critica feminista e ciencia na historiografia dos anos 80

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CRÍTICA FEMINISTA E CIÊNCIA NA HISTORIOGRAFIA DOS ANOS 1980 Ligia Kussama Mesmo levando em conta toda a dificuldade semântica envolvida na utilização do termo ciência, não se estaria incorrendo numa exagerada generalização ao afirmar que grande parte do olhar crítico dirigido à contemporaneidade considera a Ciência Moderna como o projeto mais bem sucedido na história dos últimos séculos. Mas este mesmo olhar distingue também o caráter destrutivo, ou mesmo catastrófico, desse projeto. É fácil, então, apontar a questão ecológica como a face mais visível de um futuro pintado com as cores sombrias da mais pessimista ficção científica produzida por Hollywood. Não é muito difícil notar, portanto, que a ciência produziu também seus descontentes, em meio ao poderoso conjunto formado pela ciência natural moderna e a moderna economia capitalista. Quase

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Page 1: Critica feminista e ciencia na historiografia dos anos 80

CRÍTICA FEMINISTA E CIÊNCIA NA HISTORIOGRAFIA DOS ANOS 1980

Ligia Kussama

Mesmo levando em conta toda a dificuldade semântica

envolvida na utilização do termo ciência, não se estaria incorrendo

numa exagerada generalização ao afirmar que grande parte do olhar

crítico dirigido à contemporaneidade considera a Ciência Moderna

como o projeto mais bem sucedido na história dos últimos séculos.

Mas este mesmo olhar distingue também o caráter destrutivo, ou

mesmo catastrófico, desse projeto. É fácil, então, apontar a questão

ecológica como a face mais visível de um futuro pintado com as

cores sombrias da mais pessimista ficção científica produzida por

Hollywood.

Não é muito difícil notar, portanto, que a ciência produziu

também seus descontentes, em meio ao poderoso conjunto formado

pela ciência natural moderna e a moderna economia capitalista.

Quase sempre localizada, em termos de origens, no quadro dos

movimentos de expansão dos direitos civis dos negros norte-

americanos e das manifestações políticas contra a guerra no

Sudeste Asiático — com especial ênfase para os anos 1960 —, a

segunda onda1 dos movimentos feministas, nos EUA, inclui vertentes

de pensamento e práticas que intervieram neste complexo campo de

crítica à ciência que, no entanto, mutatis mutantis, várias dessas 1 Embora acompanhada de muito crítica, grande parte da literatura feminista generalizou a periodização que localiza a primeira onda dos movimentos feministas, nos EUA, entre 1860 e 1920, e identifica a segunda onda entre as décadas de 1960 e 1990.

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vertentes não querem destruir. Ou seja, de acordo com o enfoque

que pretendo neste estudo acompanhar, não se trata de orquestrar

discursos de estrita aversão à ciência e à tecnologia, mas pensar a

possibilidade de uma outra ciência, ou de uma ciência sucessora

conforme termo cunhado por Sandra Harding2.

Aqui, na perspectiva de um projeto de investigação em

andamento, me interessa, então, olhar para as propostas que uma

parte desses feminismos, dentro dos estudos de ciência3, começou a

movimentar nos finais dos anos 1970, mas que de fato se torna mais

especialmente visível, em termos do acervo publicado, na década de

1980. Note-se que a escolha tem como locus preferencial as

universidades norte-americanas, o que significa que se estará

tratando de propostas que se desenrolam no âmbito dos estudos

acadêmicos de ciência, onde se localiza a crítica feminista a ser

enfocada. Observo, entretanto, que este é um texto introdutório e

busca repensar a localização teórica freqüentemente atribuída a tais

estudos feministas de ciência.

