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208 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 4, n. 8, p. 208-228, 1º sem. 2001 CULTURA ACÚSTICA E MEMÓRIA EM MOÇAMBIQUE: AS MARCAS INDELÉVEIS NUMA ANTROPOLOGIA DOS SENTIDOS José de Souza Miguel Lopes * RESUMO N este trabalho propomo-nos abordar inicialmente o lugar ocupado pelo modelo sensorial auditivo numa Antropologia dos sentidos. Em seguida analisaremos o modo como o fenômeno da repetição se torna essencial para preservar o pensamento cuidadosamente articula- do numa cultura acústica. Seguidamente trabalharemos as complexas relações entre memória e reconstituição do passado e entre memória e poder. Finalizaremos nosso texto com uma análise das implicações da introdução da escola numa cultura acústica bem como o papel desem- penhado pela escola que se afigura determinante na produção de lem- branças e no processo de recordação. * Ex-Diretor Nacional de Formação de Quadros de Educação no Ministério da Educação de Moçambique. Doutor em História e Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. U ma idéia só pode propagar-se no espaço se antes atravessar o tempo, ou seja, se resistir ao esquecimento, ao engano ou à falsificação e ao mesmo tempo permanecer viva, evolutiva e fértil. Para tanto, precisa fixar-se – pri- meiro na memória, depois na matéria. O paradoxo é apenas aparente, pois o que essa fixação antecipa e garante é o próprio movimento do pensamento. Se a memória é o primeiro vetor da transmissão das idéias, é ao exteriorizá-las em suportes que sua inscrição prolonga sua vida além dos limites do orgânico do indivíduo. Dessa forma

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  • Jos de Sousa Miguel Lopes

    208 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 4, n. 8, p. 208-228, 1 sem. 2001

    CULTURA ACSTICA E MEMRIA EMMOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEISNUMA ANTROPOLOGIA DOS SENTIDOS

    Jos de Souza Miguel Lopes*

    RESUMO

    Neste trabalho propomo-nos abordar inicialmente o lugar ocupadopelo modelo sensorial auditivo numa Antropologia dos sentidos.Em seguida analisaremos o modo como o fenmeno da repetio setorna essencial para preservar o pensamento cuidadosamente articula-do numa cultura acstica. Seguidamente trabalharemos as complexasrelaes entre memria e reconstituio do passado e entre memria epoder. Finalizaremos nosso texto com uma anlise das implicaes daintroduo da escola numa cultura acstica bem como o papel desem-penhado pela escola que se afigura determinante na produo de lem-branas e no processo de recordao.

    * Ex-Diretor Nacional de Formao de Quadros de Educao no Ministrio da Educao de Moambique.Doutor em Histria e Filosofia da Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

    Uma idia s pode propagar-se no espao se antes atravessar o tempo, ouseja, se resistir ao esquecimento, ao engano ou falsificao e ao mesmotempo permanecer viva, evolutiva e frtil. Para tanto, precisa fixar-se pri-meiro na memria, depois na matria. O paradoxo apenas aparente, pois o que essafixao antecipa e garante o prprio movimento do pensamento. Se a memria oprimeiro vetor da transmisso das idias, ao exterioriz-las em suportes que suainscrio prolonga sua vida alm dos limites do orgnico do indivduo. Dessa forma

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    CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEIS...

    a mensagem desprende-se do corpo e do sujeito para ela prpria incorporar-se emum rgo de memria e difuso, que sobrevive ao corpo e ao sujeito originais. Doslex ao computador, os instrumentos que serviram para modelar esses suportes tra-zem em si a marca de uma antecipao: toda prtese tcnica representa uma primei-ra vitria do esprito sobre a finitude humana, um primeiro passo na direo dooutro, esteja ele distante no espao e no tempo.

    Ns, que vivemos imersos na escrita, tendemos a achar difcil imaginar quediscursos extensos, especialmente os feitos no passado, possam ser citados e preser-vados sem o auxlio da escrita. Mas isso possvel. As tradies orais e o conhecimen-to especializado podem ser preservados e transmitidos sem os recursos arquivsticosde que dispomos atualmente. Mesmo os estudiosos da Idade Mdia, que conheciame usavam extensamente a escrita, na maior das suas atividades acadmicas se apoia-vam primordialmente na memria e no em documentos escritos (Carruthers, apudOlson, 1997, p. 115).

    Numa cultura acstica, mais baseada no som, no ouvido, do que no visual,no escrito, para resolver efetivamente o problema da reteno e da recuperao dopensamento cuidadosamente articulado, preciso exerc-lo segundo padres mne-mnicos, moldados para uma pronta repetio oral. O homem moambicano recor-re msica e dana, s imagens poticas, particularmente s metforas. Lana mode repeties e redundncias, de frases feitas, de provrbios. uma oralidade rtmicae corporal, imaginativa e potica, que emerge do interior, da voz, e penetra no interi-or do outro, atravs do ouvido, envolvendo-o na questo. Os integrantes desta cultu-ra invariavelmente sabem escutar e narrar, contar histrias e relatar, utilizando umaenorme riqueza expressiva, na qual se conjugam preciso e clareza.

    O pensamento deve surgir em padres fortemente rtmicos, equilibrados,em repeties ou antteses, em aliteraes e em expresses epitticas ou outras ex-presses formulares, em conjuntos temticos padronizados (a assemblia, a refeio,o duelo, o ajudante do heri e assim por diante), em provrbios que so constante-mente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente ao esprito, e que so elesprprios modelados para a reteno e a rpida recordao ou em outra forma mne-mnica.

    O fato de os povos orais comumente e muito provavelmente em todo omundo julgarem as palavras dotadas de uma potencialidade mgica est estreita-mente ligado, pelo menos inconscientemente, a sua percepo da palavra como ne-cessariamente falada, proferida e, portanto, dotada de um poder. Os povos profunda-mente tipogrficos esquecem-se de pensar nas palavras como primariamente orais,como eventos e, logo, necessariamente portadoras de poder: para eles, as palavrastendem antes a ser assimiladas a coisas, l, em uma superfcie plana.

    Uma cultura oral, como a moambicana, no dispe de textos escritos. Os

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    seres humanos desta cultura oralista1 aprendem muito e possuem grande sabedoria,mas no estudam. Como renem material organizado para que possa ser recorda-do? Como se torna possvel trazer memria aquilo que se prepara to cuidadosa-mente? A nica resposta : pensar coisas memorizveis.

    A cultura se relaciona estritamente com a memria e com os procedimen-tos disponveis, numa determinada sociedade, de processamento, armazenagem etransmisso das informaes. Neste sentido, os limites da memria determinam acriao de vrios recursos para a sua conservao.

    Em uma cultura acstica, pode no haver palavras como aquelas quecomumente procuramos no dicionrio. Nesse tipo de cultura, intervalos silenciosospodem constituir uma slaba ou uma sentena, mas no o nosso tomo: a palavra.Todas as expresses vocais so aladas, desaparecendo para sempre antes mesmo deserem totalmente pronunciadas. A idia de fixar essas expresses em uma linha, oumumific-las para posterior ressurreio, no sequer ocorre. Portanto, a memria,em uma cultura acstica, no pode ser concebida como armazenamento ou tabui-nha da cera.

