cultura e educação

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  • Cultura e educao

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  • Teixeira Coelho (org.)Alfons Martinell Sempere; Edgard de Assis Carvalho;

    Gemma Carb Ribugent; Jurema Machado;Lucina Jimnez; Patricio Rivas; Sal Sosnowski

    CuLTuRA E EduCAo

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  • Copyright 2011Ita Cultural

    Copyright desta edioEditora Iluminuras Ltda.

    CapaMichaella Pivetti

    Foto da capaimagens extradas do site livre www.sxc.hu

    Agradecimentos para o autor da foto: Ivan Vicencio (Santiago, Chile).

    TraduoAna Goldberger

    RevisoAna Luiza Couto

    Jane Pessoa

    os textos publicados neste volume foram escritos para o Seminrio Cultura e Educao realizado no observatrio Ita Cultural em setembro de 2009, em So Paulo, SP.

    2011EdIToRA ILuMINuRAS LTdA.

    Rua Incio Pereira da Rocha, 389 - 05432-011 - So Paulo - SP - BrasilTel./Fax: 55 11 3031-6161

    [email protected]

    CIP-BRASIL. CATALoGAo-NA-FoNTESINdICATo NACIoNAL doS EdIToRES dE LIVRoS, RJ

    C974

    Cultura e educao / Teixeira Coelho (org.) ; [autores] Alfons Martinell Sempere ... [et al] ; [traduo Ana Goldberger]. - So Paulo : Iluminuras : Ita Cultural, 2011.

    144p. : 23cm

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7321-345-4 (Iluminuras)ISBN 978-85-7979-017-1 (Ita Cultural)

    1. Educao - Aspectos sociais. 2. Cultura. I. Coelho, Teixeira, 1944-. II. Sempere, AlfonsMartinell. III. Instituto Ita Cultural. IV. Ttulo.

    11-2490. Cdd: 306.43 Cdu: 316.74:37

    05.05.11 06.05.11 026188

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  • SuMRIo

    Apresentao A grande falha 9

    A invaso pelos outros e como cont-la 11Teixeira Coelho

    Religao dos saberes e educao do futuro 29Edgard de Assis Carvalho

    reas de interseo entre cultura eeducao: a formao de formadores 43

    Gemma Carb Ribugent

    Arte, cincia e corpo: para uma reconciliao do pensar e do sentir 59Lucina Jimnez

    As tramas da cultura 77Patricio Rivas

    Notas sobre educao e a escorregadia determinante cultural 83Sal Sosnowski

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  • Reflexes sobre a relao entre Cultura eEducao e a experincia da Educao Bsica no Brasil 97

    Jurema Machado

    As relaes entre polticas culturais epolticas educacionais: para uma agenda comum 113

    Alfons Martinell Sempere

    Sobre os autores 139

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  • 7O Instituto Ita Cultural, por meio de seu Observatrio, realizou o Seminrio Internacional Educao e Cultura entre os dias 14 e 15 de setembro de 2009, na Sala Vermelha do Instituto Ita Cultural, em So Paulo (SP). A participao de convidados brasileiros e estrangeiros citados abaixo permitiu a discusso de suas prticas, reflexes e experincias em seus respectivos pases de atuao, com proposies de como culturalizar o ensino, por meio de iniciativas administrativas e curriculares e mediante aes cotidianas em sala de aula. Entre os temas tratados foram abordadas as relaes entre ensino formal e o informal e a cultura como pauta a perseguir. O objetivo do evento foi sugerir, nas polticas culturais, espaos para a educao com cultura, em que se enfatizou a formao cultural de docentes dos diferentes nveis e os processos de atualizao continuada de professores.

    Este livro composto de textos relacionados aos temas discutidos pelos participantes durante o seminrio.

    ParticiPantes:Alfons Martinell Sempere (Espanha)Edgard de Assis Carvalho (Brasil)Gemma Carb Ribugent (Espanha)Jurema Machado (Brasil).Lucina Jimnez (Mxico)Patricio Rivas (Colmbia)Sal Sosnowski (Estados Unidos)Teixeira Coelho (Brasil)

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  • 9APRESENTAo

    A GRAndE FALhA

    A educao no Brasil largamente desculturalizada. Em outras palavras, educao e cultura correm por caminhos distintos e muito distantes um do outro. Estudos comparativos mostram que, no Brasil, baixssima a capacidade de entendimento de um texto lido (o pas ficou em ltimo lugar entre 31 participantes, incluindo vrios da Amrica Latina, num recente estudo realizado pelo Programa Internacional de Avaliao de Estudantes - Pisa1). diante desse quadro profundamente lamentvel, que d uma ideia corrigida do real grau de desenvolvimento ou de subdesenvolvimento do pas, quase no cabe discutir se cultura o conhecimento dos clssicos e do contedo dos museus de arte ou se a prtica cotidiana mais ao alcance da mo, aquela que se d nas ruas ou nas telas da TV e da Internet: algo est faltando no processo de ensino. E muito. no Brasil como em tantos outros lugares, verdade, mas aqui mais do que em muita outra parte.

    Mas, de qual educao culturalizada se trata? Quais seus componentes? O que define um cidado educado e um cidado culturalmente educado? E quando diante do menor problema oramentrio do poder pblico municipal, estadual ou nacional cortam-se do currculo as horas dedicadas arte, msica, ao desenho, que quadro culturalmente educativo sobrevive? diante das novas tecnologias, o que privilegiar? E quando se avalia o processo, quem avaliado: aquele que transmite a informao, o professor, ou aquele que a recebe, o aluno? Estaria o professor em condies melhores do que seus alunos ou o contrrio? Quais as relaes entre as polticas culturais e as polticas educativas? Podem, uma e outra, lograr seus objetivos isoladamente, sem estabelecer espaos de colaborao? Como aumentar o impacto das polticas educativas e culturais?1 o Pisa um programa internacional de avaliao comparada desenvolvido e coordenado pela organizao para Cooperao e desenvolvimento Econmico (oCdE) que opera com indicadores sobre o real aproveitamento dos sistemas educacionais. A pesquisa feita com alunos na faixa dos quinze anos, quando em princpio estaria encerrado o perodo de escolaridade bsica obrigatria nos pases que integram o programa.

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    Estas so perguntas de difcil resposta, entre outras tantas. Tanto que muitas vezes sequer so feitas. neste livro elas so enfrentadas. As dvidas so muitas, diante de algumas poucas certezas firmes. Entre elas, o fato de que na maior parte do tempo professores que so culturalmente do sculo XX lidam com estudantes culturalmente do sculo XXI por meio de contedos culturais provenientes do sculo XIX na melhor das hipteses. A fratura cultural assim criada enorme, o desconforto dos professores evidente e o dos estudantes, maior ainda quando o sentem.

    Especialistas de diferentes pases trazem aqui suas reflexes e experincias para uma discusso que precisa ser constantemente refeita. Abaixo da superfcie de uma j evidente intranquilidade cultural corre uma falha, para usar um termo da geologia, que aumenta sempre mais a instabilidade do processo social como um todo. A reconfigurao do sistema uma bvia necessidade. Um estudo recente realizado na Frana sobre a eficcia da poltica cultural nacional mostra que na verdade so duas as principais causas de um maior consumo de cultura ou, em todo caso, de uma maior exposio das pessoas cultura: melhor nvel de renda pessoal ou familiar, maior e melhor formao educacional. Mais dinheiro na mo importante. Mas no basta: decisivo um tempo maior dedicado a uma boa educao. Com isso, quase se poderia dispensar boa parte dos programas de poltica cultural: a cultura se resolve sozinha, por si mesma, como na verdade o fez durante todo esse longo tempo da histria da humanidade em que no houve poltica cultural no sentido que hoje se d a essa expresso.

    Mas, bom destacar: estamos falando de educao, no de treinamento. Um universo se abre entre uma coisa e outra e ao redor desse buraco negro que evoluem as hipteses e sugestes levantadas neste livro.

    Teixeira Coelho

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  • 11

    A INVASo PELoS ouTRoS E CoMo CoNT-LA

    Teixeira Coelho

    Metforas surgem-nos dos modos mais inesperados. Em especial quando no esto sendo procuradas. Metfora lancinante sobre a educao e a cultura, e a cultura da educao, ocorreu-me num fim de noite ao ler uma reflexo de W.G. Sebald1 sobre a pea Kaspar, de Peter Handke, depois de rever o filme que Werner Herzog fez em 1974 sobre o mesmo tema, intitulado em portugus O enigma de Caspar hauser mas que em alemo tinha o ttulo bem mais expressivo de Cada um por si e deus contra todos. Seria estimulante indagar os motivos pelos quais esse filme recebeu em portugus o ttulo eufmico de O enigma de Caspar hauser. bem possvel que no Brasil tenha-se feito apenas a traduo literal do ttulo idntico e de massa dado cpia norte-americana dessa pelcula. o romance original de Jacob Wassermann que deu origem ao filme e pea de Handke, e a umas cinco mil obras mais, chama-se Caspar hauser ou A inrcia do corao, outro ttulo bem incmodo para a indstria cultural. Nos EuA, pas profundamente religioso, a ideia de que deus pudesse estar contra todos era, quando o filme foi l lanado h mais de 35 anos (como quem sabe ainda hoje), talvez impensvel. No Brasil, naquele mesmo momento do passado, no era to impensvel assim, como no o hoje talvez com ainda mais razo. No Brasil, no h qualquer atrevimento moral ou religioso mais intenso na sugesto pblica de que deus possa estar contra todos.2 E o filme de Herzog poderia ter aqui recebido seu ttulo original. Mas essa questo, fazendo parte daquilo que aqui est em jogo, no constitui o ponto central em discusso.

    Quando vi o filme pela primeira vez, poca de seu lanamento original no Brasil, h 35 anos, essa metfora sobre a educao no me ocorreu. Naquele momento, minha percepo do filme poderia hoje ser traduzida

    1 Strangeness, integration and crisis in Campo Santo. Londres: Hamish Hamilton, 2005.2 Mesmo porque, Mrio de Andrade j havia literariamente nos acostumado a ela, uma vez que pe essa

    frase na boca de seu personagem Macunama, arquetpico heri sem carter.

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    nas palavras que Sebald usou para ttulo de seu curto ensaio, por ele escrito em 1975 mas s publicado com destaque num volume pstumo editado em 2005, trs anos aps sua morte. As palavras que compunham seu ttulo so estranheza, integrao e crise. So palavras que tudo devem a uma inclinao existencialista extremamente significativa para mim naquele momento do passado como ainda hoje. Recordar um pouco a histria de Caspar Hauser, como a mostra o romance, a pea e o filme, pode ajudar a entender o alcance dessas trs palavras e, depois, da metfora sobre a educao e a cultura a que me refiro e que me move aqui.