Uma série de comentadores — por exemplo: Fredric

Jameson, Peter Dear, Steve Fuller, David Hess, Robert Kurz, Joseph 2 O termo é utilizado por Sandra Harding, freqüentemente, ao longo de toda sua obra publicada, como sinônimo de um projeto crítico e feminista para a ciência. Ver, por exemplo: [HARDING, Sandra. 1986. The Science Question in Feminism. Ithaca: Cornell University Press.]; [ _______. 1991. Whose Science? Whose Knowledge? Thinking from Women’s Lives. Ithaca: Cornell University Press.]; [______ . 1998. Is Science Multicultural? Postcolonialisms, Feminisms, And Epistemologies. Bloomington: Indiana University Press.]3 Maria Margaret Lopes descreve assim os feminist science studies: "As ciências naturais vêm sendo objeto da crítica de feministas acadêmicas, particularmente nos Estados Unidos, desde há pelo menos quinze anos. Esta produção tem procurado articular dimensões teóricas da crítica ao conhecimento científico com teorias da linguagem, filosofia, sociologia e história das ciências em suas mais diferentes vertentes. (...) um campo disciplinar tão amplo e complexo, genericamente referido como feminism and science (feminismo e ciência) ou feminist science studies (estudos feministas de ciência)” (...) [LOPES, Maria Margaret. 1998. “Aventureiras” nas Ciências: Refletindo sobre Gênero e História das Ciências Naturais no Brasil. Cadernos Pagu 10 : 347]

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Rouse, Sal Restivo, entre outros — considera possível que os

estudos feministas tenham produzido uma das críticas mais afiadas

no amplo território dos estudos de ciência, nos últimos trinta anos. O

destaque está certamente nas pesquisas realizadas nas ciências

sociais e nas ciências biológicas4. Mesmo anotando a dificuldade em

mapear esta produção, grande parte dos autores tende a concordar que a

crítica feminista nos estudos de ciência e tecnologia incidiu fortemente

sobre a questão da escolha de objetos experimentais, mantém ainda uma

discussão teórica que coloca em xeque vários dos pressupostos que

acompanham a prática de pesquisa, e incansavelmente denunciou e

denuncia as interpretações marcadas por gênero embutidas nos resultados

de pesquisa.

Joseph Rouse5 fornece um quadro apropriado para uma

primeira delimitação teórica da abordagem feminista nos estudos de

ciência. Primeiro, por contrastes e semelhanças reconhecidos no

confronto que estabelece com a sociologia do conhecimento 4 Londa Schiebinger, exemplificando um ponto de vista do feminismo liberal, destaca como uma das vitórias do feminismo norte-americano, no campo da Medicina, a criação em 1990 do Office of Research on Women’s Health – ORWH (do NIH – National Institute of Health) e, em 1991, o programa de pesquisas Women’s Health Initiative. Desde o final da década de 1980, pesquisadoras feministas criticavam vários estudos que omitiam as mulheres, quer como objetos, quer como sujeitos, das pesquisas em áreas biomédicas. Uma coalizão de mulheres no Senado e na Câmara, em aliança com os movimentos pela saúde da mulher (informados pela crítica feminista), pressionou o NIH exigindo maior atenção às questões de saúde da mulher e a inclusão de um número maior de mulheres em estudos de saúde em geral. De 1990 a 1994, o Congresso dos EUA sancionou cerca de 25 ações legislativas para a melhoria da saúde da mulher norte-americana, variando desde a exigência para que mulheres fossem incluídas nos ensaios clínicos de medicamentos, e/ou em estudos-pesquisas biomédicas, até uma nova regulamentação federal que incluía a ampliação do acesso aos exames de mamografia para setores pobres da população feminina. [SCHIEBINGER, Londa. 1999. Has Feminism Changed Science? Cambridge, Mass; Harvard University Press. Cap 6]5 ROUSE, Joseph. 1997. Feminism and the Social Construction of Scientific Knowledge. In: NELSON, Lynn Hankinson and NELSON, Jack (eds.). Feminism, Science, and the Philosophy of Science. Dordrecht: Kluwer

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científico (sociology of scientific knowledge – SSK) 6 — uma das

correntes dominantes nos science studies, nos anos 1980 —, e, em

seguida, pela caracterização distinguida que oferece dos estudos de

ciência feministas. Assim, do ponto de vista de Rouse, os estudos

de ciência feministas e a sociologia do conhecimento científico

emergiram nas últimas décadas como desafios explícitos ao

individualismo epistemológico que ainda predomina na maior parte

da produção em filosofia da ciência. Para este autor, tanto os

estudos feministas quanto a nova sociologia do conhecimento além

de constituírem desafios para as ortodoxias filosóficas, ao mesmo

tempo, estabelecem propostas construtivas para uma compreensão

social da ciência.

