curso de introdução à humanidades

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Verão, 2004 FILOSOFIA SOCIOLOGIA ANTROPOLOGIA LITERATURA CURSO DE INTRODUÇÃO ENGENHO DA MENTE

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PACANO, Fábio Augusto. Curso de Introdução às humanidades. Piracicaba: Engenho da Mente, 2004.

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Page 1: Curso de Introdução à Humanidades

Verão, 2004

FILOSOFIASOCIOLOGIAANTROPOLOGIALITERATURA

CURSO DE INTRODUÇÃO

ENGENHO DA MENTE

Page 2: Curso de Introdução à Humanidades

CURSO DE INTRODUÇÃOFELIX QUI POTUIT RERUM COGNOSCERE CAUSAS

(Feliz de quem pôde conhecer a causa das coisas)

“existe um vínculo indissolúvel entre

a objetividade do conhecimento

e a autonomia da consciência

individual”

(Isolda)

SOCIOLOGIA,ANTROPOLOGIA,FILOSOFIAELITERATURA

A apalavra “sábio” se prende em suas origens a palavra grega Sapio, eu saboreio,sapiens, o degustador, sysiphos, o homem do gosto mais apurado. Um apuradodegustar e distinguir parece ser, segundo a consciência do povo, a arte peculiar dopensador.A Engenho da mente - assessoria em educação - tem o propósito de complementaro ensino fundamental, médio e pré-vestibular para um sabor distinto dos conteúdosdas apostilas. Experimentando áreas do saber como a Filosofia, a Antropologia, aSociologia e a Literatura buscamos uma formação mais humana e mais sólida.Assim desdobramos o trabalho do pensador , sempre tão solitário, emseminários, palestras, aulas particulares, em precepção, enfim.A Engenho da mente visa dar preciosas indicações de como ligar as idéias maisabstratas as coisas da vida concreta, o universo, o mundo, a sociedade, a sua cidade,seu bairro, sua universidade, sua escola, sua casa, seus pais, a você e Deus.Assim, poderemos compreender a estreita ligação da palavra saborear com apalavra sabedoria.Nas praças de Atenas ou nas ruas de Paris, na tranqüilidade do seu quarto ou notormento das ruas, daremos voz ao escândalo continuo que é o pensar: um perguntarsem tréguas sobre Deus, sobre o mundo e sobre nós mesmos.

Page 3: Curso de Introdução à Humanidades

FILOSOFIATales ou o nascimento da Filosofia

Sócrates ou o escândalo de perguntarPlatão ou o amor filosófico

Aristóteles ou o filósofo como homem do mundoAgostinho ou a serventia do pecado

São Tomás de Aquino ou o intelecto batizadoDescartes ou o filósofo atrás da máscara

Page 4: Curso de Introdução à Humanidades

Quando perguntamos pela raiz da filosofia, comportamo-nos tal qual o ancião àperguntar pelo próprio passado nebuloso que ainda residi em suas lembranças, nãoobtendo respostas definitivas, perguntaremos pela origem de todas as coisas, pelaprópria origem da vida, o que nos levaria a reflexões filosóficas. Poderíamos afirmarque a origem de certas reflexões estaria em Hesíodo, ou em Homero, e ainda maisgenealógico que ela tenha surgido no Oriente e que fora Adão o primeiro de todos osfilósofos.Entretanto Aristóteles, o primeiro historiador da filosofia, defendia que a ciência e afilosofia só poderiam ter começado quando as necessidades externas tivessem sidosatisfeitas, pelo menos em certa medida, e que os homens dispusessem de tempoocioso para que a reflexão se ice a conceitos filosóficos.Isso teria ocorrido pela primeira vez entre os sacerdotes egípcios, daí o fruto damatemática e da astronomia ter-se crescido nesses povos, consideraríamossimultaneamente o fato de que Adão, como diz a Bíblia, tinha que ganhar o pão como suor do seu rosto, não o restando tempo para pensamentos profundos, elevaríamosassim a conclusão de que é do ócio de um grande mercador, como se referiaAristóteles a Tales de Mileto, que vem ao mundo a filosofia.Esse astuto homem de negócios percebeu que a colheita de olivas seria abundante,comprou todas as mós de azeite disponíveis e as arrendou a um alto preço, tornando-se rico e respeitável.Essa história, que não se sabe da afirmação de sua veracidade, poderia passaroculta diante do brilhantismo que Tales desenvolveu na vida Política, em seus estudosMatemáticos e maiormente em Astronomia, pois é deste último que advém o plenoreconhecimento público quando o mesmo prevê um eclipse solar no dia 28 de maiode 585 a.C.Dada a digna ociosidade, esse homem incapaz de perceber o mundo que o rodeava,várias vezes era enganado e reconhecido como ingênuo, certa feita, ao observar océu, por um descuido que é peculiar aos filósofos, caí num poço e é satirizado poruma serva Trácia que não o poupa de levar a publico que a aquele que queria sabero que estava no céu, permanecia oculto o que estava presente...Ingênuo e Inocente são os adjetivos que predicam os filósofos diante dos maiscorriqueiros problemas hodiernos, esse parece responde-los com a obviedadeinocente ridícula aos olhos dos homens da práxis, mas se um dia, por acidente, fora ele perguntado o que é o homem? As sátiras hodiernas e tributáveis se tornariamrisíveis em suas alegaçõesante as questõesfundamentais daexistência residida noâmago dos filósofos.Daí Platão e Aristóteles oconsiderarem o primeirofilósofo, pois indagara quala essência de tudo isso? Oque há por trás damultiplicidade de formasdo mundo? De onde vem,de onde surge? Qual aorigem? O que é o Um, oprincípio que tudocompreende, que faz quetudo venha a ser, seja epermaneça?Mesmo não formuladasdessa forma as questõesfundamentais daexistência perpassaram aalma do mais ilustre filho

Tales ou o nascimento da Filosofia

Page 5: Curso de Introdução à Humanidades

da rica cidade de Mileto,perguntava-se pela origemde tudo, e após notar quedos cadáveres de todas assubstâncias, de umamacieira ou de umhomem, o que se esvaiana morte era a água, e queessa, se reencontravadepois de toda a suaviagem novamente noMar, essa era então aorigem de tudo.Tales é um materialista!poderia alegar então oleitor, mas o que dizer dafrase: “tudo está cheio deDeuses” do mesmo filho deMileto? Cria-se então, umimpasse para nós e paratoda a filosofia “ou-ou”? oumaterialista ou o princípioDivino?Aristóteles resolve o

problema observando que o Oceano, a que se refere Tales, é como o rio originárioque, segundo as lendas antigas, banhava a terra e era considerado o pai de todas ascoisas. O Estige, rio da morte, no juramento dos Deuses é invocado como o rio quesepara o mundo dos vivos e o mundo das sombras.Esse lendário rio original e a mágica sacralidade do juramento como mítica potênciado originário, da divindade da origem, pois a água e Deus vivificam tudo em quepenetram, em todo o real atuam como força Divina.É diante da confusão do mundo exterior, que o homem se volta para si e urge emsuas entranhas a miséria de esclarecer sua crise, a da religião e a do tempo, tendocomo ponto arquimédico a sabedoria competente ao homem, sem o desamparo dameditação da verdade do saber mítico e religioso na busca da fundura oculta darealidade,Sobretudo hoje, subsiste a filosofia o perigo de que, em sua postura de defesa contraessa forma de saber, os “filósofos” cheguem a uma interpretação do mundo paraqual só existam coisas materiais. O risco é que essa interpretação faça submergirno oceano o que a filosofia possui de mais profundo em sua gênese, que é a tarefado filósofo sentar-se, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar ocotovelo do braço no joelho, e na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso damão, e com olhos amenos assistir ao movimento dos astros, dos ventos, das chuvas,a manipulação misteriosa das ferramentas que o tempo emprega em suastransformações e nos desígnios insondáveis e sinuosos da existência...

Page 6: Curso de Introdução à Humanidades

Quando discorremos sobre a vida de Sócrates é concomitante discorrermos tambéma respeito de sua mulher Xantipa. O leitor poderia indagar sobre o que a mulher deSócrates tem a ver com sua filosofia? Pois bem, ao avesso da chamada limpezaideológica, religiosa, pregada pelo modismo filosófico da filosofia oriunda do chamadocírculo de Viena (1929 – 1938), Sócrates e sua filosofia são totalmente influenciadospor Xantipa, segundo Nietzsche: “Sócrates encontrou a mulher de que precisava...De fato, Xantipa o empurra cada vez mais para dentro de sua peculiar vocação”.Como isso pode ser verdadeiro? Pois é justamente da penúria de perpetrar o maridoao trabalho que Xantipa faz seu alento de impedi-lo de vagabundear, certa feita, amesma arrancou sua manta no mercado público para que esse retornasse a casa. Ofilósofo, como soldado aposentado ganhava seu dinheiro com pequenas moedasque encontrava nas ruas e com biscates de empreiteiro, o que chamamos hoje depedreiro, na construção de casas.Por isso, Sócrates após ser acertado pela água arremessada de um pote por Xantipa,discorre a seguinte frase: “não disse que Xantipa, quando troveja, manda também achuva”, por isso ele acreditava que quem desse conta de Xantipa, facilmente seentenderia também com outros homens.É a somatória desses acidentes que leva Sócrates a vida pública, visitar feiras epraças esportivas a dialogar com todo tipo de gente, feirantes, escravos, proprietáriosde terras, artistas, legisladores, enfim, causando com o escândalo de perguntar queas pessoas revelem que não entendem do que falam e, covardemente não conhecema si mesmas. Eis o valor da indagação filosófica, sem o que a vida não é digna deser vivida segundo Sócrates.O vagabundo loquaz, isto é, o vagabundo falante, de certo, não caberia ao estereotipodo vagabundo que foge aos exercícios físicos, Sócrates além da ginástica praticavadança, afirma-se que possuía primorosa constituição física e que em batalha agiracom a desenvoltura dos bravos, chegando a ficar imóvel pensando horas a fio sobreo gelo.Suas questões tinham como mosca o homem, afastado de Tales, afirmava não havernenhum interesse por qualquer estudo da natureza. Criara um método, a maiêutica,a arte da parteira, pois dizia que nada se ensina, masapenas se favorece a criação intelectual dos ouvintes,em Teeteto, de Platão, Sócrates compara seusensinamentos a essa arte, porquanto consistem em dara luz conhecimentos que se formam na mete dosdiscípulos: “Tenho isso em comum com as parteiras:sou estéril de sabedoria, e aquilo que há anos muitoscensuram em mim, que interrogo os outros, mas nuncarespondo por mim porque não tenho pensamentos sábiosa expor, é censura justa” (Teet., 15c).A escolha de um método e não de uma ontologia, isto é,uma realidade, encontra-se firmemente assentada nainterrogação, pois a diferença do método para aontologia, que adiante veremos no platonismo, pode serexemplificada, embora os exemplos nada digam deverdadeiro, na cilada que produz o relativismoantropológico, quando esse afirma serem as culturasunicamente distintas e jamais uma superior á outraesquece de dizer que enquanto método isso é claro quefunciona, no entanto, quando essa característica assumeares de realidade, corremos o risco de considerar que osacrifício antropofágico dos filhos mais novos dos índiostupinambás é equivalente a adoção de órfãos nocristianismo. O que seria mais reto entre os dois?

Sócrates ou o escândalo de perguntar(470 – 399 a.C.)

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Portanto, se o homem não se pergunta se seus atos são decisivos para o seu destinopost mortem? dá-se que nem humano é, torna-se um bicho acuado, não se importandocom o reto pensar, com que se saiba o que se diz, com que se preste conta sobre simesmo.Daí a identificação entre o conhecimento e a virtude, pois Sócrates consideravapossível ensinar e aprender a virtude, dizia que “para o homem, uma vida semprovação não é digna de ser vivida”.Diante da crise do espírito grego, sua decadência, para ele perguntar significa ter acoragem de suportar também o amargor da verdade, a compreensão da misériahumana que as pessoas negligenciam à elas mesmas.E quem é que gosta de ser exposto à sua própria ignorância, e além disso, em praçapública? Eis a causa do desprezo dos atenienses por Sócrates. A ironia com queafirmava: “só sei que nada sei” conferindo ao adversário o epílogo: “mas sei que seimais que vocês que não sabem que nada sabem” foi classifica na história da filosofia,como bem a utilizou o filósofo renascentista Nicolau de Cusa, como a sábia ignorância(douta ignorância).Esse modelo de prática filosófica que se tornara Sócrates, com a peculiaridade deinsistentemente enfiar o dedo nas feridas dos atenienses, cercando-se de jovensdiscípulos, concedeu-lhe a acusação de corruptor de menores e dos valores hodiernos,foi condenado à morte, passagem que se tornou clássica em que ele toma a taça decicuta, advertindo que toda certeza advém de uma voz interior que se manifestacomo advertência para o espírito, do qual a conclusão de seu discurso de defesa dáo testemunho: “é chegada a hora de partir: A mim, para morrer, a vós, para viver.Quem de nós enfrentará o melhor destino é desconhecido de todos, exceto de Deus”.

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O termo “amor platônico” têm sido o único feitio público de lembrança da filosofia dePlatão, cobiça-se alguém, possuidor do intuito socrático, perguntar pela relação dafrase com o filósofo, este estaria fatalmente diante de uma atração espiritual.O platonismo reaparece de tempos em tempos como uma estrutura interna eorganizadora do mundo, mais que uma filosofia é um universal humano, umamanifestação que influenciou todas as estruturas do ocidente, penetrou nopensamento Judaico, Cristão, Islâmico, Cartesiano, Kantiano, Marxista, CírculoVienense, enfim.Uma das representações mais fiéis do que foi a filosofia platônica está no quadro AFilosofia do renascentista Rafael, onde encerra como figuras centrais Platão a segurarseu livro Timeu e seu discípulo Aristóteles, a segurar seu livro Ética. Rafael seapresenta como grande conhecedor da antiguidade clássica, principalmente naescolha do professor e de seu mais brilhante discípulo como figuras centrais de todoo pensamento do ocidente, quando observamos o braço direito de Platão abrangendoa horizontal e elevando o antebraço na verticalização deste em linha reta até oindicador estar erigido para o céu, intuímos desse gesto todo o fundamento da filosofiaplatônica, pois Platão ali aponta para o mundo das idéias, onde se situa o objeto deconhecimento do filósofo, por ser este, de um status diferente da multiplicidade danatureza, sendo único, imóvel e imutável.A essência imutável enquanto objeto de indagação do filósofo, só poderia se traduzirnuma matemática geométrica e num intelecto, pois quando refletimos sobre umtriangulo sabemos que ele imutavelmente terá três lados, podendo ser isósceles oude qualquer outra propriedade de triângulo, sempre terá três lados únicos, imóveis eimutáveis que essencialmente lhe fazem ser triângulo.Por isso, o filósofo afirma que o mundo ideal está na idéia única, imóvel e imutável ese se segue segundo a essência, seria uma grande insensatez se não se considerasseque a beleza em todos os corpos é uma só e a mesma. E quando compreendidoisso, ao filósofo mostrar-se-á o amor por todos os belos corpos, vindo a desprezar emenosprezar a perseguição exagerada de um único. Em seguida, virá a consideraçãoda beleza nas almas mais valorosa do que o amor, porque conforme esse contemplea beleza em sua multiplicidade, deixará de servir a uma única beleza... e virá a seocupar com o vasto mar do belo e dar a luz muitos belos e grandiosos dizeres epensamentos em abjurado amor pela sabedoria, até que, então fortalecido e tendocrescido, contemplará aquele único conhecimento que se volta para a sabedoriacomo tal, a idéia única que reduz a unidade todas as outras idéias na totalidade, oque é perpétuo, o que nem nasce nem morre, nem cresce nem decresce e todas ascoisas belas participam dele em certo modo...Quando Platão por meio das palavras de Sócrates, que segundo sabemos, jamaisescreveu coisa alguma, narra o amor de Sócrates por meio do reto amor por garotos,inicia-se a contemplação por aquele belo quase se tocando o objetivo, por isso queisso significa dirigir-se as coisas do amor, e do amor do próprio belo que se comecea ascensão de maneira contínua, como bem podemos conferir nas frases de Sócrates:“de um copo belo a dois e de dois a todos, dos corpos belos aos belos modos devida, dos modos de vida aos belos conhecimentos, dos conhecimentos, enfim, aoconhecimento que a nada mais se refere do que ao próprio belo...”O fato de Sócrates ter recusado as incessantes propostas sexuais de seu mais brilhantediscípulo, Alcebíades, estas não nos colocam perante a defesa da limitação sensualcomo um método, em vez disso, dá ao belo uma dignidade delimitada, mas oexacerbando a uma forma mais elevada de desejo. Para além das belezas dos corpos,das almas, da condução da vida e do conhecimento, o amor platônico insta pelabeleza em si mesma, onde no belo urge a aspiração pela idéia do belo, pelo arquétipodo belo: a doutrina das idéias.Encontramos portanto nas linhas anteriores a demonstração de uma superioridadeda sabedoria sobre o saber, uma vez que existe uma sabedoria, simultaneamente

Platão ou o amor filosófico(429 – 327 a.C)

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encerra a existência da virtude e da justiça, daí o objetivopolítico de se escrever A República, pois como metafinal da sabedoria, temos a realização da justiça nasrelações humanas e portanto em cada homem.Diante dessas reflexões, Platão descobre que o homemsabe desde sempre, originariamente, o que é a justiça eo que são as outras virtudes. O homem trás em suaalma arquétipos de todos esses retos modos decomportamento e esses devem determinar a sua ação.Vemo-nos diante da idéia de uma ontologia, leia-se umarealidade, pois o que até então era método paraSócrates, isto é, o diálogo, a dialética entre dois ou maishomens que perguntavam e respondiam como métodode investigação conjunta, para Platão, tornava-se umsimples ponto de partida para chegar aos princípios,dos quais depois se pode chegar as condições últimas,definindo-a uma idéia de tal modo que ela pudesse sercomunicada a todos.Quando nos deparamos na venda com outra pessoa,da memória que permanece dessa, tempos após oencontro, uma abstração, já que não podemos consumiro outro fisicamente, podemos então vislumbrar a idéiaabstrata desse outro, desse ente, o arquétipo desse ente,podendo dizer daí então, que aquilo que vemos é um

homem, um crime, uma árvore, uma boa ação.O real originário está dessa forma livre de toda transitoriedade, toda multiplicidade,mas a ele se destina, porém, toda a aspiração do mundo como um todo, isto é, otransitório aspira o eterno universal: esse é, para Platão, o segredo da realidade.Conhecer para ele é relembrar, pois o homem se lembra de uma contemplaçãooriginária desse arquétipo, a qual precisa ter ocorrido antes de sua existência temporal.Assim, a doutrina da idéia conduz necessariamente a suposição de uma preexistênciada alma e, conseqüentemente, à certeza da imortalidade.A nostalgia como aspiração para retornar de onde veio, a libertação das cobiçassensuais e de, já nesta existência terrena, alcançar a contemplação das idéias nascoisas mesmas. É pois esse o “maior bem que, como dádiva dos deuses, coubesseou viesse a caber aos mortais”, pois arrancando o homem de sua existência cotidianae elevando-o para o mundo das idéias, a filosofia iguala-se a sabedoria, objetoessencial da filosofia.Esse caráter ideário de Platão levou-o a atitudes reformistas, quando esse entãodecide apoiar um golpe de Estado numa cidade próxima a Atenas, sob o comandode um ex-aluno é preso e vendido como escravo sendo só liberto após a venda domesmo para seus leais alunos.Mas do filósofo vale por acabamento as palavras de Platão na República: “Por suanatureza ele aspira ao ser. Não pode deter-se nas muitas singularidades, das quaisapenas acredita que sejam. Contrariamente, prossegue e não se desencoraja nemabandona o Eros antes de ter apreendido a natureza daquilo que é... Quando tiver seaproximado do que verdadeiramente é e se unindo a ele, criando assim razão everdade, então terá alcançado o conhecimento. Agora vive de verdade, cresce eestará livre de suas dores”.Eis então a paixão daquele que filosofa, a paixão sem a qual não existiria nenhumaprocura pelo verdadeiro eterno.

Page 10: Curso de Introdução à Humanidades

“Ecce Homo” ... Eis o homem que Dante em sua Divina Comédia apresenta como “omestre de todos os sábios”, não por acaso, mas toda a obra recebe a luz da tradiçãofilosófica, assim como a escola peripatética, o aristotelismo árabe com Avicena eAverróis, o aristotelismo cristão medieval com Tomás de Aquino, o aristotelismojudeu com Maimônides, o aristotelismo do renascimento entre várias outrastendências do mundo medieval e moderno.Nascido qual a fina flor ante o deserto da provinciana cidade de Estagira como filho de um“piluleiro”, ofício de farmácia que era característico ao médico, f`�ôra a Atenas decidido aestudar filosofia após refletir sobre a resposta do oráculo sobre o que deveria fazer.O fato de os filósofos serem famosos pelo desprendimento das coisas materiais parecenão se adequar a Aristóteles, pois se vestia suntuosamente não dispensando anéis ecabelos bem cuidados dentro do que um relator da época acrescenta que: “ele erafraco sobre as pernas e de olhos pequenos” e “ceceava um pouco com a língua”.No tempo de Aristóteles a filosofia era uma ocupação bastante abrangente, pois seocupava do saber e de toda a ciência que um estadista, militar ou educador tinhamcomo base para a vida.“O leitor” parece ter sido o apelido que seu mestre Platão lhe dera, é do mestre também afala: “Aristóteles escoiceou-me como fazem poltros novos com a própria mãe”. Do maiorfilósofo fôra ser mestre do maior gênio militar de seu tempo: Alexandre, o Grande, umgaroto ainda de treze anos. Difícil é precisar a contribuição do filósofo sobre odesenvolvimento do futuro estadista e general, mas é no mínimo estranho que, por algunsanos, poder e espírito conviveram na sua expressão mais elevada: o futuro conquistadordo mundo e o homem que, em sentido universal, conquistaria o cosmos espiritual.Depois da estranha morte deAlexandre e de acusações de traição da parte dos ateniensesque bradavam ser ele cooperador das invasões macedônicas por ter sido professor deAlexandre, Aristóteles permanece na sua escola perambulante, isto é, peripatéticaafirmando que Atenas já havia assassinado de maneira injusta Sócrates, um dos seusgrandes filósofos e que os cidadãos não deveriam cometer o mesmo erro duas vezes.É na escola peripatética que o mestre de todos os sábios se preocupa com a realidadeda multiplicidade da natureza, autenticando a pintura de Rafael que o coloca ao ladodo mestre Platão com o braço direito apontado diagonalmente em linha reta do ombroaté o indicador para a terra. Pois é da intuição, entendendo intuição como aspossibilidade e impossibilidades que a realidade de um objeto apresenta dessa imagem,que podemos dizer que Aristóteles, contrariando o mestre Platão, considerava quenada há na natureza tão insignificante que não valha a pena ser estudado, já que, emtodos os casos, o verdadeiro objeto de investigação é a substância das coisas.O que é o ser? O que é a substancia? Enfim, o que fundamenta todo o real, suaorigem e seu destino?Sabe-se que apenas trinta por cento das obras de Aristóteles chegaram até nossoconhecimento e desses trinta, noventa por cento de suas principais obras, muitasem forma de apostilas de aulas, de difícil interpretação, o que não nos impede defundamentar sua filosofia como a fundadora da ciência ocidental.No entanto, é na substância que reside o homem do mundo, sua metafísica ontológica,na qual não se pode conceber o ser vivente como um mero amontoado de partes oucomo um mero aparelho mecânico, o ser vivo como um organismo, um todo queempresta sentido as suas partes. Aristóteles não para apenas no domínio da vida,dirige-se a totalidade do mundo: os céus, os astros, a terra.Parte da investigação sobre a essência dos organismos, pois esses são coesos pormanterem uma unidade singular como um todo e como tal é conduzido pelo fato depossuir uma finalidade e um motivo. Estes últimos, não são como em Platão, lançados defora, como forma de um eidos ti, uma certa forma que dá forma à matéria informe, poisparaAristóteles é um eidós tino, forma “de” uma certa coisa, captada das coisas sensíveis,e é nestas que descobrimos o inteligível, en tois eidesi tois aisthetois tà noetà éstin.

Aristóteles ou o filósofo como homem do mundo(384 – 322 a.C)

Page 11: Curso de Introdução à Humanidades

Porém, em que consistem finalidade e motivo na substância?Na enteléquia, tendência para realizar-se em suas possibilidades mais amplas, aessência da planta é a propensão de realizar-se como planta em todas as suaspossibilidades, pois toda a substância trás em si seu motivo e sua finalidade e seatualiza conforme essa tendência interna.Daí todasassubstanciasaspiraremasuaprópriaperfeição,assimcomoanaturezaeoMundovivemesseímpetodeauto-realizaçãoeauto-aperfeiçoamento,essateleologiauniversaltambémé vivida pelo homem, pois o mesmo tende para o que é bom para ele no intuito de se realizare aperfeiçoar tanto quanto possível o que é em sua essência. O que ocorre é que o homemtem que se transformar em homem, pois aí esta a sua destinação mais própria.“Torna-te o que tu és” é a máxima humanista aristotélica, mas como me tornar aminha essência se ela é o meu máximo? Bom, se a natureza que não faz nada deinsensato fez também o homem, deve telo feito com o fim de que se realize o queunicamente no homem pode ser realizado: justamente espírito, razão, logos. Residenesses três pilares o sentido da existência humana, aperfeiçoar as faculdades própriasdo homem, aquilo que ele é e não pode deixar de ser, sua essência necessária, quodquid erat esse, que se torne o que se é: o ser racional.No grupo de textos reunidos no Organon, no inicio de Analíticos, que com os estóicosrecebe o nome de lógica, o pai da lógica ocidental, reconhece a verdadeira essênciado homem no logos, o homem deve de modo acertado buscar sua essência maisprópria no conhecimento desse logos.Mas o que se entende por logos?Tanto para os gregos quanto paraAristóteles o logos é a capacidade de conhecer as coisase de leva-las a manifestação, isto é, de desvelar o mundo, conhecer o mundo, e não dedomina-lo como faz o pensamento moderno. Eis o resultado profundo de reflexões acercado homem e não da arrogância intelectual, pois em termos coloquiais a filosofia é ademonstração do senso comum e a forma mais elevada da vida intelectual seria daqueleque conhece, não daquele que age. No entanto, se na lógica demonstramos uma coisaverdadeiramente existente, uma premissa passível de demonstração, resta ao diálogo, istoé, a dialética, forma que o mestre escolheu para escrever a maioria dos seus livros, a buscade premissas prováveis, isto é, a triagem dos argumentos confrontando-os com os vários“prós” e “contras” de maneira que se guarde igual chance a todos, para ver qual deles sesustenta, isto é, fica de pé. Do confronto crítico de várias possibilidades acabamos fechandoas alternativas até que num certo momento temos uma certa intelecção ou intuição dosprincípios que governam aquele assunto. Oras, se todo raciocínio lógico parte de premissasdemonstráveis e você na maioria das vezes tem premissas prováveis, o que você tem de

fazer é uma espécie de raciocínio lógico ao contrário, dasconseqüênciasparaaspremissasprováveiscomo fimúltimo,pois aí reside o método aristotélico, não como fizeram crer amaioriadeseus tradutoresecomentadoresacreditandoseralógica a evolução da obra do mestre esses processos estãotodos descritos em pormenores no livro Tópicos..Aesse fimúltimodetodaaspiraçãonomundoAristóteleschamade primeiro motor, realidade pura, o ímpeto constante pararealização e para perfeição, o fundamento imóvel do qualsurgemtodososdemaismovimentos.Paraohomemdomundoa ultima palavra não é o mundo, mas Deus. Mas não se tratado Deus Cristão que de fora da existência ao mundo, naorganização do caos, mas sim a divindade como fim ultimo eimanente a ele. O primeiro no ser como ultimo no conhecer.Portanto, aquilo que o homem é apenas de modo imperfeito –que, porém é o que há de mais elevado no mundo -, nadivindadedeveserperfeição: logos,razão.DaíserparaofilosofoaDivindadeopuropensarsobresimesma,umacontemplaçãodaessênciaquenosrevelaumpensamentodeorigemreligiosa.Quemcontemplouomundo,temenfimdebastar-seasimesmono saber da divindade, eis a tarefa de todo homem manifestaem sua Ética: “Não se deve escutar a advertência daquelesque dizem que o homem deve pensar apenas no humano, omortalapenasnomortal;antes,devemosempenhar-nos, tantoquanto possível, em ser imortais”.

Page 12: Curso de Introdução à Humanidades

Aquele que diante do Bispo de Hipona perguntasse pelo passado do mesmo correriao risco de se assustar com os diversos caminhos da juventude de Agostinho, comoé que um homem com a índole de rebelde e gatuno noturno de transeuntes indefesoschegou a se tornar um dos Padres da Igreja?De Hipona quando jovem, segue para Cartago e Roma para aprender retórica, torna-sebrilhante professor da disciplina em Milão. Na aparente vida ordeira de um mestre sabe-seque ele engravida uma prostituta a qual ama profundamente dando-lhe filho de presente.Comotempoaamanteeavidahedonistadeumromano tardioé repudiadapelos tormentosescrupulosos de Agostinho. Distante da juventude ele é Batizado aos trinta e três anos,deixando Milão para retornar para sua Hipona vindo a ser contrario a sua vontade Bispo,pois tinha que administrar os bens da igreja não lhe restando tempo para filosofia. Aindaassim resta-lhe o mosteiro laico onde escreve uma gama de tratados teológicose filosóficosque viria a intervir no Mundo após as disputas espirituais e religiosas de seu tempo.Aos setenta e dois anos se retira para em solidão esperar a morte e num olhar retrospectivode sua vida confere a ela um amontoado de pecados, um Santo não encerraria tãohumanamente sua vida, mas é da humanidade do homem que se afere a sua medida,pela amplidão das possibilidades que esse pode atravessar e que de fato atravessa, porisso a servidão do pecado na juventude, pois esse o arremessa como o objeto mesmode sua reflexão com a tenacidade que nenhum pensador antes tenha feito.“Tornei-me para mim mesmo uma pergunta” é a frase que demonstra a reflexãofranca na exibição dos pecados cicatrizados numa vida, daí seu livro Confissõesdemonstrar que em todos os acontecimentos que descreve de sua vida regressa,encontra a si mesmo e instrui-se a compreender a si mesmo.Acontemplação de si mesmo validada na afirmativa da essência humana estar situada,não com o futuro que é o futuro do presente, e nem com o passado, que é passado dopresente, mas sim com o eterno e imutável presente, que assiste o movimento dotempo de uma esfera ulterior imutável situada além e que se acrescenta ao ser viventena sua pluralidade de formas substanciais é o argumento ontológico de Agostinho.O homem alcança a verdade através da contemplação de si mesmo: “Não saias deti; volta-te para ti mesmo; pois a verdade habita no interior do homem” – conformeolha para o seu interior esse rompe com o ideal gregodo homem como membro dos cosmos, ou como aquelesque agem em comunidade, e tão pouco, como osneoplatônicos que acreditam ser ele apenas uma parteprojetada de Deus na terra.Há algo de errado no homem pois ele vive no erro e anseiapor escapar a esses grilhões por achar insuportável vivernessa condição. “Nosso coração é inquieto” afirma o Santoante a confusão e a nostalgia que distinguem a inquietudehumana: “Tu nos criaste para Ti, e nosso coração viveinquieto, enquanto não repousa em ti” .Assume diante de suas confissões a miséria humana eprocura salva-la na divindade perguntando pelo homem epor Deus, combinando-os num único grande problema:“Quero conhecer Deus e a alma. E de resto nada? Não,absolutamente nada”.Esse desacerto que o Santo filósofo acredita existir no homeméexacerbadoquandocolocadodiantedeDeus,sendoapenassolúvelseconcebidocomopecado,opecadooriginalquedesdeAdão,teriacorrompidoaessênciaboadohomemcondenando-o a não ser mais sem pecado.Os leitores poderiam argüir queAgostinho comete um erroquando soluciona o desacerto do homem com Deus, no

Agostinho ou a serventia do pecado(354 – 430)

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pecado original, pois se esse é determinado desde sua origem, o homem então, nãotem culpa alguma de agir erroneamente, pois nascera assinalado.Por isso o Santo dizia que o pecado não pode ser sem a culpa, pois assim esvaziáramo-lo de significação, a culpa só pode ser atribuída se aquele que age for ele mesmoresponsável por suas ações, isto é, se ele for entendido como um ser livre.Como conciliar o conflito do determinismo do pecado original e do livre arbítrio?Através da predestinação, isto é, da iluminação divina, segundo a qual toda a açãohumana estaria desde a gênese determinada nos inescrutáveis desígnios de Deus, quesalva quem quiser e condena quem quiser, assim a mente humana não pode funcionarsem a ação iluminadora, predestinada e imediata de Deus não podendo encontrar acerteza fora das regras eternas e imutáveis da sabedoria Divina.Quando Agostinho faz demasiada honra ao homem, atribuindo-lhe a liberdade, reduzas honras de Deus. O pensamento de Deus levado às últimas conseqüências exigeque se lhe atribua a liberdade absoluta, e somente a ele, ainda que isso seja deimpossível compreensão para o homem, pois se trata de curvar ante o mistério divino.Para o Santo a razão natural é incapaz de obter um conhecimento seguro sobre Deus,dá-se que essa cognocisbilidade é revelada e acolhida pela fé, sua teologia da fé podeser assim expressada: “Nós somos demasiadamente fracos para encontrar a verdadecom a mera razão; por isso a autoriadade dos escritos sagrados nos é necessária”.O primado da fé não pode ser derrubado, por mais que o Santo insista em que não se podeabandonar a compreensão racional que existe somente na dependência da fé, que é o queafere a veracidade da razão, ultrapassando a mesma, que é submetida ao juízo da fé e quepor isso mesmo é superior a razão, entretanto, aquilo que ultrapassa a razão é Deus, daí seconclui que o critério da verdade deve existir.É quando o homem contempla a si mesmo e a sua situação no mundo, perguntandoquem é Deus? a quem finalmente o homem e o mundo devem a sua existência?que ele se mantém contemplando de modo indireto, e não imediato, a única formade conhecer Deus. Desse modo, o conhecimento de Deus se dá na experiência queo homem tem de si mesmo... na aspiração ao bem, ao objeto supremo de todanostalgia, ao bem supremo.Agostinho acha que também pela razão natural é possível conhecer as determinaçõesmais gerais da essência de Deus, que segundo a tradição cristã nos criou com suaimagem e semelhança, assentando-nos na condição de criatura, e que essa criatura,apesar da pequena escala, traz os vestígios do Criador em si e em toda a realidadepara que a partir desses vestígios possamos inferir a respeito do autor da obra.Essa apreensão indireta da essência de Deus com base no método da analogia atravésdo caminho do entendimento natural chega a um dos fundamentais mistérios docristianismo, o da trindade pois, segundo o Santo o homem tem condições para issoquando observa a si mesmo e constata que tem uma formação triádica, que consiste na:memória, na vontade e no entendimento, que são únicos, porém em relação uns com osoutros. Dá-se que se assim se manifesta no entendimento natural, isto é, no homem,também se manifestará na constituição de Deus que criou todo o real e o próprio homem.Esse pensamento indistinto entre teologia e filosofia quando se debruça sobre si mesmo,sobre o homem, sobre a substancia para usando um termo aristotélico, debruça-se numadas questões mais fundamentais da metafísica que é o tempo do homem. Isso o projetacomo o grande teólogo da história e filósofo da história do Ocidente. A história comocenário do conflito humano entre o Reino do Diabo, do Mundo e de Deus, manifestadosem épocas marcadas pelas lutas que se iniciam antes deAdão com a queda de Lúcifer, eencontra seu meio na vinda de Cristo, e seu fim no juízo final e na plena realização doReino de Deus. Mas para ele não é, como crêem por exemplo os marxianos, o homem esua ação que conduz os eventos decisivos da história, mas à vontade de Deus.Em todas as questões do SantoAgostinho esse tocou no domínio do homem e no domíniode Deus, com o empenho de atingir a compreensão das coisas divinas a partir do homem.Talvez nenhum filósofo tenha penetrado tanto nos mistérios de Deus. Entretanto nosmistérios do homem são acessíveis apenas, a aquele que for ele mesmo um homem,como foi Agostinho, isto é, um homem com todos os predicados humanos do homem.

“Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, quenão é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isto minha mão?Ou está minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra?” (Confissões, livro XI)

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O “boi mudo”, assim era apelidadoTomás por seus companheiros, gordo e quieto eram suascapitais características, no entanto dentro daquela calmaria escondia mares revoltos quenão queriam se expor de forma alguma se não apenas por um acidente. Nisso situava seumais profundo compromisso com a filosofia, quando descoberto por um dos companheiros,pedeinsistentementeparaquenãosedesvendequeeradonodassoluçõesparaosproblemasdoprofessor.Quandosubmersoemreflexões,esquecessetotalmentedascoisascorriqueirasa tal ponto de num jantar a convite de Luis o Santo, Rei da França, esmurrar a mesa e gritar“Assimdeve-seargumentarcontraaheresiadosmaniqueus”enquantotodossemanifestaramestupefatos o Rei, digno do predicado que viria a ter, ordena que anotem as suas falas.Filho de família nobre destinado a ocupar um vantajoso cargo na Igreja, prefere amendicância da recém fundada ordem dominicana que através do ideal ascéticotenta conduzir o cristianismo, saturado em seu tempo, para uma vida segundo oEvangelho. Maus vistos em seu tempo os dominicanos sofrem com o ostracismopublico levando a importante Universidade de Paris recusar acolhida ao seu corpodocente, proibindo os estudantes de comparecerem a exposição inaugural de Tomás.Certa feita, o grande teólogo e filósofo Alberto Magno, professor de Tomás, diante dagozação dos alunos responde: “Vós o chamai de boi mudo; eu, porém, vos digo que omugir desse boi se elevará tão alto que preenchera o mundo inteiro”.A fusão da teologia cristã com a filosofia grega queAgostinho propusera, isto é, a síntese darazão natural e da fé, na qual a razão se submete por completo a fé, para que daí a seu ofíciodesenvolva-se de modo pleno, chegara a seu ápice com Anselmo de Canterbury, foraquestionadapela influênciadeAristótelesnoMundoÁrabe, irrompendonos livrosdeAvicenaque chegavam até as mãos de Tomás, até penetrar por completo no pensamento ocidental.Uma filosofia que restituísse a dignidade da própria filosofia em presença da teologiaao invés de vela apenas como auxiliar como pregava o sólido pensamento cristão,pareceria no mínimo perigoso. Um sistema como o de Aristóteles que abarcavadentro de sua filosofia um conhecimento fechado da natureza, do homem, do cosmose de Deus causou pânico entre os teólogos, justamente num momento de crisesurge um pensamento que daria suporte ao mundano, criando o problema dacoexistência de duas verdades, a da fé e a da razão.Aí que se assenta a genialidade de Tomás, pois é do esforço de concatenar a fé e arazão no homem, sem sobrepor uma a outra, contra o grande risco da dissolução dohomem e do que ele próprio.Em volumosas obras como a Suma Teológica e a Suma contra os gentis como emtodos seus escritos Tomás procura analisar a razão e a fé e o que pertence a cada umadelas. Para Tomás a fé relacionava-se com as coisas metafísicas já a razão naturalatinha-se às coisas mundanas. E nessas ultimas tínhamos que decorrer racionalmente.Oleitormaisatento,poranalogia,aoleroparágrafoanterior,chegariaaconclusãoagostinianadasuperioridadeda fésobrea razãocomo iluminaçãodivinaparaasoluçãodo impassequecriavaaduplaverdade.Contudo,segundoTomás, taldomínio trata-semaisdomundosensívelquedailuminação,poisopontoarquimedicodopensamentomundanoéemaltograumaisdaexperiênciasensível, experiência essa que tem como critério de verdade a compreensão racional.Essa dignidade da razão da a ela possibilidades de apreensão do metafísico masdesde que esse esteja na realidade do mundo, isto é, uma metafísica ontológicacomo propunha Aristóteles, negando a dupla verdade com a prudência depreservar a integridade do espírito humano. Fé e Razão são galhos do mesmotronco que é Deus, e se Deus criou ambas, seria uma contradição elas sedesmentirem dada à mesma origem. A Fé não pode ser anti-racional, assim comoa razão não pode instruir nada que conteste a fé.Demonstrar os “preâmbulos da fé” é a tarefa da razão segundo Tomás, eis a primaziada fé sobre a razão, eis a face cristã que vê na verdade da fé a perfeição ante averdade da razão natural É a Fé que conduz a razão a atualizar potencialidadeselevadas. “A Graça não suspende a natureza, mas a completa”.

São Tomás de Aquino ou o intelecto batizado(1224/5 – 1274)

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O Apolíneo grego não obstante de suas rédeas virtuosascolocadas por Agostinho, se manifesta firme e estruturalna filosofia teológica cristã, quando Tomás resgata aforma substancial como encarnação e parte do Divino,trás consigo novamente as formas estéticas domundano, da “mundanalidade”.Além da multiplicidade formas buscava a essência universaldas coisas, debruçando-se sobre elas no conhecimento damatéria e da forma, considerando a matéria apenasamalgama da forma que se manifesta sobre ela, vê nasformas a essencial indubitável das coisas, como no sentidoaristotélico, em que as formas são a essência das coisasenquanto se desenvolvam nelas dinamicamente.Diferentemente de Aristóteles acredita que as formas ouessencialidades existem originariamente como idéias noespíritodeDeus,ea filosofiaquandoabstraiaessencialidadeda realidade reflete os pensamentos de Deus.ParaeleaumagradaçãonareflexãoqueDeustemdoMundo,poisquantomaiselevadaaformasobreamatéria,maiselevadaa sua realidade, por exemplo na planta temos uma faculdadevegetativa, no animal uma sensitiva e no homem além davegetativa e sensitiva uma alma espiritual e portanto imortal,masaindaligadaaocorpo,porissomaisacimaestãoasformasdos espíritos incorpóreos: os anjos. Mas estes também são

imperfeitos, são puros, mas criados pelo incriado: Deus.Qual fusão do Mundo Grego com o Mundo Medieval, uma vez que se o mundointeiro é como dizia os gregos, uma tendência incessante da possibilidade para arealidade, então a realidade mais pura exclui toda possibilidade, e essa é Deus.Essa realidade máxima e ultima de Deus extraída da enteléquia aristotélica, colocavaDeus no devir do Mundo, não como parte, mas como supremo princípio imóvel detodas as coisas para qual tudo se movimenta.Distante do princípio grego de um Deus que organiza o caos Tomás se debruça sobre aquestão do Deus Cristão, para ele Deus não penas sustenta todas as disposições do mundocomo pensaAristóteles, mas é como o princípio de todo acontecer, como o criador do mundo.ÉatravésdaanalogiadoserqueTomássedebruçasobreomistériodaTrindadeedaEncarnação,poisobservaquetodarealidadetemseuserpormeiodeparticipaçãoemDeusenquantorealidadeabsoluta, assim, Deus e o homem não são os mesmos, mas também não são totalmentediferentes, são semelhantes, mas sem dúvida de grandezas diversas. E Deus somos em parte,e enquanto somos, somos semelhantes a Ele, o princípio, mas Deus não é semelhante a nós...Longedeumpanteísmoqueincorreramospensadoresárabes,oSantoafirmaqueaidéiadacriaçãopressupõeumadistanciainfinitaentrecriadorecriatura,reconciliando-oassim,comoprincípiocristão.Eédabasedessemundocriado, istoé,esseDeusemparte,queTomásconcebeacapacidadeda razão natural compreender, pela analogia, a existência de Deus. Não na realidade daalma como afirmava Agostinho, mas sim na realidade do mundo, pois se este é finito nãopode ter seu fundamento em si mesmo, remetendo-nos a Deus enquanto criador.Se tudo tem uma causa criadora, o leitor poderia chegar a questão de que se Deuscriou o mundo quem criou Deus? Não se pode como bem salientou Tomás, regredirao infinito na cadeia das causas, pois tem de haver uma causa primeira.Dá-se que o homem foi criado por Deus e criar significa comunicar a criatura algo daprópria essência. Mas outra vez, por analogia, o leitor poderia indagar que se somossemelhantes a Deus e somos finitos, também Deus é finito?Eis a função da fé, jamais o homem finito pode desvendar a totalidade da infinitude deDeus, pois somos semelhantes a ele em parte, mas ele não é semelhante a nós, porisso que na analogia o finito tem de ser negado e ultrapassado pela validação da fé.

“O supremo saber de Deus, que podemos obter nesta vida, consiste em saber que ele estaacima de tudo que dele pensamos”.

SãoTomásantesdoterminodaSumateológicaabdica-sedapenaeapresentaoseuconhecimentodemodoindiscutívelnafrase;“Nãopossomais;anteoquevi, tudoqueescrevisemeparececompalha”.

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“Do mesmo modo que os atores colocam uma máscara, para que a vergonha não se reflita emsuas faces, assim me penetro no teatro do mundo – mascarado”

Cristão ou não foram os predicados que sempre acompanharam a obra de Descartes.Seria essa a justificativa de se usar uma máscara? que obscuridades se escondempor trás da máscara do filósofo René Descartes.O título de sua primeira meditação de Descartes: “Das coisas que se podem colocarem dúvida” leva-nos a uma “errante” destruição dos valores tradicionais da filosofia.Em seu caminho humano pelo “grande livro do mundo”, Descartes mergulha numuniverso infinito e múltiplo em que tudo que é apresentado como saber inquestionávelparece-lhe altamente duvidoso.Descartes acha o “grande livro do mundo” em Paris, mais que em qualquer outrolugar. Estabelecido na cidade luz, Descartes compartilha da vida social da cidade,cujo o qual se enfastia, se isolando em seus aposentos afasta-se da família e dosamigos.Sabe-se que certa feita alistou-se no serviço militar, vindo a servir tropas conduzidaspor Mauricio de Nassau e que tenha tido um feito vitorioso contra o ataque de naviospiratas. Contornando a Europa quando civil, vindo a residir em Amsterdã, local emque poderia “ na solidão” viver apenas para as descobertas do espírito humano, oque exigiria a mais ampla e radical derrubada das convicções professadas pelofilosofo até agora, porém agora se dedicaria não mais ao “grande livro do mundo”,mas a investigação de si mesmo.Cansado das imperfeições da natureza, resolve vestir à máscara do homem, e neste,também pela dúvida sistemática vê imperfeição e susto, retomando o leito dopensamento e fé nas suas meditações. O que Descartes pretende depois da destruiçãodas estruturas é a questão metafísica e, sobretudo, da existência de Deus e danatureza da alma humana, assim, quer ocupar-se desses temas antiqüíssimos dafilosofia com sua nova metodologia, estabelecida segundo o modelo exato dasmatemáticas, convencido de poder dar-lhes uma solução válida. Para Descartes,filosofar significa propor as perguntas metafísicas e antes de tudo, trata de descobrirum fundamento seguro, ou seja, um ponto que fosse imediatamente certo eesclarecedor como os axiomas matemáticos, de tal modo que pudesse suportartodo o edifício da filosofia, para que assim, chegasse a um princípio absoluto.Porém, é necessário ser dono do martelo que destruirá todas as certezas provisóriase colocará em dúvida o que até então tinha se tornado verdade indubitável. Descartessó se diz capaz de tal evento em sua maturidade e afirma a necessidade de secomeçar tudo pelos fundamentos, e que para essa empreitada se realize, é necessáriocontrariar as tradições, procurando estabelecer algo firme e constante na ciência.Com enorme audácia, empreende uma nova fundamentação da filosofia, mas diantedo abismo que se abrira aos seus pés se assusta e recua para as soluções dopensamento e fé antigos. O fundador da geometria analítica empreendeu sua vidana tentativa de infiltrar o método exato das matemáticas na filosofia, com o fim deque ela pudesse igualar-se com a certeza e a evidencia das ciências geométricasimóveis e imutáveis.Descartes queria trazer a luz a filosofias que até então permanecera, segundo ele,na escuridão, mas como corroborar seu projeto com seu Cristianismo?Aúnica soluçãoera propor as perguntas metafísicas, sobretudo da existência de Deus e da naturezada alma humana.Para efetivação de tal projeto megalômano, necessitava estabelecer um pontoarquimédico que pudesse imediatamente esclarecer como os axiomas matemáticos,um princípio absoluto, uma verdade indubitável. Mas como chegar a uma verdadeindubitável se o homem vive em estado de dúvida? Primeiro é preciso por em dúvidatudo o que até então era considerado verdade indubitável, sua tarefa é: “demolirtudo desde a base e começar de novo desde o alicerce”.

Descartes ou o filósofo atrás da máscara(1596 – 1650)

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É dessa dúvida radical que atentara toda a filosofia moderna, no sujeito livre parapor em duvida a realidade do mundo externo, duvidar que as coisas sejamverdadeiramente como aparecem ao homem ou, mesmo, que existam.Esse argumento coloca-nos a beira do abismo cartesiano, a dúvida exacerbada peloargumento de que toda nossa vida pode ser um sonho incessante, e da incapacidadepara se saber se tudo não passa de ilusão, coloca em xeque a própria existência corporal.No entanto, resta-nos uma saída para esse estado de dúvida que são as verdadesimóveis, tanto no sonho quanto no pensamento, essas são por exemplo, a frase deque dois e dois são quatro ou conceitos básicos como forma, dilatação, espaço, tempo.Contudo se essas verdades não estando em Deus como na Idade Média, não estandona natureza como para os gregos, estaria então, assentada no pensamento do homem,mas se esse pensamento, devido a sua natureza humana, estivesse enganado atéquando se considera mais certo?Seriamos errantes, teríamos em nossa constituição um ardil fundamental quedefendida a idéia da criação do homem – como o faz Descartes – chegaríamos àconclusão de que Deus teria criado o homem errante em sua essência, aí Ele seria,não “a fonte da verdade” como afirmam a teologia e a filosofia, mas sim um “demôniomaligno”, um “Deus embusteiro”.Descartes estremeceu quando se deparou ante essas constatações, teve medo deexpressá-los, mas é sintomático que tenha pensado nisso mesmo não escrevendo.Quando viu que a dúvida radical levaria o homem a correr o risco de afundar-se nanoite do ceticismo definitivo, destruindo toda a certeza da tradição que afirmava queo conhecimento estava assentado no homem como parte análoga do Criador e que,por isso mesmo, compreendido na verdade de Deus, Descartes considerou estarrodeado de “trevas impenetráveis”.Certo amigo de Descartes perguntou se um de seus leitores morresse antes desaber que além desse pântano duvidoso existe uma saída, não estaria fazendo queesse pobre homem que perdera sua crença, perdesse também a bem aventurança,por culpa do filosofo?Mas para Descartes o momento em que se desmoronam todas as certezas surgeuma nova certeza, pois é da duvida que deriva a certeza originaria, pois quandoduvido, eu, aquele que duvida, existe. Essa certeza interna não pode ser destruídanem mesmo se Deus for um enganador. Ainda que ele me enganasse, ainda existiriaeu, o enganado que “penso logo existo” – cogito ergo sum -, e “duvido, logo existo”ou “sou enganado, logo existo”.

É daí que Descartes retira o lugar da certeza originariade Deus e o coloca, num giro no homem determinandotoda filosofia posterior. É na independência do eu, afundamentação filosofia primordial e decisiva do filosofo.Esse eu seria de uma natureza pensante e nada mais,um solipsismo, isto é, uma forma de acreditar que aúnica realidade existente é a do eu pensante, porexemplo: se você morresse hoje morreriam também todaa realidade externa a você porque eles só existemporque você pensa neles. Isso é uma “coisa pensante”pois o eu, que só vive na consciência, perde o contatocom as coisas. Eis o nascimento da divisão moderna darealidade em sujeitos desligados do mundo, por um lado,e puros objetos, por outro, que pesa hoje em dia sobre afilosofia.Sendo o conhecimento na filosofia clássica fundado naunidade entre o sujeito e o objeto, a separação desseselementos que são constituídos pela realidadesubstancial das coisas o fundamento de toda a filosofiadenominada moderna. Agora o sujeito não é mais objetode si mesmo na apreensão do conhecimento, pois ascoisas passam a ser o que pensamos que elas são enão mais o que eram na realidade dada.

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Resta-lhe apenas Deus, mas esse Deus só pode se dar no homem finito e imperfeito,até mesmo em suas afirmações mais profícuas, se engendrado no homem por Deus.O infinito como tal é precisamente mais perfeito que o finito.Mas como isso se dá? Descartes afirma que de forma direta como uma certezaoriginária já que o homem não pode produzi-la por não abarcar o infinito.Esse círculo vicioso de compreensão imediata e certeza originaria mais contribuempara colocar o leitor em duvida do que esclarece as questões propostas, a tentativade Descartes reconstruir a metafísica é fadada ao descrédito de quem percebe suasmáscaras.Por mais que aleguem ser ele o maior influenciador das filosofias posteriores comtraços metafísicos, ou iluministas e até niilistas, sua filosofia só faz crer que oconhecimento de que a certeza da existência de Deus pertence originariamente aohomem, quanto a sua própria existência, e que bem próximo dessa certeza moratambém a dúvida que se volta, no final das contas, contra o próprio criador e que aameaça entregar a liberdade do eu ao abismo sem fundo.Se a frase em que se define como “um homem que caminha só em meio às trevas”estiver correta, Descartes percebeu que sua proposta de fazer da filosofia um camposeguro como o das matemáticas pelo meio da dúvida metódica, levava em si mesmaa possibilidade perigosa de destruir definitivamente a certeza metafísica que tantofez para reestruturar depois que a demoliu. Talvez seja por isso que se oculte atrásda máscara.

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SOCIOLOGIAO contexto histórico e intelectual dosurgimento da SociologiaÉmile DurkheimMax WeberKarl MarxMaquiavel e seu impactantepragmatismo político

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O objetivo deste artigo é, mesmo que sumariamente, fornecer ao leitor os conceitosfundamentais dos três principais autores da sociologia clássica (Durkheim; Weber eMarx), principalmente no que se refere às suas contribuições metodológicas: ofuncionalismo positivista; a sociologia compreensiva e o materialismo histórico edialético. Além disto, busca-se atentar para os desdobramentos políticosproporcionados por estas formulações teóricas, principalmente aqueles tributáriosdo marxismo.A sociologia é uma ciência bastante jovem, nascida na segunda metade do séculoXIX, e que busca explicar a vida social através de um arcabouço teórico-conceitualconstituído a partir de um conjunto de métodos e técnicas específicos.Para melhor compreender esta ciência, faz-se necessário atentar para o contextohistórico e intelectual de seu nascimento, ou seja, de um lado, há que se analisar oprocesso de constituição do capitalismo moderno, com suas vicissitudes econtradições; e de outro, há que se buscar as referências intelectuais que vinham seprocessando desde o renascimento cultural do século XV. Esta contextualização éextremamente importante, visto que a sociologia, desde seu nascimento, teve (etem) por objetivo interferir na organização social, alterando (ou mantendo) as relaçõessociais de poder instituídas.A revolução industrial, muito mais do que a introdução da máquina a vapor, significouo estabelecimento de novas relações sociais de produção: de um lado, o empresáriocapitalista que concentrou os meios de produção e, de outro, uma gigantesca massade homens, mulheres e crianças miseráveis, submetidas a jornadas de trabalhodramáticas e extenuantes. O êxodo rural levou a uma urbanização acelerada, comefeitos catastróficos: aumento da prostituição, do alcoolismo, da criminalidade, deepidemias, da mortalidade, etc. Em suma: a Revolução Industrial criou o proletariadourbano que, à medida que vivenciava as condições a que era submetido, articulava-se e identificava-se enquanto classe social.Foi este novo contexto (o desfazer-se de um mundo e o fazer-se de outro) que setornou matéria-prima para as primeiras análises sociológicas, na medida em produzianovas relações econômicas e sociais. Segundo Martins, “A sociologia constitui emcerta medida uma resposta intelectual às novas situações colocadas pela revoluçãoindustrial”1

Além da Revolução Industrial, as transformaçõesintelectuais que vinham se processando desde oRenascimento (século XV) também influenciaram opensamento sociológico. A observação e oexperimentalismo, largamente utilizados pelas asciências naturais, eram agora reivindicados para o estudoda sociedade, com o propósito de se formular leis geraisque retirassem dos “deuses” o poder sobre o “devir”histórico, recolocando, assim, o homem enquanto sujeitoda história.Nesse sentido, os iluministas (século XVIII) contribuíramde forma significativa, denunciando as instituições doAntigo Regime, como “irracionais” e “injustas”, queatentavam contra a liberdade individual e a igualdadesocial. Desta forma, os pensadores iluministasconferiram ao conhecimento um caráter crítico e negadorda realidade sobre a qual se debruçavam. Em poucaspalavras, os pensadores burgueses se valiam doconhecimento nascente como instrumento de luta contrao absolutismo e as instituições feudais, que dificultavama plena constituição da empresa racional capitalista.

O contexto histórico e intelectualdo surgimento da Sociologia

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Os ventos revolucionários (revoluções industrial e francesa) desorganizaram asociedade feudal. A tarefa que se colocava, então, aos primeiros sociólogos era,portanto, a compreensão das leis que regiam os fatos sociais, para assim, reorganizare reordenar a nova sociedade, com vistas ao progresso econômico e social.Visto que a sociologia nasceu em meio ao antagonismo de classes típico docapitalismo (burguesia x proletariado), esta ciência foi e é objeto de disputas acirradasacerca de seu objeto de estudo e de seus métodos de análise, gerando assim distintas“escolas sociológicas” que sustentaram e sustentam posições políticas.Os fundadores da sociologia (Comte e Durkheim), ao mesmo tempo em que foraminfluenciados pelos iluministas, o foram também pelos chamados “profetas dopassado” (pensadores conservadores), que não viam progresso numa sociedadealicerçada na indústria, na cidade e na ciência, na medida em que estastransformações colocavam em risco a propriedade, a autoridade, a religião e, portanto,a vida. Não é mera coincidência o fato de que os primeiros estudos sociológicosatentarem para instituições sociais como a família e a religião, e sua significânciapara a manutenção da ordem social. Foi neste contexto que a ciência substituiu areligião, enquanto elemento de conservação e reprodução da vida social. Portanto,no momento de sua formação, a sociologia assumiu um caráter conservador,buscando por fim ao estado de “anarquia” e “desordem” reinantes naqueles tempos.Augusto Comte, por exemplo, buscava com sua filosofia positiva, a reconciliaçãoentre a “ordem” (defendida pelos conservadores) e o “progresso” (defendido pelosiluministas). Para ele, a ordem era condição fundamental para o progresso.Porém, não foi a sociologia nascida do espírito positivista que questionou osfundamentos da sociedade capitalista. Somente mais tarde, com os movimentossocialistas, a sociologia se tornou manancial teórico para a luta dos trabalhadores.Feitas as apresentações, vejamos, agora, os elementos fundamentais da teoriasociológica clássica.

1 MARTINS, Carlos Benedito.O que é sociologia. Coleção

Primeiros Passos, nº 57. SãoPaulo, Brasiliense, 1994. 38ª

edição, p.16.

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Um dos grandes méritos de Durkheim foi, sem dúvidas, estabelecer a especificidadedo objeto sociológico, conferindo assim caráter científico à sociologia nascente.Segundo ele, a sociologia pode ser definida como a “ciência das instituições”, comoa ciência dos “comportamentos instituídos” pela sociedade. Para compreender as“regularidades” presentes nas instituições e nos comportamentos instituídos nasdiversas sociedades, elaborou o conceito de fato social, que abarca

“toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior;ou ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria,independente das manifestações individuais que possa ter”.2

Em outras palavras, os fatos sociais constituem a moral social e, para reconhecê-los, é necessário atentar para seus efeitos sobre a coletividade, determinando suacoesão, ou não. Devem, ao mesmo tempo, apresentar existência objetiva,independentemente dos desejos individuais; exterioridade, na medida em que agesobre os indivíduos; e coerção, impondo-se aos indivíduos de forma mais ou menosviolenta.Dessa forma, dadas as especificidades do fato social, parece justo buscarmos suaexplicação não no indivíduo, mas na vida coletiva, na medida em que

“uma coletividade tem as suas formas específicas de pensar e de sentir, às quais os seus membrosse sujeitam, mas que diferem daquelas que eles praticariam se fossem abandonados a si mesmos.Jamais o indivíduo, por si só, poderia ter constituído o que quer que fosse que se assemelhasseà idéia de deuses, aos mitos e aos dogmas das religiões, à idéia de dever e da disciplinamoral.”3

Assim, os fatos sociais são formados pelas representações coletivas, ou seja, pelaidéia que a sociedade faz dela mesma, formada a partir do acúmulo de experiênciasao longo de gerações e manifestando-se através dos conceitos, traduzidos nas normasde convivência e na comunidade lingüística de um grupo ou nação.As normas que unem os membros de um grupo se manifestam de maneira mais oumenos intensa dependendo do grau de solidariedade que ali impere. Alguns fatossociais estão menos consolidados, como a moda, e por isso são denominados comomaneiras de agir. Outros fatos sociais encontram-se cristalizados, como as normasjurídicas e a língua, sendo denominados como maneiras de ser. Mesmo que emgraus diversos, ambos existem externa e independentemente dos indivíduos, aomesmo tempo em que se lhe impõem. São, portanto, fatos sociais.Um argumento bastante forte no sentido de se provar a objetividade, a exterioridadee a coerção presentes nos fatos sociais é sua necessidade de imposição aos indivíduosdesde a mais tenra idade: o que faz a família, ensinando-nos normas decomportamento social? O que faz a escola? Educamos e somos educados não comoqueremos, mas seguindo normas de valoração socialmente atribuídas.Por outro lado, esta adequação ao sistema não significa a impossibilidade de erguer-se contra ele, dependendo de quão grave for a ofensa cometida, mas deve-se estarciente do preço a ser pago. Que o digam as bruxas e os hereges, durante a IdadeMédia. Que o digam os defensores do aborto, da descriminalização das drogas ouda união civil entre homossexuais.Outro aspecto bastante interessante sobre os fatos sociais diz respeito à sua dualidade.Na medida em que o fato social reside na moral coletiva e não no indivíduo que oencarna, nos é imposto através da coerção. Portanto, era-se de esperar que a eleresistíssemos, mas ao contrário, a ele aderimos, pois tudo o que eleva a sociedadetambém nos eleva. Mesmo que nos seja penoso, nós o desejamos, pois sua existêncianos precede e sucede, garantindo a continuidade do grupo. Segundo Durkheim,

“ao mesmo tempo em que as instituições se impõem a nós, aderimos a elas; elas comandam enós as queremos; elas nos constrangem, e nós encontramos vantagem em seu funcionamento eno próprio constrangimento.”4

Estabelecida a especificidade do objeto de estudo, Durkheim preocupou-se com ométodo que deveria orientar as pesquisas sociológicas, garantindo a objetividade do

Émile Durkheim(1858 – 1917)

2As Regras do MétodoSociológico.3 Formas Elementares da VidaReligiosa.4As Regras do MétodoSociológico.

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conhecimento, proporcionando assim caráter científicoà nova disciplina acadêmica. Neste sentido, na própriagênese do método funcionalista (tributário do métodopositivista)5 , é evidente a influência exercida pelasciências naturais, notadamente pela biologia. Não é meracoincidência a larga utilização de termos comoorganismo social, tecido social, atomização e tantosoutros na elaboração de seus conceitos.O primeiro e mais importante procedimento do sociólogoao analisar os fatos sociais deve ser sua coisificação,pois somente tratando-os como coisas nos é possívelafastar as pré-noções e os pré-conceitos que povoamnossa mente, e impedem o acesso ao verdadeiroconhecimento. Para Durkheim,“A coisa se opõe à idéia (...) É coisa todo objeto do conhecimentoque a inteligência não penetra de maneira natural (...) tudo o que oespírito não pode chegar a compreender senão sob a condição desair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação,passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e maisimediatamente acessíveis para os menos visíveis e profundos”.6

Este distanciamento em relação ao objeto é umaconseqüência direta da concepção durkheimiana deciência, que busca conhecer as relações causaisexistentes na sociedade, não se preocupando comjulgamentos de valor acerca do que é observado. Em

outros termos, Durkheim propõe a cisão entre sujeito do conhecimento e objeto aser conhecido. Uma implicação política desta concepção metodológica é, sem dúvida,a incapacidade do sujeito ser construtor de sua própria história, aparecendo, antes,como mero resultado do jogo de forças existentes na sociedade.Delimitado o objeto e exposto o método, passemos a uma das principais preocupaçõesde Durkheim: o que mantinha os homens unidos em sociedade? Para responderesta questão, elaborou o conceito de solidariedade social, que seria o responsávelpela coesão dos grupos sociais, em graus diversos, dependendo da similaridade ounão das consciências individuais ao ser social. Tal preocupação decorre da situaçãoconcreta da França no século XIX, onde a rápida industrialização e urbanizaçãohaviam destruído as formas de solidariedade social existentes no Antigo Regime,sem contudo substituí-las por outras. Em outros termos, imperava o desregramentosocial.7

Assim, quanto maior for a consciência coletiva, maior será a coesão social daquelegrupo, e menores serão, portanto, as possibilidades do indivíduo manifestar-se,diferenciando-se do grupo. Por outro lado, quanto menor for a consciência coletiva,menor será a coesão social e, logo, as possibilidades do indivíduo diferenciar-se dogrupo aumentam consideravelmente.Nas “sociedades simples” vigora a solidariedade mecânica. Os elementos quecompõem a coletividade encontram-se unidos pela similitude, sendo portanto tãosolidários, que a própria idéia de indivíduo perde o sentido. Exemplos deste tipo desolidariedade encontravam-se na África e na Ásia, onde reminiscências do passadopodiam ser observadas sob as formas de “hordas” e “clãs”, sociedades“inorganizadas”, nas quais o tipo coletivo superava, em força, o tipo individual.Com o aumento da densidade moral, proporcionado pela urbanização, e com oaumento da densidade material, proporcionado pela industrialização, surgiram as“sociedades complexas”, nas quais vigora a solidariedade orgânica, conseqüênciadireta do processo de divisão social do trabalho. Nesta situação, o indivíduo ressurge,na medida em que se diferencia no interior do “organismo social”, e nele integrando-se pela função que desempenha na produção, tanto que

“chegará o dia em que toda organização social e política terá uma base exclusivamente ouquase exclusivamente profissional.”8

Como dito anteriormente, buscando a objetividade do conhecimento, Durkheimcondenava a utilização de pré-conceitos na análise sociológica. Como, então,estabelecer um critério objetivo que diferenciasse as sociedades simples das

5 Sobre o positivismo, consultar,entre outros: RIBEIRO Jr., João.

O que e positivismo. ColeçãoPrimeiros Passos, n 72; SãoPaulo, editora brasiliense, 8ª

edição, s/d. (1º edição, 1982)6As Regras do Método

Sociológico.7 Sobre as condições sociais daFrança no século XIX, consultar,entre outros: BRESCIANI, Maria

Stella M. Londres e Paris noséculo XIX: O espetáculo da

pobreza. Coleção Tudo éHistória, nº 52; São Paulo,editora brasiliense, 1982.

8A Divisão do Trabalho Social.

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sociedades complexas? Visto que um fato social se manifesta pelo seu efeito nacoletividade, Durkheim elegeu as normas do direito como um fato social capaz depossibilitar a comparação entre os tipos de sociedades, e assim diferencia-las noque se refere às formas de solidariedade.Nas “sociedades primitivas” onde o tipo coletivo é forte, a atitude desviante éconsiderada uma ofensa ao grupo e, portanto, com base no costume, o infrator épunido de forma repressiva, impondo-lhe uma humilhação pública, privando-o doconvívio social e, não raro, privando-o da própria vida. Tomemos como exemplo amoral islâmica, pela qual uma adúltera deve ser punida com o apedrejamento público:o adultério fere a todos, e não apenas ao marido traído. Mesmo porque as puniçõesrecobrem-se de caráter ritualístico, o que reanima e vivifica os laços de solidariedadeperturbados pela ofensa. “Quando reclamamos a repressão ao crime, não somos anós que queremos pessoalmente vingar, mas a algo de sagrado que sentimos, maisou menos confusamente fora e acima de nós”.9

Nas “sociedades complexas” onde o tipo coletivo é fraco e, portanto, os indivíduosencontram-se unidos pela dessemelhança. Nestas sociedades, a atitude desviantede seus membros é punida com base num código racionalmente estabelecido, atravésda aplicação de penas restituitórias, pelas quais o infrator é obrigado a restabelecero estado das coisas e das relações afetadas por sua conduta. Exemplos destaspenas podem ser observados nos códigos civil e comercial.Em suma, é agindo sobre os indivíduos que o fato social se manifesta, unindo-os porsemelhança ou por dessemelhança, de maneira mais ou menos intensa.Em uma de suas mais instigantes obras, Durkheim analisou o suicídio enquanto fatosocial. Aparentemente, os motivos que levam um indivíduo a retirar a própria vidadeveriam ser buscados na psicologia. Porém, por ser o suicídio um fato social, seusmotivos devem ser buscados na maneira pela qual o indivíduo se relaciona com otipo coletivo no qual está inserido. Desta perspectiva, o suicídio deve ser encaradocomo algo exterior ao indivíduo.São três os tipos de suicídio. O suicídio egoísta ocorre quando o indivíduo sente-sedeprimido, desamparado. Tal situação ocorre em sociedades que atravessamprocessos de desintegração do tipo coletivo: a sociedade moderna, na qual o indivíduoé forte o suficiente para negar, egoisticamente, a moral coletiva enfraquecida.O suicídio altruísta, mais freqüente nas sociedades simples, ocorre justamentenaqueles grupos em que a moral coletiva é forte e, por aceita-la inconteste eintegralmente, o indivíduo aceita privar-se da própria vida em nome de um tiposocial forte, em nome da coletividade. Não são outros os sentimentos manifestadosno 11 de setembro. O suicídio, neste caso, é um dever, uma honra que, se nãocumprido, resulta em perda da estima pública.Por fim, há o suicídio anômico, que acomete os indivíduos justamente devido a nãoexistência de uma moral coletiva forte. Mais comum nas “sociedades complexas”,o suicídio anômico pode ser considerado a atitude extrema de quem não suportou oestado de anomia social, não suportou a frouxidão dos laços sociais dos quais dependepara sentir-se pertencente a um determinado grupo. Este tipo de suicídio seria oresultado da ausência de normas, fruto do processo de decomposição de antigasformas de solidariedades social, sem que estas fossem substituídas por novas formas.Era a sociedade industrial que assistia ao fim dos mecanismos que controlavam aspaixões e os humores individuais: a família, a religião e a corporação de ofíciohaviam, enfim, perdido seu poder coercitivo e moralizador.Segundo Durkheim, “moral é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força oindivíduo a contar com seu próximo, a regular seus movimentos com base em outracoisa que não os impulsos de seu egoísmo e a moralidade é tanto mais sólida quantomais numerosos e fortes são esses laços.”10 Assim, o estado de anomia que severificava na França da segunda metade do século XIX era, antes de tudo, o resultadode uma crise moral, que livre dos laços regulamentadores e protetores do mundofeudal, ainda não havia encontrado novos mecanismos de solidariedade social. Emoutras palavras, o desenvolvimento material não foi acompanhado dodesenvolvimento de uma moralidade capaz de conter os interesses e estabelecerlimites, manifestado-se sobretudo nas desordens e nos conflitos sociais, que remetiama sociedade novamente ao “estado de natureza”, assim como foi definido por Hobbesno século XVII.

9A Divisão do Trabalho Social.10 Adivisão do Trabalho Social.

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A revolução industrial trouxe nefandos efeitos sobre a família, que de estendida,passou a ser nuclear, quando não se desintegrou totalmente diante da miséria e dodesespero. As religiões, expostas a multiplicidade das correntes de pensamento,perdeu seu caráter sagrado, perdeu seu poder de coerção. As corporações de ofíciohaviam ruído, e com elas, suas regulamentações sobre a atividade econômica. Diantede tanto desregramento, Durkheim aponta a divisão social do trabalho como a novafonte possível de solidariedade social, substituindo o papel antes desempenhadopela família. E se o grupo profissional ainda não desempenha tal função, isso édevido a uma anômica divisão do trabalho que, por sua vez, precisa ser corrigida.Para que a divisão do trabalho gere solidariedade, faz-se necessário que ostrabalhadores percebam que “suas ações têm um fim fora de si mesmas, Daí porespecial e uniforme que possa ser sua atividade, é a de um ser inteligente, porqueela tem um sentido e ele o sabe”.11

Nesta perspectiva, a luta de classes que sacudiu a Europa durante quase todo oséculo XIX é vista como uma anormalidade no nível das relações sociais. Durkheimexplica a regularidade, não sua quebra.Assim, a moral é desejada e desejável, visto que é sobre ela que a própria sociedadese sustenta, e é somente em sociedade que somos humanos, que dominamos aspaixões e passamos a considerar outros interesses que não os próprios.Para substituir a religião, enquanto fator moralizador, Durkheim propõe que se crieuma espécie de religião laica, fundada na razão, que exerceria um poder coercitivo,autorizado pela própria crença social atribuída a racionalidade, que se manifestasob a forma de conceitos, de categorias do entendimento que expressam “coisas”sociais. Aqui, novamente, se pode observar um tributo ao positivismo, visto queComte também havia proposto um sistema político-religioso destinado a reformar asociedade, através de seu “tratado de sociologia instituindo a religião da humanidade”.

11ADivisão do Trabalho Social.

