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Cultura e Memória na LITETU PORTUGUESA Hélder Garmes José Carlos Siqueira 2009

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Page 1: Cultura e Memória na LITERATURA PORTUGUESA · o sebastianismo de Fernando Pessoa; ... chegou mesmo a dedicar um poema a essa insigne linhagem: ... O infante D. Pedro era filho de

Cultura e Memória naLITERATURA PORTUGUESA

Hélder GarmesJosé Carlos Siqueira

2009

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

G233 Garmes, Hélder; Siqueira, José Carlos / Cultura e Memória na Literatura Portuguesa. / Hélder Garmes; José Carlos

Siqueira — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.200 p.

ISBN: 978-85-387-0784-4

1. Literatura Portuguesa – História e crítica. 2. Movimentos literários. 3. Portugal – História. I. Título.

CDD 869.09

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

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Professor de Literatura Portuguesa. Possui pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, e é doutor em Letras pela Univer-sidade de São Paulo (USP).

Hélder Garmes

Professor de pós-graduação em Teoria Literária. Mestre em Estudos Comparados de Literaturas (USP). Bacharel em Linguística (USP).

José Carlos Siqueira

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Sumário

Inês de Castro na Literatura Portuguesa .......................... 13

O tema de Inês .......................................................................................................................... 13

A história ...................................................................................................................................... 14

O mito ........................................................................................................................................... 18

Inês de Castro pelos cronistas ............................................................................................. 19

O “teatro” do julgamento de Inês ........................................................................................ 21

Inês de Castro na epopeia classicista ................................................................................ 24

Inês de Castro no Arcadismo ................................................................................................ 26

Inês de Castro em nossos dias .............................................................................................. 27

O império português .............................................................. 35

Origens do império ultramarino português ................................................................... 35

O apogeu do império no século XV e XVI ......................................................................... 38

A crônica real e os relatos de viagem ................................................................................. 41

Os Lusíadas e a perenidade do império ............................................................................. 42

O império luso-brasileiro ........................................................................................................ 44

O neo-colonialismo .................................................................................................................. 45

O fim do império........................................................................................................................ 48

A gênese do mito de D. Sebastião ..................................... 57

As profecias que antecedem o mito ................................................................................... 57

O mito ............................................................................................................................................ 59

O sentido do mito na cultura portuguesa ........................................................................ 63

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O sebastianismo na Literatura Portuguesa ..................... 73

O tema ........................................................................................................................................... 73

O sebastianismo na contemporaneidade ........................................................................ 86

Saudade e saudosismo na Literatura Portuguesa ........ 95

A saudade .................................................................................................................................... 95

A saudade simbolista de António Nobre ........................................................................100

Saudade e saudosismo no século XX ...............................................................................102

A saudade em Florbela Espanca ........................................................................................107

Precursores do Modernismo ...............................................................................................109

O anticlericalismo na Literatura Portuguesa ................119

O anticlericalismo ....................................................................................................................119

O anticlericalismo em Portugal ..........................................................................................122

O anticlericalismo na Literatura Portuguesa: os primórdios ...................................124

O anticlericalismo de Gil Vicente .......................................................................................128

O anticlericalismo radical de Eça de Queirós ................................................................130

O anticlericalismo contemporâneo de Saramago .......................................................135

O Mar Português na literatura ...........................................145

O Mar Português ......................................................................................................................145

A mesma história de outro ponto de vista .....................................................................147

A primeira literatura do Mar Português ..........................................................................149

O maior poeta do Mar Português: Luís Vaz de Camões .............................................151

O Camões modernista: Fernando Pessoa .......................................................................155

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Escrita e reinvenção literária da história de Portugal .........................................................163

Literatura e história .................................................................................................................163

A crônica real ............................................................................................................................163

A literatura romântica e uma nova concepção de história .....................................166

A reinvenção literária da história .......................................................................................169

Gabarito .....................................................................................181

Referências ................................................................................189

Anotações .................................................................................197

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Apresentação

A literatura é um fenômeno cultural multifacetado e complexo. A própria defi-nição e a descrição da literatura esbarram em uma série de problemas teóricos, conceituais de difícil solução. O que dizer então do ensino desse fenômeno trans-formado em disciplina acadêmica? A exposição convencional em ordem crono-lógica e organizada em escolas estéticas tem sido a forma preferencial no ensino moderno, e certamente ela possui qualidades inquestionáveis: possibilita a visu-alização do desenvolvimento e das transformações que obras e autores sofrem ao longo do tempo, fornece balizas conceituais e estéticas para a apreciação dos textos, permite o necessário paralelo com o desenvolvimento histórico e social das culturas em que as obras se inserem e por aí em diante.Mas, nesse modelo de apresentação também se perdem alguns aspectos como, por exemplo, o rico diálogo entre autores de diferentes épocas e escolas, as pe-culiaridades de obras e artistas muitas vezes perdidas pela redução aos princípios de uma escola literária e, ainda, o interessante jogo que se cria quando um tema é retomado por diversas gerações, sendo redefinido conforme os interesses cul-turais e artísticos se modificam. É nesse último aspecto que se inserem os propósitos do presente livro, Cultura e Memória na Literatura Portuguesa. A literatura de Portugal, cujos princípios re-montam ao século XII, é pródiga na criação e manutenção de temas literários que, cultivados por seus escritores (e por vezes extrapolando as fronteiras lusas, como veremos), são responsáveis pela preservação de uma riquíssima memória histó-rica e cultural. O cultivo literário faz com que tais temas continuem vivos na so-ciedade portuguesa (na verdade, nos países lusófonos), tornando-se assim uma fonte dinâmica de reflexão e de crítica para os leitores e para a sociedade como um todo.Não sendo factível – nem talvez funcional – abordar todos os possíveis temas que os diversos períodos abordaram e preservaram, escolhemos aqueles que nos pareceram mais importantes ou que se apresentaram como mais produtivos na Literatura Portuguesa. Dessa forma, propomos ao leitor uma instigante viagem pelos desdobramentos literários dos seguintes temas:

o mito de Inês de Castro; �

o império português; �

a gênese do mito de D. Sebastião; �

o sebastianismo de Fernando Pessoa; �

saudade e saudosismo; �

anticlericalismo na cultura portuguesa; �

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o mar português; e �

escrita e reinvenção literária da história de Portugal. �

Em cada um desses itens, apresentaremos o tema em si, sua gênese histórica, cul-tural e artística, e colocaremos lado a lado alguns dos autores mais significativos da Literatura Portuguesa que deram sua contribuição ao assunto. Manteremos a ordem cronológica na apresentação de autores e obras, mas o foco sempre recai-rá no tema em pauta e na forma como o diálogo transtemporal se deu entre esses escritores. Uma última parte será ainda destinada aos autores contemporâneos ou mais próximos ao tempo presente, buscando mostrar assim como esses oito grandes temas continuam ainda vivos e estimulantes para artistas e leitores.Desejamos que este estudo seja não apenas proveitoso em termos acadêmicos como ainda muito saboroso e estimulante aos nossos leitores.

