crítica do jornalismo moderno

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Elementos para a crítica do jornalismo moderno: conhecimento comum e indústria cultural Francisco Rüdiger Provém da Escola de Frankfurt a proposição segundo a qual as comunicações modernas se desenvolvem no marco de uma dialética: elas conscientizam tanto quanto reificam os seres humanos, visto serem expressão do enredamento de sua história entre os pólos do progresso e barbárie . As comunicações se transformaram em veículo das principais 1 relações de poder na sociedade contemporânea, mas também contêm forças e pontos de apoio capazes de nutrirem a criação de processos de vida alternativos e inovadores em relação ao sistema dominante. Diante das mesmas, comportase como crítico, portanto, aquele que desenvolve uma análise das contradições de seu processo de posição no mundo histórico, em vez de buscar sua purificação ou sustentar a nostalgia do retorno a algum estado idílico passado. A reflexão crítica sobre os fenômenos de comunicação constitui em si mesma um fragmento de práxis transformadora que, com isso, colabora com os esforços no sentido de desenvolver a dimensão iluminista da mídia, por maiores que sejam os obstáculos . 2 1 Adorno, T. & Horkheimer, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 15. 2 O criticismo proposto nestas páginas é o de uma reflexão imanente à situação histórica, a nossa, e não o de uma atitude abstrata e propositiva em relação ao jornalismo. A crítica é uma atividade que costuma ser vista em termos de confronto com seu objeto, senão de oposição a ele, em nome de certos ideais. O problema é que tal atitude caduca totalmente a partir do momento em que não há ponto de apoio para ela fora do que está na consciência reflexiva de uma minoria pensadora da cultura e da história, como é o caso quando a prática da indústria cultural se converte em sistema. 1

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  • Elementos para a crtica do jornalismo moderno: conhecimento comum e indstria cultural

    FranciscoRdiger

    Provm da Escola de Frankfurt a proposio segundo a qual as

    comunicaes modernas se desenvolvem no marco de uma dialtica: elas conscientizam tanto quanto reificam os seres humanos, visto serem expresso do enredamento de sua histria entre os plos do progresso e barbrie . As comunicaes se transformaram em veculo das principais 1relaes de poder na sociedade contempornea, mas tambm contm foras e pontos de apoio capazes de nutrirem a criao de processos de vida alternativoseinovadoresemrelaoaosistemadominante.Diante das mesmas, comportase como crtico, portanto, aquele que

    desenvolve uma anlise das contradies de seu processo de posio no mundo histrico, em vez de buscar sua purificao ou sustentar a nostalgia do retorno a algum estado idlico passado. A reflexo crtica sobre os fenmenos de comunicao constitui em si mesma um fragmento de prxis transformadora que, com isso, colabora com os esforos no sentido de desenvolver a dimenso iluminista da mdia, por maiores que sejam os obstculos .2

    1Adorno,T.&Horkheimer,M.Dialticadoesclarecimento.RiodeJaneiro:Zahar,1985,p.15.2 O criticismo proposto nestas pginas o de uma reflexo imanente situao histrica, a nossa, e no o de uma atitude abstrata e propositiva em relao ao jornalismo. A crtica uma atividade que costuma ser vista em termos de confronto com seu objeto, seno de oposio a

    ele, em nome de certos ideais. O problema que tal atitude caducatotalmente a partir do momento em que no h ponto de apoio para ela fora do que est na conscincia reflexiva de uma minoria pensadora da cultura e da histria, como o caso quando a prtica da indstria culturalseconverteemsistema.

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  • O principal teoricamente, porm, seria conservar em mente que, no capitalismo, a criao cultural serve ao esprito de utopia ao mesmo tempo em que o pe a servio do mercado. O fato que, hoje, nenhuma forma de conscincia est completamente isenta da atitude mercadolgica da indstria cultural. A crtica, por isso, atividade que se diriges tanto contra aqueles que defendem a pureza e integridade das formas superiores dos bens culturais, quanto contra aqueles que defendem os benefcios de seus vrios subprodutosmercadolgicos.

    Atualmente, a contestao do kitsch popularesco no menos importante do que a denncia das pretenses fraudulentas tantas vezes presentes no vanguardismo esttico e intelectual. O consumo de um e de outro cada vez menos se distingue totalmente dos prazeres do consumo de qualquer outro bemdisponvelnomercado.Quando bem pensada, verificase que a cultura, elevada ou no, em geral,

    sempre contm ummomento de barbrie, tanto quanto um eventual momento de emancipao em relao ao sistema social estabelecido. Os fenmenos de comunicao e cultura ensejam situaes que devem ser tratadas com esprito crtico, ainda que isso seja o que tende a ser bloqueado pela nossa sociedade.

    A verdade histrica que o esclarecimento no teria se propagado sem o desenvolvimento das comunicaes. A reproduo dos ideais iluministas por parte delas, todavia, no pode ser separada de sua crescente reificao mercantil,desuasubordinaoaosesquemasdaindstriacultural. Desde o final do sculo XIX, o capitalismo se imiscui de forma direta no campo da cultura, fundindo todos os seus elementos em um s movimento. O resultado a transformao da indstria cultural em sistema cada vez mais enraizado e abrangente. Os servios e produtos culturais encontramse hoje virtualmente reduzidos a mercadorias. A democratizao da cultura ensejada pela economia de mercado foi redirecionada pela atitude empresarial, e a contrapartida de sua difuso em massa a perda de seu contedo formativo e sentido emancipatrio, conforme se pode ver examinando a fortuna do conhecimentocomum,ordinrio,nacontemporaneidade.