Rouse discorda da afirmação que freqüentemente

confere aos estudos feministas uma posição intermediária entre a

tradicional filosofia da ciência e a recente sociologia do

conhecimento científico. Ele vê as teóricas feministas produzindo uma

diferenciada — e nova — ontologia do conhecimento, cuja articulação

mostra e também contraria a continuidade entre filosofias epistemológicas

e sociologias da ciência. Por outro lado, todo um conjunto de trabalhos 6 Uma observação necessária, aqui, diz respeito à constatação de que os science studies já não se restringem mais à SSK . Sequer, talvez, possamos considerar esta última como a corrente dominante desse campo de estudos, conforme outrora, algures, se quis acreditar. Ver, entre outras, as avaliações de David Hess, [HESS, David. 1997. If you’re thinking of living in STS: a guide for the perplexed. In: DOWNEY, Gary Lee and DUMIT, Joseph (eds.). Cyborg & Citadels: Anthropological Interventions in Emerging Sciences and Technologies. Santa Fe: School of American Research Press.] e [HESS, David. 1997. Science Studies: An Advanced Introduction. New York: New York University Press], sobre a espetacular ampliação do campo nos anos 1990. Esta visada permite reavaliar o que aparecia quase sempre como uma impossibilidade: as conversações entre a crítica feminista e os science studies – uma forma pelo menos imprecisa de colocar a questão, desde que as fronteiras entre os participantes já não se definem pelas mesmas linhas de demarcação.

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bastante recentes e que se inscrevem na tradição sociológica — ele

cita Bruno Latour, Suzan Leigh-Star, Andrew Pickering, Karin Knorr-

Cetina, Michael Lynch, entre outros, — destoam de uma certa

ortodoxia na sociologia do conhecimento científico de maneira a

encorajar uma aproximação com os estudos feministas.7

Nos momentos iniciais8 os estudos feministas de ciência

adotaram a perspectiva da construção de uma ciência feminina /

feminista, na tentativa de examinar por quais caminhos as pesquisas

em biologia, psicologia e ciências sociais teriam se tornado

androcêntricas. Esse viés crítico original vai sendo modificado, ou

pelo menos matizado, devido, em parte, às resistências oferecidas

pelas próprias ciências e pela filosofia da ciência. Mais

recentemente, as formulações de um feminismo que notoriamente

busca seu lugar no espaço da erudição, permitem o afloramento de

7 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.196.8 Nancy Fraser [FRASER, Nancy. 1997. Multiculturalism, Antiessentialism, and Radical Democracy: A Genealogy of the Current Impasse in Feminist Theory. In:_______ Justice Interruptus: Critical Reflections on the ‘Postsocialist’ Condition. New York and London: Routledge.] adota uma periodização para o debate das ‘diferenças’ no feminismo norte-americano que pode assim ser resumida: 1960 –1970: o enfoque está na diferença de gênero exigindo igualdade para as mulheres;1970 –1980: diferença de gênero exigindo realçar a identidade de gênero comum a todas as mulheres;

valorização do feminino; 1980 – 1990: diferença entre mulheres; impacto da entrada em cena das lésbicas e das mulheres ‘de cor’; 1990 ... múltiplas diferenças; encontros com outros eixos de opressão (raça, etnia, sexualidade, classe).

Sobre a expressão mulheres ‘de cor’, note-se que também é usado o termo U. S. feminist of color. A expressão of color não tem a mesma força depreciativa da expressão "de cor" em português. Em inglês a palavra explicitamente racista é "colored". Na ausência de uma expressão mais adequada em português, mantive a tradução literal de cor, acompanhando sugestão de Tomaz Tadeu da Silva. Note-se que o termo se refere, além das mulheres negras, a todo um conjunto de mulheres de Terceiro Mundo nos EUA. Donna Haraway destaca que “as ‘mulheres de cor’ são a força de trabalho preferida das indústrias baseadas na ciência; são as mulheres reais que o mercado sexual, o mercado de trabalho e a política da reprodução mundiais lançam no rodopio caleidoscópico da vida cotidiana. As mulheres jovens coreanas contratadas pela indústria do sexo e pela linha de montagem eletrônica são recrutadas nas escolas secundárias e educadas para o circuito integrado. O ser alfabetizada, especialmente em inglês, distingue a força de trabalho feminina ‘barata’, tão atrativa para as multinacionais.” [HARAWAY, Donna. 2000 |1985|. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). 2000. Antropologia do Ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.: 93-94].

