critica feminista e ciencia na historiografia dos anos 80
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CRÍTICA FEMINISTA E CIÊNCIA NA HISTORIOGRAFIA DOS ANOS 1980
Ligia Kussama
Mesmo levando em conta toda a dificuldade semântica
envolvida na utilização do termo ciência, não se estaria incorrendo
numa exagerada generalização ao afirmar que grande parte do olhar
crítico dirigido à contemporaneidade considera a Ciência Moderna
como o projeto mais bem sucedido na história dos últimos séculos.
Mas este mesmo olhar distingue também o caráter destrutivo, ou
mesmo catastrófico, desse projeto. É fácil, então, apontar a questão
ecológica como a face mais visível de um futuro pintado com as
cores sombrias da mais pessimista ficção científica produzida por
Hollywood.
Não é muito difícil notar, portanto, que a ciência produziu
também seus descontentes, em meio ao poderoso conjunto formado
pela ciência natural moderna e a moderna economia capitalista.
Quase sempre localizada, em termos de origens, no quadro dos
movimentos de expansão dos direitos civis dos negros norte-
americanos e das manifestações políticas contra a guerra no
Sudeste Asiático — com especial ênfase para os anos 1960 —, a
segunda onda1 dos movimentos feministas, nos EUA, inclui vertentes
de pensamento e práticas que intervieram neste complexo campo de
crítica à ciência que, no entanto, mutatis mutantis, várias dessas 1 Embora acompanhada de muito crítica, grande parte da literatura feminista generalizou a periodização que localiza a primeira onda dos movimentos feministas, nos EUA, entre 1860 e 1920, e identifica a segunda onda entre as décadas de 1960 e 1990.
vertentes não querem destruir. Ou seja, de acordo com o enfoque
que pretendo neste estudo acompanhar, não se trata de orquestrar
discursos de estrita aversão à ciência e à tecnologia, mas pensar a
possibilidade de uma outra ciência, ou de uma ciência sucessora
conforme termo cunhado por Sandra Harding2.
Aqui, na perspectiva de um projeto de investigação em
andamento, me interessa, então, olhar para as propostas que uma
parte desses feminismos, dentro dos estudos de ciência3, começou a
movimentar nos finais dos anos 1970, mas que de fato se torna mais
especialmente visível, em termos do acervo publicado, na década de
1980. Note-se que a escolha tem como locus preferencial as
universidades norte-americanas, o que significa que se estará
tratando de propostas que se desenrolam no âmbito dos estudos
acadêmicos de ciência, onde se localiza a crítica feminista a ser
enfocada. Observo, entretanto, que este é um texto introdutório e
busca repensar a localização teórica freqüentemente atribuída a tais
estudos feministas de ciência.
Uma série de comentadores — por exemplo: Fredric
Jameson, Peter Dear, Steve Fuller, David Hess, Robert Kurz, Joseph 2 O termo é utilizado por Sandra Harding, freqüentemente, ao longo de toda sua obra publicada, como sinônimo de um projeto crítico e feminista para a ciência. Ver, por exemplo: [HARDING, Sandra. 1986. The Science Question in Feminism. Ithaca: Cornell University Press.]; [ _______. 1991. Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives. Ithaca: Cornell University Press.]; [______ . 1998. Is Science Multicultural? Postcolonialisms, Feminisms, And Epistemologies. Bloomington: Indiana University Press.]3 Maria Margaret Lopes descreve assim os feminist science studies: "As ciências naturais vêm sendo objeto da crítica de feministas acadêmicas, particularmente nos Estados Unidos, desde há pelo menos quinze anos. Esta produção tem procurado articular dimensões teóricas da crítica ao conhecimento científico com teorias da linguagem, filosofia, sociologia e história das ciências em suas mais diferentes vertentes. (...) um campo disciplinar tão amplo e complexo, genericamente referido como feminism and science (feminismo e ciência) ou feminist science studies (estudos feministas de ciência)” (...) [LOPES, Maria Margaret. 1998. “Aventureiras” nas Ciências: Refletindo sobre Gênero e História das Ciências Naturais no Brasil. Cadernos Pagu 10 : 347]
2
Rouse, Sal Restivo, entre outros — considera possível que os
estudos feministas tenham produzido uma das críticas mais afiadas
no amplo território dos estudos de ciência, nos últimos trinta anos. O
destaque está certamente nas pesquisas realizadas nas ciências
sociais e nas ciências biológicas4. Mesmo anotando a dificuldade em
mapear esta produção, grande parte dos autores tende a concordar que a
crítica feminista nos estudos de ciência e tecnologia incidiu fortemente
sobre a questão da escolha de objetos experimentais, mantém ainda uma
discussão teórica que coloca em xeque vários dos pressupostos que
acompanham a prática de pesquisa, e incansavelmente denunciou e
denuncia as interpretações marcadas por gênero embutidas nos resultados
de pesquisa.