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  • 1.ADialticadainformao Para Adorno, o esclarecimento "se encontra mais difundido hoje do que em

    tempos passados, e isto significa que na atualidade camadas da populao que em outra poca no tinham acesso cultura e ao saber esto em contato com as artes e as cincias graas aos meios de comunicao". Em contrapartida, verificase atravs deles uma transformao estrutural na conscincia esclarecida, cujo principal aspecto no plano cognitivo a perda ou falta do elemento de sntese que poderia tornla produtiva entre as massas, em virtude do seu aprisionamento s formas mercantis mais massificadas.A contradio entre a emancipao do esprito crtico e seu concomitante

    enredamento em esquemas que o anulam caracterstica de nossa era, na medida em que, nela, a mercantilizao das relaes que possibilita o aparecimento do primeiro acaba por se imiscuir em sua prpria esfera e, assim, a fazer com que o consumo tome o lugar da criatividade, "a informao tendaasubstituirapenetraoeareflexointelectuais" .3Conforme foi dito, a formao das redes de comunicao e a expanso dos

    meios de saber um produto do progresso, que desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo. A avaliao do processo no pode ser abstrata. A verdade a seu respeito no reside apenas em seu ncleo racional: a propagao do conhecimento. As conexes objetivas em que aquele processo se enreda realidade histrica tambm precisam sem levadas em conta.Nesse sentido, as referidas redes podem ser vistas, por um lado, como fator

    que colaborou decisivamente para tornar o homem mais adulto, fazendoo mais racional, lcido, informado e habilidoso. As pessoas de nosso tempo tendem a aceitar o que tem de ser aceito, e rejeitam o que no pode ser provado como superstio. Por outro lado, porm, elas se sujeitam, assim, a uma indstria da cultura, no contexto da qual essas redes servem de meio

    3ADORNO,T.Bajoelsignodelosastros.Barcelona,Laia,1986,p.120121.

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  • para distralos da prpria vida, afastando de suas mentes as mudanas que teriam de fazer em seu mundo e seu modo de ser, para viver de acordo com suasinclinaesmaisindividuais. As comunicaes, sim, ajudaram o indivduo a conquistar a liberdade de opinio e servem de veculo de uma opinio pblica que, apesar de tudo, vrias vezes, mas nem sempre, ajuda evitar o pior, conservando de algum modo as funes emancipatrias daquele primeiro fenmeno. O progresso das comunicaes se liga a um processo ainda mais amplo, que o do desenvolvimento das estruturas cognitivas e dos estoques de saber socialmentecompartilhadas.Visando entender melhor esse processo preciso relacionlo com o fato de

    que, com a era moderna, o conhecimento comum se tornou objeto de renovao e alcance cada vez mais amplas e constantes, via o desenvolvimento de sucessivos meios de comunicao mas, sobretudo, da expanso das prticas jornalsticas. O conhecimento comum, cotidiano, lembremos, elaborado em meio prtica coletiva como apropriao individual das conexes em que se articula o mundo social e histrico. O processo de apropriao concreta dessas conexes, o conhecimento, o ponto de partida para a formao da opinio, de um julgamento a respeito do queseesttomandoconhecimento . 4O conhecimento ordinrio, todavia, tem baixo ndice de especializao,

    enquanto as estruturas que lhe subjazem conservam um carter comunitrio. O resultado disso que, nessa situao, o movimento de formao da opinio tende a ter um cunho imediato e monoltico, a no se expressar como opinio elaborada,masantescomoconsensocoletivoimpostotradicionalmente.Os tempos modernos importam, por razes que no possvel explicitar aqui, numa ruptura com esse registro do saber ordinrio, na sua passagem

    4 O conhecimento no entendido aqui como sntese ou resultado da relao sujeito e objeto, conforme estabelecido pela gnosiologia tradicional. A categoria referese, antes de tudo, conscincia social de compartilhamento de um mundo, ao conjunto de referncias prticas e intelectuais que estrutura e orienta a conduta e pensamento de uma coletividade em umdado momentohistrico.

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  • para o plano de um conhecimento acionado e reativado periodicamente por instituies especializadas, cujo coletivo acabou sendo chamado de imprensa e, mais recentemente, de mdia. A expanso da economia de mercado, primeiro, criou as condies para a diferenciao do saber, ao mesmo tempo em que comeou a submeter sua difuso a um protocolo mercadolgico. O passo seguinte foi minar as bases que asseguravam o consenso coletivo, oportunizando o surgimento de situaes vinculadas a diversos pontos de vistaouopinieseemqueaquelesporexceoalcanado.Embora no limitado a ele, o processo , como dito, ininteligvel, sem a considerao do papel que nele desempenha a publicao de impressos mas, sobretudo, o desenvolvimento do jornalismo desde o final do sculo XIX. Originase dos pioneiros do estudo do jornalismo a concluso, relativamente consensual ainda hoje, de que este uma criao da era burguesa. O aparecimento da atividade est ligado transformao dos impressos em material de leitura e bem de consumo desse grupo social. A formao intelectual e os projetos de ascenso poltica em meio s quais surgiu exigiram o seu contnuo desenvolvimento. O pblico leitor surgido com sua era est dialeticamente ligado expanso da atividade editorial, crescente publicao de livros e peridicos, formao de um mercado de bens culturais.Na Europa, havia impressos circulando publicamente desde o final do sculo XV: livros, volantes, editais, revistas, almanaques, mas s dois sculos mais tarde o recurso tcnico que os criou comearia a dar lugar ao que entendemos por jornalismo. No comeo do sculo XVIII, efetivamente aparecem as primeiras redaes e se comea a publicar folhas diariamente de modo regular. A sociedade burguesa se expande e em seu meio vai surgindo uma esfera pblica, que se articula para discutir os fatos polticos e seus prprios interesses atravs, entre outros meios, dos impressos. O contedo desses variado e no perde de vista as conexes com o mercado, massuaaformadeexpressoliterriaeosentido,predominantepoltico. A paulatina desterritorializao da conscincia promovida pela expanso das atividades mercantis intermediada pelo aparecimento de veculos de comunicao que a socializam, engendrando um circuito permanente e cada vez mais amplo de renovao e reestruturao da experincia em diferentes

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  • nveis. A expanso, primeiro e, em seguida, a especializao em vrios segmentos desses veculos est embutida em todo esse desenvolvimento, conformeeleassumefeiesduradourasnapocaemconsiderao.

