém a sua altura, o Professor Thales de Brito, que pertencia ao quadro docente do Departamento de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina. Semanalmente se reunia conosco, os estagiários, para ouvir a apresentação dos casos e fazer a revisão dos mais difíceis, ou dos mais originais. Além do Professor Thales estas reuniões semanais contavam também com a presença do Professor Sebastião Sampaio, eram sempre reuniões de alto nível.

Tudo funcionava bem, o trabalho ali desenvolvido invariavelmente provocava a admiração de professores visitantes, ilustres, vindos das mais variadas partes do mundo.

Foi um proveitoso estágio, importante destacar quem eram os companheiros que ocuparam os outros microscópios: Evandro Rivitti, Elemir Macedo de Souza e Simão Cohen. Formávamos um quarteto de apaixonados pelos segredos revelados pelo microscópio, éramos aplicados na busca incessante da interpretação correta desses achados.

Víamos tudo, discutíamos tudo, estudávamos em profundidade os casos mais difíceis. Creio que em grande parte devo a minha rápida e aprofundada formação, neste campo, ao fato de não estar só, mas sim por ter ao lado três Colegas capazes e interessados. Tínhamos, todos, plena convicção de que este aprendizado iria dar maior consistência a nossa condição de dermatologistas.

Evandro Rivitti já era Médico Auxiliar de Ensino da Faculdade, mais tarde fez o Concurso para Titular e substituiu o Professor Sampaio. Elemir Macedo de Souza foi para a UNICAMP, tornando-se também Professor Titular de Dermatologia. Simão Cohen foi Professor na Faculdade de Medicina do ABC e, finalmente, eu próprio cheguei a Professor Pleno da

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Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Todos nós, portanto, após aquele período de formação em Dermato-Patologia, percorremos trajetória acadêmica ascendente.

Meu estágio foi realizado fora dos quadros da Residência Médica e fora também das Bolsas de Estudo, pois estas eram reservadas a profissionais vindos de outras cidades de São Paulo ou de outros Estados, em busca de aperfeiçoamento. Creio mesmo quer fui, até aquela ocasião, o único que passou um ano inteiro fazendo exclusivamente a Dermato-Patologia como Estagiário Voluntário. Isto não havia acontecido antes, não sei se aconteceu depois.

Ao completar os doze meses que havia solicitado, já em outubro de 1972, fui agradecer ao Professor Sampaio pela oportunidade que me dera. Estávamos de acordo, ambos, que o estágio havia sido extremamente proveitoso e seria um marco referencial de uma possível carreira universitária.

“— E agora, para onde você vai?”

“— Bem Professor, recebi um convite para ir para o Hospital do Servidor Público do Estado”.

“— Nada disso, você tem de ir para um Hospital Universitário. Seu lugar será na Santa Casa”.

Um diálogo de despedida e de agradecimento que mudou, por completo, a minha vida.

LIVRE DOCÊNCIA

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No final de 1973 recebo um telefonema do Colega e amigo Raymundo Martins Castro, parceiro de muitos momentos vividos em comum, ao longo de nossas vidas. Desta vez tinha um aviso a me dar, um convite a me fazer.

“— A Escola Paulista de Medicina abriu Concurso para Livre Docência, podem se inscrever todos que já defenderam Tese de Doutorado.”

E continuou:

“— O convite é para você se inscrever, venha que vai conseguir”.

Em 1969 havia sido aprovada a Lei Federal de Diretrizes e Bases para a Educação, ela continha as normas que deveriam ser cumpridas para a ascensão na Carreira Universitária. Seriam quatro as etapas, começando com o Mestrado e depois o Doutorado, ambas exigindo a realização das respectivas Teses. As etapas seguintes seriam de Professor Adjunto e de Professor Titular, nestas as Provas seriam apenas arguições do Currículo, o Didático e o Científico.

Diante da nova Lei, como ficariam os que haviam iniciado sua Carreira segundo as normas antigas? Antes eram apenas três os níveis, Doutorado, Livre Docência e Cátedra. Os que já haviam feito o Doutorado, teriam de regredir para fazer o Mestrado? Estava assim criado um problema que afetava centenas de docentes, de todos os campos da Educação, em todo o território nacional.

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A solução encontrada foi a de aceitar a Ttese de Doutorado como válida para todos os níveis da Carreira, sendo então necessário abrir Concursos para a Livre Docência, Brasil afora, em caráter excepcional e dentro de um prazo determinado.

“— Procure se inscrever já no Concurso da EPM, você vai conseguir”.

Raymundo havia sido convidado a apresentar seu Currículo — que era excepcional — para ser avaliado pela Congregação da Escola Paulista de Medicina. Uma vez aprovado, recebera o cargo de Professor Titular de Dermatologia e ocupara a vaga deixada pelo Professor Abrahão Rotberg, que se aposentara. Ao me informar sobre o Concurso para a Livre Docência estava seguro do que falava, havia participado de todas as discussões que antecederam a publicação do respectivo Edital.

Excelente, não haveria necessidade de nova Tese, aceitava-se a que fora feita e aprovada por Banca Examinadora, na UNICAMP. Quais eram então, as demais provas? Eram a prova escrita, a seguir a análise da produção científica, finalmente a didática.

Não fui somente eu, o convidado pelo Professor Raymundo. Também o foram Luiz Carlos Cucé, Luiz Henrique Paschoal, Neuza Dillon, Vinício Arruda Zamith. Ao todo seríamos cinco os candidatos à obtenção do Título de Livre Docente.

Aceitei o desafio e comecei a me preparar.

As provas estavam programadas para junho de 1974. Os meses que as antecederam foram de empenho na preparação de textos sobre os temas que estavam relacionados, um deles seria sorteado no momento da prova. O mesmo em ralação à prova didática, o tema seria sorteado com vinte e quatro horas de antecedência.

Foram cinco os meses de preparação e, felizmente, o objetivo de todos nós foi alcançado. O Título de Livre Docente era importante para alcançar o posto mais alto da Carreira Acadêmica, o de Professor Titular. Todos nós já tínhamos algum grau de responsabilidade, em diferentes Faculdades: Cucé na de Santo Amaro, Paschoal na do ABC, Neuza Dillon em Botucatu, Vinício na USP, eu na Santa Casa.

E Raymundo?

Seus olhos estavam voltados para um objetivo ainda maior. A Lei de Diretrizes e Bases havia regulamentado os Cursos de Pós Graduação, os que seriam criados para atender a demanda de Mestres e de Doutores. Raymundo, Titular da Disciplina, poderia agora contar com cinco Livres Docentes, de imediato poderia criar a Pós Graduação em Dermatologia. Foi isto o que fez, certamente o primeiro curso de Pós Graduação da área da Dermatologia a ser instituído no Estado de São Paulo e, talvez, o primeiro do Brasil.

Durante os vinte e cinco anos que se seguiram acompanhei todas as Turmas que por ali passaram, tive estreito contato com muitos mestrandos e doutorandos que depois vieram a ser Titulares em Dermatologia, em São Paulo, no Brasil e no Exterior.

Foi através dessa participação no Curso de Pós Graduação da Escola Paulista de Medicina, dessa colaboração, que pude retribuir ao amigo Raymundo — ao Professor Raymundo Martins Castro — todas as oportunidades que me ofereceu, durante nosso longo convívio. Tenho por ele — e por sua memória — uma eterna gratidão.

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SANTA CASA

SÉCULOS DE BENEMERÊNCIA

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As Santas Casas remontam ao final do Século XV, foi quando a Rainha Izabel, de Portugal, decidiu incentivar a criação de instituições para amparar os desvalidos. Seriam Casas Santas, para desabrigados, para órfãos, para enjeitados. Onde existissem os que necessitassem de amparo, ali deveria também existir um recanto seguro onde fossem recebidos e cuidados.

As Santas Casas de Misericórdia começaram a ser criadas, no Brasil, tão logo se desenvolveram os primeiros núcleos de colonização organizados pelos portugueses. A

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primeira, nesta Capitania, foi a de São Vicente, mais tarde a de São Paulo, ambas ainda no Século XVI. Por séculos ambas cumpriram sua missão original de amparo aos necessitados.

A partir de 1860, contudo, em decorrência do rápido crescimento da população de São Paulo, ficou evidente que já eram insuficientes os serviços oferecidos pela benemérita instituição, não estava em condições de ser um hospital à altura das necessidades da população que habitava a Sede da Província. Era muito respeitada, estava construída e funcionava no Largo da Misericórdia, mas era uma casa de acolhimento, não se tratava ainda de verdadeiro hospital.

A ideia de construir um grande hospital para a cidade, no modelo dos melhores que existiam nas grandes cidades europeias, ganhou corpo e adesão entre os mais possuídos de bens, estes eram os fazendeiros produtores de café. Na época — recorde-se — os fazendeiros paulistas eram os maiores responsáveis pela riqueza nacional, o café era praticamente nosso único produto de exportação.

Construir sim, mas onde?

Não houve problema para encontrar um terreno apropriado, graças à generosidade de Dona Veridiana Prado. Sua família possuía uma área suficientemente grande e que ficava um pouco retirada do Centro, isto é, uns dois quilômetros além das chácaras localizadas no Vale do Anhangabaú. Da propriedade da Família Prado foram então destacados uns quatro hectares, delimitados por arruamentos de pouca importância, que começavam a surgir, e que hoje são as Ruas Cesário Mota Junior, Marquês de Itu, Jaguaribe e — a justiça foi feita — pela Rua Dona Veridiana. A inauguração da nova Santa Casa se deu em 1884, com o prédio do Hospital Central amplo, imponente, majestoso mesmo, dominando o cenário da região. Mostrou-se à altura das necessidades da Sede da Província.

Na época os médicos de São Paulo eram formados nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e de Salvador, Bahia, muitos eram os procedentes de outras Províncias do Império. Havia também uma minoria de profissionais, formada na Europa, que vinha atraída pelo extraordinário e rápido desenvolvimento da Província e de sua Capital, resultante dos recursos originados pela cafeicultura. A Santa Casa logo se tornou uma referência como organização hospitalar e não tardaram seus médicos a sentirem a necessidade de constituir uma entidade associativa, nos modelos europeu e norte-americano. Em 1896, já na República, foi constituída a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.

Vivia-se a época dos Clínicos Gerais, dos Cirurgiões também Gerais, as Especialidades Médicas ainda engatinhavam, até porque não havia, entre nós, centros formadores de especialistas. Isto ocorria também na Dermatologia.