Hélder Garmes

José Carlos Siqueira

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

O tema de Inês Na Europa, durante o século XVI, uma importante e poderosa parce-

la das casas reais e de aristocratas governantes descendia de uma rainha portuguesa. Netos e bisnetos dessa mulher ocupavam tronos, dirigindo impérios e principados. Um grande cronista e poeta da época, o portu-guês Garcia de Resende (1470-1536), chegou mesmo a dedicar um poema a essa insigne linhagem:

Os principais reis de Espanha,

de Portugal e Castela,

e imperador de Alemanha,

olhai, que honra tamanha,

que todos descendem dela,

Rei de Nápoles, também

Duque de Borgonha, a quem

toda França medo havia,

e em campo el-rei vencia,

todos estes dela vém. (GARCIA DE RESENDE apud SENA, 1963, p. 273)

Mas, uma tão importante genealogia aristocrática não deveria ser vista como surpreendente durante o século de ouro de Portugal, momento das grandes navegações e descobertas, pois nesse período o país ibérico era uma potência dentro do continente. Além do mais, os casamentos entre as mais diversas e distantes casas reais era algo por demais corriqueiro, servindo de instrumento da política internacional e do jogo do poder. Acontece que essa monarca portuguesa possuía algumas peculiaridades capazes de comover poetas e historiadores, e transformar sua descendên-cia em um verdadeiro milagre dinástico.

Para começar, ela não era portuguesa, mas sim da Galícia, uma região ao norte de Portugal, subordinada à Espanha. Em segundo lugar, sua origem era controversa, pois nascera filha bastarda (concebida fora do casamento)

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de um importante aristocrata galego. Terceiro, morrera muito jovem, aos 30 anos de idade, brutalmente executada (degolada) após a sentença de um tribunal movido por intrigas palacianas. E, por fim, e mais incrível, fora declarada rainha depois de morta, alguns anos após a sua execução.

Eis aí, em linhas muito sumárias, a trágica vida de D. Inês de Castro, que “depois de morta foi rainha”, nas palavras de Luís de Camões (1525-1580). Mas isso não é tudo: por trás do que já foi relatado, há também uma história de amor que marcou a literatura e as artes de Portugal e de toda a Europa. Uma história que desempenhou um importante papel na modelagem do espírito português, de sua identidade nacional, em um processo em que ao fato histórico foram sendo agregados detalhes, situações e desdobramentos criados por artistas e pela imaginação popular, constituindo assim um mito que acabou maior e mais interessante que a personagem histórica propriamente dita. Para entender esse processo, devemos conhecer a história e a formação do mito de Inês de Castro.

A história Inês de Castro nasceu na Galícia, como

já foi dito, entre 1320 e 1325, filha natural de Pedro Fernandes de Castro, um alto fun-cionário do trono espanhol e também de ascendência bastarda (como se vê, era algo recorrente na aristocracia da época). Apesar da bastardia, Inês cresceu no seio de uma família nobre e rica, e na juventude tornou-se dama de companhia de sua prima, D. Constança Manuel, uma nobre espanhola de uma importante família. Tão importan-te que Constança tornou-se a esposa de D. Pedro, príncipe herdeiro do trono portu-guês, e aqui entra um personagem funda-mental dessa história.

O infante D. Pedro era filho de Afonso IV – um notável monarca dos primór-dios da história portuguesa – e ao conhecer a bela Inês, que era dama de com-panhia de sua esposa, apaixonou-se perdidamente. Como era de se esperar, o príncipe foi correspondido pela nobre galega e eles se tornaram amantes. Seu relacionamento amoroso era tão intenso e aberto que provocou a desaprovação

Div

ulga

ção

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Inês

de

Cast

ro.

D. Inês de Castro.

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Inês de Castro na Literatura Portuguesa

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da corte. Quando Constança concebeu seu primeiro filho com D. Pedro, convi-dou Inês para ser a madrinha, pois pelas leis canônicas a relação carnal entre pais e madrinhas era considerada incestuosa. Parece que a artimanha não funcionou muito bem, já que para afastar os amantes o rei Afonso decidiu expulsar Inês da corte e exilá-la em um castelo próximo da fronteira com a Espanha.

Mesmo separados, Pedro e Inês continuaram se comunicando e mantiveram aceso o forte sentimento que os ligava. Foi quando uma fatalidade permitiu o retorno de Inês e a continuação de seu caso amoroso com o príncipe: ao ter seu terceiro filho (Fernando, que se tornaria o rei português após a morte de D. Pedro), Constança morreu. Viúvo, o herdeiro do trono de Portugal sentiu-se livre para manter Inês a seu lado, até com a possibilidade de torná-la sua esposa.

No entanto, o rei, os fidalgos da corte e a opinião pública da época não pen-savam da mesma forma. A fim de evitar conflitos, Pedro levou Inês para Coimbra, onde fixou residência em um belo palacete, o Paço de Santa Clara, construído pela avó de Pedro, D. Isabel, a Rainha Santa. Essa decisão de D. Pedro foi conside-rada uma provocação. O escândalo que a situação causava era crescente, com a desaprovação tanto da nobreza quanto do povo em geral.

No entanto, essa febre de moralidade e bons costumes que se abatera sobre o país tinha um fundo político inconfessável: mesmo sendo filha ilegítima, Inês per-tencia a uma família poderosa na Espanha, os Castros, e seus irmãos haviam também conquistado o afeto e a confiança de D. Pedro. Afirma-se que tais irmãos teriam con-vencido Pedro a se casar com Inês e, em razão de o pai da moça ser da linhagem real espanhola, exigir o trono da Espanha, unificando assim os dois países.

A ideia repugnava o rei Afonso e a maioria da nobreza, que viam em seme-lhantes conluios a possibilidade de Portugal submergir dentro da Espanha, per-dendo sua autonomia e a identidade. Os espanhóis construíam na época um poderoso reino, de grande força militar e sentimento de unidade. Não seria Por-tugal a anexar a Espanha, e sim o contrário.