    Nesse perodo inicial, a prtica do jornalismo, todavia, era predominantemente poltica e estava submetida ao propagandstica. A expanso do capitalismo se deu em tenso com a concentrao do poder poltico no aparelho de estado. A propaganda governamental e o debate de ideias pautavam a conduta dos publicistas. Os peridicos eram veculos de propaganda e embates doutrinrios seus responsveis, homens que aspiravam ou pertenciam classe poltica. A sociedade civil burguesa se constitui em meio a esse confronto e em meio agitao publicstica que se desmoronaoabsolutismoeoAntigoRegime.Depois de lutar contra os privilgios monrquicos e vencer a censura estatal, as reivindicaes burguesas de liberdade intelectual, cuja origem era, alis, religiosa, foram se consolidando em um aparato constitucional. O estado liberal burgus, aos poucos, consolidou suas instituies e, com elas, o direito liberdade de expresso, seja qual for o meio de comunicao. As estruturas cognitivas do pblico sintonizado com essas mudana avanaram com a nova situao. Desde o sculo das Luzes, com efeito, verificouse uma formidvel expanso do conhecimento pblico. O crescimento em variedade e a difuso em maior nmero de material impresso forneceram as condies para uma rearticulao da conscincia burguesa. O principal e distintivo, porm, o aparecimento de um esprito crtico de carter pblico, o crescimento da discusso e o estmulo formao de opinio sobre os acontecimentos que afetamosdestinosdavidaemsociedade.No final do XIX, o panorama mais amplo, todavia, j mudara e, entrando no sculo seguinte, houve rpidas e profundas transformaes, que fizeram a vida social transitar do regime burgus para o tecnocrtico, acabaram com a ordem liberal e nos jogaram no mundo democrtico de massas. Conforme o saber e as opinies iam se convertendo em mercado explorado por empresas jornalsticas, o conhecimento pblico mais e mais se foi tornando prisioneiro dos seus fetiches, conforme j se tinha claros sinais a respeito no tempo de Balzac.

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  • Durante o sculo XIX, a possibilidade de tratar o pblico como clientela consumidora e a demanda por veculos de publicidade para expandir os negcios conduziram mercantilizao da imprensa, o principal fator responsvel por sua crescente concentrao nas mos de umas poucas empresas e conglomerados no perodo seguinte. Os empreendimentos jornalsticos foram historicamente, portanto, os primeiros a explorar o mercado dos bens simblicos como indstrias organizadas, mas isso, vale lembrar, um desenvolvimento mais recente em relao s suas origens remotas.Conforme nota Habermas, os primeiros jornais merecedores do conceito

    "resguardavam para as suas redaes aquela espcie de liberdade que era, de um modo geral, caracterstica para a comunicao das pessoas privadas enquanto pblico [na era burguesa]" . As preocupaes poltica 5preponderavam sobre as perspectivas de tirar vantagens econmicas com o negcio editorial, Para fazer frente crescente concorrncia, os veculos jornalsticos, contudo, tiveram de comear a se organizar como empresas. Depois, o tempo foi o que bastou para os empresrios do setor descobrirem nas experincias de jornalismo popular que haviam se posto em marcha algumasdcadasantesummodelodeexpansoparaseusnegcios.

    No final do sculo XIX, esse processo de todo modo parece concludo, conforme indicam os vastos mercados consumidores de impressos surgidos na Europa e Estados Unidos. As publicaes polticas e partidrias entraram em declnio, para depois vir a desaparecer. As empresas que no criaram veculos populares para atender os mercados de massas, surgidos com as reformas trabalhistas e a escolarizao obrigatria, pelo menos seguiram a tendncia no sentido de abandonar a linguagem literria. O positivismo tecnocrata em voga nesse novo contexto ensejou o aparecimento do estilo propriamentejornalstico,queacabariaporseimporapsaIGuerraMundial.Nessa poca, o jornalismo, por outro lado, concluiu tambm seu processo de

    profissionalizao. As crticas a seu emprego propagandstico durante a

    5 Habermas, Jrgen.Mudana estrutural da esfera pblica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984,p.215.

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  • Guerrra , mas tambm nos conflitos entre capital e trabalho, provocaram seus 6sujeitos a elaborar e adotar um sucedneo da doutrina positivista do conhecimento. A preocupao em parte cnica, em parte ideolgica em preservar o negcio, levou ao surgimento de um cdigo deontolgico prprio, cujo cerne era o compromisso de bem informar a sociedade. O empirismo espontneo que se impusera no perodo anterior, a crena ingnua de que o peridico se resume em reportar os fatos para os seus auditrios, foi reformadaembasesdoutrinrias.Destarte, triunfou o formato noticioso, sugerido pelo crescente emprego do

    telgrafo, desde o final do sculo XIX. Os princpios fordistas estavam se transplantando para o campo jornalstico. A espontaneidade passou a ser mais reprimida. A reportagem foi caindo para um segundo plano. As redaes passaram para um novo patamar de sociabilidade. O regramento da atividade se enrijeceu, com o surgimento dos manuais de redao, a formao especializada e outras exigncias de profissionalizao, que no tiveram outro sentido seno se acentuar mais tarde, quando o jornalismo passou a ser praticadonasempresasderdio,revistaeteleviso.2.De4.PoderformadesaberQuando se busca entender como esse processo se estruturou teoricamente,

    construir os conceitos que permitam esquematizlo em termos mais abstratos, a pesquisa via de regra se depara com uma ou outra verso ou teoria do que chamaremos de paradigma do 4. Poder. Oriundo talvez de Burke (1787) e popularizado por Carlyle (1841), o termo surgiu com sentido ambguo entre os intelectuais conservadores, para indicar a influncia da imprensa no processo de formao da opinio pblica e na conduo dos negcios polticos de nosso tempo. A consagrao do princpio, contudo, foi obradospensadoresliberais.

    Para eles, os peridicos, sempre que no so controlados pelo estado, cumprem um papel vital para a sociedade, que o de fiscalizar as aes dos

    6Cf.Schudson,Michael.Discoveringthenews.NovaYork:BasicBooks,1978.

