crítica ao especifismo

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Marxismo e Autogestão, Ano 01, Num. 02, jul./dez. 2014 16 Crítica ao Especifismo Serge Tardieu Um fenômeno social relevante para entender a dinâmica capitalista contemporânea é o especifismo. A nova fase do capitalismo iniciada nos anos 1980, tem sua gênese no final dos anos 1960. A fase anterior era marcada por um certo refluxo do movimento operário nos países hiperindustrializados (especialmente EUA e Europa) e surgimento do que alguns chamaram “novos movimentos sociais”, apesar disso não ser algo exato. A partir da crise dos anos 1960 há um processo de tentativa da classe dominante em buscar controlar as lutas sociais para que no mundo hiperindustrializado não haja mais riscos tal como o Maio de 1968. O especifismo foi a resposta do capital às lutas operárias e estudantis radicalizadas, entre outras. Para compreender o capitalismo contemporâneo, é fundamental entender o especifismo e para avançar na busca da transformação social é necessário lutar por sua superação. O que é o especifismo? O especifismo não é uma ideologia única e sim um conjunto de ideologias e representações que geram determinadas práticas, sentimentos, processos sociais e por isso é mais do que mero epifenômeno superestrutural. O especifismo é uma deformação das lutas específicas de determinados grupos e indivíduos. O modo de produção capitalista gera um processo de exploração do proletariado e outros segmentos da sociedade, uma sociedade fundada na repressão, na opressão, no controle burocrático, entre outros processos sociais derivados do elemento fundamental e fundante, que é a produção de mais-valor e acumulação de capital. Isso é ponto pacífico para todo marxista. Não é possível compreender a opressão da mulher, o racismo ou a destruição ambiental sem remeter ao modo de produção capitalista e sua dinâmica de reprodução. Da mesma forma, não é possível abolir esses fenômenos sem a destruição do

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Serge Tardieu critica o especifismo, as lutas sociais específicas de determinados grupos e movimentos sociais, no sentido de promover um obstáculo na luta pela emancipação humana.

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  • Marxismo e Autogesto, Ano 01, Num. 02, jul./dez. 2014

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    Crtica ao Especifismo Serge Tardieu

    Um fenmeno social relevante para entender a dinmica capitalista

    contempornea o especifismo. A nova fase do capitalismo iniciada nos anos 1980, tem

    sua gnese no final dos anos 1960. A fase anterior era marcada por um certo refluxo do

    movimento operrio nos pases hiperindustrializados (especialmente EUA e Europa) e

    surgimento do que alguns chamaram novos movimentos sociais, apesar disso no ser

    algo exato. A partir da crise dos anos 1960 h um processo de tentativa da classe

    dominante em buscar controlar as lutas sociais para que no mundo hiperindustrializado

    no haja mais riscos tal como o Maio de 1968. O especifismo foi a resposta do capital

    s lutas operrias e estudantis radicalizadas, entre outras. Para compreender o

    capitalismo contemporneo, fundamental entender o especifismo e para avanar na

    busca da transformao social necessrio lutar por sua superao.

    O que o especifismo? O especifismo no uma ideologia nica e sim um

    conjunto de ideologias e representaes que geram determinadas prticas, sentimentos,

    processos sociais e por isso mais do que mero epifenmeno superestrutural. O

    especifismo uma deformao das lutas especficas de determinados grupos e

    indivduos. O modo de produo capitalista gera um processo de explorao do

    proletariado e outros segmentos da sociedade, uma sociedade fundada na represso, na

    opresso, no controle burocrtico, entre outros processos sociais derivados do elemento

    fundamental e fundante, que a produo de mais-valor e acumulao de capital. Isso

    ponto pacfico para todo marxista.

    No possvel compreender a opresso da mulher, o racismo ou a destruio

    ambiental sem remeter ao modo de produo capitalista e sua dinmica de reproduo.

    Da mesma forma, no possvel abolir esses fenmenos sem a destruio do

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    capitalismo. Essa obviedade , no entanto, obliterada pelo especifismo. A luta especfica

    da mulher contra a opresso, por exemplo, s pode ter xito total com a abolio do

    capitalismo. Isso no quer dizer que no se deva lutar contra o sexismo, contra salrios

    diferenciados, entre outras manifestaes da opresso da mulher, mas significa que tais

    reivindicaes dentro do capitalismo so parciais e limitadas e que devem ser

    acompanhados com mais dois elementos fundamentais: um projeto de transformao

    social, o que Marx chamou de comunismo, e a unio com outras lutas de outros

    segmentos e reivindicaes universais. Isso no criao do autor destas linhas,

    algumas mulheres j apontaram para isso, em que pese com determinadas limitaes,

    como Alexandra Kollontai e Evelyn Reed1.