Procurando fazer o filho se afastar de Inês e, por tabela, de seus insidiosos irmãos, o rei tentou convencer D. Pedro a se casar de novo com uma aristocra-ta da família real, mas a tática não funcionou. O esperto Pedro se esquivou da sugestão alegando que permanecia enlutado e não havia ainda esquecido a “amada” Constança – era o que dizia o príncipe.

Em meio a esse embate, nossa Inês teve nada menos que quatro filhinhos com D. Pedro. O primeiro morreu ainda pequeno, mas os outros cresciam muito

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saudáveis. Já o legítimo herdeiro do trono lusitano, o infante Fernando, cujo nas-cimento levara Constança à morte, mostrava-se doentio e frágil, trazendo gran-des incertezas sobre seu futuro e o do país, principalmente para o avô Afonso.

Tudo isso somado fez com que o rei, influenciado por conselheiros da corte, decidisse cortar o mal pela raiz: durante uma ausência de D. Pedro, que saíra para caçar – um de seus hobbies favoritos –, o rei promoveu um julgamento sumário em Montemor-o-Velho, vila próxima a Coimbra, e sentenciou Inês à morte por traição. A execução foi realizada imediatamente, e a bela Inês, por volta dos 30 anos, com três filhos ainda crianças, foi barbaramente degolada em 7 de janeiro de 1355.

É claro que o príncipe reagiu com violência àquele crime bárbaro e covarde: D. Pedro rompeu relações com o rei, seu pai, e iniciou uma verdadeira guerra civil. As hostilidades se prolongaram por dois anos, cessando apenas graças à in-tervenção e a diplomacia da rainha Beatriz de Castela, mãe de Pedro. Apesar de ser um bom motivo para a guerra, considera-se que na verdade a morte de Inês foi apenas um pretexto para o confronto com o rei Afonso. E, de fato, o acordo obtido pela mediação da rainha mãe concedeu a Pedro poderes que o tornaram, na prática, o verdadeiro governante do país.

Mas, no fim das contas, tal acordo não foi levado a cabo, pois logo em seguida ao pacto o rei Afonso IV morreu, a 28 de maio de 1357, com certeza muito preo-cupado com o destino de Portugal, do filho e de seu neto.

E a história não para aí: depois de coroado, D. Pedro I determinou a punição dos nobres que haviam aconselhado o falecido rei a executar Inês. Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco, reconhecidamente responsáveis pela morte de Inês, não ficaram esperando para ver o que aconteceria e fugiram para a Espanha. O nosso bom Pedro não teve dúvidas: arquitetou com o monarca espanhol uma troca de desafetos e conseguiu que os fidalgos portugueses lhe fossem entregues. No entanto, só Pero Coelho e Álvaro Gonçalves foram presos, pois o mais esperto, Diogo Lopes, conseguiu escapar dos captores espanhóis disfarçando-se como mendigo e fugindo para a França.

A punição dos dois conselheiros foi de uma crueldade sem precedentes: em 1361, depois de torturados para que delatassem outros participantes da exe-cução de Inês, os dois tiveram o coração arrancado ainda em vida: Pero Coelho através do peito, e Álvaro Gonçalves pelas costas – o rei não “acreditava” que tivesse coração quem pudesse ter participado daquele odioso crime.

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Por fim, o gentil rei Pedro I fez uma revelação bombástica à corte: ele havia se casado oficialmente com D. Inês de Castro. Ou seja, uma das grandes preo-cupações de seu pai, motivo inclusive de ter optado pela morte de Inês, havia acontecido em segredo, na região de Coimbra. É verdade que Pedro não se lem-brava nem do mês em que isso acontecera, mas ele mandou chamar o bispo da Guarda, na época deão do mesmo local, e mais um de seus criados para compro-varem a história. O bispo confirmou que havia ministrado a cerimônia, e o criado, que presenciou o casamento. Mas, por uma dessas comuns amnésias coletivas, nenhum dos dois lembrava também quando fora... De qualquer forma, era uma reparação que o novo rei fazia à ultrajada D. Inês e a prova de um amor que nem a morte nem o tempo conseguiam apagar.

Dessa forma, Inês era oficialmente declarada rainha, e seus filhos, legitimados, podendo inclusive aspirar ao trono, caso por algum motivo o frágil infante Fer-nando faltasse ao país. Seria possível pensar que tal reparação estava na lógica da vingança que o rei já havia desencadeado com o flagelo dos conselheiros: de certo modo, Portugal como um todo estaria pagando pela mesquinha desapro-vação ao romance do príncipe e sua amante galega, bem como pelo alívio cole-tivo sentido com a sua morte. Mas, pode-se acrescentar a essa satisfação pessoal alguns objetivos políticos – no futuro, os descendentes de Inês poderiam se arro-gar ao trono espanhol, quem sabe realizando a temida união dos dois países.

O casamento foi então postumamente oficializado e o rei mandou confec-cionar dois magníficos túmulos no mosteiro de Alcobaça. No primeiro, foram depositados os restos mortais de Inês, enquanto o segundo aguardaria o corpo de Pedro. Assim, a eternidade uniria os dois amantes que as convenções sociais, as intrigas cortesãs e a fúria paterna haviam se esforçado tanto para manter se-parados em vida. Não se pode esquecer também que a magnificência desses tú-mulos serviria ainda como símbolo oficial do casamento deles, um conveniente testemunho da legitimidade de seu matrimônio e de seus descendentes.

O translado do corpo de Inês foi feito com toda a pompa e circunstância de-vidas a uma rainha. Por todo o trajeto de Coimbra (onde a dama fora sepultada) a Alcobaça, a nobreza, o clero e o povo saudaram o féretro como se fosse a uma monarca viva, e as cerimônias fúnebres passaram à memória dos portugueses em virtude de sua suntuosidade e grandeza.

E lá se encontram eles ainda, símbolos de um amor capaz de derrotar a própria morte, ou ao menos de o tentar, oriundos de uma época cuja distância temporal

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a transforma em um cenário de contos de fada: Em um reino distante, havia um rei, um valente príncipe e uma linda princesa...

O mito A história que acabamos de narrar tem base em documentos e relatos histó-

ricos, mas diversos de seus detalhes são difíceis de comprovar com toda a exa-tidão. Queremos dizer com isso que mesmo o fato histórico está contaminado de incertezas, fruto da deficiente documentação, dos métodos pouco confiáveis dos registros e crônicas, além do que muitas das possíveis fontes para esses eventos se perderam no decorrer do tempo.