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O pensamento weberiano pode ser enquadrado no contexto geral de crítica aopositivismo, até então reinante nas ciências humanas. Neste sentido, podemos afirmarque trouxe nova luz metodológica às explicações sociológicas, na medida em queestabeleceu diferenças substanciais entre as “ciências da natureza” e as “ciênciasdo espírito”. Herdeiro intelectual de Wilhelm Dilthey (1833-1911), de quem foisecretário particular, Weber adota a distinção entre explicação e compreensão.Segundo Tragtenberg, “A compreensão seria o modo típico de proceder das ciênciashumanas, que não estudam fatos que possam ser explicados propriamente, masvisam aos processos permanentemente vivos da experiência humana e procuramextrair deles seus sentido”12 Esta é a origem da sociologia compreensiva weberiana,que busca a “captação da relação de sentido” da ação humana. No entanto, é apartir do conceito de vontade de poder, elaborado por F. Nietzsche (1844-1900) quese torna possível a compreensão da realidade social, política e econômica.Além de Dilthey e Nietzsche, outro intelectual com quem Weber dialoga é o próprioMarx, com quem compartilha o mesmo tema: o capitalismo ocidental. No entanto,critica de maneira ácida o monismo causal (de ordem econômica) tão comum nomarxismo vulgar. Portanto, foi justamente na busca de novas formas de explicar odevir que Weber recuperou o sentido atribuído às idéias dos agentes históricos,como instrumento para a compreensão de aspectos de uma realidade que, no seutodo, é incompreensível, mas que tem uma marca inquestionável: a marcha daracionalidade.Para Weber, a sociologia é a ciência que busca apreender o sentido contido numaação social, observando as “regularidades” expressas nos usos, nos costumes e nassituações de interesse, estabelecendo relações possíveis, a fim de captar e interpretara “conexão de sentido em que se inclui uma ação”, dando-lhe, portanto, carátersocial. Assim, ganha destaque em sua construção teórica o conceito de ação social,entendido como um “ato, omissão ou permissão”, dotado de sentido subjetivo,socialmente atribuído pelo sujeito da ação.Visto que a realidade, como se nos apresenta, é incognoscível, Weber elabora tiposideais a partir dos quais busca explicar os sentidos atribuídos às condutas humanas,estabelecendo uma escala valorativa que parte da irracionalidade e, à medida que omundo se desencanta, avança rumo a total e completa racionalidade. Definidos apartir de critérios subjetivos do cientista, ironicamente são os tipos ideais osresponsáveis metodológicos pela objetividade do pensamento weberiano. Nestesentido, o tipo ideal constitui-se numa abstração elaborada a partir da observaçãoempírica, naquilo que ele tem de particular e não naquilo que ele tem de genérico,como propunham os positivistas.O tipo ideal aponta para como se daria a ação se seu sentido fosse racionalmenteatribuído, orientando se para um determinado fim e, para isso, utilizando-se dosmeios mais eficazes possíveis. Somente a partir deste tipo de abstração do realseria possível comparar as realidades concretas umas em relação às outras, doresultaria a objetividade do conhecimento científico.São quatro os tipos ideais de ação social, que justamente por serem construçõesintelectuais, muito dificilmente se verificam empiricamente em estado puro,apresentando-se, no mais das vezes, de forma difusa. As ações sociais racionais,cujos sentidos são atribuídos com relação aos fins e aos valores, podem, porexcelência, ser observadas nas condutas econômicas e científicas; por outro lado,as ações sociais irracionais têm seus sentidos atribuídos pelo afeto e pela tradição,típicos de sociedades que ainda não se encontram no mesmo nível civilizatório dasociedade européia, e que por isso são denominadas “sociedades simples”.Adiferençaentre os tipos ideais de ações sociais é, portanto, determinada pelo sentido subjetivoatribuído pelo agente da ação. Por outro lado, isto não quer dizer que o sujeitopossui um leque infinito de opções de sentidos. Estes são franqueados pelo gruposocial, que os tem muito bem definidos, numa escala de valores positivos e negativos,expressos através das regras de etiqueta, no uso da norma culta da língua, no gosto

Max Weber(1864 – 1920)

12 TRAGTENBERG, Maurício.“Apresentação”. In: WEBER,Max. Os Economistas, SãoPaulo, Nova Cultural, 1997, p.06.

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artístico, etc. Outra decorrência metodológica de tal conceituação diz respeito aoslimites da sociologia, visto sua dificuldade em apreender os sentidos atribuídos emações pautadas pelo afeto e pela tradição, portanto não racionais.Cabe uma distinção entre ação social e modo de conduta. O modo de conduta nãoé dotado de sentido subjetivo, visto tratar-se de uma ação homogênea, na qual osujeito perde-se na totalidade; ou tratar-se de uma ação de massa, na qual não sepode identificar os sentidos individualmente atribuídos.Quando vários agentes entram em contato estabelece-se uma relação social, naqual os agentes dotam suas ações de sentido subjetivo referindo-se mutuamente,mesmo que não haja coincidência de significados. Agem estabelecendoprobabilidades esperadas de conduta, atribuem significado à própria ação a partir dosignificado que acreditam que o outro a ela esteja atribuindo. Quando o que balizaos significados das ações é a razão, mais facilmente estas relações são expressassob a forma de normas, ou seja, relações sociais dotadas de racionalidade e, portanto,capazes de sustentar uma relação associativa, visto que o sentido da ação de seusmembros será atribuído com relação a fins e valores. Porém, quando os significadosdas ações sociais são fundados no sentimento irracional (afetivo ou tradicional) depertencimento mútuo, temos uma relação comunitária, típica das chamadas“sociedades simples”.Como dito anteriormente, para Weber a multiplicidade do real é impenetrável aoespírito, em sua totalidade, na medida em que o econômico, o jurídico, o político, osocial e o cultural constituem-se em “esferas” autônomas da existência, com lógicaspróprias, e que se combinando das mais diversas formas, dão origem às mais diversasconfigurações sociais. Em alguns casos, o agente da ação dota-a de significadocombinando a partir de duas ou mais “esferas” e, ao sociólogo cabe buscar, atravésdo método compreensivo, as conexões de sentido.Esta construção teórica tem por objetivo, entre outros, proceder ao estudo de umdos temas mais caros à sociologia, qual seja: a hierarquia social ou, em outrostermos, a distribuição do poder dentro de determinados agrupamentos sociais. Assim,para responder o por que os sujeitos históricos aceitam seus “papéis sociais”, Weberelabora sua clássica distinção entre os conceitos de poder e dominação:

“Poder significa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social,mesmo contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”13

Por outro lado, o conceito de dominação busca compreender a probabilidade deobediência ao poder, definindo-o como

“um estado de coisas pelo qual uma vontade manifesta (mandato) do dominador ou dosdominadores influi sobre os atos de outros (do dominado ou dosdominados), de tal modo que em um grau socialmente relevante,estes atos têm lugar como se os dominados tivessem adotado, por simesmos e como máxima de sua ação, o conteúdo do mandato(obediência).”14

A partir desta distinção, Weber busca apreender osmecanismos que fazem com que os homens acreditemna legitimidade, na validez de determinado ordenamentosocial. Por exemplo: Na sociedade feudal, o critério devaloração social era dado pela origem; na sociedadecapitalista, pela propriedade de certos bens econômicosque determina a posição social. Em outras palavras,Weber procura quais são as orientações que seguemos sujeitos ao atribuírem sentido às suas ações: tradição;afeto; valores; fins.Nesta perspectiva, novos tipos ideais são concebidospara se explicar a distribuição do poder dentro dedeterminada ordem social: classe, relacionada a riqueza;estamento, relacionado a distinção; e partido,relacionado ao poder político.Ocorre uma distinção a partir da situação de classequando as ações sociais dos sujeitos recebemsignificados definidos pelo mercado, como a propriedade

13 Economia e Sociedade, p.49.

14 Economia e Sociedade.

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ou não dos fatores de produção. A própria definição weberiana para classe socialrevela a centralidade do mercado:

“falamos de uma classe quando: 1) é comum a um certo número de pessoas um componentecausal específico de suas probabilidades de existência na medida que 2) tal componente estejarepresentado exclusivamente por interesses lucrativos e de posse de bens 3) em condiçõesdeterminadas pelo mercado (de bens ou de trabalho)”.15

Outra é a situação quando a distinção dentro do grupo for dada pelo pertencimentoa grupos de status, e celebrado por ritos e convenções sociais, com destaque para ocasamento endogâmico. É bastante clara a distinção entre uma ordem social centradano econômico e outra no prestígio:

“em oposição às classes, os estamentos são normalmente comunidades, ainda que, comfreqüência de caráter amorfo. Em oposição à ‘situação de classe” condicionada por motivospuramente econômicos, chamaremos ‘situação estamental’ a todo componente típico do destinovital humano condicionado por uma estimativa específica – positiva ou negativa – da ‘honra’adscrita a alguma qualidade comum a muitas pessoas (...) Quanto ao seu conteúdo, a honracorrespondente ao estamento é normalmente expressa, antes de tudo, na exigência de um modode vida determinado para todos os que queiram pertencer ao seu círculo”.16

Como para Weber as sociedade marcham a passos largos para a racionalidadetotal, cada vez menos a distribuição do poder vai basear-se na distinção de status e,cada vez mais, na ordem econômica. No entanto, mesmo assim, a tipificação combase no status constitui-se um recurso intelectual ainda capaz de apreender arealidade social. Enfim, tanto uma como outra ordem social, ao nível da disputa pelopoder, geram partidos, cuja ação é sempre racional, pautada pelo fim último deobtenção do domínio sobre o aparelho coercitivo, transformando-se assim em poderpolítico.O conceito de dominação ocupa posição central na obra de Weber, na medida emque este se preocupa com os processos sociais que conferem validade a uma ordem,que mantém persistentes no tempo os sentidos atribuídos às ações sociais. Emoutros termos, o que produz a legitimidade da dominação?Posto que Weber busca compreender como se processa a produção da legitimidade,atentemos para as três formas possíveis (tipos ideais) de dominação legítima: atradicional, a carismática e a legal.

“A autoridade do ‘ontem eterno’, isto é, dos mores santificados pelo reconhecimentoinimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo. É o domínio ‘tradicional’exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora (...) Há a autoridade do dom dagraça (carisma) extraordinário e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal e a confiançapessoal na revelação, heroísmo ou outras qualidades da liderança individual. É o domínio‘carismático’ exercido pelo profeta ou – no campo da política – pelo senhor de guerra eleito,pelo governante plebiscitário, o grande demagogo ou o líder do partido político. (...) Finalmente,há o domínio da ‘legalidade’, em virtude da fé na validade do estatuto legal e da ‘competência’funcional, baseada em regras racionalmente criadas. Nesse caso, espera-se o cumprimento dasobrigações estatutárias. É o domínio exercido pelo moderno ‘servidor de estado’ e por todos osportadores do poder que, sob este aspecto a ele se assemelham.” 17

Influenciado pelo conceito de “vontade de poder”, Weber afirma que classes,estamentos e partidos são fenômenos de distribuição do poder no interior de umaordem social, e que é no interior das estruturas de dominação que se dá a luta peladominação, encarnada nas relações sociais, nas quais os agentes tentam validar(legitimar) valores e fins como motores das ações sociais.Embora a estrutura de poder burocrática seja a forma mais racional de organizaçãoda dominação, ela pode ser abalada pelo surgimento da liderança carismática que,por seus atributos pessoais, torna legítimas as regras por ela criadas ou reveladas.Talvez a obra mais conhecida de Weber seja “A Ética Protestante e o Espírito doCapitalismo”, na qual o autor demonstra como o protestantismo legitimou aracionalização das condutas sociais de seus fiéis, estimulando a prática capitalista.A Reforma Protestante, vetou a salvação pela contemplação, impondo aos crentesa necessidade de uma vida santa, acética, determinando, assim, os sentidos que ossujeitos davam às suas ações sociais, principalmente às econômicas.Foi justamente a vasta presença de protestantes nos países de capitalismo avançadoque sugeriu a Weber a possível relação entre a ética calvinista e o capitalismomoderno. Segundo preceitos religiosos, para o calvinista, “a perda de tempo (...) é oprimeiro e o principal de todos os pecados (....) A perda de tempo através da vida

15 Economia e Sociedade.16 Economia e Sociedade.17 A Política como Vocação.

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social, conversas ociosas, do luxo e mesmo do sono além do necessário para asaúde (...) é absolutamente dispensável do ponto de vista moral.”18 “Tempo é dinheiro”.“O bom pagador é dono da bolsa alheia”. Estas são máximas que podem ser citadascomo demonstração do quanto a ética religiosa influiu no comportamento econômicodos crentes, que então tomam o trabalho como um valor em si mesmo, como umamanifestação da graça divina. “Na verdade, o que é aqui pregado não é uma simplestécnica de vida, mas sim uma ética peculiar, cuja infração não é tratada como umatolice, mas como um esquecimento do dever. (...) Não é o mero bom senso comercial(...) mas sim um ethos.”19

De fato, este ethos religioso resultou diretamente em capitalistas empreendedores etrabalhadores disciplinados e dedicados. Assim, influindo decisivamente na vida ena prática econômica, Weber evidenciou outras causas possíveis na constituição docapitalismo ocidental, além das determinações econômicas do marxismo, o que nãosignifica esvaziar seu conteúdo.Expostos, mesmo que sumariamente, os conceitos centrais da sociologia weberiana,resta-nos refletir um pouco mais acerca da prática metodológica da sociologiacompreensiva, bem como acerca das conseqüências sociais da racionalização.Diferentemente de Durkheim, Weber não acredita na coisificação, no afastamentodas pré-noções, visto que na própria seleção do que será estudado, o sociólogomanifesta seus valores subjetivos. Mesmo assim, faz-se necessário um instrumentoconceitual que guie o pesquisador na busca de conexões causais, o conceito de tipoideal, que almeja captar e explicar os traços essenciais daquelas conexões.Mas se os valores do cientista se manifestam na delimitação do objeto, como garantira objetividade do conhecimento científico? Como se relacionam ciência e valores?A razão guiará o cientista na seleção e ponderação dos valores que balizarão suapesquisa e condicionarão seus resultados.Novamente a razão. A humanidade caminha para a racionalização das ações e dasrelações sociais, regulamentadas, cada vez mais pela burocracia, enquantoinstrumento de dominação legitima. Weber defende o estabelecimento de umadominação racional-legal capaz de otimizar a gestão dos negócios do Estado e,assim, serve de inspiração para grande parte das ciências administrativa e política.Por outro lado, esta mesma tendência à racionalização da vida promoveu odesencantamento do mundo, vazio de rituais, vazio de símbolos, vazio do sagrado.Ou seja, chato pra caramba.

18 A Ética Protestante e oEspírito do Capitalismo.

19 A Ética Protestante e oEspírito do Capitalismo.

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Dentre os autores clássicos, provavelmente, Marx seja o mais amado e, ao mesmotempo, mais odiado. Durante todo o século XX, a ciência e os movimentos políticoscentraram suas discussões e disputas na afirmação ou na negação da teoria marxista.Herdeiro do ideário iluminista, Marx acreditava que a razão era o instrumento não sócapaz de apreender a realidade, mas também, de construção de uma sociedademais justa, na qual a noção de progresso levaria à humanidade à liberdade e à totalrealização das potencialidades individuais e coletivas. Pensador e homem de ação,Marx legou-nos uma vasta obra, de difícil leitura, da qual retiramos apenas algunsconceitos fundamentais.O método de análise marxiano parte da dialética hegeliana, para subvertê-la. Numclichê: Marx busca, com seu método, proceder a “negação da negação”. Hegel (1770-1831) identifica, com sua filosofia, o papel desempenhado pela contradição e peloconflito como sendo a própria substância da realidade que se supera constantemente,num processo de conservação, negação e síntese, apontando para a transitoriedadedo pensamento, bem como das formas econômicas e sociais por ele geradas. Porém,para Hegel, este movimento de superação ocorre nos espíritos humanos, onde adefinição do termo só ocorre pelo seu contrário. Marx se apropria de tal procedimentoe o amplia, na medida em que se vale dele para analisar o processo de produção,conferindo-lhe materialidade histórica. Nas palavras do próprio Marx:

“Meu método dialético não apenas difere em sua base do hegeliano como, além disso, étotalmente inverso deste. Para Hegel, o movimento do pensamento, que ele encarna com onome de Idéia, é o demiurgo da realidade, que não é mais do que a forma fenomênica da Idéia.Para mim, ao contrário, o movimento do pensamento é o reflexo do movimento real, transportadoe transposto no cérebro do homem... a compreensão positiva das coisas existentes inclui, aomesmo tempo, o conhecimento de sua negação fatal, de sua destruição necessária, porque aocaptar o próprio movimento, do qual todas as formas acabadas são apenas uma configuraçãotransitória, nada pode detê-la, porque em essência é crítica e revolucionária.”20

Em outros termos, o método dialético permite que a análise sociológica entenda astransformações sociais e econômicas, pois é através da análise critica da realidadeque o pensamento identifica e analisa o que é, e ao mesmo tempo, apreende o “vira ser” contido naquilo que é, sob a tensão da contradição. A riqueza gerada com oadvento da sociedade industrial trouxe consigo seu contrário, ou seja, uma massade trabalhadores miseráveis. Eis a mais gritante das contradições do sistemacapitalista que, em si, contém sua própria superação.Marx, utilizando-se do método dialético,e negando o idealismo hegeliano, parte daanálise do real, pois “são os indivíduos reais, sua ação e as suas condições materiaisde vida, tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua própriaação(...) O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existênciade indivíduos humanos vivos.”21

E aquilo que os indivíduos são (ou pensam que são) parte de suas condições materiaisde existência, pois todo o edifício marxista se ergue sobre a base da infra-estruturaeconômica, sobre a forma como os homens produzem os bens materiais e imateriaisde sua própria existência. Desta forma, nega a naturalidade e o caráter eterno domodo de produção burguês, apontando para sua historicidade e, portanto, para suatransitoriedade.De posse de seu materialismo histórico e dialético, Marx identifica na produçãomaterial da existência a centralidade de sua construção teórica, atentando para suasformas de produção e reprodução, pois ele:

“...os homens devem estar em condições de viver para ‘fazer a história’. Mas, para viver, épreciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiroato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades,a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamentale toda história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias etodas as horas, simplesmente para manter os homens vivos.”22

Karl Marx(1818 – 1883)

20 O Capital.21 MARX, K. e ENGELS, F. AIdeologiaAlemã. São Paulo,Hucitec, 1987, 6ª edição, p.p.26-27.22 MARX, K. e ENGELS, F. AIdeologiaAlemã. São Paulo,Hucitec, 1987, 6ª edição, p.39.

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E, para se manterem vivos, os homens trabalham. Nestaperspectiva, o conceito de trabalho ganha relevância,entendido como as relações que os homens estabelecemcom a natureza e entre si, para a produção e reproduçãoda vida, acumulando conhecimento que, ao longo degerações, é transmitido pela cultura. Notemos que, paraproduzir os meios materiais necessários à vida, oshomens estabelecem relações sociais.Porém, estas relações sociais de produção dependemdo grau de desenvolvimento das forças produtivas que,por sua vez, demonstram o grau de domínio humanosobre a natureza. Em conjunto, forças produtivas erelações sociais de produção determinam as formasassumidas pelas diversas sociedades ao longo dahistória.Em resumo, o conceito de forças produtivas refere-seaos instrumentos e habilidades que possibilitam ocontrole das condições naturais, e seu desenvolvimentoé cumulativo (máquina à vapor, energia elétrica, energiaatômica). O conceito de relações sociais de produçãofaz referência à maneira como os homens se organizampara produzir; implica em diferentes formas de divisãodo trabalho, em diferentes formas organização daprodução e distribuição, de posse e propriedade dos

meios de produção, bem como em suas garantias legais, constituindo-se, dessaforma, no substrato para a estruturação das classes sociais.È importante notar, mais uma vez, que as relações sociais de produção e o níveltécnico as forças produtivas são produzidos por homens e mulheres durante oprocesso de produção e reprodução da vida material e, portanto, são históricos, sãotransitórios. Nas palavras de Marx:

“... o moinho movido a braço nos dá a sociedade dos senhores feudais; o moinho movido avapor, a sociedade dos capitalistas industriais. Os homens, ao estabelecerem relações sociaisvinculadas ao desenvolvimento de sua produção material, criam também os princípios, as idéiase as categorias conformes às suas relações sociais. Portanto, estas idéias, estas categorias, sãotão pouco eternas quanto as relações às quais servem de expressão.”23

Valendo-nos da metáfora do edifício social, pensemos as forças produtivas e asrelações sociais de produção formando, juntas, a infra-estrutura da sociedade; esta,sobre si, sustenta uma série de representações coletivas ideologizadas, como amoral, a religião, os códigos jurídicos, etc., ou seja, sustentando a supra-estrutura.Nas palavras de Marx:

“A consciência nunca pode Ser mais que o Ser consciente, e o Ser dos homens é o seu processoda vida real (...) Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina aconsciência.”24

A relação de determinação entre a infra e a supra-estrutura é objeto de acaloradosdebates no interior do pensamento marxista (e quantos reivindicam, ou reivindicaramo marxismo!). Num degradê que vai de Louis Althusser à E. P. Thompson há muitasinterpretações possíveis. Em nosso entender, há que se perceber que entre elasexiste, sim, uma relação dialética, na qual são possíveis múltiplas determinações.Não entender isso, é desperdiçar o essencial do pensamento marxista: sua filosofiada história.Foi o desenvolvimento das forças produtivas (e sua conseqüente divisão do trabalho)que gerou o excedente material possível de ser apropriado por não produtores, doque resulta surgimento das classes sociais, entendidas enquanto “lugar” ocupado noprocesso produtivo, representadas através de um esquema dicotômico: escravos epatrícios; servos e senhores; proletários e burgueses. A constatação da existênciadas classes sociais, bem como da relação entre elas, permitiu a elaboração de váriosoutros conceitos que foram apropriados pelo vocabulário político marxista, tais como:exploração; opressão e alienação.

23 MARX, Karl. Miséria de lafilosofía. Respuesta a la filosofía

de la miséria del señorProudhon.Buenos Aires, Siglo

XXI, 1974. p. 91.24A IdeologiaAlemã.

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É certo que a posição em relação aos meios de produção determina que a classeque os possua expresse sua potência ao nível da supra-estrutura, elaborando formasideológicas de representação.

“Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, tambémconsciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinamtodo âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda extensão e,conseqüentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtoresde idéias, que regulem a produção e a distribuição das idéias de seu tempo e que suas idéiassejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da época.”25

Se as classes existem e ocupam posições distintas no processo produtivo; e seexiste a apropriação, por parte de uns, da produção realizada por todos, existe umacontradição latente, que se sustenta na exploração econômica e nas diversas formasde opressão política, social, intelectual, etc. Se existe a contradição, é lícito supormosque as classes sociais se apresentam em luta.E é através da luta de classes que as contradições existentes no sistema fazem comque este supere a si mesmo, numa nova síntese histórica. Nesta luta, a classeexplorada assume o papel de classe revolucionária, ao menos potencialmente.

“As condições econômicas transformam primeiro a massa da população do país em trabalhadores.A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Assim,pois, esta massa já é uma classe com respeito ao capital, mas ainda não é uma classe para si.Na luta (...) esta massa se une, se constitui como classe para si.”26

Assim, fica claro que a efetivação do potencial revolucionário depende da capacidadeda classe superar o estado de alienação em que se encontra: de classe em si, énecessário que se transforme em classe para si, num salto qualitativo proporcionadopela consciência de classe. Não foi isso que fez a burguesia francesa ao cortar acabeça do rei?É da percepção da não correspondência entre as forças produtivas e as relações deprodução que surgem as condições materiais para a consciência de classe, porqueescancara aos explorados suas reais condições de existência, fazendo com quesurjam interesses comuns que se opõem a outros interesses, gerando assimidentidades de classe.Considerando que, em sua obra, Marx fez apenas apontamentos sobre as classes,nos parece oportuno reproduzir, aqui, a concepção de classe social com a qual maisnos identificamos, assim formulada por E. P. Thompson:

“a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadasou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outroshomens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus.Aexperiência é determinada,em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram - ou entraraminvoluntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas emtermos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais.”27

Tais considerações que, assim apresentadas, nos parecem elementares, foram naverdade fruto de uma demorada e cuidadosa análise do funcionamento do sistemacapitalista, considerado por Marx como a forma mais evoluída das formações sócio-econômicas já existentes. Nesse sentido, Marx se esforça por entender as relaçõesde classe no sistema capitalista.Sua análise parte do concreto, parte da análise da mercadoria, visto que sob ocapitalismo tudo se transformou em mercadoria, a forma mais elementar da riquezacapitalista. Porém, sob a mercadoria se esconde uma dupla identidade: valor deuso, quer satisfaça uma necessidade na esfera do consumo; valor de troca, querseja produzida com vistas a realizar-se no mercado. Toda mercadoria contém valorde troca, medido pelo tempo de trabalho social nela contido, que se materializa novalor de uso.Sob o sistema capitalista, tudo se transforma em mercadoria, inclusive a capacidadehumana de trabalhar. A força de trabalho é também uma mercadoria, porém bastantedistinta das demais, pois possui uma característica que lhe é própria: é a únicamercadoria capaz de criar valor.No nível das aparências, ao nível do mercado, a mercadoria força de trabalho élivremente trocada por uma determinada quantidade de dinheiro, capaz de garantira reprodução da força de trabalho. Tem-se a impressão que sujeitos livres ejuridicamente iguais trocam mercadorias de valor equivalente. Mas não, posto que a

25 MARX, K. e ENGELS, F. AIdeologiaAlemã. São Paulo,Hucitec, 1987, 6ª edição, p.72.26 Miséria da Filosofia.27 THOMPSON, E. P. AFormação da Classe OperáriaInglesa. A Árvore da Liberdade.Vol. I. Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1987, p. 10.

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mercadoria força de trabalho, ao transformar-se em trabalho efetivamente realizado,produz um valor superior àquele que lhe foi pago sob a forma de salário. Este sobretrabalho, realizado e não pago, recebe o nome de mais-valia, fonte do lucro capitalista,e expressão do nível de exploração à que o proletariado é submetido.A contradição, que ao nível do mercado é imperceptível, ao nível da produção serevela em toda sua nudez. Para subverter esta contradição, para subverter estanegação, faz-se necessário nega-la também. Assim, a negação da negação não émais do que a afirmação. A afirmação de um novo modo de organizar a produção.Contudo, a afirmação de uma nova sociedade impõe a necessidade de fazer ruir asociedade capitalista, através de uma revolução que já se anuncia.

“As relações burguesas de produção e troca, as relações burguesas de propriedade, toda essasociedade burguesa moderna, que fez surgir tão potentes meios de produção e de troca,assemelha-se ao feiticeiro que já não é capaz de dominar as potências infernais que desencadeoucom seus conjuros. As armas de que a burguesia se serviu para derrubar o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia. Porém a burguesia não forjou somente as armas que lhedarão a morte; produziu também os homens que empunharão essas armas – os operáriosmodernos, os proletários.”28

Assim, o proletariado, agente revolucionário por excelência, é o único capaz de porfim a apropriação privada dos meios de produção, alterando a base econômica dasociedade e, conseqüentemente, toda a supra-estrutura ideológica. Dessa forma,abrir-se-ia um novo período na história, denominado de ditadura do proletariado,única forma capaz de barrar a tentativa de contra-revolução que, com certeza, seriatentada pela burguesia expropriada.Porém, como fazer com que os proletariados cumpram seu desígnio histórico? Aresposta resiste no desmascaramento do caráter fetichista da mercadoria, que fazcom que os homens não tomem consciência do real processo de exploração a queestão submetidos. Não são as mercadorias que se relacionam per se, e sim, oshomens que se relacionam no mercado enquanto portadores de mercadorias.Vistos os elementos fundamentais das três principais “escolas sociológicas”, passemosagora à uma breve análise da teoria política gramisciniana que, em nosso entender,constitui uma das leituras mais significativas da prática política esboçada na teoriamarxista. Em outros termos, buscamos uma interpretação alternativa à leitura leninistada teoria da revolução.Porém, para proceder tal análise, nos vemos obrigados a retomar os aspectosprincipais do pensamento maquiaveliano, buscando entender como o fundador daciência política influencia e dá sentido à obra marxista.

28 Manifesto do PartidoComunista.

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O pai da ciência política, como é denominado por muitos, foi iniciador e, ao mesmotempo, o mais fecundo realizador dessa tendência à racionalização da prática política.Filho do Renascimento Italiano em sua fase mais brilhante, o Quintecento (séculoXVI), Nicolau Maquiavel (1496-1527) foi um homem da práxis (prática). Funcionáriodo governo florentino, escreveu sua obra máxima “O Príncipe” num momento emque enfrentou um exílio não-voluntário, e portanto afastado de suas funçõesadministrativas.O livro é um verdadeiro manual de conduta e procedimento na política e foi concebidoem meio ao contexto de formação das monarquias nacionais européias. Justamente,o tipo de centralização política que Maquiavel deseja para a Itália, que naquelemomento estava fragmentada em um grande número de principados e repúblicas,além do estados pontifícios, em poder da Igreja Católica.Maquiavel inaugura uma nova forma de se pensar a política e o Estado, diferentedaquela até então utilizada pelos gregos e pela igreja. E este rompimento com atradição idealista decorre de seu método, que busca a verità effettuale, ou a verdadeefetiva das coisas. Ao nível da política, afirma-se que para ela existe uma moralprópria, uma moral política, que difere da moral privada. A política é amoral. No quese refere ao Estado, seja ele Principado ou República, Maquiavél aponta como oúnico capaz de pôr fim ao estado de anarquia, que para ele em uma dupla origem:De um lado, existem traços imutáveis na natureza humana. Os homens são “emgeral, ingratos, volúveis, dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro...”29 . Deoutro lado, o Estado é o palco onde se dá a disputa política entre duas forças opostas,“...e isto provém do fato de que o povo não deseja ser governado nem oprimidopelos grandes e estes querem governar e oprimir o povo.”30

Uma questão acerca do pensamento de Maquiavel, sobre a qual muito se discute,diz respeito a quem se dedicava “O Príncipe”. Embora o autor o tenha dedicado àfamília Médici, então governantes de Florença, muitos estudiosos afirmam que, naverdade, Maquiavel, ao falar do poder, fala também sobre a liberdade, instruindosua conquista e manutenção.Segundo a teoria maquiavélica (esse termo não é usado aqui de forma pejorativa,como se costuma fazer), o verdadeiro príncipe é aquele governante que tem em seuespírito as benesses da virtù, ou seja, a capacidade de conquistar, manter e expandirseu governo. Para realizar esse grandioso feito, deve-se obedecer a algumascondutas, que acompanham todos aqueles que triunfam na arte da política. Além davirtù, ou seja, dos atributos pessoais do governante, este deve encontrar a Fortuna,ou seja, a “sorte” no que se refere a uma conjuntura política e econômica que lheseja favorável.Em primeiro lugar, um príncipe deve sentir-se à vontade para utilizar a força e aviolência (fundamentos do poder) como formas de impor sua autoridade sobre osoutros homens, desde que o Poder de Estado seja seu objetivo.

“Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam podido fazer obedecer suas constituições seestivessem desarmados (...). Não pode haver boas leis onde não haja boas armas”.

Amanutenção dos exércitos é fundamental para quem quer manter-se no poder. Podemosafirmar inclusive, que a fonte teórica que deu respaldo a formação dos exércitos modernosfoi o pensamento maquiavélico, já que naquele momento, os reis hesitavam em armara população com medo de possíveis revoltas aos seus próprios governos. Mas, o pensadorinsiste que a utilização de exércitos mercenários (prática muito comum naquele momento)é nociva aos próprios governantes, que podem ficar à mercê de generais inescrupulosos.Sendo assim, só a criação de um exército profissional e regular tornaria o rei livre dosriscos de se depender tanto do povo, quanto dos mercenários.O uso inevitável da força nos remete a outro ponto fundamental da obra. Trata-se,em segundo lugar, da dicotomia vivida pelo Príncipe: ser amado ou temido. Para opensador ser amado por seus súditos é muito importante. Porém, ser temido é umaquestão de sobrevivência ao governante. O príncipe deve ser amado e temido e, na

Maquiavele seu impactante pragmatismo político

29 MACHIAVELLI, Niccolò. OPríncipe. São Paulo, Hemus,1977. p. 94.

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possibilidade de dispor de ambos os sentimentos, que seja temido. Deve-se, contudo,evitar que o temor leve ao ódio, já que este suplanta a temeridade e inspira ainsubordinação. Aquele que ama pode entregar-se num determinado momento àingratidão, e dessa maneira à traição. Já aquele que teme, e que tem certeza dapunição está mais apto à subordinação.

“(...) E os homens receiam menos ofender aquele que se faz amar do que aquele que se faztemer: o amor mantém-se vinculado à gratidão, esse vínculo, por serem míseros os homens,rompe-o toda ocasião conveniente; ao passo que o temor é mantido pelo receio aos castigos, ejamais faz com que te abandonem”.

Essa dupla abordagem leva ao cerne de toda forma de dominação política: o uso dodiscurso para se garantir o consentimento; e o uso da força para se fazer consentirmesmo quando não se deseja. A partir desses componentes, e a legalidade de suautilização prevista em lei, o príncipe ganha a Legitimidade para governar. Não hágoverno sem a relação consentimento/força e legalidade/legitimidade.Em terceiro Lugar, a idéia de que a política não se enquadra na valoração moral. Porisso mesmo o discurso religioso está afastado do fazer político de Maquiavel. Estaidéia o torna surpreendentemente moderno e pragmático. Prega a benevolência quandonecessário, e na mesma medida, prega o assassinato, se necessário. Temos aqui aparte mais divulgada (e distorcida) do pensamento maquiavélico, já que essepragmatismo deve estar a serviço da realização do governo e da construção do Estado.Não se aplica, logicamente, ao conjunto de ações cotidianas do homem. ParaMaquiavel, o Estado, e seus dirigentes devem agir dessa maneira para instaurar aordem, justamente para que o convívio social seja pautado pela paz e respeito à lei.Muitos interpretaram e sintetizaram essa linha de raciocínio através da máxima “osfins justificam os meios”, ou seja os objetivos (conquistar, manter e expandir o poder)justificam os métodos (ser amado ou temido; ter consentimento ou valer-se da força).Não foi exatamente isso o que afirmou, pelo menos não com essas palavras. O queescreveu, foi que

“Muita gente imaginou repúblicas ou principados que jamais foram vistos ou de cuja realexistência jamais se teve notícia. E é tão diferente o como se vive do como deveria viver, queaquele que desatento ao que se faz e se atém ao que se deveria fazer aprende antes a maneirade arruinar-se do que preservar-se. Assim, o homem que queira em tudo agir como bom acabaráem meio a tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, para manter-se, aprendera não ser bom, e usar ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade.”

“Daí ser necessário a um príncipe, para manter-se, aprender a não ser bom, e usarou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade.” Aí está presente e sintetizadotodo o pragmatismo de Maquiavel, o fio condutor de sua lógica.

A obra, e todo seu conteúdo, sofreram uma implacávelperseguição, tanto política (O Príncipe estava citado noIndex, lista de livros proibidos pela Igreja Católica, noperíodo da Contra-Reforma), quanto intelectual. O“maquiavelismo” tornou-se sinônimo de falta deescrúpulos e imoralidade, quase um xingamento. O quenão é justo – concordando-se ou não com sua teoria -com a grandeza de seu pensamento, já que n’O Príncipeencontram-se as mais fundamentais ações do fazerpolítico. Além disso Maquiavel propõe uma amoralidadepolítica, e não uma imoralidade política. Ou seja, apolítica tem moral própria e apartada do conjunto derelações econômicas, sociais e culturais de umasociedade.Por último vale ressaltar, que apesar do alto grau devalorização do homem e suas realizações geradas pelaRenascimento, Maquiavel compartilha de umaconcepção muito difundida na sua época: em sociedade,os homens sempre fazem e se utilizam de atitudes pouconobres, como a ingratidão, a traição e avareza e aviolência e que só utilizando-se desses mesmos artifíciosé que o príncipe conseguirá promover a paz e aconcordância entre os homens. Thomas Hobbes tambémcompartilha dessa idéia.

30 MACHIAVELLI, Niccolò. OPríncipe. São Paulo, Hemus,

1977. p. 56.

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Penetrar o pensamento de Gramsci é um desafio e tanto, mesmo porque a maneiracomo sua produção veio a lume dificulta, e muito, esta tarefa. Seus escritosencontram-se espalhados nos “Cadernos do Cárcere”, produzidos durante sua longaestadia como “hóspede” de Mussolini, na Itália Fascista do período Entre-Guerras(1918-1939), tendo que burlar seus censores a partir de uma escrita difusa e quaseenigmática. O Salto que se dá aqui, ignorando todo o conteúdo da teoria política doséculo XIX, justifica-se pelo fato que originalidade desse século deve-se ao discursode Karl Marx e Max Weber, autores suficientemente abordados na parte dedicada àSociologia desse curso. Por outro lado, Gramsci realiza uma revitalização do conteúdodas teorias políticas que analisamos a pouco, que é de fundamental importânciapara a compreensão da atualidade.Seu legado foi de enorme influência para as atividades políticas dos socialistaseuropeus do século XX. Realizou, em sua teorização singular, a junção dos conceitosmarxistas sobre a teoria da revolução com a tradição do pensamento político clássicode autores como Nicolau Maquiavel e Jean-Jacques Rousseau. Gramsci elaborauma análise voltada para práxis política de construção do socialismo por viasdemocráticas. Para o autor, a destruição do capitalismo se realiza através daorganização da Vontade Geral do proletariado (os trabalhadores) a partir daorganização do Partido Comunista, que em sua concepção apresenta-se como oPríncipe Moderno.Sendo o delineador das ações políticas do proletariado, o partido tem que desenvolveruma linha de atuação parlamentar que possibilite a constituição de uma hegemoniapolítica, ou seja, a conquista democrática das instituições políticas burguesas a partirde uma maioria atuante que, gradativamente reorganiza o Estado Capitalista paraum Estado Socialista. Assim, Gramsci delega ao partido a tarefa de agir para aformação de um mundo socialista, mas este nunca deve abster-se de levar emconsideração aquilo que o proletariado quer como rumo apropriado para esse objetivo.Assim como, para Maquiavel, o Príncipe é o condutor da grandeza realizada naconquista, manutenção e expansão do Estado (o agente político privilegiado dessavirtú), o partido comunista é,para Gramsci, o condutor para a conquista, manutenção e expansão do socialismo.Por outro lado, assim como o governante é apenas o realizador da Vontade Geral doPovo – o verdadeiro soberano, o partido, para Gramsci, é constituído e utilizadopara realização da Vontade Geral do Proletariado, o verdadeiro soberano da políticado mundo contemporâneo.“O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduoconcreto; só pode ser um organismo; um elemento complexo da sociedade no qualjá se tenha iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida efundamentada parcialmente na ação. Este organismo já é determinado pelodesenvolvimento histórico, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeramgermes de vontade coletiva que tendem a ser tornar universais e totais” (AntonioGramsci – Maquiavel, a política e o Estado Moderno).Além disso o partido tem também o dever de educar o proletariado para a práxispolítica. Realizando uma união de esforços entre o intelectual tradicional (o homemdas teorias e dos livros) ao intelectual orgânico (o líder oriundo do proletariado e queconstitui a pedra fundamental do partido). Apartir disso, as condições para a revoluçãosocialista deixam de ser meramente materiais (a exploração do proletariado pelaburguesia) para ganhar uma esfera quase espiritual de necessidade de criação deuma nova cultura, e assim da destruição plena e efetiva do Capitalismo.O universo gramsciniano foi muito importante para a formação da social-democraciaeuropéia no pós-guerra (1945) e do socialismo não-armado, parlamentar, que acreditaconseguir a construção do socialismo por vias democráticas. No Brasil, a maiorexpressão dessa tendência foi a criação, no final dos anos setenta, do Partido dosTrabalhadores.