Joseph Rouse5 fornece um quadro apropriado para uma
primeira delimitação teórica da abordagem feminista nos estudos de
ciência. Primeiro, por contrastes e semelhanças reconhecidos no
confronto que estabelece com a sociologia do conhecimento 4 Londa Schiebinger, exemplificando um ponto de vista do feminismo liberal, destaca como uma das vitórias do feminismo norte-americano, no campo da Medicina, a criação em 1990 do Office of Research on Women’s Health – ORWH (do NIH – National Institute of Health) e, em 1991, o programa de pesquisas Women’s Health Initiative. Desde o final da década de 1980, pesquisadoras feministas criticavam vários estudos que omitiam as mulheres, quer como objetos, quer como sujeitos, das pesquisas em áreas biomédicas. Uma coalizão de mulheres no Senado e na Câmara, em aliança com os movimentos pela saúde da mulher (informados pela crítica feminista), pressionou o NIH exigindo maior atenção às questões de saúde da mulher e a inclusão de um número maior de mulheres em estudos de saúde em geral. De 1990 a 1994, o Congresso dos EUA sancionou cerca de 25 ações legislativas para a melhoria da saúde da mulher norte-americana, variando desde a exigência para que mulheres fossem incluídas nos ensaios clínicos de medicamentos, e/ou em estudos-pesquisas biomédicas, até uma nova regulamentação federal que incluía a ampliação do acesso aos exames de mamografia para setores pobres da população feminina. [SCHIEBINGER, Londa. 1999. Has Feminism Changed Science? Cambridge, Mass; Harvard University Press. Cap 6]5 ROUSE, Joseph. 1997. Feminism and the Social Construction of Scientific Knowledge. In: NELSON, Lynn Hankinson and NELSON, Jack (eds.). Feminism, Science, and the Philosophy of Science. Dordrecht: Kluwer
3
científico (sociology of scientific knowledge – SSK) 6 — uma das
correntes dominantes nos science studies, nos anos 1980 —, e, em
seguida, pela caracterização distinguida que oferece dos estudos de
ciência feministas. Assim, do ponto de vista de Rouse, os estudos
de ciência feministas e a sociologia do conhecimento científico
emergiram nas últimas décadas como desafios explícitos ao
individualismo epistemológico que ainda predomina na maior parte
da produção em filosofia da ciência. Para este autor, tanto os
estudos feministas quanto a nova sociologia do conhecimento além
de constituírem desafios para as ortodoxias filosóficas, ao mesmo
tempo, estabelecem propostas construtivas para uma compreensão
social da ciência.