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  • governantes. Atravs da imprensa, a sociedade as traz luz, mantm sob controle e faz saber aos seus agentes seu pensamento sobre os assuntos de interesse pblico. Tornouse uma trivialidade poltica afirmar que quem governa o mundo a opinio pblica e que esta formada por homens que esto mais ou menos altura dos demais e que se dirigem a esses ltimos pormeiodosjornais,diziaStuartMill,em1859 .7Quando a era liberal entrou em colapso, na virada para o sculo XX, o

    entendimento do poder que a imprensa representava, entretanto, passou a ter mais um sentido: os peridicos comearam a ser visto como meios de sustentar uma poltica de estado, aquela defendida por seus proprietrios. Para as foras sociais emergentes, os peridicos so, sim, expresso da sociedade civil, mas sua principal funo no fiscalizar o poder de estado e assegurarqueseusatosexpressemaopiniopblica.Os jornais so empresas controladas pelos setores sociais e econmicos

    mais fortes, que deles se servem para sustentar as coalizes polticas de seu endosso e conduzir os processos de formao da vontade e expresso ideolgica de acordo com seus interesses. Subjacente nos escritos dos clssicos da social democracia, a tese aparentemente comeou a ser explorada de maneira mais sistemtica por Upton Sinclair e George Seldes e elaboradateoricamentenosescritosdeGramsci.O exerccio normal da hegemonia [de uma classe social], no terreno clssico do regime parlamentar, caracterizase pela combinao da fora e do consenso, que se equilibram variadamente, sem que a fora suplante o consenso, ou melhor, procurando obter que a fora parea apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados rgos da opinio pblica osjornaiseassociaes. 8

    Deixando de lado a tarefa que seria reconstruir a trajetria desse entendimento conjunto durante o ltimo sculo, verificase que sua raiz

    7Mill,Stuart.Sobrelalibertad.BuenosAires:Aguilar,1954,p.136.

    8 Gramsci, Antonio. Maquiavel, a poltica e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1980,p.116.

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  • comum, qualquer que seja a verso, a atribuio imprensa de um poder mediador sobre a conduo dos assuntos polticos da sociedade. Entre os pensadores liberais, os peridicos seriam expresso do poder da sociedade civil sobre o estado, enquanto seus antpodas socialistas argem que eles antes expressam o poder dos grupos dominantes, seno sobre o estado, pelo menossobreamaioriadasociedade.O problema com essa viso , em primeiro, sua relatividade histrica e, em

    segundo, sua falta de especificidade conceitual. O jornalismo, ningum negar, se desenvolveu a reboque do curso seguido pela vida poltica. As folhas de vrios tipos foram por muito tempo rgos de partidos. O panorama, contudo, comeou a mudar, h mais ou menos um sculo, e chegou ao ponto dehojenomaisconhecerafiguradojornalismopolticopartidrio.A sociedade capitalista transitou, com o tempo, para uma nova etapa, em

    que conscincia civil e ao poltica, categorias fundadoras da era burguesa, parecem estar se tornado anacrnicas. O jornalismo, sem dvida, segue agenciando processos de poder e estes se consubstanciam na fico eficaz que a opinio pblica. O fato, porm, que esta opinio, passando a ser elaborada a partir da circulao de material noticioso, no mais surge da forma que era o caso quando o centro das atividades jornalsticas era o texto doutrinrio .9Dentro desse novo contexto e contrapondose a essa viso, predominante do

    9 Levando em conta esse aspecto, tornase mais fcil entender porque o principal elemento inovador da pesquisa posterior sobre o jornalismo, inclusive dentro do paradigma dominante, foi a revelao e anlise das estruturas emecanismos que agenciam seu pretendido poder no interior do campo jornalstico (cf. Wolf, Mauro.As teorias da comunicao. Lisboa: Presena, 1987, p. 157225. Pierre Bourdieu empregou variante do enfoque emSobre a televiso. Rio de Janeiro: Zahar, 1997). Os estudos de newsmaking, referimonos a eles,merecem ateno sobretudo pela explicao do contexto mais imediato de criao do material jornalstico, mas isso no deveria nos fazer perder de vista seu carter de mediao de processos sociais e histricos mais abrangentes. Para ns, entendido por ns como sendo o da indstria cultural, capazdeexplicarsuainseroesentidonoprocessosocialehistricomaisabrangente.

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  • ponto de vista do conjunto das reflexes sobre o assunto, surgiu com o tempo um outro paradigma de entendimento do jornalismo. A revoluo empresarial que o subordinou racionalidade mercadolgica, consagrando o estilo noticioso, impactou tambm em suas formas de reflexo. Desde sua consolidao, o jornalismo fora visto em seu significado coletivo sobretudo sob a tica da filosofia poltica e, assim, como prtica inserida no campo das relaes de poder entre estado e sociedade. Coube a Adelmo Genro Filho, entre outros, talvez, sistematizar uma mudana de perspectiva para o campo dosabere,assim,subordinloaticadasociologiadoconhecimento.Explorando as pistas deixadas por Robert Park , o autor prope que 10

    vejamos o jornalismo moderno, sobretudo, como uma forma de conhecimento da realidade. O conhecimento especializado oriundo das cincias e que permanece em boa parte esotrico tem contrapartida no conhecimento ordinrio mais ou menos livre, aberto e universal proporcionado pelas atividades jornalsticas. Os profissionais de imprensa ainda hoje professam a filosofia espontnea de que seu trabalho consiste apenas registro imediato e no relato emprico que interessam a seu pblico, conforme certos princpios, que seriam, em resumo, a objetividade, a imparcialidade e o equilbrio de pontosdevista.O jornalismo, porm, chama ateno esta escola, bem mais que isso, se

    levarmos em conta seu modo de insero na estrutura social mais abrangente. A considerao do assunto desde este ponto de vista o converte em uma mediao do processo social de elaborao coletiva do conhecimento comum dos agrupamentos humanos e, avanando um pouco mais,daprpriaconstruodeseumundohistrico . 11

