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Crónica de um museu inesperado:
revisitações através da arte
Maria Dulce Loução
Less Minhós Concha de Almeida
Maria Dulce Loução, Less Minhós Concha de Almeida
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Crónica de um museu inesperado: revisitações através da Arte
Maria Dulce Loução
Arquitecta, professora de Projecto de Arquitectura de Interiores, e Coordenadora do Mestrado
Integrado em Arquitectura, especialização em Arquitectura de Interiores na Faculdade de
Arquitectura da Universidade de Lisboa. É Coordenadora do projecto de investigação sediado no
CIAUD, intitulado Arquitecturas Revisitadas. O seu email é [email protected]
Less Minhós Concha de Almeida
Arquitecta pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. É co-Directora e co-
Coordenadora de projecto da associação Plano Lisboa no ciclo expositivo Encontros: Vários actos
em torno do Desenho e curadora da exposição Pedro António Janeiro vs Sérgio Azevedo. O seu
email é [email protected]
Resumo
As ruínas, os espaços expectantes, prometem o inesperado.
Esta revisitação no espaço na Avenida da Índia, de uma certa nostalgia à volta do
Desenho, promove uma reinterpretação do espaço a partir das suas qualidades arquitectónicas,
habitadas de um branco interior colorido de sombras, onde se instalam objectos de contemplação,
exposições que o passeante percorre, em novos espaços de novos museus, efémeros, de um
tempo cronológico limitado, mas de memórias sem tempo, que, a pretexto destes armazéns,
propõe que a cidade seja habitada nos seus vazios funcionais, em espaços de ver e desfrutar.
Esta comunicação trata de um dos projectos de celebração do efémero, no espaço
intemporal da frente ribeirinha do Tejo, junto à memória do atelier do Mestre Lagoa
Henriques, que ensinou a despertar gerações para o prazer de registar a carvão ou grafite,
os contornos do Mundo.
Este lugar, encerrado durante vários anos, é aqui tomado como um símbolo daquilo
que representa o exercício de desenhar. Através do ciclo expositivo Encontros: Vários
actos em torno do Desenho, este espaço é resgatado, restituído e devolvido efemeramente
à cidade, onde estudantes e académicos, jovens artistas e curadores se debruçam sobre
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a disciplina do Desenho, valorizando o seu carácter de processo artístico e de criação,
colocando-o e interpretando-o como obra expositiva.
Abstract
The ruins, the expectant spaces, promise the unexpected.
This revisitation in the space on Avenida da Índia, of a certain nostalgia surrounding the
Draw, promotes a reinterpretation of the space from its architectonic qualities, inhabited by an
interior whiteness colored by shadows, where you find objects of contemplation, exhibitions where
the passer walks through, in new spaces of new museums, ephemeral, of a limited chronological
time, but of memories without time, that, on the pretext of these warehouses, proposes the city’s
functional voids should be inhabited, in places of observation and enjoyment.
This communication is about one of the celebration of the ephemeral projects, on the
timeless space of Tagus riverain front, near the memory of Master Lagoa Henriques studio,
who taught generations to awake to the pleasure to register in charcoal or graphite the shapes
of the world.
This place, that was closed for many years, is a symbol of what the exercise of drawing
means. Through the exhibition cicle Meetings: Several Acts Embracing Drawing, this place is
rescued, refunded and ephemerally returned to the city, where students and academics, young
artists and curators, gather around the course of Drawing, valuing its artistic process and creation
character, making it and interpreting it as an expository work of art.
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As ruínas, os espaços expectantes, prometem o inesperado.
Uma vez passado o uso original dos edifícios, a arquitectura remanescente oferece
inúmeras possibilidades de uso, de ocupação, mais ou menos efémeras, que permitem um vasto
leque de interpretações imaginativas, gerando possibilidades de transcendência da própria
realidade física da ruína, para se transformar numa nova reinterpretação do edificado, e criar novas
realidades, novos sentidos, novos modos de vida.