    Assim, neste trabalho propomo-nos abordar inicialmente o lugar ocupadopelo modelo sensorial auditivo numa Antropologia dos sentidos. Em seguida anali-saremos o modo como o fenmeno da repetio se torna essencial para preservar opensamento cuidadosamente articulado numa cultura acstica. Seguidamente tra-balharemos as complexas relaes entre memria e reconstituio do passado e entrememria e poder. Finalizaremos nosso texto com uma anlise das implicaes daintroduo da escola numa cultura acstica bem como o papel desempenhado pelaescola que se afigura determinante na produo de lembranas e no processo derecordao.

    O LUGAR DA ACSTICA NUMA ANTROPOLOGIA DOS SENTIDOS

    Tendo em vista as diferenas de significao dos sentidos que podem destemodo existir entre as culturas, a Antropologia dos sentidos sustenta que os modelos

    1 Ong (1982), utiliza o conceito de cultura oral primria, referindo-se a um tipo de sociedade que se encontrepreservada de qualquer contato com as sociedades de culturas escritas, e/ou na qual nenhum dos seus mem-bros letrado. Trata-se, portanto, de uma categoria abstrata, no mais aplicvel a nenhuma sociedade indgenaatual. Ong vem sendo criticado por diversos representantes da moderna antropologia lingstica, que lheatribuem excessiva simplificao e polarizao na anlise das sociedades consideradas orais e escritas, igno-rando seus aspectos mistos e conflitivos.Ela primria por contraste com uma oralidade secundria da cultura contempornea de alta tecnologia, naqual uma nova oralidade sustentada por aparelhos eletrnicos como o telefone, o rdio, a televiso e outros cujo funcionamento depende da existncia da escrita e da impresso (Ong, 1982, p. 11).

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    sensoriais universalistas da cultura, quer sejam visuais ou auditivos, quer se apoiemno texto ou na palavra, devem dar lugar explorao de ordens sensoriais prpriasdas culturas.

    No h como deter e possuir o som. Posso deter uma cmara cinematogr-fica e fixar um quadro na tela. Se detiver o movimento do som, no tenho nada apenas silncio, ausncia absoluta de som. Toda sensao ocorre no tempo, mas ne-nhum outro campo sensorial resiste completamente a uma imobilizao, a uma es-tabilizao, idntica do som. A viso pode registrar o movimento, mas pode tam-bm registrar a imobilidade. Na realidade, ela favorece a imobilidade, pois, para exa-minar algo atentamente por meio da viso, preferimos mant-lo imvel. Muitas ve-zes, reduzimos o movimento a uma srie de instantneos a fim de ver melhor o que o movimento. No existe o equivalente de um instantneo para o som. Um oscilo-grama silencioso. Ele existe fora do mundo sonoro (Ong, 1998, p. 42).

    Na comparao com os demais sentidos importa ainda destacar uma dascaractersticas do som: a sua relao com a interioridade. Essa relao importanteem virtude da interioridade da conscincia e da prpria comunicao humanas. Paratestar o interior fsico de um objeto como interior, nenhum sentido funciona de modoto eficaz quanto o som. O sentido humano da viso mais adaptado luz refletidadifusamente pelas superfcies. (A reflexo difusa, de uma pgina impressa ou umapaisagem, contrasta com a reflexo especular, de um espelho). Uma fonte de luz, talcomo um fogo, pode ser interessante, mas oticamente desconcertante: a vista nopode se concentrar em nada dentro do fogo. De modo anlogo, um objeto transl-cido, como um alabastro, interessante, porque, embora, no seja uma fonte de luz,a vista tambm no pode se concentrar nele. A profundidade pode ser percebidapela vista, porm de forma muitssimo agradvel como uma srie de superfcies: ostroncos de rvores em um bosque, por exemplo, ou cadeiras em um auditrio. Avista no percebe um interior estritamente como um interior: dentro de um aposen-to, as paredes que ela percebe so ainda superfcies, exteriores.

    Ouvir um fenmeno fisiolgico; escutar um ato psicolgico. No primeironvel nada distingue o homem do animal, enquanto o segundo um ato de decifra-o, e, neste processo de escuta, comea a desenvolver-se um espao intersubjetivoem que escuto tambm quer dizer escuta-me.

    Construda a partir da audio, a escuta, de um ponto de vista antropolgi-co, o sentido prprio do espao e do tempo, apreendido atravs da percepo degraus de afastamento e dos ritmos regulares da excitao sonora. Tal como para omamfero, o territrio demarcado por cheiros e sons, tambm para o homem fatoque freqentemente subestimado a apropriao do espao em parte tambmsonora os espaos de rudos familiares so reconhecveis, reconhecidos. sem d-vida a partir desta noo de territrio, ou de espao apropriado, que a escuta uma

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    ateno que permite captar tudo o que seja susceptvel de perturbar ou alterar oespao prprio (extensvel a espao comunitrio, lingstico, nacional etc.).

    O paladar e o olfato no contribuem muito para registrar a interioridade oua exterioridade. O tato, sim. Porm, ele destri parcialmente a interioridade no pr-prio processo da percepo. Se eu desejasse descobrir pelo tato se uma caixa estvazia ou cheia, teria de fazer um buraco para inserir uma mo ou um dedo: issosignifica que a caixa est, nesse sentido, aberta, e assim menos um interior.

    A audio pode registrar a interioridade sem viol-la. Posso bater numacaixa para descobrir se est vazia ou cheia ou numa parede para saber se oca ouslida. Ou posso fazer uma moeda tinir para saber se de prata ou de chumbo.

    Todos os sons registram as estruturas interiores do que quer que os produ-za. Um violino cheio de concreto no soar como um violino normal. Um saxofonesoa diferentemente de uma flauta: sua estrutura interna diferente. E, acima detudo, a voz humana vem do interior do organismo humano, que fornece as resso-nncias vocais.

    A vista isola; o som incorpora. A viso supe o observador fora do que elev, a uma distncia, ao passo que o som invade o ouvinte. A viso disseca, comoobservou Merleau-Ponty (1961).

    Numa cultura acstica, na qual a palavra existe apenas no som, sem qual-quer referncia a um texto visualmente perceptvel e a uma conscincia, nem mesmo possibilidade de um tal texto, a fenomenologia do som penetra profundamente nosentimento de existncia dos seres humanos, na qualidade de palavra falada, pois omodo como a palavra vivenciada sempre importante na vida psquica. A aocentralizadora do som (o campo sonoro no est espalhado diante de mim, mas atoda a minha volta) afeta o sentido humano do cosmos. Para as culturas acsticas, ocosmos um evento contnuo, com o homem em seu centro.

    A maioria das caractersticas do pensamento e da expresso fundados nooral est intimamente relacionada economia unificadora, centralizadora, interiori-zadora do som tal como percebido pelos seres humanos. Uma economia verbaldominada pelo som mais conforme s tendncias agregativas (harmonizadoras) doque s analticas, dissecadoras, que viriam com a palavra inscrita, visualizada: a viso um sentido dissecador.