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concepções alternativas sobre o conhecimento científico e, ao

mesmo tempo, enfatizam o caráter social desse empreendimento.9

Numa outra clave, é interessante notar — correndo o

risco de estabelecer aqui uma certa dose de wishful thinking — que

as questões de gênero estão interferindo também com as bases

sobre as quais se pensava em história10. De um lado, uma forte

tendência na produção acadêmica norte-americana parece mostrar

que se passa de uma ‘história das mulheres’ para uma construção

histórica das diferenças sexuais, num quadro mais amplo, pensando

história tout court e nos anos mais recentes. De outro, o

reconhecimento de que alguma produção outrora restringida ao

métier acadêmico feminista já ultrapassa estas fronteiras e ganha

lugar discreto nos debates mais, ou menos, convencionais. Um

exemplo significativo, na área das ‘histórias da ciência’, ou talvez

‘histórias dos science studies’, se encontra numa recente avaliação

de Bruno Latour:

“Deve-se simplesmente, por exemplo, comparar a literatura

sociológica pré-feminista sobre donas de casa e papéis-de-

genêro com a literatura gerada depois que o feminismo

tornou refratária a maior parte dos potenciais entrevistados,

para ver a diferença entre uma ciência pseudo-objetiva e 9 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.195.10 Maria Izilda S. de Matos, acompanhando de perto o pensamento de Gadamer, resume uma dessas possibilidades assim: “A politização do privado e a privatização do público são novos desafios à interpretação crítica do historiador e permitem a ampliação de questões metodológicas importantes, sem abstração do engajamento político do sujeito do conhecimento. A politização do cotidiano pressupõe uma comunicação entre o pesquisador e os testemunhos, que provém de um questionamento a partir da inserção do historiador no mundo contemporâneo. Envolve a interação do sujeito com o objeto, sem uma neutralidade pré-fixada, criando uma verdadeira sintonia entre o historiador e seu objeto de estudo.” [SAMARA, Eni de Mesquita, SOIHET, Raquel e MATOS, Maria Izilda S. de. 1997. Gênero em Debate: Trajetórias e Perspectivas na Historiografia Contemporânea. São Paulo: EDUC. p.105]

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que tem somente a aparência de cientificidade, com um

conjunto surpreendente de descobertas sobre gênero, que

pode nem sempre possuir a pompa da ciência natural, mas

certamente tem a sua objetividade, sua “objetividade”, ou

seja, sua habilidade de induzir novas entidades à cena, de

levantar novas questões nos seus próprios termos e de

forçar os cientistas sociais e naturais a re-aparelhar por

completo o seu aparato intelectual.”11

Tanto os estudos feministas de ciência quanto a SSK

entendem o conhecimento científico como um empreendimento

coletivo ou social. Ambos também argumentam que aspectos

importantes das filosofias e epistemologias tradicionais da ciência

não são meramente falsos, mas ideológicos12. E, além disso, essas

duas tradições constituem projetos politicamente engajados, embora

isto seja mais evidente na prática feminista. Estabelecidas as

semelhanças, Rouse argumenta que uma diferença fundamental

entre feministas e a SSK esteja numa concepção epistemológica

tradicional mantida pelos aderentes a este último campo.

“... eles estimam a totalidade das crenças científicas como

afirmações ao conhecimento de um mundo objetivo, e

julgam que elas não possuem maior (nem menor) 11 LATOUR, Bruno. 2000. When things strike back: a possible contribution of “science studies” to the social sciences. The British Journal of Sociology 51(1): 116.12 A desatenção que a nova sociologia da ciência tem com as questões de gênero e sexo pode surpreender, mas, conforme Michael Lynch, a questão é saber se a SSK acompanharia as críticas feministas da ‘ciência objetiva’, uma vez que tais críticas retêm, como alvo, um quadro da ideologia técnica e científica que é justamente problematizado nos estudos de ciência da SSK. [LYNCH, Michael.1993. Scientific practice and ordinary action: ethnomethodology and social studies of science. Cambridge: Cambridge University Press. p.111]