No fundo, a própria História se encontra algo mitificada – um processo normal em qualquer cultura e que abre margem para que o mito se fortaleça e se expan-da. No caso de Pedro e Inês, logo depois de suas mortes, o imaginário popu-lar foi acrescentando detalhes maravilhosos aos acontecimentos. Em Coimbra, passou-se a acreditar que Inês fora morta em sua própria casa, o famoso Paço de Santa Clara. Junto a esse palácio havia jardins, bosques e duas fontes. Em uma dessas fontes, depois chamada de Fonte das Lágrimas, existem raríssimas algas vermelhas, que a imaginação do povo relaciona com o sangue derramado da bela Inês. A outra, a Fonte dos Amores, teve seu nome dado por Camões em Os Lusíadas, em um trecho (III, 135) dedicado a Inês de Castro:

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram. (CAMÕES, 1997, p. 110)

E aqui entram em cena os poetas e artistas que, ao se apropriarem da história, foram recriando os fatos, dando ênfase a alguns aspectos e obscurecendo outros. Eles fizeram com que a memória desse sublime amor não fosse perdida, mas também provocaram novos sentidos e funções que os fatos em si não possuíam. Fernando Pessoa sintetiza de forma perfeita esse processo de mitificação:

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre. (PESSOA, 1983, p. 6)

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Nesses versos, Pessoa está se referindo ao mito de fundação de Lisboa, atri-buída ao herói grego Ulisses, que teria construído a cidade durante sua viagem de retorno da guerra de Troia. Mas, a ideia serve para qualquer mito: um valor ou sentimento fundamental à realidade humana é fecundado pela lenda, que passa a valer mais do que a própria realidade histórica. Tratando-se do mito de Inês de Castro, pode-se dizer que um dos valores que está sendo fecundado é a ideia de superação da morte pela força do amor. Mas, não só isso: há também a ideia da saudade, que faz com que o passado não morra, ou que se mantenha pulsante e decisivo no presente e no futuro.

Seria esse intenso sentimento que levara D. Pedro a sua vingança tão cruel e à construção dos túmulos majestosos, capazes de vencer o tempo e perdurar no futuro. Presente e futuro determinados por um passado a que a saudade susten-ta e dá poder – a saudade portuguesa.

Para dar um exemplo da ação dos poetas nesse sentido, vejamos a famosa cena da coroação da rainha morta. Com base no dado histórico do cortejo do cadáver de Inês para Alcobaça – uma das formas encontradas por D. Pedro para declarar Inês rainha depois de morta –, diversos escritores desenvolveram a fan-tástica cena em que o corpo morto de Inês era assentado sobre o trono portu-guês e uma cerimônia de coroamento tinha lugar. Em seguida, para escárnio da nobreza e do clero presentes, estes teriam sido obrigados a beijar a mão da rainha morta. A força imagética e tétrica dessa cena é inquestionável. Eis aí uma amostra do esforço humano em vencer a morte e negar as fronteiras entre o passado e o presente, um tema mitológico.

Inês de Castro pelos cronistas Os primeiros relatos do drama de Inês de Castro foram feitos por cronistas.

Seria valioso entender esse tipo de escritor que participa tanto da literatura quanto da historiografia, e que no caso português tem ainda um pé na Idade Média e outro na Moderna.

Os historiadores da língua portuguesa datam o início de nosso idioma no século XII, sendo que os primeiros textos em português que sobreviveram até nosso dias são poemas. Na prosa, os primeiros escritos em português são os sempre citados romances de cavalaria e as crônicas. Estas últimas apresentam um duplo interesse: são documentos históricos – importantes fontes primárias

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para o conhecimento do passado – e verdadeiros ensaios de estilo e expressão na língua lusitana. A crônica dessa época pode então ser definida como o relato cronológico da vida de reis e nobres, de fatos relevantes desses personagens, descrição de batalhas, de eventos diplomáticos etc.

Em Portugal, uma das primeiras crônicas foi redigida ou organizada pelo conde D. Pedro Afonso (1287-1354). Ele era filho do conhecido monarca D. Dinis (1261-1325), o Rei Trovador e, puxando ao pai, foi também poeta e responsável por uma crônica intitulada “O livro do conde D. Pedro” que, entre outras coisas, conta a história do mundo, começando por Adão e Eva, e chegando à reconquis-ta da Espanha pelos cristãos.

Já a história de Inês é registrada pela primeira vez por meio da pena de Fernão Lopes (1380-1460). A importância da obra e das atividades intelectuais desen-volvidas por esse homem pode ser medida pelo fato de que a história da Litera-tura Portuguesa define como data do início do Humanismo em Portugal a sua nomeação como guarda-mor da Torre do Tombo (uma espécie de bibliotecário chefe da documentação oficial do país). O Humanismo é a corrente cultural e li-terária que, em terras portuguesas, vai de 1418 a 1527, substituindo a era do Trovadorismo. O próprio nome já denuncia que o foco dessa corrente de pensa-mento é o homem, visto agora como centro do universo, dotado de faculdades que o diferenciam no mundo animal, principalmente a razão, e o elevam à posi-ção de ser supremo da natureza e seu virtual senhor.

Fernão Lopes é considerado o “pai da História” em Portugal. Ele já pode ser considerado “moderno” por haver promovido uma historiografia baseada em do-cumentos e não mais fundamentada na tradição oral. O que não o impede de imprimir em seus relatos uma forte carga dramática e de intenso dinamismo narrati-vo. Em seus textos surge o povo em suas multifacetadas manifestações, atingindo o protagonismo em algumas ocasiões. Seu estilo é bastante coloquial e direto, por vezes o narrador chegando a dialogar com o leitor.

Boa parte da produção de Fernão Lopes se perdeu, havendo sobrevivido entre outras obras a Crônica d’el-rei D. Pedro I, na qual se registram algumas das passagens da história de D. Inês de Castro. Um dos trechos mais impactantes está no capítulo XXXI e relata o suplício e a execução de dois dos conselheiros que participaram da morte de Inês:

Dom

ínio

púb

lico.

A Crônica de Fernão Lopes.

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A Portugal foram trazidos Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a Santarém, onde el-rei era. El-rei, com prazer de sua vinda, porém mal magoado porque Diogo Lopes fugira, os saiu fora a receber, e, sanha cruel, sem piedade os fez por sua mão meter a tormento, querendo que lhe confessassem quais foram na morte de Dona Inês culpados, e que era que seu padre tratava contra ele, quando andavam desavindos por azo da morte dela. E nenhum deles respondeu a tais perguntas coisa que a el-rei prouvesse.

E el-rei, com queixume, dizem que deu um açoite no rosto a Pero Coelho, e ele se soltou então contra el-rei em desonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, à fé perjuro, algoz e carniceiro dos homens. E el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre, e azeite para o coelho, enfadou-se deles, e mandou-os matar.