    A REPETIO: MARCA PECULIAR DE PRESERVAO DOPENSAMENTO CUIDADOSAMENTE ARTICULADO

    O discurso oral, de um modo geral, tem na repetio uma de suas marcasmais peculiares. comum atribuir-se o fenmeno necessidade de reforar a infor-

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    mao contida numa mensagem que se desenvolve linear e irreversivelmente nacadeia do tempo e que, por esse motivo, no permite qualquer espcie de reviso,quer por parte do emissor, quer por parte do receptor. H pois, um retorno constan-te s palavras ou sentidos chave, num esforo para evitar a disperso em relao aocontedo fundamental.

    Assim, numa cultura acstica, para resolver com eficcia o problema dereter e recordar o pensamento cuidadosamente articulado, o processo dever seguirmodelos mnemnicos, formulados para uma rpida repetio oral. Possuindo ape-nas os recursos de sua memria de longo prazo para reter e transmitir as representa-es que lhes parecem dignas de perdurar, os membros das culturas acsticas explo-ram ao mximo o nico instrumento de inscrio de que dispem. Nos seus discur-sos polticos orais e escritos, por exemplo, o presidente moambicano Samora Ma-chel era bastante repetitivo.

    A poesia do moambicano Jos Craveirinha apresenta inmeros exemplosda concretizao do princpio da repetio, inspirados nas formas desta poesia oral(Matusse, 1993, p. 105). Observemos um extrato do poema Quero ser tambor(Craveirinha, 1982, p. 123):

    Nem rio correndo para o mar do desespero.Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero.Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.[...]S tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra.S tambor de pele curtida ao sol da minha terra.S tambor cavado nos troncos duros da minha terra!

    Uma outra forma de poesia oral o provrbio. Nos quatro cantos do mun-do, os provrbios so ricos de observaes acerca desse espantoso fenmeno humanodo discurso na sua forma original oral, acerca de seus poderes, sua beleza, seus peri-gos. A mesma fascinao pelo discurso oral continua inalterada sculos depois de aescrita ter sido posta em uso. importante notar que os provrbios fazem freqente-mente aluso a fenmenos naturais e vida animal. Se vires um crocodilo chegar,nunca lhe estendas o leno, diz um conhecido provrbio moambicano; A fora docrocodilo a gua, para referir que, quando lutais no vosso domnio, podereis ven-cer, no tenteis sair dele: sereis como peixe fora de gua (apud Junod, 1996, p. 158), oque pensamos, se prende ao fato de nesses domnios imperar uma espcie de perfei-o, uma lgica imanente e funcional, diferente dos comportamentos humanos,mais instveis e arbitrrios. Como no sorrir perante a metfora que procura denun-ciar aquele que acredita excessivamente nas suas capacidades, muito espelhada noprovrbio da etnia ronga do sul de Moambique: Aquele que engole um grandecaroo tem confiana no tamanho da sua garganta. Ou aquele outro As tatuagens

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    nas costas so conhecidas daquele que as faz. No so conhecidas daquele que astem, para significar que no podereis saber o que suceder, se voltardes as costas(Op. cit., p. 158), ou ainda No percas o teu tempo a olhar os montes de ervas ms,pensando que o teu trabalho acabou (Idem, p. 159).

    A narrativa do escritor moambicano Mia Couto explora largamente omodelo e a tcnica do provrbio nas passagens de carter reflexivo, sendo este um dosseus elementos marcantes. Em Terra sonmbula, numa seqncia de frases, ele pro-cura de forma sinttica caracterizar e justificar, com base numa pretensa verdadeuniversal, a tentao da personagem de abandonar o seu projeto inicial num dadoponto da ao: As idias, todos sabemos, no nascem na cabea das pessoas. Come-am num qualquer lado, so fumos soltos, tresvairados, rodando procura de umadevida mente (Couto, 1992, p. 44). O escritor afirma que:

    Estas estrias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecidade verdade mas que no foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem domundo. Na travessia dessa fronteira de sobra escutei vozes que vazaram o sol. Outrasforam asas no meu vo de escrever. A umas e outras dedico este desejo de contar e deinventar. (Couto, 1986, p. 19)

    Segundo Henri Junod,2 a etnia Tsonga do sul de Moambique possui uma

    considervel coleo de enigmas que contm duas frases e que se chamam svitekateki-sana. Recolhi cerca de uma centena. Teria facilmente podido recolher dez vezes mais.Uma mulher que vivia na nossa vizinhana, Lixanyi, conhecia grande nmero e po-dia recit-los sem parar at altas horas da noite. (Junod, 1996, p. 161)

    Em Mia Couto visvel o uso de provrbios, sentenas, frases feitas e porta-doras de significao didtico filosfico.

    A narrao, recorre frmula, instrumento privilegiado das culturas acsti-cas, nas quais a natureza auditiva e mental das palavras est relacionada no s aosmodos de expresso e produo cultural, mas aos processos de transmisso e apren-dizagem. A frmula aqui entendida sobretudo como um procedimento mnemo-tcnico, um quadro estrutural, um meio de ligar elementos que sem o apoio da escri-ta seriam mais dificilmente memorizados para sua transmisso e difuso. Interes-sante, como a frmula e sua repetio se fazem presentes no espantoso filme Centraldo Brasil.3 Para Lopes (1999, p. 69) muito da trama do filme est permeada pela

    2 Henri Junod, que faz um sculo foi expulso de Moambique pelo governo colonial portugus, acusado deexcesso de cumplicidade com as populaes, entre as quais vivia desde 1889 (Feliciano, 1996, p. 15) produziuum alentado trabalho de 1.040 pginas Usos e costumes dos Bantu (1. ed. em ingls publicada em 1912/13 ea 1. ed. em portugus publicada em 1917) que constitui uma fonte importante para o entendimento das cultu-ras africanas, particularmente as moambicanas.

    3 Filme de Walter Salles, 1998 (Brasil).

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    dualidade do mundo oral e do mundo letrado. O mundo letrado encontra aindamarcas do mundo da oralidade, marcas que aliceram a transmisso cultural de co-munidades que no tiveram acesso ao cdigo escrito. Por isso o recurso memria,s formas repetitivas, se constitui num trao muito particular desse universo oral.Isaas, o irmo que Josu acaba de conhecer, manda-lhe repetir o trava-lngua, essamodalidade de parlenda em prosa ou em verso, bem caracterstica das culturas deoralidade, ordenada de tal forma que se torna extremamente difcil e, s vezes, quaseimpossvel, pronunci-la sem tropeo: L atrs da minha casa tem um p de umbuboto, umbu verde, umbu maduro, umbu seco e umbu secando (Carneiro & Berns-tein, 1998, p. 91). Numa outra conversa, novamente Isaas, pede ao irmo para dizer:Diga cinco vezes em carreado, sem errar, sem tomar flego, vaca preta, boi pinta-do. Diga (Idem, p. 97).

