cultura, educaÇÃo e ensino em angola

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1 MARTINS DOS SANTOS CULTURA, EDUCAÇÃO E ENSINO EM ANGOLA (Edição electrónica - 1998) Copyright © 1975-1999 Martins dos Santos [email protected] Braga - Portugal

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    MARTINS DOS SANTOS

    CULTURA, EDUCAO E ENSINO

    EM ANGOLA (Edio electrnica - 1998)

    Copyright 1975-1999 Martins dos Santos

    [email protected]

    Braga - Portugal

  • 2

    NDICE

    GNESE DA OBRA

    OS PORTUGUESES NO CONGO

    A CRISTANDADE DE SO SALVADOR

    A FUNDAO DE LUANDA

    AS CONGREGAES MISSIONRIAS

    PRELDIO DA EXPULSO DOS JESUTAS

    CINCIAS E HUMANIDADES

    DECADNCIA MISSIONRIA

    O AMBIENTE PEDAGGICO

    CUIDADOS DA ENSINANA

    SITUAO ECLESISTICA

    LIMITAES DA VIDA ESCOLAR

    APTIDO PEDAGGICA

    INSTITUTO FEMININO D. PEDRO V

    O ENSINO PARTICULAR

    TENTATIVAS MISSIONRIAS

    PREPARAO PROFISSIONAL

    SITUAO DO ENSINO BSICO

    O FINAL DE UM PERODO

    MUSEUS E ARQUIVOS ORGANIZAO DA INSTRUO PBLICA

    PROFESSORES E ESCOLAS

    MISSES CIVILIZADORAS E ESCOLAS RURAIS

    PATRONOS DAS ESCOLAS PRIMRIAS DE ANGOLA

    AMBIENTE DIDCTICO-PEDAGGICO

    ASSISTNCIA ESCOLAR E SOCIAL

    INICIATIVAS CULTURAIS

    RECURSOS FINANCEIROS

    ESCOLAS-OFICINAS

    ESCOLAS AUTNOMAS

    LICEU SALVADOR CORREIA

    LICEU DIOGO CO

    ENSINO SECUNDRIO EM MOMEDES

    ENSINO AGRCOLA

    ESTRUTURAS BUROCRTICAS

    CORPO DOCENTE DO ENSINO PRIMRIO

  • 3

    ENSINO PRIMRIO ELEMENTAR

    ENSINO LICEAL

    ENSINO TCNICO

    ESCOLAS DE ENFERMAGEM

    AUXLIO AOS ESTUDANTES

    INTELECTUALIDADE E INVESTIGAO

    SECTOR AGRRIO

    SECRETARIA PROVINCIAL DE EDUCAO

    CICLO ELEMENTAR - ENSINO PRIMRIO

    ESCOLAS DE ARTES E OFCIOS

    ESCOLAS DO MAGISTRIO PRIMRIO

    ESCOLAS DE HABILITAO DE PROFESSORES DE POSTO

    CURSOS DE MONITORES ESCOLARES

    CICLO PREPARATRIO

    INSTRUO LICEAL

    DIFUSO DO ENSINO TCNICO

    UNIVERSIDADE DE LUANDA

    AGRICULTURA E ENFERMAGEM

    DENOMINAO DAS ESCOLAS

    CONSTRUES ESCOLARES

    APOIO AOS ESTUDANTES

    INSTITUIES DE CULTURA

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    GNESE DA OBRA

    Ao iniciar-se a guerra que levou independncia de Angola,

    nos comeos de 1961, foi posta em movimento uma complicada mquina

    publicitria que agitou, ao longo de todo o tempo de luta, intensa campanha

    de informao. O impacto causado em Portugal por uma guerra daquele tipo

    despertou em muitas pessoas uma curiosidade que anteriormente no

    existia. O autor desta obra est includo nesse nmero. Procurava-se obter

    conhecimentos e aprofundar os antigos; para isso prestava-se a maior

    ateno s crnicas, artigos e informaes transmitidos por qualquer dos

    veculos de comunicao social. Conseguiam-se com relativa facilidade

    obras de cunho histrico e outras em que se apresentava o territrio

    angolano e o seu povo sob aspectos actuais. Isso o levou ao estudo intensivo

    dos feitos passados, tirando apontamentos que facilitassem a fixao das

    realizaes, das campanhas e at das personagens que nelas intervieram.

    Assim conseguiu um volumoso feixe de informaes que, por circunstncias

    meramente ocasionais, chegou s mos do ento deputado Assembleia

    Nacional, Dr. Rui Pontfice de Sousa, que tomou a iniciativa de propor a sua

    publicao atravs da Agncia-Geral do Ultramar, dando forma impressa ao

    original de A Histria de Angola atravs dos seus personagens principais.

    Aproveitamos o ensejo para prestar homenagem e testemunhar gratido

    quele deputado, pouco depois vtima fatal de um acidente de automvel.

    Quando, em 7 de Fevereiro de 1967, embarcmos para

    Luanda, depois de uma nomeao por concurso pblico nos ter colocado em

    Angola, o original do livro ficava em Lisboa, entregue ao cuidado dos

    impressores. Entre os pontos que se pretenderam focar, e de que se no

    conseguiram dados satisfatrios, contava-se a divulgao escolar e a difuso

    cultural. Tendo fixado residncia em Luanda, onde as condies de trabalho

    eram muito mais fceis, comeou o estudo sistematizado deste tema, com

    vista elaborao de uma pequena obra de divulgao. Tomando

    conhecimento deste objectivo, o ento Secretrio Provincial da Educao de

    Angola, Dr. Jos Pinheiro da Silva, ao mesmo tempo que elogiava e

    estimulava o projecto, solicitou que se pusesse de parte durante algum

    tempo, para elaborar uma pequena monografia, O Liceu Salvador Correia,

    cujo cinquentenrio se aproximava, e que veio a ser publicada exactamente

    no dia das comemoraes, 22 de Fevereiro de 1969. A partir desta data,

  • 5

    foram retomados os trabalhos interrompidos e o livro programado, Histria

    do Ensino em Angola, pde ser publicado em Maro de 1970.

    Enquanto se elaborava esta obra, e particularmente depois

    que o original foi entregue s entidades oficiais, encarregadas de

    promoverem a edio, preparou-se um conjunto de biografias de

    personagens cujos nomes figuravam nos prticos dos estabelecimentos de

    ensino, e assim apareceu o volumoso livro que recebeu o ttulo de Patronos

    das Escolas de Angola, publicado em Novembro de 1970.

    Quando recebeu a remessa dos exemplares impressos da

    Histria do Ensino, e apesar de ter ficado satisfeito com o trabalho, pois

    nada havia antes que focasse com relativo desenvolvimento tal assunto, o

    Dr. Pinheiro da Silva solicitou ao autor que no parasse as pesquisas e

    desenvolvesse a obra, com vista a nova edio, que se pretendia muito

    ampliada e mais sistematizada. Sobretudo, pretendia-se coligir o maior

    nmero de dados possvel, ao longo de todo o perodo de permanncia

    portuguesa (nessa altura a hiptese da independncia era muito vaga e

    remota), reunindo num corpo nico elementos dispersos por diversas

    publicaes e numerosos arquivos. Foi, de certo modo, este objectivo que

    levou o ento Governador-Geral de Angola, tenente-coronel Camilo

    Augusto Rebocho Vaz, a subsidiar a deslocao do autor de Luanda a

    Lisboa, onde frequentou durante ms e meio, Julho e Agosto de 1971, o

    Arquivo Histrico Ultramarino, que guarda o mais rico acervo de

    documentos relativos expanso portuguesa no mundo. Como fruto

    imediato desse trabalho surgiu, em 1973, o livro Primeiras Letras em

    Angola, no qual se traam notas biogrficas de sete centenas de professores

    a trabalhar neste territrio desde 1845 at 1919.

    Em fins de 1970 ou princpios de 1971, o Dr. Pinheiro da

    Silva transferiu-se para Lisboa, onde passou a exercer as funes de

    Inspector Superior do Ensino, em todos os territrios ultramarinos

    portugueses. Os seus sucessores no apoiavam a tarefa da elaborao do

    livro recomendado, que foi um tanto posta de lado. Quando em Junho de

    1974 voltou para Luanda, desta vez como Ministro de Estado (sem pasta) no

    Governo Provisrio de Angola, Pinheiro da Silva tornou a incentivar o autor

    e a solicitar brevidade na concluso do trabalho. Isto fez com que ele se

    voltasse a dedicar, com grande entusiasmo, a tal objectivo e o conclusse

    no levando em linha de conta um volume suplementar, em que se

    inventariariam as instituies , os organismos e as personagens que

    exerceram funo relevante na difuso cultural, em todo o territrio e em

    qualquer poca histrica, previsto no plano geral da obra. No entanto, a

    concluso s se verificou cerca de um ano aps a sada de Angola do Dr.

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    Pinheiro da Silva; tendo sido, de incio, elemento de confiana dos

    revolucionrios de Abril de 1974, passou depois a ser hostilizado, chegando

    mesmo a ver-se obrigado a procurar refgio na Espanha, pois caiu no

    desagrado dos elementos da extrema esquerda que, a partir de certa altura,

    tomaram conta dos destinos de Portugal e encaminharam, da forma por

    todos conhecida, o complexo processo de descolonizao, com os resultados

    que o mundo inteiro testemunhou! Tendo recomeado a tarefa, o autor

    entendeu que, mesmo sem ter j o apoio daquele poltico, a publicao ainda

    era possvel, pois o Ministro da Educao, do Governo Provisrio de

    Angola, Dr. Marques Pinto, aceitou a ideia e reconheceu o valor da

    iniciativa. No entanto, os acontecimentos precipitaram-se e, quando em 22

    de Setembro de 1975 deixou Angola, levava na sua bagagem o manuscrito

    da obra, que ainda se tentou editar em Lisboa, no sendo possvel vencer os

    obstculos levantados.

    No se trata de um livro de leitura amena e de grande

    atractivo para o comum dos leitores. Deve considerar-se um trabalho que

    poder interessar o curioso da aco civilizadora de Portugal, o estudioso

    que quiser informar-se, o autor que utilize o material coligido como

    elemento subsidirio de outros trabalhos. S assim se aceitaro, por

    exemplo, as numerosas datas que para o leitor comum sero cansativas mas

    que para o estudioso so pontos de referncia apreciveis. S sob esse ponto

    de vista podero aceitar-se as inumerveis referncias criao,

    transferncia e extino de escolas. Ainda debaixo do mesmo prisma, foram

    includas no livro breves mas numerosas biografias de titulares de escolas,

    aparentemente deslocadas mas que tero o mrito de fixar nomes que,

    devido independncia, foram eliminados. Ter certo interesse a indicao

    dos livros usados nas escolas, sobretudo em certos perodos histricos, pois

    pela anlise deles podero tirar-se concluses interessantes quanto

    metodologia empregada pelo corpo docente. Tambm na mesma linha de

    pensamento se fizeram referncias, em certo ponto, s verbas oramentadas

    para as escolas, quer fossem destinadas construo, ampliao ou

    apetrechamento das instalaes, quer se destinassem a auxiliar os estudantes

    sob outros aspectos.