    Caspar Hauser viveu encarcerado num aposento indefinido at um momento de sua adolescncia tardia, sem contato com seres humanos, animais ou coisas. A verdade sobre sua origem e as razes de seu encarceramento nunca ficaram claras. uma das suposies dizia que era filho de pais aristocratas (ou de algum pai ou alguma me aristocrata), abandonado e mantido em segredo em razo de um segredo impublicvel. um tema no to incomum na histria e na literatura. Caspar Hauser ficou todo o cativeiro atado a uma argola que o mantinha praticamente imvel e impossibilitado de se erguer. No manejava as palavras, no tinha noo de espao, apenas talvez distinguisse entre o dia e a noite que se infiltravam no cubculo. Bebia gua de uma jarra e comia po que algum lhe deixava na cela noite, enquanto dormia. Por companheiro, se o era, apenas um cavalinho de madeira sobre rodas cuja correta manipulao ele no entanto desconhecia. um dia algum o liberta. Ergue-o, ensina-o a andar, algo que Caspar jamais fizera. Esse algum d-lhe um papel em que est escrito seu nome, Caspar Hauser, e ensina-lhe algumas palavras, entre elas a frase que deveria dizer pessoa qual seria encaminhado e que indicaria que ele, Caspar Hauser, gostaria de ser um cavaleiro to gil quanto havia sido seu pai. Esse libertador annimo, provavelmente o mesmo que o havia mantido isolado ou que o havia alimentado no cativeiro, leva-o at uma cidade, Nuremberg, e ali o deixa numa praa enquanto todos ainda dormem. o romance de Wassermann e o filme de Herzog mostram como Caspar de incio mal se relaciona com as pessoas, como aprende a comer outra coisa alm de po, como se torna atrao circense, como aprende a tocar piano, como vive em seu mundo prprio e como morre um dia, assassinado, quando ento fazem-lhe a autpsia e procuram em seu organismo, no fgado e no crebro, as razes de seu comportamento. Estranheza, integrao e crise so palavras que podem traduzir as sensaes que acometiam os que leram o romance ou, mais possivelmente, como foi meu caso, os que primeiro viram o filme de Herzog, na dcada de 1970. So

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    palavras to expressivas quanto o ttulo alternativo de Wassermann, Inrcia do corao. Caspar Hauser de fato ( porque continua vivendo no presente eterno da literatura e da cinematografia) um aptico do corao, no sentido da ausncia de um sentimento de apego ou aproximao maior pelos que o cercam e ajudam ou de ausncia de averso e repulsa pelos que o cercam e importunam, assim como no mostra inclinao maior pelos objetos (talvez apenas os animais lhe digam alguma coisa, como os pssaros).3 E apatia do corao certamente o que tm os que o cercam preceptores, protetores, padres, policiais , incapazes de entend-lo, de comunicar-se com ele e de explic-lo, apesar de todo o racionalismo em que se apoiam (estamos na primeira metade do sculo XIX). ou talvez por isso mesmo. Estranheza do mundo em Caspar Hauser, estranheza do mundo diante de Caspar Hauser, desejo de integrar Caspar Hauser ao mundo (talvez maior que o de Caspar Hauser integrar-se ao mundo) e crise crise de Caspar Hauser (a certa altura ele diz, para espanto e horror geral, que tinha sido mais feliz no cativeiro) e crise do mundo diante de Caspar Hauser.

    Mas W.G. Sebald escreveu seu ensaio sobre a histria de Caspar Hauser mais como ele aparece na pea teatral de Peter Handke do que no filme de Herzog ou no romance de Wassermann e foi lendo esse seu curto ensaio que a metfora sobre a educao (e a cultura) tomou conta de meu imaginrio. No ter sido essa a metfora que interessou a Sebald, nem a que tocou Herzog. No importa: grandes obras provocam diferentes metforas e nem todas elas se excluem, quando a obra que as suscita de fato grande. Esta, que me acometeu, certamente no exclui as outras nela embutidas e que so igualmente claras e delas se alimenta e com elas se refora.

    Quando Caspar Hauser aparece no mundo, ele a encarnao do espanto, diz Peter Handke. Foi colocado numa realidade da qual no tem nenhuma ideia, nenhum conceito. Ele no sabe nada do mundo e das pessoas, no sabe nada de si mesmo, de suas emoes e de suas possibilidades. Sua mente uma pgina em branco. o recurso potico do escritor Wassermann, preservado por Handke e Herzog, nada diz em sua narrativa sobre os primeiros anos iniciais do aprendizado natural de todo ser humano, esse aprendizado das coisas imediatas como andar, falar, comer: Caspar Hauser aparece j crescido, jogado no mundo. E a histria de Caspar Hauser ser, no uma histria individual contada de seu ponto de vista (que ele no tem) mas a de uma tentativa de adestramento de um ser humano incivilizado.3 A relao entre o homem e o animal, lembra Milan Kundera, o pano de fundo perene da existncia

    humana, um espelho por vezes um espelho assustador que no o abandonara. A menos que o homem insista em abandon-lo, como parece estar querendo fazer, reafirmando a tendncia suicida da humanidade.

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    Nada se sabe de sua existncia anterior porque ele no domina a linguagem e no sabe expressar ideias. um ser a-histrico. Est vestido como um campons austraco, um caipira, quando aparece na cidade mas isso tudo que ele mesmo revela em si e por si e logo fica evidente que a escolha daquelas roupas no foi dele, como depois no o ser a escolha das roupas burguesas que lhe do. Algum haver, sugere Sebald, que invejar essa sua condio de ter conhecido, por um tempo, aquilo que se supe ser uma felicidade paradisaca. o que certo que tirado de sua situao inicial, de sua inrcia (mas essa inrcia, sobretudo essa inrcia de seu corao, de seus sentimentos, nunca desaparecer), e nesse instante a harmonia que ele pode ter um dia experimentado no cativeiro quebra- -se. Nesse instante deixam de ter razo de ser os recursos de que dispunha para relacionar-se com o mundo e que de algum modo funcionavam (Caspar Hauser no deu sinais de alguma especial infelicidade enquanto estava em seu primeiro ambiente isolado, em sua existncia esttica, como a descreve Sebald e que outro sinal dessa apatia do corao). Alguma coisa nova deveria ocupar sua existncia e Caspar aparentemente no tem outra alternativa a no ser aprender. desenvolver-se, como se diz. As teorias otimistas do sculo XVIII prediziam que Caspar, como qualquer outro ser humano, poderia ser educado e educar-se a si mesmo, por emulao e por reflexo, e tornar-se um ser humano liberado.

    No o que acontece, porm. A pea de Handke lana mo de um recurso dramtico particularmente significativo. uma de suas foras dramticas o ponto, aquela pessoa que ficava oculta numa encenao, no proscnio, e cuja funo era soprar, lembrar aos atores as falas que eventualmente esquecessem. Hoje, com a televiso, os pontos continuam a existir ou voltaram vida. Agora chamam-se prompters, mesmo em portugus (porque assim se diz em ingls), e veem na forma de um texto que desliza numa tela colocada na parte da frente da cmera que focaliza o apresentador de um telejornal, por exemplo, e que por ele visto e que lhe diz exatamente tudo que ele deve falar. Na verdade, o prompter muito mais que o ponto: o ponto entrava em cena, por assim dizer, apenas quando o ator esquecia alguma coisa. Agora, o prompter est ali para no deixar que ele diga outra coisa alm daquilo que foi preestabelecido. o apresentador do telejornal nada mais faz alm de emprestar um rosto e uma voz quilo que algum escreveu antes dele. Muitos polticos usam o mesmo recurso quando discursam. Pois, na pea de Handke os pontos tm uma funo de dizer a Caspar Hauser o que ele tem de dizer. E pensar. E sentir. Seu primeiro ponto foi aquela mesma pessoa que lhe levava po e gua noite e que

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    um dia o liberta, ensinando-o a andar e levando-o para a cidade. esse primeiro ponto que lhe passa o nome que ele deveria reconhecer como seu, Caspar Hauser, escrito num pedao de papel que se torna assim sua certido de nascimento. dar nome a algum , na teoria da linguagem, uma interpelao. um infante no tem conceito nenhum para decifrar o mundo e reagir sobre ele, e portanto um nome lhe designado pelos pais, assim como a figura annima indicou a Caspar Hauser como deveria se chamar. Melhor: assim como a figura annima indicou ao mundo como deveria chamar aquela pessoa, Caspar Hauser. A interpelao faz do interpelado, desde logo, o objeto de uma ao, no um sujeito. (E esse objeto, na melhor das hipteses, passar depois toda a vida tentando fazer de si mesmo sujeito quando tenta.)

    um outro ponto (mas um ponto uma funo, no caso de Caspar Hauser uma funo social, independentemente de ser um homem ou uma mulher, um professor ou um sacerdote, um poltico ou um policial: quem lhe d as regras a seguir), um outro ponto que diz a certa altura a Caspar Hauser, na pea: Voc est sendo aberto, quer dizer, esto abrindo uma fenda em voc, uma fenda por onde coisas lhe sero despejadas. E a partir da, Caspar Hauser est pronto para ser educado ou a partir dessa abertura que fazem nele, em sua alma, que ele comea a ser educado, por ali que comea sua educao. Ele no tem mais alternativa. Algo nele se rompe, ou rompido pelos outros. Ele se torna vulnervel e comea a aprender.

    o que ocorre com Caspar, porm, uma iluso de liberao, para usar a expresso na origem das teorias educacionais ainda hoje em vigor. o que lhe dizem os diferentes pontos com os quais entra em contato, e cujas vozes o envolvem o tempo todo, constitui, na melhor das hipteses, implica uma submisso irresistvel invaso de sua interioridade pelos outros, e, na pior delas, a humilhao crescente de um ser que, quanto mais se aproxima do padro civilizado, pelo menos na aparncia (Caspar aparece cada vez mais bem-vestido, de acordo com o padro da poca; come em sociedade, demonstrando bons modos aceitveis; toca alguma coisa ao piano), mais aproxima-se do estado geral de um animal acuado. A cena mais expressiva nesse sentido aquela em que, no filme, um ingls rico e afetado que se apresenta como um possvel interessado em ser o protetor de Caspar, leva seu protg a uma recepo para apresent-lo sociedade. At ento, Caspar convivera com policiais, aldees, pequenos-burgueses. o aristocrata ingls, Stanhope, quer mostr-lo sociedade e, sobretudo, quer mostrar sociedade como ele prprio est disposto a amparar o desamparado Caspar

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    (um sinal daquilo que hoje seria chamado de responsabilidade social do protetor). Veste-o bem e o leva recepo para apresent-lo aos notveis da regio, ao prefeito e sua esposa, a toda a melhor sociedade. E gaba-se de Caspar, que no entanto, ao ser indagado pela esposa de um homem importante sobre como se sentia naquele seu novo mundo, responde, para espanto geral, que no cativeiro estava melhor. Caspar ainda guarda uma memria de seu passado e de sua prpria razo, nesse momento, apesar de tudo que j lhe ensinaram. Em seguida, naquela mesma noite, a pedido de seu futuro protetor, Caspar senta-se ao piano para mostrar como est bem-educado. Comea a tocar mas sente-se mal e pede ar. deixam-no um pouco sozinho e quando regressam at ele, veem que se pusera a tricotar, como vira fazer uma mulher na casa que o abrigara e com a qual falara sobre o papel secundrio das mulheres. o futuro protetor desaponta- -se com o comportamento de seu quase protg, que fazia coisas de mulher, e o entrega de volta queles que dele cuidavam como podiam: Caspar no se portara como esperado, no reconhecera as excelncias do meio que o adotara, no soubera ser grato ao que haviam feito por ele, ao que lhe haviam ensinado. o aristocrata revela-se possuidor de uma cultura na qual Caspar no se encaixa e no embate das duas culturas h uma relao patolgica, como lembra Sebald.