Rouse discorda da afirmação que freqüentemente
confere aos estudos feministas uma posição intermediária entre a
tradicional filosofia da ciência e a recente sociologia do
conhecimento científico. Ele vê as teóricas feministas produzindo uma
diferenciada — e nova — ontologia do conhecimento, cuja articulação
mostra e também contraria a continuidade entre filosofias epistemológicas
e sociologias da ciência. Por outro lado, todo um conjunto de trabalhos 6 Uma observação necessária, aqui, diz respeito à constatação de que os science studies já não se restringem mais à SSK . Sequer, talvez, possamos considerar esta última como a corrente dominante desse campo de estudos, conforme outrora, algures, se quis acreditar. Ver, entre outras, as avaliações de David Hess, [HESS, David. 1997. If you’re thinking of living in STS: a guide for the perplexed. In: DOWNEY, Gary Lee and DUMIT, Joseph (eds.). Cyborg & Citadels: Anthropological Interventions in Emerging Sciences and Technologies. Santa Fe: School of American Research Press.] e [HESS, David. 1997. Science Studies: An Advanced Introduction. New York: New York University Press], sobre a espetacular ampliação do campo nos anos 1990. Esta visada permite reavaliar o que aparecia quase sempre como uma impossibilidade: as conversações entre a crítica feminista e os science studies – uma forma pelo menos imprecisa de colocar a questão, desde que as fronteiras entre os participantes já não se definem pelas mesmas linhas de demarcação.
4
bastante recentes e que se inscrevem na tradição sociológica — ele
cita Bruno Latour, Suzan Leigh-Star, Andrew Pickering, Karin Knorr-
Cetina, Michael Lynch, entre outros, — destoam de uma certa
ortodoxia na sociologia do conhecimento científico de maneira a
encorajar uma aproximação com os estudos feministas.7
Nos momentos iniciais8 os estudos feministas de ciência
adotaram a perspectiva da construção de uma ciência feminina /
feminista, na tentativa de examinar por quais caminhos as pesquisas
em biologia, psicologia e ciências sociais teriam se tornado
androcêntricas. Esse viés crítico original vai sendo modificado, ou
pelo menos matizado, devido, em parte, às resistências oferecidas
pelas próprias ciências e pela filosofia da ciência. Mais
recentemente, as formulações de um feminismo que notoriamente
busca seu lugar no espaço da erudição, permitem o afloramento de
7 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.196.8 Nancy Fraser [FRASER, Nancy. 1997. Multiculturalism, Antiessentialism, and Radical Democracy: A Genealogy of the Current Impasse in Feminist Theory. In:_______ Justice Interruptus: Critical Reflections on the ‘Postsocialist’ Condition. New York and London: Routledge.] adota uma periodização para o debate das ‘diferenças’ no feminismo norte-americano que pode assim ser resumida: 1960 –1970: o enfoque está na diferença de gênero exigindo igualdade para as mulheres;1970 –1980: diferença de gênero exigindo realçar a identidade de gênero comum a todas as mulheres;
valorização do feminino; 1980 – 1990: diferença entre mulheres; impacto da entrada em cena das lésbicas e das mulheres ‘de cor’; 1990 ... múltiplas diferenças; encontros com outros eixos de opressão (raça, etnia, sexualidade, classe).
Sobre a expressão mulheres ‘de cor’, note-se que também é usado o termo U. S. feminist of color. A expressão of color não tem a mesma força depreciativa da expressão "de cor" em português. Em inglês a palavra explicitamente racista é "colored". Na ausência de uma expressão mais adequada em português, mantive a tradução literal de cor, acompanhando sugestão de Tomaz Tadeu da Silva. Note-se que o termo se refere, além das mulheres negras, a todo um conjunto de mulheres de Terceiro Mundo nos EUA. Donna Haraway destaca que “as ‘mulheres de cor’ são a força de trabalho preferida das indústrias baseadas na ciência; são as mulheres reais que o mercado sexual, o mercado de trabalho e a política da reprodução mundiais lançam no rodopio caleidoscópico da vida cotidiana. As mulheres jovens coreanas contratadas pela indústria do sexo e pela linha de montagem eletrônica são recrutadas nas escolas secundárias e educadas para o circuito integrado. O ser alfabetizada, especialmente em inglês, distingue a força de trabalho feminina ‘barata’, tão atrativa para as multinacionais.” [HARAWAY, Donna. 2000 |1985|. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). 2000. Antropologia do Ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.: 93-94].