Nesta área, a de Dermatologia, tudo começa a mudar nos primeiros anos do Século XX, graças à chegada à São Paulo do Doutor Carlos Adolpho Lindenberg. Retornava da Europa após ter estagiado por vários anos nas mais prestigiosas Clínicas Dermatológicas lá existentes. Estágios feitos principalmente nas Clínicas da Austria e da Alemanha, mas também na França. Voltava preparado, pronto para assumir uma posição de liderança na Dermatologia, foi imediatamente integrado no Corpo Médico da Santa Casa, por volta de 1903. Seu conhecimento, sua liderança, sua dedicação, foram reconhecidas pela Mesa Diretora da Santa Casa e, em maio de 1907, foi oficialmente iniciada a atividade da Clínica de Dermatologia, sendo sua direção a ele entregue.

Linfenberg foi incansável como estudioso e como pesquisador, também competente na formação de equipe e atencioso no atendimento aos pacientes. Ainda mais, suas relações pessoais com afamados dermatologistas europeus possibilitou que os convidasse para vir a

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São Paulo, deles foi anfitrião quando aqui chegavam. Ainda mais, sua vocação para o Ensino da Medicina fez com que se associasse aos que queriam uma Faculdade de Medicina para São Paulo. Esta foi criada em 1912, com o nome de Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e dela Lindenberg foi não só seu primeiro Catedrático de Dermatologia, como também seu Diretor. Graças a seu prestígio e à qualidade do Serviço que organizou, a Dermatologia atraiu jovens promissores, vários dos quais mais tarde vieram a assumir posição de destaque no cenário médico de São Paulo e do País.

Em 1937 a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo foi substituída pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Esta nova fase de sua história coincidiu com a enfermidade que comprometeu as atividades do Professor Lindenberg e da qual ele veio a falecer, anos mais tarde.

Recordo estes fatos, ainda que de modo sumário, pois acredito que os Valores Culturais, que alicerçam uma Nação, iniciam pelo respeito aos Mestres e às Tradições.

EMILIO ATHIÉ

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Como mudou a Medicina através dos tempos. E como continua mudando.

Este é o resultado da expansão constante dos recursos colocados à disposição do Médico, conduzindo-o em direção à especialização. São recursos que precisam ser bem conhecidos, bem indicados, bem manejados, não param de aumentar, sempre mais e mais direcionados para resolver satisfatoriamente as minúcias que estão envolvidas em cada caso clínico. Medicina de ponta!

De ponta, sim, mas tais recursos conduzem não só à especialização, como também a uma sub especialização. Como consequência inevitável, perde-se de vista o ser humano como um todo indivisível. Que Medicina é esta, capaz de cuidar maravilhosamente bem do detalhe, mas que perde a visão do Ser?

Há quem tenha analisado esta excessiva especialização do médico — quando se sabe cada vez mais sobre cada vez menos — chegando a conclusões viciadas e que levam a respostas equivocadas. Por exemplo, aquela que propõe: “Vamos formar mais médicos, sendo maior o número de formados, cria-se uma oferta excedente de força de trabalho”. Supõe-se que, então, muitos só terão oportunidade de ser Clínicos Gerais, são os que irão suprir as necessidades do Sistema Público de Saúde. Libera-se a criação de uma ou duas centenas de novas Faculdades de Medicina para despejar para a prática diária dezenas de milhares de médicos, embora mal preparados.

São essas as duas faces, do mesmo problema.

De um lado temos a excessiva especialização, que diminui de modo drástico e inaceitável a visão do Ser Humano como um todo. No reverso, a ideia de ter maior número de médicos voltados para a Medicina Integral, apenas aumentando o número de salas de aula, como se a formação em Medicina fosse apenas uma questão de espaço.

O dilema não é de hoje, há décadas preocupa quantos buscam oferecer à Sociedade uma Medicina Integral de boa qualidade. Esta preocupação existia na Santa Casa de São Paulo, na década dos anos sessenta, ocasião em que eu ainda não estava ali presente. Não posso relatar os fatos que então ocorreram como testemunho pessoal, mas sempre posso repassar do modo como eles me foram narrados, ainda que de um modo bastante sintético.

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No distante ano de 1962 havia uma atuante Associação dos Médicos da Santa Casa, presidida pelo Doutor Emílio Athié, cirurgião prestigiado, homem calmo e de fala mansa, bastante determinado. Bom planejador, igualmente bom realizador. Recorde-se que na época o cenário do Ensino Médico da Capital Paulista estava resumido a duas Escolas Médicas, daí Athié entender que havia espaço para uma terceira.

Uma das existentes era a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, antes denominada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, que por sinal nascera dentro da própria Santa Casa, no longínquo ano de 1912. Ao mudar para seu novo endereço na Avenida Doutor Arnaldo, em 1945, a Faculdade ganhou o moderníssimo Hospital de Clínicas, obra prima de Engenharia Hospitalar. A partir da mudança a Faculdade se desligou da célula-mãe, foi completa a separação.

A outra era a Escola Paulista de Medicina, também tivera sua fase embrionária ocorrida na Santa Casa, por volta de 1932 e 1933. O Corpo Docente da célula-filha nasceu do Corpo Clínico da célula-mãe e, entre ambas, jamais houve a separação. Era habitual que médicos recém formados pela EPM fossem completar seu treinamento nas enfermarias e nas salas cirúrgicas da Santa Casa.

No ano de 1962 Emílio Athié colocou como objetivo da Associação dos Médicos lutar por um melhor aproveitamento das instalações do hospital e dar oportunidade, igualmente, à vocação docente de seu Corpo Clínico. Por que não criar uma nova Faculdade?

Tinha tudo para dar certo, foram iniciadas reuniões e troca de ideias, formadas as comissões necessárias, atendidas as exigências do Ministério da Educação. O esforço foi recompensado, sendo realizado em 1963 o primeiro exame vestibular e admitida a Primeira Turma da nova Faculdade. Por sinal, esta foi uma Turma que marcou muito sua presença, teve trajetória importante e contribuiu para que se consolidasse o Curso Médico.

Desde seu início a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo teve por objetivo conciliar a Medicina Integral com a Medicina Especializada, demonstrando que não são antagônicas, podem se integrar e se completar.

Foi bem sucedida na busca de seu objetivo e se tornou uma esplêndida realidade! Veremos a seguir.

EMOÇÃO DO REENCONTRO

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Em minha adolescência distante, lá pelos idos dos anos quarenta, o tradicional Colégio Rio Branco estava localizado no final da Rua Doutor Vilanova, quase à esquina da Rua Maria Antonia, aqui confrontava com o Colégio Mackenzie. Em sentido oposto, quatrocentos metros abaixo, em suave declive, a Rua Doutor Vilanova se encontrava com a Rua Marquês de Itu, ali estavam os muros da Santa Casa de São Paulo.

Quantas vezes eu fui do Colégio Rio Branco até à Marquês de Itu, depois caminhei ao longo daqueles muros em direção à Biblioteca Municipal. Ficava impressionado com os majestosos prédios, os da Santa Casa, bem protegidos pelos altos muros, eles formavam um conjunto que me causava esse sentimento, de profunda e respeitosa admiração. O conjunto realmente se impunha pela majestade das construções e pela harmonia do todo, nada discrepava. Parecia, ao menino/adolescente que por ali passava, um castelo de gigante, mas

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de um gigante benfeitor. Eu caminhava sempre em respeitoso silêncio, sabia que ali estavam os que sofriam, mas também os que se dedicavam a cuidar desses sofredores, os médicos e as enfermeiras.

Ao passar diante da entrada via o enorme e bem cuidado jardim, por detrás dele é que ficavam os prédios. Nunca me atrevi a entrar para ver tudo mais de perto, para saber como funcionava. Curiosidade tinha, mas não me aventurei a tanto. Daquele tempo ficou uma vontade secreta, recolhida ao fundo de meu ser, a de um dia ser também um dos que ali trabalhavam. Conseguiria?

Trinta anos depois esta multidão de lembranças retornou à mente, em cascata, isto aconteceu após ter ouvido uma frase e a seguir esperar em silencio, até que se completasse uma conversa telefônica.

O cenário. A Clínica de Dermatologia do Hospital de Clínicas, da Faculdade de Medicina da USP. Meu interlocutor, o Professor Sebastião Sampaio, a quem eu solicitara o encontro. A finalidade era agradecer pelo Estágio de um ano no Setor de Dermato-Patologia, que se completara na véspera, foi então que ele perguntou quais eram meus planos para o futuro. Respondi que ainda havia incerteza, talvez aceitasse convite para trabalhar no Hospital do Servidor Público Estadual, para tanto havia sido convidado pelo Professor José Pessoa Mendes.

“— Seu destino é a Santa Casa de São Paulo, vá e comece a colaborar com a Dermatologia de lá, ligo já para o Adauto”.

O Professor Sampaio falou e agiu. Imediatamente a ligação foi feita para o Professor Adauto Barbosa Lima, Diretor do Departamento de Medicina da Santa Casa, ambos mantinham uma amizade que nascera ao tempo em que estagiavam nos Estados Unidos, um na Dermatologia, o outro na Cardiologia. Naquele telefonema acertaram que eu deveria enviar o meu Currículo, para depois agendar uma entrevista.

“— Vai que será aceito, primeiro na condição de Voluntário, dê sempre o melhor de si pois ali está o seu futuro”.

A visita foi agendada para dois dias depois, no período da manhã. Pela primeira vez em minha vida passei pela Portaria e atravessei o jardim da Santa Casa, em busca da entrada principal. Após ultrapassá-la, dei de frente com uma pequena igreja, a Capela, era assim que a chamavam. O menino que todos conservamos dentro de nós ressurgiu naquele momento, os olhos umedeceram, como se fosse a emoção de um reencontro. Antes tudo que ali estava só existia na imaginação, agora era uma esplêndida realidade.

Defronte à Capela parei por um instante, silencioso fiz uma oração para agradecer a Deus pela oportunidade que me concedia. Em seguida fui à procura da sala do Professor Adauto.

“— É no DM 2”.

Curta resposta, para quem informou era claro que todos deveriam saber o que era e onde ficava o DM2, também como se chegava até lá. Eu náo sabia.

Devidamente orientado, minutos após estava diante do Professor Adauto, um médico circunspecto e que estava com meu Currículo em suas mãos. Recebeu-me com atenção e simpatia.

“— O telefonema de Sampaio chegou em boa hora, estamos mesmo precisando de alguém na Dermatologia, você logo vai verificar a razão do que estou falando”. Em seguida

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comentou meu Currículo, como se estivesse fazendo uma arguição sobre ele e, ao chegar ao item que se referia à Defesa de Tese, na UNICAMP, exultou.

“— É disto que estamos precisando, a Faculdade da Santa Casa é nova, de funcionamento muito recente, a maior parte dos Professores mais jovens ainda não tem titulação acadêmica, neste ponto você irá levar vantagem, desde já.”

A conversa progrediu a foi se tornando cada vez mais simpática, logo nos identificamos em torno de valores morais e éticos da profissão, das atenções voltadas para os pacientes, da relação entre profissionais. Encontrada esta identificação de princípios, era chegada a hora de dizer como seria minha entrada no Corpo Médico da Santa Casa.