    Caspar d-se conta de que, como as crianas, precisava aprender as palavras que designavam as coisas quando desejava alcan-las por alguma razo, dentro de seu universo marcado por uma forte apatia da sensibilidade e da necessidade (pelo menos como apatia que seu estado nos aparece, a ns que estamos nessa situao que descrevemos como normal). E ele revela-se faminto de informao (apetite que, lembra Sebald, Musil identificava com a cobia, o desejo perverso de assim ter mais poder e que ele identifica como uma pulso fundamental do capitalismo sem dar-se conta, talvez, de que no uma pulso fundamental apenas desse regime). Mas as palavras que Caspar usa com a finalidade de controlar ou tentar controlar as coisas e situaes que se impem a ele desde que saiu de seu estado natural revelam-se ameaas latentes contra as quais ele no tem meios de defesa. E no tem defesa porque ele j comea a considerar que essas palavras e vozes que lhe vm de fora so na verdade palavras e vozes que provm dele mesmo, ou, como diz Sebald, que provm de uma parte dele mesmo que se tornou estranha a ele prprio no instante mesmo em que foi jogado no novo meio. As mximas sociais, as exortaes que lhe so dirigidas pela variedade de pontos que o cercam as autoridades locais, os protetores, os sacerdotes, quer dizer, seus educadores comeam a soar

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    nele como se fossem parte integrante de seu prprio imaginrio ou iluses e por conseguinte ele as obedece. Ele no tem, por exemplo, a capacidade de um Groucho Marx para enfrentar essas palavras, neg-las, vir-las do avesso e assim expor em pblico a impropriedade de que se revestem, capacidade que, quando manifesta, mostra-se to simples que surpreende que no seja exercitada mais frequentemente e por nmero maior de pessoas. Mas no: o treinamento que as pessoas recebem funciona bem no sentido de no estimular a capacidade de identificar que essas palavras e ideias vm de fora, no tm sentido ou tm um sentido dbio e poderiam ser recusadas, ridicularizadas...

    E assim, a impiedosa educao de Caspar continua. uma educao que obedece s leis da linguagem. E que corresponde, nas palavras de Peter Handke, a uma tortura pelo discurso que se traduz no fato de que as pessoas (os pontos) falam com Caspar e lhe dizem coisas at que ele perca todo trao de sua original razo animal que, em seu cativeiro (naquilo que chamado de seu cativeiro), parecia-lhe ser uma slida razo. No que coisas torturantes sejam feitas contra ele ou ditas a ele: o prprio discurso em si mesmo que contm todo um aparato cruel. Com o discurso, um mundo de imagens e sentimentos dividido em seus componentes cujo sistema grava fundo, a fogo, na mente ou no corao da pessoa, os significados que transmitem. Esses significados formam uma mquina lingustica na qual integrado aquilo que agregado a uma pessoa. Sebald cita, em seu ensaio, Lars Gustafsson que elaborou uma imagem dessa mquina gramatical que nos faz pensar na possibilidade de que nossas prprias vidas possam ser uma simulao, uma vida que num certo sentido se parece com a vida das prprias mquinas. Recorrendo a uma outra metfora comum entre os que lidamos com arte, esse discurso assim operado mostra-se como uma mquina solteira, expresso usada pela primeira vez por Marcel duchamp para referir-se s imagens que ele depois usaria em seu Grande vidro. A expresso mquinas solteiras aplicava-se, para duchamp, parte inferior do Vidro que inclua, entre outras coisas, um moedor de chocolate (e a ideia do moedor aqui importante) ao lado de vrios uniformes pendurados, uniforme de sacerdote, de carteiro, de policial, de soldado, de chefe de estao e tantos outros, todos aqueles que duchamp chamava de os solteiros. Aqui, forte a analogia com o mundo descrito por Wassermann e encenado por Handke e Herzog. os uniformes dessas funes sociais esto ali, no mundo onde Caspar entra e que nele penetra, prontos para serem ocupados e assim exercerem seu papel sem prejuzo do fato de que j cumprem um papel por simplesmente estarem ali, de que j dizem

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    alguma coisa, j sugerem alguma coisa como pontos que so por simples- mente estarem ali. E ali esto todos eles ao redor de Caspar, o uniforme do polcia, o uniforme do soldado, o uniforme do prefeito, o uniforme do protetor, o uniforme do padre, o uniforme da mulher. La marie mise nu par ses clibataires, mme o ttulo do Grande vidro de duchamp. A noiva despida por seus celibatrios, mesmo. E Caspar a grande noiva, pronta para ser despida pelos uniformes que o cercam. Esses uniformes nos surgem vazios, verdade, para ns que vemos o Vidro ou o filme ou lemos o romance. Mas ns estamos de fora...

    No s em duchamp que ocorre pensar neste momento. Tambm a figura de Roland Barthes vem tona quando, em sua Aula de ingresso no Collge de France, props que no o homem que fala a lngua mas a lngua que fala o homem, isto , a lngua enquanto sistema de significados e regras cristalizados que se utiliza do homem para continuar a fazer valer suas proposies e valores, como autntica mquina solteira que se serve das pessoas apenas para perpetuar-se. A proposta de Barthes foi a seu tempo escandalosa, num momento em que ainda vigoravam os positivismos de esquerda e direita e os idealismos ps-iluministas que ainda defendiam a autonomia do ser humano (embora alguns, como Foucault, estivessem j insistindo em que a noo de autor se encerrara; hoje estamos de novo fazendo fora para acreditar que est ocorrendo a morte da morte do autor...).

    o prprio Sebald quem tambm descreve o ser humano como uma criatura feita de parafusos e molas que ostenta padres feitos do metal da comunicao e quem descreve o discurso como um aparato que escapou do controle e comea a ter uma sinistra vida prpria. Sobre a pessoa nor- mal, a ao desse discurso no parece particularmente problemtica. Para pessoas como Caspar ou Groucho Marx , porm, esse discurso choca. o esprito de Caspar entra em pane quando ouve que o fsforo queima, a ferida queima; a lngua lambe, as chamas lambem. Na sequncia inicial de Uma noite na pera, o personagem de Groucho est conversando num restaurante chique com uma milionria desejosa de brilhar socialmente. A certa altura, Groucho pergunta mulher se o est entendendo, em ingls: Are you following me? A mulher responde que sim. Ento pare de me seguir ou mando a polcia prend-la (Stop following me or I'll make the police arrest you). Em portugus o jogo de palavras se perde, mas no tanto o sentido ltimo: Pare de me compreender ou mando a polcia prend- -la: se est me compreendendo, alguma coisa est errada.... Em Groucho, a observao soa cmica, talvez porque nos acostumamos a consider-lo

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    um palhao. Em Caspar, as palavras soam trgicas. A tragdia, no entanto, est em Groucho tambm. Tanto que ele sempre, em seguida a suas tiradas lingusticas, olha srio para a cmera, como a chamar fortemente a ateno do espectador para a relevncia do que disse e para o significado de um discurso morto que as pessoas fingem entender.

    desse modo, com a mquina solteira do discurso, uma forma elptica de tortura, que a socializao de Caspar continua. Ele faz progressos: veste-se convenientemente, est limpo, tem bons sentimentos com os animais. Mas comea a entrar em crise. Alguma conscincia de seu eu anterior emerge: quando lhe perguntam como era seu cativeiro, na recepo a que o leva o aristocrata ingls Stanhope, Caspar responde que era mais feliz naquele outro tempo passado, para extrema decepo do culto ingls viajado que em seguida se pe a relatar aos presentes como foi sua viagem Grcia, que ele chama de Hellas, e o que ele ali sentiu. Caspar est em crise e, na pea de Handke, os pontos precisam intervir e lhe dizem: Voc tem disposio sentenas-padro com as quais pode ir adiante na vida. E insistem: Voc pode aprender e tornar-se algum til. E nunca essa interpelao, que uma advertncia, soou to terrvel quanto agora. Tornar-se til mediante a incorporao de ideias-padro. Nesse momento, como observa Sebald, Caspar se tornou sua prpria matriz, est pronto para outras ilimitadas reprodues. Reprodues do qu? do sistema corporificado pela mquina solteira do discurso, com todos seus valores e recursos.