    10 Park, Robert. A notcia como forma de conhecimento [1940]. In Charles Steinberg (org.)Meiosdecomunicaodemassa.SoPaulo:Cultrix,1972.11 As prticas jornalsticas funcionam comomediao estruturadora da conscincia social, mas por outro lado no se deve esquecer que elas so, por sua vez, mediadas por vrias estruturas sociais histricas. O texto sublinha sua subsuno racionalidade mercantil e, mais recentemente, mercadolgica, mas mesmo esse processo precisa ser visto sem reducionismo. A cobertura de inmeros acontecimentos com acento cotidiano, por exemplo, revela que esse racionalismo ainda hoje explora estruturas e atitudes bem arcaicas como o , para citar um caso, a curiosidade intelectual, ainda que eventualmente mrbida, despertada por pessoas e

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  • A perspectiva, sem dvida, representa um avano na reflexo sobre o

    jornalismo, ao lembrar, a seu modo, que este, antes de ser uma agncia de poder poltico, uma mediao da conscincia cotidiana. A abordagem tambm possui o mrito de ser afinada em termos de conscincia histrica, salientando o fato de que esse entendimento se aplica, sobretudo, para as formas de jornalismo contemporneo. O enfoque s se aplica com prejuzo ao jornalismo clssico, em que predomina o discurso literrio, o texto de opinio e a perspectiva doutrinria. O compromisso com a elaborao do conhecimento comum que nele se apresenta prprio de sua etapa avanada, do momento em que ele se organiza como empresa e se insere no mbitodocapitalismomassificado.O problema com essa viso, contudo, se apresenta e, em nosso

    entendimento, consiste em seu dficit de reflexo crtica sobre o estatuto da atividade jornalstica neste contexto. O reconhecimento da funo cognitiva exercida pelo jornalismo em nosso meio precisa ser considerado criticamente, sem iluses, mantido certa distncia. sociologia do conhecimento que lhe subjaz caberia reconhecer que o saber, tanto quanto o poder agenciado pelo jornalismo,agora,articuladosocialmentepormeiodomercado.

    Afinal, as comunicaes, certo, contm um momento de liberdade, permitindo ao indivduo elaborar seu prprio conhecimento, pensar suas prprias idias, no professar o credo dominante mas, por outro lado, so expresso de relaes objetivas, que modelam sua existncia e pensamento, antes mesmo dessas idias chegarem sua conscincia, sendo parte ou momento daquilo que, recorrendo linguagem conceitual, estamos chamando desistemadaindstriacultural.Adelmo Genro teve o mrito de recuperar o carter e explorar com seriedade

    o aspecto cognitivo contido na atividade jornalstica. Para ele e seus

    situaes, prosaicas ou no, sempre que passveis de algum enquadramento narrativo (ainda que fragmentariamente). Atualmente, quase tudo est a servio da informao (Benjamin), mas ainda resta, mesmo em meio a tal, algo a servio da narrativa (cf. Hartley, John.Popular reality:journalismandpopularculture.Londres:Arnold,1996).

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  • seguidores, o jornalismo uma forma de produo de conhecimento, tanto quanto uma mercadoria explorada empresarialmente . Porm, falta, em 12nosso juzo, a percepo de que se, por um lado, o jornalismo no sinnimo de manipulao , embora isso possa ocorrer por meio dele, nem se reduza a 13um negcio, porque veicula um saber, esse saber no puro e simples conhecimento.O conhecimento puro e simples uma abstrao: efetivamente, ele to histrico quanto todo o resto que nos prprio e, no caso em foco, no 14apenas porque o conhecimento ensejado pelo jornalismo seja o do singular, factual, mas antes porque se trata de um conhecimento essencialmente determinadopelodesenvolvimentodocapitalismo.O servio pblico que, segundo seus portavozes, o jornalismo presta

    ideologia, quando no falsa conscincia esclarecida, porque o jornalismo de fato engendra e veicula um saber, mas esse no um saber objetivo e imparcial, nos termos pretendidos por sua doutrina profissional e positivista. O conhecimento jornalstico tal apenas do ponto de vista do mundo capitalista: efetivamente, e por mais contradies que contenha , ele engendrado de 15acordo com a racionalidade mercadolgica, e no em resposta a uma pretensanecessidadeantropolgica,comosugereGenro.

    Do ponto de vista da histria do conhecimento comum, o fundamental

    12 GENRO, A. O segredo da pirmide. Porto Alegre: Tch, 1987. Eduardo Meditsch: O conhecimento do jornalismo. Florianpolis: Editora da Ufsc, 1992. Francisco Karam:A tica jornalsticaeointeressepblico.SoPaulo:Summus,2004.

    13 A conscincia crtica no nega que se formemgrupos de interesses e que esses, possuindo ou no seus prprios meios, eventualmente os usem para manipular a populao mas da no tira a concluso de que esse emprego costuma ser bem sucedido e que, na hiptese de serocaso,oresultadopuroesimplesefeitodaquelamanipulao.

    14Cf.PeterBurke:Umahistriasocialdoconhecimento.RiodeJaneiro:Zahar,2003.15RIBEIRO,J.Semprealerta.SoPaulo:Brasiliense,1995.

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  • reconhecer, portanto, que, se o jornalismo se tornou uma de suas principais mediaes, no a nica por certo, por seu intermdio que aquele se tornou cadavezmaisprisioneirodaformamercadoria.

    O jornalismo precisa ser visto como uma atividade intelectual que, em termos cognitivos, constitui a mediao de dois processos. O primeiro a ampliao, via o saber, do crculo social ou mundo histrico em que vive o sujeito. O segundo a diferenciao dos graus de elaborao do conhecimento desse processo. A atividade jornalstica tem a ver com a imposio de novos fatos conscincia tanto quanto com a necessidade de conhecimentoaseurespeito.A sntese disso a criao de um desejo geral de saber, que, conforme

    avana o capitalismo, todavia, passou a ser agenciado de forma profissional e mercantil por empresas especializadas e assim, embora agencie processos de conhecimento, o faz submetido ao fetiche da forma mercadoria, de acordo comosprincpiosquecomandamaprticadaindstriacultural.3.JornalismoeindstriaculturalDesde o final sculo XIX, o jornalismo, com efeito, converteuse na principal fonte de conhecimento pblico sobre os fatos que ocorrem no mundo. Paralelamente, porm, o saber assim mediado foi passando mais e mais a cair na rbita do que foi chamado de fetichismo da mercadoria por Karl Marx. O ttulo pelo qual esse conhecimento atende passou a se chamar, por essa poca, de notcia e, mais tarde, de informao. A notcia ou informao o resultado do processamento dos fatos relevantes para um ou mais grupos sociais, de acordo com uma tcnica que visa coloclo no mercado. A empresa comprometida com a explorao dessa atividade como negcio se tornouoquehojechamamosdejornalismo.Destarte, acontece desde ento, porm, um processo no sentido das

    matrias redacionais de relevncia pblica, colonizadas pelo valor de troca no mercado, estarem recuando diante das de interesse humano e orientadas para o divertimento. Houve um crescente e vigoroso avano do jornalismo ligeiro, chegandose a um ponto que, hoje, nos permite falar na existncia de