Explicou que tinha interesse em me receber de imediato, mas não poderia oferecer um contrato de trabalho, não tinha recursos para tanto. Teria de ser um trabalho voluntário, somente em futuro próximo eu poderia alcançar uma situação mais estável. Ficamos de acordo quanto a isto.

Ao completar a entrevista mais de uma hora havia se passado, a despedida foi feita com uma recomendação da qual nunca mais me esqueci:

“— Jamais pense ou se pergunte o que a Santa Casa está fazendo por você, pergunte sempre a si mesmo se você está fazendo pela Santa Casa tudo o que ela precisa e merece.”

Palavras sábias. Em muitas ocasiões eu as repeti, em momentos difíceis que vivemos junto, eu e a nossa Santa Casa.

RECOMEÇAR, COMO?

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A Dermatologia da Santa Casa fora incorporada ao Departamento de Medicina em 1963, ano do início das atividades da Faculdade de Ciências Médicas. Inclusive o espaço antes ocupado pela famosa Quarta Enfermaria de Homens, a “Enfermaria do Doutor Lindenberg”, que muito havia contribuído para o melhor conhecimento das doenças infecciosas e tropicais, foi entregue ao Departamento de Anatomia. Os leitos foram substituídos pelas mesas de dissecção.

Para iniciar meu trabalho perguntei ao Professor Adauto Barbosa Lima, Diretor do Departamento de Medicina, onde ficava o Ambulatório de Dermatologia, eu queria me apresentar.

”— Não existe mais, alguma coisa ainda é feita ao lado do Setor de Farmácia, ali onde se descarta o material já utilizado, dê uma olhada por lá”.

Procurei e encontrei o local, uma sala onde eram atendidos os pacientes com úlceras de perna. Ali estavam eles aglomerados, esperando para fazer curativos, muitos para colocar a Bota de Unna. Para atendê-los somente estavam presentes duas Auxiliares de Enfermagem, sobrecarregadas pelo excesso de pacientes que atendiam.

“— Onde encontro o médico responsável?”

Não havia médico responsável, eram só elas. Apontaram para os fundos, havia ali uma pequena sala com um singelo consultório montado, onde uma dedicada Doutora atendia

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duas vezes por semana. Caminhei entre as caçambas cheias de material descartado, dez metros adiante lá estava a sala, pequena e mal iluminada, mobiliada apenas com escrivaninha e cadeiras, um divã clínico, um armário para guardar abrigos, nada além disso.

Voltei dois dias depois e fiquei conhecendo a jovem médica, atenciosa, apresentei-me e ela retribuiu: “— Olga Korolkevicius”. Havia se formado em Sorocaba e fora aluna do Professor Cerruti, entenderam-se, ela passou a consultar duas vezes por semana, naquele local. Eram poucos os pacientes encaminhados para consulta, talvez a razão fosse por não participar do Departamento de Medicina, era absolutamente desconhecida dos demais médicos da instituição. Doutora Olga era pessoa de boa vontade, porém não havia tido a possibilidade de buscar uma formação maior, dentro da especialidade que escolhera.

Como fazia para esclarecer casos mais difíceis? Foi então que fiquei sabendo da existência de um dermatologista de quem nunca ouvira falar antes, mantinha-se afastado dos numerosos eventos científicos, dos quais eu próprio sempre participava. Chamava-se Doutor João Fonseca Bicudo, era pessoa bem mais idosa do que eu, beirava os setenta anos.

Na primeira oportunidade em que estava agendada sua visita à sala de consultas lá compareci, tinha curiosidade e interesse em conhecê-lo. Foi um contato agradável, uma simpatia recíproca. Tive depois algumas oportunidades de assistir a suas discussões de casos, fiquei impressionado com seu grande saber, era excelente no diagnóstico e seguro na conduta a adotar. Uma lástima que tivesse vida dupla, era muito mais um fazendeiro produtor de café do que dermatologista, não havia possibilidade de oferecer a nós uma colaboração mais frequente.

Não houve tempo para aprofundar este contato, que teria sido extremamente benéfico, para mim. Com a minha chegada à Santa Casa, parece que Doutor Bicudo e Doutora Olga entenderam que sua missão estava cumprida, que os pacientes que atendiam agora teriam atenções adequadas, despediram-se de mim desejando boa sorte, deram por encerrada sua colaboração.

Contávamos também com o Professor Humberto Cerruti. Uma vez por semana eu comparecia ao Setor de Triagem do Ambulatório, ali era feita a primeira consulta, o setor ficava localizado no subsolo do Edifício Conde de Lara. Nesse local o Professor Humberto Cerruti dava sua contribuição à Santa Casa, atendendo uma vez por semana: às quintas feiras, das dez às onze da manhã, consultando oito pacientes.

A isto se tornara reduzida a Dermatologia da Santa Casa. Uma pequena sala, vizinha ao Setor de Descarte do Material utilizado em transfusões de soro e de sangue, vizinhança nada agradável. Às quintas feiras, oito consultas no subsolo do Conde de Lara.

Iniciei o meu trabalho, sempre recordando as palavras do Doutor Adauto, elas me ajudaram em momentos difíceis:

“— Nunca pergunte o que a Santa Casa faz por você, pergunte a si mesmo o que você está fazendo pela Santa Casa”.

Compareci todas as manhãs ao mini Ambulatório que tinha disponível e, às quartas feiras, assisti sempre as Reuniões do Departamento de Medicina, no DM 2.

Assim se passaram as últimas semanas de 1972. Um período que me permitiu conhecer melhor a situação existente e compreender melhor o desafio a enfrentar. Ao se iniciar o ano de 1973 o cenário começou a mudar. A presença constante nas Enfermarias, atendendo aos

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pedidos de consultas, também nas reuniões semanais, começou a exercer um papel catalizador. Comentava-se pelos corredores:

“— Agora temos Dermatologia, na Santa Casa”.

Bem rexcebido.

Após este bom começo, era chegado o momento de pensar em formar uma equipe. Conto a seguir como isto aconteceu.

COMPONDO A EQUIPE

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Era assim! Quarta feira, um pouco antes das oito horas da manhã, os médicos do Departamento de Medicina começam a chegar ao anfiteatro do DM2, é dia de Reunião. Pontualmente às oito o Diretor do Departamento, Doutor Adauto Barbosa Lima, entra e toma assento à mesa, dando início aos trabalhos. Presentes todos os Médicos Contratados, os Residentes, os Chefes de Disciplina. Na verdade, todos não, a Dermatologia até então não estava representada, o Titular da Disciplina não comparecia.

Na quarta feira que se seguiu a minha entrevista com o Professor Adauto – e na qual fui aceito como Médico Voluntário – lá estava eu, participando pela primeira vez. Fui apresentado, para conhecimento de todos. Bem recebido, de imediato aprendi a conhecer e a respeitar os Colegas, depois a conviver fraternalmente com todos. Desde o primeiro contato senti que estava em minha casa, era exatamente esta a sensação, a de que era ali mesmo o lugar em que eu sempre desejara estar. Não me pareceu ser uma apresentação, mas sim um reencontro. Realmente, eu me senti em casa!

Na semana seguinte nova reunião. Desta vez, ao terminar, um médico jovem que estava sentado ao fundo do anfiteatro levanta e se aproxima, seguiu-se a apresentação:

“— Fausto Forin Alonso, queria falar consigo”.

Explicou-me que havia se formado na própria Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, dois anos antes, e que desejara se especializar em Dermatologia. Não existia mais na Santa Casa qualquer estágio que pudesse fazer e, pior ainda, não conseguira aprovação em Concursos para a Residência Médica, em três tentativas que fizera: para o Hospital das Clínicas, para a Escola Paulista de Medicina, para o Hospital do Servidor Público Estadual.

Por que se decidira pela Dermatologia? Explicou: seu tio era o Doutor Fernando Alayon, dermatologista consagrado da Capital. E continuou: não tendo conseguido frequentar um Serviço Especializado, permanecera na Santa Casa, porém como frequentador do Departamento de Pediatria. Ali colaborava no atendimento ambulatorial:

“— Na Pediatria, não havia ninguém motivado para atender as doenças da pele”.

Fausto solicitou que eu o aceitasse como colaborador, caso fosse minha intenção formar uma equipe. Aceitei-o, de imediato, passou a frequentar nossa pequena sala de consultas. Dias após fez referência a um Colega de Turma que fora mais feliz do que ele, conseguira ser

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aprovado para a Residência no Hospital do Servidor Público Estadual: tratava-se do Doutor Marcus Maia. Eu já o conhecia, por termos participado de eventos patrocinados pela Sociedade Brasileira de Dermatologia. Inclusive o conhecera melhor quando atendi a um convite do Professor José Pessoa Mendes, Chefe do Serviço de Dermatologia do Hospital do Servidor Estadual, e nesse hospital proferi uma conferência, sobre tema de nossa especialidade. Marcus estava presente.

“—Ótima sugestão, vamos então nos reunir, os três, para ver até que ponto podemos estar trabalhando em equipe”.

O encontro efetivamente ocorreu dias após, almoçamos em um restaurante da Rua Marquês de Itu, próximo à Santa Casa. Expliquei a situação especial em que eu estava, responsável pelo atendimento diário da Dermatologia mas sem ser Médico Contratado, era apenas Médico Voluntário. Situação inusitada, que se estenderia também para eles, caso nos colocássemos de acordo. Seríamos todos Voluntários.

Projeto aceito, firmamos entre nós um acordo, iríamos trabalhar pela Santa Casa como Voluntários, mas nos dedicando tanto ou mais do que um Médico Contratado. O exemplo de dedicação certamente seria compreendido e recompensado, no futuro.

Éramos três, já constituíamos uma equipe. Faltava algo, não obstante, que eu considerava importante, essencial mesmo. Precisávamos aprofundar nossa relação com o Departamento de Anatomia Patológica, pois a boa Dermatologia Clínica se apoia sempre em uma boa Dermato-Patologia. Marquei entrevista com o Titular do Departamento, o Professor José Donato de Próspero, ele me recebeu muito bem. Compreendeu meu pedido de colaboração e concordou com a proposta de mantermos uma estreita relação clínico-patológica. Seu interesse aumentou ao ver meu Certificado comprovando meu ano de estágio em Patologia de Pele, cumprido no Hospital das Clínicas. Informou que o setor de Dermato-Patologia ainda não estava montado em seu Departamento, nosso bom entendimento iria cobrir esta lacuna.

Ainda mais, disse-me que tinha um nome em mente para formarmos uma verdadeira equipe, faria uma consulta e me daria uma resposta. Dois dias depois pediu que fosse ao Departamento para me apresentar a pessoa certa: a Doutora Helena Muller. No contato que fizemos nos sentimos identificados e assim nosso time aumentou, já não éramos três, passamos a quatro.