    Aos poucos, Caspar torna-se, como sugere Sebald, clone de sua prpria pessoa reformada. E se ele sentiu-se incomodado com as falas que tinha de dizer, com as falas que esperavam que dissesse, o fato que esse mesmo discurso foi aos poucos fazendo que se acostumasse s identidades a ele propostas. Acostumar-se s identidades preexistentes: terrvel operao, terrvel sentimento, terrvel alienao.

    o treinamento de Caspar, no entanto e a palavra bem treinamento, no a outra que estamos acostumados a pronunciar no de todo bem-sucedido. Ele ainda se lembra. Ele ainda se recorda de sua origem, de seu princpio. Pior, ele se recorda de sua doutrinao. No filme de Herzog, mais elptico do que o romance e a pea, como costuma acontecer com os filmes, essa recordao de um passado, de um antes aparece silenciosamente na forma de um comportamento recorrente de Caspar: depois de alguma experincia mais significativa, ou mais traumtica, ele sempre acaba buscando refgio em algum pequeno aposento, algum espao fechado que de algum modo lhe recorda seu cativeiro inicial. assim quando ele escapa, com outras aberraes ou enigmas como os chama o apresentador

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    do circo estacionado ao lado da cidade e onde se podem ver um camelo que anda de joelhos; um macaco que cavalga; um hombrecito, isto , um sul- -americano que sempre fica tocando sua flauta porque se no o fizer toda a populao da aldeia pode morrer; um jovem Mozart que busca refgio na contemplao de um buraco; um rei ano que seria, nas palavras do apresentador, o elo mais recente de uma dinastia de reis gigantes que a cada gerao ficavam cada vez menores e que acabariam por tornar-se pulgas saltitantes. E, claro, do circo de enigmas (de onde sai provavelmente o redutor ttulo do filme em ingls e em portugus) faz parte o prprio Caspar, a tanto compelido pela municipalidade preocupada com os custos de sua manuteno antes que uma alma caridosa da cidade resolva acolh-lo em sua casa. Logo aps essa sua apresentao no circo, o hombrecito, Mozart e o prprio Caspar escapam. os dois primeiros so logo localizados mas Caspar oculta-se no canto escuro de um barraco, assim como procurar fazer em outras ocasies. oculta-se, para ficar sozinho e comer um ovo, na casinha, isto , na latrina que ficava fora da casa que o abriga; refugia-se num poro depois de ser incompreensivelmente atacado a pauladas por aquele mesmo homem, mostra o filme, que o havia mantido prisioneiro e que um dia o havia libertado. Ferido, como fazem os ces, Caspar procura esconder-se talvez para que no lhe batam mais, talvez porque a dor, a doena e a morte sejam, como nos ces, sempre motivo de alguma vergonha, algo que tem de ser experimentado na solido. o treinamento a que havia sido submetido Caspar no lhe apagara da cabea as imagens de suas origens, aquele cativeiro no qual, como diz na festa do grande salo burgus para onde levado por seu ex-quase protetor ingls, ele havia sido mais feliz. Ele ainda podia recordar-se de seu comeo, ainda podia voltar a um instante anterior a tudo aquilo que havia aprendido. um enigma, de fato: como pode algum desaprender, como pode algum realizar essa faanha mxima entre todas as faanhas que voltar atrs nas coisas que aprendeu, que se acostumou a aprender, voltar atrs nas coisas que se tornaram seu eu? No necessariamente voltar a ser o que havia sido mas, minimamente, pelo menos recordar-se profundamente de como havia sido, recordar-se o que um dia havia sido? uma faanha e um enigma, de fato: como conseguir isso?4 4 o campo da memria um terreno privilegiado da luta cultural; o que est frequentemente em jogo

    na cultura a memria. Aqueles que cercam Caspar Hauser espantam-se sempre com o que ele diz sobre seu passado e com as boas memrias que esse passado lhe deixou e que parece algo no apenas inverossmil aos que o cercam o ex-futuro protetor ingls, um exibicionista da responsabilidade social, como tambm aquele homem bem-intencionado em cuja casa Caspar acolhido mas inclusive incompreensvel e inaceitvel. o campo da memria to mais vital quanto, como sugeriu Nietzsche, no instante de sua gnese que se revela a essncia de um fenmeno, uma essncia que, em certos casos, no se alterar jamais.

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    E se isso ocorre, isso talvez assuma a forma daquilo que david Cooper, em Psiquiatria e antipsiquiatria, lembra Sebald, chamou de metforas da paranoia [...], um protesto potico contra a invaso pelos outros. Esse protesto e essa metfora comportamental refugiar-se num simulacro da prpria origem acontece, diz Handke, quando a maior urgncia de comunicar-se manifesta-se ao lado da e com a ausncia mais radical da fala. quando mais preciso falar com o outro que nada consigo dizer- -lhe. Handke observa que essa metfora, esse simbolismo no consegue expressar a completude de uma existncia mas, apenas, uma defunta abreviao dessa mesma existncia. No filme, de resto, Caspar morre: sofre um segundo atentado, cometido talvez pela mesma pessoa e que dessa vez o leva morte. os mdicos da cidade dissecam seu corpo, em particular seu crebro, em busca de algo que explicasse seu... enigma. Eram tempos cientficos. Naturalmente, entendiam que a causa da excepcionalidade de Caspar estava dentro dele, no fora dele: era produzida por ele mesmo, ele mesmo era sua causa e sua consequncia, no alguma coisa no mundo sua volta. o racionalismo cientfico da poca buscava causas internas e externas para os fenmenos. S no vasculhava a si mesmo.

    os motivos pelos quais a histria de Caspar Hauser surge como uma metfora do processo educacional so claros. os aspectos pelos quais o processo de socializao pode ser tomado como uma autntica invaso do eu pelos outros ficam evidentes. uma vida at ento esttica, sem nenhum sentido da histria e sem conscincia da prpria histria, encontra-se num estado de ausncia de conflito e de dor em que uma felicidade ou tranquilidade apenas perceptvel (como possvel ver no incio do filme) persiste sem quebra de continuidade at o instante em que jogada no centro da realidade histrica. (E nesse exato instante, no filme, ele visto de costas pela cmera, olhando para o mundo sua frente como os personagens das melhores pinturas de Caspar david Friedrich.) Essa passagem para um ambiente novo, em tudo anloga expulso do Paraso terrestre e sada do tero, significa uma quebra da harmonia original e a substituio de uma razo primeira, que se pode chamar de natural, slida porque inquestionada, pela lgica dos outros, pela lgica cultural.

    Caspar Hauser uma metfora e, algum dir, um caso extremo. Na mdia dos casos da educao, a situao no essa, argumentaro os que veem nesse quadro uma histria exagerada. Aquela passagem de um mundo a outro no assim to abrupta e dramtica, nem as pessoas so colocadas em circos ou expostas curiosidade pblica (no so mesmo?). Sobretudo, na mdia dos casos normais no se est numa situao de

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    inrcia do corao. As pessoas, os objetos desse treinamento, fora desse romance, desse filme e dessa pea, desenvolvem relaes de real afeio pelas pessoas e pelas coisas a seu redor e so por sua vez objeto de anlogo sentimento. Elas no se sentem estranhas, so integradas ao meio, ao grupo, e as crises que podem sobrevir no implicam o retorno primitiva condio de a-historicidade (de retirar-se do mundo, de refugiar-se salvo quando sobrevm a depresso). Nem as pessoas so, nesse processo, assassinadas por serem o que so. Mais importante ainda, diz-se, tudo feito em nome delas e em favor delas, buscando o bem delas. Alm do que as pessoas precisam aprender a se tornarem teis, no mesmo?

    os sinais que emanam do ambiente da educao tornam-se hoje confusos e contraditrios. Como observa um pertinente artigo publicado no dirio espanhol El Pas,5 os jovens de hoje cresceram num ambiente mais amvel e livre do que seus pais e do que Caspar Hauser. Pais e professores tm problemas para exercer a autoridade mas castigos no so mais impostos, ao contrrio do que ocorre com Caspar que, logo no incio do filme, leva bastonadas sem saber por qu. E como este, outros detalhes mudaram. Apesar da liberdade e da compreenso, se no do carinho, os alunos so menos obedientes e em certos temas, graas s novas tecnologias, e ao contrrio de Caspar Hauser, esto mais informados que seus professores que, vindos do sculo XX, tentam ensinar jovens e crianas do sculo XXI com ideias do sculo XIX. Alguns dizem que preciso retornar ao ensino autoritrio e conservador, outros observam que os de hoje (junto com seus professores) so os adolescentes mais desorientados da histria, flutuando deriva do consumismo e da Internet.

    inescapvel imaginar que a questo central seja uma avassaladora inrcia do corao, por mais que essa expresso soe arcaica. Se o subttulo do romance de Wassermann parece excessivo, mais apropriada deve ser a descrio que sugere o filme de Herzog em seu ttulo original: esta sem dvida uma situao onde est cada um por si e deus contra todos. olhando por todos os lados, dificilmente se encontra a vida em toda a completude individual de sua existncia e o mais comum deparar, o tempo todo, com uma defunta abreviao dela.

    No seu breve ensaio, Sebald termina, de modo consideravelmente abrupto talvez porque no haja outro modo de introduzir esse ponto, que no pode ser demonstrado por argumentaes solidamente arquitetadas dizendo que existe um modo de transcender esse dilema entre a existncia completa e seu habitual resumo sem vida. Esse modo, 5 La era del profesor desorientado, por J.A. Aunin, 18 jul. 2009.

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    sugere ele, um escritor, o da literatura, que pode manter a f numa vida mais completa ou numa vida que no precisa se refugiar em cantos escuros ainda que esses cantos sejam hoje aqueles cheios de luz da Internet, numa vida que no seja morta ou opaca. E que a literatura pode faz-lo por meio de uma linguagem que seja o oposto da linguagem tortura- dora, da linguagem do discurso torturador com o qual se d a invaso pelos outros. Essa outra linguagem a linguagem associal, a linguagem banida da literatura, uma linguagem que aprende a usar, como meio de comunicao, as imagens opacas da rebelio sufocada. Imagens opacas so todas aquelas que povoam a mente e o corao de Caspar Hauser, que no entende por que tudo lhe to difcil e que no dispe, no incio do sculo XIX, de nenhum meio de apaziguamento eletrnico, visual ou sonoro, como os i-Pods enfiados nos ouvidos, dessa inquietao e dessa rebelio sufocada que ele s consegue amenizar quando se refugia nos cantos escuros que fizeram parte de sua origem. As imagens opacas de Caspar, na pea de Handke, so por exemplo as imagens de uma vela que nunca havia visto (e em cuja chama queima os dedos), de sanguessugas e mosquitos, de pedaos de gelo, de cavalos e galinhas, que o assustam, de um beb que segura nos braos e o faz chorar, da sensao de no ser apreciado, da msica que o atinge forte em seu peito e que ele no entanto no sabe tocar nem entender, de bastonadas em seus braos, dos golpes que recebe na cabea um dia e que quase o matam, da facada no peito que termina com sua vida. As imagens opacas de hoje, neste mundo real, sero muitas, inmeras em sua variedade. A maioria das imagens opaca, hoje. Parecem transparentes e so em tudo opacas. Aquelas imagens opacas de Caspar o conduzem a uma rebelio sufocada que o leva a um estado de absoluta falta de palavras quando mais precisa se comunicar. Sebald sugere que a literatura pode transcender esse mundo de imagens opacas se recorrer linguagem banida, linguagem associal, linguagem marginal, linguagem que se questiona (como o faz Groucho) e com ela construir um modo de comunicao. Ele no diz como. No pode diz-lo, difcil diz-lo. Mas deixa claro um princpio: s possvel faz-lo quando se consegue evitar, nas palavras que venho empregando h algum tempo, a domesticao da cultura, esse vasto processo de subordinao da cultura (e da arte) a objetivos imediatos e utilitaristas, objetivos teis e de bom- -senso, que se fortaleceu na dcada de 1990 com as polticas pblicas norteadas pela busca do desenvolvimento, da paz e do equilbrio por todos os meios possveis, inclusive pelos meios de uma cultura amansada e que amanse e que, equivocadamente, se acredita que possa ser uma

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    aliada social. Sebald, pelo contrrio, vem lembrar o recurso que se pode fazer de uma cultura que o exato oposto dessa, a cultura banida, a cultura associal, se for o caso.