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comprovação que quaisquer outros sistemas de crença

aceitos coletivamente. A nova sociologia não abandonou a

justificação, pelo contrário, engajou-se no projeto

epistemológico bastante genérico de mostrar por quê

defesas filosóficas corriqueiras da racionalidade ou da

verdade das afirmações científicas devem, ao contrário, ser

consideradas como racionalizações ex post facto.”13

“ Pesquisadoras feministas de estudos da ciência divergem

muito claramente dos novos sociólogos na sua oposição ao

relativismo, no seu posicionamento normativo com respeito

a afirmações científicas específicas, e sua disposição para

reter e empregar concepções revisadas e apropriadas de

evidência, objetividade, e uma distinção entre crença e

conhecimento. Ainda, em muitos casos, estas conhecidas

diferenças são uma conseqüência do direcionamento do

trabalho de pesquisadoras feministas para concepções pós-

epistemológicas de conhecimento, evidência, comprovação

e objetividade, e, portanto opondo-se a um arcabouço

compartilhado pelas filosofias da ciência tradicionais e

pelas novas sociologias do conhecimento científico”. 14

Além disto, para Rouse, as feministas transcendem o

território epistemológico convencional em cinco pontos decisivos,

que passo a transcrever: (1) Elas mudaram o enfoque sociológico sobre o

13 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.201.14 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. p.202.

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‘conteúdo’ da ciência, para uma problematização da relação entre

conhecedores e o conhecido. (2) Os estudos feministas deliberadamente

constituem parte das práticas e conhecimentos científicos ao invés de

apresentá-los como uma totalidade vista de fora. (3) De uma forma muito

original, elas exercitam uma temporalidade que não se encontra nem nas

filosofias nem na sociologia da ciência: as feministas pensam nas

possibilidades futuras do conhecimento quando estabelecem os principais

questionamentos do estado atual do conhecimento e práticas científicas.

(4) A reconstrução que muitas feministas apresentam do conceito de

objetividade, na ciência e nos science studies, dissolve qualquer distinção

entre uma crítica de caráter epistêmico e uma crítica política, sem permitir

a redução de uma categoria à outra. (5) Muitas feministas desenvolveram

uma concepção mais adequada, e em certo sentido mais radical se

comparada ao Programa Forte, do conceito de reflexividade15

O ponto (4), enunciado por Rouse, é de especial

interesse para um projeto de pesquisa. Penso que podemos tomá-lo

como uma ampla hipótese de trabalho e que pode estabelecer uma

moldura para o entendimento e a discussão dos textos de duas

feministas que atuam no âmbito dos estudos de ciência — Sandra

Harding e Donna Haraway —, aqui trazidos de forma muito

resumida.

Ao pensar uma “ciência sucessora” Sandra Harding

movimenta dois conceitos principais: o standpoint feminista e a

“objetividade forte”. Harding propõe uma inovação metodológica. Ela

15 ROUSE, Joseph. 1997. op.cit. pp.202-203.

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argumenta, contrariando padrões aceitos pela cientificidade

ocidental, que a objetividade16 é maximizada não com a exclusão de

fatores sociais, da produção do conhecimento, mas com o ‘começar’

o processo de pesquisa a partir de uma explícita localização social: a

experiência vivida daquelas pessoas que têm sido tradicionalmente

excluídas da produção de conhecimento. A obra publicada de

Harding constitui um conjunto que produz grande visibilidade para as

teorias standpoint feministas e é também acompanhado por um

projeto político17 que busca aproximar três grandes vertentes do

feminismo contemporâneo norte-americano — nas palavras de

Sandra Harding: o feminismo empiricista, o feminismo standpoint e o

feminismo pós-moderno.