Na semana seguinte procurei o Professor Sampaio e lhe contei como decorreram aquelas primeiras semanas, e dos progressos obtidos. Eu estava confiante que nosso time faria renascer o prestígio da Dermatologia da Santa Casa. Mas precisava sua colaboração, seria oferecer a Fausto um estágio, em seu Serviço, no Hospital das Clínicas. Compreendeu a importância do que eu pedia e concedeu o estágio, este foi então programado para um ano.

Com todos os apoios que tivemos, havia agora muito que fazer. E muito fizemos.

E HOUVE MAIS : IRMÃ FRANCISCA

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Naquele início de 1973 o atendimento ambulatorial de Dermatologia se fazia em ambiente minúsculo, reduzido a uma só sala de consultas, onde o exame do paciente era feito por Fausto, Marcus e por mim, mas nenhum procedimento poderia ser realizado.

A sala era contígua ao setor destinado a atender pacientes com úlceras de perna, local onde eram feitos curativos e colocadas as eficientes Botas de Unna. Incrível o número de pacientes atendidos diariamente, uma parcela considerável de pobres criaturas, das mais desvalidas dentre a população paulistana. Carentes de tudo, até mesmo de ter onde morar, uma felicidade quando encontravam vaga em algum albergue público, muitas vezes não tinham nem sequer isto, eram mesmo moradores de rua.

Para receber a pequena multidão que todos os dias ali comparecia haviam sido tomadas algumas providências, que permitiram atender mais casos e com maior rapidez. A sala fora revestida com uma parede com azulejos e nela foram colocadas torneiras, por baixo era acompanhada por uma canaleta ladrilhada. Sentados à sua frente os pacientes iam se sucedendo, colocavam as pernas debaixo das torneiras, os curativos sujos podiam então ser facilmente retirados e colocados em “ramps” que estavam ao lado, dali iam para a incineração. Com pernas já lavadas e adequadamente limpas, os curativos ou as Botas já podiam ser feitas.

Verdadeira linha de produção, eficiente, que contava com a atenção dedicada de uma dupla de Auxiliares de Enfermagem. Nada mal feito, às pressas, bem ao contrário. Cada paciente era outro paciente, uma individualidade que precisava ser compreendida e bem atendida. Não eram apenas as úlceras de perna que precisavam ser tratadas, eram os seres humanos que necessitavam atenção e carinho e isto era oferecido pela dupla de Auxiliares de Enfermagem. Uma lástima que, passado quase meio século, eu já não me recorde de seus nomes. Onde estiverem recebam meu profundo respeito pela solidariedade humana que sempre ofereceram àquelas pobres criaturas.

Eram contíguas, nossa sala de consultas e a área de curativos. De imediato eu me senti na obrigação de colaborar e fui recebido com simpatia e alívio, afinal há tempos aquela dupla de Auxiliares não tinha seu trabalho compartilhado com médicos. Os pacientes eram por médicos encaminhados, mas o dia-a-dia era só por elas vivido.

Os resultados de uma colaboração tão próxima logo se fizeram sentir. Por exemplo, era importante reconhecer e diferenciar uma úlcera de causa venosa de outra de causa arterial, questão fundamental, pois os tratamentos são totalmente diversos. Ou então, perceber a presença de uma infecção secundária, muitas vezes causada por bactérias já resistentes a antibióticos, era um fator importante de agravamento do caso e de retardo da cura. Outro exemplo, a ocorrência de uma granulação excessiva do fundo da úlcera, que impedia a cicatrização e exigia uma curetagem, só assim voltando à normalidade o processo cicatricial.

Havia tantas oportunidades para colaborar, cooperar, ajudar, que tudo isto se tornou diário: a colaboração, a cooperação, a ajuda. Criou-se um clima de fraternidade entre nós da Dermatologia — Fausto, Marcus e eu — e as Auxiliares de Enfermagem, propiciando uma substancial melhoria na qualidade do atendimento aos infelizes portadores de úlceras de perna. A nova situação chegou ao conhecimento da Diretoria de Enfermagem, isto me permitiu conhecer uma figura humana maravilhosa, a Irmã Francisca.

Ela comandava sua Diretoria com competência mas também com compreensão humana exemplar. Falava em voz baixa e de modo tranquilo, jamais elevava o tom de voz ou se tornava ríspida.

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Irmã Francisca apareceu em nosso cantinho de trabalho algumas semanas após termos iniciado aquela cooperação. Veio manifestar sua alegria pela novidade que tornara mais leve e menos penoso, com melhor resultado, o esforço e a dedicação de suas Auxiliares de Enfermagem. Conversamos por algum tempo, no dia em que nos conhecemos, de imediato houve entre nós uma identificação de princípios e de propósitos. Iniciou-se ali uma colaboração que se estendeu e se projetou pelos quase vinte anos seguintes.

“— Aqui é tudo muito acanhado, venha comigo dar uma olhada no Primeiro Andar do Conde de Lara”.

Esta frase eu ouvi mais de um ano após nos conhecermos, ela se referia ao prédio dos Ambulatórios, o “Conde de Lara”. Atendendo ao convite lá fomos, para que eu pudesse avaliar a utilidade de uma área desocupada, situada ao lado do Ambulatório de Cirurgia, no Primeiro Andar. A área fora utilizada por muitos anos por um setor da Administração, mas há tempos estava desativada e ainda sem destinação.

“— Não é mesmo apropriada para se tornar o Ambulatório de Dermatologia?”.

Foi o que me perguntou e com o que concordei. Sem dúvida, era muito apropriada!

As gestões da Irmã Francisca junto à Administração da Santa Casa foram bem sucedidas, recebemos autorização para ocupá-la. Decidimos não aguardar, nada de reformas, nada de pedir mobiliário novo, nada de solicitar fornecimento de equipamentos especializados. Nem pensar, isto poderia levar meses e a oportunidade ser perdida. Uma área desocupada tinha de ser imediatamente apropriada, antes que alguém por ela manifestasse interesse. Dito e feito, a limpeza ficou por conta da Irmã Francisca, a mudança ficou a nosso encargo.

No sábado seguinte, às oito horas da manhã, lá estávamos para iniciar a mudança. Agora já éramos quatro, Humberto Frucchi havia se juntado a nós, como nosso primeiro Residente. Pegamos macas velhas no depósito da Santa Casa, sobre elas colocamos o que havia em nossa sala de consultas, percorremos em cortejo os cem metros que nos separavam do Conde de Lara. Naturalmente ocupamos a área destinada aos veículos, nosso desfile de macas provocou algum congestionamento do trânsito, por uns poucos minutos. Foi de certa forma cômico, alguns Colegas passantes não contiveram o riso e fizeram brincadeiras.

Nada disto importava, o importante foi ocuparmos nossa área no primeiro andar do Conde de Lara, ali passou a funcionar o Ambulatório de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo.

Que progresso!

MEDICINA INTEGRAL, SEMPRE !

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Há frases lidas ou ouvidas, uma única vez, que jamais são esquecidas.

“— O especialista é alguém que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até saber tudo sobre o nada.”

Esta frase eu ouvi do Professor Sebastião Sampaio, lá por 1960, ocasião em que retornava de estágio que fizera nos Estados Unidos. Preciosa, ela fazia a síntese das discussões que então ocorriam nomeio médico, consequência do progressivo desaparecimento do Clínico Geral e de sua substituição pelos Especialistas. O motivo da preocupação: a tendência do médico de se aprofundar de tal modo em sua especialidade que deixava de ver o Ser Humano como um todo indivisível. A propósito, se a frase já refletia uma preocupação no início da década dos anos sessenta, pode-se imaginar a preocupação de hoje, neste início de Século XXI, quando ganha cada vez mais espaço a especialização dentro da especialização, ou seja, a sub-especialização!

Admitido como Médico Voluntário da Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo, mantive algumas conversas com o Chefe do Departamento de Medicina, do DM, o Professor Adauto Barbosa Lima, trocávamos ideias, conferíamos princípios. Foram conversas que contribuíram para que eu me adaptasse mais rapidamente ao novo ambiente, em que iria viver e trabalhar.

Um dos temas que Adauto abordou nestas conversas, foi exatamente o da preocupação com a progressiva redução do número de médicos dedicados à Medicina Integral. Resumiu para mim os antecedentes que haviam precedido a fundação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, destacando a decisão dos fundadores de dedicar todos os esforços para que a nova Faculdade viesse a formar médicos com bom e correto treinamento, visando o atendimento integral ao paciente.

“— Nossa solução foi simples e eficiente, dividimos o Departamento de Medicina em Áreas, elas formam a base de nossa pirâmide. As Áreas não são complementares das Disciplinas, ao contrário, as Disciplinas é que são complementares às Áreas”.

Áreas I, II, III, IV e V, cada qual com seu Chefe e seu Adjunto, esta a base do sistema. Tinham à disposição uma centena de leitos para internação, nos três andares do DM, entre elas repartidos. Nós, das Disciplinas, solicitávamos a internação de pacientes, mas estes iam para as Áreas e ficavam sob sua responsabilidade. Caso a internação fora por mim solicitada, eu deveria visitar o paciente com frequência, para discutir seu caso com a Área e contribuir para traçar a melhor conduta. Corretíssima a estrutura montada para atendimento aos internados, os pacientes eram sempre vistos em sua integralidade, as opiniões dos especialistas eram bem recebidas e contribuíam para um melhor entendimento do caso e atendimento do paciente.

Se nas Enfermarias o ambiente já era propício para a troca de informações, para o cotejo de opiniões, que dizer então das Reuniões das Quartas-Feiras! Às oito horas em ponto Doutor Adauto dava início à Reunião, transmitia algumas informações administrativas e a seguir passava a palavra para o Chefe da Área. Cada semana uma delas era a responsável pela apresentação de um caso. O que ouvíamos — e víamos — eram casos desafiadores e ilustrativos, muito bem apresentados pelas Áreas e pelas Disciplinas que haviam participado e contribuído. Ao terminarem tinham contribuído para que todos os participantes tivessem seu conhecimento aumentado. Isto se estendia por todo a ano, as Áreas se sucediam, as Reuniões eram preciosas, Até então, já com quinze anos de formado em Medicina, eu nunca participara de reuniões semelhantes, em que todos cooperavam. Creio que minha identificação com o sistema adotado pelo DM, minha total receptividade, em grande parte

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foi influenciada pelos doze anos em que pratiquei a Medicina Geral — além da Dermatologia — em meu consultório de bairro.

Uma geração inteira de médicos, para cuja formação contribuiu decisivamente o DM da Santa Casa, esteve totalmente identificada com os propósitos de Emilio Athié, de Oscar Monteiro de Barros, de Adauto Barbosa Lima, de tantos outros, os idealizadores e criadores da nova Faculdade. Foram estes pioneiros que insistiram, buscaram e encontraram o caminho do atendimento integral ao paciente, do qual as Disciplinas eram protagonistas mas não substitutas da Clínica Geral.