    Sebald era escritor, era lgico que falasse da literatura e que, como Milan Kundera e tantos outros, visse no romance um modo maior da cultura ocidental. Mas o mesmo uso se poderia fazer do cinema, sobretudo do cinema e das artes visuais, isto , do mesmo modo se poderia dizer que o cinema e as artes visuais e a msica, cada qual com suas possibilidades e dificuldades, podem ser um modo de transcender o dilema entre a plenitude da existncia e sua defunta abreviao de todos os dias, entre as imagens opacas e os modos de comunicao.

    Como faz-lo, porm, o problema. A poltica educacional e a poltica cultural quando esta alcana seus pontos mais elevados, o que no usual vo por caminhos opostos, diametralmente opostos. A melhor poltica cultural tem por princpio o entendimento de que a nica forma de ao cultural digna aquela que cria as condies para que as pessoas inventem seus prprios fins. Seus fins culturais, seria necessrio acrescentar o que abre toda uma outra discusso, sem dvida. Esse o ideal. Abaixo dele, muita coisa cabe, porm. A poltica educacional, no entanto, de seu lado, prope desde logo fins especficos e previamente determinados a serem alcanados. No campo da literatura, por exemplo, para os alunos que pretendiam ingressar na universidade no Brasil havia no muito tempo, e talvez ainda hoje, fixava-se uma lista de livros que deveriam ser obrigatoriamente lidos se que os jovens queriam ter alguma chance no exame de entrada. S um acaso fazia que a leitura desses livros, autnticos pontos e prompters, lhes oferecesse imagens no opacas, s em algumas ocasies abriam-se as alternativas para que esses jovens, com essas leituras instrumentalizadoras, escapassem ao acomodamento nas identidades preestabelecidas, aquelas mesmas s quais Caspar Hauser sentia enorme dificuldade de sujeitar-se. Com o cinema esse problema de limitao excessiva e arbitrria do cnone no ocorre tanto porque o cinema simplesmente no faz parte do corpus que se considera indispensvel conhecer para que algum se torne um cidado til ou tenha uma existncia completa, mais cheia. como se o sistema educacional, percebendo-se desbordado pela avalanche de informao que chega por todos os lados, tentasse ainda refugiar-se no territrio daquilo que um dia foi possvel fazer caber dentro dos limites mais facilmente descritveis e contidos, como os da literatura. A literatura era mais controlvel. Mas, hoje, tambm ela se multiplica. o gosto, as

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    preferncias do homem contemporneo, como observa com razo Milan Kundera,6 se fazem ao acaso dos encontros e desencontros individuais, e aqueles de uma pessoa no so os de outra. Se h vinte anos ao longo de um ms, um semestre ou um ano um grupo relativamente homog- neo de pessoas (aquilo que constitui um pblico) podia ver mais ou menos os mesmos filmes e ler os mesmos livros e conversar sobre eles, hoje esse mesmo grupo estar vendo filmes provavelmente os mais disparatados (se os estiver vendo) nas salas pblicas de projeo, na sua televiso ou na sua internet e poucas oportunidades ter de conversar a respeito de algo que possa ter se apresentado como uma experincia comum. A construo do gosto comum se perdeu, est sendo substituda por outra coisa. A cultura comum uma miragem. os meios de comunicao se multiplicam e as possibilidades de comunicao se estreitam. os paradigmas da cultura se abrem, os da educao se restringem. o choque inevitvel na forma da indisciplina na sala de aula, da violncia, da rejeio do que proposto ou imposto.

    A apatia do corao, no entanto, precisa ser vencida. Crer, como Sebald, que a literatura ou o cinema, ou as artes pode ajudar a romp-la importante. No mais preciso armar uma argumentao longa demais em defesa desse recurso. A questo agora encontrar os meios para que a poltica educacional siga os rumos da poltica cultural na direo de transformar-se em um meio de comunicao. A ao e os propsitos das polticas educacionais e das polticas culturais, no entanto, esto (ainda) em rota de coliso. E so os propsitos e aes das polticas educacionais que mais chance tm de se impor aos das polticas culturais, no o contrrio. A poltica dos pontos, que consiste em espalhar pela cena social aqueles atores encarregados de lembrar aos outros o que tm de dizer em todas as situaes, continua afirmando-se mesmo em tempos relativamente livres de governos ditatoriais ou autoritrios. No est dito em parte nenhuma como se pode superar essa situao, embora a riqueza dos novos meios de informao e comunicao abra, por si s, uma extraordinria via ao mesmo tempo desimpedida e lotada de detritos. o prprio Sebald termina seu ensaio sobre a estranheza, a integrao e a crise com o reconhecimento de que mesmo a literatura s pode transcender esse dilema caso mantenha a f nos discursos alternativos, na cultura no domesticada, e aprenda a operar com as imagens opacas de modo a prop-las como meio de comunicao. um projeto para a vida toda, a demandar todo o empenho possvel, toda a inventidade cabvel. uma aposta na ideia de que uma poltica cultural 6 Une rencontre. Paris: Gallimard, 2009.

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    livre de pontos pode, no apenas complementar a poltica educacional, como, em certas circunstncias e para certos efeitos, substitu-la. E talvez, nessa aposta, a prpria poltica cultural, hoje domesticada, encontre os meios para refundar-se. uma tarefa de peso. A poltica educacional que da sair ser talvez aquela que fornea uma prtica do sculo XXI feita para jovens do sculo XXI. uma prtica que impea que, ao final, esses jovens sejam retirados do circuito da existncia, literal ou simbolicamente, assim como Caspar Hauser foi impiedosa e talvez previsivelmente eliminado da cena em que o jogaram. um final feliz para o caso Caspar Hauser, um final moderno para esse caso, seria um final oitocentista no qual ele sairia de sua longa experincia pedaggica como um homem novo e livre. Esse final no parece compatvel com os atuais tempos ps-modernos. Hoje, quando a civilizao parece ter dado j o melhor de si mesma, como sugere Michel Maffesoli,7 ela sente a necessidade de voltar a suas origens e voltar a ser cultura e cultura uma longa conversa. do que sente falta a poltica da educao e, no raro, a poltica cultural: voltar a ser cultura, voltar a ser conversa. No caso, culturalizar a educao. Isso talvez se faa menos por uma poltica cultural substancialista que se preocupa com contedos e que busca distinguir entre os bons contedos e os contedos imprprios, algo nada desprezvel, como faz o prprio Sebald e mais por uma perspectiva mais prpria ao sculo, uma perspectiva que veja a cultura como uma troca permanente, uma performance cuja verdade esteja nessa relao de troca tanto quanto ou mais do que no contedo de alguma obra em torno da qual se faa a troca. Era essa a perspectiva interacionista de Edward Sapir para quem a verdadeira cultura est nas interaes individuais. Era essa tambm a perspectiva da cultura como performance de tipo orquestral, na linha de Gregory Bateson e sua escola de Palo Alto, para a qual os atores sociais se juntam para uma interpretao particular de um tema que poder ser menos ou mais anloga a outra interpretao do mesmo tema j feita anteriormente. So ambos caminhos largamente ignorados em sua poca, e ainda hoje. Embora uma partitura, um guia, um roteiro possa preexistir a esse processo, o resultado (a que se d o nome de obra de cultura) s vir a existir graas interao performtica dos participantes do conjunto. Cada contexto de execuo, de performance, tem suas regras e convenes, depende de expectativas e capacidades distintas e promover um resultado prprio. A cultura mostra-se, nesse quadro, um fenmeno instvel e que se materializa fenomenologicamente a cada execuo. um fenmeno instvel s pode ser abordado por uma

    7 Apocalypse. Paris: CNRS, 2009.

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    visada malevel. Relativizar a importncia dos contedos, apostar na interao que se constri topicamente a cada instante: o projeto de difcil preparao e difcil execuo. Mas os outros j foram tentados, com escasso grau de sucesso. Com a performance, a invaso pelos outros pode ser substituda por uma troca entre ns. A histria de Caspar Hauser termina mal porque essencialmente substancialista, baseada em contedos.8 No se tentou com Caspar Hauser uma verdadeira performance, uma troca. As artes descobriram desde os anos 1960 uma alternativa, que veio tona com esta palavra: performance. Sem ela, a educao e a prpria cultura pode repetir-se como tragdia sempre adiada e no entanto sempre reiterada. Com ela, talvez se possa evitar o cada um por si e deus contra todos. um especialista brasileiro em educao, Moacir Gadotti, observou h um bom tempo que tentar reduzir a educao a um s caminho para todos no apenas perigoso como perverso. A cultura como performance pode contornar esse obstculo. o filme francs Ser e ter, de 2002, dirigido por Nicholas Philibert, sobre uma pequena escola do interior rural da Frana na qual crianas de diferentes idades e graus de escolaridade estudam juntas, mostra com forte toque potico a performance da cultura em ao por meio de um professor sensvel. Ela s possvel nessa faixa etria? E j est desaparecendo para sempre, como sugere o filme?

    agosto de 2009

    8 J que estamos falando de filmes, a pelcula A onda (die Welle), de 2008, dirigida por dennis Gansel, mostra uma performance em ao no entanto totalmente orientada por uma proposta substancialista que emana de uma s direo, do professor para os alunos. E o resultado um desastre.

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    Natureza e cultura no constituem dualidades excludentes. So simultaneamente opostas e complementares. Como primatas humanos somos, simultaneamente, naturais porque inscritos numa complexa ordem biolgica; culturais porque capazes de produzir, acumular e comunicar estratgias de sobrevivncia e adaptao. Somos, portanto, 100% natureza e 100% cultura: seres vivos uniduais, carregamos conosco uma trajetria filogentica e ontogentica milenares e, igualmente, um vasto acervo cultural constitudo pela memria coletiva de espcie.

    Treinados pela educao familiar e escolar a afastar delrios, sonhos e loucuras da imaginao e recalc-los na psique, temos que reaprender a conviver e dialogar com esses lados obscuros de ns mesmos, escut- -los com ateno redobrada, introjetar em nossas mentes que somos, ao mesmo tempo, sbios e loucos, unos e mltiplos, duplos, triplos, qudruplos, e que exatamente esse componente dialgico, instvel e incerto, que viabilizar, sem excessos e ressentimentos, processos civilizatrios solidrios e procedimentos educativos religados. Nossa condio de sapiens sapiens demens nos permite viver, sobreviver, afrontar e, talvez, superar a insignificncia dos mal-estares ps-modernos, comandados pela unidimensionalidade da tecnocincia, pela compulso da conectividade, pela desrazo da poltica, pela insuficincia dos afetos.

    o conceito de cultura precisa ser redefinido no mbito da sociedade do conhecimento que bate nossa porta. Identificado como propriedade da Antropologia, suas mltiplas acepes acabaram por torn-lo ambguo, indeterminado, inconsistente. Primeiramente pensava-se que a civilizao ocidental era o pice da evoluo cultural. o restante do mundo era colocado nas sombras, classificado como primitivo, brbaro, sem estado, sem poder. Em anos posteriores, a cultura passa a ser identificada como regra, padro, ordem, regularidade. Ao lado da reificao da diversidade, o relativismo foi consequncia direta dessa postura hiperfuncional. Na sequncia, a cultura

    RELIGAo doS SABERES E EduCAo do FuTuRo

    Edgard de Assis Carvalho

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    passa a ser entendida como sinnimo de superestrutura desvinculada da produo e da reproduo sociais. Esse foi o pano de fundo para a consagrao das dualidades entre cultura erudita e cultura popular, cultura de massa e cultura das elites, cultura material e cultura imaterial e assim por diante.