    Logo, o que se depreende do que foi dito que no se trata de ser contra as

    lutas especficas. Em que pese seja necessrio refletir sobre elas e algumas das

    reivindicaes de alguns movimentos ou indivduos sejam problemticas, isso uma

    questo de forma e no de contedo. As lutas especficas s se tornam obstculos

    quando no se estruturam de forma unificada com lutas gerais e com o propsito da

    superao do capitalismo, que significa a abolio completa da razo de existncia de

    tais reivindicaes, pois a opresso das crianas e mulheres, o racismo, a destruio

    ambiental, as guerras, as instituies burocrticas, ou quaisquer outros elementos do

    capitalismo que gera problemas e reivindicaes, sero removidos complementamente.

    Por isso o problema do especifismo o isolamento e separao. O especifismo

    justamente esse processo de efetivao de reivindicaes ou lutas meramente

    especficas. A luta especfica desagua no especifismo. Ele expresso, por um lado, por

    representaes e ideologias, e, por outro, por prticas efetivas, sentimentos reais. Esse

    processo significa que as reivindicaes e questes colocadas so do grupo especfico e

    1 Veja: Alexandra Kollonta, Marxisme et rvolution sexuelle, Paris, Franois Maspero, 1973 e

    Fminisme et anthropologie, chez Denoel/Gontier, 1980.

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    diz respeito apenas a ele ou ento voltadas para um determinado fenmeno social

    separado de todos os outros.

    Esse processo no emerge por acaso. O capitalismo uma sociedade que

    constitui uma ampla e complexa diviso social do trabalho e para garantir a sua

    reproduo necessita de efetivar um conjunto de processos de opresso, discriminao,

    destruio, controle, etc., que gera uma ampla insatisfao. Esse processo pode ser

    percebido sob formas distintas pelos envolvidos ou interessados. Emerge

    espontaneamente o surgimento de uma forma de conscincia que naturaliza esses

    processos o que significa sua aceitao e outra, que manifesta sua recusa. So duas

    formas de conceber esses fenmenos, uma que responsabiliza a sociedade, a cultura ou

    qualquer outra totalidade ou abstrao (como natureza humana) e outra que

    responsabiliza o agente imediato de sua concretizao. Assim, um negro diante do

    racismo, uma pessoa preocupada com o meio ambiente diante da poluio crescente

    produzida pelos carros, um homem de paz diante do assassinato coletivo numa guerra,

    podem ou naturalizar de forma hobbesiana (o egosmo natural dos seres humanos) ou de

    outra forma, ou pode pensar que isso gerado pela cultura ou a sociedade, vistas de

    forma genrica ou abstrata, ou, ainda, pelos brancos, pela indstria automobilstica e

    pelo pas beligerante, respectivamente.

    Uma mulher oprimida tende a culpar o homem, agente imediato de sua

    opresso (embora no apenas ele, como outras mulheres tambm), o jovem tende a

    culpar o adulto, etc. No entanto, isso ainda no especifismo. apenas uma forma

    espontnea e imediata de tentar explicar a realidade. Sem dvida, no deixa de ser uma

    forma problemtica e prejudicial, mas apenas um esboo, que ao ser ampliado gera o

    especifismo. Essas representaes produzidas na vida cotidiana diferem das ideologias

    que esto na base do especifismo. O especifismo se fundamenta numa mentalidade

    reducionista (e em ideologias que abordaremos adiante), produzindo uma percepo

    distorcida da realidade ao produzir um pensamento maniquesta. O maniquesmo se

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    funda na oposio entre o bem e o mal, tidas como essncias imutveis2. O discurso

    feminista nasceu da luta contra o essencialismo (uma suposta essncia feminina que

    legitimaria e justificaria sua situao e, por conseguinte, opresso), mas no escapou da

    produo de um essencialismo invertido. O Scum Manifesto um exemplo disso e um

    antecessor das modernas ideologias feministas. A proposta de Valerie Solanas,

    exterminar os indivduos do sexo masculino, tem como base um maniquesmo, no qual

    a mulher representaria o bem e o homem o mal.