A maneira de sua morte, sendo dita pelo miúdo, seria mui estranha e crua de contar, cá mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Álvaro Gonçalves pelas espáduas. E quais palavras houve e aquele que lho tirava, que tal ofício havia pouco em costume, seria bem dorida cousa de ouvir. Enfim, mandou-os queimar. E tudo feito ante os paços onde ele pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer. (LOPES, 2009. Adaptado)

Há nesse registro um jogo entre um ambiente de tortura e uma situação do-méstica. Lopes intercala um pedido banal de temperos feito pelo rei em meio a tormentos, injúrias e muita dor, brincando com a palavra coelho, que tanto é a carne que come o rei quanto é o nome do torturado – Pero Coelho. Com isso ele prepara o desfecho da cena, revelando que a execução foi apreciada pelo monarca durante sua refeição, como em um piquenique se acompanha um jogo ou uma brincadeira. O cronista enfatiza assim o grau de crueldade e desprezo pela vida humana demonstrado por D. Pedro. É importante notar ainda que a forma de execução dos dois conselheiros não é atestada pelo cronista, ou seja, não havia documentos que comprovassem essa informação, sendo portanto algo que foi transmitido por via oral: “dita pelo miúdo”. Posteriormente, a tradi-ção ainda acrescentou que o rei mordeu um dos corações arrancados, em uma espécie de antropofagia à moda europeia.

O “teatro” do julgamento de InêsO primeiro texto puramente literário em que comparece a tragédia de Inês

e Pedro é de autoria de Garcia de Resende (1470-1536), “Trovas à morte de Inês de Castro”, do qual já citamos um trecho. Nesse poema, destaca-se a súplica que Inês teria feito ao rei Afonso IV para que poupasse a sua vida e, assim, a orfanda-de de seus filhos. O rei se sensibiliza com as lágrimas da mulher, mas incitado por um de seus oficiais, acaba permitindo a execução de Inês.

Aqui já nos encontramos em um momento de transição entre o Humanis-mo, de que Fernão Lopes foi o grande nome na crônica, e o Classicismo (1527-1580). O poeta e cronista Resende ainda é catalogado pelos estudos literários no Humanismo, mas sua obra já preparava as condições para o surgimento dos

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escritores classicistas. O Cancioneiro Geral, em que foram publicadas as Trovas, é uma coletânea da produção poética do Humanismo e, portanto, uma síntese da literatura do período.

O Classicismo propriamente não foi um rompimento com o Humanismo e sim uma espécie de radicalização. A fim de se livrar definitivamente dos princípios e do pensamento medievais, os artistas da nova escola retomaram os valores clássicos, ou seja, a estética e as formas artísticas da Antiguidade, especificamente do perío-do clássico da Grécia e de Roma.

No teatro, a tragédia de concepção greco-romana dominou por completo as produções dramatúrgicas, e um dos principais nomes portugueses desse gênero foi Antônio Ferreira (1528-1569), cuja obra-prima, por sinal, leva o nome de Castro. Segundo a estudiosa Maria L. Machado de Sousa, essa peça é a primei-ra tragédia europeia com tema moderno, ou seja, na qual os personagens não são nem deuses nem heróis da Antiguidade, mas figuras históricas recentes (cf. SOUSA, 1984, p. 12).

Ferreira é ainda avaliado por críticos como António José Saraiva e Oscar Lopes como o mais íntegro representante da escola clássica em seu país (SARAIVA; LOPES, 2005, p. 255), havendo realizado com essa tragédia uma brilhante inte-gração entre um tema moderno e a estética clássica. Sem dúvida, o dramaturgo português retomou a ideia da defesa de Inês que está nas Trovas de Garcia de Resende e ampliou-a no quarto ato de sua peça na forma de um julgamento em que comparecem ainda dois dos conselheiros reais no papel de promotores.

Na tragédia clássica, o destino tem papel central, pois determina o fim dos personagens independentemente de suas vontades e de seus esforços para im-pedir tal sina – esforços que fatalmente só os conduzem ainda com mais firmeza para a sua destruição (um bom exemplo seria Édipo Rei, de Sófocles). No caso de Castro, o destino é encarnado pelas razões de Estado, suficientes para condenar alguém inocente e obliterar a consciência dos juízes.

A bela Inês questiona o rei Afonso IV – no papel de juiz – sobre seu crime (ato IV, cena I):

CASTRO: Ouve minha razão, minha inocência./ Culpa é, senhor, guardar amor constante/ A quem mo tem? se por amor me matas,/ Que farás ao inimigo? amei teu filho,/ Não o matei. Amor amor merece;/ Estas são minhas culpas: estas queres/ Com morte castigar? Em que a mereço?

[...]

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CASTRO [ainda se dirigindo ao rei]: Dou tua consciência em minha prova./ Se os olhos de teu filho se enganaram/ Com o que viram em mim, que culpa tenho?/ Paguei-lhe aquele amor com outro amor,/ Fraqueza costumada em todo estado. / Se contra Deus pequei, contra ti não. (FERREIRA, 1996, p. 148 -149)

A infeliz mulher ainda acrescenta que a injustiça não seria apenas contra ela, mas atingiria também o filho do rei, que ama Inês, e seus netos, que cresceriam órfãos. Nesse momento, o rei juiz cede às súplicas e se retira de cena convencido da injustiça que seria a morte de Inês. Mas, na cena seguinte, a sós com dois con-selheiros, é confrontado com as razões de Estado (ato IV, cena III):

PACHECO: ...não te esqueças/ Da tenção tão fundada, que te trouxe.

REI: Não pôde o meu espírito consentir/ Em crueza tamanha.

PACHECO: Mor crueza./ Fazes agora ao Reino: agora fazes/ [...] A que vieste?/ A pôr em mor perigo teu estado? [...]

REI: Não vejo culpa, que mereça pena.

PACHECO: Inda hoje a viste, quem ta esconde agora?

REI: Mais quero perdoar, que ser injusto.

COELHO: Injusto é quem perdoa a pena justa.

REI: Peque antes nesse extremo, que em crueza.

COELHO: Não se consente o Rei pecar em nada.

REI: Sou homem.

COELHO: Porém Rei.

REI: O Rei perdoa.

PACHECO: Nem sempre perdoar é piedade.

REI: Eu vejo ua inocente, mãe de uns filhos/ De meu filho, que mato juntamente.