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  • um verdadeiro jornalismo de entretenimento, enquanto etapa superior do jornalismo informativoempresarial. Anunciado pelo sensacionalismo das primeiras dcadas do sculo passado e pelas pginas e suplementos sobre esportes aparecidos mesma poca, este tipo de prtica se tornou moeda corrente por todo o negcio da informao no seu ltimo quartel, passando inclusive a influenciar o jornalismo polticoeconmico, mais srio. Atravs dela, o registro do real substitudo por aquilo que est pronto para o consumo e que mais desvia para o consumo de estmulos destinados a distrair do que leva para o uso pblico da razo" (Habermas, op. cit., p. 198202).Assim, porm, o jornalismo no s acabou por se integrar totalmente ao movimento da indstria cultural, como passou a ser um dos seus grandes eixos de sustentao. A notcia sria foi eclipsada pela matria de consumo ligeiro, s vezes muito elaborada. O pblico no foi privado do acesso informao de interesse poltico e econmico, mas se converteu em mercado de consumidor de entretenimento veiculado sob a forma de informao. A formao da opinio passou da condio de processo poltico vivido como idia e ideologia por intermdio da imprensa funo dos processos de consumo visando orientao prtica ou funcional em meio a um vasto e abrangentesistemadecomunicaesordenadocomoindstriacultural.Durante a era liberal, at a I Guerra Mundial, o jornalismo que se fazia era

    uma espcie de produto informativo inserido num grande mercado de opinies. A variedade de opinies permitia que se agisse sobre o processo poltico, as pessoas alimentassem boatos e, mal ou bem, se articulasse uma opinio pblica. O esclarecimento produzido pela imprensa era na maior parte retrico, porque nem antes nem agora a informao deixou de ser usada com objetivos esprios, mas havia, sobretudo pela via dos veculos srios. A notcia, em algum grau, impunhase politicamente e, mais tarde, como instrumento de acesso mais pluralista ao conhecimento sobre o que acontecia sociedade.Conforme o capitalismo foi se expandindo, radicalizando a competio e

    formando mercados massivos, isso se alterou, de modo que, atualmente, sua situao tende, em vez disso, a fazer do jornalismo um meio de regulao e integrao sistmica sociedade. Os processos de formao da opinio e

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  • sntese do conhecimento ordinrio no somem de vista, mas retiramse para os bastidores ou repercutem apenas em nichos. A opinio passa ser formada em condies de alta presso, crescente velocidade e extrema leviandade, emquepredominaomovimentodaindstriacultural.A conscincia do grande pblico assume um carter de massa, visto se subordinar publicidade de opinies ou opinio publicada dos grupos de presso mais organizados. As polticas editoriais so cada vez mais influenciadas no apenas pelos resultados e anlises das pesquisas de mercado, mas pelos conceitos e prticas mercadolgicas, a ponto de a habilidade em saber fazer negcios ter se tornado um elemento altamente valorizadonestemercadoprofissional .16O jornalismo, ningum discute, continua sendo uma prtica formadora de conhecimento comum em escala de massas e, portanto, um fator de esclarecimento. O conceito de informao com que ele passou a operar no sculo passado algo que no se esgota no plano dos fatos, sempre que o sujeito no perde o poder de reflexo sobre a matria. O relato noticioso sobre os fatos um produto cultural que, contrariamente ao pretendido s vezes, "certamente possibilita um melhor juzo a seu respeito do que quaisquerlongosdiscursos[doutrinrios]" .17Desde o affaire Dreyfus at o escndalo Watergate, embora espordico no deixa de ser notvel o influente papel dos meios de informao no controle da administrao dos assuntos pblicos. Quem no capaz de compreender isso, precisa saber que isso se acha em profundo conflito com os esteretipos ingnuos que julgam os meios de informao como simples agncias de reproduodosistemadedominaoestabelecido 18

    16 MARCONDES, C.Jornalismo findesicle. So Paulo: Scritta, 1993, p. 123144. Cf. James McMannus:Marketdriven journalism. Thousand Oaks (CA): Sage, 1994. LeandroMarshall:O jornalismonaeradapublicidade.SoPaulo:Summus,2003.

    17ADORNO,T.Educaoeemancipao.SoPaulo:PazeTerra,1988,p.79.

    18GOULDNER,A.Ladialcticadelaideologaylatecnologa.Madri:Alianza,1978,p.207.

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  • Contudo, isso no pode ser entendido de maneira abstrata. O conhecimento pblico e imediato que as atividades jornalsticas nos proporciona precisa ser situado em seus diversos contextos de interveno. Abstrado dos quais uma categoria vazia e sem sentido histrico determinado. O fenmeno, noutros termos, no pode, no caso, ser entendido fora da tendncia "s informaes se converterem em bens de consumo, produzirem um certo prazer, ou melhor: um prazer substitutivo, entre aqueles para as quais esto destinadas" .19Durante muito tempo criticouse o jornalismo por certas caractersticas que, na verdade, lhe so intrnsecas, enquanto for jornalismo e, assim, categoria da era capitalista. A fragmentao, efemeridade, superficialidade, impreciso, personalismo, estereotipia, seletividade da notcia, para ilustrar , no so expedientes para manter a alienao da conscincia. A notcia uma forma de informao mas, antes disso, uma categoria oriunda da economia de mercado e que se elabora de acordo com a dinmica do capitalismo. A cobertura e a reportagem jornalsticas, sempre que no se resumem a amontoados de notcias, preservando a profundidade e/ou a espontaneidade, provavelmente transcendem esse registro, mas ainda hoje so formas possuidorasdemenorressonncianaculturadenossotempo.Da notcia, portanto, no se deve esperar mais do que ela pode oferecer:

    pretender que ela passe sem as feies acima citadas seria o mesmo que pedir pelo seu desaparecimento. A reivindicao, claro, pode ser feita e defendida: o jornalismo no necessariamente morreria com seu atendimento, mas no isso o que est em questo neste artigo. O principal aqui sublinhar que o problema do jornalismo no a particularidade do saber que ele difunde, mas antes a forma como ele a elabora, dependente, em ltima instncia,domovimentodaindstriacultural.