    A fonte do maniquesmo o ressentimento generalizado, marcado pelo dio ou

    rancor contra aqueles que so identificados como os responsveis pelo que se ope.

    Esse ressentimento reforado pelos dominantes atravs da manipulao dos

    sentimentos alheios. O nazismo um bom exemplo disso ao manipular a populao

    alem e provocar a canalizao do seu ressentimento contra os judeus, pois ofusca a luta

    de classes e a percepo dos problemas sociais e cria um inimigo imaginrio para

    deslocar os conflitos sociais e retirar do foco a classe dominante e o Estado, mudando o

    alvo e apagando as origens reais da situao social negada. Isso fonte de ideologias,

    que sistematizam sob forma coerente, estruturada, o ressentimento, que agora tambm

    ganha racionalidade. As chamadas polticas de identidade so nada mais do que isso.

    A recusa ao marxismo e a percepo da totalidade tem a funo de criar esse processo

    de isolamento e gerar uma ideologia para sustentar o especifismo3.

    O movimento operrio foi a grande fora contestadora do capitalismo em sua

    primeira fase, a do capitalismo livre-concorrencial. A sua segunda fase, oligopolista,

    tem a emergncia do movimento das mulheres como principal destaque, no qual o

    sufragismo assume a hegemonia, mas ainda era o movimento operrio o grande

    contestador. Na fase hiperindustrial no mundo imperialista, emergem outros

    movimentos sociais e eles acabam assumindo mais importncia devido ao refluxo do

    2 Sobre isso veja a anlise que Sartre faz do preconceito contra os judeus: Jean-Paul Sartre. Rflexions sur la question juive. Paris: Paul Morihien ed., 1946. 3 Claro que isso mais forte em determinados casos, como no movimento das mulheres, negros, etc.

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    movimento operrio, num processo de adaptao ao capitalismo de crdito, consumo

    generalizado e burocratizao crescente, inclusive dos sindicatos. Tais movimentos

    sociais, no entanto, no eram especifistas, apesar de j existirem tendncias

    embrionrias que apontassem para isso.

    com a crise dos anos 1960, a emergncia de movimentos sociais radicais,

    como o movimento estudantil francs e alemo, bem como em outros pases, a

    radicalizao do movimento negro e feminista, entre outros, so o que gera a

    necessidade de repensar os movimentos sociais por parte dos idelogos a servio do

    capital para impedir que novos maios de 1968 ocorressem. Os idelogos da moda,

    especialmente Foucault e Guattari, assumem papel importante como criadores de

    ideologias para fundamentar o especifismo, assim como logo depois emerge o

    neofeminismo de gnero. Essas ideologias contrarrevolucionrias visavam combater

    tambm noutra frente, pois o movimento operrio emergiu sob forma radical na Frana,

    Alemanha, Itlia, Estados Unidos, a partir da radicalizao do movimento estudantil e

    juvenil e outros movimentos sociais assumiram a mesma posio de radicalidade. A

    percepo de que os movimentos sociais poderiam gerar um novo estopim

    revolucionrio fez com que os idelogos produzissem ideologias que afastassem eles do

    movimento operrio. O movimento estudantil um dos que possui dificuldade de cair

    no especifismo, mas pode ser enfraquecido pelos conflitos internos gerados pelo

    especifismo. O freio do movimento operrio pela burocratizao (partidria, sindical,

    etc.) e sua tentativa de integrao na sociedade capitalista marcada pelo consumo

    ampliado no conteve as novas rebelies e nem uma nova radicalizao do movimento

    operrio, junto com a de alguns movimentos sociais que contriburam com esse

    processo.

    A nova fase do capitalismo aponta para utilizar um segundo freio, alm de

    aumentar a represso atravs do uso da fora. O primeiro freio a continuidade do

    burocratismo, mais forte em alguns aspectos e enfraquecido em outros, e segundo freio

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    criado pelo capitalismo neoliberal justamente o especifismo. Agora, o movimento

    operrio revolucionrio alm de ter que se livrar de sua burocracia aquartelada em

    partidos e sindicatos que supostamente o representa, agora tem que enfrentar as

    divises, os conflitos e grupos isolados. Estes grupos isolados (mulheres, negros, jovens

    idealistas apostando em alguma causa, etc.) podem ser divididos entre aqueles que agem

    no seu interior, pois acabam conquistando indivduos das classes exploradas, e outros

    que agem no exterior, atravs de indivduos oriundos das classes privilegiadas que

    possuem melhores condies de influenciar o resto e querem abolir a questo do

    pertencimento de classe. Contudo, como tais grupos e organizaes, bem como

    tendncias de pensamento, unem por raa, sexo, causa social, etc., eles so policlassistas

    e so hegemonizados pelos indivduos das classes privilegiadas que possuem maior

    capacidade de manipular, produzir ou reproduzir ideologias, condies financeiras, etc.,

    sem falar no apoio estatal e do capital.