Durante vinte anos procurei estar sempre presente às Reuniões das Quartas-Feiras, aprendi muito em todas. Aprendi com Adauto Barbosa Lima, na Cardiologia; com Pedro Jabour, na Nefrologia; com Domingos Minervino, na Pneumologia; com Pedro Fava, na Hematologia; com Wilson Sanvito, na Neurologia; com Paulo Ayrosa Galvão, nas Moléstias Infecciosas; com Haroldo de Azevedo Levy Sodré , na Gastroenterologia; com Manoel do Patrocínio de Moraes Neto, na Endocrinologia; com Gil Spilborg, na Reumatologia. A todos fui e sou sempre grato, todos contribuíram para que eu pudesse exercer a minha especialidade, a Dermatologia, sem perder de vista a Medicina Geral. Ao longo de toda a minha trajetória profissional procurei sempre encaminhar meu paciente na hora certa, ao especialista certo, nas eventualidades que o dia-a-dia da Medicina reserva, para cada caso.

Mesmo após a minha aposentadoria continuei por muitos anos frequentando a Santa Casa, não faltando às Reuniões das Quartas. Mas notei que, principalmente a partir da virada do Século, houve uma mudança de conteúdo, as Áreas foram progressivamente diminuindo sua participação, o Ser Humano foi sendo progressivamente repartido em seus Sistemas e em seus Órgãos, as Disciplinas de Especialidades ganharam mais e mais espaço.

Aos poucos, as partes estão vencendo o todo! Quiçá isto possa ser revertido.

RENOVAÇÃO MÉDICA

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Cada um de nós precisa ter, dentro de si, um cantinho reservado para fazer a autocrítica, para perguntar a si mesmo se aquilo que faz está sendo corretamente feito, ou se poderia ser feito de um modo melhor. É preciso ter algum cuidado com a autocrítica, praticada em excesso ela pode levar à autocensura, à depressão, à autodestruição. É preciso saber dosar na medida certa pois um pouco dela faz bem a todos, obriga cada qual a parar por um instante, a se interrogar sobre aquilo que faz.

E as críticas?

Sempre há quem se empenhe em criticar, tudo! Tudo o que se faz, tudo o que existe, são críticos que acabam por perder o crédito, até mesmo quando suas críticas são razoáveis e justificadas. Mesmo assim é preciso preservar - e incentivar - o direito de criticar. Até poderíamos dizer, não só o direito, mas o dever de criticar.

Críticas exteriorizam um sentimento de insatisfação, individual ou coletivo. Há alguém que começa, há os que ouvem e repercutem, surge o debate em busca de novas perspectivas, as que se chocam e as que convergem, logo o aparente caos irá gerar uma nova ordenação das

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ideias e das coisas que nos cercam. Colocadas debaixo de um foco apropriado, que ilumine o cenário, as novas ideias e as novas propostas darão inicio a um debate mais amplo no seio da Comunidade, torna-se então possível trazer algo de novo para o convívio em grupo, para o convívio social.

Todas estas considerações, tão genéricas, tiveram o propósito de servir de introdução para descrever o cenário que existia nos primeiros anos da década dos anos setenta. Havíamos atravessado o período mais duro e repressivo imposto pelo Governo Militar, sob a Presidência do General Emílio Garrastazu Médici. Seu sucessor, o General Ernesto Geisel, dava início a uma cautelosa distensão, isto porque ele participava da corrente menos radical das Forças Armadas.

O período de repressão brutal, que custou muitas vidas, provocou muitas prisões e gerou muitos exílios, havia se encerrado junto com o mandato do Presidente Médici. O meio universitário havia resistido ao Governo Militar desde sua implantação, mas agora estava tolhido, não tinha como manifestar esta resistência. O Presidente Geisel, desde o princípio de seu Governo, fez questão de se distanciar da “Linha Dura”, propondo e agindo na perspectiva da redemocratização do País. Foi um percurso longo e vencido a passos lentos, mas percorrido com decisão.

Naquele cenário a energia contida nos anseios da juventude não podia se voltar para fora, para a vida da Nação, voltava-se então para dentro do próprio ambiente universitário. No caso da Medicina surgiu e se desenvolveu algo de novo, algo relacionado com seus próprios fundamentos. Vejamos. Até então a Medicina era entendida como atenção à doença, a formação do estudante e a atividade do médico estavam condicionadas apenas por esta referência. O fato novo, que gerou uma revisão de conceitos e se tornou preocupação coletiva, ficou sintetizado em uma frase marcante e que exerceu forte influência sobre as novas gerações de estudantes e de formados:

“— Não basta saber que doença tem o doente, é igualmente importante saber que doente tem a doença”.

Passou a ter prestígio e destaque a Medicina Social, não como contraposição à Medicina Curativa, mas como sim como seu indispensável complemento. Uma concepção tão sintética, tão compacta, tão fácil de ser assimilada, ganhou rapidamente prestígio e apoio. Conhecer o doente, saber quem é, o que faz, em que condições que vive e trabalha, seu ambiente social, verificar os fatores circunstanciais que precisam ser considerados, enfim uma multidão de aspectos ganhou relevo e importância. Este enfoque mais amplo do dever do médico contribuiu para dar destaque à Medicina Social e, em todas as Faculdades, o correspondente Departamento ganhou importância e dimensão, passando a ter maior poder de influência nas decisões universitárias. Isto também ocorreu na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Ideias geram movimentos, estes geram ações.

Em 1977 nossos alunos começaram a se movimentar e a sugerir mudanças de rumos, na Faculdade. Após prolongado jejum de manifestações as novas gerações estavam prontas para desencadear algum tipo de ação, que tivesse repercussão pública. Foi então que decidiram iniciar uma greve, a primeira a ocorrer em São Paulo após muitos anos e, por ser algo novo, ganhou inesperado destaque na imprensa. Surgiu na Santa Casa uma liderança aglutinadora e dela se aproximaram lideranças de outros grandes hospitais. Um rastilho de pólvora. No ano seguinte, em 1978, foram desencadeadas outras greves, no Hospital do Servidor Público Estadual e no Hospital das Clínicas. Havia interlocução entre todas as lideranças, iniciou-se um movimento que se autodenominou “Renovação Médica”.

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Deste movimento não fiz parte. Em 1977 estava inteiramente envolvido com a Clínica de Dermatologia e empenhado em realizar um Curso de Histopatologia da Pele de nível internacional, para este havia convidado o Professor Jorge Abulafia, da Argentina. Havia também assumido a Presidência da Seção Regional de São Paulo da Sociedade Brasileira de Dermatologia e, ainda mais, fora designado como Delegado Regional para o Brasil do Colégio Ibero-Latino-Americano de Dermatologia. E ainda havia muito mais, desnecessário fazer aqui uma exposição de currículo.

Fiquei alheio à movimentação que precedeu a greve dos estudantes da Santa Casa, nem sequer compreendi bem qual a sua finalidade. Constatei que, para ser iniciada, ela contou com a simpatia de membros do Departamento de Medicina Social e de alguns médicos dos Departamentos de Pediatria e da Medicina. A maioria de nós ficou de fora.

Ainda mais, não compreendi e não endossei as críticas que foram feitas à Provedoria da Santa Casa e à Diretoria da Faculdade. Conhecia bem as dificuldades que eram enfrentadas por ambas, mantive apoio a elas e isto criou distância entre mim e os grevistas. Pela primeira vez em minha vida fiquei sabendo que há no mundo uma intransponível divisão entre “Nós” e “Eles”. “Eles” são os que precisam ser afastados do caminho ou, pelo menos, neutralizados. Fui aqui incluído.

A greve passou, esta lição ficou.

SANTA CASA EM DIFICULDADE? VAMOS ENTENDER

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Um prato de comida e uma cama para dormir, aos totalmente desvalidos. Asilo para recém-nascidos abandonados por mães que não podiam criá-los. Acolhimento por uma noite, aos viajantes pobres. Enfim, uma Casa Misericordiosa, para pobres e enjeitados. Foi isto o que Izabel, Rainha de Portugal, decidiu criar em seu Reino, nos últimos anos do Século XV. Uma ideia que progrediu e que, bem depois, foi adotada e ampliada na colônia de Além-Mar, em terras brasileiras. O Brasil Colônia adotou a recomendação e Casas de Misericórdia foram abertas em cidades litorâneas mais prósperas, mantidas pela generosidade da população.

O grande impulso gerador de inúmeras Santas Casas ocorreu durante o Segundo Império, não por inspiração Imperial, mas sim por uma necessidade econômica. Foi consequência da entrada, em cena, da cafeicultura. A cultura do café exigia permanentes cuidados, no plantio, no crescimento e na colheita, mobilizando inúmeros trabalhadores rurais, tão mais numerosos quanto maiores as dimensões do cultivo.

Estávamos na metade do Século XIX, época em que as fronteiras agrícolas da cafeicultura haviam se estendido da Província do Rio de Janeiro para o Vale do Paraíba, logo a seguir para os sertões da Província de São Paulo. Foi também nessa época que começou a haver a progressiva substituição do trabalho escravo pelo dos imigrantes europeus, estes principalmente de origem italiana. Os escravos eram mantidos em senzalas, para os imigrantes foi preciso construir moradias de melhor qualidade. Não só isso, não podia faltar

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um pequeno armazém com as mercadorias mais essenciais. Surgiram colônias nas fazendas de café, cada qual tinha a sua. A educação infantil tinha suas salas de aulas, em zonas rurais, a princípio eram excepcionais, tornaram-se comuns depois da Proclamação da República, este passou a ser mais um benefício oferecido por fazendeiros progressistas a seus colonos.

As colônias construídas nas fazendas atendiam essas necessidades essenciais, mas faltava algo muito importante: a atenção à saúde, a assistência médica. Era impossível cada cafeicultor oferecer assistência médica adequada em sua propriedade e, sendo este um problema coletivo, a solução teria de ser coletiva.

Realmente, uma solução se impunha. Cada qual deveria separar uma parcela da renda gerada pelo venda da safra de café, todos os anos, poderia assim ser construída e mantida uma Santa Casa. Para usar uma linguagem do campo, era preciso fazer um mutirão para atender a Saúde da população agrícola, ninguém deveria faltar.

Foram as necessidades da Economia Cafeeira que originaram as mudanças de objetivos das primitivas Casas de Misericórdia. Continuavam a atender os menos favorecidos, certo, mas agora com a missão de oferecer a eles também a assistência médica e hospitalar. Ao longo do tempo a denominação evoluiu: Casa da Misericórdia, Santa Casa de Misericórdia, depois somente Santa Casa, é assim que todos nós a conhecemos, hoje.