    19 ADORNO, T.Introduccin a la sociologa, p. 69. Em resumo, importante "no o fato dos cidados terem a informao adequada (nem a existncia de alguma forma decomunicao no distorcida), mas nossa habilidade em trabalhar com o mundo e, ao mesmo tempo, apropriarmonos dele individualmente Para Adorno, isso era algo que, embora ainda possa ser alcanado mesmo no capitalismo, pode no ter sua sobrevivncia continuada [indefinidamente]"(HeinzSteinert:CultureIndustry,op.cit.,p.2425).

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  • O sensacionalismo, a espetacularizao, o vedetismo e a artificializao

    (criao de factides) so algumas das principais formas de reagenciamento mercantil de estruturas antropolgicas promovidas pelo jornalismo de entretenimento, em meio sociedade tecnologicamente avanada, mas faramos bem em no esquecer outras, oriundas da etapa informativae nem sempre influenciadas por fatores econmicos, como o oficialismo, por exemplo.O problema, para a crtica, portanto, no o presente declnio dos jornais

    impressos, porque no o veculo que define uma prtica, e sim o contrrio. O jornalismo funo de determinadas relaes sociais, cujos suportes acompanham o seu progresso tecnolgico, tanto quanto os demais eixos, culturais e histricos. A linha de fora que as puxa, contudo, no sem sentido objetivo: ela , no caso, a linha de fora da indstria cultural, cujos efeitos nesse campo, na atualidade, vo alm da diluio generalizada, embora no total, da distino entre jornalismo srio e leve (sensacionalista) queseoriginadosculoXIX.Neste novo momento, virtualmente psmoderno , acontece de o jornalismo 20redirecionar seu foco e se reestruturar em valores, passando a mesclarse com a publicidade e a se orientar no sentido do entretenimento, embora no se deva recalcar sua vocao para a prestao de servios. Os veculos que no se sabe mais se praticam o jornalismo ou o show de variedade se projetam numa nova esfera, que a falta de conceito melhor, se chama de infoentretenimento ,mas, como dito, conceituaramos como jornalismo de 21

    20 A contraposio entre jornalismo moderno e psmoderno poderia tomar como ponto de partida as concepes de relato que lhe subjazem: l focado no objeto, no relato do vivido pelo sujeito, aqui focado no sujeito, no relato do que por ele vivenciado (o reprter como protagonista dos fatos ou aes em foco na notcia ou matria;o foco nas sensaes e reaes das pessoas, em vez de estar nos fatos mesmos o estilo gonzo integrado e pasteurizadocomopeadevariedades).21 ALBERTOS, J.El ocaso del periodismo. Barcelona: CIMS, 1997. Jos Arbex:Showrnalismo. SoPaulo:CasaAmarela,2001.

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  • entretenimento.Neste mbito, as categorias pelos quais sua prtica se orientava (srio e leve), tomadas isoladamente, caducam. As empresas passam a ir para alm do mero empacotamento de notcias para colocao no mercado. A possibilidade de interferir na realidade e fabricar deliberadamente certos fatos, entrevista tantas vezes no passado , deslancha. O jornalismo se deixa 22envolver pelo movimento mercadolgico mais amplo de criao e difuso de factides e espetculos que toma conta da sociedade e se manifesta em todos os campos, mas, no seu caso, sobretudo no noticirio sobre as chamadascelebridades.Dizendo isso, ningum aqui est pensando que os jornais, em algum

    momento, limitaramse a reproduzir fatos, porque fatos (jornalsticos) s h a partir do momento em que o processo social se imobiliza (parcialmente) pela ao da notcia, da reportagem, da cobertura jornalstica. Os acontecimentos (jornalsticos) so tais porque o jornalismo os construiu como tal para a conscincia social: eles no so o pretenso real, mas antes uma realidade jornalstica.Ainda com isso em mente, convm pesquisar e distinguir, porm, os casos em que eles se originam da realidade (natural, histrica) e os casos em que eles se originam imanentemente apenas das necessidades da indstria jornalstica, seno das estratgias com que os setores mais poderosos ou bem aparelhados a instrumentalizam, via os seus servios e assessorias de comunicao. Quando algum diante de uma ocorrncia fala: chamem a imprensa, como se diz, isso significa: o ocorrido, no limite, deve ser conhecido por toda a sociedade. Quando algo objeto da cobertura da imprensa, como se diz, isso significa: a sociedade capitalista ou setores dela desejam que as ocorrncias em questo sejam conhecidas. As regras, o alcance e o sentido dessaprofisso,noentanto,variamconformeasrelaessociais.

    22 A Guerra HispanoAmericana de 1898, parcialmente detonada pelos jornais de William RandolphHearst,,semdvida,opontodepartidadessemovimento.