    O hipottico leitor do trabalho dever, portanto, como de

    boa lgica, colocar-se a par dos objectivos previstos, tanto os que foram

    concretizados como os que no foi possvel realizar, devido escassez de

    meios fiducirios, limites de tempo e condicionalismo poltico. Deu-se

    obra uma ordenao que se aproxima da literria, em vez de coligir apenas

    uma vasta gama de elementos e fez-se a sistematizao que se julgou

    suficiente, com o objectivo de tornar a leitura mais convidativa e a consulta

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    mais rpida e mais fcil.

    Podemos, pois, concluir que o autor comeou por se

    interessar pelo conjunto de informaes referentes a Angola, tanto de hoje

    como de ontem, mas dando preferncia aos feitos do passado. A carncia de

    dados sobre a cultura e a educao despertou o interesse por este tema.

    Dedicou bastante interesse pelas notas biogrficas, pois est convencido de

    que a Histria no pode ser a crnica de um caudilho nem o relato da

    deambulao de um rebanho humano.

    O acervo de informaes, aqui reunidas, no pode nem deve

    considerar-se uma apologia da aco civilizadora de Portugal. O que tem de

    elogioso e construtivo advm da prpria natureza das coisas; houve apenas a

    preocupao de focar iniciativas e mencionar realizaes. Pode, portanto,

    ser referncia laudatria ou matria de acusao; no foram poucos os

    defeitos, no foram raros os desvios de rumo.

    Portugal j foi acusado de fazer a "desafricanizao" das

    populaes. Parece mais exacto dizer que procurou, em toda a parte, em

    todos os domnios, e ao longo de sculos de Histria, "europeizar" as

    populaes, sem destruir sistematicamente os valores tradicionais. A aco

    desenvolvida em favor da escola e do ensino teve em vista civilizar, educar,

    cristianizar. A escolaridade foi idealizada e realizada por europeus.

    No houve a preocupao de fazer obra literria. No houve

    cuidados estilsticos, mas teve-se em considerao a clareza e a pureza da

    linguagem. Na aridez do assunto, teve em vista a leveza da redaco, clareza

    de pensamento e atractivo da leitura. No se conseguiu perfeitamente este

    desiderato, porm esforou-se, na medida do possvel, por atingi-lo.

    Um dos trabalhos referidos comemorou o cinquentenrio do

    ensino liceal em Angola; outro integrava-se na coleco comemorativa do

    IV centenrio da fundao de Luanda, cujas solenidades no chegaram a

    realizar-se, devido descolonizao e independncia. A obra intitulada A

    Histria de Angola ... constitua leitura recomendada no Curso de Histria,

    ministrado na Universidade de Luanda, Delegao do Lubango (S da

    Bandeira).

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    OS PORTUGUESES NO CONGO

    Os navegadores portugueses, lanando-se explorao da

    costa africana e navegao atravs do Atlntico, deram incio a uma das

    empresas mais empolgantes da Histria. No pode deixar de causar

    admirao o facto de ser um pequeno e pobre Pas a realizar uma das mais

    difceis, morosas e dispendiosas iniciativas que um povo jamais realizou. E

    no deve passar sem referncia o pormenor curioso de se prolongar por

    espao de um sculo desde a segunda dcada do sculo XV at segunda

    dcada do sculo XVI sem denotar cansao, sem que se tenha esboado

    sequer a ideia da desistncia. Se houve empresas humanas que tiveram

    repercusso na evoluo histrica, os Descobrimentos martimos

    portugueses no podem deixar de ser colocados em lugar destacado!

    A gesta assombrosa das navegaes atravs dos mares

    desconhecidos, importa diz-lo, assentou um dos seus pilares bsicos nas

    vantagens materiais que dela poderiam advir, mas baseou-se tambm no

    misticismo alimentado pelo ideal, na curiosidade cientfica e na atraco de

    enfrentar corajosamente o desconhecido, desvendando segredos e

    desfazendo a bruma do mistrio. Os portugueses da poca souberam

    integrar-se no esprito prtico e sonhador, realista e quimrico, preso s

    realidades terrenas mas pairando alto nos domnios da imaginao, de que o

    Infante de Sagres foi o prottipo mais perfeito.

    A expanso portuguesa atravs do mundo desconhecido, mas

    de maneira muito particular na frica e na Amrica, s se pode

    compreender, s se justifica e explica pela aco civilizadora que foi

    realizada ou que pretendeu realizar, em benefcio dos moradores dessas

    regies. A permanncia lusa atravs de sculos de domnio apoiou-se no

    ensino ministrado aos naturais e na assistncia religiosa prestada aos seus

    compatriotas, e depois tambm populao aborgene, que nela colaborou

    prestimosamente, umas vezes de maneira activa e outras vezes apenas de

    forma passiva.

    Desde muito cedo Portugal tomou conscincia de, a pouco e

    pouco, ir alargando os domnios temporais, dilatando o Imprio, e tambm

    os valores espirituais, difundindo a F. Lus de Cames, que viveu e

    escreveu a sua obra principal em pleno sculo XVI, comea o seu poema

    admirvel salientando estes dois pontos. E no deixaria de dar apenas a

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    imagem do pensamento colectivo, fixando-a em sntese lapidar, pois no

    pode sustentar-se que tenha sido ele a criar o conceito, que depois se

    expandisse e generalizasse!

    Um dos objectivos principais que os portugueses tiveram em

    vista, em toda a sua expanso e depois no perodo de fixao, consistia em

    fazer novas cristandades, em dilatar a F. Ora a F pressupe ensino

    aturado, explicao muitas vezes repetida, insistncia teimosa na fixao de

    princpios morais e na aceitao de doutrinas por vezes incompreensveis, os

    mistrios e dogmas religiosos. E, por sua vez, o ensino s produz resultados

    teis e convincentes quando for reconhecida a sua vantagem prtica

    imediata.

    Poderia comear-se o estudo do que foi a tarefa educativa em

    Angola e isso por mais estranho que possa parecer dizendo que tem

    tanta idade como a presena portuguesa nestas paragens; mas poderia dizer-

    se tambm, sem faltar verdade, que nova e conta apenas algumas

    dezenas de anos. No primeiro caso, seria preciso ter em vista que toda a

    actuao, isto , a actuao portuguesa, de que Angola hoje continuadora

    imediata, foi contnua tarefa de assistncia espiritual e de formao

    intelectual, difusa e geral mas constante e permanente, mais ou menos

    eficiente ou improfcua. Houve neste quadro manchas escuras e de grande

    tamanho, no podemos neg-lo nem esquec-lo; no entanto, o inventrio

    final dos resultados no deixa de ser positivo, traduzindo meritria aco.

    No segundo caso, quer dizer, ao pretendermos afirmar que a actividade

    educativa em Angola nova de poucos decnios, tomaramos em conta

    apenas a aco metdica e programada, a actividade oficial organizada e

    burocrtica, com apoio decidido e fundamental dos dinheiros pblicos.

    Quando Diogo Co chegou pela primeira vez ao Zaire, levou

    consigo para Lisboa alguns nativos africanos. No se sabe ao certo se foram

    livremente, em jeito de aventura, ou se os portugueses exerceram sobre eles

    alguma violncia. O descobridor de Angola pretendia apresent-los ao rei e

    corte como testemunho vlido do seu importante descobrimento.

    Depois de desembarcarem na Europa, no se perdeu a

    oportunidade de os ir integrando nos costumes, hbitos e prticas dos povos

    civilizados, dando-lhes a conhecer muitas coisas que eles at ento

    ignoravam, tanto sob o aspecto material como no campo social ou religioso.

    Pode, portanto, afirmar-se que a tarefa educativa e

    civilizadora de Portugal, em relao a Angola, comeou com a primeira

    viagem de Diogo Co. Positivamente, no foi imposta, foram os naturais, as

    populaes silvcolas, que a assimilaram, vendo nisso vantagens evidentes.

    O descobridor do Zaire, semelhana do que acontecia com

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    os demais almirantes, exploradores da costa africana e navegadores de

    mares desconhecidos, trazia consigo alguns degredados, a quem se

    confiavam as misses mais perigosas, sendo encarregados de devassar o

    serto e entrar em contacto com ambientes geogrficos e humanos

    carregados de ameaas mal definidas. Foram largados alguns deles nas

    margens do Congo. Os portugueses que Diogo Co deixou nas terras do

    Enzaze, dominadas pelo poderoso Manicongo, cumpriram cabalmente a

    misso civilizadora que lhes fora indicada, influenciando beneficamente as

    populaes locais. Por isso vemos que o senhor do Congo enviou pouco

    depois ao nosso rei o pedido de elementos que viessem intensificar e

    apressar a assimilao. Prova isso o facto de, logo nas viagens seguintes, se

    fazer permuta mais volumosa, indo para Lisboa um nmero relativamente

    elevado de naturais, com o objectivo expresso de aprenderem os rudimentos

    da nossa cultura e da nossa civilizao; eram todos ou quase todos eles

    filhos dos mais poderosos senhores daquelas terras. A partir daqui, bastou

    dar seguimento a uma iniciativa j encetada e que jamais terminou.

    No pode dizer-se que s nos ltimos tempos se prestou

    escrupulosa ateno aos esquemas de planejamento. Desde remotas eras que

    o homem planeou aquilo que tencionou fazer. A expanso ultramarina

    portuguesa fez-se, sem dvida, dando realidade a projectos inteligentemente

    elaborados. No entanto, em certas actividades, ao tempo consideradas

    secundrias, os responsveis deixavam-se arrastar quase sempre pelos

    impulsos de momento e pelo condicionalismo local e de ocasio...

    Sob o aspecto evangelizador, houve desde o primeiro

    momento o cuidado de estabelecer programas que se foram cumprindo com

    o possvel rigor. Quanto ao problema propriamente escolar, no sentido que

    modernamente damos a esta actividade, no haveria, certamente, um plano

    de antemo traado. Os responsveis mais directos deixaram-se arrastar pela

    fora das circunstncias e pelas condies de momento. Todavia, o resultado

    prtico conseguiu-se quase sempre, com maior ou menor perfeio. No se

    dava ainda, nesse tempo, actividade educativa o carcter de cincia

    organizada e metdica; mas no deixou de se empregar um empirismo

    relativamente evoludo e de resultados bastante seguros.

    O rei do Congo apercebeu-se logo da distncia que havia

    entre a cultura europeia e a dos africanos. Por isso, teve o cuidado, como

    atrs salientmos, de pedir ao rei de Portugal que lhe mandasse padres,

    mestres de letras e oficiais mecnicos, no se esquecendo de sugerir que

    fossem enviadas tambm mulheres conhecedoras da realizao prtica dos

    servios domsticos. Pretendia adoptar os costumes portugueses, naquilo

    que fosse possvel, seguindo os exemplos e imitando os modos de viver do

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    povo com o qual estabelecera contactos. Desejava ainda receber animais

    domsticos europeus e alfaias agrcolas. Entendia que as mulheres do Congo

    poderiam aprender com as mulheres brancas muitas coisas teis, que

    desconheciam, como fosse cozinhar, cuidar da roupa, dos doentes, dos

    idosos e das crianas, fabricar o po, que era ento trabalho caseiro, como o

    era h poucos anos nas aldeias da Beira Alta ou de Trs-os-Montes.

    As populaes indgenas, por meio dos seus chefes mais

    categorizados, viram a vantagem da adopo de diversos usos e costumes

    estranhos, de aplicao e interesse imediatos. Os habitantes do Congo,

    naqueles remotos tempos, no deviam ter empenho especial nos problemas

    culturais nem estes se manifestavam com a veemncia que ns imaginamos.