Com as contribuições anuais asseguradas pelos cafeicultores tudo correu bem por um Século, mas as coisas começaram a mudar ao se aproximar o ano 1970, foi quando se deu a criação do FUNRURAL, o qual estendeu aos trabalhadores rurais os benefícios da Previdência Social. Foi uma inovação muito aplaudida com entusiasmo, pela Sociedade em geral, afinal ia contribuir para se fazer a Justiça Social no campo. Excelente iniciativa, mas que gerou uma consequência imprevista. Claro, os proprietários rurais deveriam obedecer ao disposto na Lei, registrando seus colonose , atendendo as obrigações trabalhistas então previstas. E os benefícios já oferecidos, os que já existiam nas colônias agrícolas — a moradia, a escola rural, a assistência médica — como ficavam?

Bem, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. As exigências da Previdência Social, do FUNRURAL, tinham de ser obedecidas, já quanto aos demais benefícios oferecidos nas colônias agrícolas, cada produtor teria de decidir sobre o que fazer. O que se supunha que pudesse vir a acontecer, aconteceu.

Em curto período de tempo — dois a três anos — as colônias foram esvaziadas e fechadas, as populações rurais mudaram para a periferia das cidades e passaram à condição de “boias-frias”, continuando a fazer o que antes faziam. Os caminhões lotados de trabalhadores iam todas as manhãs para as lavouras, de onde voltavam à tarde. Uma situação triste, a dos "boias-frias”, sem registro trabalhista e já sem contar com os benefícios anteriores, do tempo em que eram colonos.

Os fazendeiros continuariam a contribuir para o funcionamento das Santas Casas, mesmo sem ter colonos em suas colônias? Soube da resposta a esta interrogação diretamente na fonte. Foi quando percorri todo o Interior do Estado de São Paulo, em incontáveis viagens feitas após ter assumido a Diretoria de Defesa Profissional da Associação Paulista de Medicina, em 1979. Tomei conhecimento da grave crise do sistema hospitalar existente no Estado de São Paulo, pois a atenção hospitalar era quase exclusivamente baseada no atendimento feito pelas Santas Casas e estas estavam passando por difícil crise financeira.

Em todas as cidades que visitei encontrei a mesma explicação. O financiamento generoso, filantrópico, garantido pela população, havia desaparecido, sobretudo o mais representativo

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de todos, o dos cafeicultores. As Santas Casas atravessavam um período de dificuldades e estas não eram circunstanciais.

De fato, o tempo se encarregou de demonstrar que as dificuldades financeiras das entidades filantrópicas se tornaram permanentes.

DR CHRISTIANO: CONHECI UM BENFEITOR

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Exercer o comando de modo centralizado, ou por delegação, não é uma questão que dependa apenas da personalidade de quem está no comando, depende também do tipo de instituição que está sendo comandada.

Quando se trata de uma instituição beneficente é preciso contar com um grupo de pessoas solidárias, que concordam em suprir os recursos necessários para cobrir as despesas resultantes de sua atividade. São os benfeitores, identificaram determinada carência social e se prontificaram a suprir as necessidades financeiras que permitam atendê-la. Os que se somam para este fim constituem verdadeira e benemérita Irmandade. Uma vez constituída a Irmandade, a pretendida obra social pode ser iniciada, posta a funcionar. Os carentes podem por ela procurar, serão recebidos.

Para atender ao cotidiano de uma entidade benemérita é necessária a maior participação de alguns daqueles Irmãos , são os estão dispostos a dedicar a ela boa parte de seu tempo e de suas vidas, são pessoas que participam não só com recursos financeiros como também com trabalho altruísta, voluntário. O passo seguinte é ter um órgão diretor, surge a necessidade de criar uma Mesa Provedora, desta irá depender, em grande parte, o sucesso da empreitada.

Com a Irmandade constituída e a Provedoria indicada, convida-se a comunidade para colaborar, inclusive com trabalho voluntário, pois este dará maior amplitude ao atendimento e tornará mais próximo o alcance dos objetivos da instituição. O tempo e a prática, em período mais ou menos curto, irão demonstrar onde está o limite dos resultados obtidos com a participação voluntária e ficará então, bem conhecido, que pessoal será preciso contratar para garantir a continuidade do atendimento. Com a necessária remuneração será possível contar com este pessoal, começando pela Administração e se estendendo até a mais humilde tarefa serviçal.

Irmandade, Provedoria, Administração. Agora sim, tudo irá correr bem.

O tempo passa, anos, décadas e séculos se sucedem, a Sociedade constantemente se modifica. Novos fatores entram em cena e estes se tornam determinantes dos caminhos que conduzem ao futuro, também colocam de lado o que já se considera ultrapassado.

Em relação às entidades beneficentes esta mudança aconteceu na segunda metade do Século XX e marcou profundamente sua história. Foi quando todos começaram a se indagar se a prática da benemerência por parte da Sociedade deveria ser incentivada, ou se ela era uma obrigação do Estado, prevaleceu a segunda concepção. Entraram em queda vertiginosa as contribuições generosas para as entidades e a estas só restou um caminho: bater às

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portas do Poder Público, solicitando que liberasse os recursos necessários para que sua atividade não fosse interrompida.

Houve então uma nítida mudança de ordem conceitual, algo básico, que iria implicar em mudança de qualidade!

Mesmo que inicialmente não o percebessem, estas instituições passaram da condição de “Beneméritas” para a de “Prestadoras de Serviços”, esta foi uma mudança e tanto, para enfrentá-la elas precisaram se reprogramar.

Estas considerações hoje fazem parte da história das Santas Casas, no Brasil. Para elas o período de transição se deu no decorrer da década dos anos setenta e no início dos oitenta, foi uma transição difícil e tormentosa, nem sempre compreendida em toda a sua extensão, pelos que nelas trabalhavam. Eu a acompanhei de perto, não só por pertencer ao Corpo Clínico da Santa Casa, mas também por ter sido eleito para a Presidência da Associação Paulista de Medicina. Acompanhei, sim, aquele período tão difícil, quando os recursos advindos de contribuições espontâneas feitas às entidades benemerentes diminuíam drasticamente, já não cobriam as despesas. Todos os anos seus orçamentos fechavam no negativo. Foi então que tivemos a felicidade de contar, à frente de nossa instituição, a Santa Casa de São Paulo, com um Provedor de qualidades excepcionais, o Doutor Christiano Altenfelder Silva. Ele compreendia a profundidade da crise e temia pelo futuro da entidade que amava. Sim, que amava, pois a ela dedicara muitos e muitos anos de sua vida.

Já idoso, adoeceu e faleceu, pouco após 1980. Sua fortuna, com origem em bens de família, também fruto de seu trabalho pessoal, foi deixada em testamento para a Santa Casa de São Paulo. Absolutamente tudo o que tinha: fazendas, imóveis, investimentos. Uma generosa doação que deu um fecho altamente meritório a sua vida, esta fora inteiramente dedicada ao bem comum, com abnegados serviços prestados à Sociedade. Graças a doação testamentária que fez a Santa Casa conseguiu superar suas dificuldades, por alguns anos.

Bons exemplos não devem ser esquecidos. Deixo aqui registrado meu respeito pela memória de Doutor Christiano.

AGREGAR É PRECISO

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Há incontáveis critérios para classificar os seres humanos, o primeiro de todos é o de gêneros: masculino e feminino. Já ao avaliar a vida em comunidade é de relevância identificar, desde logo, quem se interessa pelo social e quem age de modo antissocial. E quando a questão é assumir uma posição de comando, seja lá qual for, que critérios são importantes? Para quem tem a responsabilidade de comandar um critério importante é reconhecer quais são os agregadores e quais os desagregadores. Só é possível construir algo relevante e que nos leve a um objetivo determinado, se contarmos com a participação de pessoas com espírito agregador, é com elas que poderemos realizar o trabalho cotidiano e potencializar os resultados. Os resultados aparecem com naturalidade e recompensam o grupo, satisfazendo a todos.

Foi com espírito agregador, com disposição para agrupar os que tinham afinidade entre si, que assumi a chefia da Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo. Reuni uma

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pequena equipe de Médicos Voluntários que se empenhou no trabalho, desde outubro de 1972 até fevereiro de 1975, e que nada ficou a dever aos que compunham o Quadro Médico Efetivo, da instituição. Íamos além do exigido pelos superiores, pois chegávamos ao hospital pouco após as sete horas da manhã e nele permanecíamos até meio dia, uma jornada matinal muito bem aproveitada.

Precisávamos contar com a colaboração da Enfermagem? Nós nos aproximávamos das enfermeiras e das atendentes de enfermagem, nos Ambulatórios e nas Enfermarias, respeitando e valorizando o trabalho de todas, inclusive contribuindo para aperfeiçoá-lo nos cuidados ao paciente da Dermatologia. Em retribuição, fomos por elas respeitados e valorizados.

Não foi diferente nossa relação com o pessoal designado para o contato com o público, fosse aquele que cuidava dos arquivos, ou ainda o designado para desempenhar as funções próprias de uma Secretaria. O bom relacionamento com todos deu suporte a nossa equipe, foi sempre possível contar com a colaboração do pessoal não médico, isto contribuiu muito para nosso melhor desempenho.

E quanto aos médicos da Santa Casa? Os que compunham o Departamento de Medicina, também os dos demais Departamentos? Estávamos sempre à disposição de todos, prontos para colaborar na atenção aos pacientes, contribuindo com o que de nós esperavam. Criou-se entre todos um ambiente fraterno, de respeito e de colaboração.

E, ainda, nossos superiores hierárquicos, na Provedoria da Santa Casa e na Diretoria da Faculdade de Ciências Médicas? Foi o mesmo, procurávamos corresponder à confiança em nós depositada, atendendo sempre prontamente ao que nos era solicitado.

Tudo se somava e contribuía para que se criasse um ambiente favorável a nossa equipe, desde o princípio foi reconhecido que ela era totalmente confiável.

Crescendo o prestígio de nosso grupo aumentava a demanda, tornava-se necessário mais e mais espaço. Já ocupávamos então parte do Primeiro Andar do “Conde de Lara”, ao lado do Ambulatório de Cirurgia. Neste logo obtivemos permissão para também usarmos suas salas, atendendo aí nossos pacientes e fazendo os procedimentos que cada caso demandava.

Continuamos crescendo, a Administração Superior reconheceu que precisávamos — e merecíamos — instalações maiores e mais bem equipadas. A possibilidades de atender as necessidades existia, pois a metade do Quinto Andar estava desocupada, já por bastante tempo. Se para lá fôssemos, iriamos dividir o Andar com a Clínica de Urologia.

Autorização dada, tratava-se agora de viabilizar uma reforma com as devidas adaptações. Onde conseguir recursos financeiros para iniciar e completar a empreitada? Conseguimos, sim, pois houve uma somatória de colaborações, provenientes de várias iniciativas, vamos recordar como isto ocorreu.