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ANTROPOLOGIAA Antropologia e sua inserção nomundo das idéis sobre o homemO EvolucionismoO FuncionalismoO EstruturalismoAs implicações antropológicas nodiscurso político da ModernidadeAs justificativas do poder estatal

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Homem, Ser Humano ou Homo Sapiens Sapiens; os costumes, ritos e mitos; asrelações entre as pessoas, os atos, as produções e as mentalidades... O Homem,eis o objeto de estudo a que se dirige a Antropologia. O ato de pensar sobre simesmo é, talvez, uma das atividades mais antigas do ser humano. Buscar suasorigens, pensar sua essência, especular sobre seu lugar no cosmos, na natureza, ounas relações com outros seres humanos é uma ação constante e imprescindível.Ironicamente, pensar os homens em todas as suas implicações de um modopretensamente “científico” tem sido umas das tarefas mais difíceis dos últimos doisséculos. Por isso mesmo, a antropologia foi, ao lado da sociologia e da psicologia asúltimas áreas do conhecimento que ganharam o status de “ciência”. A mitologia, areligião, a arte e a filosofia, não fazem outra coisa (logicamente, cada uma ao seumodo) a não ser pensar o homem em suas relações com o mundo, seja ele físico oumetafísico. Porém, uma ciência do Homem só pode ser devidamente estabelecidaem meados do século XIX, quando aqueles primeiros “antropólogos” conseguiramdistinguir o olhar científico do olhar filosófico sobre o homem. Para conseguir talfaçanha, foi necessário emprestar os métodos e os conceitos das ciências jáestabelecidas, como a biologia, por exemplo, para desse modo, conseguir firmar-se,legitimar-se como uma disciplina estritamente científica.A Antropologia nasce, então, numa relação tempo-espaço (Século XIX-Europa) emque o capitalismo monopolista e imperialista das grandes potências industriais estendeseus tentáculos por todas as partes do mundo. O outro se defronta de uma maneiracada vez mais intensa com o eu. Os “selvagens”, os “nativos”, os “silvícolas”, os“primitivos”, os “esquecidos por Deus” se defrontam, confrontam e se submetem àforça tecnológica e econômica do Europeu, o “civilizado”, o “branco”, o “superior” o“eleito por Deus”. Em busca de mercado e matérias-primas, esse Super-Homem,anabolizado pela força de seu sistema econômico – o Capitalismo – foi corroendoformas tradicionais de vida e de concepção de mundo e seus saberes, em prol da“verdadeira” forma de vida, a moderna, através da “verdadeira” religião, o cristianismoe do “verdadeiro” saber, a Ciência.

“Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de idéias e opiniões veneráveis, sãodescartadas: todas as novas relações, recém formadas, se tornam obsoletas antes que seossifiquem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo que é sagrado se torna profano, e oshomens são finalmente forçados com sentidos mais sóbrios suasreais condições de vida e com a relação com os outros homens”1

A Antropologia (e a Sociologia) nasce nessa atmosferacriada pela expansão da civilização Ocidental, com todasas suas surpresas e contrastes proporcionados por esseencontro do eu com o outro. Como já foi dito, a preocupaçãoem se estabelecer um tipo de observação e compreensãodo Homem ou dos homens a partir de um procedimentoestritamente científico fez com que os pais fundadores -Augusto Comte, Émile Durkheim, James George Frazer eLewis Henry Morgan, entre outros – procurassem abrigonas ciências biológicas, principalmente nos seus métodosde investigação. Essa apropriação dos métodos utilizadosprincipalmente pela biologia acontece justamente peladificuldade de se compreender o homem a partir de suaespecificidade em relação à natureza e aos fenômenosfísicos. Como o Homem (sujeito que realiza a análisecientífica) pode observar e compreender o próprio Homem(objeto, aquilo que deve ser analisado) sem que se recorraa pré-julgamentos e por consequência à pré-conceitos,estabelecidos através da experiência da trajetória pessoale sócio-cultural do observador (sujeito) da investigaçãocientífica?

A Antropologiae sua inserção no mundo das idéis sobre o homem

1 Marx e Engels. O manifesto doPartido Comunista

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A análise de uma célula feita por um biólogo não corre orisco do problema exposto acima, justamente porqueseria muito difícil – ou no mínimo, muito estranho – estesujeito da investigação manter uma relação afetiva(subjetiva, como gostam os cientistas sociais) com oseu objeto de análise. Já nas Ciências Sociais esteproblema é sério e ronda as preocupações de seuspesquisadores até hoje. Durkheim, considerado tantofundador da sociologia como da Antropologia defendeque os fatos sociais devem ser tratados como coisas,caso contrário não se estaria fazendo outra coisa doque especulação (característica fundamental daFilosofia) ou na pior das hipóteses, apenas umadiscussão superficial, o que alguns chamam de “sensocomum”. Na tentativa de radicalizar o distanciamentoentre sujeito e objeto, e assim garantir definitivamentea condição de ciência consolidada e legitimada pelasdisciplinas científicas já estabelecidas como a Biologia,a Química e a Física; a Antropologia busca então,compreender o homem que está longe. Ou seja, buscaa compreensão do outro, do primitivo, nativo ouselvagem. Daquele diferente do eu civilizado, europeue Ocidental.De quebra, a Antropologia foi bem recebida no âmbitopolítico, já que muito interessava aos governos dospaíses europeus e dos EUA, “conhecerem” a realidadedos povos nativos da África, Ásia e América Latina, oque facilitou muito suas estratégias de dominação

político-econômica dessas regiões, em suas buscas por matérias-primas e mercadosconsumidores.

1.1 – O universo antropológico

“(...)Transformado em Deus, este sapiens-demens fragmentou suas partículas e espargiu seusêmem mágico sobre a face da Terra. Encantado com a própria imagem, lançou-se ensandecidoem busca desse outro imaginário – seu duplo – réplica da sua percepção alucinada. A forçadessa paixão levou a construir a ciência, a criar as artes, a brincar de guerra e, assustado como seu poder, a refugiar-se na religião e na tirania”2

Da metade do século XIX para os dias atuais, a Antropologia transformou-seradicalmente, e ampliou seus horizontes, tanto nos métodos quanto no seu objetode estudo, e principalmente, no resultado de suas pesquisas. De uma maneira gerale simplificada, devido aos limites desse trabalho, que é apresentar os conceitosfundamentais da disciplina, podemos afirmar que surgiram três grandes perspectivastéorico-metodológicas: o Evolucionismo, o Funcionalismo e o Estruturalismo. Cadauma apresenta, de formas diferentes, uma visão sobre o modo de organização da(s)sociedade(s) humana(s) seja na economia, sociedade e cultura. Essas trêsperspectivas levam e transitam a dois procedimentos da ação humana que decorremdesses estudos:1º) Relativismo, a consideração de que as sociedades humanas são sempre muitodiferentes e específicas, e que não há pontos em comum entre elas, são pautadaspela diversidade. Esse ponto de vista é defendido, principalmente pelo Funcionalismo;2º) O Universalismo, que por sua vez defende a idéia de que os homens, para alémde suas diferenças culturais tem, na verdade uma mesma matriz, uma alma universal.Esse olhar é defendido, guardadas profundas diferenças, tanto pelo Evolucionismoquanto pelo Estruturalismo. Os métodos e suas especificidades serão analisadosem maior profundidade mais adiante, neste trabalho.Em relação ao seu objeto de estudo, houve o que François Laplantine denomina deum gradativo “alargamento do campo” de estudo que vai do outro ao eu, na medidaque há um amadurecimento da ciência antropológica. Ou seja, do “selvagem” passa-se ao “camponês”, e desse para o “urbano”.

2 Edgard de Assis Carvalho –Polifônicas Idéias:Antropologia e

Universalidade.

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Podemos afirmar, portanto, que o esforço antropológicovai da tentativa de reconhecer a diferença entre oshomens à busca de suas semelhanças, ou seja, àconstrução de entendimento dos homens em suascaracterísticas universais. As palavras de Laplantine nosrevelam que,

“Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do Homem deque a Antropologia, como já dissemos e voltaremos a dizer,faz tanta questão, é a sua aptidão praticamente infinita parainventar modos de vida e formas de organização socialextremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossadisciplina notar, com a maior proximidade possível, que essasformas de comportamento e de ida em sociedade quetomávamos todos por inatas ( nossas maneiras de andar,dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventosde nossa existência...) são, na verdade produto de escolhasculturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos, tem emcomum é a sua capacidade para se diferenciar uns dos outrospara elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento,instituições, jogos profundamente diversos; pois se algonatural nessa espécie particular que é a espécie humana, é asua aptidão à variação cultural”3

Laplantine também nos ajuda a compreender, que oprojeto e o objetivo de uma ciência como a Antropologiaconsiste,

“(...) portanto no reconhecimento, conhecimento, juntamentecom a compreensão de uma humanidade plural (mas ao mesmo tempo, uma). Isso supõe aomesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do idêntico, e com aexclusão num irredutível “outro”. As sociedades mais diferentes da nossa, que consideramosespontaneamente como indiferenciadas, são na realidade tão diferentes entre si quanto o sãoda nossa. E mais ainda, elas são para cada uma delas muito raramente homogêneas (como seriade se esperar), mas, pelo contrário extremamente diversificada, participando ao mesmo tempode uma comum humanidade”.4

Para conhecermos o homem em sua diversidade/unidade, a Antropologia precisaentão se encarregar de algumas tarefas indispensáveis. Em primeiro lugar, é precisoter sempre o objetivo de criar um corpo teórico que contenha alguns conceitosfundamentais como o de Natureza, Cultura, Sociedade e (não poderia faltar) Homem,como forma de nortear a construção do conhecimento pretendido pela disciplina;em segundo, esse saber não pode ser apenas teórico, mas para a própria construçãoda teoria, é preciso antes de uma abordagem empírica (real) das sociedades humanas,portanto, deve-se realizar uma observação (análise) para a partir daí, a construçãode conceitos (síntese); em terceiro lugar, é muito importante que uma pesquisaantropológica se preocupe com o homem em sua totalidade, ou seja, em seusaspectos biológicos, econômicos (a forma pela qual ele extrai a produção e reproduçãode sua vida através dos elementos da natureza), culturais (sua mentalidade,religiosidade, cosmologia...), lingüísticos (sua fala, idioma) e psicológico (a suaconstrução como individuo); em quarto e último lugar, pensar a diferença, comoalternativa para pensar em si próprio, conhecer o outro como forma de compreensãodo eu.A ultima consideração a se fazer, antes de se discutir as teorias antropológicas, é emrelação aos níveis de pesquisa que se pode realizar no interior da disciplina. SegundoLevi-Strauss, são três esses momentos antropológicos,1º) A etnografia – ato de se fazer a pesquisa empírica propriamente dita, ou seja,realizar a coleta de dados sobre a sociedade que se pretende estudar a partir dasviagens de campo, a visita e convivência direta, e a descrição mais detalhada possíveldo seu cotidiano;2º) A etnologia – consiste em realizar uma análise dos fatos e descrições recolhidosna etnografia, a fim de se encontrar as leis gerais de funcionamento da sociedadeestudada, ou seja buscar a lógica dos fatos.3º) A Antropologia - ultimo estágio da pesquisa, procura realizar uma análisecomparativa de várias sociedades para, assim, chegar aos pontos comuns quecaracterizam o Ser Humano em seu convívio social, ou seja as leis gerais quecaracterizam o Homem e sua sociabilidade.

3 Francois Laplantine –Aprender antropologia4 idem.

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O conjunto de escritos e teorias que se convencionou denominar de “Evolucionismo”,inaugura a Antropologia como ciência. Nele, há um fazer científico inicial, incipiente,mas que marcou profundamente, não só a própria disciplina, mas praticamente todaconstrução do discurso do domínio do Ocidental (o Capitalismo europeu e norte-americano) sobre o resto do mundo. Mesmo criticado, contestado e desacreditado,o pensar evolucionista ronda as cabeças não só do universo científico, mas de todos.Já que toda vez que somos forçados a pensar as diferenças culturais – o índio, oargentino, ou outros inúmeros exemplos que poderiam ser citados - elas sãocolocadas invariavelmente em termo de superioridade (eu) e inferioridade (outro).Ou como gostavam os primeiros antropólogos evolucionistas, civilizado e primitivo.Aantropologia, na verdade, lutou e luta até hoje para se livrar da herança evolucionista,tenta desacreditar sua própria produção, talvez por ter consciência dos grandesmalefícios que esse tipo de pensamento trouxe a diversidade cultural da humanidade.Afinal de contas, se o eu é superior ao outro, como afirma o evolucionismo, o civilizadotem todo o direito de “ajudar” o primitivo a sair da condição de inferioridade. Essatese levou à destruição de grande parte da variação cultural da humanidade, emnome de um ímpeto civilizador, logicamente identificado com o avanço do capitalismoeuropeu e norte-americano, como já se disse, sobre os países a América Latina,África e Ásia. Portanto, o evolucionismo, com seu status de olhar científico sobre asculturas, serviu como justificativa ideológica para a ação imperialista, muito comumno século XIX. Há ainda que se levar em conta que a Antropologia nasceu naInglaterra, num momento em que esta dominava política e economicamente vastasáreas coloniais na África e na Ásia (os ingleses afirmavam arrogantemente que noseu império o sol nunca se punha).No Evolucionismo a Antropologia é simplesmente a ciência das sociedades primitivas.Entre o sujeito (o antropólogo) e o objeto (o homem “primitivo”) há um agenteintermediário, o administrador colonial. A pesquisa é, na infinita maioria das vezes –feita através de questionários aplicados às populações nativas pelo administradorcolonial de determinada área. Muitas vezes o material de pesquisa era apenas aexperiência relatada desse funcionário em contato com o povo a ser estudado. Nãoé incrível, o antropólogo não se dava ao trabalho de conhecer o povo que seriaanalisado.Através de publicações como “O Casamento Primitivo” (Maclennan), “A Culturaprimitiva” (Tylor), “A Sociedade Antiga” (Morgan) e “O Ramo de Ouro” (Frazer), oobjetivo maior do evolucionismo era a construção de um corpo de idéias que

possibilitasse um mapeamento do “primitivo” na tentativade construção histórica pela qual o homem formou suasinstituições culturais e como estas foram evoluindo paraas formas encontradas dos países “avançados”. Nessaperspectiva, o homem civilizado se considera como oherdeiro de todo um esforço humano para a realização,através da história da humanidade, de sua culturaavançada. O primitivo então, aparece aos seus olhoscomo um eu-criança, ou seja, com um ancestral vivo,uma espécie de amostra, conservada nos “laboratórios”(as áreas tropicais e periféricas ao mundo europeu)pronto para ser usado para remontar a trajetóriacivilizatória da humanidade.Utilizando ao máximo o discurso biológico, a antropologiaevolucionista vai além da apropriação do método dasciências naturais, mas também de seus resultados. Aidéia de uma evolução cultural vem da formação doevolucionismo biológico formulado do Charles Darwin,em “A Origem das Espécies”. A seleção natural entre os“mais aptos” à sobrevivência em relação aos “menosaptos” pode ser facilmente transportada para o universoantropológico através da já desgastada idéia de primitivo(o menos apto) e civilizado (o mais apto). Haeckel chegamesmo afirmar que a Filogênese (formação e evolução

O Evolucionismo

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cultural do Homem) é decorrência direta da Ontogênese(formação e evolução da vida). Ou seja, que a evoluçãocultural é uma mera continuação da evolução da vida.Morgan (junto com Frazer, um dos evolucionistas maisinfluentes) defendeu a tese de que a humanidadeatravessou por três “idades”, estágios evolutivos: (1) aSelvageria – nível sócio-cultural das populaçõesindígenas brasileiras, os aborígines australianos e aspopulações tribais da África, entre outros; (2) a Barbárie– As grandes civilizações orientais (árabe, egípcia ehindu) e americanas (inca, mais e asteca); e (3) aCivilização – a Europa (germânica e anglo-saxônica) enorte-americana.Frazer, por sua vez, preocupou-se em demonstrar oprocesso evolutivo da religiosidade em seu Livro “ORamo de Ouro”. Esse estudo das “crenças e superstiçõesprimitivas” leva em consideração que todo fato religiosoé uma maneira que os homens encontraram para ordenare classificar o desconhecido, a primeira forma do Homemclassificar e explorar a Natureza. Desse modo, o primeiro“estágio” do entendimento do sobrenatural seria a Magia.Conforme a marcha evolutiva acontece, os homensconstroem a Religião. Com o avanço civilizatório, oshomens abandonariam a religião e se entregariam àCiência, a forma mais “avançada” do homem conhecer e explorar a natureza e oCosmos. Para Frazer,

“A magia representa uma fase anterior, mais grosseira da História do Espírito Humano, pelaqual todas as raças humanas passaram, ou estão passando, para dirigir-se para a religião e àciência”.5

Como podemos perceber, o evolucionismo antropológico não foi mais do que umatentativa de dar formato científico às ideais de superioridade européia presentesdesde de o século XVI, com a aventura as Grandes Navegações e suasconseqüências, os Grandes Descobrimentos, e a formação do Sistema Colonial. Econseguiu dar sobrevida ao eurocentrismo – a idéia de uma Europa como centro ereferência do mundo – inclusive em seus aspectos mais criminosos. A tão perigosaSuperioridade Ariana, que alimentou o nazismo alemão, que sem contar a Hecatombeque costumamos denominar de II Guerra Mundial (1939-1945), promoveu oextermínio de pelo menos seis milhões de judeus nos campos de concentraçãonazistas. Na atual política externa dos EUA, que após 11 de Setembro de 2001,decidiu concentrar-se na promoção de “guerra preventivas” para a destruição deregimes políticos considerados inimigos, por supostamente darem cobertura e apoiofinanceiro à organizações terroristas, pode ser detectada vestígios de um discursoevolucionista. Já que a justificativa para a invasão do Iraque por forças anglo-americanas, além das imaginárias armas químicas de Saddan, era a incapacidadedo povo iraquiano de se livrar do seu ditador e implantar uma verdadeira democracia(logicamente nos moldes da democracia americana).Além do aspecto político-ideológico, o evolucionismo inverteu, por fim, uma regrabásica do fazer científico, o que lhe desqualificou perante as outras teoriasantropológicas e demonstrou a fraqueza de suas conclusões. Mencionou-se em algunsparágrafos anteriores desse texto, as tarefas indispensáveis da construção daantropologia como ciência. Dentre essas, existe a premissa de que a análise(observação etnográfica) deve anteceder a síntese (a construção de conceitos parauma formulação teórica). Pois bem, o que os nossos amigos evolucionistas fizeram,foi muito mais demonstrar a veracidade de uma tese do que realizar a verificação deuma hipótese (a construção de hipóteses prévias ao trabalho científico é comum elouvável em qualquer disciplina, seja nas ciências exatas, humanas ou biológicas).Porém esses antropólogos colhiam material etnográfico apenas para ilustrar umateoria que já se tinha convicção. Os costumes, rituais e formas sociais eram utilizadospara caracterizar cada estágio evolutivo previamente.

5 James George Frazer – ORamo de Ouro.

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A partir da virada do século XIX para o século XX, o discurso antropológico começaganhar contornos bem diferenciados do Evolucionismo. Como vimos, o processoevolutivo proposto era de perspectiva essencialmente historicista. Essa visão histórica,a antropologia denomina de estudos sincrônicos, ou seja, uma abordagem analíticaque leva em consideração as sociedades através do tempo. As fragilidades dateorização evolucionista levaram os antropólogos do início do século XX a procuraruma nova maneira de observação e análise das sociedades. A idéia era promoverum corte nesse processo histórico enfatizado pelos evolucionistas e mergulhar nointerior dos grupos humanos afim de se reconhecer a sua coerência interna, os seusmecanismos de organização e funcionamento. Seria como, por exemplo, se umbiólogo deixasse de se preocupar com a evolução das espécies de uma maneirageral e pretendesse formular uma análise de apenas uma espécie, através da suafunção vital, ou seja, este biólogo procuraria entender a lógica de funcionamento decada órgão e a sua importância para o funcionamento de todo o corpo.Da mesma maneira, os antropólogos passaram a se ocupar, não com o processo,mais sim com a função. Os estudos passaram de tratados gerais sobre um tema (ocasamento, a religião) para as monografias, que se organizavam como estudos decasos sobre um determinado grupo social, e tinham como critério de qualidade adescrição pormenorizada de todos os aspectos da vida social desse grupo. Assim, oobjetivo era descobrir os mecanismos internos de ligação (a função) dos fatos eníveis sociais (ou as instituições sociais) em relação aquele “corpo social”. A essaperspectiva de estudo, uma espécie de análise fotográfica das sociedades, sem umolhar histórico, denominamos de estudos diacrônicos.Essa revolução no pensamento antropológico vem acompanhada, também, de umamudança de postura do próprio pesquisador em relação às sociedades a seremestudadas.

“A revolução que ocorrerá na nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX éconsiderável: ela põe fim à repartição de tarefas, até então habitualmente dividas entre oobservador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subalterno de provedor deinformações, e pesquisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa einterpreta – atividade nobre! – essas informações. O pesquisador compreende a partir dessemomento que ele deve deixar o seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dosque devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim comoanfitriões que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, nãoapenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, asentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições

de estudo radicalmente diferentes das que conheciam os viajantesdo século XVIII e até o missionário ou o administrador do séculoXIX, residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendoinformações por intermédio de tradutores e informadores: este últimotermo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pelaprimeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinovski,‘ao vivo’, em uma ‘natureza imensa, virgem e aberta’ ”.6

Bronislaw Malinovski, o mais eminente dos antropólogosfuncionalistas denominou essa postura de observaçãoparticipante, o procedimento metodológico que estipulaa participação do Antropólogo na vida cotidiana do grupoa ser analisado (o próprio Malinovski, chegou a passarquase três anos entre populações nativas da Austrália edo Pacífico Ocidental) por longos períodos de tempo, afim de “impregnar-se” da vida cotidiana dos nativos, aponto de pretender (há muita controvérsia entre osantropólogos sobre este ponto) captar o ponto de vista,a mentalidade do nativo. Essa compreensão das partesconstitutivas de um grupo e suas funções para areprodução da totalidade, é alcançada por uma espéciede fio condutor para extensão da observação. Busca-seentão, a partir de um aspecto específico (as formas decasamento, a vida sexual), a compreensão de todos osníveis que compõem a realidade.

O Funcionalismo

6 Francois Laplantine –Aprender antropologia

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Ainda segundo as percepções de Malinovski, a análise etnográfica deve dar contade três níveis da realidade social que está sendo observada: o fazer, o falar e opensar. O primeiro nível é a análise do modo em que a sociedade se organiza paraa produção e reprodução de suas necessidade de sobrevivência, ou seja, aquilo queKarl Marx denominou de modo de produção econômico. O segundo, o falar, analisaas relações do indivíduo com o grupo e a suas regras sociais. O terceiro nível, opensar, tenta esclarecer a forma pela qual os componentes do grupo constituem asua visão de mundo (cosmologia), ou seja, a mentalidade expressa nas concepçõessobre o natural o sobrenatural e sobre o próprio homem.Outro grande funcionalista foi o antropólogo americano Franz Boas. Pioneiro naspesquisas de campo, Boas, que tinha uma postura metodológica muito semelhantea de Malinovski, elevou a patamares de obsessão a descrição das sociedades queanalisou. Seu ponto de vista micro-sociológico (considerava as sociedades comototalidades autônomas) era caracterizado pela rigorosa atenção a tudo que eraespecífico no grupo. Todo costume deve ser anotado, analisado e relacionado comoutro costume para se compreender a função de cada aspecto em relação ao todo.Boas descrevia exaustivamente todas as receitas das culinárias dos povos queestudou, preocupava-se com as notas musicais utilizadas nas músicas nativas ecom os trançados dos artefatos de palha construídos pelas mulheres.O funcionalismo foi coroamento da Antropologia como disciplina científica, livrando-se dos limites eurocêntricos do evolucionismo e constituindo o fazer antropológicooriginal, cada vez mais afastado dos esquemas teóricos emprestados de outrasciências. O método de pesquisa que chamamos de “observação participante”(invenção funcionalista) é peça fundamental em praticamente todos os estudosantropológicos atuais, e está longe de ser considerado como instrumento dispensávelpelos antropólogos. O funcionalismo, nos ensinou ainda, que cada grupo deve serconsiderado por suas características próprias, sem recorrer a juízos de valorpreexistentes, e sem comparações amparadas em um discurso primitivo/civilizado.Por fim, com os pesquisadores funcionalistas aprendemos que cada povo, sociedadeou civilização tem a sua racionalidade própria.Se, por um lado, o funcionalismo conseguiu amenizar os problemas gerados pelodiscurso evolucionista, por outro, conseguiu criar os seus próprios problemas.Em primeiro lugar, podemos afirmar sem correr grandes riscos, que o funcionalismoé pobre em elaboração teórica. Os funcionalistas realizaram grandes pesquisasdescritivas, mas não conseguiram criar conceitos que pudessem desmascarar asrelações sociais para além de sua própria aparência, sem contudo atingir sua essência.Os estudos funcionalistas estão repletos de descrições sobre rituais mágicos, masnenhum deles conseguiu avaliar a importância da magiacomo umas das formas do homem compreender emanipular a natureza.Em segundo, a idéia de que cada costume, prática ritual,ou instituição cultural (o casamento, as regras deparentesco, etc.) tem a sua função específica e contribuipara a formação do “corpo” social, criou a idéia de queos grupos humanos se organizam de forma sempreharmoniosa e positiva, e não leva em conta ascontradições e conflitos entre os homens na luta pelopoder político e as relações de desigualdade que sãoconseqüência dessa luta (nunca é demais lembrar quetodo grupo social tem as suas desigualdades, sejam elasmais ou menos contrastantes). Além disso, a visãodiacrônica (a análise das partes constitutivas datotalidade social de um grupo, na forma em que éencontrada pelo observador) criou a falsa idéia de queos povos tradicionais e não-ocidentais não tem História.O funcionalismo negou o dinamismo dessas sociedadese as interpretou como estáticas.Em terceiro lugar, (talvez esse seja o maior erro dosfuncionalistas), esses pesquisadores despregaramconscientemente a presença do colonizador europeu,

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assim como a transformações sociais decorrentes desse contato nos povostradicionais e nativos. Malinoviski varria a aldeia trobriandesa em que realizou suaspesquisas para não se incomodar com a latas de sardinha consumidas pelostrobriandeses. Evans-Pritchard, que elaborou uma magistral etnografia sobre os Nuer,povo africano, descreveu a importante função do gado bovino para a reproduçãosocial do grupo, sem contudo, explicar que os africanos só conheceram a pecuáriabovina através da presença inglesa no continente. Com isso tentavam preservaruma ilusória perspectiva purista, em que a chegada do dominador não era consideradapara se observar a coerência interna das sociedades.Em quarto e último lugar, o funcionalismo gerou o procedimento relativista naobservação e posicionamento político sobre os povos não-ocidentais. Sendo asculturas sempre específicas e suas práticas culturais sempre determinadas pela suafunção em relação ao contexto particular de cada povo, restringiu-se a capacidadeda Antropologia de compreender os grupos humanos em suas característicasuniversais. Não se pode, através do funcionalismo, formular uma teoria geral sobreo Homem, e sim conhecimentos específicos sobre cada grupo humano, numaperspectiva científica fragmentada e limitada.Se o evolucionismo considera o homem não-ocidental como “primitivo” na escalade evolução humana, o funcionalismo separou os homens em realidades totalmenteexcludentes. Se por um lado aprendemos respeitar as diferenças culturais, por outro,não há possibilidade de levar-se em consideração um projeto político em comum, jáque todos são radicalmente diferentes.Eu e o outro, um e o diverso. Algumas vezes, diverso apenas enquanto partícipe ounão de um lugar: a consciência (o espaço onde o eu se reconhece). Tão diverso quefaz parte de um mundo desconhecido. Como no Descobrimento da América, marcaum encontro a partir do qual o mundo nunca mais será o mesmo, encontro com umoutro tão diverso, que, de tão diverso, muitas vezes nem sequer se sabia se erarealmente outro. A resposta etnocêntrica (evolucionista) apontava que o outro era,na verdade, o mesmo, diferenciado cronologicamente, tratava-se de um eu-criança,cuja descoberta marcaria, na verdade, um encontro com a origem da únicahumanidade que se entendia como tal, a do homem ocidental. E mais nada. Oensinamento a ser tirado dessa ‘situação colonial’ poderia ser de resgatar uma certaingenuidade, perdida pelo Ocidente: Olha o outro e você estará se olhando. Mas deque maneira? O homem americano primitivo era um espelho onde o homem ocidentalveria refletida a sua imagem ancestral, uma imagem que teria sido abandonada emnome da civilização: o diverso apareceria como um.A resposta relativista (funcionalista) aponta que o outro era, na verdade, um ser tãodiverso que nada nele poderia lembrar um eu sobre si mesmo. Um outro que nãopoderia ser medido de maneira alguma em relação ao um. O relativismo representouuma forma de redenção da Antropologia, que passou a ser visualizada como umaciência que, em nome do ‘respeito à diferença’, poderia remediar todos os danoscausados pela visão etnocêntrica. Isso fez do antropólogo um sujeito que procuravaagir como se não estivesse sujeitado à sua própria realidade cultural, despido detoda possibilidade crítica e que paradoxalmente, teria como missão preservar o outrode si mesmo, uma vez que tratava-se de preservá-lo da civilização ocidental, daqual, quisesse ou não ele fazia parte. O um (eu) e o diverso (outro) tornam-se,ambos diversos.Mas, se o diverso é o um como quer o etnocentrismo ou se o um e o diverso sãoambos diversos como sugere o relativismo,Onde fica o Universo?7

7 Edgard de Assis Carvalho –Polifônicas Idéias:Antropologia e

Universalidade.

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Até agora pudemos avaliar o desenvolvimento e o amadurecimento da Antropologiaa partir de seus dois universos teóricos mais importantes: o Evolucionismo e oFuncionalismo. Conhecemos tanto os seus méritos quanto os seus limites e pudemosreconhecer que uma ciência jovem como essa, está em constante busca para oaperfeiçoamento e lapidação.O Estruturalismo entra para a história da Antropologia como um salto qualitativo quevai contribuir enormemente para o estabelecimento da disciplina entre as maisimportantes para o entendimento do ser humano. Com a visão estruturalista, ganha-se um complexo corpo teórico que vai ter a pretensão de explicar a essência doHomem para além de suas diferenças culturais e buscar a universalidade das práticassócio-culturais, aquelas características que definem o que é o ser humano em relaçãoao domínio da natureza. Como veremos, a compreensão dos aspectos fundamentaisque caracterizam o humano acontece num nível de realidade que a Antropologia atéentão não tinha conseguido atingir: o inconsciente.Até o funcionalismo, o nível de realidade social pesquisado era do empírico, opalpável e o concreto. A partir de agora o homem real e a sua diversidade vaigradativamente deixando de existir pela análise estrutural e, no seu lugar, vão surgindoos elementos estruturais do inconsciente humano, lugar onde residem as peçasfundamentais que determinam de que forma serão constituídas as diferentes maneirasde organização social do homem. Para o estruturalismo, a magia não “representauma fase anterior, mais grosseira da história do espírito humano” (como diria oevolucionista Frazer), muito inferior à ciência, mas sim, uma outra maneira de sefazer Ciência. A medicina indígena (caracterizada pelos seus rituais de feitiçaria)não seria mera superstição inferior à medicina ocidental, mas sim uma outra formade medicina. A magia se apresenta às realidades de formas muito diferentes, mas,justamente por sua estrutura se encontrar no inconsciente de todos os homens, éporque ela se encontra espalhada nas mais diferentes culturas ao redor do globo.O criador e principal defensor da antropologia estrutural é Claude Levi-Strauss,antropólogo francês que está entre os mais importantes personagens da ciência noséculo XX. Homem de pensamento fecundo, complexo e abstrato, conseguiu colocara Antropologia no centro das discussões teóricas, principalmente com pensadoresde outras áreas do conhecimento científico, pelo caráter inovador e polêmico desuas idéias. Porém a teoria estrutural não foi uma criação original de Levi-Strauss.Ele apenas transportou e adaptou à antropologia, o método conhecido de “Lingüísticaestrutural”, formulado principalmente pelo russo Roman Jacobson. Além disso otema “inconsciente” é presença constante nos debates científicos do século XX,desde a publicação de “A Interpretação dos Sonhos” de Sigmund Freud, em 1900.Há porém uma diferença fundamental entre o inconsciente freudiano para o levi-straussiano: para o primeiro a atividade inconsciente tem ação individual enquantoque para o segundo essa mesma atividade é irredutivelmente social, coletiva.O método consiste, então, em promover análises, a partir de três etapas: (1) adescrição dos grupos sociais, o trabalho etnográfico; (2) a criação de conceitos queexpliquem essa realidade observada, o trabalho etnológico; e, (3) a generalizaçãoque procura atingir elementos estruturais e inconscientes das relações sociais apartir da comparação dos conceitos criados pelo nível etnológico da pesquisa derealidades diferentes e determinados por temas. Usemos o exemplo da medicinaindígena e em grupos nativos de outras partes do mundo (xamanismo). A partir darealização de etnografias sobre o xamanismo em diferentes culturas, criam-seconceitos que explicam os aspectos gerais do xamanismo, e por último, faz-se acomparação teórica com outras formas de medicina, para encontrar-lhes aspectoscomuns, que não são encontrados na realidade empírica, mas que expliquem deuma maneira muito geral, a importância e organização da medicina para o homem.As preocupações de Levi-Strauss ao longo de sua vida acadêmica se concentramem duas áreas fundamentais: o parentesco e o pensamento.Ao se debruçar nos estudos sobre parentesco, Levi-Strauss criou uma elaboraçãoteórica em seu livro “As Estruturas Elementares do Parentesco”, com o objetivo dedesmascarar o ponto fundamental de diferenciação entre o que é domínio da naturezado que é domínio da cultura no homem. Em outros termos, ele tentou discernir o que

O Estruturalismo

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o homem tem de instintivo e de cultural na sua vidasocial. Após uma pesquisa exaustiva e prolongada deanálise de muitos sistema de parentesco, recolhidos deetnografias sobre grupos sociais de todas a parte domundo, Levi-Strauss chegou a conclusão de que adiferenciação entre natureza e cultura é o tabu do incesto.Leva em consideração para formular a análise, de queo instinto é uma pulsão vital que está presente em todosos indivíduos de uma mesma espécie – por isso universal– e que o ato cultural é uma escolha (inconsciente) quecada grupo humano faz para organizar-se para a buscade suas satisfações básicas na natureza (comer, beber,vestir, compreender o mundo em sua volta, etc.) – porisso particular. O autor nos afirma, então, que o incesto(a proibição da prática sexual em círculos familiaresrestritos, por exemplo, pai/filha, mãe/filho irmão/irmã) éuma prática cultural com amplitude instintiva, já que essetabu é encontrado em todas as sociedades humanas(universalismo instintivo), mas apresenta-se em formasdiferenciadas (porém em número limitado) nos diversosgrupos sociais humanos (particularismo cultural).O incesto seria, então, o ponto fundamental dediferenciação entre natureza e cultura e a própriainstituição da cultura que nasceria junto com o

aparecimento do Homo Sapiens. Levi-Strauss nos afirma que a cultura (que podeser definida como o conjunto de relações – sociais, econômicas, políticas e culturais– de um grupo), nasce justamente para garantir ao homem sua inserção e sustentona natureza e ocupa o lugar em que os instintos se ausentam, e que a partir de seudesenvolvimento, esses mesmos instintos tenderiam a desaparecer, sendo ocupadostotalmente pelos fatores culturais.Além disso ele considera que todo universo cultural é um domínio da comunicação,não só no sentido estrito da palavra, mas numa perspectiva mais ampla. Os homenscomunicam-se constantemente para estabelecer alianças, que fundam, por sua veza sociabilidade. Essas trocas seriam de três espécies: de mulheres (parentesco), debens (economia) e palavras (lingüística). O incesto nasceria como uma necessidadede trocar mulheres. Mas porque trocar mulheres? O autor afirma que “expulsar” asmulheres do círculo familiar cumpre dois papéis importantes para a sociabilidade dogrupo: (1) evita que os homens disputem entre si as mulheres do seu grupo, o quepoderia significar desagregação social e (2) garante alianças políticas com outrosgrupos, ato fundamental para a preservação e defesa nos tempos difíceis, em queaparecem as guerras ou períodos de grande escassez alimentar. Essas afirmaçõesse destacam do conjunto da obra levi-straussiana tanto pela sua interessanteoriginalidade, quanto pela fúria despertada entre as lideranças do movimento feministafrancês nos anos 50 e 60 do século passado.A teoria do pensamento selvagem, também foi um ponto de destaque em sua obra.A grande preocupação de Levi-Strauss é criticar as teorias sobre o pensamento naantropologia que consideravam o pensamento não-ocidental como inferior emqualidade ao pensamento ocidental, caracterizado pela lógica científica. Sua teoriaé elaborada na obra “o Pensamento Selvagem”, tem complemento em inúmeraspublicações, organizadas nos livros “Antropologia Estrutural I e II e é finalmentecompletada em sua obra monumental, “As Mito-lógicas”.Para esse pensador, a importância do homem em conhecer a natureza, nasce nãosó das exigências de suprir as suas necessidades básicas de sobrevivência, mastambém vontade (inconsciente, é claro) de colocar ordem no caos aparente danatureza e do cosmos. Essa dupla carência, organiza tanto o pensamento científico,quanto o não-científico. O pensamento selvagem (e não dos selvagens, como Levi-Strauss gosta de ressaltar, já que ele está presente no nosso cotidiano, por exemplona poesia) é organizado como mitológico-simbólico. Enquanto a ciência fundamenta-se na lógica - a observação empírica que busca construir conceitos e teorias a partirde leis gerais - o mito fundamenta-se numa perspectiva analógica.