COELHO: Mas dás vida a teu filho, salvas-lhe a alma,/ Pacificas teu Reino: a ti seguras./ Restitui-nos honra, paz, descanso./ Destróis a traidores; cortas quanto/ Sobre ti, e teu neto se tecia... (FERREIRA, 1996, p. 151)

Pela segunda vez o rei sucumbe aos argumentos dos acusadores. E agora, para evitar novo confronto com Inês, ele dá a sentença definitiva – na verdade, transfere aos outros a decisão (ato IV, cena II):

REI: Eu não mando, nem veto. Deus o julgue./ Vós outros o fazei, se vos parece/ Justiça, assim matar quem não tem culpa. (FERREIRA, 1996, p. 152)

Os conselheiros aceitam a incumbência e matam a pobre Inês.

Na peça de Ferreira, o rei enfrenta um terrível dilema: ser um juiz imparcial e impessoal, julgar única e exclusivamente a verdade do crime, ou um chefe de Estado, responsável pelo bem geral e o futuro da nação. Ele cede à lógica das razões de Estado, esse destino implacável, mas carrega, apesar disso, sua res-

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ponsabilidade na decisão, uma situação que já indica traços de modernidade se instaurando no modelo clássico.

Inês de Castro na epopeia classicista Ainda no Classicismo, mas agora no gênero epopeia (poema longo, narrativo,

em que se relatam os feitos do herói de uma determinada coletividade), vamos encontrar, em meados do século XVI, Luís Vaz de Camões compondo Os Lusía-das. Ele insere o episódio de Inês de Castro no Canto III de seu poema épico.

Conforme lemos ali, durante a travessia rumo à Índia, a armada de Vasco da Gama chega a Melinde (cidade que hoje pertence ao Quênia, na África), cujo rei solicita ao almirante que conte a história de Portugal. Nos cantos III, IV e V, o Gama narra a história das duas primeiras dinastias portuguesas, chegando até o início da viagem. O relato de Inês ocupa 17 estrofes do terceiro canto, nas quais a rainha, depois de morta, é apresentada como vítima da inexorabilidade do Amor.

Os Lusíadas (III, 119)

Tu só, tu, puro Amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres, áspero e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano. (CAMÕES, 1997, p. 106)

A ideia da responsabilidade do Amor pela morte de Inês já se encontrava em Garcia de Resende e António Ferreira (“Já morreu Dona Inês, matou-a Amor”, ato IV, cena II – FERREIRA, 1996, p. 153). Em Camões, ele é apresentado como o deus Amor (Eros, na tradição grega), um senhor “áspero e tirano”, cuja força escravi-za os corações. Ele não se satisfaz apenas com as lágrimas dos amantes, pois também deseja seu sangue como oferenda em seus altares.

No entanto, a grande contribuição de Camões ao mito de Inês foi a cria-ção de um contexto lírico no qual a história passaria então a ser contada. Até ali, peças e poemas se concentravam na narrativa dos eventos e nos discursos

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de defesa e acusação. O bardo português vai dar formas e cores ao ambien-te (Coimbra), antropomorfizar a Natureza – isto é, dar formas e características humanas à Natureza –, trazer perfumes e múltiplas sensações aos episódios e conclamar figurantes a sofrerem e chorarem pelos amores de Inês e Pedro.

Os Lusíadas

III, 120

Nos saudosos campos do Mondego,

De teus fermosos olhos nunca enxuto,

Aos montes ensinando e às ervinhas

O nome que no peito escrito tinhas.

III, 135

As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram,

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

III, 134

Assi como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela,

Sendo das mãos lacivas maltratada

Da minina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:

Tal está, morta, a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas e perdida

A branca e viva cor, co a doce vida. (CAMÕES, 1997, p. 107-110)

Esse episódio forma com outras passagens do poema um conjunto de versos dedicados aos infortúnios do amor. Muitos comentaristas consideram que tal obsessão pelo assunto revela um viés autobiográfico de Camões, cuja vida fora atribulada por diversas paixões frustradas, uma característica que traz assim maior encanto e curiosidade à epopeia camoniana.

Talvez seja o momento de se comentar que a história de Inês de Castro não se restringe ao repertório literário português. Na verdade, o mito de Pedro e Inês foi incorporado pela Europa e também pelas Américas. Para ficarmos apenas em alguns nomes mais conhecidos, citemos Victor Hugo (1802-1885), Ezra Pound (1885-1972) e o poeta brasileiro, nosso contemporâneo, Ivan Junqueira. Há ainda peças de balé e uma importante composição operística de Carl Maria von Weber (1786-1826), além de outras óperas de diversos autores. Parte do interesse de-monstrado por esses países e seus artistas em relação à infausta Inês se deve ao Canto III de Os Lusíadas. O trecho camoniano da história de Inês é um dos mais apreciados e traduzidos por todo o mundo.

Para se ter uma ideia da difusão e do interesse suscitado por esse episódio, pode-mos citar a tradução para o alemão por Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), desta-cado filósofo do Iluminismo. Para poder ler Os Lusíadas no original, Fichte aprendeu português e, a partir daí, procedeu a uma preciosa tradução dessa parte do poema de Camões, respeitando tanto a métrica quanto o esquema rímico do original.

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Inês de Castro no Arcadismo Nos séculos seguintes, o modelo camoniano continuou servindo de inspira-

ção em Portugal. Durante o Arcadismo, de 1756 a 1825, isso foi ainda mais sen-tido, pois essa foi uma corrente literária que recuperou muitos dos princípios do Classicismo, que foram contrariados ou abolidos durante o Barroco (1580-1756). O poeta mais significativo do Arcadismo português foi Manuel Maria de Barbosa du Bocage, uma figura que até mesmo em sua biografia procurou imitar a vida de Camões. Não seria surpresa, portanto, se Bocage tivesse dedicado algumas de suas composições ao mito de Inês de Castro, como de fato aconteceu.

Sobre esse tema, a composição mais importante do poeta árcade é “Cantata à morte de Inês de Castro”. A forma cantata se divide em duas partes: um longo recitativo em que se narra um episódio solene ou galante, e uma ária, um poema mais curto e ritmado, adequado para ser cantado. Logo na abertura do poema, Bocage presta sua homenagem a Camões colocando como epígrafe exatamente dois versos de Os Lusíadas (IIII, 135): “As filhas do Mondego a morte escura/ Longo tempo chorando memoraram” (CAMÕES, 1997, p. 110). A citação tem também uma função estrutural, pois a ária no fim da cantata seria os lamentos entoados pelas “filhas do Mondego” (neste caso, as ninfas saídas do rio que cruza Coimbra e corre próximo ao Paço de Santa Clara, onde morava Inês):

Toldam-se os ares,

Murcham-se as flores:

Morrei, amores,

Que Inês morreu.

Mísero esposo,

Desata o pranto,

Que o teu encanto

Já não é teu.