    Mas o importante que isso existia em potncia e era posto em equao.

    No dia 19 de Dezembro de 1490, saiu de Lisboa, com destino

    foz do Zaire, uma esquadra portuguesa em que viajavam alguns artistas

    mecnicos e com eles cinco missionrios. Se exceptuarmos os que deveriam

    acompanhar as armadas de descobrimento e explorao anteriormente

    enviadas, eram os primeiros missionrios catlicos a tentar a evangelizao

    do Congo e a promover a sua civilizao, pelo ensino, pela catequizao,

    pela assistncia espiritual e temporal.

    Desembarcaram no porto de Pinda, no dia 29 de Maro de

    1491, e iniciaram imediatamente os trabalhos da missionao. Nesse mesmo

    ano, foram baptizados os primeiros convertidos, as figuras mais destacadas

    daquelas terras, frente das quais devemos colocar a famlia do rgulo e os

    grandes do pas. O rei do Congo recebeu no baptismo o nome de Joo, que

    era, como todos sabemos, o do monarca portugus, D. Joo II; sua mulher

    adoptou o nome de Leonor, em homenagem esposa do Prncipe Perfeito, a

    fundadora das Misericrdias; o filho, sucessor na chefia dos seus povos,

    tomou o nome de Afonso, que era o do prncipe herdeiro da coroa lusitana,

    aquele que, no vero desse ano, iria morrer desastradamente em Santarm,

    caindo de um cavalo. Outros nefitos tomaram igualmente nomes dos

    maiores fidalgos e grandes de Portugal.

    Divergem os historiadores, quando se referem congregao

    religiosa a que deviam pertencer os primeiros missionrios do Congo:

    dominicanos, franciscanos, tercirios de S. Francisco, cnegos regrantes de

    S. Joo Evangelista (vulgarmente chamados lios), etc. Este problema

    talvez nunca chegue a ser completamente resolvido, porque todas estas

    congregaes religiosas enviaram missionrios s terras de Enzaze, nos

    primeiros tempos da fixao portuguesa.

    Comeou logo, como j vimos, o movimento de estudantes

    do Congo, que se deslocavam para Portugal, preparando-se nas escolas de

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    Lisboa, de acordo com a tradio escolar portuguesa. Em 1492, por proviso

    do dia 5 de Abril, o rei D. Joo II mandava pagar ao reitor do colgio de

    Santo Eli, onde estavam hospedados os bolseiros do Congo, a despesa com

    eles feita na alimentao, no vesturio e nos estudos. O errio rgio tomava

    sobre si o pesado encargo da sua sustentao.

    No queremos deixar passar sem referir, relativamente ao

    que se exps no pargrafo anterior, que o Convento de Santo Eli, em

    Lisboa, no bairro designado Alfama, pertencia Congregao dos Cnegos

    Regrantes (depois chamados seculares) de S. Joo Evangelista, o que prova

    estarem relacionados de longe com a evangelizao do Congo.

    Em 1504, o rei D. Manuel I mandou uma misso foz do

    Zaire, constituda por sacerdotes seculares. Esta designao poderia adaptar-

    se aos padres lios, como sabemos; a afirmao baseia-se no que se l no

    Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, que usou os termos

    frades e clrigos... aos quais podem dar-se vrias interpretaes. Sabemos

    que esta misso levava entre outras coisas muitos livros de doutrina crist,

    para serem usados no ensino dos mistrios e verdades da F, facilitando tal

    tarefa. No ano de 1508, partiram para estas terras, onde tencionavam

    dedicar-se actividade missionria, treze padres lios; e em 1521 seguiram

    mais quatro sacerdotes da mesma Ordem.

    Em carta do dia 15 de Maio de 1516 (outros afirmam que foi

    datada em 25 do mesmo ms e ano), o vigrio-geral de So Salvador, P.

    Rui de Aguiar, dava conta ao rei de Portugal das manifestaes de f e

    devoo do rei do Congo, indicando que havia na sua cidade e em todo o

    reino diversas escolas, onde se ensinavam as coisas da F e tambm a ler e a

    escrever, mostrando-se satisfeito com os resultados obtidos. E em 18 de

    Maro de 1526, o rei do Congo, D. Afonso, pedia ao monarca portugus

    cinquenta missionrios, que pretendia espalhar por diversos pontos dos seus

    dilatados domnios.

    O rei do Congo, D. Afonso, foi um catlico sincero, modelar

    na sua f e nos seus costumes. Um dos seus filhos, D. Henrique, chegou

    mesmo a ser elevado dignidade episcopal; recebeu a plenitude do

    sacerdcio em 1 de Dezembro de 1520; regressou s suas terras no ano

    seguinte, com outros companheiros de estudo, que tambm haviam recebido

    ordens sacras. Era este o clebre bispo titular de Utica, o primeiro bispo

    originrio da frica central e austral.

    Admite-se a hiptese de ter havido pelo menos mais um ou

    mesmo dois bispos da sua famlia, sobrinhos daquele rei. Infelizmente, no

    foi encontrada confirmao documental para o que sugere um fragmento de

    uma carta do rei do Congo para D. Joo III de Portugal, de data ignorada

  • 13

    mas que o P. Antnio Brsio localiza pelo ano de 1526, em que se l que

    seria grande merc se regressassem de Roma ordenados bispos, podendo dar

    ordens, isto , podendo ordenar padres naturais destas terras, o que se

    reputava servio de Deus e acrescentamento da F catlica.

    No mesmo ano de 1526, D. Afonso I, rei do Congo, pedia

    autorizao a D. Joo III para deter nas suas terras um carpinteiro e um

    piloto, de um grupo de dez portugueses que aprisionara, e entre os quais

    havia um clrigo de missa; o carpinteiro era-lhe muito preciso para fazer

    reparaes e cobrir as igrejas, e o piloto tornava-se indispensvel por ser

    bom gramtico para assentar escola. Segundo os cronistas, o

    aprisionamento tinha sido efectuado nos portos do Soio ou Sonho, havendo

    quem afirme serem tripulantes de um navio francs... Como pode deduzir-

    se, havia entre os componentes do grupo oficiais mecnicos e pessoas com

    ilustrao, um clrigo j ordenado sacerdote e um piloto que se entendia ser

    capaz de se transformar em professor.

    O mesmo documento inclui logo a seguir o pedido do rei do

    Congo ao rei de Portugal, de lhe enviar trs ou quatro bons mestres de

    gramtica, de que tinha muita necessidade para darem continuidade ao

    ensino j principiado; estes destinavam-se ao ensino de matria mais

    avanada; para as primeiras letras havia muitas pessoas da terra em

    condies de exercerem o magistrio.

    O rei de Portugal, embora com bastante demora, de cerca de

    trs anos, satisfez o pedido. Recomendava que os quatro mestres fossem

    compelidos a viver em boa disciplina de vida e costumes; caso assim no

    acontecesse, deveriam ser recambiados para Lisboa, de onde iriam outros.

    No mesmo documento pode ler-se que o monarca lusitano estava informado

    de que o rei do Congo e a gente desta regio davam grande importncia

    actividade docente. As suas escolas funcionavam sem interrupo e a

    prpria rainha nativa era "mulher lida" e de grandes qualidades.

    Recomendava-se-lhe que tomasse conta das raparigas, instalando-as em casa

    separada, aparte dos rapazes, segundo o costume dos povos europeus. A fim

    de poderem colher-se melhores resultados, sugeria-se que as classes no

    fossem muito numerosas, para que cada aluno pudesse receber ensino

    eficiente e directo das matrias cursadas. Se o rei do Congo estivesse de

    acordo, poderia enviar para Lisboa alguns dos seus netos, que ali receberiam

    educao mais esmerada, sendo as despesas por conta do soberano de

    Portugal.

    Aproveitava a oportunidade para referir que os antigos

    escolares falecidos sucumbiram no por falta de cuidado mas por fatalismo,

    tendo sido essa a vontade de Deus. Sentira profundo desgosto o monarca

  • 14

    anterior, D. Manuel I, seu pai, com a morte dos bolseiros do Congo. No

    devia ser isso motivo para deixar de mandar outros escolares, da sua famlia,

    fazendo a antecipada promessa de serem tratados e ensinados com todo o

    interesse, respeitando a sua dignidade e dando-lhes a considerao a que

    tinham direito.

    No tempo do rei D. Joo III, foi para Lisboa um sobrinho do

    rei do Congo, cujo nome era D. Afonso, portanto igual ao do potentado.

    Sendo embora de cor escura, como azeviche, foi um cristal de vida e

    espelho de virtudes, no dizer potico de Frei Lus de Sousa, que se lhe

    refere. Manteve escola pblica na capital portuguesa, fora do Bairro Latino

    ou Bairro das Escolas Gerais no que teve tratamento de excepo, pois

    foi autorizado a estabelec-la onde quisesse, o que era contrrio ao

    estabelecido, pois todas deveriam limitar-se ao ncleo reservado aos

    escolares. Esta autorizao deve ter-lhe sido concedida no decorrer do ano

    de 1533, em Junho ou Julho, no dia 6 de cada um destes meses. Era ainda

    aluno do Colgio de S. Domingos. A sua escola destinava-se a ensinar a

    Lngua Portuguesa a outros estudantes naturais do Congo, pois no seria

    admissvel que fosse professor de naturais do reino, onde havia muitos

    indivduos melhor preparados do que ele estaria.

    Sabe-se que nesse tempo havia em Lisboa bastantes negros,

    escravos e homens livres. Muitos deslocavam-se com o intuito de se

    educarem e aprenderem o que se ensinava nas escolas do reino. O P.

    Antnio Brsio aceita a hiptese de aquela escola funcionar a expensas da

    Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, que estava instituda na

    igreja do Convento de S. Domingos, desde o j afastado ano de 1460.

    Conhecem-se numerosas cartas diplomticas e outros

    documentos enviados do Congo para a Europa, Lisboa ou Roma, ou da

    Europa para a frica. Tal facto prova que a cultura literria era dominada

    por numerosos indivduos e tinha relativa extenso, pois de outro modo no

    se compreenderia tal volume de correspondncia, tratando variados temas. E

    nem pode sustentar-se a hiptese de os letrados serem apenas os europeus

    residentes no Congo, porque so muitos os exemplos conhecidos de que os

    naturais, homens e at mulheres, aprendiam a ler e a escrever, atingindo tal

    nvel de cultura que se consideravam capazes de ensinar...

    A actividade cultural exercida atravs dos portugueses no

    Congo, desde os primeiros tempos, est suficientemente demonstrada e

    amplamente documentada. Na lista dos membros do cabido da s de So

    Salvador, h referncia ao P. Joo da Estrada, que exerceu as funes de

    mestre-escola pelo ano de 1610. E ainda no sculo XV portanto mais de

    cem anos antes h notcia da remessa de livros impressos e manuscritos.

  • 15

    Em 1514 frequentavam as aulas cerca de quatro centenas de jovens, filhos

    das principais famlias, tendo sido construda uma vedao que impedia que

    sassem do recinto escolar e se dispersassem. Havia vrios ncleos

    estudantis espalhados pelo territrio subordinado ao rei do Congo, alguns

    deles a muitas dezenas de quilmetros da costa ou da cidade de So

    Salvador.