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O conhecimento analógico se caracteriza pela significação (busca de sentido esignificado) a partir da relação de coisas de naturezas diferenciadas, ligadas pelacomparação. A forma inicial dessa comparação se faz pela relação Homem/Natureza.Para conhecer a natureza o homem a humaniza, ou seja, lhe confere característicashumanas como maneira de classificar os fenômenos naturais. Da mesma maneira,mas num processo inverso, para se identificar e se caracterizar socialmente, o homemse naturaliza, portanto lhe confere características que são próprias dos fenômenosnaturais que vivencia.

“A felicidade é uma gota de orvalho numa pétala de flor,

Voa tranqüila, depois de leve oscila,

E cai como uma lágrima de dor.”

Vinícius de Morais e a sua inspiração poética nos dão um ótimo exemplo. Paradefinir o caráter efêmero e passageiro da felicidade (expressão humana), ele utiliza-se de uma imagem natural – “a gota de orvalho numa pétala de flor”. O que eleproduz é uma pequena demonstração de naturalização do que é uma experiênciaessencialmente humana. Esse magnífico jogo de espelhos para a construção de umconhecimento da natureza e do próprio homem, não se limita a conhecer, mas tambéma intervir e manipular tanto o domínio natural quanto o social, afinal de contas, umanatureza com dotes humanos, é uma natureza mágica. A magia se apresenta comoa forma de ação humana na natureza, mas também, na própria sociedade, pois aposse do discurso mágico por alguns membros de determinado grupo, lhes conferepoder político sobre esse mesmo grupo.O discurso mágico-religioso é portanto uma forma legítima de conhecimento e fontede poder, pois quem conhece e manipula a natureza, tem a chave de acesso daquiloque os seres humanos necessitam para a sua sobrevivência e por isso deve serrespeitado. Os feiticeiros e xamãs têm grandes poderes para influenciar a vida socialde seus grupos, já que suas ações podem mudar o curso dos fenômenos naturais ehumanos, como por exemplo, na arte de curar. Em dois trabalhos de extremaimportância para a história da Antropologia – A Eficácia Simbólica e O Feiticeiro esua Magia (ambos compõem, entre outros estudos, a obra Antropologia Estrutural‘I’) – Levi-Strauss demonstra que o xamanismo (nome genérico dado às práticasmédicas pautadas por intervenções mágicas) tem poder real de cura a partir dautilização que o xamã faz da eficácia simbólica. Esse conceito demonstra que quandoo doente e o grupo social estão realmente convencidos do poder operado pelofeiticeiro, se realiza uma ação psicológica que desencadeia um processo de açãofisiológica de cura no doente, já que o ritual se orienta a dar uma explicação (umsignificado) sobrenatural à causa da doença, amenizando, assim, as angústiassentidas pelo doente e pelo grupo, que não encontravam respostas para origem deseus males.O autor faz uma comparação desse processo com a ação do psicólogo, que resolveos traumas dos seus pacientes através de um esforço de reconhecimento dosproblemas que originaram a sua falta de auto-aceitação individual e que lhe dificultao convívio social, ou seja, fazendo com que seu paciente atribua explicaçõescoerentes para as suas dificuldades, dessa maneira encontrando a sua própria “cura”.A diferença, diz Levi-Strauss, entre o psicólogo e o feiticeiro, seria que, enquanto oprimeiro usa uma ação psicológica (a terapia) para resolver problemas psicológicos(os traumas), o segundo utiliza uma ação psicológica (o ritual xamanístico) pararesolver problemas fisiológicos (a doença). Portanto, o feiticeiro seria um agente decura que estaria no meio do caminho entre o psicanalista e o médico.Essa ciência do concreto, na concepção levi-straussiana, tem o mesmo status que aciência, já que o conhecimento científico conheceu seu esplendor nos últimosduzentos anos, enquanto que o conhecimento mitológico garantiu a sobrevivênciada humanidade nos últimos dez mil anos.Essas considerações introdutórias sobre a visão estrutural de Levi-Strauss têm comoobjetivo demonstrar o quanto a antropologia ganhou em riqueza teórica a partir dosseus trabalhos. As características universalizantes do inconsciente humano e adeterminação de seus aspectos sobre a realidade social do homem, demonstramque, na verdade, as diferenças culturais são conteúdos variáveis de um conjunto deestruturas invariáveis. A universalidade do homem está mascarada pela diversidade.Levando a análise além da realidade concreta, Levi-Strauss nos evidencia que o

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caráter universal do homem se realiza nessa diversidade aparente, já que ele usa asmesmas estruturas inconscientes do pensamento de maneiras diferentes, naconstrução de realidades culturais a partir dos desafios que o mundo natural lheimpõe.

“O homem é semelhante ao jogador pegando na mão, ao sentar à mesa, cartas que não inventou,já que o jogo de baralho é um dado da história e da civilização. Em segundo lugar, cadarepartição das cartas resulta de uma distribuição contingente entre os jogadores, e se dáindependentemente da vontade de cada um. Existem as distribuições que são sofridas, mascada sociedade, como cada jogador, interpreta nos termos de vários sistemas, que podem sercomuns ou particulares: regras de um jogo ou regras de uma tática. E sabe-se bem que, com amesma distribuição, jogadores diferentes não fornecerão a mesma partida, embora não possam,compelidos também pelas regras, fornecer uma determinada distribuição de qualquer partida”.8

As criticas existem e são muitas. Para os que não concordam com o estruturalismo(e eles tem uma certa razão), Levi-Strauss matou o homem, ou melhor, o fez pareceruma mera marionete nas mãos de uma estrutura inconsciente, onde as realizaçõeshumanas significam muito pouca coisa. O homem não seria senhor do seu destino,mas um figurante manipulado por este. Ahistória teria pouca ou nenhuma importância,já que esta é o reino da ação humana. Para os marxistas (apesar de existir umaperspectiva estruturalista no interior do marxismo) e existencialistas, que consideramo homem agente privilegiado da História e senhor do seu destino, o estruturalismoseria quase uma aberração.De qualquer forma, não há como negar o enriquecimento e a complexidade queAntropologia conheceu após o surgimento da análise estrutural. Além disso, o mundonão-ocidental ganhou dignidade ao ser colocado em pé de igualdade com o universocultural do ocidente. Atualmente, alguns ramos da disciplina vêm tentando flexibilizara rigidez estrutural, a partir do estabelecimento de diálogos teóricos com outrasvisões sobre o homem, como por exemplo, o marxismo antropológico, a partir docruzamento das idéias de Karl Marx com o mundo conceitual de Levi-Strauss.

8 Claude Levi-Strauss – AAnálise Estrutural Em

Antropologia

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Desde o século XV, há uma longa caminhada das forças capitalistas em direção àconstrução de uma sociedade que lhe seja própria e ajustada aos seus interesses.Nesse processo histórico de afirmação da burguesia como classe hegemônica, houvea necessidade de criação de um espaço político apropriado aos seus objetivoseconômicos de produção e comercialização; um espaço de uniformidade legal eburocrática, que garantisse a paz e normalidade necessária para essas atividades,muito diferente, é claro, da descentralização político-adminstrativa e sua consequenteinstabilidade social, tão característicos do feudalismo. Esse espaço seria, portanto,o Estado-Nação.Estado, na concepção moderna e política do termo, seria a organização político-burocrática de um determinado espaço. Tendo como partes constitutivas fundamentaiso governo, o corpo burocrático-administrativo, as leis e o monopólio da violência(exército e polícia). Nação, por sua vez, seria espaço onde o Estado exerce o seupoder, tendo como partes constitutivas um território e suas bem demarcadas fronteiras,um povo, um idioma oficial e a noção de pertencimento (identidade cultural) queesse povo deve ter para aceitar o comando do Estado.Como já vimos acima, a construção do Estado-nação decorre de uma maneira maisexplicita, da crescente interferência de uma classe social específica – a burguesia –diretamente proporcional ao desenvolvimento das forças do sistema econômico queé comandado por ela – o capitalismo. Portanto, as noções introdutórias do pensamentopolítico que vamos discutir estão em relação direta com o estabelecimento docapitalismo no mundo e o assalto ao poder que a burguesia realiza na medida emque vai se tornando a classe economicamente dominante em relação aos gruposque comandavam os destinos do mundo medieval (o clero católico e a nobrezafeudal), ou mesmo quando esse mundo medieval não existia mais, a forma decomando que se apresentava como seu resquício, sua herança - o rei absolutista.Vale lembrar também que esse esforço realizado pela burguesia, resulta num processode dessacralização (deslegitimação da dominação construída a partir do discurso religioso)do ato político que lentamente vai se fundamentando num processo de racionalização(legitimação do poder político a partir de um discurso racional, “científico”). Deus vaisendo substituído pelo próprio homem e suas realizações na política.Os autores que discutiremos mais adiante tentaram, com as suas construções teóricas,justificar a existência do Estado-Nação a partir de uma íntima relação com os objetivossociais e econômicos vigentes desde o século XVI até os nossos dias. Daí deriva,também, a necessidade de afirmar quem deve comandar esse Estado. O rei, aburguesia, ou povo? Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseauutilizaram uma metodologia teórico-filosófica - o contratualismo – que leva emconsideração a observação das civilizações não-ocidentais (e mais especificamentea América indígena) para a análise da própria civilização européia, e obviamente, ajustificação do Estado-Nacional. É muito importante ressaltar nesse momento, queesses filósofos dos séculos XVII e XVIII utilizaram um procedimento antropológicoantes do surgimento como da antropologia como ciência.Porém, antes de analisar esses pensadores, vale discutir um aspecto fundamentaldo pensamento político e da própria política. A noção de poder. Para tanto, optou-sediscutir as idéias de um pensador contemporâneo que analisou as relações de poderna sociedade capitalista de uma maneira muito ampla, que não se restringiu à ciênciapolítica, mas partiu da história e da antropologia: Michel Foucault.Aescolha deliberadadesse autor para compor este trabalho, justifica-se pelo fato de que sua obra temrelevância não só para o tema “poder”, mas para áreas importantes no universocontemporâneo das ciências sociais, como a sociologia do conhecimento, históriadas ciências, assim como a preocupação com grupos minoritários de nossa sociedade,como os “doentes” mentais, os homossexuais e a sexualidade infantil e feminina.Porém, existem outros autores contemporâneos que podem e devem ser levadosem conta para uma análise mais aprofundada das relações de poder, como porexemplo Max Weber e Norberto Bobbio.

As implicações antropológicasno discurso político da Modernidade

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Michel Foucault e a relação saber-poderPensador francês que incomodou e atrapalhou a bem demarcada controvérsia entrea fenomenologia marxista e o estruturalismo levi-straussiano, nos anos 50/60 e iníciodos 70, Michel Foucault chega a estabelecer, segundo Machado, “um novo caminhopara as análises históricas sobre as ciências”9 , apesar do próprio pensador insistirno caráter sempre fragmentário de seus estudos.Foucault inicia sua trajetória intelectual na década de 50, a partir da construção deuma “arqueologia dos saberes” que possibilitasse compreender a emergência dohumano como sujeito, ou seja, como ser construtor de conhecimentos positivos noseio da formação do capitalismo na Europa, entre os séculos XVIII e XIX. Vale dizer,a elaboração do homem como sujeito implica, também, na sua objetivação. Naânsia repleta de interesses (econômicos, políticos) em conhecer, precisa empreenderum conhecimento do próprio humano; portanto torna-se sujeito, será também objeto.O autor propõe, então, formular uma visão da forma como o conhecimento positivo,que se convencionou denominar de ciência, dominou e sufocou a possibilidade deexistência das outras formas de conhecimento, deslegitimando-as. Descaracterizandoas demais formas de conhecer, eliminou, também, suas respectivas formas de agir.Assim, no decorrer histórico das hostilidades e lutas entre esses saberes, aqueleque se sobrepõe, formula, também, as relações de poder que vão domesticar,disciplinar as formas de ação do homem sobre o próprio homem.A cada livro publicado por Michel Foucault uma intercorrelação se impõe às suaspreocupações teórico-metodológicas: a indissolúvel articulação entre saber e poder.Procurando formular uma análise em áreas “não-privilegiadas” e periféricas doconhecimento – os comportamentos “desviantes” como o do louco, seu primeirofoco de análise – Foucault procurou demonstrar que o saber sobre esse “desvio”implicava, primeiro, num esmagamento da outras interpretações sobre a loucura;segundo, na formulação de uma forma de agir sobre ela; e, terceiro, na suainstitucionalização como prática de saneamento e recuperação, agindo em prol do“retorno” à “normalidade”. Além disso, que a fundamentação desse saber-poder sobreos desvios está em plena conformidade como a estrutura sócio-econômica vigente,o capitalismo, e com sua estruturação política maior, o Estado.É importante salientar, contudo, que o fato dessas formas articuladas de “saber-poder” estarem em plena conformidade com a macro-política do Estado - sendoeste o correspondente supra-estrutural da infra-estrutura econômica capitalista –não significa ser apenas uma decorrência lógica das relações do poder estatal, oumeramente, uma de suas expressões. O autor insiste na sua autonomia, a partir daluta entre os vários saberes, sem obviamente, negar que esta autonomia é cooptadapela ação estatal.Qual seria então, o rascunho de uma conceituação teórica, ainda que em forma deapontamentos, sobre o poder? Uma maneira segura de iniciar essa discussão seriaindicar o que o poder não é: uma coisa, algo palpável e material. O poder não é,também, uma instituição, apesar de sua realização se dar através de instituições.

“Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares,heterogêneas, em constante formação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é umaprática social, como tal, constituída historicamente”. 10

Foucault nos afirma que o poder só acontece a partir do seu exercício; ou seja, nãose detém poder, mas sim alguém que exerce poder. Por isso sua realização formula-se através de uma relação.

“Abordar o tema do poder através de uma análise do “como” é, então, operar diversosdeslocamentos críticos com relação à suposição de um poder fundamental. É tomar por objetode análise relações de poder e não um poder(...)”11

Além disso, não se configura uma relação de poder o exercício de dominação sobrealgo; sobre alguma coisa, aí temos a noção de capacidade técnica. Não é poder,também, uma relação de comunicação, ou seja, a forma pela qual se “transmiteuma informação através de uma língua, de um sistema, de signos ou de qualqueroutro meio simbólico”(...), apesar de que, completa Foucault, “a produção deelementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por conseqüênciasefeitos de poder, que não simplesmente um aspecto dessas. Passando ou não porsistemas de comunicação as relações de poder tem sua especificidade”12 .

9 Machado, R. “Por umagenealogia do poder”. In

FOUCAULT, Michel. “Microfísicado Poder”. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 4ª edição, 1984,295p.

10 Machado, R. “Por umagenealogia do poder”. In

FOUCAULT, Michel. “Microfísicado Poder”. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 4ª edição, 1984,295p.

11 DREYFUS, Hubert L. &RABINOW, Paul. “MichelFoucault: Uma Trajetória

Filosófica – Para além doestruturalismo e da

hermenêutica”. Tradução: VeraPorto Carrero. Introdução:

Traduzida porAntonio CarlosMaia. FU, 2000, p. 229-249.

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Por fim as relações de poder. O que seriam essas relações? Ou melhor, como seexerce as relações de poder em sua especificidade? Antes de qualquer coisa, umarelação de poder é uma ação de uns sobre outros, ou melhor, é ação de uns sobrea ação de outros, ou seja, para determinar-lhes a ação dentro de um campo depossibilidades. Antes de prosseguir o pensador nos adverte que, na sua concepção,não há espaço para a noção de consentimento dentro dessa conceituação;

“(...) ele não é (o poder), em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito,poder de todos e de cada um a alguns (o que não impede que o consentimento possa ser umacondição para que a relação de poder exista e se mantenha); a relação de poder pode ser oefeito de um consentimento anterior ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, amanifestação de um consenso”13 .

Assim como, o recurso de violência, para o autor, implica numa ação direta sobre ocorpo, e não numa ação sobre a ação do outro: “Uma relação de violência age sobreum corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fechatodas as possibilidades; (...)”14 . Portanto a violência e o consentimento – doisfundamentos tão caros à teoria clássica sobre o poder – são colocados antes, emrelação ao poder, como seus “instrumentos ou efeitos, não constituem, contudo, seuprincípio ou sua natureza”15 .Vale afirmar aqui que esta visão periférica da importância do consentimento e daviolência foi o suficiente para suscitar uma enorme controvérsia em relação aoscientistas políticos “tradicionais”, que podem enxergar aí uma tentativa dedesmoronamento do universo teórico dos autores contratualistas, assim como todoo seu arcabouço conceitual acerca das relações entre sociedade e Estado. Dequalquer forma, é importante salientar a necessidade que Foulcault tem de ultrapassar,sempre, a noção do Estado como fonte única de geração e exercício do poder, e quepara ele, as relações de poder estendem-se quase que infinitamente na complexidadedas relações do social, inclusive, e, justamente, em seus aspectos mais cotidianos ebanais. Mesmo assim não deixa de ser uma discussão interessante promover umdiálogo teórico entre esses dois universos conceituais.Mas retomando o empreendimento conceitual das relações de poder, Foucault,delimita, então, que sua natureza consiste num

“modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre suaprópria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes”.(o poder) se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente umarelação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual se exerce) seja inteiramente reconhecidoe mantido até o fim como o sujeito de uma ação (ação governada, é certo) e que se abra, dianteda relação de poder, todo um campo de respostas, reações efeitos, invenções possíveis.(...); eleincita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menosprovável; no limite, coage e impede totalmente, mas é sempre uma maneira de agir sobre umou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir, Uma ação sobreações”. 16

Dessa maneira o ato de “conduzir condutas” que é próprio da relação de poder, seconfigura a partir da restrição do espectro de possibilidades de ação do dominadopelo dominador a uma ação, o que implica, então, agir sobre a liberdade dos outrosde modo a determiná-la segundos os interesses de quem exerce o poder.

“O poder, diz o autor, só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto livres – entendendo-se porisso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidades ondediversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer”17 .

Além da relação de poder, implicar, necessariamente, numa refutação de parte dodominado, portanto, pela emergência de formas de resistência. Assim, a relação dedominação tem condição de existência, tanto o conflito imanente, quanto o jogo derelações estratégicas que impõe lógica de obtenção de empreendimentos para realizaras condições que compõe a relação de dominação. Nas palavras do próprio Foucault,

“como não poderia haver relações de poder sem pontos de insubmissão, que, por definição, lheescapam toda intensificação e toda a extensão das relações de poder, para submetê-lo conduzemapenas aos limites do exercício do poder; (...). Em suma, toda estratégia de confronto sonhatornar-se relação de poder; e toda relação de poder inclina-se, tanto ao seguir sua própria linhade desenvolvimento quanto ao se deparar frontais, a tornar-se a estratégia vencedora”18 .

12 Idem.13 Idem.14 Idem.15 Idem.16 Idem.17 Idem.18 Idem.

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Como vimos, Michel Foucault estabelece que as relações de poder estãodisseminadas no amplo espectro de relações de uma sociedade, permeando asações entre pais e filhos, professores e alunos, médico e doente, etc. Porém, mesmoreconhecendo esta infinidade de tipos de relações de poder, o autor não nega, contudo,a centralidade de uma forma específica: o poder estatal. Assim, o Estado, como onorteador das ações praticadas pelos indivíduos, categorias e classes sociais,encontrou, ao longo de seu processo histórico de formação (séculos XV-XVIII) umasérie de pensadores dispostos a realizar a elaboração teórica das justificativasideológicas de sua existência, e o que é mais importante, de seus objetivos. Osautores tratados aqui, como já se disse, contemplam uma visão sobre Estadofundamentada numa abordagem antropológica, sendo que outros autores e temasdo universo político estão dimensionados em outras partes desta obra.

Thomas Hobbes e o Estado LeviatãEste grande teórico do absolutismo vai, diferentemente do pensamento maquiavélico,utilizar-se de uma farta visão filosófica do homem para demonstrar aos homensreais de sua época, a necessidade do universo político endurecido pela autoridade e.pela constituição das leis. Hobbes é precursor de uma elaboração teórica muitoutilizada nas idéias de fundamentação política até o final do século XIX (mas parajustificar posicionamentos políticos diferenciados) denominada de contratualismoou teoria do contrato social, apresentado em sua obra máxima O Leviatã ou a Matéria,a Forma e o Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. Essa idéia nasce justamenteno impacto das grandes transformações do século XV para o século XVI e se arrastaaté os nossos dias.A transição Feudo-Capital nos trouxe a aventura magnífica das grandes navegações,com elas o Descobrimento da América, e a mais surpreendente das descobertas: oser humano até então ignorado pela civilização européia: O Homem Americano(denominado por Colombo de índio). Esse encontro trouxe um impacto até entãoimpensado na História da Humanidade, e, a partir dele, gerou um movimento duplode reflexão: (1) afinal de contas, quem ou o que são os índios? São humanos comonós ou animais? E (2) nós, o que somos? Será que éramos índios? Se éramos comoeles, o que nos fez mudar? Portanto, a curiosidade de se entender o outro levou àrefletir sobre si mesmo.Hobbes elaborou um discurso de legitimação do absolutismo monárquico a partir

desse tipo de reflexão. Para ele, o Homem americano,assim como o europeu num passado mais longínquo, éum Homem Natural, o homem que vive num Estado deNatureza. Como Maquiavel, esse pensador considera aessência da alma humana repleta de característicasmaléficas. Sendo assim, como se comportaria essehumano em Estado Natural, ou seja em plena liberdade,sem qualquer compromisso com seus pares, semreconhecer lei, autoridade ou propriedade? Homo hominilupos é a resposta que nos dá Hobbes: se a maldadeorienta a ação humana e se essa humanidade encontra-se em forma naturalizada, o homem é o lobo do própriohomem.O homem, livre de qualquer tipo de restrição exterior asua individualidade não permite a convivência pacíficaem sociedade, que por sua vez, torna estéril odesenvolvimento do seu lado construtivo e engenhoso.Portanto o Estado de Natureza é reino da guerrapermanente, da violência, da morte e do assassinato.De que maneira os homens conseguiram reverter essasituação para estabelecer a paz e, ao mesmo tempo,construir positivamente seu universo cultural? A únicaalternativa – ele nos diz – é partir de um acordo entre oshomens – o contrato social - estes renunciariam a esta

As justificativas do poder estatal

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liberdade destrutiva e se submeteriam ao poder de um déspota (um príncipe, diriaMaquiavel). Com isso, os homens transformariam esta liberdade abdicada em umaconcentração de poderes manipulados com mãos de ferro por um único homem,sendo esta a única e derradeira oportunidade de construção de uma sociabilidadecivilizada. Em outros termos, troca-se a liberdade política pela segurança, capaz degerar a liberdade econômica e a elaboração de um universo cultural superior, pautadospela “verdadeira” religião – o Cristianismo – e pelo “verdadeiro” conhecimento – aRazão.Esse ser que despreza a própria liberdade por não saber controlá-la, necessita deuma força muito maior que a sua - a força acumulada de vários homens, mas orientadapor apenas um – que é o Estado (civitas, em grego). Através da instituição do Estado,conheceríamos o nascimento de um novo homem – o Homem Artificial – quefinalmente encontra a paz, a segurança e a felicidade plena (como vimos, condiçõesnecessárias por sua vez para o florescimento das ciências e das artes, bem como dodesenvolvimento econômico). O homem, então estaria ambientado no Estado deCivilização.Para dar a dimensão da magnitude da força que caracteriza o Estado, que temcomo tarefa instaurar a convivência pacifica entre os seres humanos, Hobbes utilizauma alegoria bíblica, a do grande monstro Leviatã. A sua imagem está estampadana capa do livro (existem edições atuais que contém essa magnífica ilustração) e éa de um ser gigantesco que:

“(...) é moreno, de vastos cabelos e bigodes, com um olhar fixo, penetrante, com um sorrisoimperceptivelmente sarcástico (...). A parte visível de seu corpo, busto e braços, é feita demilhares de pequeninos indivíduos aglomerados. Com a mão direita empunha, erguendo-aacima do campo e da cidade, uma espada; com a esquerda uma cruz episcopal. Abaixo,enquadrando o título da obra, defrontam-se duas séries de emblemas em contrastes, uns deordem temporal ou militar, outro de ordem espiritual; uma coroa, uma mitra, um canhão, osraios de excomunhão; uma batalha de cavalos empinados (...)”.19

Hobbes identifica, por fim, todos os benefícios da sua visão política que legitima opoder do soberano, e ao mesmo tempo, fundamenta a necessidade do Estado, daseguinte maneira:

“(...) a arte do homem (...) pode fazer um animal artificial (...) Mais ainda, a arte pode imitaro homem, obra prima racional da natureza. Pois é justamente uma obra de arte esse grandeLeviatã que se denomina coisa pública ou Estado (...), o qual não é mais do que um homemartificial, embora de estatura muito mais elevada e de força muito maior que a do homemnatural, para cuja proteção e defesa foi imaginado. Nele a soberania é uma alma artificial, poisque dá a vida e o movimento a todo corpo(...). A recompensa e o castigo são seus nervos. Aopulência e as riquezas de todos os seus particulares, a sua força. Salus Populis, a salvação dopovo, é a sua função(...). Aequidade e as leis são para ele razão e vontade artificiais.Aconcórdiaé a sua saúde, a sedição, a sua doença e a guerra civil a sua morte. Enfim, os pactos e oscontratos, que, na origem, presidiram a constituição, agregação e união das partes desse corpopolítico, assemelham-se ao fiat ou o façamos o homem, pronunciado por Deus na criação”(Thomas Hobbes – O Leviatã).

O pensamento hobbesiano vai exercer um profunda influência sobre a teorização ea prática política do século XVII até os nossos dias. Criou o fundamental conceito deContrato Social que vai impor-se no Iluminismo do século XVIII para filósofos comoJohn Locke e Jean Jacques Rousseau. E, no século XIX, influenciou o positivismocientífico de Augusto Comte, Émile Durkheim e companhia, com as suas teoriasamparadas na biologia, para a elaboração do conceito de corpo social.

19 Jean Jacques Chevalier – AsGrandes Obras Políticas, deMaquiavel aos Nossos Dias.

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John Locke e o individualismo político.Até agora pudemos constatar o quanto esses pensadoresfundamentais da teoria política moderna levam emconsideração tanto uma visão dignificante quantodegradante do Homem. Maquiavel e Hobbes acreditamna formação de estruturas políticas modernas (Estados)feitas pela eminência das ações humanas; masacreditam, também que esta estrutura é imprescindívelpara minimizar o ímpeto auto destrutivo desse mesmoser. Sinal dos tempos. Os séculos XVI e XVII forammarcados tanto pela ideal renascentista (o homem, obraprima da natureza) quanto pelo temor da Contra-reforma(o homem, esse ser nefasto que ousa se rebelar contraDeus).Essa intrigante contradição vai perdendo o seu sentido,à medida que os ventos do tempo trazem o século XVIII.Nesse século “iluminado” e “iluminista”, o ser humanoperde sua face vil e mesquinha para ser, cada vez maisperfeito e repleto dos melhores aspectos que se podereconhecer: do pensamento racional e científico e atéuma certa ingenuidade, uma bondade natural,corrompida e aprisionada pelo pensamento religioso epelos déspotas. Estes últimos os representantes de umaépoca de trevas e obscurantismo que o homem deve,

utilizando suas forças benéficas, libertar-se o mais breve possível.Na verdade, essa visão exaltada do ser humano corresponde a um contexto dedesenvolvimento econômico bem sucedido da burguesia européia, e principalmenteinglesa, que está às portas da Revolução Industrial. A burguesia amadurece suasforças produtivas, torna-se a classe mais importante no contexto do Antigo Regime(séculos XVI/XVIII), sentindo-se forte e confiante para assaltar o poder político dasmãos do Rei e do seu suporte burocrático-militar, a nobreza. Além disso, o mundoburguês, alicerçado no desenvolvimento tecno-científico, não vê mais razão parasubmeter-se ao discurso dogmático do Cristianismo. O homem está a procura deum outro Deus: ele próprio.John Locke está imerso nessa atmosfera. O inglês que pode ser considerado, semsombra de dúvida, um iluminista, dirige toda a sua perspicácia intelectual a umdecidido objetivo: deslegitimar o Absolutismo Monárquico. Para tanto, se utiliza damesma estratégica teórica que Thomas Hobbes: a teoria do Contrato Social.Em sua obra, “O Ensaio Sobre o Governo Civil” (vale dizer, nome genérico, porquesua obra é composta por dois ensaios de denominação extensa), o Estado de Naturezanão é o reino da destruição humana; antes seu espaço de felicidade. Ali o homem, jáestá dotado de suas capacidades nobres – a razão e a liberdade – e já tem o seucantinho de realização – a propriedade (o canto do cisne para os ouvidos burgueses).Então, porque esse ser agraciado deixaria a natureza e abraçaria o Estado deCivilização? A explicação de Locke é que nesse universo natural impera também oindividualismo. Não que esta seja uma característica maléfica, pois o homem serealiza nela, mas a ação individual pode levar a uma situação em que o bom sensonão seja plenamente realizável, e o equilíbrio social possa estar ameaçado. Podemosafirmar, em síntese, que o homem é bom, mas ausência de regras para o convíviosocial pode colocar em risco sua vida feliz.Daí a necessidade do Contrato Social e do homem abdicar de apenas uma parte desua liberdade para o estabelecimento de regras sociais (as leis) e de um governo,visando garantir a continuidade de seu mundo caracterizado pelo Equilíbrio, Razão,Auto-Determinação e Vontade. Porém os homens não vão renunciar facilmente docontrole dos seus próprios destinos. No lugar de um déspota, eles se reservarão odireito de escolher seus próprios governantes, e se estes atentarem contra a liberdadedaqueles que o escolheram, os homens tem um compromisso com a insubordinação.Portanto aos seres humanos cabe o direito de escolher e remover os seus líderespolíticos, não ao seu bel prazer, pois há regulamentação através das leis, mas quando

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essas ações forem necessárias para manutenção e perpetuação da sua liberdadenatural.Locke estabelece também uma divisão nas formas de realização política por esseEstado Democrático, que serve tanto para racionalizar a competência dosgovernantes, quanto para evitar acumulação de poderes nas mãos de um só homem,e assim a sociedade não correr o risco do despotismo. Diz ele, que no Estado deNatureza, os homens guardavam para si dois direitos fundamentais, a saber: (1)direito à conservação, que determina que se pode fazer tudo o que for necessáriopara a conservação de si e de seus pares; e o (2) direito de punir aqueles quecometem os crimes que atentam contra o equilíbrio (frágil, no Estado de Natureza)da ordem natural dos homens.No Estado de Civilização, esses dois direitos vão se aperfeiçoar e vão originar osdois poderes fundamentais do governo civil: (1) o poder legislativo, ou seja, a buscade conservação através da elaboração das leis que vão determinar o equilíbrio entreos homens; e (2) o poder executivo, oriundo do direito de punir, que tem comoobjetivo fazer valer as leis que foram elaboradas pelo outro poder constituído. Éinteressante notar que no poder executivo, em Locke, está implícito também o poderjudiciário. Mas este poder só será separado do executivo na teoria política de outropensador iluminista, Montesquieu, em seu livro o Espírito das Leis, onde é plenamentedesenvolvida idéia de separação dos três poderes.Não é preciso muito esforço para notar a amplitude e a importância da teoriadesenvolvida por John Locke. Basta afirmar que todo país que se organizou emtermos democráticos é tributário das idéias desse pensador. O processo deconstitucionalização parlamentarista que ocorreu na Europa nos séculos XVIII e XIX,a elaboração do Estado Federativo do Estados Unidos da América (a constituiçãoamericana é uma obra escancaradamente lockeana) e o processo de constituiçãodas repúblicas em todo o mundo ocidental foi alimentado por seu corpo teórico.Porém, a fomentação do espírito de liberdade não pára por aí. Rousseau vem pararadicalizar essa busca tipicamente moderna do homem.

Jean Jacques Rousseau.Homem de letras e pensamentos amplos, que se estende não só ao universo político,mas à literatura, educação, e outras áreas, esse pensador, com suas idéias, orientouboa parte dos destinos políticos da Revolução Francesa. Além disso, é consideradopor muitos, uns dos fundadores das ciências humanas e principalmente, daantropologia, já que Levi-Strauss o considera como precursor da idéia dauniversalidade do humano para além de suas particularidades. Suas noções políticassão derivadas justamente dessa perspectiva pré-antropológica, já que parte dapremissa filosófica da Bondade Natural do homem. Para Rousseau, o homem noEstado de Natureza se realiza como o Bom Selvagem. Este viveria em situação deinfinita felicidade (maior que a natureza lockeana) até que um dia...

“(...) O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno,lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia o gênero humano aqueleque, arrancado as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: defendei-vos de ouvir esse impostor; estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que aterra não pertence a ninguém!” .20

Diferentemente dos autores que discutimos até agora, Rousseau, vislumbra um estadode natureza com espaço privilegiado a ação humana. Nesse ambiente, caracterizadopela relação direta do homem com os recursos natureza, e pela força coletivaorientando essa relação, seríamos plenamente realizados. O homem estaria livre daganância e do egoísmo. Mas algo desiquilibrou esse mundo harmonioso; a sociedadecivil (o Estado) teria nascido dessa atitude corrompida e perturbadora do equilíbrionatural do Homem: a criação da propriedade. Os governos e suas leis serviriampara defendê-la e manter a desigualdade entre os homens. Orientado pelos interessesindividuais, a propriedade instituída corrompeu a os interesses coletivos, gerou asdesigualdades e a pobreza levando a maioria dos homens (despossuidos) a umasituação de dependência em relação a outros homens (possuidores). Essa relaçãode dependência dos homens acabou por substituir a relação de dependência dascoisas, situação vivida por aqueles que estavam no estado de natureza, e que nada

20 Jean Jacques Rousseau - ODiscurso Sobre a Desigualdade.

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mais significa do que a relação direta do homem com a natureza e como formaprodução e reprodução de sua sobrevivência.Para sanar tal problema, Rousseau propõe-nos um novo Contrato Social que vise,pelo menos, amenizar as graves conseqüências da instituição da propriedade para asociabilidade dos homens. A idéia é que o novo pacto seja estabelecido com oconsentimento geral dos homens e que as perdas sejam diretamente proporcionaisaos ganhos. Nele, os homens iriam se despir de todo e qualquer direito de açãoindividual, visando a construção de uma ação coletiva, em que fosse estabelecidauma Vontade Geral, que, longe de ser uma somatória de vontades indviduais, seriajustamente a forma de impor o coletivo, o interesse geral, aquilo que beneficia atodos, mas não satisfaz nada que seja do âmbito do desejo individual. O autor deixa-se levar por um certo maniqueísmo, em que o mal se personifica no individual e obem no coletivo. Abdicando de seus direitos individuais, o homem torna-se parte deum todo e é retribuído, por isso, com os seus direitos coletivos, que, para Rousseau,é qualitativamente superior, porque está afinado com valores morais não-egoistas.Assim, todos obedecem a vontade geral, que por sua vez, garante a liberdade detodos. A partir da idéia de obediência e liberdade, o homem cidadão torna-serespectivamente súdito e soberano.

“Quando prevalece a opinião contrária à minha, isto prova apenas que eu me enganara, julgandoser vontade geral o que não era. Se tivesse prevalecido a minha opinião particular, eu teria feitoalgo diverso do que queria é então que não seria livre”

O contrato social rousseauniano pretende, portanto, anular as desigualdadesindividuais fundadas na violência e na usurpação e, no seu lugar, impor a igualdadecoletiva, fundada convenção (o comum acordo) e no direito (a lei como expressãoda vontade geral) como forma de resgatar a harmonia do bom selvagem e ataca osmalefícios de uma sociedade civil fundada nos interesses individuais, personificados,como já vimos, na idéia de propriedade. O pensador, contudo, não pretende comopode parecer, estabelecer uma sociedade socialista. Nem tampouco, suprimir aexistência da propriedade privada. Sua intenção está direcionada em remodelaressa noção. Para ele, a propriedade das coisas e dos bens deve ser atribuída aoEstado e direcionada para os interesses coletivos.As pessoas iriam deter tão-somentea posse desses bens. Desse modo, estaria anulada a possibilidade da propriedadecomo fonte de concentração de riqueza, e por conseguinte, de miséria, a partir deuma regulamentação, pelo poder estatal, dos excessos ocorridos pelos interessesindividuais. Deixaríamos de ter a propriedade-fato para usufruirmos da propriedade-direito.Vale ressaltar, porém, que essa visão de propriedade e sua regulamentação por

parte do poder estatal, não significa uma total equidadeentre os indivíduos. Representa, apenas, evitar grandesdistorções que levem a ruína da liberdade como peçafundamental da formação da sociedade civil. Já que,para Rousseau, não existe exercício de liberdade se ummínimo de igualdade não for garantida para a reproduçãoda condição e existência do contrato social, realizadoindispensavelmente por homens livres e iguais.“Quereis, portanto, dar consistência ao Estado? Aproximai os grausextremos, tanto quanto possível; não suporteis nem opulentos nemindigentes. Essas duas condições, naturalmente inseparáveis, sãoigualmente funestas ao bem comum... Que nenhum cidadão sejaassaz opulento para poder comprar outro e que nenhum será bastantepobre para se achar constrangido a vender-se.”