Estávamos em 1978, já então havíamos conquistado prestígio junto à liderança da Dermatologia Brasileira, também já merecíamos a confiança de Laboratórios Farmacêuticos. Estes frequentemente introduziam novos medicamentos que precisavam ter sua eficácia comprovada e iam a nossa procura, a competência da equipe e a seriedade do trabalho nos tornaram parceiros dessas pesquisas. Pois bem, todos os recursos daí advindos foram destinados a cobrir investimentos e despesas da própria Clínica, este foi um fator da maior importância quando chegou o momento de iniciarmos a reforma do Quinto Andar. Os Laboratórios foram nossos parceiros na empreitada.

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Havíamos criado um Centro de Estudos de Dermatologia e a ele demos o nome do fundador da Clínica de Dermatologia da Santa Casa, o que ocorrera em 1907: o do Professor Adolpho Carlos Lindenberg. As iniciais constituíram a sigla CEDACLI, foi assim que passou a ser conhecido nosso Centro de Estudos. Pois bem, ao lado da Santa Casa, distando apenas duzentos metros, estava a sede de uma das maiores empresas de Construção Civil do Estado de São Paulo, nada menos do que a “Construtora Lindenberg”. Seu Presidente era o Engenheiro Carlos Adolfo Lindenberg, filho de nosso Patrono, quando o procuramos nos recebeu com grande simpatia e de pronto decidiu auxiliar. Colaborou muito, assumindo as despesas para a reforma das salas da Diretoria da Clínica e da Biblioteca.

Ainda mais, contamos com a compreensão e o apoio do Provedor da Santa Casa, o Doutor Christiano Altenfelder Silva, com quem sempre mantínhamos bom e respeitoso relacionamento. Igualmente tivemos essencial colaboração do Diretor do Departamento de Medicina, o Doutor Adauto Barbosa Lima. Ambos haviam confiado e prestigiado nosso trabalho, durante os seis anos em que já estávamos à frente da Equipe Dermatológica, da Santa Casa.

Com os recursos provenientes da parceria com Laboratórios Farmacêuticos e com a Construtora Lindenberg, somados aos disponibilizados pela própria Santa Casa, foi possível dotar a Clínica de Dermatologia de modernas e bem equipadas instalações. A partir de então estávamos caminhando para torná-la uma referência, não só nacional, mas também internacional, dentro de nossa especialidade.

Equipe unida, agregada em seus objetivos e em seu desempenho, pode e deve aceitar desafios e superar dificuldades. Penso que soubemos dar um bom exemplo de trabalho agregador.

CRESCENDO E AMADURECENDO

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Não havia Residência em Dermatologia na Santa Casa de São Paulo, na ocasião em assumi a Chefia da Clínica. Consegui obter uma primeira vaga e foi Humberto Frucchi nosso primeiro Residente, isto em 1975. Ficou acertado que sua formação seria iniciada no Departamento de Medicina, estagiando por dezoito meses, só depois ele teria outros dezoito meses, agora sim para a formação especializada. Funcionou assim, naquele primeiro ano.

No ano seguinte conseguimos autorização para ter, além do Residente, também um Estagiário. Este segundo nome não passaria pelo Departamento de Medicina e seria admitido como Voluntário, diretamente na Clínica de Dermatologia. O primeiro par de recém-formados, que resultou do novo entendimento, foi formado por dois jovens promissores: uma moça, Clarisse Zaitz, como Residente, e um rapaz, José Marcos Pereira, como Estagiário. Ambos, anos mais tarde, puderam mostrar todo o seu valor e se destacaram amplamente na especialidade. Clarisse chegou à Chefia da Clínica de Dermatologia da Santa Casa e à Presidência da Sociedade Brasileira de Dermatologia. José

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Marcos se dedicou ao estudo da patologia dos cabelos, trouxe importantes contribuições e foi autor de inúmeras publicações, nesse campo.

Nos anos que se seguiram fomos obtendo melhores e mais amplas instalações, o que permitiu aumentar progressivamente a oferta de vagas para os que nos procuravam. No início dos anos oitenta chegamos a quatro vagas, uma delas reservada para o Residente e as demais para os Estagiários.

Preparando bem, geração após geração, logo despontavam os que tinham vocação para a Carreira Universitária, vários permaneceram na Clínica de Dermatologia, na condição de Médicos Voluntários. Com o passar do tempo, alguns puderam ser contratados como Efetivos, sempre que houve disponibilidade financeira da Instituição, aos poucos aumentou nosso Quadro Médico.

Destaque-se que nada acontece por acaso. Foi preciso o trabalho duro e persistente para ter argumentos convincentes, sempre alicerçados na certeza do dever cumprido. Havendo proximidade com os superiores hierárquicos, estes reconhecem o que está sendo feito e sua confiança será ainda maior. Na ocasião eu ouvia de meus superiores: “—Deixo com você, sei que você resolve”.

Nossas novas instalações no Quinto Andar do “Conde de Lara” eram amplas e permitiam que trabalhássemos mais e melhor. Foi possível aumentar muito o número de pacientes atendidos e, ao mesmo tempo, manter elevada a qualidade do atendimento. Avaliando este crescimento, logo se verificou que não se justificava permanecer com tudo fechado, no período da tarde. Era preciso abrir nossas portas também nesse período, atender consultas, executar os procedimentos que fossem necessários. Isto foi proposto e foi conseguido. Assistentes em potencial já tínhamos, prontos para assumir as novas vagas que iriam ser criadas. Foram dois excelentes Ex-Residentes, Humberto Frucchi e Ana Sanches Boix da Silva. A decisão foi tomada pela Administração Superior, ampliamos nosso Quadro Médico.

Do ponto de vista quantitativo tivemos respeitável avanço, os números falavam por nós. Mas isto não nos bastava, queríamos dar também um salto de qualidade. Tínhamos uma proposta para reorganizar nosso Serviço, caso fosse aceita tínhamos certeza que ela iria nos tornar um ponto de referência no cenário da Medicina, em nosso País.

O Projeto previa a organização de Grupos específicos para atendimento aos pacientes, elevando a quantidade e a qualidade do atendimento. Levei-o ao Professor Adauto Barbosa Lima, Diretor do Departamento de Medicina, obtive sua concordância e, em seguida, fui ao Provedor da Santa Casa, que era agora o Doutor Mario Altenfelder Silva, este também o aprovou.

Em que consistia, tal proposta?

Pretendíamos organizar Setores com focos específicos. O Setor de Alergia Dermatológica, que ficaria a cargo de Ida Duarte. O de Cirurgia Dermatológica, por conta de Marcus Maia, mas contando também com a colaboração dos cirurgiões plásticos, Alvaro Duarte Cardoso e Douglas Jorge. O de Dermatologia na Infância, aos cuidados de Fausto Alonso, naturalmente em parceria com o Departamento e Pediatria. O de Dermatologia Infecciosa e Tropical, com Clarisse Zaitz, neste contávamos com o apoio que nos garantia preciosa retaguarda, o do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, tendo à frente o Professor Carlos da Silva Lacaz. Ainda mais, teríamos o Setor de Histopatologia da Pele, em colaboração com do Departamento de Anatomia Patológica, na pessoa de Helena Muller. Finalmente o de “Manifestações Cutâneas de Doenças Sistêmicas”, sob coordenação compartilhada por mim

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com Thaís Proença, iríamos executar nosso trabalho contando com a parceria do Departamento de Medicina.

O Projeto foi aprovado e sua implantação foi um marco em nossa história, mudou para nós o patamar em que praticávamos a Dermatologia. Passamos a ter o mesmo nível dos melhores Serviços Especializados da época, no Brasil e no Exterior, com atendimento ao paciente de alta qualidade e com produção científica de alto nível. A Clínica de Dermatologia da Santa Casa de São Paulo se tornou referência na América Latina, este foi o resultado de um trabalho de equipe do qual todos participaram com entusiasmo, responsabilidade e dedicação.

Missão cumprida e encerrada? Não, o futuro estava a nossa frente e ainda havia muito por fazer.

MISSÃO CUMPRIDA

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Exemplar a cooperação que houve entre duas grandes Clínicas Universitárias de Dermatologia de São Paulo: a do Hospital São Paulo, com sua Escola Paulista de Medicina, e a da Santa Casa de São Paulo, com sua Faculdade de Ciências Médicas. Para explicar o cenário, vamos retornar ao passado.

Em 1974 eu havia realizado o Concurso para obtenção do Título de Livre Docente, na Escola Paulista de Medicina, sendo aprovado. Pouco tempo depois o Titular da EPM, o Professor Raymundo Martins Castro, iniciou a organização do primeiro Curso de Pós Graduação em Dermatologia, não só de São Paulo, mas também um dos primeiros do Brasil. Cumprindo as exigências feitas pelo Ministério da Educação e Cultura era preciso apresentar o Corpo Docente que iria ser responsável pelo Curso, fui então convidado e nele incluído. O convite foi não só por ser Livre Docente da EPM, mas também por já ter alcançado a condição de Professor Pleno da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, com o respectivo Título Universitário devidamente registrado no MEC.

Durante duas décadas contribuí para a formação de todos, ou de quase todos, os Mestres e Doutores que lá fizeram sua Pós Graduação, ano após ano. Graças a esta estreita colaboração a ela tiveram acesso os que eram formados na Clínica de Dermatologia da Santa Casa, alguns dos quais já compunham nosso núcleo Docente. Um após outro, passaram pela Pós Graduação da EPM os Colegas Fausto Alonso, Marcus Maia, Clarisse Zaitz, Humberto Frucchi, Thaís Proença, todos fazendo o Mestrado, alguns também o Doutorado. Iniciava-se para eles a Carreira Universitária, tornou-se possível que se candidatassem ao Concurso para obter o Título de Professor Adjunto, na própria Faculdade de Ciências Médicas. Isto permitiu compor nosso Quadro Docente com todos os níveis de nossa hierarquia acadêmica: Professor Pleno, Professores Adjuntos, Professores Doutores, Mestres.

Em 1992 eu iria completar sessenta anos de idade. Os prováveis sucessores, Fausto e Marcus, chegavam aos cinquenta, os demais vinham a seguir. A data se aproximava e eu colocava uma questão, de mim para mim, algo que começou a tomar corpo e a crescer, tornou-se uma interrogação que exigia uma resposta. Deveria permanecer à frente da Disciplina, até chegar aos setenta anos? Não estaria sendo um obstáculo para a Carreira Universitária daqueles que haviam me ajudado tanto, por décadas a fio? Caso

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permanecesse, ao chegar o ano de minha Jubilação eles já estariam na categoria dos sexagenários, em idade para se aposentar, não para começar. A cada dia que passava mais e mais me parecia injusto obstruir a chegada de ambos ao topo da Carreira.

Havia uma alternativa, que merecia ser considerada.