    Muito curioso o pedido feito em 31 de Maio de 1515, ao rei

    D. Manuel I de Portugal, em estilo que lembra o dos indgenas africanos

    com fraco domnio do idioma portugus, no qual se pedia a vinda de

    pedreiros e carpinteiros, para construrem uma escola onde os seus parentes

    e outros elementos da populao pudessem estudar e aprender. Nessa altura

    havia j alguns nativos a exercer o magistrio, e no apenas indivduos do

    sexo masculino como tambm do sexo feminino. Uma irm do rei congus,

    que contava cerca de sessenta anos de idade, tinha aprendido muito bem e

    atravs dela outras suas conterrneas e patrcias.

    O rei deleitava-se com a leitura assdua de livros edificantes,

    nomeadamente os Evangelhos e outros textos tirados da Sagrada Escritura, a

    Vida dos Santos, e tambm uma obra ao tempo bastante divulgada, a Vita

    Christi, de Rudolfo de Saxnia.

    O regimento dado a Baltasar de Castro, em Fevereiro de

    1520, determinava que devia levar consigo pessoas que pudessem

    encarregar-se de ensinar a ler e a escrever. Deveria deixar em So Salvador

    dois homens brancos encarregados do magistrio, se o rei da terra se no

    opusesse a isso. E seriam recebidos com agrado os seus prprios parentes

    que fossem enviados ao reino para se instrurem. Devemos admitir que as

    despesas com a sua educao continuariam a ser suportadas pelo errio

    rgio.

    No queremos deixar passar sem a merecida referncia a

    anotao do P. Antnio Brsio, que pe a hiptese de a famosa Gramtica

    de Joo de Barros ter sido elaborada tendo em mente as escolas

    ultramarinas. Tenha-se presente que foi o nosso primeiro compndio do

    ensino e regncia do idioma.

    Ao princpio da histria das relaes luso-conguesas surge-

    nos o nome de um mestre-escola conhecido por Rui do Rego, que se

    distinguiu mais pelas suas actividades mercantis do que pela dedicao ao

    ensino e s actividades intelectuais. Tratar-se-ia de um daqueles

    missionrios degenerados, de que teremos ainda ocasio de falar, ou de um

    leigo que fosse encarregado da misso docente?! Tudo nos leva a crer que se

    tratasse de um clrigo, at porque encontramos nele uma sntese bastante

    completa dos males de que enfermava a classe missionria.

  • 16

    Havia comeado o intercmbio de pessoas e bens entre as

    margens do Tejo e do Zaire. Tinha-se iniciado o movimento migratrio de

    uma para a outra zona, com intuitos culturais, mas em que os naturais do

    Congo obtinham manifesta vantagem. Contudo, os males sociais

    manifestavam-se de forma to saliente que houve necessidade de lhes dar

    remdio. Assim, em 1536, Manuel Pacheco dava conta da expulso que, por

    ordem rgia, tivera de executar, embarcando e repatriando alguns

    missionrios que se estavam a comportar pouco convenientemente.

    Em 1539, Gonalo Nunes Coelho avisava o rei de que, neste

    particular, os negcios do Congo iam de mal a pior. Chegava mesmo a

    aconselhar que fossem expulsos dessas terras todos os brancos ali

    residentes, quer clrigos quer leigos, e se mandasse para l gente nova.

    Aconselhava, como vemos, uma medida draconiana, que era impraticvel e

    nada resolveria, porque seria difcil, se no impossvel, encontrar a tal

    "gente nova", boa em tudo. Posta em contacto com aquele ambiente, corria

    o risco de se deixar influenciar tambm pelos defeitos locais. A sugesto,

    porm, d-nos ideia exacta do estado geral do Congo e da amplitude dos

    males que se pretendia extirpar.

    Poucos anos mais tarde, exactamente em 1548, um

    missionrio escrevia aos seus confrades e superiores da Europa,

    comunicando que no se encontravam j pastores de almas de autntico

    esprito apostlico, pois todos eles buscavam o seu interesse material,

    andavam quase sempre desavindos uns com os outros, o culto divino estava

    quase completamente abandonado, e os trabalhos da evangelizao

    relegados para o ltimo lugar, se ainda tinham algum!... Em carta de 28 de

    Janeiro de 1549, o rei do Congo queixava-se dos padres, e at do bispo

    que era ento o de So Tom, D. Frei Bernardo da Cruz assim como dos

    portugueses em geral.

    Alguns anos atrs, em 1546, o rei do Congo, D. Diogo (neto

    de D. Afonso, falecido anos antes), mandava a Portugal, como seu

    embaixador, um sacerdote natural do Congo, filho de pais portugueses o

    mais provvel que se tratasse de um casal misto, pois no h notcia certa

    de que pudesse ter nascido nessa altura, no Congo, um filho de mulher

    branca. Chamava-se ele Diogo Gomes e era um padre exemplar e de muita

    virtude, de acendrado zelo pelas coisas divinas. O rei, que no pode ser

    apontado como modelo de crente, tinha grande confiana nele. Entre os

    problemas apresentados considerao do rei de Portugal, e dos ministros

    da corte de Lisboa, conta-se o pedido de mais missionrios. Em

    consequncia imediata desta splica, insistentemente formulada, o rei D.

    Joo III chamou o provincial dos jesutas e pediu-lhe alguns religiosos para

  • 17

    mandar ao Congo. O P. Simo Rodrigues, que era ento quem

    desempenhava aquele alto cargo dentro da Ordem, escolheu trs sacerdotes

    e um escolar para trabalhar junto deles, cujos nomes a Histria conservou.

    Tratava-se dos P. Jorge Vaz, P. Jcome Dias, P. Cristvo Ribeiro e do I.

    Diogo de Soveral. Aportaram a So Tom, onde se demoraram a tratar-se

    das febres que j haviam contrado, e s chegaram ao porto de Pinda no dia

    18 de Maro de 1548. Foram recebidos na corte de Ambasse em 20 de

    Maio, domingo de Pentecostes.

    O I. Diogo de Soveral dedicou-se com entusiasmo ao ensino

    das crianas, chegando a reunir cerca de seiscentos meninos e meninas, em

    diversas escolas, onde eram ensinados por monitores, que ele orientava. No

    fazemos ideia exacta de que professores se tratava, que escolas eram, onde

    funcionavam, e que programa de estudo seguiam; provavelmente, no

    deveriam passar muito alm das noes religiosas e literrias mais

    elementares!

    Mostraram-se os jesutas bastante zelosos, seguindo de perto

    e com muito escrpulo as indicaes directamente recebidas do rei de

    Portugal e dos superiores da Companhia de Jesus, honrando a esmerada

    formao recebida na Ordem e as normas rigorosas pelas quais se

    orientavam e a que obedeciam religiosamente. Mas o rei do Congo no era

    jesuta e tomou atitudes um tanto desconcertantes, pois chegou a obrigar um

    padre a interromper a pregao, lanando-o fora da igreja, com grande

    afronta dele e escndalo dos assistentes, por censurar em pblico males

    gerais e que o prprio rei devia tambm praticar, pois se julgou directamente

    alvejado. Devemos atender a que este pouco mais tinha do que o nome de

    cristo.

    O rei do Congo justificou-se perante o monarca portugus,

    dizendo que o missionrio lhe dirigira insultos em pblico e o tratara por

    nomes injuriosos. Nada mais devia ser do que a adaptao perfeita da crtica

    oratria ao seu comportamento pessoal. A verdade, no entanto, deveria ser

    um pouco diferente do arrazoado das suas desculpas, pois pretendia dominar

    e dirigir toda a actividade dos missionrios, cerceando-lhes os movimentos e

    limitando-lhes a liberdade de actuao. Ameaou-os mesmo com a

    condenao morte, atitude s concebvel na frica, e que na Europa seria

    praticamente impossvel, atendendo s imunidades que defendiam a classe

    sacerdotal. Em tudo isto pouco mais fazia do que seguir os pssimos

    conselhos de alguns eclesisticos, mesmo clrigos de missa, que no viam

    com bons olhos o zelo missionrio dos jesutas, cuja pregao e cujo

    exemplo era a condenao tcita do seu procedimento e da sua vida.

    O embaixador do rei do Congo, que os havia conduzido para

  • 18

    aquele vasto campo, voltou em breve a Portugal e deu conta do que se

    estava passando, referindo tudo ao monarca lusitano. No deixou de relatar

    os grandes vexames a que estavam sujeitos, e salientou bem que eram

    injustamente tratados. Tinha embarcado com destino a Lisboa em Fevereiro

    de 1549. O tempo de sossego que gozaram no Congo foi quase nulo, visto

    que haviam chegado nove meses antes.

    O P. Jorge Vaz voltou em breve a Portugal, gravemente

    doente, vindo a falecer pouco tempo depois. Os outros dois sacerdotes, seus

    companheiros de trabalho, que ficaram no Congo, vendo-se sem o conselho

    e a orientao amiga do que fora seu superior, deixaram-se seduzir pelas

    condies do meio e pela tentao das riquezas. Fizeram-se mercadores,

    semelhana do que acontecera com tantos que os haviam precedido. No

    tardou muito que se mudassem para So Tom. O P. Jcome Dias voltou

    muito doente Ptria, sendo mandado para a sua aldeia natal, em tratamento

    e cura de repouso; quanto ao P. Cristvo Ribeiro, continuou a exercer

    actividades mercantis e o eco do seu procedimento em breve chegou ao

    reino.

    Os responsveis pelos assuntos da Companhia de Jesus

    quiseram tirar o caso a limpo. Enviaram s terras da frica ocidental o

    antigo embaixador do Congo, agora padre jesuta, sob o nome de P.

    Cornlio Gomes, com o encargo de fazer a indispensvel inquirio e

    castigar o culpado se culpado fosse. No exerccio da sua misso, mandou

    prender o seu confrade, despojou-o do fruto das suas traficncias e entregou

    estes bens ao hospital de So Tom. O clrigo infractor mostrou

    arrependimento do seu modo de proceder, sujeitou-se penitncia que lhe

    foi imposta e pediu insistentemente que lhe permitissem continuar na

    Ordem. Veio sob priso para Lisboa, onde foi carinhosamente recebido

    pelos seus confrades; em seguida, recolheu-se sua aldeia natal; por fim

    desligou-se da Companhia de Jesus. Assim terminou a primeira experincia

    missionria jesuta em terras do Congo.

    A segunda tentativa que os padres jesutas fizeram para se

    fixarem em So Salvador foi realizada pelo antigo emissrio do rei, o P.

    Cornlio Gomes tendo como coadjuvante o P. Frutuoso Nogueira.

    Chegaram ao porto de Pinda em Junho de 1553. O rei no se mostrou muito

    disposto a seguir os conselhos do que fora seu embaixador, e at o via com

    certa desconfiana, por saber que era ouvido com muita considerao na

    corte de Portugal. Procurava contrari-lo ostensivamente, mostrando o

    desprezo com que o tratava. Tinham muita culpa em tudo isto outros

    clrigos da cidade, pois atiavam a m vontade do rei, dando-lhe conselhos

    pouco sensatos, pouco cristos, e mesmo errneos. Chegaram as coisas a tal

  • 19

    ponto que o senhor do Congo o expulsou das suas terras, tendo chegado a

    Lisboa no dia 21 de Outubro de 1553.