A soberania, que só pode ser exercida pelo e para opovo, encontra sua plenitude em algumas característicasfundamentais, que são:(1) Inalienável, ou seja, só ao povo é dada a capacidadede fundar a função política, sendo a representatividadeum entrave para o exercício da vontade geral, na medidaque delega a ação política a uma pequena parte do povo.Essa pequena parte, estaria muito vulnerável, segundoRousseau, a tentação dos seus interesses particulares;

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(2) Indivisível, não se pode delegar seu fazer político a outrem de maneira nenhuma,tanto pelo caso representativo – como acabamos de analisar, quanto pela possibilidadede uma classe ou categoria social específica (a burguesia, os intelectuais, os partidosou sindicatos) deter uma pequena parte, que seja, dessa soberania;(3) Infalível, a soberania, quando exerce verdadeiramente a vontade do povo, nãocorre risco de errar, já que, pela ótica maniqueísta do pensador, o coletivo é semprea encarnação do Bem e o particular, a própria materialização do Capeta; e, por fim,(4) Absoluta, o poder coletivo que expressa a vontade geral sobrepõe-seabsolutamente sobre as iniciativas pessoais e tem a primazia sobre qualquer situaçãoou circunstância.Por fim, a lei, que é a expressão máxima da Vontade Geral, é a maneira maissagrada de submeter as iniciativas individuais à força coletiva da sociedade. Rousseaudá um grande destaque à figura do Legislador, aquele sábio homem que tem porfunção catalisar os anseios e os desejos da vontade geral. E ao governo, que deveser o executor dos desígnios da vontade geral e cristalizadas na forma de leis pelolegislador. Na concepção Rousseauniana, o rei, príncipe ou governante eletivo (oque viríamos denominar de presidente) não deve ser encarado como o senhor dopovo, mas sim como seu servo.Interessante notar, que tanto apelo à liberdade e igualdade não implica, contudo naelaboração de um governo essencialmente democrático. O povo não pode exercê-lo diretamente por não poder desviar seu olhar dos interesses coletivos, já que ogovernante deve trabalhar pela coletividade através de atos particulares, que é,então vedado ao povo. Amelhor forma de governo, diz Rousseau, seria a aristocraciaeletiva, por seu um governo de poucos, substituído num determinado período detempo, o que diminui as tentativas do homem de governo de servo do povo, tornar-se seu senhor.

BIBLIOGRAFIA:DREYFUS, Hubert L. & RABINOW, Paul. “Michel Foucault: Uma Trajetória

Filosófica – Para além do estruturalismo e da hermenêutica”. Tradução deVera Porto Carrero. Introdução: Traduzida por Antonio Carlos Maia. FU,2000, p. 229-249.

FOUCAULT, Michel. “Microfísica do poder”. Tradução de Roberto Machado. 4ªedição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, 295 p, capítulos II, XI, XIV,XV.

MACHADO, Roberto. “Introdução: Por uma Genealogia do Poder” inFOUCAULT, Michel. “Microfísica do Poder”. Tradução de Roberto

Machado. 4ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, 295 p.

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LITERATURAO nascimento da literatura ocidentale a antiguidadeHomero e a IlíadaVirgílio e a EneidaA Idade Média e as literaturasnacionaisDante Alighieri e a Divina ComédiaCervantes e Dom QuixoteShakespeare e HamletDo Romantismo a ModernidadeGoethe e o FaustoBaudelaire e As Flores do MalO Indivídio e a literaturacontemporâneaKafka e O ProcessoDostoievski e Os Irmão KaramazovPessoa e sua Poesia

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A síntese de realismo e idealismo, que consiste em harmonizar as formas da naturezacom as formas ditadas pelo espírito, percorre toda a arte produzida na Grécia antigae constitui um princípio básico da estética ocidental, especialmente em seusmomentos de recuperação dos valores clássicos. A arte grega antiga remonta aosegundo milênio antes da era cristã e originou-se na ilha de Creta, próspero núcleocomercial, famoso pela decoração suntuosa de palácios como Cnossos e Festo.Foram desenvolvidos pólos gregos em filosofia, dramaturgia e poesia, ao lado dasistematização da história, artes plásticas, arquitetura e narrativas mitológicas comoa Teogonia, principal fonte de origem sobre deuses. Ainda, com o surgimento dascidades-estados (polis) – cidades politicamente ativas no século VIII a.C. é organizadaa primeira Olimpíada na cidade de Olímpia.Das cidades políticas gregas, destacaram-se: Atenas “democrática e comercial” eEsparta “oligárquica e agrícola”. Utilizavam-se de mão de obra escrava em todos ossetores da economia, sustentada sobretudo pelo comércio marítimo. Os principaiscultivos eram: oliveiras, videiras e trigo.No continente, a civilização micênica criou uma arte própria que deixou traçosprofundos na Cultura Helênica. No primeiro milênio a.C. produziu-se a arte gregapropriamente dita, que nos séculos IV e III a.C., por intermédio de Alexandre oGrande e seus sucessores, propagou-se para além do Egeu e do Mediterrâneo echegou até a Índia.Na segunda metade do século V, a arte clássica grega atingiu o apogeu, superandointeiramente os traços arcaicos e dirigindo-se rapidamente para o realismo idealizadoe para o rigoroso equilíbrio que se revelou no estilo “severo” não só na escultura,como nas demais artes e na arquitetura. Nasceu então uma concepção tipicamentegrega do universo, totalmente desligada de tradições culturais ou intelectuais herdadasdo mundo antigo. O novo conceito helênico da ordem universal e a vocação heróicainfluenciaram toda a produção artística grega.A Grécia continental passou a segundo plano quando, após a morte de Alexandre oGrande (323 a.C.), foram criados reinos independentes na costa da Anatólia e noEgito. O centro da produção artística do mundo helênico se deslocou para cidadescomo Rodes, Alexandria, Antioquia e Pérgamo.

O nascimento da literatura ocidental e aantiguidade

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Deu-seaesseperíodoonomedehelenístico,paradiferenciá-lo do helênico. De modo geral, foram paulatinamenteabandonados os princípios clássicos da harmoniarigorosamente orgânica e do movimento em potência, pararepresentar o movimento desencadeado, de influênciaasiática. Gradualmente, a arte deixou de satisfazer asnecessidades estéticas das comunidades para preencherasdos indivíduos.Teve inícioogostopelocolossal, aestéticado dramático, a representação da velhice, da fealdade e dainfância e a multiplicação dos retratos individuais.A era helenística marcou a transição da civilização gregapara a romana, em que inoculou sua força cultural. Não seencontra nela o esplendor literário e filosófico do períodoáureo da Grécia, mas divisa-se um grande surto da ciênciae da erudição. Chama-se civilização helenística a que sedesenvolveu fora da Grécia, sob influxo do espírito grego.Esse período histórico medeia entre 323 a.C., data da mortede Alexandre III (Alexandre o Grande), cujas conquistasmilitares levaram a civilização grega até aAnatólia e o Egito,e30a.C.,quandosedeuaconquistadoEgitopelosromanos.Grande parte do Oriente antigo foi então helenizado eassistiu-se a uma fusão da cultura grega, revitalizada nasáreas conquistadas, com as tradições políticas e artísticasdo Egito, Mesopotâmia e Pérsia.

Depois da morte de Alexandre, a transmissão da cultura grega persistiu nos grandescentros urbanos, embora sofresse influência dos costumes orientais. A tentativa deAntígonos, um dos mais antigos generais de Alexandre, de manter intacto o impérioconquistado pelo guerreiro macedônio, fracassou após a Batalha de Ipso, na Frígia(302 a.C.). A partilha do império foi feita entre três generais: Seleucos I Nicator,Ptolomeu I e Lisímacos. As lutas, entretanto, continuaram, e vinte anos depois oimpério foi dividido em três estados independentes: o reino do Egito ficou com osLágidas, descendentes de Ptolomeu; o da Síria, com os Selêucidas, descendentesde Seleucos; e o da Macedônia coube aos antigônidas, descendentes de AntígonosAlexandria, no Egito, com 500.000 habitantes, tornou-se a metrópole da civilizaçãohelenística. Foi um importante centro das artes e das letras, e a própria literaturagrega tem uma fase chamada “alexandrina”. Lá existiram as mais importantesinstituições culturais da civilização helenística: o Museu, espécie de universidade desábios, dotado de Jardim Botânico, Zoológico e Observatório Astronômico; e aBiblioteca, com 200.000 volumes, salas de copistas e oficinas para preparo do Papiro.O Reino Egípcio só terminou com a conquista de Otavius, no reinado de Cleópatra.O reino da Síria abrangia quase todo o antigo império persa até o Rio Indo. A capitalera Antioquia, outro grande centro da cultura helenística, perto da foz do Orontes, noMediterrâneo. Os selêucidas, entretanto, não puderam manter a unidade de seuvasto império, que acabou conquistado pelos romanos no século I a.C. Já o reino daMacedônia teve de enfrentar a luta das cidades gregas, ciosas da defesa de suaautonomia, e acabou incorporado ao Império Romano.Do ponto de vista cultural, o período compreendido entre 280 e 160 a.C. foiexcepcional. Tiveram grande desenvolvimento a história, com Polibius; a matemáticae a física, com Euclides, Eratostenes e Arquimedes; a astronomia, com Aristarcus,Hiparcus, Seleucus e Heráclides; a geografia, com Posidonius; a medicina, comHerofilus e Erasistratus; e a gramática, com Dionisius Tracius.Na literatura, surgiu um poeta extraordinário, Teocritus, cujas poesias idílicas ebucólicas exerceram grande influência. O pensamento filosófico evoluiu para oindividualismo moralista de Epicuristas e Estóicos, e as artes legaram à posteridadealgumas das obras-primas da antigüidade, como a Vênus de Milo, a Vitória deSamotrácia e o grupo do Laocoonte.À medida que o Cristianismo avançava, a civilização helenística passou a representaro espírito pagão que resistia à nova religião. O espírito grego não desapareceu coma vitória dos valores cristãos; seria, doze séculos depois, uma das linhas de força doRenascimento.

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A Homero se atribuem os dois maiores poemas épicos da Grécia antiga, que tiveramprofunda influência sobre a literatura ocidental. Além de símbolo da unidade e doespírito helênico, a Ilíada e a Odisséia são fonte de prazer estético e ensinamentomoral.De acordo com o historiador grego Heródoto, Homero nasceu em torno de 850 a.C.em algum lugar da Jônia, antigo distrito grego da costa ocidental da Anatólia, quehoje constitui a parte asiática da Turquia, mas as cidades de Esmirna e Quio tambémreivindicavam a honra de terem sido seu berço. Até mesmo as fontes antigas sobreo poeta contêm numerosas contradições, e a única coisa que se sabe com certeza éque os gregos atribuíam a ele a autoria dos dois poemas.A tradição lhe atribuiu também a coleção dos 34 Hinos homéricos, dos quais procedea imagem lendária de Homero como poeta cego, mas que depois se constatou seremde fins do século VII a.C.Os maiores especialistas gregos não admitem que tenha sido Homero o autor deobras como o desaparecido poema Margites ou a paródia épica Batracomiomaquia.As muitas lendas e a escassa confiabilidade dos dados biográficos sobre Homerofizeram com que já no século XVIII muitos questionassem até mesmo a existênciado poeta.As diferenças de tom e estilo entre a Ilíada e a Odisséia levaram alguns críticos aaventar a hipótese de que poderiam ter resultado da recomposição de poemasanteriores, ou de que teriam sido criadas por autores diferentes.Todas essas dúvidas constituem a chamada “questão homérica”, e permanecemabertas à discussão. Os pontos em que há maior concordância dos estudiosos são:a Ilíada é anterior à Odisséia; quase com certeza os dois poemas foram compostosno século VIII a.C., cerca de três séculos após os fatos narrados; foram originalmenteescritos em dialeto jônio, com numerosos elementos eólios - o que confirma a origemjônica de Homero; pertenciam à tradição épica oral, pelo menos no que se refere àstécnicas empregadas, já que existem opiniões divergentes quanto ao emprego ounão da escrita pelo autor.A versão na forma escrita, tal como se conhece hoje, teria sido feita em Atenasdurante o século VI a.C., se bem que a divisão de cada poema em 24 cantoscorresponderia aos eruditos alexandrinos do período helenístico. No decorrer desseperíodo teriam sido introduzidas várias interpolações. Com base nesses dados, todosmais ou menos hipotéticos, deduziram-se alguns dados básicos sobre Homero esua obra.Tanto a Ilíada como a Odisséia apresentam diversasinconsistências internas, como alusões a técnicas eequipamentos de combate que existiram em épocasdiferentes. Tais inconsistências, porém, poderiam serexplicadas pelo fato de o poeta, se é que realmente existiu,ter utilizado materiais anteriores e por terem sidoprovavelmente incorporados alguns outros.Quanto à existência de um autor único para a Ilíada, amais antiga das duas obras, argumenta-se que embora sejaevidente a existência de poemas épicos orais anterioressobre os mesmos temas, não parece haver existido nenhumde extensão sequer aproximada, nem dotado de talcomplexidade estrutural. Tal constatação indicaria aexistência de um criador individual, que deu uma novaestrutura aos temas tradicionais e integrou-os em sua visãopessoal da realidade.Encontramos na Ilíada a narração da guerra travada entregregos e troianos, no episódio conhecido como “Guerra deTróia”. Esta guerra teve origem, acreditam alguns, nos altosimpostos cobrados pelos troianos para a passagem deespeciarias no porto de Tróia, estrategicamente localizadono estreito de Dardanelos, entre os mares Egeu e de

Homero

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Mármara. Os gregos, insatisfeitos, em ação peloexército, destrói Tróia, tomando o controle sobre ocomércio marítimo na região, o que poderia teracontecido entre 1250 e 1240 a.C.Os que negam a autoria comum de ambas as obrasargumentam que a primeira foi composta em tommais heróico e tradicional e que a segunda tendemais para a ironia e a imaginação.Acrescentam aindao emprego de um léxico posterior na Odisséia. Já atese que defende a autoria única baseia-se naafirmação de Aristóteles, de que a Ilíada seria umaobra da juventude de Homero, enquanto a Odisséiateria sido composta na velhice, quando o poetadecidiu redigir a segunda obra como complementoda primeira e ampliação de sua perspectiva.Ambas as obras têm características comunsabsolutamente inovadoras, como a visãoantropomórfica dos deuses, a confrontação entre osideais heróicos e as fraquezas humanas e o desejode oferecer um reflexo integrador dos ideais e valoresda emergente sociedade helênica. Essesargumentos, somados à mestria técnica evidente nosdois poemas, favorecem a conclusão de que o autorda Ilíada, esse grande poeta jônico a quem os gregos

chamavam Homero, foi também o autor, ou principal inspirador da Odisséia.Ao mesmo tempo em que refletiram luminosamente a antiguidade mais remota dacivilização grega, os poemas homéricos projetaram-na adiante com tamanhaoriginalidade e riqueza que ela se faria presente nas mais diversas manifestaçõesda arte, da literatura e da civilização do Ocidente.Inúmeros poetas partiram de sua influência, inúmeros artistas se impregnaram desua fortuna criativa, seu colorido e suas situações, que se tornaram símbolo e síntesede toda a aventura humana na Terra, a ponto de o nome de um poeta cuja existênciamesma não se pode provar passar a confundir-se com a própria poesia. Quanto àmorte de Homero, a versão mais aceita é de que teria ocorrido em uma das ilhasCíclades.Como disse Platão, Homero foi, no mais pleno sentido, o educador da Grécia. Alémdisso, quase toda a literatura ocidental foi diretamente influenciada pelos poemashoméricos. A Eneida de Virgílio (30/19 a.C.), os Lusíadas de Camões (1572) e oUlisses de Joyce (1921) são apenas alguns dos exemplos...

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A Ilíada é a mais antiga e mais extensa das obras atribuídas a Homero; tem 15.693versos hexâmetros e, desde o Período Helenístico, costuma ser dividida em 24livros ou cantos de extensão variável. A divisão em cantos foi feita pelos filólogos deAlexandria.O nome do poema deriva de Ílion, nome alternativo da lendária cidadede Tróia, assim chamada em homenagem a Ilos, um dos ancestrais dos reis troianos.A cólera de Aquiles, como se anuncia desde o primeiro verso, é o motivo central daIlíada, epopéia do poeta grego Homero, que inicia a literatura narrativa ocidental.Relato de um dos episódios da guerra de Tróia, travada entre gregos e troianos, aação da Ilíada se situa no nono ano depois do começo da guerra, a qual duraria umano mais, e abarca no conjunto cerca de 51 dias. O título deriva de Ílion, nome gregode Tróia. A Ilíada narra um drama humano, o do herói Aquiles, filho da deusa Tétis edo mortal Peleu, rei de Ftia, na Tessália, em torno do fim da guerra dos gregoscontra Tróia. Segundo a lenda, a guerra foi motivada pelo rapto de Helena, esposado rei de Esparta, Menelau, por Páris, filho do rei Príamo, de Tróia. Agamenon,chefe dos exércitos gregos, arrebatara a Aquiles, o mais valoroso dos guerreirosgregos, sua cativa Briseide. Em protesto, Aquiles retirou-se para o acampamentocom seus guerreiros, e recusou-se a entrar em combate. É nesse momento que teminício a Ilíada, com o verso “Canto, ó deusa, a cólera de Aquiles”. Para apaziguarAquiles,Agamenon envia-lhe mensageiros, com o pedido de que entre na luta.Aquilesrecusa-se e Agamenon com seus homens entram no combate. Os troianos tomamde assalto as muralhas gregas e chegam até os navios. Aquiles concorda ememprestar a armadura a seu amigo Pátroclo, que repele os troianos mas é morto porHeitor. Cheio de dor pela morte do amigo, Aquiles esquece a divergência com osgregos e investe contra os troianos, vestido com uma armadura feita por Hefesto,deus das forjas. Consegue fazer recuar para dentro dos muros da cidade todos ostroianos, menos Heitor, que o enfrenta, mas aterrorizado pela fúria de Aquiles, tentafugir. Aquiles o persegue e finalmente atravessa-lhe com a lança a garganta, únicaparte descoberta de seu corpo. Agonizante, Heitor pede-lhe que não entregue seucadáver aos cães e às aves de rapina, mas Aquiles nega piedade, e depois deatravessar sua garganta mais uma vez com a lança, ata-o pelos pés a seu carro earrasta o cadáver em volta do túmulo de Pátroclo. Somente com a intervenção deZeus, Aquiles aceita devolver o cadáver a Príamo, rei de Tróia e pai de Heitor. Opoema termina com os funerais do herói troiano. Alguns dos personagens da Ilíada,em particular Aquiles, encarnam o ideal heróico grego: a busca da honra ao preço dosacrifício, se necessário; o valor altruísta; a força descomunal mas não monstruosa;o patriotismo de Heitor; a fiel amizade de Pátroclo; acompaixão de Aquiles por Príamo, que o levou a restituiro cadáver de seu filho Heitor. Nesse sentido, os heróisconstituem um modelo, mas o poema mostra tambémsuas fraquezas - paixões, egoísmo, orgulho, ódiodesmedido. Toda a mitologia helênica, todo o Olimpogrego, com seus deuses, semideuses e deidadesauxiliares, estão maravilhosamente descritos. Osdeuses, que mostram vícios e virtudes humanas,intervêm constantemente no desenvolvimento da ação,alguns em favor dos aqueus, outros em apoio aostroianos. Zeus, o deus supremo do Olimpo, imparcial,intervém apenas quando o herói ultrapassa os limites,ao proporcionar o tenebroso espetáculo de passear àvolta de Tróia arrastando o cadáver mutilado de Heitor.O poema encerra grande volume de dados e pormenoresgeográficos, históricos, folclóricos e filosóficos, edescreve com perfeição os modelos de conduta e osvalores morais da sociedade do tempo em que foi escritaa obra. Uma questão muito discutida é o fundo históricodo ciclo da guerra de Tróia. Possivelmente, sua origemremonta a reminiscências da luta, travada antes dainvasão dória, no século XII a.C., entre povos de culturamicênica, como os aqueus, e um estado da Anatólia, o

Ilíada

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de Tróia. É historicamente comprovada a existência de estabelecimentos micênicosna Anatólia, sem que se conheçam as causas possíveis da guerra. O mundo helênicoa que se refere a Ilíada não parece circunscrever-se ao de uma época cronológicadeterminada. É muito provável que as lendas foram incorporando elementos dediferentes etapas da civilização, no curso de sua transmissão oral e até textual.Aponta-se, por exemplo, a descrição de armamentos e técnicas militares, e atérituais, correspondentes a diferentes períodos históricos, desde o micênico aaproximadamente meados do século VIII a.C. Salvo alguns prováveis acréscimosatenienses, nenhum dado ultrapassa esse período, o que reforça a tese de que opoema foi redigido nesse último período. A língua e o estilo homéricos foram emgrande medida herdados da tradição épica. Por esse motivo, a língua, basicamenteo dialeto jônico, com numerosos elementos eólios, é um tanto artificial e arcaizante,e não corresponde a nenhuma modalidade falada normalmente. Amétrica empregadaé o hexâmetro, verso tradicional na épica grega.A Ilíada é antes de tudo poesia, isto é, uma linguagem diferente da linguagem do diaa dia. Em primeiro lugar ela era cantada. A sua música, que no entanto se perdeu,sem dúvida auxiliava na memorização desse longo texto. Em segundo lugar, ela éem versos. Não no sentido usual que esse termo tem hoje em dia, de empregar arima, mas na poesia grega os versos consistiam em um mesmo ritmo geral, que erao ritmo da própria música. Para compor obedecendo este padrão, o poeta era obrigadoa alterar a expressão natural, dando um efeito de artificialismo à expressão. E oestilo, por se tratar de tema sério, era elevado e solene.Devido as características da língua grega, é impossível uma tradução da obra queevidencie todas as suas qualidades formais. É como se víssemos uma tapeçariapelo avesso, apenas as suas linhas gerais poderiam ser observadas. Diante de tantasdificuldades a maioria dos tradutores brasileiros optou por uma tradução em prosa,traduzindo apenas o conteúdo sem se preocupar muito com a forma.Poucos aceitaram o desafio de traduzir Homero em versos. Se no século passadoficou famosa a tradução em versos de Homero feita por Odorico Mendes, nesteséculo é o trabalho de Carlos Alberto Nunes que se destaca.Este tradutor traduziu os dois poemas homéricos, a Ilíada e a Odisséia, em doisformatos, tanto em prosa como em verso. A tradução em prosa é, sem dúvida, demais fácil leitura para o leitor comum, mas a tradução em verso permite, uma vezultrapassados os obstáculos iniciais, que nos aproximemos em maior grau de algumasdas características formais da poesia homérica.Eis uma pequena lista com algumas das passagens mais notáveis:O ‘Catálogo das Naus’ (II)A ‘Observação do Alto da Muralha’ (III)O duelo entre Menelaus e Páris (III)A revista das tropas gregas (IV)As proezas de Diomedes (IV-V)O encontro de Diomedes e Glaucos (VI)O adeus de Héctor e Andrômaca (VI)A ‘Dolonéia’ (X)O ‘Engano de Zeus’ (XIV)A nova armadura de Aquiles (XVIII)A luta entre Aquiles e o rio (XXI)Os jogos fúnebres em honra de Pátroclos (XXIII)

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Virgílio(70 - 19 a.c.)

Considerado o maior poeta latino, era natural da regiãode Mântua - nasceu em Andes - e filho de uma famíliade camponeses proprietários. Alcançou pelo casamentouma situação estável, podendo então ouvir, emCremona, Milão e Roma, as lições de filósofosepicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido porMecenas, entrou em contato com o imperador, de quemrecebeu o incentivo para escrever a Eneida.Virgílio, uma das maiores expressões da intelectualidadelatina, viveu na época de Augusto, 44 a 14 a.C., e setornou célebre por suas obras. Durante essa época houvepaz., prosperidade e proteção às artes e letras, bemcomo um retorno aos valores tradicionais da vida romanae o fortalecimento de suas raízes: a vida campesina,familiar e religiosa.Admirador da cultura helênica, empreende uma viagemà Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destinoconcedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto da Brindisi.O seu túmulo encontra-se em Nápoles.A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude,as Bucólicas ou Éclogas , em número de dez, em que reflete a influência do gêneropastoril criado por Teócrito.As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratandoda agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bemdefinidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-socialda dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio.Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita.E finalmente, a Eneida, obra a qual à elaboração dedicou dez anos de sua vida, eque o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fossequeimada, constitui a epopéia nacional de Roma. Esta, refere-se a lenda do troianoEnéias, que, fugido de Tróia, saqueada e incendiada, acaba por chegar a Itália ondese tornará o antepassado do povo romano. Epopéia erudita, a Eneida tem comoobjetivo dar aos romanos uma ascendência não grega, formulando a cultura latinacomo original e não tributária da cultura helênica. O poema consta de doze livros ea sua construção serviu de modelo definitivo às grandes epopéias do renascimento,nomeadamente para Os Lusíadas , de Luís de Camões.

“... a Eneida é poema de Roma, da Roma de todos os tempos, da lendária e da histórica. Masnão só de Roma. Virgílio presta culto às virtudes antigas da estirpe, honra as conquistas dacivilização de seu tempo, mas antecipa a pureza da fé nos séculos vindouros, une o passado eo porvir com um áureo elo de poesia. Seu poema não é um poema oficial da Roma imperial,mas sobretudo um poema de profunda humanidade. Humanidade que despreza a guerra e quedeseja a paz....”

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Dizia uma lenda grega conhecida dos romanos que Enéias teria vindo à Itália. Oassunto da “Eneida” não é criação de Virgílio. A tradição, que prende a origem deRoma às lendas mitológicas, parece que foi introduzida na Itália já pelos fins do 9século antes de Cristo. Poetas como Ênio e Névio conheciam-na, e o tema era dodomínio popular. Virgílio a aproveita e nela incorpora a história de Roma, referindo-a no discurso de Anquises e na descrição do escudo de Enéias.É a grande epopéia do povo romano composta por Virgílio, que tomou as obras deHomero para modelos da sua. Virgílio utiliza como modelo épico a Odisséia, para osseis primeiros livros da Eneida. Inspira-se também na Ilíada, sobretudo para acomposição dos seis últimos cantos. Na Ilíada, Posídon salva o herói da morte edeclara seu destino:

"... Vamos, furtêmo-lo nós mesmos à morte, a fim de que não se irrite o filho de Cronos, se omatar Aquiles. O seu destino é escapar, para impedir que, por falta de semente, desapareça epereça a raça de Dárdano, que o filho de Cronos amou mais do que todos os filhos nascidosdele e de mortais. ..." Ilíada, canto XX, v.300 e seg., S.Paulo: Difel, 1961, trad. Octávio MendesCajado.

Incorpora episódios colhidos em outras fontes, como o reencontro de Dido e Enéias,que Névio cantara. Mostrou originalidade e talento, além de pesquisa, reflexão econhecimentos.Seu poema compõe-se de 12 livros. Era intenção do poeta escrever mais 3, só quenão pôde fazer por ter sido colhido pela morte. Estilizada no verso heróico ou seja,no hexâmetro, propõe-se a “Eneida” a celebrar a história do Império Romano, elouvar a César, como descendente de Enéias, o herói do poema.Começa por narrar (após célebre proposição) o terrível temporal que se abaterasobre a frota de Enéias, quando em fuga do desastre de Tróia. Enéias é filho de umadeusa, Vênus, e um mortal, Anquises, descendente da casa real de Tróia. Seu destinoé sobreviver à destruição de Tróia e fundar uma nova civilização na Itália. Enéiasfoge de Tróia levando consigo o velho pai, Anquises, os Penates (deuses pátrios), ofilho Ascânio (que será Iulo) e a esposa Creusa. Esta não terá êxito em segui-lo.Omaior traço de Enéias é a piedade. Como guerreiro, a coragem. Coroam essasqualidades a compaixão e humanidade.Tinha o príncipe reunido muitos guerreiros e com eles embarcado em direção àscostas da Itália. Na borrasca, muitas das naus soçobram. A de Enéias e mais seisconseguem aportar num sítio da África, onde os navegantes encontram a próspera

região de Cartago. Ali, Enéias conhece a rainha Dido,que lhe pede para contar sua história. o filho deAnquises começa, então, o relato de suas aventuras,que se abrem com os famosos versos:‘’Infandum, regina, jubes renovare dolorem.” (I,. II, v. 3)

(Mandas, Ô rainha, que eu renove uma indizivel dor. )

O amor que Enéias desperta em Dido, constitui agrande passagem lírica do imortal poema. Enéiasconta para a rainha a tomada de Tróia, o ardilconcebido por Ulisses relata as viagens queempreendera até chegar a Cartago. Dido, acometidade grande paixão, roga a Enéias para não deixá-la. Opríncipe, surdo às súplicas, resolve continuar viagem.Dido, não resistindo ao abandono, busca no suicídioalivio para sua desventura.Segue o herói para a Sicília. Cultua a memória de seupai, visitando os Campos Elísios, lugar no qual osromanos julgavam estar as almas dos mortos. Lá temum colóquio com o pai, que lhe mostra a raça de varõesilustres, os quais descenderão de Enéias e farão agrandeza do povo latino.

Eneida

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Eneida - Edições, Traduções e BibliografiaPúblio Virgílio Marão. A Eneida. Trad. de Nicolau Firmino. Porto: Livraria Simões Lopes,

1955.Virgílio. Eneida. trad. de Tassilo Orpheu Spalding. S.Paulo:Abril Cultural, 1983.Virgile. L'Éneide. trad. de Maurice Rat. Paris: Garnier, 1947. 2 volumes.L. Laurand et A. Lauras. Manuel des Études Grecques et Latines. Paris: Éditions A et J.

Picard et Cie. Tome II.H. Bornecque e D. Mornet . Roma e os Romanos. S.Paulo: E.P.U.-EDUSP, 1976.Augustín Millares Carlo. Historia de la Literatura Latina. México-Buenos Aires: Fondo de

Cultura Económica, 1950.Ettore Bignone. Historia de La Literatura Latina. Buenos Aires: Editorial Losada, 1952. Trad.

de Gregorio Halperín. Original: Il Libro della Letteratura Latina.Ettore Paratore. História da Literatura Latina. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987. Trad. de

Manuel Losa, S.J. Original: Storia della Letteratura Latina.Maria Helena da Rocha Pereira. Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Calouste

Gulbenkian, 1984, II vol. Cultura Romana.Ludwig Bieler. Historia de la Literatura Romana. Madrid: Editorial Gredos, 1968.Trad. de M.

Sanchez Gil. Original: Geschichte der Roemischen Literatur.Zélia de Almeida Cardoso. A Literatura Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

"Outros modelarão, bem o creio, bronzes com vida e sem dureza; extrairão dos mármoresseres animados; defenderão melhor as causas; medirão com o compasso o curso dos céus eanunciarão o nascer dos astros.

Tu, romano, sê atento a governar os povos com o teu poder - estas serão as tuas artes -, a imporhábitos de paz, a poupar os vencidos e derrubar os orgulhosos." Eneida VI, 847-853. In: Romana,ed. cit., p. 164.

Enfim, Enéias atinge o Lácio É bem acolhido pelo rei latino, que lhe promete a suafilha única, Lavinia, herdeira do trono. Com isso não concorda Turno, rei dos rútulos,povo também de origem latina. Eclode a inevitável guerra. Ferem-se vários combates,e, quando tudo indica a derrota dos troianos. Enéias volta ao campo, munido de umescudo que lhe fizera Vulcano (o mesmo que fizera a armadura de Aquiles), e mudaa sorte da luta. Na última batalha, um prélio singular entre os dois chefes se realiza.Enéias é ferido pelos guerreiros adversários, mas Vênus, envolvida numa nuvemescura, pensa-lhe a ferida. o herói se recupera, e volta ao duelo, a espada de Turnose parte, e ele foge, o príncipe teucro o persegue alcança-o e o mata.

A “Eneida” é considerada um misto da “Ilíada” e da “Odisséia”. Os seis primeiroslivros lembram a “Odisséia”, pois encerram as aventuras e viagens do herói; os seisúltimos, nos quais se historiam os combates de Enéias na península itálica lembramos feitos épicos da “Ilíada”. Tal é a observação feita por Sainte-llenve.Vergílio, não tendo tempo de rever sua obra, recomendara sua destruição no quenão foi atendido por L. Vario e Tuca, que avaliaram bem a sua importância.

Fonte: TAVARES, H. Teoria literária. [s.d.e.]

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Canto I – Partindo da Sicília, os navios de Enéias são atingidos por violentatempestade provocada por Éolo a pedido de Juno; (excertos 5 e 6); Netuno acalmaos mares (excerto 6); os navios são desviados para as praias do norte da África(excerto 8). Vênus intercede pelos troianos (excerto 9); a chegada a Cartago (excerto10); Dido acolhe os náufragos e lhes oferece um banquete durante o qual se apaixonapor Enéias (fig. 4).Canto II – Por solicitação de Dido, Enéias relata a história da guerra de Tróia,enfatizando os episódios que lhe determinaram o fim: o aprisionamento do gregoSinão, instruído por Ulisses para enganar os troianos, a introdução do cavalo demadeira na cidade, a saída dos soldados escondidos na calada da noite, a batalhanoturna, o incêndio, o ataque ao palácio do rei, a vitória dos gregos, a fuga de Tróia,com Anquises e Ascânio (fig. 5), o desaparecimento de Creúsa (excerto 11).Canto III – Continuando a narração, Enéias relata à rainha as peripécias e prodígiosque marcaram a viagem dos troianos: as escalas na Trácia (excerto 12) e em Creta,a partida para a Itália, o encontro com as harpias, a chegada ao Epiro e à Sicília e amorte de Anquises.Canto IV –Dido se apaixona por Enéias (excertos 13 e 14), convida os troianos paraparticiparem de uma caçada (excerto 15) e se vale de um encontro casual, duranteuma tempestade, para entregar-se ao chefe troiano (excertos 16 e 17). Censuradopor Júpiter, que lhe envia Mercúrio como emissário (excerto 18), Enéias se dispõe aabandonar Cartago, disposto a cumprir a missão para a qual fora preservado. Dido,desesperada, o amaldiçoa (excerto 19) e se suicida (fig. 6).Canto V – Chegando novamente à Sicília, Enéias realiza jogos fúnebres emhomenagem ao primeiro aniversário da morte de Anquises.Canto VI – Fazendo uma escala em Cumas, Enéias consulta uma sacerdotisa deApolo, toma ciência do que o espera, no futuro, e obtém permissão para fazer umavisita ao reino dos mortos (fig. 7); encontra-se com Anquises que lhe dá preciosasinformações e fala do futuro de Roma (excerto 20).Canto VII – Enéias chega à região do Tibre e o rei Latino se dirige ao oráculo deFauno (excerto 21); são enviados embaixadores troianos ao rei, que oferece a Enéiasa mão de sua filha, Lavínia. Amata, a rainha, se enfurece com a aliança, o mesmoocorrendo com Turno, chefe rútulo a quem a moça fora prometida em casamento. Édeclarada a guerra entre latinos e troianos. Turno obtém aliados, entre os quais osvolscos, chefiados por Camila (excerto 22)Canto VIII – Enéias procura fazer aliança com o rei Evandro enquanto Vênus solicitaa Vulcano armas para o troiano.Canto IX – Eclode a guerra. Turno ataca os acampamentos de Enéias e dois jovenstroianos, Niso e Euríalo, têm oportunidade de mostrar seu valor, embora encontrandoa morte. A mãe de Euríalo se lamenta (excerto 23). A guerra prossegue.Canto X – Júpiter procura conciliar Juno e Vênus, a fim de que a guerra chegue aofim (fig. 8). A violência, entretanto, continua. Há perdas importantes de ambos oslados. Morre Palante, o jovem filho do rei Evandro, aliado dos troianos.Canto XI – Faz-se uma trégua para que se enterrem os mortos; realiza-se o funeralde Palante (excerto 24); cogita-se numa proposta de paz; os exércitos inimigos,todavia, se defrontam. A carnificina é terrível e morre Camila, rainha dos volscos,aliada de Turno.Canto XII – Vendo o exército desanimado, Turno se dispõe a enfrentar Enéias numduelo; firmam-se as condições, mas o tratado é violado; uma seta fere Enéias eVênus o cura. O exército troiano chega até os muros da cidade e Amata se suicida.Trava-se o combate singular entre Enéias e Turno. O chefe troiano vence o inimigoe o sacrifica (excerto 25 e fig. 9).