    MEMRIA E RECONSTRUO DO PASSADO: UMA FORMADE LEGITIMAR AS REIVINDICAES DO PRESENTE

    Toda sociedade tem um dever com relao a seu passado: ela deve impedirque ele seja irremediavelmente apagado. No que seja preciso subjugar o presenteao passado, nem que todas as lies do passado sejam igualmente recomendveis. Opassado benfico no quando alimenta o ressentimento ou o triunfalismo, masquando seu gosto amargo nos leva a transformar-nos a ns mesmos. Um povo deverecuperar seu passado no para repeti-lo nem para legitimar suas reivindicaes pre-sentes conduzindo assim ao ciclo interminvel de vinganas e represlias. As guer-ras balcnicas so um bom exemplo dos desastres provocados por uma memriaestritamente literal , mas para encontrar ali uma lio para o futuro, para tentarmeditar sobre as injustias do passado, reanimar o prprio ideal da justia.

    As histrias que vivem no imaginrio popular na forma de contos, fbulas,lendas e mitos poderiam ser vistas como uma tentativa de reconstruo do passadoatravs de dados presentes hoje no mundo em que se insere a sociedade moambica-na. Ao narrar, cria-se uma memria coletiva, cujas lembranas so selecionadas pelopovo que as viveu.

    Se pacfico aceitar a memria como um elemento essencial da identidade,da percepo de si e dos outros, essa percepo difere, segundo nos situemos na esca-la do indivduo ou na escala de um grupo social, ou mesmo de toda uma nao. Se ocarter coletivo de toda memria individual nos parece evidente, o mesmo no se po-de dizer da idia que existe uma memria coletiva, isto , uma presena e portantouma representao do passado que seja compartilhada nos mesmos termos por todauma coletividade.

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    Assim, o que se retm do passado o que ainda est vivo ou que aindapode viver na conscincia do grupo. Nas palavras de Philipe Aris:

    bem possvel que os homens de hoje sintam a necessidade de fazer emergir superfcieda conscincia os sentimentos outrora enterrados na memria coletiva profunda. Nessecaso, no se trataria da procura de uma sabedoria ou de uma verdade intemporal, masda pesquisa das sabedorias annimas, das sabedorias empricas que presidem s relaesntimas das coletividades com cada indivduo, com a natureza, com a vida, com amorte, com Deus e com o alm. (Aris, 1990, p. 479)

    A memria coletiva4 fundamenta-se em um espao-tempo compartilhado,um quadro de tenses e negociaes. O legado consensual, porque tem como funoessencial fortalecer a crena do corpo social em sua prpria perpetuao, nunca se d priori, e sua construo exige a manuteno e a regulao incessantes dessa existn-cia em conjunto.

    curioso constatar que, ao mesmo tempo que os tempos passados, a me-mria coletiva sofre uma verdadeira revoluo documental nos bancos de dados, nocomputador, torna-se memria eletrnica. Ao mesmo tempo a memria do passadose expande na literatura, na filosofia e na psicologia, destacando dimenses da me-mria pessoal, do esprito, das emoes e sonhos (do subconsciente). Essa memriano tratada como um vasto reservatrio, ao estilo da memria eletrnica. Nem sesitua no nvel do consciente, do dado concreto. Est mais prxima do latente, cons-trudo principalmente na infncia.

    Numa cultura de forte tradio oral, parece ocorrer uma espcie de rejeioda racionalidade cientfica ao procurar valorizar-se o passado, ao qual se atribui umcarter sagrado. A isto no certamente alheio o fato de a memria nas culturasacsticas se cristalizar em torno dos antepassados ancestrais.

    O conhecimento a prpria palavra, ela que transmite os conhecimentosde uma gerao para outra e permite a estruturao do corpo social, em que a faladeve reproduzir o vaivm que a essncia do ritmo. Em certos casos extremos, co-mo por exemplo no campo da magia, a fala a materializao da cadncia. A pa-lavra atribuda ao Ancestral comum, ao Ancestral fundador, enfim, ao mais velho, sempre repetida com o maior cuidado e os jovens, ao serem iniciados, so treinados,por anos afora, na arte da memorizao.5

    4 Os historiadores em geral admitem, de maneira mais ou menos declarada, que as representaes do passadoobservadas em determinada poca e em determinado lugar contanto que apresentem um carter recorrentee repetitivo, que digam respeito a um grupo significativo e que tenham aceitao nesse grupo ou fora dele constituem a manifestao mais clara de uma memria coletiva. Fazer a histria dessas manifestaes, isto ,realizar uma pesquisa sobre a representao autctone de fatos passados e de sua evoluo cronolgica, permi-te chegar mais perto da noo de memria coletiva, ainda que por uma abordagem emprica, prpria doshistoriadores.

    5 Laburthe-Toira & Warnier (1997, p. 307), ao referirem-se excepcional memria dos africanos, relatam adescrio de uma venda de gado feita por um rapaz suazi. Quando se trata de gado sua memria impressio-

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    CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEIS...

    O treinamento da memria faz parte da formao cotidiana do africano.Um genealogista, isto , aquele que um profundo conhecedor das linhagens fami-liares, pode ficar horas falando sobre a origem de uma linhagem, sem se enganaruma s vez. Segundo Mouro Registros dessas informaes, feitas por pesquisado-res diferentes com o mesmo informante, mostraram que, normalmente, no ocorre-ram erros, por mnimos que fossem (Mouro, 1997, p. 16).

    A autenticidade da transmisso assegurada pela existncia de uma sriede normas rigorosamente observadas na chamada cadeia de transmisso. Este fato muito importante, pois, quando ocorrem mutaes profundas, os problemas deanlise complicam-se. Interrompida a cadeia, a segurana nos dados bem menor.Nesse caso, torna-se necessrio um estudo em profundidade, ao nvel da interpreta-o dos mitos. Numa perspectiva de tempo, a memria vai da visual familiar: doconhecimento dos atos familiares mais prximos chega-se memria histrica. Nes-te processo aporta-se, finalmente, memria mtica, que gira em torno da figura doantepassado comum, fundador do grupo social e familiar.

    Para a Antropologia Social, a transmisso da cultura social pode ser descri-ta assim: como os nossos genes possuem armazenados um conjunto de cdigos deinformao que orientam o desenvolvimento do organismo, desde o nascimento at morte, ou seja, um armazenamento transferido de gerao em gerao, assim aonvel da cultura social, as sociedades para se manterem e usufrurem de suas prpriasformas de continuidade orgnica, tm de armazenar a informao acumulada paraser reutilizada. O principal mtodo para fazer isto o lingstico. possvel observaristo no caso da informao documental respeitante s nossas leis e literatura, nossacincia e tecnologia, com a qual nos educamos e atravs da qual absorvemos valorese atitudes, bem como a incorporamos, reutilizamos e lhe fazemos acrscimos.