    Sabemos que o P. Cornlio Gomes ainda estabeleceu na

    regio uma escola de primeiras letras, tendo elaborado um compndio, mais

    provavelmente uma "cartilha", que fez imprimir no reino. Apesar de o rei

    no simpatizar com ele, reconheceu ou lhe fizeram ver o mrito do seu

    esforo, tendo pedido que lhe fossem enviados trezentos exemplares do

    trabalho, hoje inteiramente desconhecido.

    H notcia de uma obra composta por Frei Gaspar da

    Conceio, bilingue, impressa em 1556. A traduo para o quicongo tinha

    em vista facilitar a aprendizagem da doutrina crist aos escravos das

    fazendas agrcolas de So Tom, na quase totalidade provenientes desta

    regio do continente africano. Naquele ano de 1556, o seu autor, juntamente

    com Frei Estvo de Lagos, deslocava-se para terras de misso, levando

    consigo grande nmero de exemplares do seu trabalho catequtico e

    literrio. Procurava-se vencer as dificuldades da catequizao dos cativos

    que no dominassem a lngua portuguesa, que seria a quase totalidade deles.

    A remodelao dos costumes, iniciada com as primeiras

    tarefas da evangelizao do Congo, no foi profunda nem persistente, na

    maior parte dos casos, pois muitos convertidos voltaram s prticas

    gentlicas. Se o rei D. Afonso apontado sempre como exemplo de

    fidelidade nova crena, no podemos dizer o mesmo dos seus

    contemporneos e seus conterrneos. Seu pai, o rei D. Joo, apesar de

    baptizado, vivia quase como os que o no haviam sido, e parece ter chegado

    mesmo a tomar atitudes de perseguidor, se no de forma sistemtica pelo

    menos de maneira bastante aberta, mesmo ostensiva, com certo cunho de

    regalismo dominador.

    Vrias causas se opuseram difuso das novas doutrinas,

    nestas terras. Podemos apontar as principais, numa ordenao que no deve

    ser tomada como indicativo da sua importncia:

    Os nativos tinham as suas tradies e os seus hbitos, que a

    Religio Catlica vinha em grande parte alterar e at destruir;

    Os missionrios nem sempre corresponderam misso que

    exerciam, sofrendo a influncia depauperante de um ambiente que em nada

    lhes era favorvel, no encontrando aqui o apoio moral de um meio cristo;

    Os missionrios, sentindo a necessidade de conviver com os

    outros portugueses que aqui vinham com objectivos puramente materiais,

  • 20

    foram influenciados por eles e seduzidos pela tentao das riquezas, muitos

    passaram a exercer actividades mercantis, usando processos pouco cristos

    e at pouco honestos;

    Alguns aproveitavam as oportunidades para se repatriarem, a

    pretexto da malignidade do clima, e muito especialmente aqueles que se

    tinham dedicado s actividades comerciais;

    Os costumes de muitos deixavam bastante a desejar, se os

    cotejarmos com o que seria lgico esperar vivendo em meios europeus,

    sofrendo tambm neste ponto a influncia nefasta do ambiente indgena e

    dos hbitos dos colonos;

    O relacionamento social era deprimente, havendo entre os

    portugueses, clrigos ou leigos, questes permanentes, desavenas

    corrosivas, vinganas mesquinhas, vexames inacreditveis, cobia

    desenfreada, devassido corrente e quase geral.

  • 21

    A CRISTANDADE DE SO SALVADOR

    Depois que Paulo Dias de Novais fundou a cidade de Luanda

    e deu incio penetrao no serto angolano, a partir da entrada natural que

    o rio Cuanza oferecia, comeou a decair a importncia poltica de So

    Salvador. No entanto, durante algumas dezenas de anos, pelo menos at

    meados do sculo XVII, no se obscureceu de todo o antigo brilho da corte

    dos reis do Congo, mantendo-se em paralelo com a influncia que Luanda

    pretendia disputar no s antiga sede da actividade poltica e diplomtica

    portuguesa na costa ocidental da frica, So Salvador, como a outra

    povoao que se considerava a cabea e centro do reino do sul, Benguela.

    Todavia, no aspecto escolar, e tendo em conta apenas factos conhecidos, a

    importncia da "Cidade de So Filipe" fica muito aqum da de qualquer das

    outras duas.

    H notcia de que os missionrios jesutas acompanharam o

    fundador de Benguela, Manuel Cerveira Pereira, na sua misso de

    organizador de um reino africano que teria esta cidade como centro. O

    escritor Abel Augusto Bolota refere os nomes do P. Duarte Vaz e do P.

    Gonalo Joo. E podemos ainda mencionar que, quando em 12 de Janeiro

    de 1619 o governador Cerveira Pereira foi expulso da cidade, metendo-o

    num batel velho na companhia de um s soldado, esperando que viesse a

    naufragar, vemos imiscudos nesta questo alguns padres. No obstante, no

    conseguimos encontrar referncia alguma ao funcionamento de escolas nos

    primeiros tempos da sua histria.

    Por carta patente de 19 de Maro de 1582, o provincial dos

    carmelitas descalos nomeou alguns missionrios para irem trabalhar para o

    Congo, nas tarefas da evangelizao que os portugueses a haviam iniciado.

    Embarcaram no dia 5 de Abril, tendo morrido na viagem, devido a um

    naufrgio. Uma das naus da frota deu violenta pancada no costado daquela

    em que seguiam, provocando o afundamento. Pouco depois, foi enviada

    segunda expedio de religiosos da mesma Ordem, que tambm no

    chegaram ao destino. Foram apanhados pelos corsrios, ao largo de Cabo

    Verde; os piratas saquearam o navio e abandonaram os missionrios com

    outros companheiros numa das ilhas do arquiplago, depois de os terem

    despojado de todos os seus haveres e inclusivamente das roupas que

    vestiam. Algum tempo depois puderam regressar ao reino.

  • 22

    Em 1584, as terras de Angola e Congo foram visitadas pelo

    bispo de So Tom, D. Frei Martinho de Ulhoa. Acompanhavam-no vrios

    missionrios, alguns dos quais ficaram a trabalhar neste territrio. Haviam

    partido de Lisboa no dia 10 de Abril e chegaram a So Salvador em fins de

    Novembro. O relato da sua chegada e das festas promovidas em sua honra

    foi remetido para Lisboa em carta que tem a data de 2 de Dezembro desse

    ano.

    Este prelado criou a primeira parquia da cidade de Luanda,

    dedicada a Nossa Senhora da Conceio. Devemos salientar que o servio

    religioso estava aqui razoavelmente assegurado, pelo menos desde a

    fundao da capital, em 1575. Podemos acrescentar ainda que o bispo

    referido, D. Frei Martinho de Ulhoa, fundou tambm, em 18 de Maio de

    1590, a primeira parquia do interior de Angola, a de Massangano.

    J antes disso os cristos de Angola e Congo haviam

    recebido a visita de dois prelados. Em 1547, esteve aqui D. Frei Joo

    Baptista, que alguns autores dizem ser bispo eleito de Meliapor e

    administrador da diocese de So Tom, em nome do respectivo antstite, D.

    Frei Bernardo da Cruz. Foi o primeiro prelado europeu a visitar estas

    cristandades. E em 1561 efectuou-se outra visita, a de D. Frei Gaspar Co,

    bispo de So Tom; demorou-se nestas terras cerca de trs meses.

    Em 3 de Fevereiro de 1592, o rei de Espanha e Portugal, D.

    Filipe II, determinava que fosse paga pelo Feitor da Fazenda Rgia do Reino

    de Angola a importncia anual de cento e cinquenta mil reis ao licenciado

    Joo da Costa, que tinha sido enviado a estas paragens como administrador

    da jurisdio eclesistica e vigrio-geral. Tratava-se j, certamente, da

    criao do bispado, o que veio a verificar-se em 20 de Maio de 1596, com a

    emisso da respectiva cdula consistorial e a assinatura da bula Super

    specula militantis Ecclesiae. Nessa altura estava j escolhido o futuro bispo,

    D. Frei Miguel Rangel (1596-1602).

    D. Frei Manuel Baptista (1606-1623) foi o primeiro prelado

    que visitou as parquias do interior de Angola, ao tempo trs

    Massangano, Muxima e Cambambe.

    O papa Urbano VIII criou a Prefeitura Apostlica do Congo,

    por decreto da Propaganda Fide, de 25 de Junho de 1640. Foi confiada aos

    missionrios capuchinhos italianos; tinha a sede em So Salvador e

    coexistia com o bispado. O seu superior foi Frei Boaventura de Alessano,

    que morreu naquela povoao em 2 de Abril de 1651. Sucedeu-lhe Frei

    Jacinto de Vetralha, o qual transferiu para Luanda, em 1654, a sede daquele

    organismo eclesistico.

    O rei do Congo, apesar da sua pouco ortodoxa maneira de

  • 23

    viver, continuava a arrogar-se o ttulo de rei cristo e protector da f. Tinha

    aprendido bem a lio que lhe havia sido ensinada pelos monarcas

    portugueses. Satisfazendo um insistente pedido do potentado indgena,

    embarcaram para o Congo, no dia 25 de Maro de 1610, trs missionrios

    dominicanos. Chegaram a Luanda no dia 3 de Julho, e partiram para So

    Salvador, depois de um perodo de descanso bastante longo, no dia 16 de

    Setembro do mesmo ano.

    Os religiosos dominicanos encontraram aqui um ambiente

    pouco propcio s actividades apostlicas, envenenado por intrigas ridculas

    e interesses mesquinhos. Os estudiosos deste perodo apontam como a alma

    danada dos negcios eclesisticos do Congo o sacerdote crioulo e deo da

    s, P. Diogo Rodrigues Pestana. So bastante frequentes as referncias

    desagradveis a este clrigo, e at o prprio bispo, D. Frei Manuel Baptista,

    fazia queixa dele e dos colegas, P. Custdio de Barros e P. Manuel

    Castanho, em carta datada em 10 de Julho de 1612. Mostrava-se muito

    descontente e at desalentado com a situao missionria do Congo. O deo

    chegou a ser preso e enviado para Lisboa, em castigo do seu

    comportamento, pouco modelar.

    Simeo Nunes Vitria, que foi chefe dos Servios de

    Instruo de Angola, desde 1927 a 1931, afirma que foi fundada no Congo,

    em 1491, uma escola-oficina missionria e que, em 1618, foi criado o

    colgio jesuta de Luanda, o qual contava dez professores em 1622. Informa

    ainda que, na mesma altura, se estabeleceu uma Aula de Geometria e

    Estratgia, que durou at meados do sculo XIX. Parece haver algumas

    imprecises, algumas inexactides, nos dados referidos.

    Chegaram at ns, com efeito, notcias da carta rgia de 11

    de Setembro de 1618, pela qual o monarca portugus, ento em Madrid,

    autorizava o funcionamento do Colgio de Santo Incio (ao tempo ainda no

    canonizado, apenas beatificado), iniciativa dos jesutas, na cidade de So

    Salvador do Congo. Deveria ter dezasseis professores para as cadeiras de

    ler, escrever e contar, gramtica latina e casos, mas sem implicar qualquer

    dispndio para a fazenda real. Parece-nos exagerado dezasseis professores

    para as necessidades e possibilidades da poca! Segundo outras

    informaes, a carta rgia defendia que fossem entabuladas conversaes

    com o provincial dos religiosos da Companhia de Jesus, no sentido de

    providenciar que houvesse em Luanda dezasseis sujeitos ordenados e entre

    eles alguns capazes de ensinar, salientando tambm que impunha a condio

    de no haver agravamento das despesas, a cargo do errio pblico.