16 O sociólogo Stephan Fuchs agrupou em itens sumários o que seriam os principais e mais freqüentes significados atribuídos ao termo objetividade, nos estudos de ciência:

A capacidade de uma pessoa de estabelecer um julgamento imparcial e desinteressado. Uma qualidade dos métodos e normas de investigação que disciplinam o impacto de forças

arbitrárias e acidentais sobre o conhecimento. Medidas são objetivas quando elas coincidem fortemente umas com as outras e através de repetidas

medições, tomadas independentemente por vários observadores. Como uma propriedade do conhecimento, a objetividade se refere a proposições que capturem uma

realidade independente e externa. A objetividade também pode ser atribuída a instituições culturais e sociais, que de alguma maneira

são mais sólidas e duradouras do que as crenças pessoais. Desde a Revolução Científica, tornou-se a ausência de forças e circunstâncias individuais,

idiossincráticas, acidentais e contingentes. Os filósofos geralmente concordam que a objetividade é a marca distintiva do conhecimento

científico. Objetividade como um modo de conduta, de controlar emoções, vieses, e interesses.

[FUCHS, Stephan. 1997. A Sociological Theory of Objectivity. Science Studies 11(1) : 4 –26.]

17 A questão política entendida como imbricada com os processos de conhecimento é um dos tropos definidores do campo feminista. Por exemplo, lemos em Teresa de Lauretis: “Aqui é onde, ao meu ver, o feminismo difere de outros modos de pensamento contemporâneos, radicais, críticos ou criativos, como o pós-modernismo e o anti-humanismo filosófico: o feminismo define a si próprio como uma instância política, não meramente como uma política sexual, mas uma política da experiência da vida cotidiana, que mais tarde, por sua vez, invade a esfera pública da expressão e da prática criativa, deslocando hierarquias estéticas e categorias genéricas, e, desta maneira, estabelece a base semiótica para uma produção diferenciada de referências e significados.” [LAURETIS, Teresa de (ed.). 1986. Feminist Studies / Critical Studies. Bloomington: Indiana University Press. p. 10]

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Donna Haraway18 propõe uma interpretação da

objetividade em termos de “conhecimentos situados” que entendo

como um refinamento da noção de “objetividade forte” de Sandra

Harding. Haraway vê o conhecimento como sempre situado e

contextual e fazendo parte das práticas de cada grupo social. Cada

perspectiva, cada standpoint, é assim, parcial, seletivo e incompleto.

Haraway espera poder conciliar ‘objetividade’ com a

posição/situação do sujeito que conhece, em especial os menos

poderosos, enfatizando, entretanto, que as perspectivas dos

subjugados não são consideradas posições inocentes. Para

Haraway, um projeto democrático em ciência e tecnologia deve

passar pelo engajamento de pessoas cujo modo de vida esteja em

jogo no “aparato de produção de conhecimento e dos sistemas de

ação” – o que pode ser avaliado em correspondência à “objetividade

forte” de Sandra Harding. Mais recentemente, neste campo, aparece

a questão controversa de como formular as relações entre posições

assumidas como parciais pelas feministas, (vide Haraway), e

aqueles interesses que buscam projetar práticas políticas que não

envolvam somente uma visão monolítica da “mulher”. Na acepção de 18 São dois os artigos-chave para acompanhar a proposta de Haraway: Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective [1991 |1988|] e A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century [1991 |1985|]. Ambos podem ser encontrados na coletânea: HARAWAY, Donna. 1991. Simians, Cyborgs, and Women.The Reinvention of Nature. NewYork: Routledge.O primeiro destes artigos, cunhou decisivamente a questão da parcialidade e localização do ponto de vista feminista, e o segundo certamente é um dos artigos mais comentados nos estudos feministas de ciência, tratando das relações entre ciências, tecnologia e um ponto de vista para a produção de políticas feministas revolucionárias. O artigo Situated Knowledges foi primeiramente publicado na revista Feminist Studies, em 1988. Há tradução para o português no Cadernos Pagu 5 (1995). O Cyborg Manifesto, publicado em 1985 na Socialist Review, possui pelo menos duas traduções em português, ver o já citado [HARAWAY, Donna. 2000 |1985|. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). 2000. Antropologia do Ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica.] e [HARAWAY, Donna. 1994 |1985|. Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 1994. Tendências e Impasses. O Feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco.]

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Rosemary Hennessy19, esta é a questão que se estende pela

atualidade, ou seja, como, afinal, compreender em projetos teóricos

afinados as especificidades das reivindicações feministas em acordo

com outros standpoints emancipatórios.

19 HENNESSY, Rosemary. 1993. Materialist Feminism and the Politics of Discourse. New York / London: Routledge. pp.67-68.

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