    Edgar Morin considera a cultura como conceito-armadilha. Patrimnio da humanidade, a forma pela qual um problema global vivido localmente. Envolve uma totalizao de processos, estgios, fases, categorias, nveis e contradies, e essa totalizao nunca se efetiva pela mera soma das partes. Por isso, quando se olha um sistema cultural identificam-se saberes, padres de modelizao, cdigos, modalidades de existncia. a articulao desses quatro vetores baseados na relao homem-sociedade-espcie que d o tom da dinmica cultural de qualquer sociedade. Mesmo assim, a cultura portadora de uma zona obscura antropocsmica, uma espcie de buraco negro que nunca ser plenamente desvendado. nessa zona que as reservas imemoriais dos saberes humanos, cuja filognese remonta h presumveis 120 ou 130 mil anos, encontram-se depositadas. memria, patrimnio, complexidade.

    Em tempos lquidos de hoje, precisamos de um novo sujeito do conhecimento que reconhea o papel das tecnologias do infinitesimal, mas admita a fora propulsora e antecipatria das mltiplas criaes do imaginrio. Se fosse possvel traduzir esse metaponto de vista nu- ma planilha de valores universais, poderamos assumir a conservao no lugar da destruio, a cooperao no lugar da competio, a partilha no lugar da concentrao, a incluso no lugar da excluso, a solidariedade no lugar da xenofobia, a sustentabilidade ecolgica no lugar do desenvolvi- mento tecnolgico predatrio, a paz no lugar da guerra.

    Ao promover os quatro pilares da educao para o sculo XXI em torno de quatro formas de aprendizagem conhecer, fazer, viver junto e ser , a unesco estava imbuda da ideia de que a humanidade, a Terra-Ptria, no pode ser concebida como um meio escuso de obter lucros e vantagens, mas como um fim a ser construdo por todos e para todos. Trata-se de um processo complexo, a ser exercitado no apenas nas escolas, mas na vida em geral. um amplo programa coparticipativo, restaurador do homem genrico saturado de emoes, valores, utopias, empenhado na construo de um contrato planetrio natural e sociocultural, no qual animais e homens, natureza e cultura, real e imaginrio no se separem nunca mais.

    Cabe lembrar que em relatrio de 2007, intitulado Na direo das sociedades do conhecimento, a unesco estabeleceu uma importante

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    distino entre sociedades de informao baseadas em progressos tecnolgicos e sociedades do conhecimento que valorizam dimenses sociais, ticas e polticas. As formas da governana so importantes, mas o Estado no pode ser o nico balizador das polticas educacionais em curto, mdio e longo prazos.

    Acredito que a hegemonia da fragmentao que rege o dispositivo educacional impede que aes movidas por esses pressupostos sejam postas em prtica. Empenhada em transmitir contedos e formatar profissionais para um mercado rarefeito de trabalho, a escola, seja ela do ensino Fundamental, Mdio ou Superior, no leva em conta o fato de que a refundao do sujeito responsvel, exigida pela sociedade do conhecimento, requer como ponto de partida a religao e circulao dos saberes, cabeas bem-feitas sempre aptas a contextualizar e no cabeas-feitas fissuradas pelos contornos da hiperespecializao.

    Em qualquer nvel em que se exera, a educao deve se empenhar em concentrar esforos cognitivos sintonizados na construo de saberes universalistas que no neguem as diversidades, na formao de pensadores indisciplinados, capazes de enfrentar os desafios do conhecimento, na criao de novas formas de entendimento do mundo a serem viabilizadas e planejadas para a incerteza dos tempos futuros.

    A dupla funo da educao consiste em acoplar necessidades bsicas de formaes e competncias, com atitudes metaprofissionais sintonizadas com a natureza, a cultura, o cosmo. Se, em sua quase totalidade, as formas da gesto educacional favorecem a replicao de um modelo pedaggico fechado e endogmico, qualquer esforo de reforma pressupe a transdis- ciplinaridade como horizonte necessrio e a transversalidade de mtodos, conceitos e teorias como foco primordial.

    As inquietaes expostas por Karl Marx em sua terceira tese sobre Feuerbach so de uma atualidade sem precedentes. Se concordarmos com a assertiva marxiana de que qualquer teoria da mudana das circunstncias scio-histricas e da educao exige a educao dos educadores, preciso agir rpido antes que seja tarde demais. Como fazer isso? Fomentando a identidade entre cincias e artes, cincias e tradies, razo e sensibilidades, artes e espiritualidades, cultura cientfica e cultura das humanidades. Esse deve ser o protocolo intencional mnimo de qualquer governo, partido, das instituies de ensino e pesquisa e, claro, da sociedade civil em seu conjunto.

    Cultura e arte, cultura e imaginao, cultura e democracia so entrelaa-mentos a serem postos em prtica aqui e agora. Toda vez que instauradores

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    de discursividades utilizaram-se das expresses metafricas das artes para ampliar o carter metonmico da cincia, os saberes culturais se enriquece-ram, a educao viu-se gratificada. Vejamos quatro momentos escolhidos ao acaso na vasta histria dos saberes em que isso ocorreu.

    Humberto Maturana e Francisco Varela abrem o livro A rvore do conhecimento com o Cristo coroado de espinhos, de Hieronymus Bosch (1450-1516). Para os autores, o quadro expressa os perigos das tentaes da certeza. No centro, Cristo revela imensa pacincia diante dos verdugos que o circundam. Transposta para tempos atuais, tambm necessitamos de pacincia redobrada diante dos dispositivos de controle impostos s formas do conhecimento. No canto direito da tela, um dos verdugos segura Jesus pelo manto. Restringe sua liberdade, parece dizer apenas eu sei e mais ningum. Certezas demais, convices demais.

    Edgar Morin refere-se com frequncia a Giuseppe Archimboldo (1527-1593). Suas telas expressam as alegorias da harmonia e do caos, a interdependncia dos quatro elementos terra, fogo, gua e ar , das estaes do ano, a complementaridade de flora e fauna, o peso da acumulao dos saberes. o Bibliotecrio expressa a embriaguez simblica do saber, como se todos ns fssemos inundados por maremotos de livros e nos metamorfosessemos em livros em que as sabedorias so objetivadas. A cortina que se encontra a seu lado o protege das intempries do frio e da intolerncia dos asseclas. Como o Bibliotecrio de Archimboldo, precisamos de muitas cortinas para nos defender dos malefcios da fragmentao e da barbrie do pensamento.

    Ilya Prigogine, Nobel de Qumica de 1977, concentrou-se em Ren Ma- gritte (1898-1967) em vrios ensaios. Para Prigogine, as imagens de Magritte enfatizam os mistrios da vida. Se a histria humana possui um carter no determinista e se o futuro nunca est dado, devemos privilegiar as experincias da criatividade, abertas, poticas e polifnicas, para no sucumbirmos na repetio prosaica, equilibrada demais. A arte de viver expressa exatamente esse dilema: a luminosidade da criatividade, a singeleza da repetio. Na parte inferior do quadro, um terno completo sem cabea. A imagem traduz o dia a dia da repetio. Acima, a luminosidade da esfera que contm um pequeno rosto ao centro despregado do resto, como se corpo e mente fossem realidades excludentes, irreconciliveis.

    Fernando dinis viveu num manicmio judicirio, pois, segundo constam dos autos judicirios, andava nu pelas areias de Copacabana. Em 1949, foi internado no Centro Psiquitrico d. Pedro II, de onde nunca mais saiu at sua morte, em 1998. Iniciou-se nos atelis de Nise da Silveira,

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    psiquiatra anticartesiana que, no lugar do eletrochoque, colocou nas mos dos pacientes tintas, telas, barro, animais. dinis produziu cerca de trinta mil obras: tapetes, mandalas, modelagens. Mudei para o mundo das imagens; o pintor, ele afirmou, feito um livro que no tem fim. Premiado em 1996 no festival de cinema de Gramado pelo curta-metragem A estrela de oito pontas, no compareceu cerimnia. Sua ltima exposio foi no Museu Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro, um ano antes de seu falecimento.

    Acredito que a misso da educao deva se inspirar nesses exemplos, pois eles desfazem fronteiras, entrelaam pensamentos, religam razo e emoo, racionalismo e sensibilidade, sabedoria e loucura, consciente e inconsciente, arte e cincia. So circuitos auto-organizados que se retroalimentam mutuamente e traduzem esperanas, desvarios, reor- ganizaes.

    No plano da educao e da formao da conscincia, esse fato se traduz na substituio da compulso disciplinar e quantitativa pela pulso de saberes transdisciplinares qualitativos, na negao das dualidades presentes no pensamento moderno pelo menos desde descartes, na aceitao da interminvel tenso entre local e global, particular e universal. A educao dos educadores tem de reconhecer, e assumir, que a funo escolar deve estabelecer e refundar as complexas conexes e interconexes entre presente, passado e futuro, sem que isso seja feito de forma linear ou determinista.

    A transdisciplinaridade no mtodo, mas estratgia, caminho errtico que atravessa os saberes. Caminhante no h caminho, o cami- nho se faz ao andar, afirmou Antonio Machado em um de seus poemas. No se trata, portanto, de um receiturio de procedimentos e etapas a serem operacionalizados diante de objetos inertes. A palavra assusta, porque mexe com certezas consolidadas e nichos de poder. Na verdade, trata-se de um domnio cognitivo que se localiza alm das disciplinas, uma atitude terico- -conceitual-metodolgica assemelhada a uma viagem sem porto definido. Exige conhecimento sedimentado das reas-tronco do pesquisador, mas vai alm delas, para atingir a complexidade dos problemas scio-histricos. um intelectual transdisciplinar tem a coragem de sair da competncia especfica para acessar a pluralidade dos saberes, a grande narrativa, como pretende Michel Serres.