    Ora isso altera profundamente o problema, pois o localiza em

    Luanda em vez de o situar em So Salvador, e fala concretamente de

  • 24

    missionrios e s marginal e parcialmente considerada a questo dos

    professores.

    O rei do Congo, semelhana do que se fazia no reino de

    Portugal, podia nomear cnegos para a catedral, excepto o deo e o mestre-

    escola, cujos cargos tinham importncia excepcional, que o soberano

    indgena no avaliava com exactido e, por isso, a sua nomeao lhe no foi

    confiada.

    No captulo-geral da Ordem Franciscana, em 1 de Junho de

    1618, foi apresentado o pedido de missionrios para a regio do Zaire. Os

    representantes das diversas provncias, ali congregados, enderearam o caso

    aos superiores principais da Ordem, que resolveram mandar seis religiosos

    para aquelas terras.

    Em 2 de Abril de 1641, embarcaram no porto de Livorno seis

    capuchinhos italianos, que se destinavam ao Congo. Viajaram no barco "So

    Domingos". Entraram no esturio do Tejo e encontraram em Lisboa forte

    oposio realizao do seu projecto de viagem, por no serem

    portugueses. Consideraram-nos agentes mais ou menos disfarados do

    monarca espanhol, que no desistia da ideia de continuar a superintender nas

    zonas que ele considerava ainda debaixo da sua autoridade legal e real, por

    se no resolver a aceitar a independncia portuguesa, restaurada em 1 de

    Dezembro de 1640.

    As autoridades de Lisboa foram apresentando objeces e

    entraves, de forma a adiarem o mais possvel a sua partida. Os missionrios

    tentaram ainda opor a esta desagradvel situao a sua qualidade de naturais

    dos Estados Pontifcios, portanto sbditos do Papa. Mas os diplomatas

    portugueses nem assim se resolveram a deix-los seguir para a frica.

    Vendo que nada poderiam fazer, regressaram Itlia, logo que chegou a

    Lisboa a notcia da ocupao da cidade de Luanda pelos holandeses, que se

    soube na capital do reino em 20 de Dezembro desse ano de 1641.

    As dificuldades apresentadas poderiam at basear-se em

    determinaes anteriores, do tempo dos monarcas madrilenos, pois no ano

    de 1620 foi ordenado que se no permitisse aos religiosos estrangeiros irem

    missionar s terras do domnio portugus, sem licena real. A proibio

    parece relacionar-se j com a vinda dos missionrios capuchinhos italianos

    para o nosso ultramar.

    Lus XIV, rei da Frana, escreveu em 18 de Abril de 1644 ao

    monarca portugus, patrocinando a causa de quatro missionrios

    capuchinhos, naturais de Gnova, que pretendiam embarcar para o Congo.

    Dizia ele que fazia este pedido por lhe ter sido solicitado pelo seu prximo

    parente, o Prncipe do Mnaco, a quem os religiosos haviam sido

  • 25

    directamente recomendados. Para o soberano francs, o problema estava um

    tanto simplificado, pois no morria de amores pela Espanha apesar da

    sua origem, pois era filho de D. Ana Maurcia da ustria, infanta de

    Espanha e de Portugal.

    No dia 20 de Janeiro de 1645, embarcaram em Sanlcar de

    Barrameda, com destino ao Congo, doze missionrios capuchinhos, sendo

    cinco italianos e sete espanhis. Devido a condies meteorolgicas

    adversas, s puderam levantar ferro e sair do porto no dia 4 de Fevereiro,

    chegando ao Zaire em 25 de Maio do mesmo ano, desembarcando na regio

    de Pinda. Estes missionrios j no abordaram Lisboa, onde poderiam ver

    embargada a viagem, como sucedera aos que em 1641 embarcaram com

    igual destino.

    Em Maro de 1646, chegava a Angola outra expedio de

    quatro missionrios capuchinhos italianos, com a inteno de

    desembarcarem em Luanda. Os calvinistas flamengos obrigaram-nos a

    voltar para a Europa. Desta vez os holandeses deviam recear que se tratasse

    de nova tentativa de ocupao da cidade pelos catlicos, portugueses ou

    espanhis. No dia 6 de Maro de 1648, chegou a Luanda a terceira

    expedio de missionrios capuchinhos, sendo oito italianos e seis

    espanhis. Estes puderam seguir logo para o Congo, aonde se dirigiam.

    O rei de Ambasse, So Salvador, ento Garcia II, ainda em 5

    de Outubro de 1646 aceitava a autoridade do rei da Espanha, a quem

    escreveu, pedindo que lhe mandasse navios que colaborassem com os seus

    guerreiros na conquista da cidade de Luanda, cujo territrio havia

    pertencido outrora aos seus domnios e de que andava duplamente afastado.

    Pedia tambm que, em vez de um s governador, mandasse dois, mas que se

    entendessem entre si de forma a haver paz entre eles e com o Congo.

    Aconselhava particularmente que esses governadores no fossem

    portugueses. Rogava que se fornecesse embarcao aos religiosos

    capuchinhos italianos, que o Papa ia mandar para as misses do Zaire.

    Finalmente, pedia que lhe mandasse dois ou trs mineiros experimentados,

    para pesquisarem e explorarem as minas de ouro e prata dos seus territrios.

    Afirmava que ia mandar a Madrid, na qualidade de embaixador, o

    missionrio capuchinho espanhol, Frei Angelo de Valncia.

    As demoras provocadas pelas paragens do navio nos portos

    de escala e as delongas causadas pelas diversas diligncias de que estavam

    encarregados fizeram com que os dois religiosos componentes da

    embaixada referida, Frei Angelo de Valncia e Frei Joo Francisco, s em 9

    de Maio de 1648 prestassem, em Roma, preito de obedincia ao Papa,

    Inocncio X. O rei Garcia II escrevia tambm ao Sumo Pontfice, no dia 20

  • 26

    desse mesmo ms e ano, tratando problemas do Congo.

    O rei de Espanha continuava a arrogar-se direitos de

    soberania sobre as terras do Congo. Assim, em 11 de Agosto de 1649,

    passou diploma em Madrid a favor de uma expedio de missionrios, que

    pensavam dirigir-se ao Zaire. Levava como superior o nosso conhecido Frei

    Angelo de Valncia e acompanhavam-no quarenta e trs religiosos

    capuchinhos.

    Entretanto, a situao alterou-se num curto espao de tempo.

    No dia 25 de Novembro de 1649, j o P. Boaventura de Alessano, noutro

    lugar referido, prestava homenagem ao rei de Portugal, em nome de toda a

    misso do Congo e na qualidade de seu superior. Finalmente, no dia 20 de

    Dezembro, o Senado da Cmara de Luanda pedia ao rei que autorizasse os

    capuchinhos a terem residncia na sua cidade , havendo notcia de que foi

    em meados desse mesmo ms de Dezembro que eles fundaram a misso

    desta capital, a pedido insistente de Salvador Correia de S e Benevides. No

    dia 26 de Dezembro, o P. Serafim de Cortona prestava tambm homenagem

    ao rei portugus; dois dias depois, o governador e capito-general

    recomendava ao monarca o P. Boaventura de Sorrento e, a propsito dos

    capuchinhos, afirmava que eram muito virtuosos e que Deus faria muitas

    mercs e favores a Angola por os ter ao seu servio neste territrio.

    Este capuchinho, o P. Boaventura de Sorrento, deixou So

    Salvador em 12 de Dezembro de 1649 e chegou a Luanda no dia 23 ou 24

    seguinte; atingiu a costa brasileira em 30 de Janeiro de 1650 e chegou a

    Lisboa dois meses depois, no dia 30 de Maro do mesmo ano.

    Nos fins de 1654, a Prefeitura Apostlica do Congo, que at

    ento tivera a sua sede em So Salvador, foi transferida definitivamente para

    Luanda. Nos sessenta anos que vo de 1645 a 1705, os missionrios

    capuchinhos italianos mandaram ao Congo duzentos e trinta sacerdotes. E

    em menos de dois sculos que durou a sua primeira fase da evangelizao,

    interrompida pela expulso das ordens religiosas, em 1834, e que foi

    executada em Angola j no ano seguinte, passaram por estas terras mais de

    quatrocentos missionrios a quem tinham sido conferidas ordens sacras de

    presbtero, no contando portanto os irmos auxiliares das misses.

    No dia 6 de Maio de 1653, a Sagrada Congregao da

    Propagao da F publicou um decreto em que tratava da jurisdio dos

    missionrios capuchinhos, na regio do Congo. Por sua vez, o rei Garcia II

    escreveu Cmara de Luanda ou antes, ao Senado da Cmara em 14

    de Novembro de 1654 e em 15 de Janeiro de 1655, tratando dos

    missionrios que tinham entrado nas suas terras com o apoio e sob a

    autoridade do rei espanhol. Este rgulo voltava de novo a colaborar com

  • 27

    Portugal na tarefa da ocupao do Congo, da civilizao dos seus povos e

    da elevao do seu modo de viver.

    Os religiosos capuchinhos eram muito estimados pelo gentio,

    devido s suas excepcionais qualidades, acrisoladas virtudes e interesse

    posto na tarefa da evangelizao e ascenso social dos silvcolas. O cabido

    de So Salvador, constitudo quase inteiramente por sacerdotes mestios

    comprometidos com os holandeses, entrou em conflito com eles. A corte do

    potentado indgena, que se dizia irmo de armas do rei de Portugal, era

    dominada por alguns elementos do clero, destacando-se nesta teia de

    intrigas e de enredos dois nomes historica e tristemente famosos, os cnegos

    P. Miguel de Castro e P. Simo de Medeiros.

    Eram ao tempo ainda bastante novos, pois haviam sido

    ordenados em 1637. Actuavam como verdadeiros senhores da sua cidade.

    Viviam rodeados de luxo, enriquecendo custa dos rendimentos obtidos a

    partir da posio social que ocupavam, havendo indcios de se dedicarem

    tambm ao trfico esclavagista. Inteligentes e cultos, exerciam funes de

    conselheiros influentes e eram os mais destacados colaboradores do rei,

    desempenhando importante papel nas resolues tomadas. Parece terem

    posto em actividade uma complicada trama de maquinaes, aproximando-

    se dos holandeses, dos espanhis ou dos portugueses, conforme lhes

    parecesse mais conveniente, e conseguindo equilibrar-se sempre nesta

    exerccio acrobtico. O seu atrevimento estava em proporo com as suas

    qualidades e com os seus defeitos. O cnego Simo de Medeiros chegou a

    usar o seu valimento para que o rei de Espanha e ex-rei de Portugal, D.

    Filipe IV, o fizesse bispo; este pedido dever ter sido feito pelo ano de 1664,

    no final do seu reinado.

    As relaes mantidas com os mais diversos elementos, de

    interesses antagnicos, eram dominadas por autntica dissimulao e

    verdadeira habilidade teatral. Conseguiam entender-se com os portugueses,

    que acreditavam neles; entendiam-se tambm com os espanhis, seguros da

    sua fidelidade; e at os holandeses julgavam t-los como dedicados

    servidores.