    Como se obtm os mesmos tipos de resultados numa cultura acstica? Numatal cultura, o armazenamento e transmisso entre as geraes somente podem-seefetivar atravs das memrias individuais. Para Eric Havelock:

    A informao lingstica pode ser incorporada numa memria transmissvel, tal comouma memria pessoal, s que ela obedece a duas leis da composio: ela deve ser rtmi-ca e deve ser mtica, no sentido grego original contido na palavra mtico. (Havelo-ck, 1988, p. 128)

    No que se refere histria e formao das culturas, a escolha dos itensque devem ser registrados ou eliminados jamais objeto de indiferena.

    nante, e com paixo, com entusiasmo que ele faz o relato das circunstncias de uma venda, relato acompa-nhado dos menores detalhes.

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    A COMPLEXA RELAO ENTRE MEMRIA, HISTRIA E PODER

    A complexa relao entre memria e histria, por um lado, e cultura e po-der, por outro, levam Edward Said a afirmar que:

    Toda sociedade e toda tradio oficial tendem a se defender contra interferncias emsuas narrativas sancionadas; ao longo do tempo essas adquirem um status quase teol-gico, com heris fundadores, idias, valores e alegorias nacionais tendo um efeito in-calculvel sobre a vida cultural e poltica. (Said, 1993, p. 314)

    Pierre Nora descreve o movimento de vai-e-vem entre a memria e a hist-ria que produz os lugares da memria. A memria, por outro lado, est aberta dialtica da lembrana e do esquecimento (...) e acomoda apenas aqueles fatos quelhe convm (Nora apud King, 1996, p. 77).

    Ser possvel pretender captar a histria de uma memria nacional unica-mente pelo vis de grupos restritos ou de setores da sociedade particularmente sensibi-lizados pelo passado ou que tm tendncia, como o Estado, a propor representaes dopassado? Que representaes dele fazem os grupos mais amplos e mais heterogneos?Como afirma Kammen: pinamos e organizamos nossas memrias de forma a aten-der nossas necessidades psquicas (Kammen, apud Thomson, Frish & Hamilton, 1996,p. 88). Mas o estudo da memria freqentemente revela, por exemplo, uma tensoentre as tradies locais e nacionalistas. Em cada pas podem ser identificados fatoresque afetam a especificidade do processo e a forma assumida pela rememorao.6 Oprimeiro o papel do governo como guardio da memria pblica.

    O grau de centralizao afeta o tratamento dado memria. H freqente-mente uma tenso entre as memrias locais e a retrica nacionalista pblica, umatenso que se intensifica quando a comunidade imaginada nacional torna-se mui-to circunscrita. As comunidades locais, por exemplo, podem se apropriar de formasmateriais de comemorao nacional, como monumentos guerra, mas no necessa-riamente de seu contedo, submetendo a expresso da memria aos interesses locais.

    A memria coletiva pode ser tambm a memria do poder, a memria en-quadrada utilizada como forma de dominao, cujo objetivo marcar o que deve serlembrado e apagar o que se deve esquecer. Segundo Jacques Le Goff:

    (...) a memria coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forassociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memria e do esquecimento uma dasgrandes preocupaes das classes, dos grupos, dos indivduos que dominaram e domi-nam as sociedades histricas. Os esquecimentos e os silncios da histria so reveladoresdesses mecanismos de manipulao coletiva. (Le Goff, 1990, p. 426)

    6 Na Austrlia, por exemplo, os estados tm programas escolares diferenciados e no h um currculo padronacional.

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    CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEIS...

    Avaliar e ter a dimenso dessa idia, fundamental para que possamosentender como possvel lidar com a memria coletiva, tomando-a em sua acepomais produtiva e positiva para a sociedade. O passado institui-se como uma refern-cia insubstituvel, na qual a comunidade vai buscar a inspirao para a sua condutano presente, bem como o exemplo para a explicao dos fenmenos com que depara.Acredita-se que a finalidade dos relatos consiste em evitar que as aes e os feitos doshomens se apaguem com o tempo e tombem na morte e no esquecimento. Ao queparece, foi com vistas consecuo deste duplo objetivo fixar a memria e barrar aao corrosiva do tempo que os historiadores de diferentes pocas mobilizaramtoda a sorte de calendrios, elaboraram cronologias, instalaram ciclos e perodos,fixaram datas, estabeleceram fatos e documentos, perscrutaram anais, decifraraminscries, analisaram monumentos etc.

    A tenso freqente entre as memrias locais e a retrica nacionalista pbli-ca se intensifica quando a comunidade imaginada nacional torna-se muito cir-cunscrita. As comunidades locais, por exemplo, podem-se apropriar de formas mate-riais de comemorao nacional, como monumentos guerra, mas no necessaria-mente de seu contedo, submetendo a expresso da memria aos interesses locais.

    Este recurso freqente ao passado acaba, em muitos casos, por fazer emer-gir um confronto com a leitura oficial feita pelo poder poltico. Nesse esforo defixao, se verdade que a tentativa de salvar o passado foi acompanhada do senti-mento de a humanidade carregar um peso o fardo do passado , um sem nmerode acontecimentos annimos, porm reais, vividos por camponeses, artesos e not-veis de diferentes pocas, foi simplesmente relegado ao esquecimento, assim comouma infinidade de acontecimentos de especial relevo foi banida da memria, expur-gada dos arquivos e varrida da histria oficial. Para nos convencermos disso bastanos reportarmos aos exemplos das revolues francesa e russa, que cedo cuidaram deapagar os vestgios de uma pliade de personagens ilustres e eventos incmodos, coma esperana de, assim, melhor controlar o tempo e governar a histria. Um exemplona realidade moambicana o romance Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa, que uma desmitificao das verses correntes da Histria de Ngungunhane:7 a colonial,que o apresenta como um covarde e traidor, e a revolucionria, que lhe atribui umincondicional estatuto de heri o que convida a refletir sobre a validade de umaoutra, transmitida oralmente, a qual contm tambm, obviamente, as suas doses deparcialidade e , em certa medida, uma forma diferente de olhar para a Histria deMoambique dos ltimos cem anos. H, com efeito, uma abordagem dos seus acon-tecimentos mais marcantes, feita atravs do premonitrio discurso de Ngungunhanena altura da partida para o exlio nos Aores. Trata-se, portanto, da adoo do imagin-

    7 Ngungunhane foi imperador de Gaza (regio do sul de Moambique), no perodo colonial, tendo-se opostofortemente dominao portuguesa.

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    rio tradicional na leitura dessa Histria, uma vez que as desgraas que se abatem sobreo pas so vistas como sendo devidas ao desrespeito pelo sistema de valores da tradio.

    A narrativa oral, ao criar um outro discurso, margem da Histria oficial,viabiliza tambm uma desconstruo dessa Histria e constri uma memria pr-pria, porque est baseada no na histria aprendida, e, sim, na histria vivida, hist-ria cultural retida na memria dos contadores. Essa histria cultural que se guardana memria, , com freqncia, uma seleo dos fatos que tiveram especial relevn-cia no percurso das transformaes que marcaram esse povo.