Prof.ª Dr.ª Zélia de Almeida Cardoso (FFLCHUSP - DLCV)

Eneida - síntese

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A descoberta de novos continentes, a visão antropocêntrica do mundo, a invençãoda bússola e da imprensa, a afirmação dos estados nacionais e a difusão de variadasformas artísticas inspiradas no mundo Greco-Latino definiram a configuração doRenascimento, um brilhante período da cultura européia que se seguiu à Idade Média.Como Renascimento designa-se o poderoso movimento artístico e literário que surgiuna Itália dos séculos XV e XVI, irradiando-se depois para a Europa, promovendo emtoda parte um pronunciado florescimento da arquitetura, escultura, pintura e dasartes decorativas, da literatura e da música e um novo enfoque da política. Emborahoje também se fale, metaforicamente, em renascenças na história da civilizaçãoEgípcia antiga ou da Chinesa, trata-se na verdade de um fenômeno específico dacivilização européia moderna que, malgrado o intervalo da Idade Média, nuncaesqueceu suas bases na civilização Greco-Romana da antiguidade, da civilização“Clássica”. Considerado a princípio por eruditos e historiadores como umressurgimento da cultura clássica depois de um amplo declínio medieval, mais tardeo termo adquiriu também uma série de conotações políticas, Econômicas e atéReligiosas. Embora, de modo geral, o movimento tenha sido considerado como detotal oposição ao período medieval, alguns historiadores tendem a ver o Renascimentomais como um processo evolutivo do que uma ruptura profunda, pois diversasmanifestações renascentistas foram identificadas já no início do século XII. Entreesses prenúncios destacaram-se a redução da influência da Igreja Católica e doSacro Império Romano-Germânico, o surgimento das cidades-estados, odesenvolvimento das línguas nacionais e o início do desmoronamento das estruturasfeudais. Tendo descoberto o mundo, o Renascimento também quis dominá-lo pelainteligência. Não dispondo ainda das ciências naturais e matemáticas, de Galileu eDescartes, pretendeu realizar sua ambição pela magia, pelos estudos cabalísticos epela Astrologia, em que acreditavam mais que na religião cristã. No entanto, pelasfaçanhas desse individualismo, o Renascimento pagou um alto preço: a decadênciamoral. O espírito renascentista expressou-se desde cedo no Humanismo, movimentointelectual que teve início e alcançou seu apogeu na Itália.Os humanistas buscaram respostas para as questões do momento e para issorecorreram tanto ao Cristianismo como à Filosofia Greco-Latina. Criaram assim umsistema intelectual caracterizado pela supremacia do homem sobre a natureza epela rejeição das estruturas mentais impostas pela religião medieval. A intenção dohumanismo era desenvolver no homem o espírito crítico e a plena confiança emsuas possibilidades, condições que lhe haviam sido proibidas durante a épocamedieval. O anseio peloconhecimento e o espíritocientífico do homemrenascentista provocaramuma verdadeira revolução.Difundiram-se eaperfeiçoaram-se inventosorientais como a pólvora,que transformou aestratégia militar, e abússola, que permitiu osgrandes descobrimentosgeográficos. Talvez o fatomais marcante tenha sidoa invenção da Imprensa,atribuída ao alemãoJohannes Gutenberg. Odesenvolvimento dacartografia, os avanços naarte da navegação, oconhecimento da bússola,o desaparecimento dasrotas comerciais das

A Idade Média e as literaturas nacionais

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caravanas para o Oriente, devido à presença dos turcosotomanos, e o espírito dinâmico e curioso do homemmoderno foram fatores que se conjugaram para tornarpossíveis os grandes descobrimentos marítimos dosséculos XV e XVI, nos quais espanhóis e portuguesestiveram papel preponderante. As exploraçõesportuguesas, incentivadas pelo Infante D. Henrique oNavegador, foram protagonizadas por Bartolomeu Dias,que chegou até o Cabo das Tormentas (posteriormentecabo da Boa Esperança), no sul da África; Vasco daGama, que alcançou a costa da Índia; e , que no ano de1500 descobriu o Brasil. Os espanhóis, por sua vez,exploraram mais o Atlântico, pois pretendiam chegar àsÍndias pelo oeste, convencidos da esfericidade da Terra.O pioneiro dessas explorações foi Cristóvão Colombo,que realizou quatro viagens às terras que acreditavaserem a Índia e que constituíam um novo continente. Odia 12 de outubro de 1492, quando a primeira expediçãode Colombo desembarcou nas novas terras, éconsiderado a data do descobrimento daAmérica.Apartirde então e durante todo o século XVI os espanhóis,seguidos dos franceses, britânicos e portugueses,lançaram-se ao descobrimento de novas terras: HernánCortés conquistou o império asteca, Vasco Núñez deBalboa chegou até o mar do Sul (posteriormente oceano

Pacífico), Francisco Pizarro dominou o império inca, Álvar Núñez Cabeza de Vacapercorreu o sul do que seriam os Estados Unidos e Juan Sebastián Elcano conseguiucompletar a primeira circunavegação da Terra, iniciada por Fernão de Magalhães.

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Dante Alighieri nasceu em Florença em 1265 de uma família da baixa nobreza. Suamãe morreu quando era ainda criança e seu pai, quando tinha dezoito anos.Pouco se sabe sobre a vida de Dante e a maior parte das informações sobre suaeducação, sua família e suas opiniões são geralmente meras suposições. Asespeculações sobre a sua vida deram origem à vários mitos que foram propagadospor seus primeiros biógrafos, dificultando o trabalho de separar o fato da ficção.Pode-se encontrar muita informação em suas obras, como na Vida Nova (La VitaNuova) e na Divina Comédia (Commedia).Na Vida Nova Dante fala de seu amor platônico por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari),que encontrara pela primeira vez quando ambos tinham 9 anos e que só voltaria a ver 9 anosmais tarde, em 1283. Nos tempos de Dante, o casamento era motivado principalmente poralianças políticas entre famílias. Desde os 12 anos, Dante já sabia que deveria se casar comuma moça da família Donati. A própria Beatriz, casou-se em 1287 com o banqueiro SimonedeiBardie isto,aparentemente,nãomudoua formacomoDanteencaravaoseuamorporela.Provavelmente em 1285, Dante casou-se com Gemma Donati com quem teve pelo menostrês filhos. Uma filha de Dante tornou-se freira e assumiu o nome de Beatrice.Em 1290, Beatriz morreu repentinamente deixando Dante inconsolável. Esseacontecimento teria provocado uma mudança radical na sua vida o levando a iniciarestudos intensivos das obras filosóficas de Aristóteles e a dedicar-se à arte poética.Dante foi fortemente influenciado pelos trabalhos de retórica e filosofia de Brunetto Latini - umfamoso poeta que escrevia em italiano (e não em latim, como era comum entre os nobres),tendotambémsebeneficiadodaamizadecomopoetaGuidoCavalcanti -ambosmencionadosna sua obra. Pouco se sabe sobre sua educação. Segundo alguns biógrafos, é possível quetenha estudado na universidade de Bologna, onde provavelmente esteve em 1285.A Itália no tempo de Dante estava dividida entre o poder do papa e o poder doSagrado Império Romano. O norte era predominantemente alinhado com o imperador(que podia ser alemão ou italiano) e o centro, com o papa (veja mapa).A Itália, porém, não era um império coeso. Não havia um único centro de poder. Haviavários, espalhados pelas cidades, que funcionavam como estados autônomos e seguiamleis e costumes próprios. Nas cidades era comum haver disputas de poder entre gruposopositores, o que freqüentemente levava a sangrentasguerras civis. Florença era, na época, uma das maisimportantes cidades da Europa, igual em tamanho eimportância a Paris, com uma população de mais de 100mil habitantes e interesses financeiros e comerciais queincluíam todo o continente.Apolíticanascidades representavaos interessesde famílias.A afiliação era hereditária. A família de Dante pertencia auma facção política conhecida como os guelfos (Guelfi) -representados pela baixa nobreza e pelo clero - que faziaoposição a um partido conhecido como os guibelinos(Ghibellini) - representantes da alta nobreza e do poderimperial. Os nomes dos dois grupos eram originários departidos alemães, porém os ideais políticos eram um meropretexto para abrigar famílias rivais. Florença se dividiu emguelfos e guibelinos quando um jovem da famíliaBuondelmonti não cumpriu uma promessa de casamentocom uma moça da família Amadei e foi assassinado. Asfamílias da cidade tomaram partido por um lado ou por outroe Florença se dividiu em guelfos e guibelinos.Dante nasceu em uma Florença governada pelosguibelinos, que haviam tomado a cidade dos guelfos nasangrenta batalha conhecida como Montaperti (monteda morte), em 1260. Em 1289, Dante lutou com o

Dante Alighieri(1265-1321)

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exército guelfo de Florença na batalha de Campaldino,onde os florentinos venceram os exércitos guibelinosde Pisa e Arezzo, e recuperaram o poder sobre a cidade.Na época de Dante, o governo da cidade era exercido porrepresentanteseleitosdecorporaçõesdeoperários,artesãos,profissionais, etc. chamadas de guildas. Dante se inscreveunaguildadosmédicose farmacêuticosedisputouaseleiçõesem Florença, tendo sido eleito em 1300 como um dos seispriores (presidentes) do Conselho da Cidade.Amaior parte do poder em Florença estava então nas mãos dosguelfos - opositores do poder imperial. Mas o partido em poucotempo se dividiu em duas facções.Acausa foi novamente umarixa entre famílias, desta vez, importada da cidade de Pistóia. OsCancellieri era uma grande família de Pistóia, descendentes deum mesmo pai que tivera, durante sua vida, duas esposas. Afamília Cancellieri se dividiu quando um membro desajustado dafamíliaassassinouotioecortouamãodoprimo.Osdescendentesda primeira esposa do Cancellieri, que se chamava Bianca,decidiramseapelidardeBianchi.Osrivais,quedefendiamojovemassassino,seapelidaramdeNeri(negros)emespíritodeoposição.A briga tomou conta de Pistóia e a cidade acabou sofrendointervençãodeFlorença,que levoupresosos líderesdosgruposrivais.MasasfamíliasdeFlorençanãodemoraramatomarpartidoe, por causa de uma briga de rua, a divisão se espalhou pela

cidade, dividindo os guelfos em negros e brancos.Depois de criados, os partidos assumiram posições políticas. Os guelfos brancos,moderados, respeitavam o papado mas se opunham à sua interferência na políticada cidade. Já os guelfos negros, mais radicais, defendiam o apoio do papa contra asambições do imperador, que era apoiado pelos guibelinos.Os priores de Florença (entre eles Dante) viviam em constante atrito com a igreja de Romaque, sob o governo do papa Bonifácio VIII, pretendia colocar toda a Itália sob a ditadura daigreja. Em um dos encontros com o papa, onde os priores foram reclamar da interferência daigreja sobre o governo de Florença, Bonifácio respondeu ameaçando excomungá-los. Abriga entre os Neri e Bianchi tornou-se cada vez mais intensa durante o mandato de Danteaté que ele teve que ordenar o exílio dos líderes de ambos os lados para preservar a paz nacidade.Dante foiextremamente imparcial, incluindo,entreosexilados,umdosseusmelhoresamigos (Guido Cavalcanti) e um parente de sua esposa (da família Donati).No meio da confusão entre os guelfos de Florença, o papa decidiu enviar Carlos deValois (irmão do rei Felipe da França) como pacificador para acabar com a brigaentre as facções. A suposta ajuda, porém, revelou ser um golpe dos Neri para tomaro poder. Eles ocuparam o governo de Florença e condenaram vários Bianchi aoexílio e à morte. Dante foi culpado de várias acusações, entre elas corrupção,improbidade administrativa e oposição ao papa. Foi banido da cidade por dois anose condenado a pagar uma alta multa. Caso não pagasse, seria condenado à mortese algum dia retornasse a Florença.No exílio, Dante se aproximou mais da causa dos guibelinos (o império), à medida em quea tirania do papa aumentava. Ele passou o seu exílio em Forlì, Verona, Arezzo, Veneza,Lucca, Pádua (e também provavelmente em Paris e Bologna). Em 1315 voltou a Veronae dois anos depois fixou-se em Ravenna. Suas esperanças de voltar a Florença retornaramdepois que o sucessor de Bonifácio VIII chamou à Itália o imperador Henrique VII. Oobjetivo de Henrique VII era reunir a Itália sob seu reinado. Porém a traição do papa, queainda alimentava a idéia de ter um império próprio, seguida por uma nova vitória dos Nerie a morte de Henrique VII três anos depois enterraram de vez as suas esperanças.Na obra La Vita Nuova, seu primeiro trabalho literário de importância, iniciado pouco depoisda morte de Beatriz, Dante narra a história do seu amor por Beatriz na forma de sonetosecançõescomplementadasporcomentáriosemprosa.DuranteoseuexílioDanteescreveuduas obras importantes em latim: De Vulgari Eloquentia, onde defende a língua italiana, eConvivio, incompleto, onde pretendia resumir todo o conhecimento da época em 15 livros.Apenasosquatroprimeiros foramconcluídos.Escreveu tambémumtratado: DeMonarchia,onde defendia a total separação entre a Igreja e o Estado.ACommedia consumiu 14 anose durou até a sua morte, em 1321, ocorrida pouco após a conclusão.

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o imortal cantor de Beatriz estilizou sua epopéia numa nova espécie de gêneroliterário, por ele criada: o terceto. A obra é uma trilogia o inferno, o Purgatório e oParaíso. o poeta diz que, tendo se perdido numa floresta sombria, encontra Virgílio,a quem pede auxílio.

“Nel mezzo del camin di nostra vita

Mi ritrovai per una selva oscura,

Che la diritta via era smarrita.” (I, 1-2-3)

Virgílio o conduz, então, ao Inferno, em cuja a porta se lia a terrível inscrição:“Laseiati ogni speranza, voi ch’entrate!”

No primeiro ciclo, denominado Limbo, estavam as almas dos bons e justos, mas queviveram antes do Evangelho e, que, não tendo recebido o batismo, não puderamingressar no Paraíso. Lá estavam, entre outros, Sócrates, Platão, Homero, César emuitos outros filósofos reis, poetas e artistas, enfim, todos os ilustres pagãos. Nosegundo ciclo ou círculo, jaziam aqueles que foram condenados pelos pecados dacarne, pela luxúria ou concupiscência. Pertence a esse ciclo a desditosa história dalinda Francesca da Rimini, que narra ao poeta os seus pecados de amor. o episódioestá no canto V, no qual a infortunada paixão, que ligou Francesca ao seu cunhadoPaolo Malatesta, é descrita com notável e sentida urdidura trágica pela pena dogrande vate italiano. o amor de Francesca tão grande era, que nem ali pudera seacabar:

“Amor, che a nullo amate amar perdona,

Mi prese del costui piacer si forte,

Che, come vedi, ancor non m’abbandona.” (V, 103)

E diz ao poeta a desventurada: “Ed ella a me: “Nessun maggior dolore Che ricordarsidel tempo felice Nella miseria; é ciò sa il tuo dottore. “ (V, 121). Ainda nesse cicloestão as almas de Semiramis (rainha lendária da Assíria, esposa de Nino), Cleópatra,Helena,Aquiles, Páris, Tristão e Dido. No 3 ciclo vê-se Cérbero, o cão de três cabeças,dilacerando com os dentes as vítimas da gula. No quarto ciclo estão os condenadospelo mau uso da riqueza, sejam os perdulários, sejam os usurários. No 5 ciclo,revolvem-se em lama imunda, enquanto se atacam furiosamente os que forampunidos pela ira. Os hereges, encarcerados em sepulturas de fogo, são os moradoresda sexta região. Na sétima, encontram-se os tiranos e assassinos, submersos numrio de sangue; os suicidas transformados em árvores, entre as quais andamhorripilantes harpias: os que violaram Deus e a Arte;enfim, nele estão os violentos. No oitavo ciclo, está aFraude, de rosto humano e corpo de monstro punindoos aduladores, os hipócritas, os farsantes. No nono vê-se a morada dos traidores, tendo ao fundo Lúcifer, queostenta três rostos: o da impotência o do ódio e o daignorância. As suas bocas despedaçam três monstroshumanos: Judas Iscariotes, Bruto e Cássio (estes doisúltimos assassinos de César)Demandam a seguir o Purgatório. São recebidos porCatão e Virgílio, obedecendo às suas ordens, lava o rostodo poeta com orvalho, para limpar-lhe a fumaça doinferno. No primeiro socalco do Purgatório, os espíritosproclamam a vaidade das glórias terrenas e vozesdulcíssimas entoam: “Bem-aventurados os pobres deespírito” Eram as almas pecadoras por culpa da soberbaNo Purgatório todas as almas estão exaustas devido aopeso de enormes pedras. No segundo socalco acham-se os cegos, pois tinham as pálpebras cosidas, - eramos invejosos; no terceiro, os que pecaram pela cólera;no quarto, os que haviam caído por indiferença epreguiça; no quinto, os avarentos; no sexto, os gulosos,que sofriam fome e sede, aspirando a fragrância de frutos

Divina Comédia

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apetitosos; no sétimo e último, os incontinentes, queenalteciam a castidade.Virgílio conduz Dante até uma muralha de fogo, quenem sequer o chamuscou. No alto fica o Paraíso. Ali oMantuano se despede, e Beatriz toma-lhe lugar comoguia. No Céu, diz ter sido o poeta testemunha demaravilhas que não pode a língua humana descrever.Após invocar Apolo, o poeta descreve como se ergueudo Paraíso terrestre a esfera de fogo, Segundo as teoriasde Ptolomeu, a terra é fixa, e em volta dela, giram oscéus da Lua (primeiro céu), Mercúrio ( (2), Vênus (3),Sol (4), Marte (5), Júpiter (6) e Saturno (7). Ainda há ooitavo céu, que encerra dentro de si, todos os demais,pois em seu bojo havia a esfera das estrelas fixas. Noprimeiro céu, Dante sustenta interessante discussão comBeatriz a respeito das manchas da lua. No segundo,encontra o imperador Justiniano, que lhe explica serMercúrio a morada das almas boas, cujo amor a Deusestava, contudo, misturado com os afetos terrenos. Noterceiro, depara-se com a famoso Carlos Martel, rei daHungria. e também com Folco que tivera a coragem decensurar papas e cardeais. No quarto está Santo Tomásde Aquino, que faz o panegírico de Sao Francisco deAssis. Conversam ali também com São Boaventura eSalomão. No quinto céu ou Marte, entretém Dante

colóquio com um antepassado seu, que lhe prediz o futuro desterro; no sexto, emJúpiter, depara-se a morada dos que souberam administrar justiça com retidão nosétimo, em Saturno, estão as almas que passaram a existência em piedosacontemplação S. Bento dirigiu-se ao poeta, lamentando a vida dissipada daquelesmonges, que usavam seu nome. Ao erguer os olhos, contemplou o poeta esplendoresinefáveis, ouvindo a harmoniosa melodia do ‘Regina Coeii”. S. Pedro, S. Tiago e S.João interrogaram-no sobre questões de fé, no que se saiu bem. Finalmente, foialçado até o oitavo céu, no qual só habita a Divina Essência. Graças à intervençãode S. Bernardo, o poeta pode contemplar a Deus em todo seu esplendor, visão de taldoçura que as palavras humanas não na podem traduzir:

‘’Oh, quanto è corto il dire e come floco

Al mio concetto! E questo, a quel ch’io vidi, tanto, che non basta a dicer “poco”. “ Paraíso,C. 33, 121)

A “Divina Comédia”, na sua grande extensão de l00 cantos (34 para o Inferno; 33para o Purgatório e 33 para o Paraíso), é a grande epopéia medieval. É um repositóriode conhecimentos enciclopédicos, em relação à época. A física, a filosofia, a teologia,a geografia, a história, a política, a religião, — todas repontam na narrativa de Dante.Em verdade, constitui uma grandiosa súmula da arte e saber medievais, na qualVirgílio simboliza a razão e a filosofia, e Beatriz, a teologia e a fé.

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InfernoQuando Dante se encontra no meio da vida, ele se vêperdido em uma floresta escura, e sua vida havia deixadode seguir o caminho certo. Ao tentar escapar da selva,ele encontra uma montanha que pode ser a sua salvação,mas é logo impedido de subir por três feras: um leopardo,um leão e uma loba. Prestes a desistir e voltar para aselva, Dante é surpreendido pelo espírito de Virgílio -poeta da antigüidade que ele admira - disposto a guiá-lopor um caminho alternativo. Virgílio foi chamado porBeatriz, paixão da infância de Dante, que o viu em apurose decidiu ajudá-lo. Ela desceu do céu e foi buscar Virgíliono Limbo. O caminho proposto por Virgílio consiste emfazer uma viagem pelo centro da terra. Iniciando nosportais do inferno, atravessariam o mundo subterrâneoaté chegar aos pés do monte do purgatório. Dali, Virgílioguiaria Dante até as portas do céu. Dante então decideseguir Virgílio que o guia e protege por toda a longajornada através dos nove círculos do inferno, mostrando-lhe onde são expurgados os diferentes pecados, osofrimento dos condenados, os rios infernais, suascidades, monstros e demônios, até chegar ao centro daterra, onde vive Lúcifer. Passando por Lúcifer,conseguem escapar do inferno por um caminhosubterrâneo que leva ao outro lado da terra, e assimvoltar a ver o céu e as estrelas.

PurgatórioSaindo do inferno, Dante eVirgílio se vêem diante deuma altíssima montanha: oPurgatório. A montanha étão alta que ultrapassa aesfera do ar e penetra naesfera do fogo chegando aalcançar o céu. Na base damontanha encontram oante-purgatório, ondeaqueles que searrependeram tardiamentedos seus pecadosaguardam a oportunidadepara entrar no purgatóriopropriamente dito. Depoisde passar pelos dois níveisdo ante-purgatório, ospoetas atravessam umportal e iniciam sua novaodisséia, desta vezsubindo cada vez mais.Passam por sete terraços,cada um mais alto que o

outro, onde são expurgados cada um dos sete pecados capitais. No último círculo dopurgatório, Dante se despede de Virgílio e segue acompanhado por um anjo que oleva através de um fogo que separa o purgatório do paraíso terrestre. Finalmente,às margens do rio Letes, Dante encontra Beatriz e se purifica, banhando-se naságuas do rio para que possa prosseguir viagem e subir às estrelas.

Divina Comédia - síntese

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ParaísoO Paraíso de Dante é dividido em duas partes: uma material e uma espiritual. Aparte material segue o modelo cosmológico de Ptolomeu e consiste de nove círculosformados pelos sete planetas (Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno),o céu das estrelas fixas e o Primum Mobile - o céu cristalino e último círculo damatéria. Ainda no paraíso terrestre, Beatriz olha fixamente para o sol e Dante aacompanha até que ambos começam a elevar-se, “transumanando”. Guiado porBeatriz, Dante passa pelos vários céus do paraíso e encontra personagens comoSão Tomás de Aquino e o imperador Justiniano. Chegando ao céu de estrelas fixas,ele é interrogado pelos santos sobre suas posições filosóficas e religiosas. Depoisdo interrogatório, recebe permissão para prosseguir. No céu cristalino Dante adquireuma nova capacidade visual, e passa a ter visão para compreender o mundo espiritual,onde ele encontra nove círculos angélicos, concêntricos, que giram em volta deDeus. Lá, ao receber a visão da Rosa Mística, se separa de Beatriz e tem aoportunidade de sentir o amor divino que emana diretamente de Deus, “o amor quemove o Sol e as outrase s t r e l a s ” .o do Paraíso. Cinco anos

antes de sua morte, foiconvidado pelo governo deFlorença a retornar àcidade. Mas os termosimpostos eramhumilhantes, semelhantesàqueles reservados àcriminosos perdoados eDante rejeitou o convite,respondendo que sóretornaria se recebesse ahonra e dignidade quemerecia. Continuou emRavenna, onde morreu efoi sepultado com honras.Helder da RochaFontes: [Encarta 97],[Larousse 98], [Mauro 98],[Musa 95], [Cambridge].

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Miguel de Cervantes(1547 - 1616)Miguel de Cervantes nasceu em 1547, em Alcalá deHenares, cidade perto de Madri. É filho de um modestocirurgião. De formação autodidáctica, aos vinte e trêsanos é soldado em Itália; toma parte na Batalha deLepanto, na qual perde uma mão (1571). Aprisionadopor piratas, só se libertou cinco anos depois. Mais tardepassou a residir em Lisboa. Em 1580, voltou à Espanhae chegou a trabalhar como cobrador de impostos. Devidoa essa profissão, viajou por toda a Espanha, conhecendode perto as dificuldades de seus conterrâneos.Em 1585 publica a sua primeira obra, La Galatea,romance pastoril. Em 1605 publica a primeira parte deO Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, sendoimediato o seu êxito literário. Os últimos anos da suavida são caracterizados por uma intensa produçãocriativa: Novelas Exemplares, Viaje del Parnaso, Ochocomedias y ocho entremeses, e um romance deaventuras em que trabalha até à morte — La historia delos trabajos de Persiles y Sigismunda. Em 1615 publicoua segunda parte de Dom Quixote. Morreu no ano seguinte, muito conhecido masainda sem recursos.Em Miguel de Cervantes, representante máximo das Letras de língua castelhana,confluem todos os géneros novelescos até então cultivados: o picaresco, o pastoril,o mourisco e o cavalheiresco. Como poeta, cultiva quer a poesia italianizante quer atradicional. A sua obra principal neste domínio encontra-se nos sonetos e,particularmente, em Al túmulo del rey Felipe en Sevilla. Como autor dramático,destaca-se pelo tom humorístico de pequenas peças como El retablo de las maravillasou La cueva de Salamanca. Deve referir-se também a sua tragédia Comedia delcerco de Numancia, que só é publicada em 1784, sendo hoje considerada uma dasmelhores tragédias escritas em castelhano.

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Dom QuixotePor sua inovação - a história traz grande ousadia aomostrar os personagens comentando o próprio livro —,a obra de Miguel de Cervantes é considerada o primeiroromance moderno, um marco da literatura.A história nãopodia ser mais delirante: Dom Quixote é um nobreespanhol que de tanto ler histórias de cavalaria passa aacreditar nos feitos dos cavaleiros medievais e decidese tornar um cavaleiro andante.Dom Quixote era um fidalgo, filho de pais ricos. Noentanto, durante sua vida ele vai perdendo sua riqueza,pagando dívidas e comprando livros, mergulhando naliteratura em busca da solução para essas dificuldades.A história mostra esse ingênuo senhor rural cujopassatempo favorito era a leitura de livros de cavalaria.Na sua obsessão, acreditava literalmente nas aventurasdescritas e decide tornar-se um cavaleiro andante. DomQuixote começa a agir como um cavaleiro em busca deuma mudança, uma nova vida. Ele já tinha uma idaderelativamente avançada e vivia muito só, por isso deixa-se levar pela imaginação e passa a viver num mundoilusório, fantasioso.Muito mais que uma sátira às novelas de cavalaria, a

obra é também uma exaltação ao idealismo e à amizade, retratada no relacionamentoentre Dom Quixote e Sancho Pança. Quixote é um louco, mas tem as grandesvirtudes humanas da esperança e da dignidade. A dupla ficou tão conhecida que setornou uma das maiores fontes de inspiração para artistas, escritores, cineastas,dramaturgos. Uma das imagens mais conhecidas é o desenho feito pelo artista plásticoespanhol Pablo Picasso do cavaleiro e de seu escudeiro, com os famosos moinhosde vento ao fundo.Com uma armadura de sucata e papelão e o cavalo, um decrépito pangaré. O fielescudeiro Sancho Pança, um ingênuo lavrador, e se auto-intitulando Dom Quixotede La Mancha, o nosso herói confunde a realidade com as histórias dos livros e saipelo mundo em busca de aventuras. As viagens se sucedem sob a alucinação dequem deseja combater as injustiças do mundo. O nobre e patético Quixote enfrentasituações supostamente perigosas e ridículas: imagina gigantes em rodas d´água;vê um cavaleiro de elmo num barbeiro; ajuda criminosos a fugirem, pensando estarlibertando escravos... Será que o nosso herói recupera a razão?Em suas andanças, Dom Quixote encontra moinhos de vento que na sua alucinaçãosão tomados por cavaleiros em armas, por gigantes que ameaçam sua adoradaDulcinea. Sancho alerta Dom Quixote para o engano. Dom Quixote aproximou-sedos moinhos e arremeteu de lança em riste contra o primeiro moinho. O vento ficoumais forte e lançou o cavaleiro para longe. Sancho socorreu-o e reafirmou que eramapenas moinhos. Dom Quixote, respondeu que era Frestão quem tinha transformadoos gigantes em moinhos.Na batalha conta o “exército de ovelhas” é relatado o encontro de Dom Quixote comdois rebanhos de ovelha. O cavaleiro, com todo o seu sonho, criou paisagens,personagens que não existiam, atribuindo-lhes armas, coroas e escudos. Foi entãoque o “herói” avançou em direção ao rebanho e foi surrado pelos pastores e pelaspróprias ovelhas.Ao final da segunda parte do livro, Dom Quixote volta à razão , renuncia aos romancesde cavalaria e morre como piedoso cristão.

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William Shakespeare, um dos maiores poetas de todos os tempos, nasceu em Abrilde 1564 na cidade de Stratford-upon-Avon. Existe uma pequena controvérsia sobrea data de nascimento de William. Sabe-se que ele foi batizado no dia 26 de Abril,como era comum batizar as crianças após alguns dias do nascimento e como o dia23 de Abril é dia de São Jorge (o santo da Inglaterra) , muitas pessoas dizem que opoeta mias famoso da Inglaterra nasceu neste mesmo dia (23 de Abril).Os pais de William eram John e Mary Shakespeare. William foi o terceiro filho anascer e também o primeiro homem. John (o pai) era um trabalhador de couro, elefabricava cintas, bolsas e luvas. Aparentemente ele era um cidadão respeitado, elechegou a até ter o cargo que é comparável a prefeito da cidade. Porem suas dividaso alcançaram e ele perdeu quase tudo. Se você quiser saber mais sobre a família deShakespeare Clique Aqui para ver a genealogia completa de Shakespeare.A educação de Shakespeare veio principalmente da A Escola do Novo Rei(“TheNew King’s School”). Nesta escola os alunos aprendiam o Latim e liam diversoslivros (em latim e em outras línguas). O horário escolar durava nove horas, começavaas seis ou as sete dependendo da estação do ano. Outra fonte de educação veio daigreja, lá Shakespeare foi exposto à Bíblia e a diversos livros de reza.Uma possível fonte de inspiração foi a paisagem do interior de Warwickshire (ondeficava Stratford-upon-avon ). Essas paisagens são mencionadas em varias obras deShakespeare.No dia 28 de Novembro de 1582 William Shakespeare se casa com Anne Hathaway.William tinha 18 anos de idade e Anne 26. Muitos acreditam que Anne estava grávidade três meses quando se casou isto é reforçado pelo fato da cerimônia ocorrer tãorapidamente. Isto também explica o por que Shakespeare se casou com uma mulherque era oito anos mais velha do que ele.Susanna foi a primeira filha de Shakespeare, ela foi batizada no dia três de Maio de1583. Dois anos depois os gêmeos Judith e Hamnet.Após o nascimento dos gêmeos pouco se sabe sobre a vida de Shakespeare. Essesanos (de 1586 a 1592) são conhecidos como os anos perdidos. Existem muitasteorias sobre o que aconteceu na vida de Shakespeare durante estes anos. Ninguémsabe com certeza por que Shakespeare se mudou de Stratford e foi para Londres.A teoria mais aceita diz que, Shakespeare teve que se mudar porque caçou nasterras de um Senhor Thomas Lucy que pelo jeito era um cara muito importante.Shakespeare se mudou para Londres porque não queriasofrer com a pena que seria dada a ele. Também dizemque Shakespeare se vingou de Lucy na obra As AlegresComadres de Windsor.Londres foi o lugar onde Shakespeare se destacou comoum dos maiores poetas de todos os tempos. Foi emLondres onde tudo começou e foi em Londres onde elefez o maior sucesso. Foi também em Londres onde eleescreveu suas maiores obras. Tudo o que podemosafirmar é que por volta de 1592 Shakespeare já estavasendo reconhecido por seu trabalho no teatro. E tambémpor volta deste período ele já tinha escrito A Comédiade Erros, A Megera Domada e pode ter escrito TitoAndrônico , Henrique VI (as três partes) e talvez aindaRicardo III.Desde o inicio de sua carreira Shakespeare se associacom varias companhias teatrais, ele tinha um ambientede trabalho muito fluente. Mas tudo mudou quando apeste chegou a Inglaterra, e todos os teatros foramfechados. E só re-abriram de verdade na primavera de1594.1594 - 1599 foram anos excelentes para Shakespeare,ele produziu varias obras de altíssima qualidade. Elecontinuou como ator principal e administrador da

William Shakespeare

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companhia “The Lord Chamberlain’s Men” que tambémfoi formada durante está época(1594). Durante estesanos a companhia virou a mais popular de Londres, etambém foi a que mais se apresentou na corte.Aparentemente a família de Shakespeare continuavamorando em Stratford enquanto ele trabalhava emLondres. Em Agosto de 1596, seu único filho Hamnetmorreu (Hamnet tinha somente 11 anos de idade).Em 1603 a rainha Elizabeth morreu e James VI daEscócia virou James I da Inglaterra. A idade Jacobinacomeçou, e com isto o grupo “The Lord Chamberlain’sMen” tornaram-se o grupo “The Kings Men” pois eram ogrupo patrocinado pelo reino.Em algum tempo entre 1599 e 1601 Shakespeareescreveu Hamlet, e depois disto escreveu as chamadaspeças problemáticas até que em 1608 escreveu osgrandes romances. Muitos perguntam porque a mentede Shakespeare virou as tragédias, o que levou ele aescrever as peças problemáticas. Existem variassugestões sobre o que aconteceu mas isto é para outrahora. De qualquer maneira o importante é que o estilode Shakespeare mudou drasticamente, de comedia(anos 90) para tragédia, e dai para romance.Shakespeare terminou sua carreira trabalhando com o

novo escritor do grupo “The King’s Men” John Fletcher. Junto a John ele escreveutrês peças finais, Henrique VIII (1613), Os Dois Nobres Parentes(1613 ou 1614) e apeça que hoje está perdida Cardenio.As duas primeiras ai não são as peças prediletasde ninguém, e pouco se sabe sobre a ultima.Shakespeare com certeza foi tratado por, Dr. Hall, seu genro. Não se sabe (paravariar) qual foi a doença que acabou com a vida do poeta. Mas com certeza foialguma coisa da idade. Qualquer foi a causa da sua morte Shakespeare chamouseu advogado para fazer uma revisão final em seu testamento. Shakespeare morreuno dia 23 de Abril e foi enterrado no dia 25 de Abril.

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O Rei Hamlet da Dinamarca, morrera subitamente. Dois meses depois, a RainhaGertrudes casou-se com seu cunhado, Cláudio. O jovem príncipe Hamlet, filho dofalecido monarca e legítimo herdeiro do trono, não se conformou com a leviandadeda rainha. Amando o pai, possuindo senso de honra, ficou profundamente magoadocom o procedimento da mãe. Perdeu toda a alegria; já não encontrava prazer naleitura ou nos exercícios próprios da juventude. O mundo parecia-lhe hostil e triste.O que mais perturbava Hamlet era não saber ao certo como morrera o pai. Cláudioafirmava que o rei tinha sido picado por uma serpente, mas Hamlet suspeitava deque a serpente fora o próprio Cláudio.Chegou aos ouvidos de Hamlet o rumor de que um fantasma, parecidíssimo comseu pai, fora visto pelas sentinelas do palácio duas ou três noites seguidas. Aapariçãousava a mesma armadura do rei. O espectro aparecia quando o relógio batia meia-noite e entre os que o haviam visto estava Horácio, amigo íntimo de Hamlet.Assombrado com a narrativa, Hamlet não teve dúvida de que se tratava do espectrodo pai, e decidiu montar guarda com os soldados.Como nas noites anteriores, o fantasma apareceu e confessou a Hamlet que era asombra do Rei, e que fora cruelmente assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, quepretendia casar-se com Gertrudes e ocupar o trono – exatamente como suspeitara op r í n c i p e .Perturbado com a estranha ocorrência, Hamlet esteve a ponto de ficar louco. Seucomportamento diante dos outros já não era o mesmo. Temendo que seuprocedimento acabasse despertando a desconfiança do tio, resolveu fingir querealmente enlouquecera; só assim o rei deixaria de suspeitar dele, julgando-o umlouco inofensivo.Antes da morte do pai, Hamlet amava uma moça chamada Ophelia, filha de Polônio,o principal conselheiro do rei. Fizera-lhe muitas declarações de amor e cercava-a deatenções carinhosas. Ofélia acreditava na sinceridade de Hamlet. Durante a suacrise de melancolia, o príncipe a esquecera. Agora, fazendo-se de louco, passara atratá-la com desprezo, gestos e palavras rudes. Entretanto, meigas lembranças deOphelia muitas vezes o enterneciam. Arrependido de algumas palavras mais rudes,escreveu a Ophelia uma carta apaixonada e extravagante, mas entremeada de frasesafetuosas. Ophelia, de acordo com os costumes antigos, mostrou a carta ao pai, e ovelho a levou ao rei e à rainha. Estes, diante daquela prova evidente, não tiverammais dúvidas de que era o amor o verdadeiro motivo da loucura de Hamlet.Mas Hamlet ainda queria vingança pela morte do pai, e nessa época surgiu nopalácio um grupo de atores. Teve a idéia de fazer o grupo representar para a cortealguma peça, na qual aparecesse uma cena semelhanteà do assassínio de seu pai. Teria então, oportunidadede observar no rosto do tio o efeito produzido peloespetáculo. Poderia ter desse modo uma idéia maissegura sobre a culpa de Cláudio. Com esse intuito,ordenou que se preparasse uma representação para aqual convidou o rei e a rainha.A peça escolhida narrava o assassínio de Gonzaga, umduque de Viena. Quando, na peça, Luciano apareceupara envenenar Gonzaga, adormecido no jardim, a cenaperturbou de tal forma o tio que este, fingindo um súbitomal-estar, deixou bruscamente a sala.Logo em seguida, a pedido do rei, Hamlet foi chamadoaos aposentos da rainha. Esta devia dizer-lhe o quantodesgostara a ambos o procedimento do príncipe.Receando que Gertrudes escondesse algum detalhe daconversa, o rei ordenou à Polônio que se colocasse atrásdas cortinas do quarto da rainha.Num momento da discussão, Polônio fala de trás dacortina, e Hamlet acreditando que o rei ali se escondera,puxou da espada e golpeou várias vezes o pano. Quandoarrastou o corpo, viu que se tratava de Polônio.Com a morte do pai, Ophelia começara a sofrer gravesperturbações. Quando andava pelas margens de um

Hamlet

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riacho, caiu nele e acabou por afogar-se. Hamlet chegoudurante a cerimônia do enterro, quando Laertes,alucinado pela dor, ao perceber Hamlet, causador damorte do pai e indiretamente da irmã, partiu para ele eagarrou-o como um inimigo. Depois do enterro, Hamletpediu desculpas e os dois jovens pareceramr e c o n c i l i a d o s .Mas o rei Cláudio, sempre procurando eliminar osobrinho, convenceu Laertes de que, celebrando aspazes, devia bater-se em esgrima com Hamlet.Influenciado pelo rei, Laertes preparou uma armaenvenenada. Depois de alguns lances, Laertes feriumortalmente Hamlet com esta arma. Na confusão daluta, as espadas foram involuntariamente trocadasdepois de caírem no chão. E chegou a vez de Laertesser também atingido por um golpe mortal.O rei preparara para Hamlet uma taça de vinhoenvenenada, caso falhasse a espada de Laertes.Esquecera-se porém, de prevenir a rainha, e esta, tendobebido dessa taça, morreu em terríveis convulsões,declarando ter sido envenenada. Quando Hamlet sentiuque seu fim se aproximava, voltou-se contra o traiçoeirotio, atravessando-lhe com a espada, e força-o a beberda taça envenenada. Cumpria enfim a promessa quefizera ao espectro do pai.