    A campanha nesse tempo movida contra os capuchinhos,

    religiosos de grande virtude que haviam sido enviados por iniciativa e com a

    aprovao do Papa, integra-se no conjunto de movimentos de fundo

    patritico com que procurou defender-se a soberania lusitana. Como estes

    missionrios eram na sua maior parte italianos, sbditos do Papa (que no

    reconhecia a restaurao da independncia), propunham-se afast-los sob a

    acusao de serem elementos dceis da poltica de Madrid. Isso no

    correspondia verdade, pois eles procuravam acima de tudo ser intrpretes

  • 28

    fiis do mandato de Cristo, de evangelizar e ensinar todos os povos. Os

    missionrios naturais das provncias e reinos sujeitos coroa de D. Filipe IV

    poderiam mostrar-se dispostos a acatar a autoridade deste monarca; mas os

    capuchinhos italianos no merecem ser acusados disso. Tinham, certamente,

    uma forma muito pessoal de ver os problemas e encarar as situaes, mas

    souberam pr sempre acima dos interesses polticos o objectivo ltimo da

    sua misso. Nada nos custa acreditar que os sacerdotes sujeitos autoridade

    temporal do Papa pudessem admitir que o rei de Espanha fosse o legtimo

    senhor das terras de Angola e Congo, sem com isso poderem ser acusados

    de traio ou rebeldia, em relao a Portugal, ou agentes disfarados de uma

    potncia estrangeira. Em verdade, Portugal tinha-se revoltado!...

    As acusaes a que nos temos referido foram fruto do

    ambiente local. As diferentes congregaes opunham-se umas s outras,

    com intrigas pouco edificantes, manifestao clara de inveja e despeito. Os

    sacerdotes mestios do Congo armavam complicada trama de enredos com o

    fim de se destacarem e defenderem posies adquiridas, que viam em perigo

    de perderem, devido ao prestgio que rodeava os humildes missionrios e a

    eles lhes faltava. Os dois sacerdotes, membros do cabido de So Salvador, j

    nossos conhecidos, os cnegos P. Miguel de Castro e P. Simo Medeiros,

    eram em boa parte os responsveis pela situao, pelos abusos e desmandos

    correntes. Cometiam toda a espcie de desaforos, tanto sob o aspecto

    religioso como poltico e social. Eram acusados de idlatras, pois

    misturavam os ritos gentlicos com os cristos; apontados como cismticos,

    apresentando os mistrios cristos em desacordo com o magistrio da

    Igreja; tidos na conta de feiticistas, aceitando os conceitos mticos

    tradicionais; acusados de simonacos por se aproveitarem da sua condio

    de dignitrios diocesanos. Opunham-se s determinaes das autoridades;

    contrariavam o prelado, menos informado e que no residia no Congo;

    conquistavam com ddivas os colegas do sacerdcio; utilizavam de vrias

    formas a sua influncia. O reitor da residncia dos jesutas, em Luanda, o

    enigmtico P. Antnio do Couto, noutro lugar referido, tinha

    comportamento bastante semelhante, era seu colaborador, seu aliado. A

    apatia, a indiferena e o comodismo formavam a espinha dorsal deste

    sistema defeituoso.

    Os mais dignos e conscientes membros do clero

    reconheciam no ser fcil emendar defeitos profundamente enraizados e

    esperavam melhores dias. A poca histrica que ento se vivia era anormal

    e facilitava os elementos pouco escrupulosos. Muitos deixavam-se dominar

    pelo pessimismo e acreditavam que a soluo s se encontraria muito longe,

    era um problema cuja soluo pertenceria ao tempo...

  • 29

    A FUNDAO DE LUANDA

    Sabemos que os portugueses do Congo comearam logo a

    explorar o serto, percorrendo-o em todos os sentidos, com preferncia

    particular pelas regies que ofereciam vantagens comerciais de maior vulto.

    Foram os interesses mercantis que levaram os lusos a devassar a regio de

    Luanda. Acumulavam-se aqui dois motivos destacados, era zona favorvel

    ao resgate de escravos e fornecia o zimbo, pequenina concha com valor

    fiducirio.

    Nos primeiros contactos que os portugueses tiveram com o

    rei de Angola, logo ele pediu ao seu monarca que lhe enviasse missionrios,

    pois desejava que os seus povos aprendessem a nova doutrina. Se o

    requerimento no teve deferimento imediato, ficava a dever-se isso a

    diferentes causas, e entre elas a de no ser possvel satisfazer todas as

    necessidades da missionao. Poderemos ainda admitir outra, no merecer

    este rgulo tanta confiana como o do Congo, sobretudo como o famoso D.

    Afonso. Todavia, o rei de Portugal mandou-lhe alguns missionrios jesutas,

    a que se juntaram mais tarde os dominicanos, os carmelitas e os

    franciscanos, como veremos na devida altura.

    O rei do Congo era um dos grandes potentados africanos, a

    quem outros obedeciam e pagavam tributos. Devemos ter isso em conta, e

    pensar que a sua qualidade de suserano , em relao a outros rgulos

    nativos, fazia com que as relaes com os portugueses fossem enormemente

    facilitadas. Sabe-se que o rei de Angola estabeleceu contacto com os

    lusitanos como consequncia directa e imediata das boas relaes mantidas

    com o primeiro.

    Tendo sido feito em 1557 um insistente pedido do rgulo

    angolano para que fossem enviados missionrios, s foi atendido em fins de

    1559. No dia 22 de Dezembro, saram de Lisboa trs navios, em que

    embarcara um emissrio do rei de Portugal, Paulo Dias de Novais, e com ele

    dois padres jesutas, o P. Francisco de Gouveia e o P. Agostinho de

    Lacerda, coadjuvados por dois irmos auxiliares. Atingiram a barra do

    Cuanza no dia 3 de Maio de 1560, mantendo-se nesta regio durante

    bastante tempo.

    O rei de Angola recebeu mal os portugueses, embora se

    desconheam pormenores das relaes entre eles estabelecidas, pelos quais

  • 30

    possamos fazer juzo mais exacto. Aquele que havia feito o pedido tinha j

    morrido; agora governava aqueles povo e aquelas terras outro potentado

    indgena, que apreciava menos a colaborao lusa e devia olhar os

    componentes da misso lusitana como agentes mais ou menos disfarados

    do rei do Congo, adeptos da sua poltica e defensores dos seus interesses.

    Teve o cuidado de os conservar prisioneiros nas suas terras, durante bastante

    tempo, tomando medidas para que no conseguissem escapar-se. Tirou-lhes

    tudo quanto possuam, incluindo mesmo os objectos de culto que haviam

    levado, e s mais tarde, em face de condies novas, consentiu que Paulo

    Dias de Novais sasse das suas terras. Mostrava-se agora disposto a dar

    facilidade de movimento aos portugueses, uma espcie de liberdade

    condicionada. Esperava mesmo que o ajudassem nalgumas dificuldades do

    seu governo e do seu reino, sobretudo na guerra.

    Sabemos, todavia, que a permanncia de Paulo Dias e dos

    seus companheiros, P. Francisco de Gouveia e P. Agostinho de Lacerda,

    em terras do Dongo foi de alguma maneira proveitosa. Embora tivessem j

    anteriormente tomado contacto com os portugueses, a presena to

    prolongada da misso enviada pelo monarca portugus teve como

    consequncia lgica que a superioridade da cultura europeia se acentuasse e

    impusesse aos olhos dos naturais. Sob o aspecto missionrio, esta primeira

    actuao dos jesutas, em Angola, teve o mrito de desbravar um campo

    que, mais tarde foi melhor arroteado, embora nunca se obtivessem colheitas

    abundantes. Em 1570, a pedido do rei D. Sebastio, foram mandados para o

    Congo quatro missionrios dominicanos, trs padres e um irmo auxiliar.

    Sob o aspecto escolar, alguma coisa puderam fazer apesar de as condies

    de trabalho serem extremamente deficientes. Faremos adiante referncias

    mais concretas a este ponto.

    Paulo Dias de Novais voltou a Portugal para preparar uma

    pequena expedio de auxlio ao rei que o retivera sob vigilncia durante

    vrios anos. Comea aqui, praticamente, a histria da aco portuguesa nas

    terras da bacia do Cuanza e regies limtrofes.

    Na sua segunda viagem a Angola, Paulo Dias de Novais saiu

    de Lisboa no dia 23 de Setembro de 1574, segundo alguns autores, ou no dia

    23 de Outubro do mesmo ano, segundo outros entre os quais se contam

    Alberto de Lemos e Norberto Gonzaga. Viajavam com ele dois padres da

    Companhia de Jesus, o P. Garcia Simes e o P. Baltasar Afonso. Estes

    sacerdotes vieram e falecer no campo missionrio, o primeiro deles poucos

    anos depois, no dia 12 de Maio de 1578 e o P. Baltasar Afonso j no sculo

    seguinte, em 29 de Maro de 1603.

    Aportaram primeiramente Madeira e depois a Cabo Verde,

  • 31

    tendo chegado a Luanda em Fevereiro de 1575 no dia 11, segundo o P.

    Pedro Rodrigues, ou no dia 20, segundo o P. Garcia Simes, o que permitiu

    a alguns estudiosos fazerem diversas dedues e arquitectarem numerosas e

    habilidosas hipteses.

    Devemos ter em considerao, todavia, que a maior parte dos

    autores aceita a data de 25 de Janeiro como a do estabelecimento de Paulo

    Dias de Novais, vindo da a antiga denominao da cidade, So Paulo de

    Luanda.

    Uma das mais pesadas obrigaes do estatuto ou

    regulamento de Paulo Dias correspondia ao encargo de fixar nas terras da

    sua capitania nada menos de cem famlias europeias, dando incio a um

    processo de colonizao e povoamento que se foi estendendo pelos sculos

    fora e que em determinados perodos teve entusiastas muito dedicados. Pode

    deduzir-se que os resultados obtidos no foram os que se esperavam, at

    mesmo porque o projecto no chegou a ter realizao. A finalidade imediata

    desta colonizao tempor era influenciar os nativos com os costumes e a

    cultura de origem europeia, levando-os assim a assimilar voluntaria e

    espontaneamente a civilizao que os portugueses se propunham

    transplantar para estas paragens.

    Uma das primeiras preocupaes de Paulo Dias de Novais

    consistiu na tentativa de libertar o seu antigo companheiro de cativeiro e

    grande amigo, P. Francisco de Gouveia, que durante tantos anos sofrera as

    contrariedades de uma situao indesejvel, pouco agradvel, a permanncia

    numa regio de clima adverso, sem o apoio dos seus compatriotas e dos seus

    confrades, e que, apesar de tudo isso, se no deixou cair nos excessos e no

    desleixo caractersticos e facilmente explicveis em circunstncias idnticas.

    No se pe de parte a hiptese de terem estado com eles outros portugueses,

    de condio social mais humilde, que lhes estavam subordinados, seus

    subalternos na jerarquia social; esse diminuto ncleo de companheiros de

    vicissitudes, amalgamado pela fora das contrariedades e do sofrimento,

    deve ter contribudo bastante para afugentar o desnimo e alimentar e

    esperana na soluo final do problema de todos.