    Mesmo que seja perceptvel em campos emergentes como a ecologia, a cosmologia, as cincias da terra e da cognio, a transdisciplinaridade no sepulta a figura do especialista, o que seria algo insensato, mas aposta na formao de educadores sistmicos, polivalentes, abertos, mestios,

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    arlequinados, reflexivos, crticos, exlicos, amorosos, utpicos. Talvez esse venha a ser o perfil do intelectual do sculo XXI: um outsider que ultrapassa as fronteiras de seu saber especfico para empenhar-se no diagnstico da incerteza do mundo. Por isso, os cruzamentos transdisciplinares no propem um sincretismo entre cincia e religio, cincia e arte, cincia e mito, mas um dilogo hbrido permanente entre esses circuitos dos saberes.

    o que se busca so metapontos de vista a partir dos quais se possam entender os formatos multidimensionais da vida. Se sua base biolgica e scio-histrica, no mais possvel isolar o natural do cultural, mas sim ir alm deles. Saberes transdisciplinares so nutridos pelas polifonias da arte, da poesia, da filosofia, da cincia, da tradio, sem que se estabelea nenhuma diferena de natureza ou grau entre elas. Graas a estudos trans- -histricos e transreligiosos e ao surgimento de conceitos novos como os de transnacionalidade e transpoltica, delineiam-se condies epistemolgicas capazes de inaugurar uma ecologia profunda, conduzida pela razo aberta e retroalimentada por dialogias, recursividades e hologramas.

    os sete saberes necessrios educao do futuro (Morin, 2000) propostos por Edgar Morin para a reforma do Ensino Mdio francs, em 1997, nos estertores do governo socialista de Franois Mitterand, mesmo que no tenham sido implementados, constituem importante fonte de inspirao, um bom comeo para se repensar a educao no Brasil, se aplicados e problematizados em todas as reas do pensamento e em todos os nveis do ensino, privado, pblico ou comunitrio.

    As cegueiras do conhecimento, a objetividade das certezas, as inter- mitncias da condio humana, os percalos da identidade terrena, o carter provisrio da cincia, os obstculos compreenso, as intolerncias interculturais, as utopias da antropotica e da comunidade de destino de- vem ser cotidianamente problematizados, dadas as contradies da Idade de Ferro planetria em que vivemos. Esses sete saberes so buracos negros do conhecimento, afirma Morin. Claro que no devem ser entendidos como disciplinas, programas ou sequncias de pr-requisitos curriculares. So, isso sim, um conjunto de operadores cognitivos a serem postos em marcha por pensadores plurais empenhados em repensar o papel da educao.

    Se for necessrio que o princpio da incerteza racional contamine a todos, que isso seja feito e assumido sem maiores delongas. A sociedade tem que desobedecer o paradigma do ocidente, disjuntor do sujeito e do objeto, para que o pensamento selvagem, imaginal, prximo da intuio sensvel, assuma seu devido lugar. No se trata de denegar a fora da razo, mas introjetar que a via racional no a nica forma de acessar o real por

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    meio de teorias, conceitos, proposies. o imaginrio contido nos mitos, na literatura, na msica, no cinema so exemplos disso. Se real-imaginrio totalidade indivisvel, precisamos aprender a religar parte e todo, texto e contexto, local e planetrio, para que os paradoxos gerados pelo globalismo tecnoeconmico no sejam assumidos como redutos unidimensionais da certeza. Passar a entend-los como incompletos, inconsistentes e indefinveis um bom comeo para a almejada mudana de paradigma e para a reforma do pensamento.

    Assumir que a educao do futuro deve conter como preceito inegocivel a tica da compreenso planetria implica entend-la no como proposies abstratas, ou como planilha de regras formais outorgada pelos donos do poder, mas como atitude deliberada de todos aqueles que acreditam que a cultura de paz, a construo de solidariedades nacionais e transnacionais, a consolidao das democracias, a efetiva colaborao entre todas as culturas da Terra no algo intangvel.

    A religao dos saberes que serve de ponto de partida para a realizao desses metapontos de vista no se situa no plano das ideias e das utopias no realizveis. teoria e prtica, ao poltica, prtica tica, reflexo criativa, negao da certeza, reconhecimento do erro. A palavra religao define a inteno de superao das dicotomias cartesianas. Ela no acaba com as disciplinas, sejam elas quais forem.

    Seria descabido e insensato no reconhecer os progressos dos conhecimentos no mundo contemporneo. A religao requer, porm, um choque cultural que invista contra as estruturas da repetio tecnoburocracia escolar, programas superados, estratgias de dominao, bibliografias ultrapassadas e aposte nas estruturas da criatividade os desregramentos das artes, a polifonia da literatura, a esttica dos mitos, as incertezas das teorias e modelos.

    A repetio apaziguadora; , igualmente, esquizofrnica, pois cria um sujeito cindido consigo mesmo. Na sala de aula uma coisa; na atividade cidad, outra. o sujeito sempre endo e exorreferente, duplo, razo e loucura. Intelectuais costumam separar a vida do sujeito da enunciao, das ideias que professa. Esquecem-se de que tudo aquilo que dizemos produzido por uma histria pessoal, por vezes cheia de sofrimentos, dores, percalos e algumas poucas alegrias.

    A restaurao do sujeito responsvel na educao requer a explicitao da dialogia vida-ideias. Claro que a convivncia entre ambas nunca plenamente pacfica. , porm, do embate entre elas que um novo sujeito do conhecimento poder emergir. Toda vez que a cincia progrediu no

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    mundo, pelo menos a partir do sculo XVII, a criatividade explodiu sem controle. Foi assim com darwin, Freud, Marx e tantos outros pensadores que instauraram a criatividade e no ficaram refestelados no conforto da repetio (Carvalho, 2008).

    Com vontade poltica, desapego individualista, abertura cognitiva e conscincia espiritual no impensvel admitir que a educao sustentvel, ou a ecoalfabetizao, se preferirmos, a nica sada para nosso futuro. preciso ir alm das leis de equilbrio e da fbrica da ordem da cultura, assim como das regulaes que os paradigmas do mercado e da informao tentam impor a todos.

    o futuro sempre indeterminado, composto por fluxos, brechas, desordens, pontos de fuga. Por isso mesmo, a emergncia de uma nova aliana entre mundo fsico, mundo biolgico e mundo cultural constitui o pressuposto irreversvel, crucial, inadivel, a ser posto em marcha por uma educao que se paute pela sustentabilidade dos ecossistemas da Terra, pela codependncia entre os nveis inorgnico, orgnico e superorgnico. o reencantamento da cincia base do reencantamento do mundo. Trata- -se, portanto, de uma nova aliana entre as esferas da vida. Esse o sentido da metamorfose. Saberes cientficos, afirma Prigogine, no so nada mais nada menos do que escutas poticas da natureza, processos abertos de produes e invenes (Prigogine e Stengers, 1984).

    Para que esse amplo objetivo transdisciplinar seja ultimado, a tica deve ser assumida como valor universal. Essa universalidade no constitui, porm, um catlogo de regras abstratas elaboradas por comits, comisses ministeriais, conselhos sociais. Trata-se, isso sim, de uma vivncia relacional cotidiana a ser elaborada a duras penas diante da crueldade do mundo e do mal-estar civilizatrio.

    Constante em todas as pocas e lugares, a tica e os atos que a sustentam constituem o alvo mximo de todos os humanos. o que significa ser tico? possvel legislar sobre o que e o que no tico, se o ethos, a casa comum, vem sendo degradado e vilipendiado a cada dia que passa? foroso reconhecer que estamos enredados num jogo csmico, um sistema de foras composto por dois quadrimotores: de um lado a religao, a separao, a integrao e a desintegrao; de outro, a cincia, a tcnica, a tica, a sustentabilidade. Cabe ao sistema-mundo decidir se religao e integrao, assim como tica e sustentabilidade, prevalecero sobre os demais. No primeiro caso, pode-se prever a consolidao de uma biopoltica da civilizao terrena; no segundo, a expanso incontrolada da barbrie.

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    Se, de acordo com o preceito kantiano, no se deve fazer aos outros aquilo que no se quer que seja feito para ns mesmos, a tica constitui sempre um ato universalista de religao com o sujeito, a comunidade, a histria, a humanidade, o cosmo e o conjunto dos saberes. Como ato humano que , a tica mergulha na incerteza do mundo. Se os humanos vivem de acertos e erros, sucessos e insucessos, avanos e retrocessos, os julgamentos ticos e na educao eles so prioritrios devem sempre ser colocados entre parnteses, assim como a objetividade, a sexualidade, a racionalidade e as racionalizaes. Felicidade, risco, precauo, solida- riedade, obedincia, revolta, devem pesar em qualquer ecologia da ao voltada para atos ticos.

    claro que as revolues cientficas dos sculos XVII e XVIII promo- veram um reviravolta na totalidade dos modos de ser e instalaram a hegemonia da razo, da lgica, do empirismo, da hiperespecializao. o afastamento do caminho do viver bem abriu caminho para um mundo poroso em que se repete, mais do que se cria. o mundo da imaginao potica cedeu lugar realidade da vida prosaica e as promessas prometeicas das tecnocincias.

    Camuflada por liberdades outorgadas, cinismos explcitos e excluses ampliadas, essa sociedade do controle e da desigualdade espraiou-se para os reinos da poltica e da cultura. Pequenas felicidades aliadas a duvidosas ticas privacionistas passaram a compensar a imensa dependncia eco- nmica, social, poltica que se instalou no mapa-mndi a partir do esclarecimento das Luzes, da escurido das guerras, da perda das grandes narrativas, da intolerncia das diversidades.

    o tema da tica envolve sempre trs circuitos complementares alicerados na trade indivduo-sociedade-espcie: autotica, voltada para a meditao das aes e sentimentos que vivenciamos a todo momento, sejam elas o lazer, a alegria, o amor, o sofrimento, a dor, o companhei- rismo, a amizade; sociotica, dirigida para relaes que travamos com os outros, no sentido de garantir um quantum de solidariedade que viabilize as agruras globalizadas com as quais nos defrontamos a toda hora; antropotica, fundada na identidade humana comum, na preservao e na sustentabilidade de nossa terra-ptria, algo que, simplesmente, garanta para as futuras geraes o direito de existir.

    No h palavras de ordem, apenas caminhos, horizontes, proposies, precaues, formatos, que vislumbram o papel da tica na cultura, na edu- cao e, claro, na pesquisa praticada em instituies, rgos estatais de amparo pesquisa, polticas ministeriais, rgos privados preocupados com

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    a questo cultural. Refletir sobre eles, repensar o papel que desempenhamos na formao de geraes responsveis pelos destinos planetrios tarefa urgente. A tica no se reduz moral, sempre implica retorno s fontes csmicas primordiais. A cultura mola mestra que abre coraes e mentes, solo do humanismo planetrio. No sinnimo de erudio ou artefato das elites. A educao processo contnuo que contm oceanos de incertezas, arquiplagos de dissipaes.