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Do Romantismo a Modernidade

Goethe

A poucas pessoas é possível denominar de modo tão tranqüilo o epíteto de gênioquanto a Johann Wolfgang von Goethe. Goethe se destacou de tal forma na literatura,ajudou a criar um movimento literário, o Romantismo, que influenciou e guioupraticamente toda a cultura alemã e, no seu rastro, a universal. Nascido em 1749,em Frankfurt-sobre-o-Meno, ainda adolescente já estudava italiano, latim, grego,inglês, hebraico e desenho artístico. Escreveu critica literária, romances, peças,poesia, contos, poesia lírica, cartas e descrições de viagens. Sua inteligência, noentanto, não se limitava à literatura.Além de dedicar-se à literatura, Goethe também dedicou-se à ciência. É autor da “ADoutrina das Cores”, obra em que expõe o resultado de suas pesquisas e estudosacerca de fisiologia, física e química para tratar do fenômeno das cores. Em “ADoutrina das Cores” Goethe rivaliza nada mais nada menos com um intelectual daenvergadura de sir Issac Newton. Na verdade, causa espanto a quantidade evariedade de seus interesses: era um cientista, fez pesquisas em óptica, geologia,mineralogia, botânica, anatomia humana e zoologia. E, todas as vezes que vocêouvir falar do osso intermaxilar no ser humano, saiba que isso foi contribuição deGoethe. Foi conselheiro político e militar em Weimar, onde ajudou a construir estradas,prédios públicos, teatros. Quando morreu em 1832, com 83 anos, foi reverenciadocomo um mito da humanidade.Em virtude disto tudo não pode-se deixar de considerar a semelhança existenteentre a personagem (Fausto) e seu autor. Afinal, Goethe também perseguia oconhecimento e as canções que irrompiam durante a noite registradas por ele bemque poderiam ser sopradas em seu ouvido pelo próprio Mephistófeles. De qualquermaneira o importante é que neste como em outros casos a vida imita a arte.Outro livro do escritor alemão, ”Werther”, um dos símbolos máximos do Romantismo,do qual foi fundador, foi escrito quando Goethe tinha 25 anos de idade. Escrito naforma de cartas, narra as desventuras amorosas do jovem Werther que, naimpossibilidade de consumar seu amor por Carlota, acaba se suicidando. O livrocausou comoção mundial. A identificação com o personagem se tornou tão grandeque começaram a se alastrar os casos em que jovens resolvem seguir o mesmoexemplo. Tornou-se moda matar-se por amor. A coisa foi tão séria que ficou conhecidacomo o “mal do século”. Se já era conhecido nos círculos cultos alemães e umpouco no exterior, com “Werther” a fama de Goethe explode. Até morrer, nuncaperderia a popularidade. Muito diferente do seu personagem suicida, porém, Goethenão morreu jovem, teve muitas paixões, algumas correspondidas e outras não, epôde gozar muito bem a vida.Resumo de uma época e prova da genialidade de Goethe, “Fausto” faz parte dopatrimônio cultural da humanidade, é obra da vida inteira do escritor. Começou a serescrita em 1774, sendo que a primeira parte foi publicada em 1808; a segundasomente foi concluída em 1832, pouco antes da morte do autor.

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Hélio Schwartsman dá um panorama sobre o mito de Fausto.Alerta-nos sobre a existência dohomem que o inspirou (Jörg Faustus) e dá a entender que os primeiros a ficcionalizá-lo, atransformá-lo em uma personagem foram os cléricos protestantes que acusaram-no de“vagabundo”, “falastrão”, “patife” e “louco”. Haveria, ainda, segundo Ian Watt, um Fausto maisjovem, que teria vivido no século V acusado de heresia que se indispôs com SantoAgostinho.Segundo Schwartsmam o primeiro a associar Faustus ou Fausto a satã foi Lutero(Conversas à Mesa). Todavia, o mais importante texto que refere-se às peripéciasdo mago é o Faustbuch, de autor anônimo. Este data do século XVI e é o primeiro adesvincular a personagem do homem Jörg Faustus e a mencionar o contrato atravésdo qual Fausto vendeu sua alma ao diabo.Após o surgimento da imprensa, o Faustbuch foi reeditado várias vezes sendo utilizadocomo fonte de inspiração por Chistopher Marlowe em 1592. Diferentemente dapersonagem do Faustbuch, o Fausto criado pelo dramaturgo que rivalizava comShakespeare é capaz de cativar o público. Apesar disto, somente com Goethe Faustoadquiriria uma maior profundidade literária e o direito de ser salvo de seu pecado dedesejar o conhecimento. Depois de Goethe, Thomas Mann (Docktor Faustus) e KlausMann (Mephisto) também dariam sua contribuição à construção desta personagemcomparável à D. Quixote, D. Juam e Robinson Crusoé.Faustopoderiaserentendidocomoummito,umavezquetambémtraduzumtraçofundamentalda personalidade humana, que é o desejo do conhecimento e do poder que dele advém.Porém, até mesmo nesse sentido definir Fausto como um mito é um problema. Como frisouSchwartsmam,háevidênciasdequeoFaustoimortalizadonaliteraturaporChristopherMarlowe,Johann Wolfgang von Goethe, Tomas Mann e seu filho Klaus Mann, existiu realmente. Teriavivido entre os séculos XV e XVI e chamado-se Jörg ou Johanes Faustus.O Fausto de carne e osso teria sido um astrólogo e nigromante que gostava deimpressionar as pessoas e de desfrutar os prazeres da mesa e da cama. O primeiroa associá-lo a satã (entidade demoniaca da tradição cristã) foi Lutero em sua obra“Conversas à Mesa”. Com o tempo o homem acabou sendo ofuscado pela suaimagem. Assim, o mito do sábio que celebra um pacto com o demônio encontrasuas raízes na realidade ao contrário de Édipo, que não foi rei de Tebas e talveznunca tenha existido a não ser no imaginário de seu criador.Fausto situa-se nos limites entre a mitologia e a história, talvez seja esta a razão dopoema de Goethe ter se transformado num clássico. Além disso, deve-se ressaltarque Fausto encontrou um solo fértil a partir do Iluminismo. Desde então, oconhecimento é muito valorizado, o que não ocorria na época em que o Jörg Faustusvagou pela Europa. Assim, foi o fim da Idade Média que abriu caminho para queFausto fosse transformado num verdadeiro mito.De certa maneira, o homem moderno também realiza a mesma trajetória que Fausto,também faz o seu pacto com secreto com Mephistófeles. Persegue avidamente oconhecimento para a partir dele desfrutar os prazeres da vida. Não é isto que estamosfazendo neste exato momento? Hoje mais do que nunca o homem é literalmenteempurrado nesta direção. Nada é capaz de o deter, nem mesmo os freios religiosos.Originalmente judaísmo, cristianismo e até mesmo o islamismo partilham da mesmaposição em relação ao conhecimento, encarado como a fonte de todo mal. A expulsãode Adão e Eva do paraíso ilustra bem esta questão. Contudo, na atualidade estes trêsgrandes sistemas religiosos são obrigados a tolerar a ciência e o desejo de conhecê-la.Em razão da tradição judaica e cristã podemos dizer que o mito de Fausto é comoque uma atualização, uma modernização de crenças muito anteriores ao século XVe mesmo ao século V de nossa era. Crenças que encontram-se retratadas de maneiramuito original na Tora ou Velho Testamento. A exemplo de Adão, Fausto obtém oconhecimento e o prazer, mas acaba sendo obrigado a vagar pelo mundo. Adão écondenado a trabalhar para seu próprio sustento e Fausto a acompanharMephistófeles. Portanto, de certa maneira ambos foram expulsos do paraíso, seentendermos este como um estado inicial, primitivo, em que não havia nem prazer,nem dor. Não parece ser acidental a coincidência de que o primeiro conhecimentoadquirido pelos dois curiosos é relacionado ao prazer. Adão copula com Eva e, naversão de Goethe, a primeira coisa que Fausto descobre depois do pacto celebradocom Mephistófeles é o prazer sexual com Margarida.

Fausto

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Goethe fez sua primeira tentativa de escrever sobre o mito alemão Fausto em1775, no Urfaust, em prosa, que é às vezes denominado de Fausto Primitivo. Em1797 a idéia foi retomada segundo um plano completamente diferente: em 9 episódiose como poema dramático para Teatro. Esta nova versão será publicada como textodefinitivo em 1808 (Fausto Parte I). Cumprindo uma promessa feita a seu grandeamigo Friedrich Schiller (1759-1805), Goethe vai trabalhar na Parte II de Fausto até1831, que na realidade, tem pouca relação com a Parte I, mais conhecida e divulgada,com a publicação póstuma do texto definitivo em 1832.Em Goethe o mito encontra sua versão mais acabada e genial.A chave para entendê-lo está logo no início do poema, onde Deus dialoga com Mephistófeles. A entidadediabólica pede a Deus a permissão para tentar o cientista obtendo-a com a restriçãode que não poderá ficar com sua alma. Mephistófeles aceita a condição e retrucaque a ele como ao gato só interessa o rato enquanto estiver vivo. Assim, temos naverdade dois contratos, um entre Deus e Mephistófeles e outro entre este e Fausto.Mas, Fausto não tem conhecimento do primeiro e sua ignorância é que o faz acreditarque sua alma pertence ao companheiro de jornada. A sua maneira, Goethe mantéma tradição religiosa mas escapa à solução maniqueista, conferindo maior colorido evalor ao mito. Enfim Fausto reencarna Adão, mas não é nem poderia ser condenadoà perdição em virtude de perseguir o conhecimento.Ao a registrar sua versão sobre o mito de Fausto, Goethe deu a ele algo de suaprópria educação clássica. Com efeito, pode-se estabelecer um paralelo entre atrajetória de sua personagem e a do filosofo Sócrates, que viveu no século IV aC.Todos os discípulos que escreveram sobre o ateniense, referem-se ao fato de queele admitia que falava com sua entidade protetora, com seu daímom (vocábulogrego traduzido como sendo equivalente a “demônio”). Como vê-se, o grego e opersonagem de Goethe entram em contato com seres supranaturais e perseguem oconhecimento. A identidade entre ambos não parece ser meramente casual.Historicamente, a primeira parte de Fausto é mais importante pelo papel querepresentou no movimento pré-romântico alemão Sturm und Drang (Tempestade eÍmpeto): a peça foi vista como símbolo da alma e cultura moderna, a personificaçãoda angústia que marcava o espírito da época. Em nossa perspectiva de início deséculo XXI, percebemos que Goethe conseguiu orquestrar uma verdadeira tragédiado desenvolvimento humano, a aventura de Fausto inicia-se na solidão de um obscurolaboratório medieval de um sábio alquimista e seu idealismo na primeira parte etermina na segunda parte simbolicamente em meio às convulsões provocadas pelaRevolução Industrial burguesa, o avanço das forças do capitalismo e a destruiçãocompleta sem deixar vestígios, da sociedade e modo de produção feudal, mundoeste que foi transformado através de uma imensa força de trabalho organizadajuntamente com a maquinaria e grande indústria.A questão trágica do pacto e o desenvolvimento do capitalismo no poema é analisadoem 3 “metamorfoses” de Marshall Berman: o Sonhador, o Amador e o Fomentador.Fausto em sua primeira metamorfose, antes do seu pacto, vive somente no mundoplatônico das idéias e sonha em voltar ao convívio humano e social, mas a sociedadee as relações feudais em que vive, não oferece possibilidades de ação e transformação,de desenvolvimento de todas as suas potencialidades intelectuais e espirituais.Na sua segunda metamorfose, depois do pacto com Mefistófeles, Fausto rejuvenesce,tem dinheiro, velocidade e mobilidade social; tenta se adaptar para a integração entreseu novo mundo de possibilidades infinitas e a estreiteza do mundo feudal. Seurelacionamento com Gretchen (Margarida) é o símbolo dessa incompatibilidade demundos. Fausto tira a jovem camponesa de sua inocência, adulando-a com presentes,tira-lhe sua virgindade, torna-se seu amante, despertando nela o desejo de mudança,de desenvolvimento, algo muito difícil para ela, devido a seu forte laço de ligação comsua comunidade e as exigências do casamento, que não interessa a Fausto, pois estetem muitas experiências para vivenciar em seu desenvolvimento contínuo.Na sua terceira e última metamorfose e nos 2 últimos atos do poema, Fausto passapor diversas experiências: na corte do Imperador, ele evoca Helena de Tróia, símboloda beleza clássica; ao cabo de uma longa busca por ela entre as alegorias, deuses eseres mitológicos da Antigüidade, ele traz Helena para a Alemanha e casa-se com ela.Mas ela não tarda a desaparecer depois da morte de Euforion, filho do casal, símbolodo gênio poético (Goethe queria prestar sua homenagem póstuma ao poeta Lord Byron).

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Fausto - sínteseÉ como um herói insaciável e em conflito que Fausto é apresentado por Goethe. Suasede de onipotência leva-o a dominar várias ciências, mas nenhuma delas o conduz aomistério da existência. Fausto chega, assim, a perder a fé nas vias ordinárias da ciência.Anseia por conhecer mais e mais: vida, alegria, amor, magia. Anseia por transformar-senuma espécie de deus, com acesso ilimitado a todas as manifestações da natureza.No momento em que Fausto tem consciência dos seus limites, Mefistófeles entraem cena. O demônio se oferece para conduzi-lo a um novo universo, onde as emoçõessão íntegras, a sabedoria é infinita e tudo está em perfeita harmonia com a vontade.E principalmente Mefistófeles lhe propõe o prazer total e pleno da alegria e do amor,mais o Dom de controlar os sentimentos e as pessoas como um mago, retendo nasmãos o tempo, e fazendo a natureza oscilar segundo seu próprio desejo. Gozandoplenamente o ato de ser feliz, Fausto deverá no entanto, pagar um preço aMefistófeles: entregar-se a ele. Nesse instante, o diabo terá vencido Deus.O episódio de Fausto e Margarida constitui o motivo central da peça. A jovem é apersonificação da pureza e da candura, atraindo a paixão de Fausto desde o primeiromomento em que a vê saindo de uma igreja. Mas Mefistófeles não tem poder sobreela para lançá-la aos braços de Fausto: Margarida está mais próxima de Deus pelassuas virtudes. Fausto é insistente e Mefistófeles acaba por se comprometer, criandouma situação favorável e aproxima Fausto de Margarida. O herói aborda a jovem econsegue penetrar em seu quarto. Mas invadido por uma onda de ternura, Faustonão consegue ter senão pensamentos nobres, e afasta-se antes de Margarida chegar.Fausto acaba por seduzir Margarida. Para poder possuí-la tranqüilamente, Faustodá a Margarida um sonífero, destinado à sua mãe. Na verdade, o sonífero era umveneno que Mefistófeles prepara e, em conseqüência, a mãe da jovem morrerá.Mas naquela noite, ébria de amor, Margarida nada vê, além de Fausto.Valentim, o irmão da jovem, é morto por Fausto num duelo. Ciente de sua desgraça,Margarida sente dentro de si todas as forças do mal. Quando dá à luz ao filho deFausto, não vê outra saída senão matá-lo. É então presa por infanticídio.Fausto ignora totalmente a desgraça. Mefistófeles, porém, deseja ganhar tempo eafastar o herói da cena trágica. Transporta-o para a noite da Valburga, onde reinaentre os demônios e as feiticeiras. É noite de 1º de maio, quando todas as forçastelúricas se reúnem numa alucinante luxúria.Porém, a imagem da meiga Margarida é muito forte para que Fausto se abandone

aos sentidos. Sentindo-se um estranho na festa dasbruxas, Fausto depara com uma adolescente de olhosmortos que o deixa obcecado por rever Margarida.Mefistófeles não vê outra saída senão transportá-lo aocárcere onde a jovem está louca e indiferente à prisão eà realidade. Não reconhece Fausto e é imune às súplicaspara que fuja com ele. Margarida está consciente danecessidade do castigo e só pensa em expiar sua culpa.À visão de Mefistófeles, a jovem recua com horror esuplica aos céus perdão e proteção. E diante de Fausto– a quem chama de Henrique, pois com esse nome oconhecera - seu horror não é menor, ao descobrir nele oagente da sua destruição. “Ela foi justiçada!” dizMefistófeles; “Está salva!” proclamam as vozes vindasdo alto. Sua ânsia de expiação acaba por redimi-la.No final, Fausto desaparece com Mefistófeles, seguido pelogrito longínquo de Margarida. O herói alcança sua redenção,quando, depois de morto, sua alma é disputada comMefistófelesea legião infernalcontraa legiãocelestedeanjos,queapossamdesuaalma,conduzindo-aatravésdatrajetóriaascensional celeste, no indizível do chorus mysticus, e noencontro com o “eterno feminino”, confirmando “(...) que umhomem puro, embora com ambições, conhecendo o trilharde tais aspirações, seguro está do rumo a percorrer na vida”.

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Charle Baudelaire1821-1867O homem que mudou a literatura moderna: definir o francês Charles Baudelairesomente desta maneira o manteria muito aquém de sua verdadeira importância.Tradutor, poeta, crítico de arte e literato, Baudelaire foi o ápice da poesia oitocentista.Charles foi o único filho de Joseph-François Baudelaire e de sua jovem segundaesposa, Caroline Archimbaut Defayis. Seu pai havia sido ordenado como padrequando neófito, mas largou o ministério durante a revolução francesa. Trabalhoucomo tutor dos filhos do duque de Choiseul-Praslin, o que lhe proporcionou um certostatus. Ganhou dinheiro e respeito e aos 68 anos se casou com Caroline, então com26. Vivendo num orfanato e já passada da idade de se casar, ela acabou por não teropção. Em 1819, casaram-se. Charles-Pierre Baudelaire veio ao mundo um ano emeio depois, em 9 de Abril de 1821.A vida acadêmica de Baudelaire começou no Collège Royal em Lyon, quando Aupicklevou a família inteira ao assumir um cargo na cidade. Mais tarde, foi matriculado noLiceu Louis Le Grand, quando retornaram a Paris em 1836. Foi justamente aí queBaudelaire começou a se mostrar um pequeno gênio. Escrevia poemas execradospor seus professores, que achavam que seus textos eram um exemplo de devassidãoprecoce, afeições que não eram normais em sua idade. A melancolia tambémdespontava no jovem.Aos poucos, ele se convenceu de ser um solitário por natureza.Em abril de 1839, acabou expulso da escola por seus atos de indisciplina constantes.Mais tarde, tornou-se aluno da Escola de Direito. Na verdade, Charles estava vivendode maneira livre. Fez os seus primeiros contatos com o universo da literatura econtraiu uma doença venérea que o consumiu durante a vida inteira. Tentando salvarseu enteado do caminho libertino, Aupick o enviou para uma viagem à Índia, em1841, uma forte inspiração para sua imaginação, e que trouxe imagens exóticas aoseu trabalho. Baudelaire retornou a França em 1842.Neste mesmo ano, ele recebeu sua herança. Mas como dândi que era, consumiurapidamente a pequena fortuna. Gastou em roupas, livros, quadros, comidas, vinhos,haxixe e ópio. Os dois últimos, um vício adquirido após consumir pela primeira vezentre 1843 e 1845, em seu apartamento no Hotel Pimodan. Pouco depois deste seuretorno, ele conheceu Jeanne Duval, a mulher que marcou definitivamente a suavida. A mestiça primeiro se tornou sua amante e mais tarde, controlou sua vidafinanceira. Ela ira ser a inspiração para as poesias maisangustiadas e sensuais que o poeta escreveu. Seuperfume e o seus longos cabelos negros foram o moteda poesia erótica “La Chevelure”.Charles Baudelaire continuou levando sua vidaextravagante e em dois anos dilapidou todo o seudinheiro. Também se tornou presa de agiotas e bandidos.Neste período, acumulou dívidas que o assombrarampara o resto da vida. Em setembro de 1844, sua famíliaentrou na justiça para impedi-lo de mexer no poucodinheiro da herança que ainda sobrava. Baudelaireperdeu e acabou recebendo somas anuais, que mal davapara manter o seu estilo de vida e muito menos parapagar o que devia. Isto o levou a uma dependência brutalde sua mãe e ao ódio de seu padrasto. Seutemperamento isolacionista e desesperador, fruto de suaadolescência conturbada e que ele apelidou de spleenretornou e se tornou cada vez mais freqüente.Após a sua volta a França, ele decidiu se tornar umpoeta a qualquer custo. De 1842 a 1846, compôs o quemais tarde foi compilado na edição “Flores do Mal”(1857). Baudelaire evitou publicar todos estes poemasseparadamente, o que sugere que ele realmente tenhaarquitetado em sua mente uma coleção coerente,

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governada por uma temática própria. Em outubro de 1845, compilou “As Lésbicas” eem 1848, “Limbo”, obras que representam a agitação e a melancolia da juventudemoderna. Nenhuma das duas coleções foram lançadas em livros e Baudelaire só foiaceito no circuito cultural de Paris porque também era crítico de arte, trabalho queexerceu por um bom tempo.Inspirado pelo exemplo do pintor Eugène Delacroix, elaborou uma teoria da pinturamoderna, convocando os pintores a celebrarem e expressarem o “heroísmo da vidamoderna”. O mês de janeiro de 1847 foi importante para Baudelaire. Ele escreveu anovela “La Fanfarlo”, cujo o herói, ou melhor, anti-herói, Samuel Cramer, um alter-ego do autor, oscila desesperado entre o desejo pela maternal e respeitável Madamede Cosmelly e o erótico pela atriz e dançarina Fanfarlo. Com este texto, Baudelairecomeçava a chamar a atenção, mesmo que timidamente.Este anonimato acabou-se em fevereiro de 1848, quando participou de manifestaçõespara a derrubada do Rei Luís Felipe e para a instalação da Segunda República.Consta que comandou um violento ataque contra o general Aupick, seu padrasto,então diretor da Escola Politécnica. Este acontecimento leva vários especialistas aminimizarem a participação do do poeta burguês nesta revolução, já que seus motivosnão seriam sociais e políticos mas sim pessoais, que ainda não havia publicadonada. Porém, estudos recentes assumem uma veia política brutal em Baudelaire,em especial sua associação com o anarquista-socialista Pierre-Joseph Proudhon.Sua participação na revolta de proletários em junho de 1848 é comprovada e tambémna resistência contra os militares de Bonaparte, em dezembro de 1851. Logo apóseste episódio, o poeta declarou encerrado seu interesse em política e voltou toda asua atenção para seus escritos.Em 1847, ele descobriu um obscuro escritor norte-americano: Edgar Allan Poe.Impressionado pelas similaridades entre os escritos de Poe com seu própriopensamento e temperamento, Baudelaire decidiu levar a cabo a tradução completadas obras do norte-americano, trabalho este que lhe tomou boa parte do resto desua vida. A tradução do conto “Mesmeric Revelation” foi publicado em julho de 1848e depois, outras traduções apareceram em jornais e revistas antes de seremcompiladas no livro “Histórias Extraordinárias” (1856) e “Novas HistóriasExtraordinárias” (1857), todas precedidas por introduções críticas feitas por CharlesBaudelaire. Depois se seguiu “As Aventuras de Arthur Gordon Pym” (1857), “Eureka”(1864) e Histórias Grotescas” (1865). Como tradução, estes trabalhos foram clássicosda prosa francesa, e o exemplo de Poe deu a Baudelaire uma confiança em suaprópria teoria estética e ideais para a poesia. O poeta também começou a estudar otrabalho do teórico conservador Joseph de Maistre, que, junto com Poe, incentivaramseu pensamento a ir numa direção antinaturalista e anti-humanista.Do meio de 1850, ele iria se pronunciar arrependido de ser um católico romano,apesar de manter sua obsessão pelo pecado original e pelo demônio. Tudo isto sema fé no amor e perdão de Deus, e sua crença em Cristo se rebaixou tanto a ponto depraticamente não existir mais. Entre 1852 e 1854, dedicou vários poemas à ApollonieSabatier, sua musa e amante apesar da reputação de cortesã da alta-classe. Em1854, Baudelaire manteve um caso com a atriz Marie Daubrun. Ao mesmo tempo,sua fama como o tradutor de Poe aumentava. O fato de ser crítico de arte permitiuque publicasse algum de seus poemas. Em junho de 1855, a Revue des Deux Mondespublicou uma sequência de 18 de seus poemas, com o título de “As Flores do Mal”.Os poemas, que ele escolheu pela originalidade e pelo tema, trouxeram-lhenotoriedade. No ano seguinte, Baudelaire fechou um contrato com o editor Poulet-Malassis para uma coleção completa de poemas sob o título prévio.Quando a primeira edição do livro foi publicado em junho de 1857, 13 dos 100poemas foram imediatamente acusados de ofensas à religião e à moral pública. Umjulgamento ocorreu no dia 20 de agosto de 1857 e 6 poemas foram condenados aserem retirados da publicação sob a acusação de serem obscenos demais. Baudelairefoi multado em 300 francos (mais tarde, reduzido a 50 francos). Em 1866, na Bélgica,os seis poemas foram republicados sobre o título de “Les Èpaves”. A proibição dospoemas só foram retirados da França em 1949. Como toda polêmica sempre ébenéfica, “As Flores do Mal” se tornou um marco por sua obscenidade, morbidez edevassidão. Nascia a lenda de Baudelaire como um poeta maldito, dissidente epornográfico.

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Porém, as vendagens não foram nada boas. Baudelairenutria uma expectativa gigantesca pelo sucesso - o quenão aconteceu - e imediatamente se tornou amargo. Osanos que vieram transformaram Baudelaire numapersonalidade soturna, assombrado pelo sentimento defracasso, desilusão e desespero. Após a condenaçãode seu livro, ele se juntou com Apollonie Sabatier e adeixou em 1859 para retomar seu relacionamento comMarie Daubrun, novamente infeliz e fracassado. Apesarde ter escrito alguns de seus melhores trabalhos nestesanos, poucos foram publicados em livro. Após apublicação de experimentos de prosa em verso, ele seconcentrou numa segunda edição de “As Flores do Mal”.Em 1859, enquanto vivia novamente com sua mãe, pertodo rio Sena, onde ela se mantinha reclusa após a mortede Aupick em 1857, Baudelaire produziu uma série deobras-primas da poesia, começando com “Le Voyage”em janeiro e culminando no que é considerado seumelhor poema, “Le Cygne”, em dezembro. Ao mesmotempo, compôs dois de seus mais provocativos ensaiosde crítica de arte: “Salão de 1859” e “Os Pintores daVida Moderna”. Este último, inspirado por ConstantinGuys, é visto como uma declaração profética doselementos do Impressionismo, uma década antes dosurgimento da escola. Em 1860, publicou “Os ParaísosArtificiais”, uma tradução de partes do ensaio de “Confissões de um Inglês Comedorde Ópio”, de Thomas De Quincey, acompanhado por sua pesquisa e análise dasdrogas. Em fevereiro de 1861, uma segunda edição, maior e ampliada, de “As Floresdo Mal” foi publicada por Poulet-Malassis. Ao mesmo tempo, publicou ensaios críticossobre Theophile Gautier (1859), Richard Wagner (1861), Victor Hugo e outros poetascontemporâneos (1862), e Delacroix (1863). Estes textos seriam compilados em “AArte Romântica”, em 1869. Os fragmentos de sua autobiografia entitulada “Fusèes”e“Mon Coeur Mis à Nu” também foram lançados entre 1850 e 1860. É também destaépoca seu ensaio onde afirma que a fotografia era um engodo, que aquela novaforma nunca seria arte. Mais tarde, o poeta se arrependeu e voltou atrás em suasdeclarações e chegou a ser retratado por Félix Nadar.Em 1861, Baudelaire tentou se eleger à Academia Francesa mas foi fragorosamentederrotado Em 1862, Poulet-Malassis faliu e ele foi implicado na falência, o que piorou suacondição financeira. Seus limites mentais e físicos atingiram o topo.Abandonandoapoesia,ele foi fundo na prosa em versos. Uma sequência de 20 de seus trabalhos foi publicadaem 1862. Em abril de 1864, ele deixou Paris para se instalar em Bruxelas, onde tentariapersuadir um editor belga a publicar suas obras completas. Lá ficou, amargurado eempobrecido até 1866, quando após um ataque epilético na Igreja de Saint-Loup at Namur,sua vida mudou. Baudelaire teve uma lesão cerebral que lhe ocasionou afasia (perda dacapacidade de compreensão e de expressão pela palavra escrita ou pela sinalização,assim como pela fala) e paralisia. O dândi nunca mais se recuperou. Retornou a Paris nodia 2 de julho, onde ficou em uma enfermaria até sua morte. Em 31 de agosto de 1867,aos 46 anos, Charles Baudelaire morreu nos braços de sua mãe.Quando a morte o visitou, Baudelaire ainda mantinha vários de seus trabalhos nãopublicados e os que já haviam saído estavam fora de circulação. Mas isto rapidamentemudou. Os líderes do movimento Simbolista compareceram ao seu funeral e já sedesignavam como seus fiéis seguidores. Menos de 50 anos após a sua morte,Baudelaire ganhou a fama que nunca teve em vida: havia se tornado o maior nomeda poesia francesa do século XIX.Conhecido por sua controvérsia e seus textos obscuros, Baudelaire foi o poeta dacivilização moderna, onde suas obras parecem clamar pelo século XX ao invés deseus contemporâneos. Em sua poesia introspectiva ele se revelou como um lutadorà procura de Deus, sem crenças religiosas, procurando em cada manifestação davida os elementos da verdade, de uma folha de uma árvore ou até mesmo no franzirdas sobrancelhas de uma prostituta. Sua recusa em admitir restrições de escolha detemas em sua poesia o coloca num patamar de desbravador de novos caminhospara os rumos da literatura mundial.

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As Flores do MalA principal obra do francês Charles Baudelaire foi e ainda é certamente o seu livrode poemas Les Fleurs du mal, publicado originalmente em 1857 pelos editores Poulet-Malassis e De Broise. O volume reunia todos os poemas outrora publicados naimprensa e outros ainda inéditos. Apresentava-se dividido em cinco partes - Spleenet ideal, Fleurs du mal, Révolte, Le vin e La mort - e continha 100 poemas, além dointrodutório Au lecteur.A maior parte destes poemas havia sido escrita desde 1840 e publicada na imprensae em revistas literárias européias, como as Revue de Paris, em 1852, Revue deDeux Mondes, em 1855, Revue française, em 1857, e Revue contemporaine, em1859, sendo que em junho de 1855 aparece pela primeira vez o título Les Fleurs dumal sobre um conjunto de dezoito poemas publicados na Revue de Deux Mondes.O livro sofreu grave processo poucos meses depois do seu lançamento, acusado deimoralidades, assim como o livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary, e tanto oautor quanto seus editores são condenados por ultraje à moral pública e o livro a tersuprimido alguns poemas.Em 1861 sai sua segunda edição, rearranjada e modificada: por um lado, reduzidapela saída dos poemas censurados - Les bijoux, Le Léthé, À celle qui est trop gaie,Lesbos, Femmes damnées e Le métamorphoses du vampire - e pela nova formaçãodo poema Un fantôme, somando quatro sonetos; por outro lado, aumentada comoutros 35 poemas novos, totalizando 126. Os poemas aparecem distribuídos emoutra ordem e é ainda nessa edição que Baudelaire faz mais uma subdivisão emseu livro, acrescentando o subtítulo Tableaux parisiens. Na época, publica aindaduas coletâneas de poemas: Les Épaves - também dividida em cinco partes: Piècescondamnées, Galanteries, Épigraphes, Pièces diverses e Buffonneries, divulgadaprincipalmente na Bélgica - e Nouvelles Fleurs du mal.Por fim, ainda sairia uma edição póstuma, em 1868, visto que o poeta falecera umano antes, em agosto de 1867, organizada por Charles Asselineau e Théodore deBanville e produzida por Michel Levy. Essa edição troca o título do poema Au lecteurpor Préface e traz, além dos poemas da edição de 1861 e alguns das coletâneas,outros poemas publicados na imprensa e mesmo inéditos, totalizando 166.

PERFUME EXÓTICO

De olhos fechados, quando, alta noite, no outono,Respiro o cheiro bom dos teus seios fogosos,

Vejo entreabrir-se além cenários deleitososCintilando ao ardor de um sol morno de sono:

Uma ilha preguiçosa e molenga e sem donoEm que há árvores ideais e frutos saborosos;

Homens de corpos nus, finos e vigorosos,Mulheres cujo olhar tem franqueza e abandono.

Guiado por teu perfume às paragens mais belas,Vejo um porto a arquejar de mastros e de velas

Ainda tontos talvez da vaga alta que ondu1a,

Enquanto um verde aroma — o dos tamarineiros —,Que passeia pelo ar e que aspiro com gula,

Se mistura em minha alma à voz dos marinheiros.

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Os cegos

Veja-os, minha alma, são mesmo horrorosos!São críveis manequins, vagamente ridículos;Terríveis, singulares como os soníloquos;Dardejando por aí seus globos tenebrosos.

Seus olhos, de onde a divina faísca é fugida,Como se olhassem ao longe, restam alçadosPara o céu; não se vê nunca para os calçadosPender em sonhos sua face entorpecida.

Eles atravessam assim o negro ilimitado,Este irmão do silêncio eterno. Oh cidade!Enquanto que entorno há cantos, risos e ecos,

Namorada do prazer até a atrocidade,Vês! Arrasto-me aliás! mas, mais abestalhado,Digo: Que buscam no Céu, todos esses cegos?

O AZAR

Para tomar tal peso a peito,Mister, Sísifo, é o teu valor!

A obra, é certo, excita ardor,Mas a Arte é vasta e o Tempo estreito.

Rumo de esconso cemitério,Das tumbas célebres desviado,

Meu coração, tambor velado,Batendo vai, num tom funéreo.

- Ha muita jóia que se ocultaNo esquecimento, ou jaz sepulta,

Das sondas longe, e do alvião;

Muita flor ha, que exala a medoOlor subtil como um segredo,

Na mais profunda solidão.

Correspondências

A Natureza é um templo onde vivos pilaresDeixam sair às vezes palavras confusas:Por florestas de símbolos, lá o homem cruzaObservado por olhos ali familiares.

Tal longos ecos longe onde lá se confundemDentro de tenebrosa e profunda unidadeImensa como a noite e como a claridade,Os perfumes, as cores e os sons se transfundem.

Perfumes de frescor tal a carne de infantes,Doces como o oboé, verdes igual ao prado,- Mias outros, corrompidos, ricos, triumfantes,

Possuindo a expansão de um algo inacabado,Tal como o âmbar, almiscar, benjoim e incenso,Que cantam o enlevar dos sentidos e o senso.

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A Morte dos AmantesMax Brandão e Ricardo Meirelles

Teremos leitos cheios de cheiros ligeiros,E profundos divãs a túmulos parelhos,E estranhas flores que, sobre os tabuleiros,Eclodem para nós sob esses céus mais belos.

Usando ciosos seus calores derradeiros,Nossos dois corações serão dois vastos brilhos,Que refletirão duplos seus gêmeos luzeirosNos nossos dois espíritos, esses espelhos.

Uma tarde feita de rosa e azul místico,Entre nós dois trocaremos um clarão único,Como um longo soluço, de adeus, carregado;

E mais tarde um Anjo, entreabrindo os portos,Terá, fiel e alegre, em nós reanimadoOs espelhos opacos e os fogos mortos.

A uma passante

A rua ensurdessente entorno a mim uivava.Longa, magra, em grande luto, dor majestosa,Uma mulher passou, com uma mão pomposaProvocando, balançando o festão e a anágua;

Ágil e nobre, com suas pernas de estátua,Eu, bebia, crispado como um basbacão,

Em seu olho, céu níveo onde nasce o furacão,A doçura que fascina e o prazer que mata.

Um clarão... depois a noite! - Fugaz beldadeCujo olhar subitamente renascer me fez,Não te veria mais senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! jamais talvez!Pois ignoro onde foste, não sabes aonde ia,

Oh tu que o sabias, oh tu que eu amaria!

O vinho do solitário

O olhar singular de uma mulher galanteQue desliza sobre nós como o branco raio

Que a lua ondulante envia ao lago verde-gaioQuando quer banhar sua beleza indolente;

O último ouro nos dedos de um jogador;Um beijo libertino da magra Adelina;

Os sons de uma música que enerva e anima,Lembrando longe o grito da humana dor,

Tudo isso não vale, oh garrafa profunda,O bálsamo intenso que tua pansa fecunda

Guarda aos corações loucos dos poetas mais pios;

Verte-lhe tu a esperança, a juventude e a vida,- e o orgulho, de toda mendicância a medida,

Que nos torna triunfantes e aos Deuses eqüios.

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