Os espaços abandonados, sem uso, que não contêm nada de valioso senão o espaço de
memórias há muito passadas, por vezes associadas a espaços de fealdade, perigo e desordem,
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podem adquirir novos sentidos pela sua ocupação em programas de valor temporalmente
significativo, onde, como no caso do armazém, agora objecto de ocupação, as memórias do uso do
espaço, conformado em caixa vazia, de asnas sombreadas por lanternins originais, aceita albergar
um projecto de celebração do Desenho, desejo de ser e reportar o que ainda não foi visto sob
aquele específico ponto de vista, modo de celebrar o Mundo visível e também o Intangível.
Esta revisitação no espaço na Avenida da Índia, de uma certa nostalgia à volta do
Desenho, promove uma reinterpretação do espaço a partir das suas qualidades arquitectónicas,
habitadas de um branco interior colorido de sombras, onde se instalam objectos de contemplação,
exposições que o passeante percorre, em novos espaços de novos museus, efémeros, de um
tempo cronológico limitado, mas de memórias sem tempo, que, a pretexto destes armazéns,
propõe que a cidade seja habitada nos seus vazios funcionais, em espaços de ver e desfrutar.
Esta comunicação trata de um dos projectos de celebração do efémero, no espaço
intemporal da frente ribeirinha do Tejo, junto à memória do atelier do Mestre Lagoa
Henriques, que ensinou a despertar gerações para o prazer de registar a carvão ou grafite,
os contornos do Mundo.
O Plano Lisboa e Encontros: Vários actos em torno do Desenho
O Plano Lisboa é uma associação sem fins lucrativos, fundada com o propósito de
promover a experimentação e a discussão através de eventos variados em torno da arte
contemporânea e suas vertentes, num espaço específico, que é a cidade de Lisboa.
Este, pretende utilizar a cidade como um espaço experimental, um atelier aberto e
um centro de discussão e problematização, numa iniciativa de dar a conhecer a cidade,
repensando-a e requalificando-a enquanto espaço laboratorial activo, tornando-a palco de
discussão, crítica e encontro.
No fundo, um lugar que se constitui como um fórum contemporâneo de debate, trocas de
ideias e fluxo de acções, onde e a partir do qual os artistas e todos os agentes podem desenvolver
discursos e projectos artisticamente capazes de se consolidar numa visão acerca do que nos
rodeia social, politica e artisticamente.
É com este mote que o Plano Lisboa convida uma geração de profissionais emergentes a
participar activamente na construção de uma cidade em mudança, no sentido de a rejuvenescer,
de a melhorar e de a reinventar.
Nesta sequência surge a intervenção Encontros: Vários actos em torno do Desenho
no lugar anteriormente destinado a albergar a Casa-Museu do artista Lagoa Henriques,
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escultor português, reconhecido como Mestre português no ensino das práticas artísticas
relacionadas com o Desenho.
Este espaço, cedido ao Plano Lisboa pela Câmara Municipal de Lisboa, depois de vários
anos devoluto é aqui tomado como um símbolo daquilo que representa o exercício de desenhar,
que marca a memória de muitos artistas, arquitectos e designers de uma geração vasta, que com
ele e ali perceberam o desenho como forma de percepção e reflexão. (Figura 1)
Figura 1 – Espaço antes da intervenção Encontros: Vários actos em torno do Desenho
Pretendeu-se, então, reanimar o espaço - até então escondido apenas nas memórias
daqueles que o habitaram - e restituí-lo na cidade, através de um ciclo de exposições onde
estudantes e académicos, jovens artistas e curadores se debruçaram sobre a disciplina do
Desenho, valorizando o seu carácter de processo artístico e de criação, colocando-o e
interpretando-o como obra expositiva.
Desta forma, o projecto para a criação de um ciclo expositivo funde-se com a própria
arquitectura que o acolhe, onde o seu papel é resgatado, restituído e devolvido à cidade, num
processo que acciona questões de memória, função e utilização.
Nesta intervenção reuniram-se diferentes áreas do campo artístico, desde a Arquitectura
às Artes Plásticas, que apresentaram perspectivas e visões diferentes daquilo que é o desenho e
daquilo que se entende por processo de criação, através da apresentação de trabalhos e
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Figura 2 – Inauguração da exposição Desenhos da Lisboa Alternativa
exercícios que representam a disciplina do desenho enquanto papel essencial do processo de
percepção das ideias e do mundo.
