crítica ao afrocentrismo
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O aFROCENTRISMOTRANSCRIPT
http://revistaliteratas.blogspot.com.br/2012/07/africanidades-do-afro-pessimismo.html Victor Eustáquio – Portugal
O angolano Manusse José, de quem sou amigo e decerto não levará a mal por citar uma nota sua publicada
no Facebook, defende que a filosofia africana tombou e enlouqueceu, subscrevendo a ideia de que está
morta. Gerson Geraldo Machevo, moçambicano, diz o mesmo, acrescentando que se trata de uma filosofia
sem filósofos (africanos, entenda-se), tal como intitulou, aliás, o seu possível ensaio sobre o papel da
Filosofia em Moçambique. Como português e europeu, a primeira questão que me ocorre é o que se poderá
entender por filosofia africana? O pensamento ocidental sobre África ou o pensamento dos africanos sobre
si próprios? Fala-se em epistemologias do sul, na revisão de saberes de carácter eurocentrista para dar
lugar a saber africanistas, mas em boa verdade, opino eu, o conhecimento científico produzido por
africanos, quando não cai no afrocentrismo, tende a replicar o modelo eurocentrista, a que não são alheias
várias problemáticas, das quais cito apenas três: (1) a «dependência intelectual» da comunidade científica
africana, que insiste no fascínio de criar réplicas do modelo institucional académico das metrópoles
europeias; (2) o «consultancy syndrome», que se reflecte no facto dos investigadores africanos se limitarem
tendencialmente a fazer trabalho de campo, alienando a análise de dados a favor dos investigadores
ocidentais; e (3) o que poderíamos designar por «paradoxo do financiamento à investigação», nas mãos de
várias agências da ONU e de inúmeras ONG, todas elas com agendas próprias no que diz respeito à
escolha dos objectos de estudo. Não admira, pois, este panorama «afro-pessimista», de que são exemplo
as preocupações referidas acima de Manusse José e Gerson Geraldo Machevo. Contudo, e continua a ser
a minha opinião, esta é apenas uma pequena dimensão do problema. Pensar em filosofia africana obriga a
situá-la no campo dos estudos africanos, os quais, por sua vez, obrigam a uma complexa discussão
epistemológica (i) pela extensão geográfica subalternizada dos vários saberes que envolvem; (ii) pela
estrutura multidisciplinar que abarcam; (iii) pela tensão horizontal e vertical em que se inscrevem no âmbito
das relações de poder; e (iv) pela egopolítica que lhe está subjacente numa lógica de conflito norte-sul.
Tudo somado, os estudos africanos conduzem-nos inevitavelmente ao debate de conceitos tão
controversos como multiculturalismo identitário, colonização disciplinar, epistemologias descoloniais, com
a necessidade de revisões críticas à perspectiva histórica, ontológica e epistémica, bem como ao do
confronto entre o fenómeno africanista e o fenómeno africano no campo da geopolítica do conhecimento,
entre exclusões e integrações, entre fragmentações e representações diversas da realidade social, política
e económica em contexto africano. A problemática está longe de ser pacífica, tanto mais que, após a
descolonização ou as várias libertações nacionalistas, dependendo do ponto de vista de cada um dos
protagonistas, e aqui está outro problema, subsiste em território africano um modelo de hierarquização de
saberes de padrão ocidental no seio do qual se registou apenas, tendencialmente, a inversão dos termos
da dicotomia entre dominados e opressores, substituindo o eurocentrismo hegemónico por um afro-
centrismo fundamentalista em tudo semelhante ao primeiro. Na prática, o processo de «marxização», a
chamada transição para o socialismo que se verificou na maioria dos Estados pós-coloniais, tem estado
associada a políticas desenvolvimentistas de dependência ocidental, isto é, assentes numa réplica da
herança eurocentrista que resulta numa imagem deformada da dinâmica da mudança social e cultural. A
influência e o crescente avanço da aculturação islâmica da África subsariana apresenta-se igualmente como
um factor crítico adicional, que tem estado na génese de clivagens diversas em zonas de fronteira. Acresce,
por fim, o mosaico étnico sob dependência de diásporas de exclusão que tem encontrado no vazio deixado
pela saída das antigas potências coloniais um espaço para o conflito e a afirmação de supremacias
separatistas, idealizadas fora do território africano e, por vezes, com o beneplácito de forças transnacionais
regra geral, non-state actors (NSAs) que perseguem determinados interesses neocoloniais. Face a este
panorama, avulta cada vez mais a necessidade da transdisciplinaridade no sentido de ultrapassar os
saberes disciplinares tradicionais e abrir a porta à transmodernidade, isto é, à diversidade epistémica do
mundo e às epistemologias descolonais, com vista à descolonização do capitalismo global e à emergência
das epistemologias descoloniais, sem perder de vista, que os países africanos contemporâneos abrangem
sempre uma pluralidade de mundos que coexistem, se sobrepõem e interpenetram, que se encontram
envolvidos em processos muitas vezes acelerados de mutação, e cuja configuração complexa está muito
longe de corresponder à ideia de sociedades «nacionais» coerentes e sedimentadas, para já não falar em
homogéneas. É nesta realidade, com problemáticas parcelares e fragmentadas, que os estudos africanos
em ciências sociais se devem localizar e contextualizar. O desafio epistemológico e metodológico traduz-
se assim por um esforço de investigação que deve assentar na desconstrução do que é possível trabalhar
com a formulação das proposições adequadas que conduzam à capacidade de se estabelecer modelos de
análise interdisciplinar e transdisciplinar e recorrer, numa perspectiva de complementaridade, «aos olhares
de dentro e de fora». Caso contrário, por muito legítimas e pertinentes que sejam as afirmações de que a
filosofia africana tombou e enlouqueceu ou de que em África há "uma filosofia sem filósofos, o que se está
a fazer mais não é do que a evocar os suspeitos do costume, aquilo que todos sabem de África: o discurso
estafado da cor, das ideias e do abuso das ideias. É um discurso que faz parte do passado. E que só aí se
deve manter.
Posted in: Coluna,Victor Eustaquio
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