    As consequncias do especifismo so diversas, mas possvel destacar trs: a)

    diviso das classes exploradas e enfraquecimento de suas lutas; b) criao de uma

    mentalidade especifista; c) impedimento de superao da situao que gera a

    necessidade de lutas e movimentos sociais contestadores, o que significa manuteno da

    situao de opresso, destruio, etc.

    O divisionismo, algo bastante comum no capitalismo, no qual at a cor da

    bandeira do grupo pode gerar diviso, se v amplificado a um nvel extraordinrio. Ele

    enfraquece o movimento operrio e das demais classes exploradas na luta cotidiana,

    pois cria novos obstculos para avano da conscincia e organizao. Da mesma forma,

    gera um conjunto de processos de corrupo, cooptao, moderao, graas fora

    persuasiva dos setores das classes privilegiadas que tomam frente nas lutas especifistas.

    A mentalidade especifista pode ser oriunda do encontro de uma ideologia, falsa

    conscincia produzida pelos idelogos, como os j citados e diversos outros, com

    interesses e sentimentos de pessoas atingidas ou vinculadas afetivamente com o que

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    supostamente combate. O ressentimento provocado pela violncia sexual ou pela

    discriminao racial ao se encontrar com uma explicao supostamente simples de

    quem o culpado pelo seu sofrimento pode ser canalizado facilmente por uma ideologia

    que prega que os homens e brancos (geralmente sem diferenciao) so os opressores

    que devem ser combatidos ou que prega algo que permite traduzir isso a partir de outras

    supostas explicaes mais abstratas. Um indivduo ligado afetivamente ao

    Movimento de Libertao dos Animais, por razes psquicas que no poderemos

    desenvolver, ao acessar ideologias e manipulao sentimental, tornar-se antihumanista e

    combater os humanistas e todos que no esto de acordo com a ideologia ou concepo

    do grupo que efetiva tal movimento.

    A ltima consequncia que o especifismo ele mesmo um obstculo para a

    abolio das formas de opresso, conflitos, processos destrutivos, que supostamente

    visa combater. Ao isolar e tornar algo apenas do grupo ou fenmeno especfico, ele se

    afasta dos outros grupos e questes, enfraquecendo seu potencial transformador, e mais

    ainda ao se afastar do movimento operrio, fica mais distante de um avano na luta.

    Mas ao postular uma concepo ou ideologia que fora do contexto, fora da totalidade,

    isolando o problema e sua soluo, acaba beneficiando a reproduo das relaes de

    produo capitalistas, e, por conseguinte, do que gera o que combate. Essa a

    tragicidade das lutas especifistas, mas que s atinge os ingnuos e manipulados, pois

    aqueles que esto aquartelados no poder e so financiados pelo Estado ou pelo capital,

    esse o objetivo secundrio, sendo que o primrio so as vantagens pessoais e usufruir

    de parte do bolo retirado do processo de explorao do proletariado.

    A concluso lgica de tudo isto que o especifismo uma tendncia

    conservadora, em todas as suas formas, e que por isso deve ser superado por um novo

    movimento revolucionrio que coloque na ordem do dia a transformao radical e total

    da sociedade, o que aponta para a resoluo dos problemas especficos no para apenas

    alguns e sim para todos. O projeto de uma nova sociedade na qual a explorao que a

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    base de toda forma de opresso, destruio, insatisfao, abolida e com ela todos os

    indivduos e grupos se libertam, bem como todas as lutas especficas so resolvidas,

    pois a revoluo proletria significa emancipao humana em geral. Nada de

    reformismo ou neorreformismo, de querer apenas vantagens dentro do capitalismo ou

    destruir os outros seres humanos e sim constituir um mundo novo e radicalmente

    diferente.