5
concepções alternativas sobre o conhecimento científico e, ao
mesmo tempo, enfatizam o caráter social desse empreendimento.9
Numa outra clave, é interessante notar — correndo o
risco de estabelecer aqui uma certa dose de wishful thinking — que
as questões de gênero estão interferindo também com as bases
sobre as quais se pensava em história10. De um lado, uma forte
tendência na produção acadêmica norte-americana parece mostrar
que se passa de uma ‘história das mulheres’ para uma construção
histórica das diferenças sexuais, num quadro mais amplo, pensando
história tout court e nos anos mais recentes. De outro, o
reconhecimento de que alguma produção outrora restringida ao
métier acadêmico feminista já ultrapassa estas fronteiras e ganha
lugar discreto nos debates mais, ou menos, convencionais. Um
exemplo significativo, na área das ‘histórias da ciência’, ou talvez
‘histórias dos science studies’, se encontra numa recente avaliação
de Bruno Latour:
“Deve-se simplesmente, por exemplo, comparar a literatura
sociológica pré-feminista sobre donas de casa e papéis-de-
genêro com a literatura gerada depois que o feminismo
tornou refratária a maior parte dos potenciais entrevistados,
para ver a diferença entre uma ciência pseudo-objetiva e 9 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.195.10 Maria Izilda S. de Matos, acompanhando de perto o pensamento de Gadamer, resume uma dessas possibilidades assim: “A politização do privado e a privatização do público são novos desafios à interpretação crítica do historiador e permitem a ampliação de questões metodológicas importantes, sem abstração do engajamento político do sujeito do conhecimento. A politização do cotidiano pressupõe uma comunicação entre o pesquisador e os testemunhos, que provém de um questionamento a partir da inserção do historiador no mundo contemporâneo. Envolve a interação do sujeito com o objeto, sem uma neutralidade pré-fixada, criando uma verdadeira sintonia entre o historiador e seu objeto de estudo.” [SAMARA, Eni de Mesquita, SOIHET, Raquel e MATOS, Maria Izilda S. de. 1997. Gênero em Debate: Trajetórias e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo: EDUC. p.105]
6
que tem somente a aparência de cientificidade, com um
conjunto surpreendente de descobertas sobre gênero, que
pode nem sempre possuir a pompa da ciência natural, mas
certamente tem a sua objetividade, sua “objetividade”, ou
seja, sua habilidade de induzir novas entidades à cena, de
levantar novas questões nos seus próprios termos e de
forçar os cientistas sociais e naturais a re-aparelhar por
completo o seu aparato intelectual.”11
Tanto os estudos feministas de ciência quanto a SSK
entendem o conhecimento científico como um empreendimento
coletivo ou social. Ambos também argumentam que aspectos
importantes das filosofias e epistemologias tradicionais da ciência
não são meramente falsos, mas ideológicos12. E, além disso, essas
duas tradições constituem projetos politicamente engajados, embora
isto seja mais evidente na prática feminista. Estabelecidas as
semelhanças, Rouse argumenta que uma diferença fundamental
entre feministas e a SSK esteja numa concepção epistemológica
tradicional mantida pelos aderentes a este último campo.
“... eles estimam a totalidade das crenças científicas como
afirmações ao conhecimento de um mundo objetivo, e
julgam que elas não possuem maior (nem menor) 11 LATOUR, Bruno. 2000. When things strike back: a possible contribution of “science studies” to the social sciences. The British Journal of Sociology 51(1): 116.12 A desatenção que a nova sociologia da ciência tem com as questões de gênero e sexo pode surpreender, mas, conforme Michael Lynch, a questão é saber se a SSK acompanharia as críticas feministas da ‘ciência objetiva’, uma vez que tais críticas retêm, como alvo, um quadro da ideologia técnica e científica que é justamente problematizado nos estudos de ciência da SSK. [LYNCH, Michael.1993. Scientific practice and ordinary action: ethnomethodology and social studies of science. Cambridge: Cambridge University Press. p.111]
7
comprovação que quaisquer outros sistemas de crença
aceitos coletivamente. A nova sociologia não abandonou a
justificação, pelo contrário, engajou-se no projeto
epistemológico bastante genérico de mostrar por quê
defesas filosóficas corriqueiras da racionalidade ou da
verdade das afirmações científicas devem, ao contrário, ser
consideradas como racionalizações ex post facto.”13
“ Pesquisadoras feministas de estudos da ciência divergem
muito claramente dos novos sociólogos na sua oposição ao
relativismo, no seu posicionamento normativo com respeito
a afirmações científicas específicas, e sua disposição para
reter e empregar concepções revisadas e apropriadas de
evidência, objetividade, e uma distinção entre crença e
conhecimento. Ainda, em muitos casos, estas conhecidas
diferenças são uma conseqüência do direcionamento do
trabalho de pesquisadoras feministas para concepções pós-
epistemológicas de conhecimento, evidência, comprovação
e objetividade, e, portanto opondo-se a um arcabouço
compartilhado pelas filosofias da ciência tradicionais e
pelas novas sociologias do conhecimento científico”. 14
Além disto, para Rouse, as feministas transcendem o
território epistemológico convencional em cinco pontos decisivos,
que passo a transcrever: (1) Elas mudaram o enfoque sociológico sobre o
13 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.201.14 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.202.