    AS IMPLICAES DA INTRODUO DA ESCRITA NO UNIVERSO ORAL

    A impresso criou uma nova percepo da propriedade privada das pala-vras. As pessoas em uma cultura acstica podem nutrir algum senso de direito depropriedade sobre um poema, mas essa percepo rara e geralmente enfraquecidapela partilha comum de conhecimento, frmulas e temas dos quais todos se servem.

    Assim, os calendrios, datas, anais, arquivos, ao instaurarem referncias fi-xas, permitem o nascimento da histria direcionada. A forma narrativa perde sua efi-ccia, sua centralidade, e aquele devir indefinido que a caracterizava, sem ponto fixo,onde tudo volta, abre-se agora para uma dicotomia: aquilo que permanece e aquiloque passa, o presente e o passado, o ser e o devir. Tambm surge a possibilidade de sedesenhar um declnio ou uma progresso, uma linha. A prpria memria se separado sujeito e estocada, ficando disponvel para a coletividade, suscetvel de ser con-sultada, comparada etc. Com o surgimento da impresso, a prpria idia de um pas-sado estocado, delimitado, visvel em seu registro, destacado do presente, acumul-vel, colabora para a idia de progresso, de linearidade. Com a apario do alfabeto, dacaligrafia, e por fim da impresso, o tempo torna-se cada vez mais linear e histrico.

    O pensamento aninha-se na fala, no em textos, cujos significados, todos,so adquiridos pela referncia do smbolo visvel ao mundo do som. O que o leitorest vendo nesta pgina no so palavras reais, mas smbolos codificados pelos quaisum ser humano adequadamente informado pode evocar na sua conscincia palavrasreais, num som real ou imaginado. impossvel escrita ser mais do que marcas emuma superfcie, a menos que seja usada por um ser humano consciente como umapista para palavras soadas, reais ou imaginadas, direta ou indiretamente.

    Apenas o alfabeto fontico produz uma quebra entre olho e ouvido, entresignificado semntico e cdigo visual; e assim, apenas a escrita fontica tem o poderde transladar os homens da esfera tribal para a esfera civilizada, e propor-lhes umolho por um ouvido (McLuhan, 1977).

    Portanto, nas sociedades pr-alfabticas, a comunicao implicava a utili-

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    zao de todos os sentidos simultaneamente. A comunicao oral acompanhadade gestos e implica ver e ouvir. Alm disso, o espao da palavra falada acstico. Ain-veno do alfabeto vai criar uma civilizao visual. O espao acstico ceder lugara um espao limitado, linear. A pgina escrita proporciona, ento uma nova formade pensar a noo de espao, bem menos rica do que nas sociedades orais. Com oadvento da imprensa e a possibilidade da produo de escritos em larga escala, osefeitos da tecnologia da escrita tendem a tornar-se ainda mais intensos. Assim, ins-taura-se uma cultura com modos de pensar lineares, uniformes, contnuos. Agora,na era eletrnica da humanidade, estaramos retornando utilizao dos demaissentidos, alm do visual, que caracterstico da era Gutenberg.

    Scribner e Cole (1981) demonstraram que a introduo da escrita numasociedade tradicional no produz efeitos cognitivos gerais como a capacidade de me-morizar, classificar e derivar inferncias lgicas. A fonte das mudanas cognitivasimportantes, se que elas so reais, precisou ser procurada em outro lugar, como amodificao das condies sociais ou dos processos de aprendizado. Patricia Green-field exprimiu a opinio generalizada ao afirmar que o volume de Scribner e Coledeveria livrar-nos definitivamente da crena etnocntrica e arrogante de que bastauma simples tecnologia para criar em seus usurios um conjunto distinto de proces-sos cognitivos e, ainda por cima, superior (Greenfield, 1983, p. 219).

    Jack Goody (1968) props uma teoria geral acerca das conseqncias da in-troduo da escrita em culturas orais, partindo da idia de que a escrita descontex-tualiza o pensamento. Goody interpreta a sua introduo como um processo queconduziria inevitavelmente adoo de formas de pensamento e de governo das re-laes sociais mais impessoais, (por exemplo enfraqueceria o papel do parentesco),abstratas, lgicas, racionais.

    O processo de letramento de uma sociedade grafa leva a alteraes signifi-cativas no prprio componente lexical da lngua dessa sociedade e um bom exem-plo de que os efeitos da introduo da escrita mostram-se de maneira mais transpa-rente quando determinada sociedade comea a escrever a sua prpria lngua.

    Se se pode estabelecer, de um ponto de vista terico a oposio estruturaloral/escrito, deve-se considerar entretanto, que a fronteira entre o modo de socializa-o oral e a escolarizao no to clara como se pretende. Uma no pode ser pensa-da sem a outra, quer pelo fato de que a cultura escolar originria de uma apropria-o de certos elementos da cultura oral com o objetivo de integrao social como osrituais de separao com as relaes de parentesco que ligam simbolicamente os alu-nos ao professor ou numa perspectiva hegemnica, dado que nem os procedi-mentos do oral, nem os procedimentos do escrito os processos mnemotcnicos porexemplo constituem blocos monolticos, mas cujos complexas trocas recprocaspermanecem por muito tempo entre esses conjuntos culturais.

    A escrita pode ser estudada como uma extenso e potencializao da mo-

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    dalidade oral de comportamento. Isso nos permitiria, ento, determinar que novosmeios de tratar o mundo e o self so disponibilizados na passagem da forma decomportamento oral escrita. Essas so as conseqncias do letramento em peque-na escala. Por meio da institucionalizao e da adoo de tecnologia, algumas des-sas formas de tratar o mundo e o self, conseqncias do letramento, so disponibili-zadas a grupos mais amplos. Essas so as conseqncias do letramento em grandeescala.

    O comportamento lingstico pode produzir uma mudana qualitativa nacapacidade de comunicao do ser humano, por seu potencial intrnseco de articularaspectos do mundo com os quais convive. Essa habilidade de articular aspectos situ-acionais de objetos, de agentes e de experincias constituintes de uma situao eseus inter-relacionamentos um pr-requisito essencial especificao e instru-o. Atravs de especificaes e instrues, podem-se planejar e programar as ativi-dades do mundo. A expresso prpria articulada tem um papel a desempenhar nacomplexa programao do prprio comportamento do indivduo. Atravs do com-portamento lingstico, o ser humano pode lidar no s com o mundo imediata-mente presente, interativo, mas com mundos distanciados dele no espao e no tem-po. Ademais, pode lidar no s com o mundo real visvel e dado, mas com mundospossveis (imaginados) e situaes no-fatuais. O comportamento lingstico faz comque no se fique restrito a produzir experimentos reais e com que se possa recorreraos experimentos dos gedanken (Olson & Torrance, 1995, p. 193).

    No decorrer da histria, o uso da lngua natural de forma oral e o uso da es-crita (no sentido da utilizao de textos) revelaram-se inadequados para atender snecessidades de representao de mundos em construo e construdos. Novas nota-es, novas formalizaes e novas linguagens tiveram de ser concebidas, e novas tc-nicas grfico-visuais tiveram de ser inventadas, para dar conta dessas abstraes, ma-nipul-las e transform-las. Muitas dessas idias ou tcnicas esto na vertente domi-nante da elaborao terica e da pesquisa atuais. Grande parte desse trabalho faz usoimprescindvel de formalizaes e da tecnologia computacionais.