    Paulo Dias no conseguiu o veemente desejo de restituir

    liberdade o piedoso jesuta, pois o missionrio faleceu na povoao de

    Dongo, qual tambm se d o nome de Cabassa, no dia 19 de Junho de

    1575, embora se apontem outras datas provveis do seu passamento. Alguns

    estudiosos das coisas angolanas aceitam que a antiga capital do reino de

    Angola, Dongo ou Cabassa, corresponda actual povoao de Pungo

    Andongo.

    O rei africano no era j o que retivera os enviados do

  • 32

    monarca portugus. Sabe-se que o actual tinha sido discpulo, desde muito

    pequeno, do P. Francisco de Gouveia. Este no deixou de aproveitar a sua

    forada e prolongada estadia entre os moradores para difundir civilizao e

    espalhar o saber. Temos conhecimento de terem sido introduzidas algumas

    prticas civilizadas nos hbitos dos nativos, ao longo desta dezena e meia de

    anos de exlio, e no ser ilgico pensar que as actividades intelectuais

    merecessem certa ateno aos jesutas, se no atravs da aprendizagem da

    leitura e da escrita pelo menos de forma mais genrica e de maneira mais

    difusa. No podemos conceber que se passasse tanto tempo de convivncia

    sem que dos contactos mantidos ficasse algo de positivo. No possvel

    imaginar que as populaes locais, reconhecendo a superioridade de

    conhecimentos dos portugueses, deixassem de absorver influncias, que a

    sua curiosidade deixasse de procurar explicaes para coisas e fenmenos

    de que tinham viso bem diferente.

    Nos mesmos dias em que se recebeu em Luanda a notcia da

    morte do jesuta, Paulo Dias de Novais recebia a comitiva enviada pelo

    rgulo para o saudar e, por certo, para estabelecer com ele uma plataforma

    de entendimento que se adaptasse s circunstncias. Fora a Lisboa com o

    fim de trazer auxlio militar ao rei. Uma vez desembarcado em Angola, no

    era j o enviado desprovido de foras e merc de todas as imposies, era

    o chefe que estabelecia planos de domnio, traava projectos de governo,

    impunha o peso da sua autoridade. Os temveis jagas ou jingas continuavam

    a ser uma ameaa para o rei de Angola, e isso ajudaria Paulo Dias de Novais

    a estabelecer-se solidamente, aproveitando-se com habilidade do equilbrio

    social que ele prprio ajudava a manter.

    A recepo aos emissrios do rei de Angola efectuou-se com

    luzimento, segundo protocolo prprio do meio, no dia 29 de Junho de 1575,

    numa das cabanas j levantadas no morro de S. Paulo; to grande

    aproximao de datas pode, contudo, levantar algumas dvidas. E podemos

    lembrar tambm que nesse dia se festejavam os dois apstolos S. Pedro e S.

    Paulo; isso, se em parte pode servir de base para explicar o nome dado (S.

    Paulo), por outro lado leva-nos a perguntar qual o motivo porque no se

    homenageou o outro apstolo (S. Pedro), que lhe era superior!?

    Francisco Rodrigues afirma, na sua Histria da Companhia

    de Jesus na Assistncia de Portugal, que Paulo Dias de Novais deu

    princpio a um hospital e Misericrdia, em Luanda. No deixa de ser

    provvel que o encarregado de fundar um reino prestasse a possvel ateno

    aos problemas da sade, defendendo da doena e da morte os seus mais

    prximos colaboradores. O mesmo autor afirma tambm que a primeira

    igreja construda na cidade, no morro fronteirio ilha onde tambm foi

  • 33

    edificado um templo pelos primitivos portugueses que ali se fixaram , era

    dedicada a S. Sebastio, grande devoo dos portugueses e patrono

    onomstico do rei de Portugal.

    Em 23 de Fevereiro de 1580, chegavam a Luanda mais dois

    missionrios jesutas, mas s um deles, o P. Baltasar Barreira, era

    sacerdote. E em 25 de Janeiro de 1584 partiram de Lisboa mais dois padres

    jesutas, o P. Jorge Pereira e o P. Diogo da Costa.

    Os nativos convertidos adoptavam nomes portugueses,

    homenageando assim figuras de destaque. Sabemos que alguns nefitos de

    Luanda receberam no baptismo o nome de Paulo. O fundador da cidade e

    primeiro governador do territrio faleceu em Massangano, no dia 9 de Maio

    de 1589.

    Em 11 de Maro de 1593, entravam em Luanda quatro

    padres jesutas, sendo um deles o visitador dos estabelecimentos da

    Companhia, P. Pedro Rodrigues. Mas nem todos se fixaram nesta

    provncia, pois alguns deslocaram-se de Angola para o Brasil, terra que

    ento merecia as maiores e melhores atenes. Temos de admitir que outros

    missionrios iam chegando a Luanda; o seu nmero, porm, no se somava

    inteiramente aos que tinham vindo antes, porque a morte ia fazendo os seus

    estragos. O clima africano exercia ento uma influncia notvel sobre o

    organismo dos europeus, sendo frequente contrair doenas mortais de que

    ele era o principal culpado; eram muitos os que no conseguiam vencer a

    sua malignidade, cuja fama algo injusta ainda hoje corre.

    Apesar das dificuldades encontradas, as primeiras tentativas

    da evangelizao do gentio deram resultados apreciveis e alimentaram

    esperanas lisonjeiras. Fizeram-se as primeiras entradas no serto de

    Luanda, sofrendo as contrariedades que lhes estavam inerentes. Os padres

    que acompanhavam as tropas ao interior daquelas terras, queles inspitos

    sertes, iam fazendo a evangelizao que podiam fazer, em to crticas

    condies, em to problemticas circunstncias. Tanto assim que, em 1590,

    j se dizia haver aqui cerca de vinte mil cristos.

    Paulo Dias de Novais, em carta de 3 de Janeiro de 1578,

    dirigida aos seus familiares, anunciava que a converso dos pretos de

    Luanda estava a processar-se satisfatoriamente. Os portugueses que aqui

    viviam que se no comportavam muito decentemente, no se conformando

    de boa vontade com a rigorosa disciplina imposta pelos missionrios, pois

    muitos deles preferiam viver livremente. As exigncias que se faziam

    levavam alguns a sair destas terras, e o facto tinha como consequncia

    lgica que o povoamento se no fizesse to depressa como seria desejvel,

    caminhando muito devagar...

  • 34

    Noutra carta do mesmo ano, datada em 23 de Agosto,

    comunicava ter ficado muito contente com a remessa de umas flautas que

    lhe tinham sido entregues; vieram muito a propsito, muito oportunamente...

    Os cristos da terra cantavam j, com grande perfeio, algumas msicas

    religiosas bastante difceis a "Missa", de Morales, o "Pange Lingua", de

    Guerrero, e o "Motete de Santo Andr", cujo autor omitia, este a cinco

    partes ou vozes e tocavam os instrumentos musicais com muita

    habilidade e perfeio, no s msica religiosa como msica profana, outras

    coisas ordinrias, segundo a sua expresso. Ao ouvi-los, recordava-se de seu

    pai o que nos leva a concluir que deveria ser amante da boa msica e

    virtuoso executante.

    A frica, a sia e a Amrica devem muito aos missionrios

    catlicos. Bastantes vezes se realizou a ocupao e fixao pacficas, e se

    garantiu a presena civilizadora europeia, sombra do seu prestgio. Entre

    todas as terras em que os portugueses se fixaram, devemos salientar o Brasil

    como exemplo do muito que se ficou devendo aos padres; e, entre todas as

    congregaes religiosas missionrias, podemos destacar a Companhia de

    Jesus, cujos mtodos de aco lhe permitiam interessar-se mais do que

    qualquer outra pelas questes que parecem ser da ordem temporal e do

    domnio poltico. Contudo, no pode afirmar-se que tenham feito poltica

    sombra da religio nem que tenham feito a missionao sombra da

    poltica. Muitos dissabores lhes trouxe o seu desassombro em apontar erros

    e criticar defeitos! Sofreram perseguies violentas e foram alvo do dio de

    muitos, dio que atravessou os sculos e se manifesta ainda hoje. So

    exemplo vivo e eloquente da colaborao que muitas vezes houve entre a

    Cruz e a Espada. No pode negar-se que a sua actuao foi inmeras vezes

    decisiva para a conservao e enraizamento da colonizao lusitana.

    Joo Furtado de Mendona, governador de Angola desde

    1594 a 1601, no teve dvida em afirmar um dia que, se no fosse a

    Companhia de Jesus, no existiria Angola. Isto mesmo comunicava um

    missionrio, o P. Baltasar Afonso, em carta de 31 de Outubro de 1596,

    dirigida aos seus confrades da Europa. E, em recompensa dos servios

    prestados causa portuguesa, a Companhia de Jesus recebeu doaes

    volumosas de diversos governadores, a comear pelas que o donatrio

    primitivo, Paulo Dias de Novais, tambm lhes concedeu.

    No dia 24 de Junho de 1592, chegava a Luanda novo

    governador-geral, D. Francisco de Almeida. Fora nomeado por carta rgia

    de 9 de Janeiro desse ano e era portador de instrues muito especiais,

    inesperadas, verdadeiramente revolucionrias, que causaram alvoroo e

    descontentamento. Tinha-as recebido do monarca luso-espanhol, ento D.

  • 35

    Filipe II de Espanha, atravs do seu representante em Lisboa, o vice-rei de

    Portugal, cardeal-arquiduque Alberto da ustria.

    O rei pretendia reforar a autoridade rgia, mesmo no

    ultramar. Para isso, retirava as concesses anteriormente feitas e os

    privilgios que haviam sido outorgados pelos monarcas de Lisboa, seus

    antecessores. Essa reduo de regalias causava desagrado em si mesma;

    alm disso, devemos lembrar-nos que o facto de vir um rei, que muitos

    consideravam estrangeiro no seu reino, a alterar situaes estabelecidas,

    aumentava ainda mais o descontentamento, j de si grande.

    Os herdeiros de Paulo Dias de Novais e a Companhia de

    Jesus eram os maiores prejudicados pelas restries decretadas. Os jesutas

    defenderam energicamente o que consideravam direitos adquiridos e bens

    da congregao. Agora pretendiam defender mesmo alguns privilgios e

    interesses que anteriormente haviam desprezado, encargos de que quiseram

    libertar-se e cuja aceitao lhes foi imposta pela autoridade e prestgio de

    Paulo Dias e de alguns dos seus sucessores.

    Referimo-nos tutela que exerciam, junto do governador,

    dos interesses e negcios de alguns sobas, que estavam colocados sob a sua

    proteco e de quem foram nomeados defensores e advogados. Isso

    causava-lhes incmodos sem conta, criava-lhes inimizades que deviam e

    desejavam evitar, trazia-lhes dificuldades bem conhecidas e que pretendiam

    afastar, embora fossem bem recompensados com os tributos que os seus

    constituintes lhes pagavam, com a comisso recebida pela sua actuao.

    A tutela em referncia deveria tratar, antes de mais, dos

    problemas do trfico esclavagista, a modalidade mercantil mais praticada e a

    que deixava maiores lucros, a mais importante de quantas aqui se exerciam,

    pode dizer-se que quase a nica de volume considervel.

    Este costume, segundo alguns autores que o estudaram

    pormenorizadamente, no foi introduzido aqui pelos portugueses, foi

    adoptado da estrutura tradicional gentlica. Os sobetas, quando residiam

    longe, tinham quase sem