Seria a transformação da Disciplina de Dermatologia em Departamento de Dermatologia. Este teria suas próprias Disciplinas, cada qual com seus Titulares: “Disciplina de Alergia Dermatológica”, “Disciplina de Cirurgia Dermatológica”, “Disciplina de Dermatologia Infecciosa e Tropical”, “Disciplina de Dermatologia na Infância”, “Disciplina de Manifestações Cutâneas Associadas a Doenças Sistêmicas”, e por aí adiante. Cada qual com sua Chefia, ocupada por um dos componentes de nossa equipe, os que já tivessem a devida graduação acadêmica. Seria uma mudança e tanto, que acarretaria mais atividade, mais produção, mais qualidade, mais contribuição científica. O prestígio de nossa Instituição seria crescente, tanto a nível nacional como internacional.

Sim, internacional!

Afinal, vários de nós já participavam de Diretorias de Entidades Internacionais, ou eram membros do Corpo Editorial de revistas publicadas no Exterior. Éramos frequentes protagonistas de Congressos Internacionais de Dermatologia. Propor a passagem dea condição de Disciplina para a de Departamento merecia um estudo e uma proposta.

Procuramos amparar esta nossa proposta com argumentos e documentação, parecia que tudo caminhava bem, até surgir um imprevisto. O Provedor da Santa Casa — na ocasião era o Professor Valdemar Carvalho Pinto — entendeu que para decidir deveria antes ouvir o Departamento de Medicina. Claro, nada mais justo e necessário, pois afinal pertencíamos ao DM.

Compareci à reunião especialmente convocada para esse fim e ao final da mesma, uma amarga surpresa: por unanimidade os Chefes de Disciplina foram contrários ao que solicitávamos. O argumento em que se apoiavam era sólido, pois caso nosso pedido fosse aprovado outras Disciplinas poderiam fazer o mesmo e o Departamento de Medicina começaria a desmoronar. Estaria assim desfeito o sonho que tinha dado origem à Faculdade, o de lutar sempre por uma Medicina Integral.

Não estava preparado para uma resposta negativa, até então tudo me parecia tão natural, tão lógico, tanto bem traria para a Santa Casa, que sequer considerei a hipótese da resposta ser negativa. E foi!

Com isto, voltamos ao ponto de partida. O tempo passava, meus sessenta anos se aproximavam.

Finalmente tomei a minha decisão, comuniquei ao Provedor da Santa Casa e ao Diretor do Departamento de Medicina que estava devolvendo minhas funções e propunha que para meu lugar fosse indicado um dos membros da equipe. Minha proposta foi aceita e, como naquele momento Fausto Alonso já tinha feito concurso para Professor Adjunto, foi ele o escolhido.

Nada como o passar dos anos para que a “Luz do Tempo” ilumine melhor alguns cenários, estes se tornam melhor compreendidos. Foi o que aconteceu comigo. Passei a aceitar o veredito desfavorável a meu pedido, realmente a razão estava com os Professores das Disciplinas, meu Departamento não poderia ser formado. Caso o fosse, outras Disciplinas

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poderiam seguir o mesmo caminho e eu seria julgado, no decorrer do tempo, como o responsável pela desconstrução do Departamento de Medicina.

Ao devolver o cargo de Chefia que exerci por quase duas décadas, coube-me agradecer à Santa Casa tudo que ela fez por mim.

À Santa Casa, minha eterna gratidão!

EPÍLOGO : PROFESSOR EMÉRITO

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Congregação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

Sessão Solene para outorga do Título de Professor Emérito, em 21 / 11 / 2007 Terei certa dificuldade em transmitir, aos aqui presentes, o quanto estou tomado de emoção. Não foi simples encontrar as palavras adequadas, para exprimir meu agradecimento pela outorga de título universitário tão importante. Procurarei estar à altura desta solenidade e espero que consiga transmitir o significado que teve, para mim, a concessão do título de Professor Emérito. Fui informado que a aprovação, na Egrégia Congregação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, deu-se pela unanimidade de seus membros. Entendo então que o título que agora recebo sintetiza o reconhecimento, por parte da comunidade docente, da dedicação com que procurei cumprir a missão que me foi confiada, qual seja, a de dirigir a Disciplina de Dermatologia de nossa Faculdade, por quase duas décadas. Não é demasiado recordar que fui colaborador voluntário do Professor Humberto Cerruti, entre 1971 e 1974. Nesta época eu já havia dado os primeiros passos na carreira universitária, defendendo Tese de Doutorado na Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, em 1971, e prestado Concurso para obter o título de Livre Docente, na Escola Paulista de Medicina, em 1974. A seguir passei a Titular em nossa Faculdade, assumindo a Chefia da Disciplina em fevereiro de 1975 e permanecendo nesta condição até maio de 1992. Atualmente estou colaborando com a Clínica de Dermatologia da Santa Casa, agora novamente na condição de Médico Voluntário. Sempre considerei um privilégio trabalhar na Santa Casa e ser Professor na Faculdade. Hoje, quando estou prestes a completar quatro décadas de dedicação às duas prestigiosas instituições, já me bastaria a oportunidade de aqui trabalhar. Por esta oportunidade serei sempre muito grato. Sabendo, agora, que os serviços que prestei foram considerados por meus pares como meritórios, aumenta ainda mais a minha gratidão. Durante o período em que exerci a chefia contei com magnífica equipe de colaboradores. Vários membros dessa equipe estão aqui presentes, cabendo recordar também nosso saudoso colega e amigo, Fausto Alonso. Foi graças ao trabalho coletivo, com participação de todos, bem como a sua dedicação ao ensino médico que, a partir de 1977, nossa Disciplina foi homenageada pelas turmas que sucessivamente se formaram. Este reconhecimento por parte dos formandos sempre foi para nós motivo de justificado orgulho e muito representou como estímulo, para que nos empenhássemos, sempre, mais e mais.

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Se já era extremamente gratificante ter tido o reconhecimento do corpo discente, é ainda mais desvanecedora esta significativa homenagem de hoje, feita pelo corpo docente. Desejo agradecer, ainda que não me alongando demasiadamente. Não obstante, julgo necessário corresponder ao clima solene de que este evento se reveste, registrando algumas mensagens que parecem ser oportunas. A primeira destas mensagens, eu a dirijo a nossos alunos. Para eles, nunca é demais recordar que Comunidades se organizam em Sociedades e, em plano mais elevado, Povos formam Nações, a partir de um conjunto de princípios e uma escala de valores. Estes são os fundamentos para que estas comunidades e estes povos, reunidos em Sociedades ou Nações, possam conviver pacifica e proficuamente, tendo êxito na realização de seus propósitos comuns. È preciso que compartilhem os mesmos princípios e os mesmos valores. Nada é solidamente construído se o cimento social não derivar dos fundamentos por todos aceitos e praticados. Voltando o foco para o exercício da Medicina, teremos de destacar que em nossa profissão o binômio – princípios e valores – é essencial para a prática cotidiana. Esta a mensagem que deixo para nossos alunos. A segunda mensagem se dirige à nova geração de professores, responsável daqui para a frente pela formação das novas turmas de médicos. È preciso que se tenha permanente vigilância, para que não sejamos dominados e submetidos pela tecnologia aplicada à Medicina. Todos os dias vamos ter um novo aparelho, uma nova técnica, outra maravilha da engenharia genética, mais um pouco de tudo, e isto pode nos envolver, deixando-nos fascinados pelo horizonte da medicina, que se torna cada vez mais largo. Como profissionais temos de usar bem a tecnologia, mas podemos estar praticando uma medicina distanciada daquele ser humano que nos procura, em sua condição de paciente, em busca de alívio para seu sofrimento. Muitas vezes, sem percebermos, estamos correndo o risco de nos distanciarmos da essência de nossa profissão, que resulta do Humanismo inerente à Medicina. Na prática médica o Humanismo deve sempre estar presente, de variadas formas e em múltiplas situações. Uma de suas faces surge quando manifestamos nosso interesse pelo paciente e não apenas por seu “caso clínico”. Outra é quando mantemos comportamento respeitoso junto ao doente, evitando qualquer atitude que possa diminuir, ou até mesmo humilhar, aquele que já está em posição de muita fragilidade. Uma terceira, é buscar não apenas a conduta tecnicamente correta e adequada à situação de cada paciente, mas também a que seja mais ética. Os pontos que acabo de destacar são alguns exemplos de situações que nos acontecem várias vezes, em uma única jornada de trabalho. Destaque-se que em todos os momentos em estas situações acontecem estamos sendo observados por nossos estudantes de Medicina, ávidos por saber qual a conduta correta a ser adotada. Eu sei que tudo isto é muito familiar aos colegas de docência, mas nunca é demasiado dar ênfase a estes aspectos do exercício da Medicina. Não é demais realçar que a formação humanística e ética das novas gerações de médicos está condicionada, em grande medida, à observação e memorização daquilo que falamos e daquilo que fazemos, junto a nosso doente. Dirijo-me, agora, aos Professores que compõem a Congregação de nossa Faculdade e que me concederam o título de Professor Emérito. Só posso dizer que não há nada que possa ser mais valioso para o patrimônio intelectual e profissional do que o juízo de valor vindo de seus pares. Esta manifestação representa muito para mim, pois significa que encontrei e percorri o caminho certo. Quem sabe esta caminhada possa, para os jovens, ser indicativa da conduta a ser mantida e das metas a serem alcançadas.

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Agora, minhas palavras de encerramento. Elas serão dirigidas a nossa quatro vezes centenária instituição, a Santa Casa da Misericórdia de São Paulo. Peço licença para recordar que, em meu tempo de colégio, lá pelos distantes idos dos anos quarenta, eu estudava no Colégio Rio Branco. Naquele tempo este colégio ficava aqui ao lado, na Rua Dr Vila Nova. Muitas vezes eu passei ao lado dos muros da Santa Casa - aqueles que dão para a Rua Marquês de Itu - e dizia, para mim mesmo, que um dia eu iria trabalhar aqui, como médico. A oportunidade tardou porém chegou, quando eu já estava diplomado há quinze anos. Foi em 1971, graças à receptividade dos Professores Humberto Cerruti e Adauto Barbosa Lima, bem como do Provedor Dr Christiano Altenfelder Silva. Graças a eles, abriram-se para mim as portas da Santa Casa. Iniciou-se, a partir de então, o período mais rico, de meu exercício profissional e o mais gratificante, de minha atividade docente. O médico e o professor, existentes dentro de mim, completaram seu desenvolvimento e cresceram neste enriquecedor ambiente, que é inerente à vida cotidiana de nossa Santa Casa. Nós passamos, a Santa Casa fica. Ela permanecerá abrindo sempre suas portas, ano após ano, século após século, para receber tantos quantos queiram compartilhar de seu destino, todo ele voltado para o amor ao próximo. Muito obrigado pela atenção com que me escutaram.