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‘conteúdo’ da ciência, para uma problematização da relação entre
conhecedores e o conhecido. (2) Os estudos feministas deliberadamente
constituem parte das práticas e conhecimentos científicos ao invés de
apresentá-los como uma totalidade vista de fora. (3) De uma forma muito
original, elas exercitam uma temporalidade que não se encontra nem nas
filosofias nem na sociologia da ciência: as feministas pensam nas
possibilidades futuras do conhecimento quando estabelecem os principais
questionamentos do estado atual do conhecimento e práticas científicas.
(4) A reconstrução que muitas feministas apresentam do conceito de
objetividade, na ciência e nos science studies, dissolve qualquer distinção
entre uma crítica de caráter epistêmico e uma crítica política, sem permitir
a redução de uma categoria à outra. (5) Muitas feministas desenvolveram
uma concepção mais adequada, e em certo sentido mais radical se
comparada ao Programa Forte, do conceito de reflexividade15
O ponto (4), enunciado por Rouse, é de especial
interesse para um projeto de pesquisa. Penso que podemos tomá-lo
como uma ampla hipótese de trabalho e que pode estabelecer uma
moldura para o entendimento e a discussão dos textos de duas
feministas que atuam no âmbito dos estudos de ciência — Sandra
Harding e Donna Haraway —, aqui trazidos de forma muito
resumida.
Ao pensar uma “ciência sucessora” Sandra Harding
movimenta dois conceitos principais: o standpoint feminista e a
“objetividade forte”. Harding propõe uma inovação metodológica. Ela
15 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. pp.202-203.
9
argumenta, contrariando padrões aceitos pela cientificidade
ocidental, que a objetividade16 é maximizada não com a exclusão de
fatores sociais, da produção do conhecimento, mas com o ‘começar’
o processo de pesquisa a partir de uma explícita localização social: a
experiência vivida daquelas pessoas que têm sido tradicionalmente
excluídas da produção de conhecimento. A obra publicada de
Harding constitui um conjunto que produz grande visibilidade para as
teorias standpoint feministas e é também acompanhado por um
projeto político17 que busca aproximar três grandes vertentes do
feminismo contemporâneo norte-americano — nas palavras de
Sandra Harding: o feminismo empiricista, o feminismo standpoint e o
feminismo pós-moderno.
16 O sociólogo Stephan Fuchs agrupou em itens sumários o que seriam os principais e mais freqüentes significados atribuídos ao termo objetividade, nos estudos de ciência:
A capacidade de uma pessoa de estabelecer um julgamento imparcial e desinteressado. Uma qualidade dos métodos e normas de investigação que disciplinam o impacto de forças
arbitrárias e acidentais sobre o conhecimento. Medidas são objetivas quando elas coincidem fortemente umas com as outras e através de repetidas
medições, tomadas independentemente por vários observadores. Como uma propriedade do conhecimento, a objetividade se refere a proposições que capturem uma
realidade independente e externa. A objetividade também pode ser atribuída a instituições culturais e sociais, que de alguma maneira
são mais sólidas e duradouras do que as crenças pessoais. Desde a Revolução Científica, tornou-se a ausência de forças e circunstâncias individuais,
idiossincráticas, acidentais e contingentes. Os filósofos geralmente concordam que a objetividade é a marca distintiva do conhecimento
científico. Objetividade como um modo de conduta, de controlar emoções, vieses, e interesses.