Sua alma pura

Nos céus se encerra:

Triste da terra

Porque a perdeu!

Contra a cruel

Raiva ferina,

Face divina

Não lhe valeu.

Tem roto o seio

Tesouro oculto;

Bárbaro insulto

Se lhe atreveu.

De dor e espanto

No carro de ouro

O Númen louro

Desfaleceu.

Aves sinistras

Aqui piaram,

Lobos uivaram,

O chão tremeu.

Toldam-se os ares,

Murcham-se as flores:

Morrei, amores,

Que Inês morreu. (BOCAGE, 1972, p. 125)

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No poema de Bocage fica patente que a intenção do autor foi ampliar o as-pecto lírico, inflacionando o que Camões já havia feito em sua epopeia. Por isso, na cantata desaparece o julgamento de Inês, sua defesa, os apelos pelos filhos pequenos, ou seja, as características dramáticas que os poetas iniciais haviam privilegiado. Aqui, Bocage está interessado na interioridade da bela Inês, em seus sonhos, nos seus profundos anseios e sentimentos. Os algozes surgem de súbito no recitativo, despertando a mulher de seu devaneio, e em completa mudez cumprem sua macabra tarefa: “Vós, brutos assassinos,/ No peito lhe en-terrais os ímpios ferros./ Cai nas sombras da morte/ A vítima de amor, lavada em sangue” (BOCAGE, 1972, p. 123).

D. Pedro também não comparece como personagem no poema. Ele apenas é lembrado em seus versos pela amante e pelas ninfas. Por isso, sua dor e con-sequente vingança também estão ausentes. Inês impera sozinha e soberana na cantata, e todos os figurantes servem apenas para indicar sua centralidade. Dessa forma, Bocage faz de Inês uma alegoria do Amor (o sentimento ideal), cuja existência na terra transfigura a existência humana, mas cuja própria existência está sempre sob a ameaça do ódio e da violência dos que representam os inte-resses materiais e mundanos.

Inês de Castro em nossos diasAté o século XIX, o amor desmedido, a injustiça flagrante, a saudade sem

tréguas, o coroamento depois da morte, a perenidade do amor, o anseio pela eternidade etc. foram se revezando entre as ênfases que as diversas produções e escolas literárias dedicaram à história da rainha depois de morta. Mas, no final dos oitocentos, outros aspectos passaram a ser focalizados e facetas inesperadas surgiram de dentro de uma história que se suporia haver esgotado todas as pos-sibilidades de surpreender.

Já havíamos dito no começo deste estudo que a formação do mito de Inês de Castro de certa forma lastreou a construção da identidade portuguesa, da autoimagem e personalidade da nacionalidade lusitana. Nesse sentido, o mito inesiano como que deu corpo e forma à “saudade portuguesa” e gerou atributos a tal sentimento identitário: esforço de vencer a morte, almejar a eternidade, entre outros. A partir das vanguardas do início dos novecentos, vamos assistir a alguns artistas procurando desconstruir o mito de Inês para de alguma maneira tocar, analisar e, quem saber questionar o núcleo da imagem do ser português.

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Um dos exemplos mais bem realizados dessa possível desconstrução está no romance Adivinhas de Pedro e Inês (1983), da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís, nascida em 1922 e ainda viva. Trata-se de um dos talentos literários mais profícuos de Portugal. Sua produção – que inclui romances, peças teatrais, ensaios e biografias – demonstra uma instigante preocupação com aspectos his-tóricos e sociais da cultura de seu país.

Nas Adivinhas, um narrador de estatuto bem peculiar para um romance reali-za uma espécie de inquérito sobre a “verdade histórica” do episódio real de Inês de Castro. Como tal verdade se encontra vedada ao conhecimento objetivo, tanto pela falta de documentação e testemunhos fiéis quanto pela desconfiança sobre métodos e critérios da História enquanto disciplina científica, a narrativa vai tentando preencher as lacunas e inconsistências do relato conhecido, formu-lando assim uma outra possibilidade de configuração da própria história.

Narrador e leitor se unem em um empreendimento ao mesmo tempo crítico e criativo, procurando extrair das brechas da história e do questionamento do mito produzido pela literatura anterior uma outra história, talvez um novo mito, capaz de representar mais adequadamente a sociedade presente. É assim que do livro de Bessa-Luís surge uma outra imagem de Inês: não mais a indefesa amante, alie-nada das demandas políticas e intrigas palacianas, mas uma mulher arrojada, cuja ambição pelo poder pôs em xeque o status quo português:

Era preciso destruí-la e, se possível, substituí-la pelo mito. [...] Ao exaltar o amor de Pedro e Inês nesse quadro romântico da obra tumular de Alcobaça, dá-se-lhe uma satisfação simbólica, tornando-o assim inofensivo para a sociedade. (BESSA-LUÍS, 1983, p. 158)

Dessa forma, a historiografia oficial e o mito primevo estariam mancomu-nados no mesmo sentido de reduzir a personagem real de Inês à de uma moça gentil e indefesa, apontando assim para o papel social que as mu-lheres portuguesas deveriam aceitar e imitar na patriarcal sociedade lusitana. Quanta diferença, não?

Dom

ínio

púb

lico.

Dom

ínio

púb

lico.

O túmulo de Inês de Castro.

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Já 20 anos antes da publicação de Adivinhas, o escritor Herberto Helder lan-çava um livro de contos intitulado Os Passos em Volta (1963). Nele, o conto “Te-orema” retomava nossa conhecida história sob um prisma ainda mais inusita-do. Herberto Helder, nascido em Funchal, Ilha da Madeira, em 1930, é um dos mais celebrados poetas vivos em Portugal, dono de uma escrita hermética e ao mesmo tempo desafiadora. Em “Teorema”, o protagonista (personagem princi-pal) e narrador é Pero Coelho, um dos assassinos de Inês. A ação decorre duran-te a execução de Pero Coelho, a qual assume os aspectos de uma missa negra. Quando o rei Pedro I devora o coração do condenado, este passa a existir dentro do monarca: “Irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração.” (HELDER, 1975, p. 121)

Na verdade, ao contrário da descrição feita pela tradição, não há ódio entre os dois e seus atos parecem constituir um ritual religioso. O próprio executado assim explica a fantástica situação em que se encontrava:

Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender--me, dizendo que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. (HELDER, 1975, p. 117-118)

A lógica de Pero Coelho é implacável: caso ele não tivesse cometido aquele horrendo assassinato, todos os envolvidos seriam inevitavelmente esquecidos e o sublime amor de Pedro e Inês da mesma forma submergiria no silêncio. Do modo como aconteceu, os participantes daquela tragédia seriam imortalizados e, por meio da literatura, suas vidas poderiam ser oferecidas a cada era como alimento eucarístico: “O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração em geração” (HELDER, 1975, p. 121), da mesma forma que Pedro comia o coração do narrador assassino.