Este espaço permite que as obras sejam entendidas e exibidas - não só as obras se
moldam ao espaço expectante, como esta antiga galeria as abraça e acolhe-as. Desde a
primeira visita ao espaço, passando pelo seu processo de recuperação, até ao momento de
apresentação pública deste ciclo, o edifício foi mudando de rosto, compondo-se a si mesmo
para ser devolvido à cidade.
Neste espaço de memória, criou-se um modelo expositivo pouco convencional, dinâmico e
“rotativo”, de atelier aberto e de vários encontros com o público, potenciando o seu maior
envolvimento e entendimento dos processos criativos, enquanto obra não-expositiva em detrimento
de uma apresentação de obras estabilizadas e terminadas.
Este ciclo, que decorreu durante o mês de Junho e Julho de 2014, foi dividido em dois
actos - Desenhos da Lisboa Alternativa e III Actos em Desenho - com trabalhos distintos na sua
génese e na sua concretização, ambos complementados por uma Programação Paralela - um
sistema expositivo rotativo, com um artista/projecto convidado semanalmente.
A primeira exposição do ciclo, Desenhos da Lisboa Alternativa, com a curadoria de Pedro
António Janeiro, teve como objectivo mostrar ao público aquela que é a cidade de Lisboa não-
turística e marginal.
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Figura 3 – Inauguração da exposição III Actos em Desenho
Surge a partir de um conjunto de exercícios de desenho, realizados por alunos da
Faculdade de Arquitectura – Universidade de Lisboa, através da disciplina optativa Desenhos da
Lisboa Alternativa (Para Erasmus e Não Só) durante o segundo semestre lectivo de 2013/14, com
a responsabilidade científica a cargo de Pedro António Janeiro – Professor Doutor pela Faculdade
de Arquitectura da Universidade de Lisboa e Professor de Desenho.
Aqui, através de um olhar académico, distante daquilo que são os ícones de Lisboa,
mostra-se uma cidade menos visível e visitável, e, talvez por isso, à primeira vista, menos aprazível
de ser traduzida no papel.
Lugares como o Largo do Rio Seco, Xabregas, Benfica, Telheiras, Calçada de Carriche e
Pincheleira foram aqui retratados através de desenhos de observação, pelo olhar de catorze alunos
portugueses e estrangeiros.
Através de trinta e cinco desenhos, mostra-se, então, uma outra cidade, crua, descoberta
– uma outra-Lisboa. (Figura 2)
Se na primeira exposição se procurou apresentar uma vertente do desenho académico, a
partir do desenho de observação - acto primeiro da aprendizagem do processo criativo -, na
segunda exposição, intitulada III Actos em Desenho procurou-se mostrar o exercício de desenho
enquanto método predominante no desencadeamento do processo artístico.
Francisco Baptista Venâncio, João Gabriel Pereira e Verónica Calheiros foram os artistas
plásticos convidados pelo curador da exposição Sérgio Azevedo – Artista Plástico, Presidente do
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Figura 4 – Programação paralela: Parede Curva, Joana Trindade Bento
Plano Lisboa e Comissário Geral do Plano Lisboa art project 2015 – a expor publicamente a sua
prática de desenho amadurecida, assídua e estabelecida, naquilo que poderá ter consistido numa
proposta reveladora de uma geração de artistas neste campo. (Figura 3)
Estes artistas, que partilharam a mesma formação na Escola Superior de Arte e Design
das Caldas da Rainha, mostram visões diferentes daquilo que é o desenho, com abordagens
distintas a espaços de memória individuais, resultando num leque de narrativas que conduzem o
visitante àquela que é a prática do desenho enquanto atitude de rascunho, onde se permite, ou até,
se procura o erro.
Para esta antiga Galeria, pensou-se no desenho enquanto objecto de registo não só de
um processo criativo - daquilo que não é final, de carácter descomprometido -, mas também de
busca daquilo que é a obra terminada.
Desta forma, o sentido de resgatar do contexto de atelier e expor ao público este
processo, tornou de fácil entendimento que esta prática instintiva e esta produção incessante e
contínua, resulta num trabalho sólido, conciso e consolidado, “digno” de ser apresentado.
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Figura 5 – Programação paralela: Tapetes Rolantes no Deserto (Livro de Artista), Andreia Santana
Ao longo destas duas exposições, foram, paralelamente, convidados autores das áreas
das Artes Plásticas e da Arquitectura, para apresentarem o seu trabalho, incidindo especificamente
na sua relação com o desenho.