[FUCHS, Stephan. 1997. A Sociological Theory of Objectivity. Science Studies 11(1) : 4 –26.]
17 A questão política entendida como imbricada com os processos de conhecimento é um dos tropos definidores do campo feminista. Por exemplo, lemos em Teresa de Lauretis: “Aqui é onde, ao meu ver, o feminismo difere de outros modos de pensamento contemporâneos, radicais, críticos ou criativos, como o pós-modernismo e o anti-humanismo filosófico: o feminismo define a si próprio como uma instância política, não meramente como uma política sexual, mas uma política da experiência da vida cotidiana, que mais tarde, por sua vez, invade a esfera pública da expressão e da prática criativa, deslocando hierarquias estéticas e categorias genéricas, e, desta maneira, estabelece a base semiótica para uma produção diferenciada de referências e significados.” [LAURETIS, Teresa de (ed.). 1986. Feminist Studies / Critical Studies. Bloomington: Indiana University Press. p. 10]
10
Donna Haraway18 propõe uma interpretação da
objetividade em termos de “conhecimentos situados” que entendo
como um refinamento da noção de “objetividade forte” de Sandra
Harding. Haraway vê o conhecimento como sempre situado e
contextual e fazendo parte das práticas de cada grupo social. Cada
perspectiva, cada standpoint, é assim, parcial, seletivo e incompleto.
Haraway espera poder conciliar ‘objetividade’ com a
posição/situação do sujeito que conhece, em especial os menos
poderosos, enfatizando, entretanto, que as perspectivas dos
subjugados não são consideradas posições inocentes. Para
Haraway, um projeto democrático em ciência e tecnologia deve
passar pelo engajamento de pessoas cujo modo de vida esteja em
jogo no “aparato de produção de conhecimento e dos sistemas de
ação” – o que pode ser avaliado em correspondência à “objetividade
forte” de Sandra Harding. Mais recentemente, neste campo, aparece
a questão controversa de como formular as relações entre posições
assumidas como parciais pelas feministas, (vide Haraway), e
aqueles interesses que buscam projetar práticas políticas que não
envolvam somente uma visão monolítica da “mulher”. Na acepção de 18 São dois os artigos-chave para acompanhar a proposta de Haraway: Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective [1991 |1988|] e A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century [1991 |1985|]. Ambos podem ser encontrados na coletânea: HARAWAY, Donna. 1991. Simians, Cyborgs, and Women.The Reinvention of Nature. NewYork: Routledge.O primeiro destes artigos, cunhou decisivamente a questão da parcialidade e localização do ponto de vista feminista, e o segundo certamente é um dos artigos mais comentados nos estudos feministas de ciência, tratando das relações entre ciências, tecnologia e um ponto de vista para a produção de políticas feministas revolucionárias. O artigo Situated Knowledges foi primeiramente publicado na revista Feminist Studies, em 1988. Há tradução para o português no Cadernos Pagu 5 (1995). O Cyborg Manifesto, publicado em 1985 na Socialist Review, possui pelo menos duas traduções em português, ver o já citado [HARAWAY, Donna. 2000 |1985|. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). 2000. Antropologia do Ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.] e [HARAWAY, Donna. 1994 |1985|. Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 1994. Tendências e Impasses. O Feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco.]
11
Rosemary Hennessy19, esta é a questão que se estende pela
atualidade, ou seja, como, afinal, compreender em projetos teóricos
afinados as especificidades das reivindicações feministas em acordo
com outros standpoints emancipatórios.
19 HENNESSY, Rosemary. 1993. Materialist Feminism and the Politics of Discourse. New York / London: Routledge. pp.67-68.
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