    A ESCOLA COMO LUGAR FULCRAL DE PRESERVAO DA MEMRIA DO PASSADO

    Uma das grandes preocupaes do homem ao longo da sua existncia temsido, por um lado, ampliar o raio de alcance no espao e no tempo da palavra oral e,por outro lado, dar a conhecer aos outros, que habitam em diferentes regies do pla-neta, a maior quantidade possvel de informao sobre o que se passa ao seu redor. Orecurso escrita, e mais recentemente s fitas de udio e vdeo, disquetes, satlites etodos os complexos aparelhos usados na mdia e nos sistemas educacionais, tem em

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    CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEIS...

    vista reduzir as restries de alcance espcio-temporais que a linguagem oral por sis no pode vencer.

    A escola que nasceu colada reproduo da cultura, do saber, dos hbitos ecomportamentos, ligada aos processos mais imediatos e totais da socializao, noconsegue divorciar-se da tradio biologicamente to indispensvel espcie hu-mana e to necessria sobrevivncia e identidade do grupo. Todas as tentativas deconverter a experincia escolar num exerccio de apreenso lgica, metdica de ha-bilidades e saberes frente ao futuro apreender para a vida, o trabalho, a cidadania no conseguiram desvincular a escola dessa funo de cultivar a memria do passado.

    A escola est intimamente associada construo de identidades: temati-zar e explorar os espaos, os objetos, as lembranas corpreas. A pedagogia escolar naeducao bsica continua fiel s velhas normas: celebrar o passado, encontrar smbolosdos fatos que se deseja recordar e provocar sentimentos para as crianas aderirem aeles com paixo. Das trs potencialidade humanas a serem cultivadas por toda a aopedaggica (memria, intelecto, vontade), apenas o cultivo do intelecto merecer aateno quando se ultrapassa a idade infantil, quando a escola passa a ensinar.

    No apenas na educao do adolescente e do jovem se perdem as ricas di-menses da evocao do passado. Tambm na educao bsica das crianas, h per-das significantes. As reformas educacionais tendem a impor currculos cada vez maisrgidos, guiados por uma concepo cada vez mais racionalista da educao escolar.O intelecto e o seu cultivo, ou melhor, o adestramento, se impem sobre as outraspotncias do esprito, memria e vontade. Uma corrente pedaggica antimemria seinfiltra em nome da centralidade do intelecto. Centralidade posta por uma concep-o racional: a formao do sujeito racional, de sua autodeterminao racional, dacompreenso terica do real, etc.

    memria do passado se contrape o conhecimento lgico antecedentes,determinantes, conseqncias, a busca das causas, das ltimas causas. Este conheci-mento se legitima como o mais perfeito, o nico conhecimento. Enquanto a mem-ria relegada esfera do impreciso, ao mgico, ao imaginrio. Da, ser tolerada, ape-nas, na primeira infncia, no tratamento que a escola d recordao do passado; medida que a criana se aproxima da idade da razo, esse tratamento do tempopassado dever ser descartado. Entre a 4a e 5a classes (e por vezes antes), se d essecorte, como fcil de constatar nos livros didticos e na prpria organizao do tem-po e do trabalho pedaggico. O conhecimento passa a ser metdico, com lgica, sememoo e paixo, sem evocao. Contrape-se a inteligncia memria nos pro-gramas escolares, enquanto os psiclogos, como Jean Piaget, demonstram que me-mria e inteligncia, longe de se contrapor, se apoiam mutuamente. E so vnculosprimrios da codificao e reproduo das relaes sociais.

    Na ltima dcada, falou-se muito dos vnculos entre saber e poder, entre o

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    domnio das habilidades e dos saberes no confronto entre dominantes e dominados.As anlises do currculo escolar acentuaram essas dimenses polticas. Entretanto odiscurso ficou reduzido ao chamado saber acumulado e a sua transmisso discipli-nada nas classes e disciplinas escolares, nos livros didticos e na docncia dos mestrescompetentes. Numa viso reducionista, reivindicou-se escola que ensinasse, che-gando a condenar-se as festas e comemoraes como tempo perdido que desvirtuavaessa funo docente-transmissora e ocupava tempos, escassos, na alienao dos futu-ros cidados conscientes. A escola, em seu tradicionalismo, no abandonou o quea constituiu em suas origens mais remotas: cultivar a conscincia, o sentimento dopassado, da tradio histrica. Comemor-los, cant-los, evoc-los, porque a consci-ncia e o sentimento do passado no outra coisa seno a conscincia do grupo, decada indivduo, de sua identidade cultural.

    A escola no conseguira fugir a esse papel que traz como marca de origem,como expresso digital. Poder sim, recuper-lo, abrir maiores espaos no cultivo dopassado pblico e privado, trat-lo com maior competncia e sobretudo democrati-z-lo para que minorias no monopolizem a memria social e com elas destruam asidentidades ou as enfraqueam. No ser uma minoria (no caso moambicano, su-lista) que desde os tempos da luta armada contra o colonialismo portugus e no ps-independncia ocupou altos cargos, na cpula dirigente da Frelimo, quem tem mono-polizado essa memria social do povo moambicano? Ser possvel pretender captara histria de uma memria nacional unicamente pelo vis de grupos restritos ou desetores da sociedade particularmente sensibilizados pelo passado ou que tm ten-dncia, como o Estado, a propor representaes do passado? Que representaes de-le fazem os grupos mais amplos e mais heterogneos? Na sociedade moambicana,de forte tradio oral, os especialistas da memria so os velhos. So eles a memriada sociedade. Sua importncia de tal natureza que quando um velho morre se cos-tuma dizer que uma biblioteca desapareceu. Na luta pela dominao da recorda-o e da tradio histrica, a escola pode cumprir um papel relevante no abando-nando, antes retomando, o peso poltico e cultural do cultivo da memria do passadotanto coletivo quanto individual. A escola no pode abandonar a fora do simblico,a fora da imagem. Todos os nossos sentidos podem despertar lembranas e emoese a escola, nas suas origens, uma das instituies mais visveis de evocao do passa-do. Mas um passado no institucionalizado, cuja incorporao na escola possa re-presentar a democratizao da memria e a possibilidade de novos espaos de defesade identidades tidas como marginais: identidades populares, de classe, gnero, etnia.

    A escola determinante na produo das lembranas e no processo de re-cordao. Se dependesse da experincia e tradio escolar, seria difcil cairmos noesquecimento do passado. Todas as culturas tm um conjunto de processos diferen-ciados de educao da memria. Nas sociedades modernas, a escola se destaca pelo

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    CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEIS...

    seu carter tcnico, ritual, institucionalizado de educar a memria coletiva mais doque as memrias individuais. Mas ser que o aluno encontra espao para que edu-que a sua memria tnica, de classe ou de gnero? Na verdade, o que a escola cultivano ser uma memria coletiva seletiva? Sendo seletiva, no ser difcil escola fugirao processo de manipulao consciente ou inconsciente que o poder e uns grupossociais exercem sobre a memria individual, grupal, tnica e de classe? Ter o letra-mento participado no cultivo da memria coletiva e tambm nos esquecimentos enos silncios de vestgios histricos reveladores de identidades e de lutas?