No fim das contas, a verdadeira heroína da história é a poesia, sendo que os desfechos trágicos ou desditosos são apenas motivações para que a palavra po-ética possa exercer o seu papel de eternizar tudo aquilo que toca.

O fato é que Inês de Castro hoje designa um volumoso conjunto de textos que trata das temáticas do amor, da morte, da saudade, da identidade portugue-sa, do mito, da mulher, entre outros, contando com grandes nomes da literatura portuguesa e de outras literaturas e artes que têm como referência a tradição europeia. Fica, portanto, o convite àqueles que se sensibilizaram com o episó-dio da que foi rainha depois de morta, e com as possibilidades críticas que sua releitura ou reescritura ainda permite, que leiam na íntegra os textos que foram analisados e procurem os outros muitos autores que se aventuram nesse tema.

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Como foi trasladada Dona Ignez para o mosteiro de Alcobaça, e da morte del rei Dom Pedro

(LOPES, 2009. Adaptado)

Porque semelhante amor, qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Inês, rara-mente é achado em alguma pessoa, porém disseram os antigos que nenhum é tão verdadeiramente achado, como aquele cuja morte não tira da memória o grande espaço do tempo. E se algum disser que muitos foram já, que tanto e mais que ele amaram, assim como Adriana, e Dido, e outras que não nomea-mos, segundo se lê em suas epístolas, responde-se que não falamos em amores compostos, os quais alguns autores abastados de eloquência, e florescentes em bem ditar, ordenaram segundo lhes prouve, dizendo em nome de tais pessoas razões que nunca nenhuma delas cuidou; mas falamos daqueles amores que se contam e leem nas histórias, que seu fundamento têm sobre verdade.

Esse verdadeiro amor houve el-rei Dom Pedro a Dona Inês, como se dela namorou sendo casado e ainda infante, de guisa que, pero dela no começo perdesse vista e fala, sendo alongado, como ouvistes, que é o principal azo de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar recados, como em seu lugar tendes ouvido. Quanto depois trabalhou pela haver, e o que fez por sua morte, e quais justiças naqueles que nela foram culpados, indo contra seu juramento, bem é testemunho do que nós dizemos.

E sendo lembrado de lhe honrar seus ossos, pois lhe já mais fazer não podia, mandou fazer um moimento de alva pedra, todo mui sutilmente obrado, pondo elevada sobre a campa de cima a imagem dela, com coroa na cabeça, como se fora rainha. E este moimento mandou pôr no mosteiro de Alcobaça, não à entrada, onde jazem os reis, mas dentro na igreja, à mão direita, cerca da capela-mor.

E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde jazia, o mais honradamente que se fazer pode, cá ela vinha em umas andas,

Texto complementarNo último capítulo da Chronica de el-rei D. Pedro I, Fernão Lopes descreve a

cerimônia de translado dos restos mortais de Inês de Castro e o fim do reinado do rei D. Pedro.

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muito bem corrigidas para tal tempo, as quais traziam grandes cavaleiros, acompanhadas de grandes fidalgos, e muita outra gente, e donas, e donze-las e muita clerezia.

Pelo caminho estavam muitos homens com círios nas mãos, de tal guisa orde-nados, que sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre círios acesos; e assim chegaram até ao dito mosteiro, que eram dali 17 léguas, onde com muitas missas e grande solenidade foi posto seu corpo naquele moimento. E foi esta a mais honrada trasladação que até aquele tempo em Portugal fora vista.

Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal moimento, e também obrado, para si, e fê-lo pôr cerca do seu dela, para quando acontecesse de morrer o deitarem nele.

E estando el-rei em Estremoz, adoeceu de sua postremeira dor, e jazen-do doente, lembrou-se como, depois da morte de Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, ele fora certo que Diogo Lopes Pacheco não fora em culpa da morte de Dona Inês, e perdoou-lhe todo queixume que dele havia, e mandou que lhe entregassem todos seus bens: e assim o fez depois el-rei Dom Fernando, seu filho, que lhos mandou entregar todos, e lhe alçou a sentença, que el-rei seu padre contra ele passara, quanto com direito pode.

E mandou el-rei em seu testamento, que lhe tivessem em cada um ano, para sempre, no dito mosteiro, seis capelães que cantassem por ele cada dia uma missa oficiada, e saírem sobre ela com cruz e água benta. E el-rei Dom Fernando, seu filho, por se isto melhor cumprir, e se cantarem as ditas missas, deu depois ao dito mosteiro, em doação por sempre, o lugar que chamam as Paredes, termo de Leiria, com todas as rendas e senhorio que nele havia.

E deixou el-rei Dom Pedro, em seu testamento, certos legados, a saber: à infante Dona Beatriz, sua filha, para casamento, cem mil libras; e ao infante Dom João, seu filho, vinte mil libras; e ao infante Dom Diniz, outras vinte mil; e assim a outras pessoas.

E morreu el-rei Dom Pedro uma segunda-feira de madrugada, 18 dias de janeiro da era de 1405 anos, havendo dez anos e sete meses e vinte dias, que reinava, e 47 anos e nove meses e oito dias de sua idade. E mandou-se levar àquele mosteiro que dissemos, e lançar em seu moimento, que está junto com o de Dona Ignez.

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E porquanto o infante Dom Fernando, seu primogênito filho, não era então aí, foi el-rei detido e não levado logo, até que o infante veio; e à quarta--feira foi posto no moimento.

E diziam as gentes, que tais dez anos nunca houve em Portugal, como estes que reinara el-rei Dom Pedro.

Dicas de estudoPara que o estudante possa completar as informações sobre a apropriação da

história de Inês de Castro pela literatura e outras artes, sugerimos duas obras.

Sobre a literatura portuguesa:

SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro na Literatura Portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1984.

Sobre a literatura europeia:

SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. Lisboa: Edições 70, 1987.

Estudos literários1. Por trás da execução de Inês de Castro, pode-se detectar várias possíveis “ra-

zões de Estado” que teriam levado o rei Afonso IV a se decidir pela morte da dama galega. Comente as principais.

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2. De que forma o mito de Inês de Castro ajudou a construir a identidade por-tuguesa?

3. Além da grande qualidade artística do episódio de Inês de Castro em Os Lu-síadas, de Camões, qual o papel que seus versos exerceram na literatura por-tuguesa e na cultura ocidental?

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