    Em decorrncia disso, possvel admitir uma nova hominescncia, uma emergncia hominiana, como denominou Michel Serres (2003). Esse neologismo soa como grito de alerta que coloca todos sob a gide do princpio da responsabilidade intercultural. Em primeiro lugar, foroso reconhecer que as biotecnologias mudam nossas relaes com a durao, assim como bombas atmicas, guerras e genocdios alteram nossas relaes com a morte. Nunca dispusemos de tantos meios para melhorar o mundo e, mesmo assim, no o fazemos. Nossos poderes mudaram de escala.

    onipotentes e inconscientes de nossa fragilidade, devastamos os ecossistemas de tal maneira que, nessa primeira dcada do sculo XXI, vivemos sem garantias de um futuro sustentvel. Esse o sentido da hominescncia: uma esperana que se mescla com inquietudes generalizadas e medos recalcados. Permanece o hiato, afirma Serres, entre o homo terminator, voltado para as destruies, e o homo universalis, responsvel por si mesmo e pelo mundo. Ser possvel que um deles prevalea sobre o outro?

    Ao separar corpo e mente, a cincia reduziu o primeiro a experincias de treinamento e repetio, e a segunda a circuitos neuronais espe- cializados. Empenhados em relig-los, os novos educadores tero de assumir o fato de que o segredo da vida permanece em aberto, e isso porque a hominizao se processa por meio de desvios, equilbrios, desordens e bifurcaes que envolvem mltiplas aes e retroaes entre a mente e a natureza, o contingente e o necessrio, o autnomo e o heternomo. Esses saberes constituem circuitos de hominescncia, formataes culturais a serem operacionalizadas nas instituies escolares, cuja funo preparar as futuras geraes para o advento de uma sociedade-mundo solidria, regeneradora da dignidade humana no planeta, nossa habitao comum.

    Reassumir esse programa de ao cultural coletiva implica redi- mensionar a universalidade da cultura. No, a cultura no termina nas fronteiras da tribo, da cidade, da nao. algo mais amplo, constitudo por um mosaico de mltiplas cenografias. Nele se articulam espaos

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    topolgicos e projetivos, tempos curtos e longas, microespaos e macro- espaos, planos reversveis e irreversveis.

    A imagem da marchetaria formulada por Serres adequada para designar o formato desse pressuposto. ela que d consistncia e expressividade grande narrativa. nossa pequena famlia mundial que, em meio a guerras, violncias, extermnios e desigualdades, se incumbe de tec-la. A reconstruo do sujeito, os jogos de linguagem, a boa utopia de um futuro responsvel, so os alicerces de uma mutao incandescente para todos os seres vivos. Reservatrio de matrias, conservatrio de imagens, nossa Terra requer um homem afinado com valores universais e ticas comuns a todos.

    Imbudo desse iderio, Serres (2005) chegou a solicitar s universidades que reformassem seu ensino em prol de um saber comum. Em sua formulao, havia um pressuposto geral dividido em dois macroblocos: o primeiro, empenhado na construo de uma configurao cartogrfica formada pelas ditas cincias duras que j atingiram a universalidade trata-se de um registro complexo da evoluo da cronopdia; o segundo constitudo pelo mosaico das formas e cores das diversidades culturais. A assimilao dessas diferenas e sua insero na universalidade deve ser assumida e tratada pelas pedagogias.

    Assumido o pressuposto, passa-se ao programa comum para o primeiro ano das universidades. Ele se subdivide em trs grandes plataformas: a primeira, incumbida de explicitar o programa comum da especialidade escolhida pelo alunado no ingresso universitrio; a segunda, de carter propedutico, intitulada A grande narrativa unitria de todas as cincias, composta por quatro unidades: elementos de fsica e astrofsica, elementos de geofsica, qumica e biologia, elementos de antropologia geral, elementos de agronomia, medicina e explicitao das mltiplas passagens da natureza cultura e das relaes dos homens com a Terra, a vida e a humanidade. Finalmente, a terceira plataforma, intitulada O mosaico das culturas humanas, portadora de carter mais epistmico. Envolve cinco unidades: elementos de lingustica geral, evoluo das linguagens da comunicao, elementos da histria das religies, elementos de cincias polticas e, finalmente, a anlise de obras-primas das artes e das sabedorias milenares e a construo do conceito de patrimnios da humanidade.

    Se a educao do futuro vier a ser contaminada por essas trs plata- formas de conhecimento, os saberes culturais transdisciplinares constituiro uma reserva cultural comum e universal, patrimnio histrico a ser acessado e preservado por todos os sapiens demens da Terra. Pensar os

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    saberes no sculo XXI implica enfrentar as crises da escola e suas possveis superaes, assim como recriar novas humanidades e, antes de mais nada, aprender a pensar de outro modo. Incrvel constatar, por exemplo, que o fenmeno do iletrismo se espalha por toda parte, como atestam dados empricos sistematizados em recentes pesquisas. vigilncia cognitiva imposta pela fragmentao soma-se a violncia do Estado, obcecado por ndices, avaliaes, classificaes, hierarquias.

    A globalizao da cultura gerou um conjunto de midiaesferas, blogosferas, videoesferas e tantas outras que venham a ser criadas para estocar e propagar o vasto acervo cultural da hipermodernidade. Em si mesmas no so boas ou ms, depende de quem as aciona. A quantidade de informaes que veiculam no consegue, porm, produzir mutaes paradigmticas capazes de gerar ou comandar revolues cientficas. de um lado excitam a curiosidade pelo acmulo de informaes; de outro, castram a criatividade, que, como se sabe, o centro nevrlgico da cultura.

    A formao da cidadania planetria exige especialistas policom- petentes, mas tambm cidados imbudos da necessidade de reformar a cultura. Saberes complexos transversais que sempre envolvem a espiritualidade, a sistmica e a sinergia so regeneradores da condio humana. o formato dessa poltica horizonte inacabado, um projeto e um processo de reticulao em redes no hierrquicas nas quais o trinmio controle-poder-saber poder ser revertido. Como toda reinveno que se processa na noosfera, ela necessita de uma revoluo notica, ou seja, novas linguagens, proposies, polticas e, claro, organizaes democrticas que sustentem o dilogo intercultural. outrora semelhante a um gro denso ou um pequeno cascalho escuro, nicos e duros, o eu agora torna-se mltiplo, transversal, rutilado, assemelhado a um mosaico (Serres, 2003, p. 294). Talvez por isso, quando perguntaram a Einstein o que era a educao, ele tenha respondido que a verdadeira educao tudo aquilo que se aprende quando se sai da escola.

    No caso brasileiro, os pilares da dita crise universitria tm a ver com tudo isso. Enquanto a universidade no se empenhar na religao da cultura cientfica e da cultura das humanidades, a disciplinaridade e a fragmentao permanecero hegemnicas. Alis, esse fato j havia sido motivo de alerta por parte de Charles Snow em 1959 [1995]. Fechar o fosso entre as duas culturas, afirmou ele, uma necessidade intelectual e prtica. Em sintonia com esse alerta, darcy Ribeiro, cujas ideias foram fundamentais para a renovao de muitas universidades latino-americanas e escolas dos ensinos Fundamental e Mdio, costumava afirmar que a funo da escola

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    dominar o conhecimento de seu tempo para poder transmiti-lo s futuras geraes, alertando-as sobre o carter transitrio dos saberes.

    A universidade brasileira produto tardio sem tradio consolidada. bom relembrar que a universidade de So Paulo (uSP) foi criada em 1934 pela misso francesa. Temos que levar em conta tambm que o golpe de 1964 e os quinze anos de ditadura militar ceifaram a universidade no que ela tinha de mais relevante e inovador, tanto nas cincias da natureza quanto nas cincias da cultura. No houve reposio qualitativa dos quadros do pensamento. No conseguimos formar especialistas policompetentes empenhados na reforma da educao. o crescimento quantitativo e populista das universidades no sinnimo de ampliao de qualidade. Quando muito, o que se identifica uma intelocracia sem consistncia terica relevante, embora ilhas de excelncia possam ser identificadas. dependente do poder do estado, legisla em causa prpria, no consegue propor nenhum tipo de reforma, por mnima que seja. A dicotomia ensino pblico-ensino privado expresso disso (Carvalho, 2008).

    Precisamos de novas polticas democrticas que no diabolizem as instituies privadas em detrimento de apregoadas excelncias presentes nas pblicas. o Estado deve redirecionar sua poltica, estend-la a todos os setores culturais, para que a escola se democratize. Caso isso ocorra, o trinmio controle-poder-saber pode ser revertido. Esse o sentido da democracia: saber conviver com as diferenas, despregar-se do imediato para que o sujeito contextual seja contaminado pela lgica da audcia baseada na metamorfose dos saberes, e no se submeter lgica da conveno cujo carter normativo e regulador impede a emergncia de processos criadores e no contribui em nada para a regenerao da cultura, da educao e da cidadania.

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    refernCias bibliogrfiCas

    CARVALHo, E.A. preciso religar os saberes (entrevista). Escola particular, ano 11, n. 118, jan. 2008, p. 13.

    . o conflito das universidades (entrevista). Cult, n. 138, ago. 2009, pp. 45-64.MoRIN, E. Os sete saberes necessrios educao do futuro, Catarina Eleonora F. da Silva e

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    . O incandescente. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco (trads.).Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

    SNoW, C.P. As duas culturas e uma segunda leitura. Geraldo Gerson da Souza e Renato de Azevedo Rezende (trads.). So Paulo: Edusp, 1995.

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    Consequentemente, se quisermos dar um equi- pamento cultural melhor para os membros das novas geraes, a primeira frente de ataque no estar na instituio escolar, mas, sim, fora dela, mais precisamente nesse terreno difuso mas decisivo que chamamos de cultura (da Silveira, 2003).

    AS RELAES ENTRE CuLTuRA, EduCAo E CoMuNICAo

    Neste artigo, quando falamos de cultura e educao, no nos referimos apenas educao artstica e tambm no nos limitamos linha de inves- tigao contempornea, centrada na educao intercultural de carter mais tico e social, mas, sim, falamos das complexas inter-relaes entre usos, procedimentos e identidades culturais, comunicao e educao. Nessas relaes tambm esto includas, claro, a arte e a diversidade cultural.

    de acordo com vrios autores,1 nesse cruzamento de conceitos ou espao de interseo (comunicao, cultura e educao), encontram-se muitas das chaves para entender o contexto de crise em que se inscreve o modelo escolar (quando no o sistema educacional ou a educao) e onde encontramos o professor desorientado que liderava esse encontro.

    Partimos, portanto, de uma perspectiva sobre essa questo que nos parece muito mais aberta. um olhar que considera a introduo, nes