    CONCLUSO

    Temos tendncia a considerar que a lngua e o corpo de saber (histria,geografia, matemtica, cincias naturais) que um jovem de quinze ou dezesseis anospossui nas sociedades com um elevado nvel de letramento, adquiridos depois deuma dezena de anos passados na escola, respeitando a progresso traada pelos pro-gramas, no esto ao alcance de um jovem africano ou de um ndio brasileiro queno freqentaram a escola ocidental. Vimos que a tradio oral manifestava um sa-ber lingstico e elaborava os meios de sua transmisso. Mas o contador de estriasou o griot, funciona igualmente como o professor de histria e de poesia (porqueele tem uma funo muito mais importante, ele a memria histrica) e os jogos in-fantis permitem igualmente ao mais jovens uma iniciao aos trabalhos dos adultos.Aprendem sobre agricultura, sobre a caa, sobre a pesca, jogando, o que significa quecertas atividades ldicas tm simultaneamente uma funo de iniciao vida futu-ra. Nas sociedade de pastores, a criana bem cedo possui um rebanho que ela cui-da sob a vigilncia do pai; ela aprende a contar os animais, a trat-los, a verificar osmais adequados para a reproduo, etc. Sob este ponto de vista, poder-se-iam apre-sentar numerosos exemplos, todos eles nos revelando a mesma coisa: toda a socieda-de tem necessidade de transmitir seus conhecimentos, suas descobertas, suas tcni-cas e ela prpria cria os meios para esta transmisso. Nas culturas letradas, a escoladesempenha este papel, mas ela no seno uma, entre tantas outras respostas a esseproblema fundamental que as culturas acsticas tambm resolveram.

    O mesmo vale para as leis, a memria social, a organizao poltica, todosos elementos que em nossas casas passam pelo texto escrito, mas que existem igual-mente na ausncia da escrita. A Bblia e o Alcoro so exemplos cannicos de textosorais, recolhas de parbolas, de narrativas, que reunidas e transcritas num certo mo-mento de sua histria, lhes assegurou a perenidade do carter oral que os fundou.Mas sem dvida cumpriram, antes de serem transcritos, uma funo comparvelquela que desempenhavam anteriormente.

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    Existe pois, uma especificidade das culturas acsticas, uma regulao dosfenmenos sociais fundada unicamente na fora da palavra e nos seus acessriosmnemotcnicos, especificidade que as diferencia amplamente das culturas letradas.

    A oralidade no um ideal e nunca foi. Abord-la positivamente no de-fend-la como um estado permanente para qualquer cultura. O letramento abre pos-sibilidades palavra e existncia humana de uma forma inimaginvel sem a escrita.

    Que modos de expresso e pensamento do universo acstico se podem re-cuperar acadmica e culturalmente? Aqueles que atravs da voz e do som, incorpo-ram fundindo utilidade e esttica o ritmo, a rima, a msica, a cano, o canto, afrmula, a expresso potica e o corpo movimento, dana, gestos. Aqueles queimplicam, em unssono, o corpo e a mente, que frente perspectiva nica e ao pontode vista fixo, ao linear, analtico e distante, recorrem ao enftico, repetio envol-vente e a confrontao/identificao com ele ou com os ouvintes. Aqueles, enfim,que privilegiam os valores estticos, emocionais, poticos e imaginativos, a fantasia,o humor e a ironia, o absurdo, os jogos de palavras, o paradoxo, o contraditrio e oambguo, a metfora, o mito e a retrica como relato ou arte de contar histrias. Noa fragmentao e o isolamento, mas o global e o comunicativo. S a partir do desen-volvimento da oralidade como cultura e da revalorizao na escola e em outros con-textos sociais de intercmbio de informao dos modos de expresso e pensamentocaractersticos dessa oralidade, possvel assentar um novo letramento em Moam-bique. No a partir da oposio e do esquecimento, menos ainda a partir do quixo-tesco desprezo, mas a partir do pleno desenvolvimento de ambos os mbitos o daoralidade e o da escrita; ou seja, a partir daquela interao que corresponde a umacultura no j apenas acstica, mas tampouco apenas escrita, mas mista.

    A maior parte dos conhecimentos em uso atualmente, aqueles de que nosservimos em nossa vida cotidiana, nos foram transmitidos oralmente, a maior partesob a forma de narrativa (histrias de pessoas, de famlia ou de empresas). Domina-mos a maior parte de nossas habilidades observando, imitando, fazendo, e no estu-dando teorias na escola ou princpios nos livros. Rumores, tradies e conhecimentosempricos em grande parte ainda passam por outros canais que no o impresso ou osmeios de comunicao audiovisuais.

    As formas sociais do tempo e do saber que hoje nos parecem ser os maisnaturais e incontestveis baseiam-se, na verdade, sobre o uso de tcnicas historica-mente datadas e, portanto transitrias. Compreender o lugar fundamental das tec-nologias da comunicao e da inteligncia na histria cultural nos leva a olhar deuma nova maneira a razo, a verdade e a histria, ameaadas de perder sua preemi-nncia na civilizao da televiso e do computador.

    Estar a memria, como identidade coletiva, se diluindo, se perdendo? Pa-rece tornar-se a cada dia mais evidente que o mundo moderno no cultiva a mem-

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    CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEIS...

    ria como um compartilhamento no qual podem se cruzar histria e intimidade,pblico e privado, tomando como ponto culminante a vida social entre os homens eas razes por eles criadas. O processo vivido no mundo moderno de desenraiza-mento, no qual o indivduo no cria laos entre seu passado e o presente, ou seja, emsua atuao real, ativa e natural na configurao social.

    Assim, a memria coletiva poder ser um instrumento de continuidade eestabilidade ou poder ser uma forma especfica de dominao ou violncia simblica,na medida em que pode assumir um carter destruidor e opressor, de enquadramento.

    No que se refere histria e formao das culturas, a escolha dos itensque devem ser registrados ou eliminados jamais objeto de indiferena. Nesse senti-do, a tentao das sociedades modernas de capitalizar infinitamente tudo o que pro-duzem levanta uma questo capital: as novas tecnologias podem afianar a utopia deuma apreenso total dos acontecimentos, fenmenos e mensagens, mas no nos im-pede de recordar que a memria indissocivel do esquecimento.

    ABSTRACT

    In this work we intend to approach us initially the place occupied bythe auditory sensorial model in an Anthropology of the senses. Soonafter we will analyze the way as the phenomenon of the repetition itbecomes essential to preserve the thought carefully articulated in anacoustic culture. Afterwords will work the complex relationships be-tween memory and rebuilding of the past and between memory andpower. We will conclude our text with an analysis of the implications ofthe introduction of the school in an acoustic culture as well as the papercarried out by the school that if decisive in the production of memoriesand in the process of memory.

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