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  • Agora, acontece, cada vez mais, de os sujeitos comearem eles todos, sempre que possvel, a se conduzir de modo a serem notcia. O fetichismo da mercadoria se amplia e toma conta de sua ao de uma forma mais criativa. Os princpios do marketing se transladam para o plano individual, retirando a prtica da publicity do segundo plano a que lhe havia relegado o desenvolvimentodasrelaespblicasoriundasdasorganizaes.A convergncia dos meios de comunicao e o seu reprocessamento ou apropriao em bases cada vez mais moleculares observados atualmente via as redes sociais da internet no so, por isso, seno a base de amparo e socializao da chegada maturidade da cultura de consumo e do saber mercadolgico, do imprio da indstria cultural e do triunfo do sistema capitalista.4.ConclusoOriundo do sculo XVIII, o jornalismo foi polticopartidrio, para em seguida se tornar empresarial, convertendose de predominantemente doutrinrio em informativo. No final do sculo XX, o padro assim assumido todavia ingressou em nova etapa, redimensionandose a diviso nele existente entre jornalismo srio e ligeiro. O jornalismo ligeiro, focado no entretenimento, passou a adquirir relevncia social similar ao do jornalismo srio e, alm disso, a nele influir, deslocando o centro dos processos de conhecimento articuladospelainstituio. Nesse contexto, agravado pelo problema do excesso de informao criado pelo prprio desenvolvimento do negcio, a tendncia a do conhecimento pblico se esvair de contedo conscientizador em termos polticos, econmicos e intelectuais. Aparece no jornalismo um linha de fora imperiosa que, no limite, tende a reduzir a informao diverso, fazendoa girar em torno de referncias fantasmagricas, cujo nico ou principal meio de contato com a experincia cotidiana tende a ser o do consumo abstrato mercantilizado.A crescente capilarizao das fontes de informao, exponenciada mais e mais pela internet, o indiciador mais notvel de um processo cujo efeito

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  • principal, do ponto de vista geral, talvez seja a paralisao de sua apropriao criativa e concreta, o bloqueio da elaborao produtiva do conhecimento por partedoindivduo . 23 Quem considera o conhecimento pblico ou saber cotidiano, precisa notar,

    portanto, que ele varia conforme a histria e que, hoje, ele no se baseia mais na tradio religiosa, na formao cultural, no movimento cvico ou mesmo na puraesimplesinformaojornalsticasobrearealidadehistrica.Os novos saberes, com exceo da informao sobre os negcios,

    separaramse da hipoteca burguesa e so, agora, sobretudo os agenciados pelo sistema da indstria cultural: a psicologia de vendas, as relaes pblicas, a esttica aplicada, as finanas individuais, a sade mercantil, a automobilstica, a gastronomia, o turismo, a moda... enfim: tudo para o que, em conjunto, os americanos cunharam os termos marketing e, em reao, consumerismo,entreosanos1930eofinaldosanos1960.O jornalismo, vimos, se sujeitou prtica da indstria cultural e, por essa via,

    converteuse em empresa que, mesmo quando no faltam os fatos ou estes no so reclamados, acostumouse a crilos para o mercado, interferindo notavelmente em todo esse movimento. As empresas, agora, tm de fabricar fatos jornalsticos, fornecendo ou no a vida um pretexto imediato para tanto, visto que fatos e matrias se tornaram objeto de negcio. A prestao de servios que exploram a busca pelos saberes citados no por acaso se tornou, juntamente com a explorao do entretenimento, uma das linhas de foraemquesedseupresentedesenvolvimento.O resultado disso que, atualmente, o conhecimento comum oriundo de

    um processo cada vez menos espontneo e mais artificioso, proveniente de um movimento em que a curiosidade indissocivel da ambio mercantil e emqueoschamadosfatosbrutosvoficandosempremenospresentes .24

    23 Cf. DominiqueWolton:Penser la communication. Paris: Flammarion, 1998, p.189233. LeoServa:Jornalismoedesinformao.SoPaulo:Senac,2001.24Cf.MarcondesFilho,Ciro.Jornalismofindesicle.SoPaulo:Scritta,1993.

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  • Diante disso e para concluir, convm notar, por um lado, que o principal em

    tudo o que foi discutido no deveria ser visto pela tica da manipulao, pois antes expressa uma vontade de saber e os desejos de poder da coletividade a ele subordinada. De outro, observaramos que a vontade coletiva subjacente ou oculta nesse processo no mais forte do que suas contradies. O fato que o processo vital e a espontaneidade criadora (s vezes destrutiva) da coletividade continuam com foras para rasgar esse tecido e fazer irromper a vida e a histria na conscincia social em que se converteramosveculoseempresasjornalsticas.Por isso, os sinais de utopia que o jornalismo de entretenimento, seno de

    consumo representa, todo este noticirio medocre sobre, por exemplo, a vida das celebridades que no para de avanar so foras que tm de enfrentar diariamente a invaso da realidade mais abrangente, a da catstrofe natural e da violncia social e poltica, que devolve a esta prtica da indstria cultural, por mais mediada que esteja, o contato bruto com o mundo da vida cotidiana emtodaasuacomplicao,inusitadoeviolncia.Em geral, as pessoas acompanham fascinadas o noticirio sobre a vida dos

    famosos ou as peripcias da reprter que se aventura no fundo do mar, consomem displicentes os faitdivers cavados a todo custo e os factides sobre as celebridades criados por seus assessores de relaespblicas. Contudo, ningum deveria pensar que est a salvo da catstrofe natural, do colapso econmico, do conflito civil ou do atentado terrorista e disso nos lembraatodoomomentoaatividadejornalstica.Theodor Adorno referiuse vrias vezes presena de um olhar microlgico que, enigmaticamente, escapa ao sistema e revelanos um mundo tal como ele no deseja ser visto e vivenciado . A prtica da indstria cultural no est 25isenta de sua manifestao e o espao privilegiado em que isso intervm e elaborado parecenos ser o que hoje se conserva como sendo o prprio da atividadejornalsticaespontneaecriadora.

    25Cf.TheodorAdorno:Historyandfreedom.Oxford:PolityPress,2006.

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  • A circunstncia de seu exerccio estar fundido com aquela prtica no a blinda aos acidentes naturais e aos antagonismos humanos e estes, sempre que possurem um elemento espontneo, sempre podero ensejar um conhecimento potencialmente emancipatrio para o indivduo numa sociedade prisioneira do fetiche da mercadoria, sobretudo se encontrarem elaborao epistmica e, portanto, esclarecimento sensvel e intelectual em umaaojornalsticasria,responsvelecriativa.

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