Estas exposições, de carácter semanal, inseridas dentro das duas exposições principais e
dentro de um espaço específico, foram exibidos projectos que pretendem, também eles, criar
relações íntimas com o desenho, através de diferentes suportes e processos, nomeadamente
instalação, escultura, livro de artista e maqueta.
Na primeira semana a artista plástica Joana Trindade Bento apresentou uma instalação de
Desenho intitulada Parede Curva, onde o espaço arquitectónico se relaciona intimamente com a
escultura. Realizada in loco, a sua obra é pensada por e para o espaço, numa simbiose que,
aquando exposta, a peça transforma-se em parte integrante da própria arquitectura, ainda que a
sua característica individual seja mantida. (Figura 4)
Seguidamente, na segunda semana, com a artista plástica convidada Andreia Santana,
surge a exposição do livro-objecto Tapetes Rolantes no Deserto (Livro de Artista), fruto de um
processo de trabalho em maquete para uma instalação final intitulada Tapetes Rolantes no
Deserto. (Figura.5)
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Figura 6 – Programação paralela: Linha do Horizonte, Filipe André Alves
Posteriormente, o artista plástico Filipe André Alves apresenta-nos uma instalação de
escultura, Linha de Horizonte, onde, novamente, o espaço da galeria é manipulado, entrando num
jogo de tensão, numa espécie de sinergia com a peça de aço que percorre parede a parede,
coincidente com a linha do olhar. (Figura 6)
Em tom de conclusão, surge, na semana IV, a exposição Pedro António Janeiro vs Sérgio
Azevedo, da curadoria de Less Almeida. Aqui, pretende-se coser e interligar as duas exposições
centrais – Desenhos da Lisboa Alternativa e III Actos em Desenho – onde são convidados os
respectivos curadores a exporem o seu trabalho enquanto artistas através de duas séries de
desenhos, onde se estabelecem relações entre aquilo que é o lado mais académico e o lado mais
contemporâneo do Desenho. Mostra-se como podem os corpos, enquanto matéria, moldar-se e
transformar-se com e dentro do espaço em que estão inseridos, assumindo diferentes formas e
relações. (Figura 7)
Para o Plano Lisboa este ciclo expositivo serviu não só como um revisitar de um espaço
perdido nas memórias, como deu balanço para um projecto que terá lugar ao longo do mês de
Maio de 2015 e que servirá como reactivador de muitos outros espaços, alguns com características
semelhantes, de ocupação temporária, com o nome de Plano Lisboa art project 2015, que irá
impulsionar análogos momentos efémeros na vida da cidade.
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Figura 6 – Programação paralela: Pedro António Janeiro vs Sérgio Azevedo, curadoria Less Almeida
Como registo desta ocupação, restará a memória de cerca de mil pessoas que
(re)visitaram esta galeria, complementada por duas publicações, relativas a cada exposição
principal, juntamente com um complemento, referente à programação paralela.
Espera-se, com este desfecho o enriquecimento e uma reflexão sobre os caminhos da
sociedade e da arte contemporânea na sua relação com o espaço urbano, cujo palco é, neste
caso, a cidade de Lisboa.
Naquele que já foi um armazém de apoio à indústria naval, habitado pontualmente
por este evento efémero, mais uma vez se equaciona o que Jorge Cruz Pinto refere enquanto
“Espaço-Limite”.
Trata-se de uma realidade que transcende os limites físicos do espaço, e que estabelece
relações intangíveis com a envolvente e o corpo, num jogo onde, mais do que a pele do edifício, a
sua materialidade, cor, texturas, luz e sombra, actuam na criação de Atmosferas, ambientes que
suportam a Arte contemporânea.
Aqui a luz determina o espaço e o modo como vemos o que nele existe. A luz e a sombra
conformam os percursos expositivos, e conferem aos objectos a qualidade de serem vistos; vistos
não só pelo olho, porque o olho não vê, mas com a mente, a memória, arriscando a dizer, com a
alma, guardando o que foi visto, naquele contexto inesperado, como síntese ajustada e memorável,
pouco a pouco, de modo único e pessoal, entre Arte e Arquitectura.